Sem título - Faculdade Santa Marcelina

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Sem título - Faculdade Santa Marcelina
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Editorial
Quadragésima edição do Inter-Relações 3
Tadeu Morato Maciel
Artigos
As Relações Internacionais no Brasil: notas sobre o início de sua institucionalização 5
Tullo Vigevani; Laís Forti Thomás; Lucas Batista Leite
SUMÁRIO
A memória do futuro: a Rússia e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva 12
Diego Santos V. de Jesus
Conceitos em Relações Internacionais: atores e perspectivas históricas nas teorias das relações
internacionais 24
Leonardo Dutra
Energia e integração regional: neofuncionalismo na América do Sul 33
Gustavo Tonon Lopes
Dossiê – Segurança Humana e Relações Internacionais
Segurança Humana: o discurso para ou da periferia? 41
Ariana Bazzano
Soberania, direitos humanos e autoridade no debate contemporâneo sobre intervenções
humanitárias 54
Ana Clara de Souza
MONUSCO e Ilhas de Estabilidade: influência sobre a operacionalização da proteção de civis nas
missões de paz da ONU 63
Graziene Carneiro de Souza
Ascensão do sul e governança global: contribuições do sul para a segurança e desenvolvimento
humanos 78
Juliana Bulsonaro; Tadeu Morato Maciel; Sarah Serrano
O engajamento internacional pela segurança humana: apontamentos de uma crítica
pós-colonial 88
Carolina Yamada; João Paulo Gusmão P. Duarte; Rafaela Godoi
Resenhas
Controlar o insuportável 96
Tiago Guimarães Marmund
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Inter-Relações
ISSN: 1980-3702
Editoração:
Prof. Ms. Tadeu Morato Maciel.
Revisão:
Prof. Ms. João Paulo Gusmão P. Duarte
Deborah de Almeida Sheps.
Conselho editorial:
Prof. Dr. Clóvis Brigagão (IUPERJ-UCAM).
Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira (UNICAMP).
Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP).
Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues (UFABC).
Dr. Kjeld Jakobsen (Instituto Observatório Social).
Profª Dra. Meire Mathias (UEM).
Prof. Dr. Moisés da Silva Marques (FASM/FESP-SP).
Prof. Dr. Paulo-Edgar Resende [in memoriam] (PUC-SP).
Prof. Dr. Peter Demant (USP).
Prof. Dr. Rafael Duarte Villa (USP).
Prof. Dr. Ricardo Seitenfus (UFSM).
Prof. Dr. Sergio Aguilar (UNESP).
Prof. Dr. Thiago Rodrigues (UFF).
Prof. Dr. Wagner de Melo Romão (UNICAMP).
Coordenação de Relações Internacionais:
Profª. Ms. Rita do Val.
Coordenação do Laboratório de Análise Internacional:
Diogo Bueno de Lima.
Faculdade Santa Marcelina
(Campus Perdizes)
Rua Dr. Emílio Ríbas, 89.
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“As opiniões expressas nos
artigos aqui publicados são de
inteira responsabilidade dos
autores, não refletindo,
necessariamente, as posições dos
editores e da Faculdade Santa
Marcelina”.
Direção:
Ir. Valéria de Araújo Carvalho.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Quadragésima edição do Inter-Relações
São diversos os motivos que tornam esta edição do Inter-Relações extremamente especial.
Neste ano o curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM) comemora 15
anos de existência. Considerando que o segundo curso de graduação nesta área no Brasil surgiu em
meados da década de 1990, é possível considerar que o curso da FASM é um dos pioneiros dentre
os que permanecem ativos. A partir de um corpo docente extremamente capacitado e valorizando a
pesquisa acadêmica como elemento essencial para a formação do estudante de Relações
Internacionais, a FASM procurou apresentar nestes 15 anos novas possibilidades para aqueles que
se interessam pelas relações internacionais e buscam por novas formas de compreender e atuar em
um mundo cada vez mais globalizado e dinâmico.
Em consonância com esse processo, em 2013 foi criada a linha de pesquisa sobre Segurança
Internacional, a qual procura promover debates e análises sobre as mudanças conceituais e práticas
que conformam as questões de segurança que permeiam a chamada governança global. Como
resultado das reuniões realizadas no Laboratório de Análise Internacional (LAI), foram idealizados
alguns textos que congregam os resultados obtidos até o momento, os quais compõem o dossiê
“Segurança Humana e Relações Internacionais”. Não haveria melhor momento para a publicação
dos resultados desta pesquisa, visto que o dossiê será lançado na XVII Semana de Relações
Internacionais da FASM, além de ser parte integrante desta quadragésima edição do Inter-Relações.
Esta edição de aniversário deste periódico tem a participação de pesquisadores, professores e
estudantes que pensam as relações internacionais por inúmeras miradas, demonstrando a
multiplicidade de temas que as conformam. O primeiro artigo é uma gentil contribuição do Prof.
Tullo Vigevani e dos pesquisadores Lucas Batista Leite e Laís Forti Thomáz, todos representantes
do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas. Esse texto traz uma
importante reflexão sobre o início da produção de pensamento, de pesquisa e do ensino relativo às
relações internacionais no Brasil. Ao partir do questionamento sobre os motivos pelos quais a
Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) não promove efetivamente a segurança
entre seus membros, o segundo artigo, assinado pelo Prof. Diego Santos V. de Jesus (ESPM-RJ e
UNI-IBMR), procura analisar como os objetivos estratégicos da Rússia podem ser vistos como
obstáculos à promoção de um sistema de segurança coletiva na região. No terceiro artigo, o Prof.
Leonardo Dutra (Universidade de Vila Velha) promove uma discussão sobre os atores que
compõem as relações internacionais e a durabilidade na história dos conceitos que os definem. O
primeiro bloco desta edição é finalizado com artigo do Prof. Gustavo Tonon Lopes (FASM), o qual
trata da possibilidade de uma integração energética no Cone Sul, utilizando-se das teorias
funcionalistas e neofuncionalistas.
O segundo bloco desta edição é composto pelo dossiê “Segurança Humana e Relações
Internacionais”, o qual congrega tanto contribuições de importantes pesquisadores que trabalham
com esta temática quanto os resultados obtidos a partir das reflexões realizadas pelos professores e
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estudantes da FASM. O primeiro artigo deste dossiê é assinado pela pesquisadora Ariana Bazzano,
pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, e traz
uma análise extremamente profícua sobre o conceito de segurança humana e sua inter-relação com
as ideias de desenvolvimento e soberania. O objetivo da autora é questionar se o discurso da
segurança humana é uma ação política dirigida às periferias ou uma bandeira levantada por elas em
busca de emancipação. O segundo artigo do dossiê é a importante e rica contribuição da
pesquisadora Ana Clara de Souza (Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio). A autora
analisa como os debates contemporâneos sobre intervenções humanitárias parecem contrapor
soberania e não intervenção como normas irreconciliáveis do Direito Internacional, subjazendo, em
meio a isso, discussões mais profundas sobre moral e ética das intervenções humanitárias, sobre
autoridade e novas formas de imperialismo e, por fim, sobre as implicações políticas do
humanitarismo militarizado. No terceiro artigo do dossiê, a pesquisadora Graziene Carneiro de
Souza (Mestre em Estudos Estratégicos em Defesa e Segurança pela Universidade Federal
Fluminense e Consultora do Fundo de Populações das Nações Unidas) nos agracia com uma gentil
e eminente análise sobre como o uso legítimo da força aplicado em ações ofensivas pela Força da
Brigada de Intervenção na República Democrática do Congo, com autorização do Conselho de
Segurança, levou à emergência do conceito de “ilhas de estabilidade” e modificou a
operacionalização da proteção de civis.
A segunda parte do dossiê traz os resultados das pesquisas sobre Segurança Internacional
realizadas no Laboratório de Análise Internacional da FASM. Em conjunto com as estudantes
Juliana Bulsonaro e Sarah Serrano, elaborei um texto que, a partir do Informe de Desenvolvimento
Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2013, debate como
esta instituição relaciona as mudanças na dinâmica global por conta da ascensão dos países
emergentes com a importância deste fenômeno para o desenvolvimento humano. O segundo texto,
das estudantes Carolina Yamada e Rafaela Godoi, em conjunto com o Prof. João Paulo Gusmão P.
Duarte, realiza uma reflexão crítica a respeito da introdução da temática da segurança humana nas
relações internacionais, utilizando-se das abordagens dos Estudos Pós-coloniais para apontar como
o engajamento contemporâneo pela proteção humana dá continuidade à lógica orientalista imposta
aos países, culturas e sociedade consideradas falidas, atrasadas e subdesenvolvidas.
Esta edição é finalizada com a resenha do estudante Tiago Marmund para o livro
Terrorismo: caos, controle e segurança, do Prof. João Paulo Gusmão P. Duarte (São Paulo:
Desatino, 2014), no qual se busca discutir a atualidade do terrorismo e do contraterror.
Boa Leitura!
Tadeu Morato Maciel
Editor do Inter-Relações
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
As Relações Internacionais no Brasil: notas sobre o início de sua
institucionalização
O objetivo do artigo é
apresentar o início da produção
de pensamento, de pesquisa e
do ensino relativo às relações
internacionais
no
Brasil.
Pretende-se demonstrar como
existiram
intelectuais
de
diferentes formações e políticos
preocupados com as relações
internacionais e com a política
externa em períodos que
antecedem a institucionalização
da área nos anos 1980.
