A morte da pitonisa.

Transcrição

A morte da pitonisa.
,
Quarta-Feira
17 de Março de 1993
Ano 4 nQ 1107
Diário
130$00 (Continente)
150$00 (Madeira) 160$00 (Açores)
IVA incluido
Director Vicente Jorge Silva
Director-adjunto Jorge Wemans
Rua Amílcar Cabral L1.1 . 1700 LISBOA
Rua N. S. de Fálíma. 177-1. 4000 PORTO
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edição LISBOA
Da Argélia ao Egipto
Fundamentalisías sobem a parada
Em Arge~ os islamistas subiram os seus alvos: disparam agora sohre ministros. De manhã foi abatido oex-ministro do Ensino Superior e, à tarde, ferido oministro do Trabalho. Também no Egipto se intensifica a violência. Num novo atentado "contra o turismo", os fundamentalistas fizeram explodir uma homba jlmto ao museu onde estão as reliquias de Tutankamon.
p, 11/1'2 e 44
França
•
•
Iro sa'
Retrato de Balladur,
virtual primeiro-ministro
Dentro de poucas semanas a direita reocupará o poder em França e Edouard Bailadur surge como o"primeiro-ministro favorito" dos franceses e, ao que se diz, do próprio Presidente Mitterrand. Não promete milagres nem quer virar tudo de pernas para o ar. Prefere os factos às tiradas ideológicas, o realis,!!o à "grandeza da França". Eo
mais hritânico dos politicos gauleses. Aenviada do PUBUCO fez o seu retrato num
comicio em Paris.
p. 8.
Suspeita de fraude em escola profissional
Responsável da Infortec
denuncia desvio de fundos
Uma das "pérolas" das escolas de formação profissional do Norte, aInfortec, visitada por
ministros e apontada como exemplo de funcionamento, está soh suspeita. Um dos seus
responsáveis denuociou odesvio de muitos milhares de contos dos fuodos comunitários.
APolicia Judiciária esteve lá ontem eapreendeu acontabilidade e processos de aluoos. A
direcção nega tudo. OGETAP,,,,ridadefiscalizadora,desconhece.
p. 20/21
Caso do padre Frederico
Bispo do Funchal pede compaixão
ohispo do Fuochal, Teodoro Faria,qualificou ontem a história do padre Frederico Cunha, oseu ex-secretário condenado a 13 anos de prisão por homossexualidade com menor e homicídio, um "caso doloroso" que "feriu profundamente o povo cristáo" da Madeira. Embora quehrando osilêncio aque se remetera após ojulgamento, obispo evita
qualquer comentário à sentença. E, se lembra que há castigo para ocrime quefoi impu- .
tado ao sacerdote, sublinha também que, "apesar da condenação de tais delitos", as pessoas "devem ser acolhidas com respeito ecompaixão".
p. 16
Em 'Milão
.
FC
.JogaPorto
,
prestIgIo
e dinheiro p.30
Em Turim
....
....
....
-r----------------------------------~~~~
Benfica defronta
Juventus em crise
p.31
Negócio & BCI
Está na hora
da sua
empresa
crescer.
~BCI
S",nco d~ CDtn.,f;,D • Indu.,,,..
_.- .-
2
destaque
aUARTA-FEIAA. 17 MARço 1993
DESTAQUE
A alma jovem censurada
PfDAO tUNIIA
Toreaio Sepúlue<ÚL
Aescritora Natália Correia nwrreu
ontem. Cultivou todos os géneros
üterários, poesia, romance, teatro,
ensaio. Foi deputada àAssembleia
da República. Em todas as
actividades pôs umafogosidade
muito dela, excessiva e apaixonada.
Quis transformar Portugal numa
Mátriafeiticeira. Não o conseguiu,
não a deixaram: "Por isso a nossa
dimensão INão é a vida. Nem é a
nwrte", revoúava:se no poema
"Queixa das almas jovens
censuradas", que José Mário Branco
popularizou em canção.
