Humanos criados como animais: coração selvagem

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Humanos criados como animais: coração selvagem
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Humanos criados como animais: coração selvagem
Flávia Ribeiro, 2006
De acordo com a lenda, os gêmeos Rômulo e Remo, filhos de uma mortal com o
deus Marte, foram abandonados em um cesto no rio Tibre. Ainda bebês, tinham
pouquíssimas chances de sobreviver. Mas uma loba os resgatou, protegeu e amamentou,
permitindo que crescessem saudáveis e fundassem a cidade de Roma em 753 a.C. Sem
dúvida, um final feliz. Na vida real, entretanto, crianças criadas longe do convívio
humano nunca fundaram cidades. Esses meninos e meninas, encontrados em florestas,
estradas ou campos, andam de quatro e nus – no máximo, vestidos com trapos. Em vez
de falar, grunhem. Na hora de comer, gostam de carne crua, frutas e raízes silvestres. E,
mais do que tudo, intrigam profundamente os estudiosos.
O primeiro registro de uma criança selvagem data de 1344: um menino-lobo
achado na região de Hesse, na Alemanha, citado pelo filósofo francês Jean-Jacques
Rousseau no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens. Mas o fenômeno tem ocorrências recentes. Um exemplo é o russo Andrei
Tolstyk, abandonado aos 3 meses e criado por cães. Foi descoberto numa parte remota
da Sibéria em 2004, aos 7 anos, andando de quatro, latindo e cheirando tudo o que via.
Cada caso novo de criança selvagem bota um pedaço de lenha na fogueira de uma
das mais persistentes questões da ciência: existe uma natureza humana? “O homem não
nasce humano. Ele possui, sim, a capacidade de tornar-se humano. Aprender a falar uma
língua, por exemplo, é uma exclusividade humana que só se realiza com o contato com
outros que falem”, diz Luci Banks-Leite, professora de Educação da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). “Nem mesmo a postura bípede se desenvolve se
alguém não der a mão antes.” Nas histórias de vida dessas crianças, dois fatores saltam
logo aos olhos: primeiro, sua impressionante capacidade de sobreviver nas condições
mais adversas: enfrentando frio, calor e, muitas vezes, o ataque de animais. Depois, o
árduo caminho que percorrem ao ser educadas para que saiam da condição de selvagens
e se tornem “civilizadas”. O isolamento, entretanto, costuma deixar marcas profundas
em todas elas. “Algumas perdas são irreversíveis”, diz Luci.
A professora é uma das organizadoras de A Educação de um Selvagem, livro que
discute o processo pedagógico do francês Victor, o Selvagem de Aveyron, encontrado
abandonado no fim do século 18. Diferentemente de algumas histórias semelhantes que
parecem ser lendas ou invenções de charlatães, o caso de Victor é bem documentado. O
mesmo ocorre com o alemão Kaspar Hauser e a indiana Kamala de Midnapore. Juntos,
representam os três principais tipos de criança selvagem: a que viveu isolada de outros
seres humanos, a que foi adotada por animais e a que permaneceu confinada.
Filho do isolamento
A mais célebre criança selvagem inspirou inúmeros livros (alguns científicos,
outros nem tanto) e teve sua vida levada para as telas de cinema pelo diretor francês
François Truffaut no belo O Garoto Selvagem, de 1969. Foi conhecido primeiro como
Selvagem de Aveyron e, mais tarde, chamado de Victor pelo médico e educador francês
Jean Itard, que se encarregou de sua criação. O menino foi encontrado por caçadores em
1799, com cerca de 12 anos, vagando por bosques na França. Estava nu, sujo, mordido e
arranhado, se alimentava de nozes e raízes. Tinha 23 cicatrizes causadas por mordidas
de animais e outra, no colo, por uma provável facada. Andava trotando, farejava o que
lhe davam, roía os alimentos, amava os campos e tinha aversão a usar roupas e a comer
alimentos cozidos. Não falava, apenas emitia sons guturais. Seus olhos não se fixavam
ou demonstravam expressão. Seu tato, olfato e audição eram aparentemente insensíveis.