Tullo Vigevani1
Laís Forti Thomáz2
Lucas Batista Leite3
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 5 - 11
Introdução
A área de Relações Internacionais é relativamente recente no Brasil. Lembremos que como
primeira institucionalização acadêmica e de pesquisa em termos mundiais, é citado o Royal Institute
of International Affairs, de 1920. Alguns anos depois, em 1927, a London School of Economics
criou o primeiro departamento de Relações Internacionais.
No Brasil, o primeiro curso de graduação iniciou-se em 1974 na Universidade de Brasília
(UnB), e em 1984 foi nela criado o mestrado. O segundo curso de graduação foi o da Universidade
Católica de Brasília (UCB), em 1995. Em 1987, o Instituto de Relações Internacionais (IRI) da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) deu início ao mestrado. Isso não
significa que o tema Relações Internacionais não tenha existido antes. O tema sempre foi tido como
importante, tanto por intelectuais, quanto por políticos. No caso do Brasil, considerando o longo
1
Professor do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP.
2
Doutoranda do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP,
PUC-SP).
3
Doutorando do Programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP,
PUC-SP).
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período para a institucionalização desta área acadêmica de forma mais específica, as relações
internacionais foram cultivadas em áreas correlatas, sobretudo no campo do direito, mas também na
filosofia, na economia, na história, na ciência política, na geografia, etc.
A partir dos anos 1990 houve um aumento das pesquisas relacionadas às relações
internacionais, o que justifica o que Lessa (2005) chama “adensamento do ‘pensamento brasileiro
de relações internacionais’” (Lessa, 2005: 1). Esse adensamento pode ser identificado em diferentes
setores da sociedade: a) instituições governamentais, em especial no Ministério das Relações
Exteriores, mas também no Ministério da Defesa e em outros órgãos, como o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), além da atuação dos governos subnacionais (estados e municípios); b)
organizações não governamentais, inclusive entidades empresariais e sindicatos, além dos partidos
políticos; c) sobretudo as universidades.
Podem ser indicadas muitas manifestações desse aumento, sobretudo na parte relativa aos
estudos acadêmicos: uma evidente é a expansão quantitativa do ensino superior, com a explosão do
ensino de graduação e, em menor medida, da pós-graduação. Outra manifestação está ligada ao
papel dos estudos de relações internacionais em termos de pesquisa.
Nosso objetivo neste texto é apresentar o início da formação da área acadêmica de Relações
Internacionais no Brasil. Na perspectiva deste texto a produção de pensamento, de pesquisa, o
ensino relativo ao campo das relações internacionais, são todos fatos que antecedem a
institucionalização da área nos anos 1980. O ensino de Direito Internacional nas Faculdades de
Direito (as de Olinda e São Paulo foram fundadas em 1827) demonstram esta dinâmica. O mesmo
pode ser dito no tocante ao campo de economia internacional (Almeida, 2001), tema que é estudado
no Brasil há bem mais de um século.
O início do estudo de relações internacionais e sua institucionalização
Em todo o mundo, a expansão dos cursos e da área de pesquisa acadêmica de Relações
Internacionais aconteceu ao final da década de 1940, depois do fim da II Guerra Mundial, no nascer
da Guerra Fria, tendo depois continuidade crescente. Grande parte dessa expansão deu-se nos
Estados Unidos: a instituição mais importante e de referência está lá sediada, a International Studies
Association (ISA), fundada em 1959. Apenas para termos elementos de comparação, a British
International Studies Association (BISA) foi fundada em 1975; o World International Studies
Committee (WISC) foi criado em 2002, congregando as instituições nacionais de estudos
internacionais; a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) foi formada em 2005.
Assim, não é estranho que reiteradamente tenha se colocado a questão, sob forma de pergunta
ou de afirmação, de se a "ciência" conhecida como Relações Internacionais seria uma "ciência" e
também uma "teoria", sobretudo, norte-americana. Sem dúvida, na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos a disciplina tem relação, ainda que não exclusiva, com a importância que as relações
internacionais tiveram para o próprio Estado nacional. Isso em que pese o crescente interesse nas
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nascentes organizações internacionais e a busca pela compreensão da relação entre poder e direito
internacional, sobretudo a busca da compreensão das formas pelas quais a desordem e a guerra
relacionam-se com a paz e a ordem. Pensemos em Hans Kelsen e em Hedley Bull. Em outros
termos, procurava-se refletir sobre os problemas do equilíbrio e da justiça. Os estudos
imediatamente pré e imediatamente pós-II Guerra Mundial dirigiram-se a questões tipicamente
estatais, particularmente às relações conflituosas ou cooperativas desses atores. As formas
efetivamente tomadas pela Guerra Fria, as mudanças sistêmicas e das relações de poder, as
modificações havidas na economia e na tecnologia, levaram a questionamentos e à evolução das
premissas teóricas e metodológicas, bem como ao aprofundamento das questões ontológicas e
epistemológicas. Velhas fórmulas foram questionadas e surgiram no plano internacional novas
perspectivas e desenhos de pesquisa (Herz, 2002).
Concentrando nosso foco nas formas como se desenvolveram os estudos das relações
internacionais no Brasil, retomemos a ideia já apresentada de que existiram intelectuais de
diferentes formações e políticos preocupados com as relações internacionais e com a política
externa em períodos bem anteriores àquele que é considerado o início da institucionalização da
área. Basta folhear as publicações do Ministério das Relações Exteriores, particularmente da
Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e seus Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais
(IPRI) e Centro de História de Documentação Diplomática (CHDD), para comprovar a afirmação.
Atores com reflexão intelectual importante deixaram obra e formularam ideias e políticas: José
Bonifácio de Andrada e Silva, Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Afrânio de
Melo Franco, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas, Araujo Castro, etc.. Ricupero (2011: 15) lembra
alguns intelectuais que colaboraram diretamente na elaboração da política exterior: Domício da
Gama, Graça Aranha, Euclides da Cunha, Clóvis Beviláqua, e outros.
Mesmo considerando os inúmeros textos acadêmicos (artigos, capítulos, teses, livros)
refletindo a respeito da área nos anos 1990 e 2000, os quais contribuem decisivamente para este
mesmo escrito, nos damos conta ser necessária uma obra de grande porte sobre o tema, de pesquisa,
síntese, aprofundamento e sistematização, considerando o longo prazo em que diversas reflexões
sobre a área têm sido produzidas. Nos anos 1950 e 1960 iniciativas-marco na área aconteceram. A
título de exemplo: a) os trabalhos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em
1955 pelo Ministério da Educação e Cultura; b) a criação, em 1954, do Instituto Brasileiro de
Relações Internacionais (IBRI) (Dulci, 2013) e a publicação por este Instituto, a partir de 1958, da
Revista Brasileira de Política Internacional, sendo seu diretor, Cleantho de Paiva Leite, um dos
principais idealizadores; c) a revista Política Externa Independente, apenas três números editados,
entre 1965 e 1966.
O marco de referência intelectual, como havia sido nas décadas anteriores, baseava-se na ideia
de Nação. O golpe de Estado de abril de 1964 teve como consequência interromper em boa parte
essa reflexão, ao menos dificultá-la seriamente. Ainda que em difíceis condições, algumas
pesquisas foram desenvolvidas e aos poucos o espaço das relações internacionais foi avançando na
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universidade: no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 Carlos Estevão Martins com pesquisas,
Oliveiros da Silva Ferreira oferecendo disciplinas na área de Ciência Política da Universidade de
São Paulo (USP), José Carlos Brandi Aleixo na UnB.
No final dos anos 1970, período posterior à criação do curso de Relações Internacionais na
Universidade de Brasília (UnB), novas iniciativas foram tomadas, criando-se a cultura da reflexão e
do estudo sistemático, metódico. Herz (2002) ressalta algumas dessas iniciativas já citadas e
apresenta outras:
(...) a criação do curso de graduação em Relações Internacionais na UnB, em 1974, do
Conselho Brasileiro de Relações Internacionais (CBRI), em 1978, do Instituto de Relações
Internacionais (IRI) da PUC-Rio, em 1979, e, posteriormente, do seu Programa de
Mestrado em 1987, do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea (CPDOC) da
Fundação Getúlio Vargas e de seu Programa de Relações Internacionais, em 1980, do
Grupo de Trabalho sobre Relações Internacionais e Política Externa (GRIPE) da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em
1980 (até 1994), do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina
(PROLAM) da USP, em 1988, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, em 1985,
do Centro Brasileiro de Documentação e Estudos da Bacia do Prata (CEDEP), em 1983, do
Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI), em 1987, fazem parte do processo
de consolidação da área de relações internacionais no Brasil. (Herz, 2002: 19-20).
Entre inúmeros outros eventos, Miyamoto (1999) lembra que:
(...) com o apoio do Iuperj, do Programa de Estudos Comparados Latino-americanos da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do Instituto Latino-americano de
Desenvolvimento Econômico e Social (ILDES), ligado à Fundação Friedrich Ebert, e da
Fundação Ford, se realizaram dois grandes seminários em 1977 e 1978 em Nova Friburgo.
(Miyamoto, 1999: 89).
É no encontro de 1978, no qual foi criado o já citado Conselho Brasileiro de Relações
Internacionais (CBRI), que se congregou boa parte da primeira geração acadêmica que fundou e
consolidou a área no meio universitário, juntamente com diplomatas. Ainda nesse período vale
lembrar a experiência da Revista Política e Estratégia, publicada pelo Centro de Estudos
Estratégicos do Convívio em São Paulo, de 1983 a 1990.
Fonseca Junior (2011), em trabalho escrito em 1981, mostra a importância dos diplomatas na
institucionalização da área. Aliás, esse vínculo, como existia há muito nos Estados Unidos, foi
explicitamente construído.