Natália Correia na sua casa em Lisboa: 8 vontade de mudar Portugal pela prosa. pela poesia e pela intervenção política
oi uma das
mulheres mais
bonitas que
Lisboa
viu.
-Mas a romancista, poetisa e ensaísta Natália
Correia revoltava-se com o elogio: "Eu não era bonita, erainteligente, sou inteligente. E a inteligência vê-se na cara, vê-se no
corpo."
Natália de Oliveira Correia
nasceu em 13 de Setembro de
1923, na Fajã de Baixo, ilha de
S. Miguel, Açores. Filha de uma
casal da média burguesia rural
- a mãe era professora e o pai
foi rico, mas arruinou-se ue fez·se aventureiro" -, veio ainda
criança para Lisboa onde frequentou o liceu. Morreu ontem
de enfisema pulmonar, complicado por problema cardíaco.
Natália Correia ainda ontem à
noite estivera no bar Botequim,
em Lisboa, congratulando-se
por as análises clínicas não haverem detectado a tuberculose
que temia Mas às 5hOO da madrugada sentiu-se mal, tossiu
muito, expeliu sangue e sob~
veio o ataque de coração. As
7hOO morreu. O corpo está desde ontem em câmara ardente
na Casa dos Açores, de onde
amanhá, às llh30, parte o funeral para o cemitério lisboeta
do Alto de S. João, onde - por
vontade expressa da escritora
- será cremado.
A Cámara Municipal de
Ponta Delgada tinha prevista
uma homenagem a Natália Correia, a 27 deste mês, durante
uma Semana Cultural. A homenagem incluia um recital de p0esia no Teatro Micaelense, na
presença da poetisa, que formalisaris então a entrega da sua biblioteca à Junta de Freguesia da
Fajã de Baixo, localidade onde
nascera
Àprocura da Mátria
Natália Correia, que muito
cedo se evidenciou oomo uma
das personalidades mais fortes
do meio literário lisboeta - estreou-se em 1945 na ficçáo com
"As Grandes Aventuras de um
Pequeno Herói", a que se seguiu, em l!i46, o romance
"Anoiteceu no Bairro" e, em 47,
"Rio de Nuvens" (poesia) nunca se libertou da insularidade das suas raízes, insularidade
que lhe marcou muito a obra
Não por acaso, ecoam na sua
poesia os tons trágicos de Antero, outro açoriano: "No Inverno
tomando a caveira da vida, / lnterroga-a e o sossego aprende da
descida / Sabiamente à lareira,
esperando pela morte, / Ao so-
Botequim
Aúltima tertúlia
HÁ SEMANAS, no Botequim, pela madrugada, um amigo de Natália Correia, poeta e escritor como ela, pegou-lhe na mão direita, viu·
lhe a linha da vida e disse: "Vai acontecer-lhe
algo de muito grave." "Vou morrer?", perguntou ela. Ele hesitou: "Vai deixar de escrever."
"Então vou morrer! 'SÓ espero que me proporcionem condições, já que não tenho bens materiais, para ir morrer em paz .n a minha ilha."
Nebuloso, o destino cercava-a nos últimos
tempos de sombras e inquietações. A literatura, a
arte, a solidariedade, a utopia, o oonvívio, coisas
em que acreditava e porque sempre se bateu, s0friam revezes sucessivos dos tecnocratas da política e da cultura, dos colunistas da moda e da arrogância.
Alguns ridicularizavam-na, enxovalhavam-na nos jornais depois de a terem, quando de pas-
turno barqueiro compras melhor transporte", escrevia em
1985, no poema "As Estações".
incluído no livro "Armisticio".