Nunca se soube se Victor se perdeu ou foi abandonado por sua família. Sabe-se
apenas que viveu em completo isolamento. Foi levado a uma instituição nacional de
surdos-mudos, onde Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria moderna, o
diagnosticou como “acometido de idiotia” e, portanto, não suscetível à socialização e à
instrução. Mas Jean Itard discordou de seu mestre e resolveu educar ele mesmo o
menino. Escreveu dois relatórios sobre seus progressos: um em 1801, após um ano de
trabalho com ele, e outro em 1806. No primeiro, afirma que os hábitos de Victor
mostravam as “marcas de uma vida errante e solitária” e demonstravam que ele tinha
passado pelo menos sete de seus 12 anos no isolamento. Segundo o médico, o menino
dava aos cientistas a incrível oportunidade de “determinar quais seriam o grau de
inteligência e a natureza das idéias de um adolescente que, privado desde a infância de
qualquer educação, tivesse vivido inteiramente separado dos indivíduos de sua espécie”.
Itard é considerado o pai da educação especial e um precursor da psicologia
infantil por seu inovador trabalho com Victor. Mas, apesar de estar à frente de seu
tempo, cometeu um erro. O médico, que apostou na disciplina e nas relações sensoriais
de causa e efeito para educar o menino, deixou de lado as emoções. “Itard não percebeu
o potencial do convívio. O tempo que passava com Victor era apenas o das experiências
educacionais que fazia com ele. Dá um passo, inova, é ousado, mas ainda é limitado por
não perceber a importância das relações pessoais”, afirma Izabel Galvão, professora de
Educação da Universidade de São Paulo (USP) e também organizadora de A Educação
de um Selvagem.
Madame Guérin, a governanta que cuidou de Victor, foi quem estabeleceu com
ele uma relação propriamente pessoal. “Até certo ponto, o tratamento que Itard impôs
trouxe resultados, mas foi domesticador. Já o de Guérin foi humanizador”, diz a
psicóloga Renata Guarido, professora da USP. Em contato com os dois, Victor, ao
longo dos anos, tornou-se um rapaz de aparência normal. Aprendeu a mostrar as coisas
de que gostava, a sorrir, a pedir e a dar carinho. Mas frustrou Itard, pois jamais aprendeu
a falar articuladamente. Era capaz apenas de dizer uma ou outra palavra, como lait
(“leite”, em francês). Morreu aos 40 anos.
O choro da menina-loba
Como os lendários irmãos Remo e Rômulo, Kamala e Amala de Midnapore
também foram criadas por lobos – o tipo de bicho que mais acolhe humanos (veja
quadro na página anterior). Em 1920, o reverendo Joseph Singh viajava numa missão
espiritual pela Índia quando soube da lenda de duas meninas que viviam com uma
matilha daqueles animais. Intrigado, partiu atrás delas. Ao encontrá-las, ficou
impressionado: ambas andavam de quatro e, antes de sair da caverna em que se
escondiam, colocavam só a cabeça para fora e olhavam desconfiadas para os lados.
Capturadas, foram encaminhadas ao orfanato da cidade indiana de Midnapore. O
reverendo Singh, que as criou junto com sua mulher, era o diretor da instituição.
Kamala tinha cerca de 8 anos e Amala, apenas 1 ano e meio. Carnívoras, bebiam
água lambendo e tinham horror à luz. Passavam o dia todo arredias, mas à noite
uivavam e grunhiam. A menor sobreviveu dez meses longe dos bosques e morreu, um
ano depois, de nefrite (inflamação nos rins). Foi quando Kamala chorou pela primeira
vez desde que chegara ao orfanato. “Ela teria chorado se Amala tivesse morrido na
selva? Ou será que, no tempo em que conviveu com humanos, a menina aprendeu a
chorar?”, questiona a professora Luci. “São perguntas sem resposta. Mas Kamala pode,
sim, ter aprendido. O choro e o riso não são apenas reflexos do ser humano. São
construídos socialmente.”
A menina mais velha ainda viveu por nove anos. Na época em que morreu, com a
mesma doença da irmã, Kamala era uma adolescente de cerca de 17 anos. Havia
passado a andar ereta e adquiriu um vocabulário de 50 palavras. Chamava a senhora
Singh de “mamá” e chorava com sua ausência. Conversava com todos, inclusive com os
médicos. Sua evolução, conseguida com os cuidados do casal Singh, levou o sociólogo
francês Lucien Malson, autor de As Crianças Selvagens, a concluir que Kamala não
tinha nascido com problemas mentais. “Pelo contrário, a comparação entre seu nível
mental aos 8 anos e o que chegou a demonstrar mais adiante manifesta, com toda a
evidência, que devia sua triste condição à falta de uma vida familiar em sua infância.”