Do ponto de vista do Itamaraty, é fundamental definir uma política de operação. Ou seja,
existe, diante do fenômeno do surgimento da preocupação acadêmica, a possibilidade de
definir, de forma integrada, sistemática, com perspectiva de longo prazo, uma estratégia de
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conduta, em uma palavra, uma política de ligação com a Universidade (Fonseca Junior:
2011: 67).
Santos (2005) defende que a genealogia dos cursos de Relações Internacionais no Brasil tem
seu início nos estudos de história diplomática, e que a disciplina que convencionou-se chamar de
História das Relações Internacionais teria sido o primeiro campo a ser desbravado da área. A autora
afirma ainda que a institucionalização da disciplina inicia-se na década de 1970, seguindo uma
tendência de programas de pesquisa em História de outros países, particularmente da França. O
curso na UnB é a expressão desse processo. Como vimos, em termos nacionais, a questão parece ter
maior complexidade, visto que em outras instituições universitárias brasileiras foram professores e
pesquisadores com formação em distintos campos de conhecimento - direito, ciência política,
economia, etc. – os pioneiros na introdução definitiva e permanente do ensino e da pesquisa em
Relações Internacionais.
Essa forma de evolução está longe de ser característica brasileira. A conexão entre História,
Direito, Sociologia, Filosofia, Economia, Geografia e Relações Internacionais existe há mais tempo.
Lembremos autores como Norman Angell, Edward Carr, Raymond Aron, sem falar de Tucídides ou
de Hugo Grotius. A partir da preocupação para entender as causas da Primeira Guerra Mundial,
antes, e da Segunda depois, bem como do objetivo de construir premissas teóricas e de reconstruir
esses eventos, a área de Relações Internacionais teria ganhado prestígio e iniciado seu processo de
institucionalização. Não se trata mais de História Diplomática strictu sensu, mas de História das
Relações Internacionais, incorporando o espírito da École des Annales, particularmente os estudos
de Renouvain e Duroselle.
Dentro desta mesma perspectiva se colocam Cruz e Mendonça (2010), ao afirmarem que as
Relações Internacionais se consolidaram no Brasil a partir de outras disciplinas como o Direito
Público Internacional, a História Diplomática e a Economia. Cruz e Mendonça (2010) lembram
também a criação do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) em 1954, na Fundação
Getúlio Vargas. Sua revista de relações internacionais deveu muito de seu vigor aos
desenvolvimentistas ligados aos governos Vargas e Kubitschek.
Lessa (2005) explica a transição da História Diplomática para a História das Relações
Internacionais no Brasil: uma das transformações que acarretaram o amadurecimento da área de
Relações Internacionais foi o abandono da chamada “história diplomática”, especialmente em
estudos de política externa brasileira, em prol do que viria a se firmar como História das Relações
Internacionais – com abordagens interdisciplinares e que não condicionavam os acontecimentos à
atuação de um ator solitário, além de buscar compreender a mudança no que se designa como
Sistema Internacional e a possibilidade de agentes internos também constituírem as relações
existentes.
Enfim, podemos dizer que importantes expressões de estudo se davam externamente à vida
universitária há muitos anos. Fizemos referências ao IBRI e ao ISEB no final da década de 1950 e
início de 1960. Nos anos 1970 e 1980 instituições universitárias e outros centros de pesquisa,
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acadêmica ligados ou não à universidade, também convergiram para as Relações Internacionais,
sendo um deles o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), em São Paulo, e outro o
Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI), da Universidade de São Paulo (USP).
A transição do regime autoritário para o democrático, entre 1985 e 1990, teve como
consequência indireta estimular mais a pesquisa na área. A redemocratização brasileira começou a
trazer maior transparência e tornou-se um pouco mais fácil consultar e ter acesso direto a fontes
documentais que estivessem em poder do Estado. Na área de relações internacionais, a gestão Celso
Lafer, já no governo Collor de Mello, desencadeou um debate sobre a disponibilização do arquivo
do Ministério. É o que sinaliza Lessa (2005) em relação aos documentos produzidos a partir 1945,
cujo arquivo é organizado pelo Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. O acesso a ele
antes de 1990 não era possível.
Considerações finais
O objetivo desse trabalho foi discutir as premissas da institucionalização da área de relações
internacionais no Brasil. Vimos que tem raízes bem anteriores à de sua consolidação formal nos
anos 1980, o que é possível verificar a partir da sua presença no panorama intelectual brasileiro, a
qual vem de longe, como chamou a atenção José Honório Rodrigues (1969). A partir dos anos 1970
adensou-se o número de professores e intelectuais que se envolveram de forma sistemática na
pesquisa, formando novas gerações. Diplomatas do Ministério das Relações Exteriores contribuíram
de forma importante com este processo.
A partir dos anos 1990 houve expansão quantitativa e qualitativa das pesquisas na área, com
efeitos consolidados nos anos 2000. Uma última reflexão que pode contribuir, ainda que válida para
amplo espectro de questões, a explicar a consolidação do ensino e da investigação em relações
internacionais, assim como o ensino e a ciência em geral no Brasil, é o papel da transição à
democracia nos anos 1985-1990, particularmente o papel da Constituição de 1988. Uma
Constituição que afirmou a propensão da sociedade e do Estado para o bem-estar. Ao longo do
tempo viabilizou a expansão do ensino universitário, expressando-se tanto no seu setor público
quanto no seu setor comunitário e no privado. A redemocratização também teve como subproduto a
relativa melhora no acesso a documentos e acervos, com maior transparência e estímulo à pesquisa.
Fenômeno que foi se dando, ainda que de modo parcial, nos governos Sarney, Collor de Mello,
Itamar Franco, Cardoso, Lula da Silva e Rousseff.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Paulo Roberto. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil. São Paulo, SENAC,
2001.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
CRUZ, Sebastião Velasco e MENDONÇA, Filipe. “O Campo das Relações Internacionais no
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DULCI, Tereza Maria Spyer. “Instituto Brasileiro de Relações Internacionais”. In: Revista
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FONSECA JUNIOR, Gelson. Diplomacia e academia: um estudo sobre as análises acadêmicas
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LESSA, Antônio Carlos. “Instituições, atores e dinâmicas do ensino e da pesquisa em Relações
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
A memória do futuro:
a Rússia e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva
O objetivo do artigo é
explicar por que a Organização
do Tratado de Segurança
Coletiva (OTSC) não promove
efetivamente
a
segurança
coletiva entre seus membros. O
argumento central aponta que os
obstáculos à promoção de um
sistema efetivo de segurança
coletiva estão relacionados aos
objetivos estratégicos da Rússia
de preservar a sua autonomia e
flexibilidade a fim de garantir
sua predominância políticomilitar em relação a outras
potências. Entretanto, ela ainda
utiliza a OTSC para procurar
tornar tal predominância mais
legítima e menos custosa.
Diego Santos V. de Jesus4
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 12 - 23
Introdução
O vácuo de poder após o fim de Guerra Fria permitiu a ocorrência de um jogo geopolítico
entre Rússia, China, Índia, EUA e União Europeia na Ásia Central, que também funciona como
uma zona que separa Estados nuclearmente armados ou com o potencial para desenvolver armas
nucleares. Além de ser uma área estratégica importante pelos seus recursos energéticos e estar no
meio de grandes rotas comerciais e do trajeto de oleodutos, a Ásia Central é uma parte importante
do mundo islâmico, no qual, por conta das tensões étnicas e da natureza opressora de muitos
regimes políticos, criou-se um campo fértil para o terrorismo, os tráficos de drogas e de armas e o
crime organizado. Ao terem a Rússia como vizinha e não disporem de saídas para o mar, os Estados
centro-asiáticos sempre enfrentaram limitações nas escolhas de seus parceiros. A deterioração da
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Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio e Professor de Relações Internacionais da ESPM-RJ e UNI-IBMR.
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situação de segurança no Afeganistão, a dependência energética da União Europeia em relação à
Rússia e a tensão entre a Rússia e a Geórgia levaram à percepção de que os Estados centro-asiáticos
têm menos margem de manobra que outros membros da Comunidade de Estados Independentes
(CEI), sendo notável a influência russa nos seus assuntos políticos, militares e econômicos. O
fortalecimento da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) – que tem como
membros em 2014 Rússia, Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão – é tanto um
resultado desses processos como um instrumento para fortalecer a predominância russa no seu
entorno (POP, 2009, p.278-279).