À soturnidade anteriana
juntou a preocupação filosófica
do seu patricio oitocentista C0mo Antero, Natália quis mudar
Portugal E, como ele, não sabia
como fazê-lo. Apátria, queconsiderava decadente - não propriamente pelas mesmas razões
de Antero -, causava-lhe revoltamastambémamor.Paraasalvar e para salvar os portugueses
quis fazer dela mulher, a "Mãtria" (poesia - 1968): porque
"cada mulher é uma cascata de
trevos". Natália, que não tinha
filhos; que defendia a "neoossária satanização da criança", em
"Uma Estátua para Herodes"
(1974); que punha uma personagem da peça de tea1ro "O Homúnculo" (1964)adizer: "Quan-
do um filho não tira a vida ao pai.
amolece-lhe o coração"; Natália
Correia quis uma mãe para os
portugueses. Porque "o pai faz
da crianÇa o seu cavalo de Tróia
para invadir o futuro e sobre ele
exerce os seus direitDs", C'Uma
EstátuaparaHerodes").
Romantismo e surreafumo
Por fim,já nem a Mãtria lhe
parecia suficientemente libertária, nem suficientemente igualitária No romance "As Núpcias"
(1992),elogiao incesto como relação alquimica de que nascerá a
Frátria O hermetismo e o es0terismo haviam-se tornado desde
muito cedo constantes da obra da
autora Em 1957, na in1rodução
ao JlO!lma dramático "O Progressode Edipo" -com que iniciou a
sua produção teatxal- escreve:
"Há qua1ro letras, cada uma de-
sagem pelo Governo, censurado e banido. lndomável, ela reagia-lhes, porém. "Não, não me mato. / Antes me zango até ficar um cacto, / Quem
me tocar, maldito / Que se pique."
O Botequim, bar que abriu para o seu primeiro marido (hoje propriedade de um pequeno grupo de amigos) fez-se o seu campo de batalha e subversão, de partilha e dádiva, lugar
pagão onde circulava como uma grande deusa,
uma grande profetisa - que o era porque
grande poetisa.
Do Botequim, todas as noites esconjurava os
mafarricos sitiadores rindo alto, cantando alto,
declamando alto, invectivando alto - a sua energia e a sua lnminosidade dissolviam os desãnimos, os medos.
"O tempo do ódio está a passar, digo-vos", di·
PÚBLICO
las guardada por um dragão.
Aquele que matar os quatro dragões fol)Il8. o Tetragrama e chama-se Edipo. Nele se unem as
duas naturezas, divina e humana
(. ..)" O tom de Natális vai-se
aproximando cada vez mais do
dos surrealistas. Este texto sobre
Édipo poderia ser, aliás, subscrito
por Antrinio Maria Lisboa ou até
por André Breton. Breton que
Natális defendejánoano seguinte, no ensaio "Poesia de Arte e
Realismo Poético", quando explica a imagem surrealista: "'Um
galináreo com uma estrela no bico' é um absurdo. Mas 'um anjo
oom uma estrela na fronte' é uma
fácil relação de coerência"
Natália Correia chegou ao
surrealismo, como Antero chegaraaoseumuitopeculiarreslismo: levando até às últimas consequências a revolução romântica: "Oulíriosouoluar./Eeuque
zia, "os valores da eapiritualidade, do sagrado,
dos sentimentos, da alegrià vão regressar, digo-vos" dizia
Mantada no tempo, anunciava oom décadas
de antecedência o suceder dos aoont.ecimentos, a
queda do Muro de Berlim, a liberdade em Portugal, o regresso da escrita e do sagrado, a descrucificação, o fim das religiões monoteístas - "Armistício" lhe chamou, em livro que pouoos entenderiam.
"Os homens só serão unidos quando crerem em todos os deuses", repetia. "Mais importante do que eles existirem é acreditarmos
neles."
Política (tantos golpes e contragolpes cresceram, foram abatidos nas mesas do Bote·
quim!l, paixões (dele telefonou a Snu Abocas-
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3
MARÇO 1993
Pacheco, Natália criou wna espécie de heterónimo surrealista,
Delfim da Costa, que durante
um tempo serviu de assinatura a
panfletos violentíssimos contra
meia Lisboa literária Delfim da
Costa é tão devedor do insulto
surrealista como do escárnio e
mal-dizermedievais.