Pão, água e morte
Em 1828, um trôpego rapaz de 16 anos, estranhamente vestido, apareceu na porta
de uma casa. Levava em seu bolso um lenço com suas iniciais, um rosário, orações, um
pouco de ouro em pó e uma carta dirigida ao capitão do 4º Esquadrão do 6º Regimento
da Cavalaria de Nuremberg, na Alemanha. Na carta, uma mulher dizia que aquele era
seu filho e que o pai era um membro da Cavalaria. Havia junto outro bilhete, escrito por
alguém que dizia ser um pobre operário a quem o rapaz fora confiado. As ordens tinham
sido bem diretas: manter o jovem confinado.
O adolescente falava, mas só duas frases eram compreensíveis: “eu não sei” e “eu
gostaria de ser um cavaleiro como meu pai foi”. Também lia e escrevia
rudimentarmente. Com uma pena, mostrou ser capaz de rabiscar seu nome: Kaspar
Hauser. Suas origens nunca foram descobertas, mas uma das possibilidades é
rocambolesca: ele seria o príncipe de Baden, filho do grão-duque Carlos de Baden e da
grã-duquesa Estefania de Beauharnais. Mas, como outros nobres germânicos não
queriam que a coroa seguisse nessa linhagem, teriam arrancado o filho do casal e o
confinado no porão. Assim como ocorreu com Victor de Aveyron, sua história resultou
em inúmeros livros e em um filme, O Enigma de Kaspar Hauser, dirigido pelo alemão
Werner Herzog em 1974.
O estranho rapaz foi recolhido por soldados e, mais tarde, levado a morar com o
professor George Daumer e a passar temporadas na casa do jurista e filósofo Alselm
von Feuerbach, que escreveu sobre ele Beispiel eines Verbrechens am Seelenleben des
Menchen (ou “Exemplo de um atentado à vida anímica do homem”, não publicado no
Brasil). Nele, conta que Kaspar andava tropeçando, chorava muito e tinha medo de
tudo, até de certas cores, como preto e amarelo. Amava os cavalos, trocava qualquer
alimento por pão e água e falava de forma estranha. “Poder-se-ia tê-lo tomado por um
habitante de outro planeta que milagrosamente chegou à Terra”, escreve Feuerbach.
Kaspar não viveu em total isolamento, como Victor, nem apenas em companhia
de animais, como Kamala e Amala. Por isso, ficou mais fácil descobrir parte de sua
história, revelada por ele mesmo. Soube-se, por exemplo, que passou a maior parte de
sua vida preso em um porão escuro e silencioso, recebendo comida – na maioria das
vezes pão e água – por uma fresta. Através dela, ouvia a voz do “Homem”, que lhe
ensinou algumas palavras escritas e faladas. Em três anos vivendo na casa de Daumer,
Kaspar já tinha um belo vocabulário, embora nunca tenha se ajustado à vida em
sociedade. Saiu de casa, tentou viver em outros lugares. Sofreu dois atentados a faca.
Sobreviveu ao primeiro, mas faleceu no segundo, aos 22 anos. O autor do crime,
segundo se imaginou na época, teria sido o tal “Homem” que o havia mantido
trancafiado.
A arte imita a selva
Não faltaram exemplos reais para inspirar os selvagens da ficção
Pyrénée foi criada por um urso e vive nas montanhas dos Pirineus, na França.