Após o fim da URSS, uma série de lideranças russas planejava formar não só um espaço
único de segurança na CEI, mas também uma aliança defensiva. Os objetivos iniciais seriam uma
estrutura única de segurança sob o comando da Rússia, o controle dos bens das Forças Armadas da
extinta URSS, o posicionamento de unidades militares russas no território da CEI e um mecanismo
integrado para solução de conflitos no espaço pós-soviético. A incapacidade de Estados centroasiáticos de preservarem sua segurança levou a diversos acordos relacionados às operações de
manutenção da paz e à resolução de conflitos (POP, 2009, p.281). O Tratado de Segurança Coletiva
foi assinado em 1992 pelos líderes de Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e
Uzbequistão. Posteriormente, Azerbaijão, Geórgia e Belarus aderiram. O tratado entrou em vigor
em 1994, e, em 1999, o protocolo sobre o prolongamento do tratado foi assinado por seis deles,
exceto por Azerbaijão, Geórgia e Uzbequistão. O Azerbaijão e a Geórgia denunciaram o tratado em
1999. O Uzbequistão chegou a deixar a cooperação em 1999, mas aderiu novamente à OTSC em
2006 diante das ameaças das Revoluções Coloridas apoiadas pelos EUA. Porém, ele suspendeu sua
adesão à organização em 2012. Em 2002, a Carta da OTSC e o acordo sobre o status jurídico da
organização foram assinados e, em 2003, entraram em vigor. O objetivo fundamental da
organização é dar continuidade e fortalecer as relações entre os membros nas esferas de política
externa, assuntos militares e técnicos e coordenação de esforços conjuntos no combate ao
terrorismo internacional e outras ameaças à segurança. Tal objetivo está relacionado à provisão de
seguranças nacional e coletiva, cooperação e integração político-militares intensivas, coordenação
em termos de política externa em temas de seguranças regional e internacional, o estabelecimento
de mecanismos de cooperação multilateral e o desenvolvimento de cooperação na resposta a
desafios e ameaças de segurança como o terrorismo internacional, o tráfico de drogas, a migração
ilegal, o crime organizado transnacional, a segurança cibernética e da informação e a cooperação
técnica na área militar. Segundo os próprios Estados membros, a organização se transformou de um
bloco político-militar clássico focado na proteção de aliados em relação à agressão externa para
uma organização multifuncional capaz de oferecer segurança aos membros e reagir rápida e
flexivelmente a um amplo conjunto de desafios e ameaças (MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS
OF THE REPUBLIC OF BELARUS, s.d.). Entretanto, desde sua criação, a organização é criticada
pela sua inabilidade de responder aos principais desafios na área de segurança e de desenvolver
respostas conjuntas a ameaças, uma das bases do princípio de segurança coletiva. A organização
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teve um fraco desenvolvimento de estruturas políticas e não endereçou ou lidou superficialmente
com desafios como a gestão de conflitos nos territórios dos seus membros, a realização de
monitoramento pré-conflito, o desenvolvimento de medidas efetivas de alerta e sanções e a inserção
de novos aspectos da segurança, como a oferta e a gestão de recursos hídricos e energéticos.
O objetivo do artigo é explicar por que a OTSC não promove efetivamente a segurança
coletiva entre seus membros. O argumento central aponta que os obstáculos à promoção de um
sistema efetivo de segurança coletiva estão relacionados aos objetivos estratégicos da Rússia de
preservar a sua autonomia e flexibilidade a fim de garantir sua predominância político-militar em
relação a outras potências. Entretanto, ela ainda utiliza a OTSC para procurar tornar tal
predominância mais legítima e menos custosa. No próximo item, apresentarei o conceito de
segurança coletiva, a forma como ele aparece articulado no Tratado de Segurança Coletiva de 1992
e os principais obstáculos à concretização de um sistema efetivo de segurança coletiva entre seus
membros. A seguir, examinarei a atuação da OTSC na contemporaneidade e explicitarei as formas
como tais obstáculos se manifestam. Antes de tecer as considerações finais, analisarei os interesses
e o papel da Rússia na organização.
O conceito de segurança coletiva e a OTSC
O conceito de segurança coletiva envolve a criação de um sistema em nível internacional no
qual o perigo de agressão por qualquer Estado deve ser enfrentado pela determinação de outros
Estados de exercer pressão moral, diplomática, econômica e militar para frustrar o ataque sobre
qualquer um deles. Segundo os defensores do conceito, a segurança coletiva era um sistema mais
efetivo para o enfrentamento de agressores com a preponderância do poder coletivo, de forma que a
paz não seria mais baseada num equilíbrio instável. Tal preponderância é articulada para propósitos
defensivos a fim de desencorajar os agressores. A segurança coletiva remete a um sistema
organizado que contrasta com um arranjo descentralizado de equilíbrio de poder ao visar à criação
de uma comunidade de Estados organizados pela paz. A aliança dos Estados num sistema de
segurança coletiva remete a uma aliança geral e universal, que é voltada “para dentro” e busca
oferecer segurança a todos os seus membros. Ela pressupõe a exploração do potencial cooperativo
com o desenvolvimento de uma estrutura de cooperação geral para evitar o conflito. Nesse sistema,
os Estados estão prontos para se juntar em uma ação coletiva a fim de dissuadir qualquer ameaça,
de forma que a paz e a segurança são indivisíveis. A iniciação da guerra é vista como um desafio
aos interesses de todos os Estados, e a segurança é concebida de forma cooperativa: prevê-se uma
resposta organizada em apoio a qualquer vítima de agressão. Já um sistema de equilíbrio de poder
opera com base em alianças concebidas como agrupamentos “orientados para fora”, elaborados para
organizar a ação cooperativa entre seus membros a fim de lidar com situações de conflito causadas
por Estados externos. O objetivo de tal sistema é a manipulação da rivalidade por meio de um
arranjo de modelos apropriados de relações conflituosas, e se abre espaço para maior amplitude de
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cálculos ad hoc sobre o que o interesse nacional requer em circunstâncias particulares. Não se
postula num sistema de equilíbrio de poder uma rede única de paz e ordem internacionais, uma vez
que a lógica é baseada na segurança competitiva. Confirma-se a liberdade de manobra do Estado
num sistema de segurança competitiva, no qual ele só deve aderir à resistência a um agressor se a
sua própria segurança for afetada (CLAUDE JR., 1962, p.94-149).
De acordo com o Tratado de Segurança Coletiva de 1992, os Estados signatários mantêm a
sua segurança em base coletiva. Em caso de uma ameaça à segurança, à integridade territorial e à
soberania de um ou mais Estados membros ou uma ameaça à paz e à segurança internacionais, o
tratado prevê que os Estados signatários imediatamente deverão colocar em prática o mecanismo de
consultas conjuntas com o objetivo de coordenar suas posições e tomar medidas para eliminar tal
ameaça. O tratado também estipula que, em caso de um ato de agressão cometido contra quaisquer
signatários, todos os demais oferecerão às partes agredidas a assistência necessária – inclusive a
militar – e apoio com os meios à sua disposição no exercício do direito à defesa coletiva, de acordo
com a Carta da ONU. Caso um sistema de segurança coletiva seja estabelecido na Europa e na Ásia
e tratados de segurança coletiva sejam concluídos para esse fim, os Estados signatários do Tratado
de Segurança Coletiva entrarão em consultas imediatas uns com os outros a fim de fazer emendas
necessárias ao tratado. De acordo com uma declaração de 1995 assinada pelos Estados partes do
tratado, ao combinarem seus esforços na esfera da segurança coletiva, esses Estados consideram o
estabelecimento do sistema de segurança coletiva como uma parte não somente do sistema de
segurança europeu, mas como um bloco construtor de uma estrutura potencial de segurança na Ásia.
Inicialmente, o tratado promovia a criação de Forças Armadas nacionais dos Estados partes,
oferecendo as condições adequadas para seu desenvolvimento independente. No fim da década de
1990, em face do desenvolvimento das situações de risco no Afeganistão próximas à fronteira dos
Estados centro-asiáticos partes do Tratado de Segurança Coletiva, o potencial do tratado foi
aplicado para o combate a ações extremistas voltadas para a desestabilização da situação na região
(CTSO, s.d.).
Após sua criação, a OTSC tornou-se uma organização euro-asiática não somente em termos
geográficos, mas políticos e jurídicos por meio de princípios universais e propósitos práticos, bem
como de participação direta dos Estados membros em estruturas de segurança europeias e asiáticas.
A decisão adotada pelos líderes dos Estados membros de criar uma organização internacional foi
causada pela necessidade de adaptação do Tratado de Segurança Coletiva à dinâmica das
seguranças regional e internacional e de resposta às novas ameaças e desafios. A cooperação no
âmbito da organização mantinha-se baseada nos princípios proclamados no tratado. A OTSC é
concebida como um elemento de dissuasão politico-militar. Seus Estados membros não veem
quaisquer Estados específicos como seus inimigos e buscam uma cooperação mutuamente benéfica
com todos os Estados, de forma a se mostrar aberta à adesão a qualquer Estado que partilhe seus
propósitos, que estariam relacionados ao fortalecimento da paz e das seguranças regional e
internacional e à garantia de proteção coletiva da independência, da integridade territorial e da
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soberania de seus membros. Na busca desses propósitos, os Estados devem dar prioridade aos meios
políticos (CTSO, s.d.).
Após a fase inicial de estabelecimento de vínculos militares em nível estatal e formulação de
uma estrutura básica para a cooperação política, a OTSC consolidou seu papel enquanto
organização e, ao aprovar um plano para a construção de forças de coalizão, entrou numa nova fase
de seu desenvolvimento, em que busca integrar as forças militares dos Estados membros em um
nível maior. Desde a sua criação, a OTSC destacou que sua função primordial era a gestão de novas
ameaças e desafios na esfera da “segurança branda”, como o tráfico de drogas e a migração ilegal.
Contudo, com a transição para uma defesa aérea conjunta, formações integradas de Exércitos,
sistemas militares horizontalmente integrados e forças coletivas de manutenção da paz, a integração
da organização parece apontar, na visão de especialistas, na direção de uma aliança militar mais
tradicional, próxima em diversos aspectos a uma organização de defesa coletiva num contexto de
equilíbrio de poder, não de segurança coletiva. Para exercer um papel efetivo voltado para a
segurança coletiva, a organização deveria enfatizar o desenvolvimento de estruturas políticas,
trabalhar com os conflitos nos territórios dos seus membros, realizar monitoramento pré-conflito,
desenvolver medidas de alerta e sanções, organizar um processo de negociação e garantir acordos
pós-conflito. Ademais, novos aspectos da segurança deveriam ser inclusos, como a oferta e a gestão
de recursos hídricos, a redistribuição de eletricidade e a limitação de apagões, que podem ser
consideradas questões de segurança nacional na Ásia Central (NIKITIN, 2007, p.35-37).