Estamos perante wna obra
diversificada, torrencial,
por vezes desequilibrada,
como a autora que lhe deu
vida Para além dos livros
citados escreveu ainda, entre outras: Poesia - "Poemas" (1955), "Dimensão
Enoontrada" (1958), "C0municação" (1959), "Cântico do País Emerso"
(1961), "O Vrnho e a Lira"
(1966), "As Maçãs da Orestes" (1970), "A Mosca numinada" (1972), "O Anjo
do Ocidente à Entrada do
Ferro" (1973), "Poemas a
Rebate" (1975), "Epístola
aos lamitas" (1976), "O Dilúvio e a Pomba" (1979) e
"O Armistício" (1985); Ficção - "A Madona" e a
"nha de Circe (1983); Teatro- "OEnooberto(1969),
"Erros Meus, Má fortuna,
Amor ardente" (1981) e "A
Pécora" (1983, escrita em
~~q";~
1967, mascuja publicação o
regime salazarista proibiu);
Investigação e antologias
- "A Questão académica
de 1907" (1962), "Antologiada PoesiaEróticae Satirica" (1966), "Cantares Galeg<>-POrtugue5eS" (1970),
"AMulher" (1973), "OSurrealismo na Poesia Portuguesa" (1973), "Antologia
da Poesia portuguesa no
Periodo Barrooo" (1982) e
"A llha de Sam Nunca"
(1982). A maior parte das
obras disporúveis apresentam as chancelas das editoras Dom Quixote e O Jornal Foi directora da revista
fico no meio? /Trago esse poço de "VIda Mundial" e o antigo Presiar I Como um aborto no seio." dente daRepública, Ramalho Ea("Passaporte", 1958). E juntan- nes condecorou-a DOm o grande
do-lhe wna pessoalissima pro- oficialato da Ordem de Santiago
pensão para o barroco: "Dizendo deEspada.
'templus' direis 'tempus'. PorEstá prevista para o próxique achando-se o templo no cen- mo dia 30 wna homenagem a
tro do mundo que é o urnhigo da Natália Correia, durante a qual
deusa, raiz da vida, cordão que li- será lançada, pelo Círculo de
ga o homem à nascenre divina, Leitores, a edição agora póstunão só santifica o Cosmosoomo o ma da sua obra poética, em dois
Tempo. Dali se fita o grande To- volumes, scb o titulo genérico de
do." Este trecho de "AsNúpcias" "O Sol nas Noites e o Luar nos
lernhra alguns do Padre Antórúo Dias". David Mouráo-Ferreira
Vieira RDmantismo, barroquis- será o apresentador e Manuel
mo, surrealismo ... Estranho se- Alegre lerá poemas.
ria que Natália Correia não tivesse cultivado o fantástico. Mas
Apaixão política
te-lo, nas noveletas "Onde está o
Menino Jesus?", "O Aplaudido
O espírito inquieto de NatáDramaturgo Curado pelas Pilu- lia Correia não podia ficar-se peIasPink", "AMenina com a Rosa la intervenção artistica e cultuna Testa" e "Fragmento de um ral, por mais acutilanres que as
Perdido Evangelho".
suas posições neste campo se
Com Manuel de Lima e Luis apresentassem. Não resistiu à
sis para lhe apresentar Sá Carneiro), artes
(são permanentes as exposições), literatura
(regulares os lançamentos), culinária (o melhor rosbife da cidade), concertos, debates, má-lingua, indignações, tornaram o pequeno bar
do Largo da Graça uma referência na vida de
Lisboa, fizeram dele a última e grande, e louca, e generosa rertúlia do país. I
"Não dispense o convívio com as pessoas de
espírito, é fundamental para a criação lirerária,
para evitar a lireratura desvivenciada, SÓ quando
se está muito na vida se pode transmiti-la no acto
criador."