Personagem principal da aventura que leva seu nome, escrita por Régis Loisel e
Philippe Sternis, ela tem uma história impressionante. Assim como a Garota de Issaux,
que existiu mesmo e provavelmente serviu de inspiração aos dois autores. A menina
tinha 16 anos quando foi encontrada, em 1719, e vivia naquela mesma região
montanhosa desde os 8, quando se perdeu durante um passeio. Como a maioria dos
jovens selvagens, mal falava e alternava o andar bípede com o quadrúpede. Os ursos,
entretanto, não estão entre os que mais costumam acolher humanos. O recorde fica com
os lobos: há registros de 25 casos de crianças encontradas vivendo entre eles (acreditase que o instinto materno de lobas com filhotes justifique o carinho delas por crianças
perdidas). O personagem Mogli, inspirado nessas histórias, ficou conhecido no mundo
todo após se transformar em animação dos estúdios Disney. Mas, antes disso, o meninolobo figurava na literatura de primeira linha, presente no clássico O Livro da Selva, de
Rudyard Kipling, escrito em 1895. Tanto no livro como no cinema, Mogli foi viver em
uma vila de humanos e se adaptou rápido (muito diferente do que costuma ocorrer na
realidade). Já o personagem Tarzan se deu tão bem na vida selvagem que acabou
virando o “Rei da Selva”. O primeiro dos 24 livros sobre ele, escritos pelo americano
Edgar Rice Burroughs, foi lançado em 1914. Tarzan é um nobre que, ainda bebê, acaba
perdido na selva africana durante a ocupação do continente pelos ingleses. É encontrado
por macacos, que o criam como um deles. Sua saga inspirou desde desenhos animados
até filmes como Tarzan, o Homem Macaco, de 1932 – com várias continuações, todas
com o ator e nadador Johnny Weissmuller (foto) –, e Greystoke: a Lenda de Tarzan, o
Rei das Selvas, de 1984. Levado à Inglaterra, o homem-macaco chegou até a ter um
romance com a aristocrata Jane. Na vida real, as nove crianças achadas vivendo entre
macacos – sete delas na África – passaram por muita dificuldade nas suas tentativas de
ressocialização.
Mãe natureza abandonada
Para o bem ou parao mal, é a sociedade que nos faz humanos
Em 1750, o filósofo iluminista francês Jean-Jacques Rousseau publicou seu
Discurso sobre as Ciências e as Artes, no qual lançou a controversa teoria de que as
ciências e as artes corrompem o homem. Naquele livro, ele argumentava a favor de uma
“volta à natureza”, defendendo a tese de que “o homem é naturalmente bom”, mas
acaba perdendo a bondade inicial conforme avança a civilização. Essa idéia do “bom
selvagem” nortearia toda a obra de Rousseau. Quatro anos depois, ele voltaria ao tema
no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Aqui
ele comenta cinco casos de crianças perdidas, incluindo o menino-lobo de Hesse,
encontradoaos 7 anos, e a Garota de Issaux, achada nos Pirineus. Para Rousseau, o fato
de esses meninos e meninas andarem de quatro acontecia por uma eventual imitação dos
quadrúpedes, e não por características humanas naturais. O “bom selvagem”, na
verdade, andaria sobre os dois pés, além de ser inteligente e generoso. Em 1928, Edwin
Ewart Aubrey, um filósofo e teólogo escocês, levou a discussão adiante, defendendo a
tese de que, para agir como humano, um indivíduo tem que ser criado por humanos. “O
homem não nasce como um ser cultural já completo, com instintos inalienáveis, que
determinem o curso inevitável de seu desenvolvimento”, disse. A conclusão de Aubrey
foi a de que “a ‘humanidade’ do homem aparece no contato social, tornando-se parte do
indivíduo”. Os meninos e meninas selvagens encontrados ao longo dos séculos foram,
portanto, tolhidos em suas potencialidades humanas (vivessem eles confinados, isolados
ou entre animais). “Hoje é mais fácil perceber que as histórias de crianças selvagens
demonstram que o comportamento humano não é inato, mas aprendido”, diz a
professora Izabel Galvão. “Mas a discussão sobre natureza humana permanece atual,
pois entra nos terrenos de biotecnologia, clonagem e robótica.”
Saiba mais
Livros
As Crianças Selvagens: Mito e Realidade, Lucien Malson, Civilização, 1978 - Tradução
portuguesa do livro Les Enfants Sauvages, de 1963, faz um inventário de crianças
selvagens e analisa seus tipos mais representativos.
A Educação de um Selvagem – As Experiências Pedagógicas de Jean Itard, Luci BanksLeite e Izabel Galvão (organizadoras), Cortez, 2000 - Tem artigos sobre Victor de
Aveyron e seu relacionamento com o educador Jean Itard. No apêndice, traz os dois
relatórios sobre o menino.
Wolf-Children and Feral Man, Joseph Singh e Robert Zingg, Harper, 1942 - Sobre as
indianas Amala e Kamala, também trata de outros casos e traz, em anexo, o famoso
texto de Alselm von Feuerbach sobre Kaspar Hauser.
Site
www.feralchildren.com - O site, em inglês, enumera dezenas de histórias de crianças
selvagens, com dicas de leitura sobre elas.