A OTSC na contemporaneidade
No fim da década de 2000, os líderes dos Estados membros da OTSC adotaram a decisão de
formar forças coletivas de reação rápida, mas Belarus – por conta de disputas comerciais com a
Rússia – e Uzbequistão decidiram não participar. Tais eventos são sintomáticos dos obstáculos que
os Estados pós-soviéticos da organização estão encontrando em concretizar o sistema de segurança
coletiva, obstáculos que emanam das diferenças significativas nos interesses e nas capacidades
estratégicas dos membros. A ideia de criação de forças de reação rápida, que agiriam sob a
responsabilidade da OTSC, é discutida desde o início da década de 2000, quando os membros do
Tratado de Segurança Coletiva decidiram criar forças de segurança coletiva. Em 2001, eles
decidiram desenvolver forças coletivas de desdobramento rápido para a Ásia Central, cujos
principais propósitos seriam a realização de atividades de contraterrorismo e a prevenção de
agressões externas. A organização conduziu diversas operações militares conjuntas. As ideias de
forças coletivas de desdobramento rápido ou de forças coletivas de reação rápida estiveram sempre
na agenda dos Estados partes do Tratado de Segurança Coletiva, mas novos esforços nessa direção
foram feitos no fim da década passada, quando os membros preocuparam-se com instalações
militares de Estados estrangeiros e apontavam a necessidade de se estabelecer uma nova
infraestrutura militar e restabelecer alguns elementos da infraestrutura soviética nas fronteiras da
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organização. Para Estados como o Uzbequistão, a última proposição era inaceitável; assim, a
decisão de se criarem as forças coletivas de reação rápida refletiu a fraca coletividade em uma
questão sensível, a aplicação do poder militar para defender as seguranças nacional e coletiva dos
membros. O Uzbequistão demonstrou sua relutância em fazer parte das forças, sinalizando que elas
deveriam ser usadas somente para enfrentar a agressão externa e não servir como instrumento para
solucionar disputas dentro da organização ou no espaço da CEI; a decisão de seu desdobramento
deveria ser estritamente baseada no consenso; o envio de contingentes ao território de um Estado
membro deveria ser permitido somente se isso não contradissesse a legislação nacional do Estado
em questão; e o acordo não deveria entrar em vigor se não fosse ratificado pelos parlamentos dos
Estados membros (TOLIPOV, 2009).
Os Estados da extinta URSS que são membros da OTSC deparam-se com grandes obstáculos
ao tentarem colocar em prática o sistema de segurança coletiva inicialmente imaginado. Tais
obstáculos estão relacionados a diferenças significativas nas percepções de ameaça entre os Estados
membros, às atitudes de uns em relação aos outros e às suas posturas geopolíticas. As forças de
reação rápida são compostas predominantemente de contingentes russos, além de que os poderes
político e militar russos oferecem as bases para o sistema da OTSC. A Rússia inicia qualquer
decisão estrategicamente importante da organização, vende equipamentos aos parceiros a preços
domésticos e oferece um guarda-chuva de segurança para todos os Estados membros, tornando a
OTSC uma organização altamente assimétrica que constrange a liberdade de manobra dos membros
mais fracos. A assistência russa na área de segurança vem geralmente acompanhada de obrigações
que os demais membros devem assumir. Por conta disso, Estados como o Uzbequistão viram a
criação de forças coletivas de reação rápida como prematura, uma vez que a OTSC não se
desenvolveu como um bloco político-militar completo. Ademais, não há clareza sobre as formas
como os membros reagirão a ameaças potenciais. A situação de conflito entre o Azerbaijão e a
Armênia em torno de Nagorno-Karabakh é emblemática, uma vez que a Armênia hoje é membro da
OTSC e o Azerbaijão não, mas ambos são membros da CEI. Desde a independência, os Estados
pós-soviéticos buscaram predominantemente lidar com as ameaças de segurança sozinhos, usando
suas próprias forças nacionais de segurança. Nenhum deles respondeu a ameaças terroristas usando
a OTSC ou outras organizações regionais. Ironicamente, as forças coletivas de reação rápida podem
apenas reagir lentamente, uma vez que não são coletivas de fato (TOLIPOV, 2009).
Questionamentos à atuação da OTSC ficaram claros no contexto do golpe que retirou
Kurmanbek Bakiyev da presidência do Quirguistão em 2010. Na ocasião, o presidente de Belarus
Alexander Lukashenko expressou dúvidas sobre o futuro da OTSC pelo fato de a organização não
ter impedido a derrubada de Bakiyev. Lukashenko anteriormente havia acusado a Rússia de punir
Belarus com sanções econômicas depois da recusa de Lukashenko de reconhecer a independência
da Abkhazia e da Ossétia do Sul. Uma vez que a economia servia de base para a segurança comum,
Lukashenko apontava que as ações da Rússia dificultavam a consolidação da cooperação no âmbito
da OTSC. Com os conflitos étnicos entre quirguizes e minorias uzbeques no sul do Quirguistão em
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2010, líderes pediram que a OTSC enviasse tropas, mas a Rússia alegou que, somente em caso de
invasão estrangeira ou de uma tentativa externa de se tomar o poder, seria possível considerar
aquele um ataque à OTSC. Ela também argumentou que os problemas no Quirguistão tinham raízes
internas. Entretanto, posteriormente, o secretário-geral da organização Nikolai Bordyuzha admitiu
que a resposta da OTSC pode ter sido inadequada e alegou que “mercenários estrangeiros”
provocaram a violência quirguiz contra as minorias étnicas uzbeques (FOLHA, 2010).
Os interesses e o papel da Rússia na OTSC
Após a dissolução da URSS, a política externa da Rússia parecia assumir uma orientação mais
pró-ocidental, e a Ásia Central ocupava uma posição relativamente marginal nos interesses russos.
Entretanto, a Rússia tornou-se mais ativamente envolvida na Ásia Central como resultado da guerra
civil no Tadjiquistão, especialmente por causa das minorias russas na região. Em 1993, a proposta
russa era promover relações especiais renovadas com os Estados centro-asiáticos, de forma que a
Rússia não poderia deixar a Ásia Central sem prejudicar suas fronteiras meridionais. Por conta
disso, o controle russo sobre as fronteiras da CEI na Ásia Central era um objetivo desejável. Dentre
as prioridades da Rússia, cabe citar o desdobramento de tropas e a instalação de bases militares; o
desenvolvimento de relações econômicas; a contribuição russa para a prevenção e a resolução de
conflitos por meio de mecanismos eficientes de manutenção da paz; e a não intervenção de partes
terceiras nos assuntos centro-asiáticos. Em meados da década de 1990, a Rússia insistia em políticas
pragmáticas na Ásia Central, levando em consideração os contratos dos consórcios energéticos
ocidentais na CEI, bem como o programa Parceria para a Paz com a OTAN. O fortalecimento das
posições russas na Ásia Central deu-se com a promoção de relações mais fortes com Estados como
o Irã, a China e a Índia a fim de enfraquecer as relações entre os Estados centro-asiáticos e o
Ocidente; um processo de aproximação entre os membros da CEI pelo Grupo dos Quatro – Rússia,
Belarus, Cazaquistão e Quirguistão – e o término da guerra civil no Tadjiquistão (POP, 2009,
p.279-280).
A presidência de Vladimir Putin marca o desenvolvimento de uma política externa ainda mais
pragmática, em especial aquela orientada para o entorno da Rússia. O papel geopolítico da Rússia
como uma das potências euro-asiáticas veio acompanhado da responsabilidade de manter a
segurança em níveis global e regional. Na Ásia Central, a estratégia de Putin seguiu em duas
grandes direções. Em uma delas, a administração Putin buscou construir uma estratégia mais
consistente em relação ao desenvolvimento de relações políticas e econômicas com a Ásia Central.
A introdução de uma união aduaneira em meados da década de 1990 e a decisão de permitir a livre
movimentação de cidadãos entre muitas das antigas repúblicas soviéticas – o que resultou na
criação da Comunidade Econômica da Eurásia em 2000 – fortaleceram a cooperação. Na outra, a
Rússia enfatizou os perigos relacionados ao fundamentalismo islâmico e ao terrorismo
internacional, o que passou a ter urgência maior após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos
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EUA. A Rússia conseguiu assim receber apoio dos Estados centro-asiáticos para suas ações
militares na Chechênia. Em 2003, o novo conceito de política externa desenvolvido pela
administração Putin procurou diversificar instrumentos de ação na Ásia Central, como se vê no
apoio aos líderes locais, na cooperação militar e nos investimentos em infraestrutura e energia. Tal
administração apoiou uma ordem mundial multipolar e rejeitou a exportação da democracia por
Estados ocidentais. Isso veio acompanhado do desenvolvimento da OTSC e do direito da Rússia de
manter “interesses especiais” na CEI. No fim da década passada, lideranças russas apontaram como
pontos centrais da política externa do Estado a importância das exportações no setor de energia, a
recuperação econômica e o desenvolvimento do poder militar. Sinalizavam também a importância
da OTSC, da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e da Comunidade Econômica da
Eurásia. No âmbito das relações bilaterais com os Estados da Ásia Central, o Cazaquistão era
colocado como o parceiro mais importante da Rússia. As críticas aos EUA aumentaram – ainda que
houvesse o interesse no desenvolvimento de relações amigáveis com Estados ocidentais –, e os
interesses privilegiados da Rússia no espaço pós-soviético foram ressaltados posteriormente pelo
presidente Dmitri Medvedev (POP, 2009, p.279-281) e, mais recentemente, mais uma vez por Putin
em seu terceiro mandato.