Presidenres da República e marechais, embaixadores ejuíz,es, escritores e cientistas, revolucionários e visionários, catedráticos e estudan~s,
amanres e cartomanres sentavam-se à sua volta
destaque
participação politica. Anres da
revolução do 25 de Abril, esteve
ligada às actividades da Oposição
Democrática, como era dever de
wna insubmissa Instaurada a
Espírito irreverente e livre, um pouco anarquista, o que a levou a cirdemocracia, foi deputada pelo cular por vários portidtJs depois do 25 <k Abril, mas continuou sempre
PPDiPSD e, a partir de 1987, foi fiel a si própria ea umagrruuk uerdOOepessool. &mpre a mesmaNatáeleita para o Parlamento como lia, amante da lih€rdOOe. Uma grruuk escritoro, muito maior da que se
independenre nas liatasdo PRD. pensa. cuja imagem pública de irreverência, às vezes polémica, igrwraua
Mas a sua participação na vida aprofundidaik<kcaráclerdapoetisa. •
partidária manteve as mesmas
motivações do impulse poético.
O PPDiPSD foi esoolhido porque
admirava Sá Carneiro. Admiravao polítiDO, a sua frontalidade e
a sua coragem, mas admiravasoEla esteue, sempre, com a vontade de ficar com os que amava, de rebretudo o amante, que impós a
um pais católico e clerical os di- cusar a foce àqueles que nem por isso. Vi-a feroz, algumas vezes, pondo a
reitos da paixão. Para Natália <kbandar, <k rabo entre as pel7UlS, a rafeircuia que tenúwa morder-IMOS
Correia, Sá Carneiro era o rei D. artelhos. Vi-a dulcíssima, muitas outras, acariciando a cabeça dos que,
Pedro do nosso rempo e Snu por tecto, nada mais tinham que um telhadn <k versos. Foi a coragem da
voz que nunca, pelo caminho, se perdeu, em seu amor aos amantes e aos
Abecassis a reencarnação de pedintes,
em seu ódio aos estúpidos eaos burocratas.•
Inês de Castro. "Morreram am• escritor
bos na flor da paixão, enlaçados
num abraço de chamas", escreveu depois do acidenre de Camarate, em "O Jornal".
A hererodoxia de Natália
Correia levava-a a alhear-se das
Com a morte <k NaIólia Correia desaparece uma das vozes mais vidiferenças especificas entre os vas e originais da poesia portuguesa, sob certos aspectos também a mais
partidos. Desde que a deixassem incómoda. &ráporenquanto impossível calcular o sulco por da <kimda,
dizer o que lhe aperecia no hemi- não sónoscaminhosdapoesiaque semprepercorreuexemplamu!nte, mas
ciclo. Foi wna prerrogativa que também nos domínios da prosa, quer de natureza namJtiua quer de cautilizou generosamente, e há rácter reflexivo. eainda no que respeita à suacontinuadaacçãociuica. Foquem diga que a Assembleia da ram 40 anos de amizade fraterna. Era a irmã que eu nunca tive, com
República nunca mais foi a mes- quem tive algumas discordâncias, mas com quem nunca me zanguei. A
ma depois da sua saída, em sua moneera impensávelpara mim.•
• poeta e escritor
1991. Quem não se lembra de
wna Natália Correia, repentista
e esca.rninha, a estigmatisar o
deputado do CDS João Morgado, que defendia, durante a disCostul7UlL<l chanw.r-IM "Senhara da Rosa ", porque luwia nela algo
cussão da lei scbre o aborto, em
1982, que "o acto sexual é para de muito antigo, da marquesa deAloma e da feiticeira Cotovia, apersofazer filhos": "Já que o coito- nagem<k um dos seus mais bek!s poemas.lfavia nela algo <k sacerda/idiz Morgado - / rem como fim sa e <k oficiante, no sentUUJ bam e antigo. E essa a imagem que guardo
cristalino, / precise e imaculado / <kla, a<kalguémparoquemapoesiaera umaespécie<kdam <kespírito:
fazer menina ou menino; I e ca- não ero.por acaso que ela diziaque,paro os subalimentados do sonho, a
da vez que o varão / sexual petis- poesiaé para comer. A sua morte abalou-me: eu tinha com ela uma relar
co manduca, / temos na procria- ção<k respeilo múluoe<kgrondefrotemidaik.•
• poeta
ção / prova de que houve trucatruca, / sendo SÓ pai de um rebento, / lógica é a conclusão / de
que o viril instrumento 1só usou
- parca ração! - wna vez. E se
a função / faz o órgão - diz o diConheci-a antes do 25 de Abril e,já nessa altura, fiquei surpreenduro
tado -I conswnada essa excep- pela maneiracomo exercia a sua condi.ç&J <k mulMr na sociedade fechar
ção,/ficou capado oMorgado."