Na garantia dos interesses russos no espaço pós-soviético, a OTSC veio tomando um papel
cada vez mais central. Em meados da década de 2000, a organização conduziu exercícios militares
antiterrorismo e testou a sua força de desdobramento rápido pela primeira vez no Cazaquistão e no
Quirguistão. Isso se deu em um contexto em que a União Europeia e a OTAN manifestaram
preocupações com relação a ameaças que viriam da Ásia Central. A Estratégia Europeia de
Segurança de 2003 identificou como principais ameaças à União Europeia o terrorismo, a
proliferação de armas de destruição em massa, conflitos regionais, Estados falidos e crime
organizado, além de reconhecer a dependência energética como uma fonte de preocupação. Os
interesses da União Europeia na Ásia Central eram a ampliação da estabilidade e da capacidade dos
Estados da região de gerir as ameaças; o apoio às operações militares no Afeganistão; o
enfrentamento do tráfico de drogas e do crime organizado; a ampliação da capacidade de gestão de
crises; a não proliferação de armas de destruição em massa e a segurança energética, além da
questão migratória. Já a OTAN estabeleceu relações formais com os Estados centro-asiáticos, que
entraram no Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (1992) e no Conselho de Parceria
Euroatlântica (1997), além do programa Parceria para a Paz (1994). Em 2003, os ministros de
Relações Exteriores da OTAN confirmaram seu compromisso com os Estados da Ásia Central, que
tiveram um papel crucial na Força Internacional de Assistência para Segurança (ISAF na sigla em
inglês), liderada pela OTAN para atuação no Afeganistão, num momento em que esses Estados
apoiaram as operações no Afeganistão com bases militares para forças ocidentais. Em 2004, a
OTAN criou a posição de um representante especial para o Sul do Cáucaso e a Ásia Central.
Entretanto, os Estados dessas regiões preferem relações bilaterais com os EUA e outros membros
da OTAN na área de segurança. A Rússia manteve sua atitude negativa em relação ao alargamento
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da OTAN, especialmente aos planos de admissão da Ucrânia e da Geórgia à aliança e à
aproximação da infraestrutura militar da OTAN em relação às suas fronteiras. Autoridades russas
chegaram a apoiar um diálogo direto entre a OTAN e a OTSC, incluindo as atividades conjuntas
para a estabilização do Afeganistão. Porém, a cooperação é difícil em face do desenvolvimento das
forças conjuntas de manutenção da paz pela OTSC e os esforços dessa organização de desenvolver
sua própria relação na área de segurança com o Afeganistão. A guerra entre a Rússia e a Geórgia
em 2008 acelerou a militarização da OTSC. A declaração de Moscou do Conselho de Segurança
Coletiva da organização em 2008 foi considerada a primeira posição realmente consolidada da
aliança e mencionou as preocupações com a tentativa da Geórgia de resolver o conflito na Ossétia
do Sul pela força e o escalonamento das tensões no Cáucaso (POP, 2009, p.283-287).
Em 2009, o secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, estava preparando uma
proposta para um engajamento formal da OTAN com a OTSC, mas membros do governo dos EUA
conseguiram impedir que tal engajamento ocorresse. Eles argumentavam que fazer isso legitimaria
uma organização em declínio, que, na sua visão, não se mostrou efetiva na maior parte de suas
atividades. Em 2010, o secretário-geral da OTSC, Nikolai Bordyuzha, foi descrito por membros da
embaixada dos EUA em Moscou como condescendente e ainda muito ligado ao seu passado como
um oficial de carreira da KGB e da FSB. Tais membros viam que, se o governo russo estivesse
realmente disposto a promover as possibilidades de cooperação da OTSC com a OTAN, eles
precisariam de um melhor interlocutor que Bordyuzha. Em abril de 2014, a organização anunciou
que interromperia seus contatos com a OTAN num contexto de críticas de Estados da aliança norteatlântica à intervenção russa nos assuntos domésticos da Ucrânia e à anexação da Crimeia e de
chantagem da OTAN a todos os Estados membros da OTSC. A decisão não encontrou tanta
repercussão na OTAN, uma vez que ela raramente demonstrou interesse em cooperar com a OTSC.
Na falta de contatos com a OTAN, a OTSC passou a buscar mais a cooperação com a OCX contra
ameaças (KUCERA, 2014).
Representantes da OTSC e da OCX já tinham assinado em 2007 um memorando de
entendimento que oferecia as fundações para a cooperação entre as duas organizações. O acordo –
pelo qual a Rússia pressionou a China por tanto tempo – pode ser interpretado como uma tentativa
de engajar a China numa aliança militar plenamente desenvolvida. A Rússia procurou limitar a
liberdade de ação chinesa na Ásia Central e demonstrar a predominância russa, em especial no
campo da segurança. Entretanto, o documento assinado por ambas as organizações é muito lacônico
e consiste de quatro pequenos artigos, em que ambas as organizações concordam em cooperar nos
campos das seguranças regional e internacional, bem como na luta contra o terrorismo e os tráficos
de drogas e armas e em outras áreas. Ambas concordam em conduzir consultas e compartilhar
informação, além de encorajarem a cooperação em programas e atividades conjuntos. A linguagem
do acordo foi precavida e geral, o que indicava a falta de vontade chinesa de se comprometer com o
que poderia ser percebido como uma aliança militar ou que poderia envolver a China em
compromissos militares. A China não desejava estar numa frente contrária aos EUA liderada pela
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Rússia, além de se mostrar preocupada com a própria posição russa. Entretanto, não se pode
assumir que a China esteja interessada somente nas questões econômicas ou energéticas dentro da
OCX, uma vez que quer manter a possibilidade de estabelecer contatos militares com outros
Estados centro-asiáticos. Todavia, ao tentar construir a cooperação da OCX – na qual a influência
russa é limitada pela chinesa – com a OTSC, a Rússia busca definir-se como a principal
coordenadora de atividades multilaterais na Ásia Central e também monitorar os contatos da China
com os Estados centro-asiáticos na dimensão da segurança. A cautela chinesa limita as
possibilidades de que sejam conduzidas operações comuns por ambas as organizações, mas a Rússia
procurou fortalecer a OTSC ao criar forças conjuntas de manutenção da paz e, ao mesmo tempo,
pressionar a China por um acordo formal entre a OTSC e a OCX (KACZMARSKI, 2007). Segundo
Kucera (2014), a Rússia, a China e os Estados centro-asiáticos planejam a criação, após a retirada
das tropas ocidentais do território afegão em 2014, de pequenos estados tampão no Afeganistão a
fim de impedir o avanço do radicalismo islâmico e da violência para o espaço pós-soviético.
A OTSC – enquanto uma instituição político-militar liderada pela Rússia – buscou também
enfrentar os problemas relacionados às “Revoluções Coloridas”, que, na perspectiva da Rússia, são
orquestradas pelos EUA e Estados ocidentais. Segundo Bordyuzha, tais revoluções são
cuidadosamente preparadas com o treinamento de líderes e grupos especiais capazes de organizar
protestos populares a fim de se criar pressão informacional e psicológica sobre os governos. Por
isso, elas se configuram como fontes de desafios, riscos e ameaças de caráter não militar à Rússia e
seus aliados na OTSC. Por conta disso, seria necessária uma resposta coletiva usando a OTSC para
combater tais ameaças nos Estados membros. Entretanto, diante da crise ucraniana em 2014, o
secretário-geral da OTSC foi vago acerca da forma exata como a organização poderia agir. A
Ucrânia não é membro da OTSC, e o uso das forças de reação rápida em seu território não seria
autorizado. Entretanto, caso a Ucrânia tentasse recuperar o território da Crimeia, é possível
argumentar que os membros da OTSC seriam obrigados a auxiliar a Rússia a defender o que ela
considera parte de seu território (KUCERA, 2014).
Considerações finais
A OTSC vem sendo amplamente criticada por sua inação em face das ameaças reais à
segurança. Recentemente, tais críticas foram feitas mais uma vez diante da crise entre o
Tadjiquistão e o Quirguistão por uma disputa de fronteiras em 2014. Nessa crise, Bordyuzha disse
que estava em constante contato com as lideranças dos dois Estados e que buscou discutir medidas
para a contenção do conflito, mas que caberia a ambos os lados resolverem o conflito. Ao ser
indagado sobre as ações da organização, Bordyuzha mostrou-se surpreso de que se espera que a
OTSC lide com inúmeros desenvolvimentos distintos. Em sua resposta, ele disse que se perguntava
por que a OTAN não era acusada de não trabalhar com a Turquia acerca da questão dos curdos ou
com Estados dessa organização que tinham problemas de fronteira. Ele também argumentava que,
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
se a OTSC começasse a intervir nos assuntos domésticos dos Estados membros, ela agiria como
polícia e que a função da organização era garantir a segurança dos membros. Ademais, os chefes de
Estado da organização não tinham oferecido a ela o mandato para esse tipo de intervenção. É no
mínimo curioso que ele fizesse uma comparação com a OTAN, uma vez que membros do governo
russo frequentemente questionam a existência dessa organização – que é de defesa coletiva, não de
segurança coletiva – e a criticam como uma instituição ainda baseada na geopolítica da Guerra Fria.
Ainda assim, parecia que a OTAN era o padrão a partir do qual a OTSC deveria ser julgada.
Membros do governo russo evitam as comparações com a OTAN e refutam a visão de que a OTSC
seria uma “OTAN do Leste” ou uma “OTAN de Putin” (KUCERA, 2014).