da de então. Era de uma subversão extraordinária. Uma mulher assuEnvolveu-se, noanopassado, mida, sem medo, de quem muitas vezes as pessoas não gostavam por
nas movimentações da Frente causa da dureza e da frontalidaik com que <kfendia as suas convicções.
Nacional para a Defesa da Cultu- Foi umagrruuk poetisa eescritoro, mas nunroconsegui separá-la daoura, elegendo a politica do secretá- troforçaquebroúwa<kla: a transgressão. •
• encenador de "A Pécora". na Comuna
rio de Estado da Cultura, SantanaLopes,comoadversáriapriocipai Era já uma mulher aflita, a
que faltava a verve, a faisca, o dito
demolidor. Santana Lopes, bom
principe porwna vez, acabou por
Era uma poetisa com uma garra extraordinária, além de ser uma
lliedar a pensão que o Estadocosdo panorama cultural português. Foi uma mulMr polituma conceder aos artistas des- personagem
mica, combativa, de uma irreverência que foi sempre coerente. Tinha
munidos. Mas ísto não ficará para uma personalidaik fortíssima, que se impunha: quanOO faliWa, toda a
a História Oreslosim.
gente a ouvia. •
.
A morte chamou Natália
* pintora
Correia Ela esperava-a: "Uma
dor fina que o peito me atravessa, I A escuridão que envolve o
pensamento, 1Um não rer para
onde ir cheio de pressa, tUm correr para o nada em passe lenUmdos elernentosfundmneniais da minhacarreirafoifeitocom um
to... " ("Sonetos Românticos") •
dos poemas <k NaIólia: "Queixadas almasjovens censuradas" que eu
musiquei no meu primeiro álbum, em 1971. Esta canção tornou-se uma
discutindo, bebendo, cantarolando, emocionan- eBpécie<kemblemadaresistência. Erouma mulher<k armas, nunca Mdo-se, irritando-se com ela
sirou em dara caropelas causas nobres e muitas vezes foi mal compreenCosta Gomes, Ramalho Eanes, Manuela dida. Umalutodara.
Eanes, Otelo, Vasco Lourenço, Vítor Alves,
• compositor
Maria de Lurdes Pintasilgo, Isabel Soares, José Manuel dos Santos, Cardoso Pires, D. Maria
Pia, Antórúo Vitorino de Almeida, Maria João
Pires, Eunice Munoz, Lagoa Henriques, Oliveira Marques, Tomás Ribas, João de Melo,
Eurico da Costa, Martins Correia, Fernando
Era uma mulher que dizia coisas que mais ninguém ousava
Tordo, Mello e Castro, Baptista-Bastos, Ma- afirmar. Uma mulher <k gronde independência e <k uma coragem
nuel Alegre eram, foram algumas das presen- extrema. Como poUtica, enganou-se várias vezes, o que não lhe retiças na sua tertúlia.
ra nada ao seu valor como mulher tanto no campo da cultura, 00·
Vai ser difícil, daqui para a frente, imaginar a mo na sua dimensão enquanto ser humano. Não se sei se ckua, mas
vida cultural portuguesa sem Natália Correia no neste momento apetece-me recordar como era Natália Correia jo·
Borequim. •
uem, uma mulher <k uma beleza flsica rara.
Mário Soares
"V ma grande escntora
. "
Mário Cláudio*
"A coragem da voz"
David Mourão Ferreira*
"A Senhora da Rosa"
João Mota*
"Vma personalidade apaixonada"
Maluda*
""Quando falava, toda a gente a ouvia"
José Mário Branco*
""Vma mulher de armas"
Coimbra Martim*
""V ma beIeza f"ISlca rara"
Fernando Oacosta
PÚBUCO
Torcato Sepúlveda
Adeusa
e os homens
NATÁLIACORREIAfoiummereoro que atravessou o oéu negro
da cultura portuguesa do século
xx. A sua verve, a tirada repentista, a pose - a boquilha, o elogio da noire, a boémia, os amores
- fizeram dela um mito. Uma
mulher borúta que, com fragor,
derruba os portões das tertúlias
literárias liaboetas dos anos 40,
muito dominadas pelos homens,
desencadearia
forçosamenre
amores e ódios. Anre Natália
Correia ninguém ficava indiferente: ou se aceitavam os seus
modos cortantes, definitivos, de
pitonisa moderna, ou se era atirado para uma periferia na qualreinava, em sua opinião, a ignorânciae aestupidez.
Muito desse espírito reba"bativo e insubmissc foi buscá-,
Natália Correiaàs amizades SUl
realistas dajuventude, mas tam
bém às cantigas de escárnio e
mal-dizer medievais e ao muito
português e camiliano gosto pela
polémica Na intimidade, DOmo
todos os excessivos, era capaz de
ternura, humanidade e até enlevo pelas qualidades inrelectuais
e morais dos que a rodeavam.
Mas logo vinha o gesto largo, a
frase ribombanre, o dito ferino e
certeiro.
Natália Correiaera umadeusa e, DOmo os deuses, desferia os
seus raios irresponsáveis, não rui·
dandodejustiças. Porisso seapaixonou por genre que depois desfez a golpes de sarcasmo. Por isso
sereconciliavacomgenerosidade.
Num Portugal clerical, rural,
salazarista, com uma Lisboa mesquinha e provinciana romo capital, Natália Correia tinha que ser
olhada DOmo heterodoxa E foi-o.
Antes do 25 de Abril, esta açoriana tão doida DOmoAnrero-ecomo ele capaz dos entusiasmos
mais solares e das depressões
maisnocturnas-chooouqueros
mediocresdo Estado Novo quer a
oposição estalinista, cujo marenaliamo primário a maçava como
wna cartilha mediocre. Por isso
se afastou, depois do 25 de Abril,
do republicanismo histórico conservador e moralista. Adoptou
então Sá Carneiro, cuja paixão
por Snu Abecassis lhe prometis
um Novo Estado Amoroso. Com
amorredeSáCarneiro,adeusaficou só. Oshomensjá não queriam
segui-la Os seus reios não feriam.
Asubstituição do mito Sá Carneiro pela ilusão Ramalho Eanes demonstra que os deuses também
enlouquecem
A saída do Parlamento, por
causa da derrota do PRD, adenseu as nuvens que sobre ela se
abatiam. Natália Correia, que escreveraumlivrocomosignificativo titulo de "Somos Todos Hispanos" (1988), acabou na Frente
Nacional para a Defesa da Cultura, rodeada pelos antigos adversários neo-realistas e estalinistas, a
defender um penoso nacionalismo cultural .. Os dislates da política cultural cavaquista exigiam a
sua critica e a sua ironia Mas ela
jánãoeradonadaironiadeoutro-'
l"l- Estava triste, amarga e aflita:
"E tédio? 1;: depressão? Talvez
loucura? / E, para um além de
mim, passagem escura? 1Um ir
• eurodepulado socialista porirquenãoremoutrolado?" •
"A irmã que nunca tive"
Manuel Alegre *
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