Nenhuma das prioridades da OTSC para 2014 listadas por Bordyuzha não tinha sido discutida
antes: ajuda ao Tadjiquistão para auxiliar a proteger a fronteira com o Afeganistão e o
estabelecimento de forças militares conjuntas, inclusive Forças Aéreas. Uma das realizações
concretas da organização em 2013 tinha sido o fechamento de fontes de informação – supostamente
websites – que apoiavam o terrorismo e o extremismo. É verdade que, quando um confronto
armado interestatal ou intraestatal ocorre na Ásia Central, muitos especialistas culpam a OTSC por
não intervir; porém, a organização geralmente não tem mesmo que intervir, porque juridicamente
ela deveria ter um pedido oficial dos membros. Mesmo se ela tivesse, a OTSC não era destinada a
lidar com questões de segurança interna ou conflitos entre Estados membros. A OTSC é uma
organização orientada para lidar com ameaças e agressões externas, como ameaças que viessem do
território afegão – como o extremismo e o tráfico de drogas – ou a migração ilegal de Estados
terceiros. Entretanto, crises como a do Tadjiquistão e do Quirguistão poderiam ser uma
oportunidade para que a OTSC testasse suas capacidades de manutenção da paz ao enviar, por
exemplo, um pequeno contingente para separar as partes do conflito. Uma operação jurídica e
politicamente segura demonstraria que a organização é um ator viável na gestão de conflitos e
posteriormente se poderia desenvolver a cooperação da OTSC com a ONU nos temas relacionados
à manutenção da paz. Entretanto, a própria ONU não mostrou muito interesse no engajamento da
OTSC, e não há uma estrutura jurídica para que a OTSC seja engajada. Em face de sua
flexibilidade, a OTSC continua sendo interessante para a Rússia para que ela legitime sua
predominância e simultaneamente mantenha a autonomia para decisões mais assertivas em seu
entorno. Enquanto isso, a segurança coletiva – presente no próprio nome da organização liderada
pela Rússia – continua sendo a lembrança de um futuro de indivisibilidade de paz e segurança que
jamais se concretizou efetivamente.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Conceitos em Relações Internacionais:
atores e perspectivas históricas nas teorias das relações internacionais
Este ensaio investiga
alguns conceitos fundamentais
das relações internacionais,
nomeadamente, os atores que
compõem estas relações e a
durabilidade destes conceitos na
história. Buscando similaridades
do espaço internacional no
tempo, é aqui demonstrada a
constância das comunidades
políticas
independentes
na
história como peças-chave para
o entendimento das relações
internacionais.
Leonardo Dutra5
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 24 - 32
Introdução
As relações internacionais produzem tanto resultados distintos na interação entre os diversos
atores internacionais quanto diferentes análises e explicações teóricas sobre tais interações. Neste
contexto, existe determinado consenso sobre o objeto de estudo das Relações Internacionais 6 estar
concentrado em uma sociedade internacional, caracterizada como um espaço composto por diversas
redes de interligações existentes entre vários atores em um cenário internacional. Assim, a
exposição conceitual de uma sociedade internacional demanda uma delimitação dos atores que
compõe tais interconexões, bem como, uma definição da abrangência temporal de tais ligações
diante da disparidade dos atores no mundo.
5
Doutor em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais pela Universidade de Évora, Portugal, e Professor da
Universidade de Vila Velha.
6
Neste trabalho, Relações Internacionais em maiúsculo faz referência à área de conhecimento científica, enquanto
relações internacionais, em minúsculo, à relação entre os atores internacionais.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Na tentativa de resolver o problema, este ensaio irá discorrer sobre a existência de um espaço
internacional7, trabalhando a hipótese de que um tipo de ator internacional predominante é a
condição necessária para a existência deste ambiente além do círculo doméstico, supondo, então,
que as relações internacionais são as relações entre os atores internacionais neste espaço.
Consequentemente, encontrar uma argumentação sólida capaz de definir as condições de existência
de um ambiente internacional será a condição para o entendimento dos atores fundamentais que
compõem as conexões neste espaço, primeiramente, explicando o conceito de sociedade
internacional e, em segundo lugar, apontando a permanência deste espaço internacional em uma
perspectiva histórica.
Atores e espaços internacionais
A investigação sobre a definição dos atores internacionais pode encontrar alguns fatos
relevantes para a construção de um conceito sobre esses atores na descrição de muitos Estados do
mundo contemporâneo, a exemplo da atual realidade do Estado brasileiro. O Brasil é um país de
proporções continentais, composto por vinte e sete unidades federativas e com uma extensão
territorial maior do que a da União Europeia, o que aponta para a possibilidade de existência de
grupos sociais bastante heterogêneos dentro do próprio país, como acontece em outros Estados de
grande extensão territorial no mundo, como os Estados Unidos e o Canadá. Assim, a distância que
separa a capital de um dos Estados federados do Brasil, o Rio Grande do Sul, da capital de outro
Estado federado brasileiro, o Amazonas, é de aproximadamente 4.500 quilômetros. Para efeitos de
comparação, esta é a distância aproximada entre Lisboa, em Portugal, e Moscou, na Rússia.
De tal modo, em que pese as severas diferenças dos Estados federados citados e as
disparidades entre seus habitantes, como ambientes geográficos com grandes diferenças entre si,
bem como, hábitos, normas sociais, entre outras características distintas dos moradores de cada
região, nunca a relação de indivíduos, organizações ou outros atores dos Estados federados citados
seriam caracterizadas como relações internacionais. Logo, se assumirmos que as Relações
Internacionais possuem como foco o estudo da sociedade internacional, e se esta sociedade é
composta pela formação de redes entre atores em um cenário internacional, a interação de
indivíduos ou organizações culturalmente distintas e geograficamente distantes dentro de uma
mesma comunidade política independente não configura nenhum tipo de relação internacional.
Neste contexto, uma ilustração concorrente ajuda na caracterização de um espaço
internacional: a relação entre povos semelhantes culturalmente e geograficamente próximos que,
contudo, pertencem a Estados distintos8. A fronteira sul do Brasil com a República Oriental do
7
“Espaço internacional”, “cenário internacional” e “ambiente internacional”, são nomenclaturas com o mesmo
significado conceitual para este artigo.
8
Além da homogeneidade entre populações apresentada pelo povo gaúcho que ocupa o pampa sul-americano, pode-se
citar exemplos mais acentuados da separação de semelhantes em distintas comunidades políticas, a exemplo de vários
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Uruguai ilustra a perspectiva sobre um ator predominante para a concepção de um espaço capaz de
definir as relações internacionais. Em regiões de fronteira como a do Estado federado brasileiro do
Rio Grande do Sul com o Uruguai, as populações de ambos os países vivem em condições bastante
semelhantes. Além disso, em algumas regiões de limite pertencentes à área rural dos países, inexiste
qualquer tipo de barreira física entre os Estados do Brasil e do Uruguai, tornando difícil a
delimitação dos espaços pertencentes a cada comunidade política. Contudo, qualquer relação entre
indivíduos ou organizações culturalmente semelhantes e geograficamente próximas neste espaço
será tratada como uma relação entre atores em um cenário internacional, simplificadamente,
ratificando que as relações internacionais dependem da existência de comunidades políticas
independentes para existirem, estas que dão origem ao chamado ambiente internacional, e
consequentemente, constroem as Relações Internacionais.
Assim sendo, são relações internacionais as interações entre atores pertencentes a distintas
comunidades políticas em um cenário internacional, independente da similaridade cultural destes
atores, formação étnica, proximidade geográfica, ideologia econômica, religiosa ou política, entre
outros pontos que poderiam distinguir comunidades de indivíduos no mundo. De tal modo, o
ambiente internacional formado pela interação de atores internacionais pode ser então caracterizado
como um espaço virtual, onde agentes pertencentes a distintas comunidades políticas
independentes, ou seja, comunidades que não reconhecem outras comunidades independentes como
hierarquicamente superiores a si mesmas, interagem mutuamente. Conclui-se que a configuração de
comunidades políticas independentes é a condição necessária para a existência de um espaço além
destas comunidades, caracterizado como espaço internacional.
Segue que hoje estas comunidades políticas independentes são individualizadas como
Estados, portanto, as relações internacionais que derivam da interconexão entre atores em um
cenário internacional, conceitualmente, são a análise das interações entre atores em um cenário
composto por diferentes Estados no mundo 9. Assim, a existência do Estado como condição
necessária para a configuração de um espaço internacional contemporâneo confere importância a
este ator como protagonista destas relações; contudo, estas ainda são compostas por diversos outros
participantes, que atuam neste cenário, e desta forma, merecem nossa atenção no estudo das
relações internacionais.
Entre outros10, poderíamos citar uma série de instituições formadas por Estados ou pelos
nacionais destes, como a Organização das Nações Unidas, a Organização Internacional de Aviação
Estados africanos, separados por linhas quadrangulares de fronteira traçadas por governantes que possivelmente não
representavam as vontades de seus governados.
9
Martin Wight (1960, p. 36) igualmente apresenta uma perspectiva semelhante a abordada neste artigo em uma das
obras basilares para as Teorias das Relações Internacionais.
10
Lista de atores internacionais proposta por Ricardo Seitenfus (2007, p. 69-74): organizações de caráter internacional e
objetivos gerais, organismos globais de propósitos delimitados, organizações de alcance não global mas regional,
organizações regionais com objetivo de integração econômica entre seus membros, corporações transnacionais,
organizações não governamentais de atuação internacional, instituições religiosas tradicionais e organizações
fundamentalistas, e, ainda, o indivíduo.
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Civil, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, o MERCOSUL, a companhia brasileira
Petrobrás, o Greenpeace, a Igreja Católica, a Al Qaeda, além dos indivíduos, como atores que
oriundos de determinada comunidade política independente, igualmente como os Estados,
efetivamente constroem e participam das relações internacionais. Assim, é possível inferir que
quando indivíduos são responsáveis pela crescente interdependência e cooperação no cenário
internacional, estes são atores do cenário internacional, da mesma forma que quando outra
instituição igualmente importa ou interfere neste cenário, ela igualmente é um ator internacional.
Neste contexto, são muitos os exemplos de Estados que oficialmente não cooperam, contudo,
possuem forte interação entre seus nacionais, demonstrando a complexidade da caracterização dos
atores internacionais. Estas interações podem acontecer desde o moderno relacionamento dos
homens em redes sociais digitais até a clássica interação entre organizações como as igrejas,
universidades e associações civis, entre outros agrupamentos, que historicamente constroem (ou
construíram) a malha cooperativa de indivíduos e instituições entre Estados não cooperativos.
Apesar disso, embora uma definição sobre sociedade internacional 11 e relações internacionais
tenha sido construída, o questionamento sobre a homogeneidade da configuração destas relações no
tempo se impõe como importante fator para o estudo do cenário internacional. Neste cenário, erguese a pergunta ao analista das relações internacionais sobre até que ponto um cenário internacional
como definimos existiu como caracterização internacional na história, ou ainda, em que medida as
relações internacionais são um fenômeno moderno, para tanto, exigindo uma melhor
conceitualização da existência dos atores internacionais no tempo e no espaço.
A abordagem histórica
A análise da extensão da existência dos atores internacionais no tempo pode ajudar a delimitar
o método a ser utilizado na análise das relações internacionais como um todo. Porque, se a história
não demonstra similaridades estruturais com outros períodos desta mesma existência, o estudo das
relações internacionais desta linha temporal possivelmente não apontaria nada mais do que fatos,
simplificadamente, negando a construção de linhas de pensamento duradouras sobre a composição
das relações internacionais 12.
Enquanto a análise da história pode estar focada no apontamento fidedigno dos fatos, a busca
por modelos de comportamento na política internacional está mais preocupada com os padrões de
conduta ou regras duradouras da ação política que vários acontecimentos históricos em conjunto
11
Entre outros conceitos, a proposta conceitual de uma Sociedade Internacional de Hedley Bull é pertinente a este
ensaio. Para Bull (2002, p.19), “existe uma sociedade de estados (ou sociedade internacional) quando um grupo de
Estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem
ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituições comuns.”
12
Hedley Bull (1966, p. 361) corrobora uma abordagem semelhante em um clássico artigo sobre o tema.
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podem demonstrar, “tendo mais liberdade para apontar o fato de que se as políticas fossem
diferentes, as consequências também poderiam ter sido” (WIGHT, 2002, p. 306).
Desta forma, constrói-se aqui a hipótese de que a análise da história poderia assinalar grande
similaridade na caracterização do cenário internacional. Este pressuposto parte do conceito de que,
independentemente do tipo de formação doméstica que as diversas comunidades políticas
independentes tiveram na história, em suas relações externas, estas comunidades formaram um
cenário internacional explicado por um grupo semelhante de variáveis no tempo 13.
O argumento recebe força se elaborarmos modelos mentais sobre a caracterização da
existência humana em uma situação diferente do arranjo entre comunidades políticas que existiram
na história. Assim sendo, em que pese a não existência de uma para-existência, as sucessivas
caracterizações políticas na nossa história majoritariamente apresentaram formações culturais,
lideranças, adaptações geográficas, entre outros fatores, que resultaram da existência de distintas
comunidades independentes no planeta.
Segundo Nye (2009, p. 3), entre uma série de outras descrições da justaposição ou aglutinação
entre comunidades políticas na história que poderiam ser citadas como bases para este argumento, a
existência de um Sistema Mundial Imperial, situação onde um tipo de governo controlou grande
parte dos territórios que tinha contato, como o Império Romano, figura como das diferenciações das
comunidades políticas no tempo.Da mesma forma, existiu um Sistema Feudal, como outra
configuração de comunidades políticas no mundo, caracterizada pela lealdade dos homens
circundada por limites terrestres comandados por senhores locais, donos desta fidelidade.
Igualmente, segundo o mesmo autor, o sistema anárquico de Estados, marcado pelo não
reconhecimento de comunidades com algum poder superior às outras no cenário internacional,
figura como um ordenamento similar da nossa existência, entre tantos que existiram e que,
igualmente, ilustram a heterogeneidade de formações políticas e sociais no espaço e no tempo.
O ponto específico defendido aqui é que a heterogeneidade das formações humanas em
comunidades no mundo, ao contrario da existência de uma comunidade política homogênea em toda
a história, alimenta a hipótese de que distintos agrupamentos políticos independentes sempre
reclamaram igualdade de status nesta mesma linha temporal, desta forma, figurando como atores
internacionais. Assim, mesmo diante das diferenças de complexidade no tempo, estes atores podem
ser caracterizados como agentes que concretizaram relações internacionais nos mais variados
períodos da história.
Em suma, a partir da análise das diversas formações que caracterizaram o mundo como
conhecemos efetuadas por expressivos estudos sobre o assunto14, sustenta-se aqui a hipótese da
13
A hipótese aqui inicialmente apresentada para o estudo das relações internacionais parte do chamado método
dedutivo da prova. Neste, segundo Popper (2002, p. 30), uma determinada hipótese só admite prova empírica tão
somente após a sua formulação como hipótese. Assim, o trabalho do cientista consiste, inicialmente, na elaboração de
teorias, para, posteriormente, estas serem colocadas à prova dos fatos.
14
Entre as investigações que poderíamos citar, Martin Wight principia o trabalho de questionamento e comparação
entre diversas comunidades políticas da história com o objetivo de construir um entendimento histórico sobre as
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existência de similaridades nas relações externas das comunidades independentes na história, dentro
do ambiente que aqui definimos como um cenário internacional. Desta forma, se existe algum
significado na diferenciação das caracterizações de ordem no tempo, esta pode ser relativa somente
à durabilidade desta simbolização de ordem diante de outras existências.
De tal modo, extrai-se desta experiência apenas algum entendimento de hierarquia temporal
que define a existência do indivíduo como inferior a da sociedade a que ele está inserido, esta que,
por sua vez, ainda perecerá diante da existência do mundo, que permanecerá hierarquicamente
superior às demais existências. Assim sendo, se partirmos da hipótese que aceita as similaridades de
comportamento entre as diversas comunidades políticas na história, a construção de uma linha
teórica nesta perspectiva poderia estar baseada no pressuposto de que a caracterização do cenário
internacional está ligada à experiência das comunidades independentes no tempo. Segundo Watson
(2004, p. 14), estas comunidades hoje exemplificadas pelos atuais Estados reconhecem a mesma
reivindicação de independência de outras comunidades do sistema que fazem parte, independente
da forma, caracterização ou do exercício do poder doméstico destas comunidades.
Assim, refutando definições que acentuem a análise do efetivo exercício do poder doméstico
das comunidades políticas na história e focando a atenção nas relações que estas comunidades
possuíam com outras comunidades que reivindicavam independência em um mesmo sistema, a
história pode apontar severas similaridades de comportamento entre os atores em um cenário
internacional. Neste contexto, desde que algumas comunidades estejam suficientemente envolvidas
umas com as outras, elas tendem a demarcar seus próprios limites em um ambiente internacional,
independente das particularidades de sua formação política interna.
Ou seja, pelo fato de reclamarem independência em relação a outras comunidades igualmente
independentes em seu entorno, estas praticaram relações internacionais, e assim construíram a
diferenciação entre distintos povos na história humana, resultando na heterogeneidade de
comunidades no mundo durante toda a existência conhecida15, bem como, na preponderância das
comunidades políticas independentes hoje denominadas Estados como atores principais para
existência das relações internacionais.
Portanto, segundo Watson (2004, p. 28), é possível conjecturar que a composição deste
cenário internacional composto por comunidades política independentes esteve sempre em algum
similaridades e diferenças entre tais agrupamentos; contudo, a morte relativamente prematura de tal pensador deixa para
Adam Watson a tarefa de conclusão deste trabalho. Entre outros estudos, ver WIGHT, Martin. Systems of States.
Bristol: Leicester University Press, 1977; WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional: Uma análise
histórica comparada. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004; e, ainda, WATSON, Adam. Systems of States.
Review of International Studies. n. 16, p. 99-109, 1990.
15
Entre outras definições, as teorizações de Spengler-Toynbee citadas por Voegelin (2010, p. 175-177) auxiliam o
entendimento dos diversos ordenamentos na história. A teoria é fundamental para Spengler pela caracterização da
história desde diferentes civilizações, entendidas como o florescimento de uma alma coletiva, cultural, dentro de um
cenário histórico. Nesta perspectiva, estas almas civilizacionais floresceriam apenas uma vez, e as civilizações
produzidas repetiriam suas histórias como analogias orgânicas à juventude e à maturidade, e, assim, uma civilização
tem fim quando sua vitalidade se esgota. Toynbee calculou um futuro de 1743 milhões de civilizações para existência
terrestre, todas cheias de vida e significado como a história da sociedade helênica ou o Império Romano.
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ponto de um espectro que varia entre dois extremos: a completa independência entre as
comunidades ou um império absoluto. Assim, as comunidades existem em algum lugar entre a
completa autonomia umas das outras ou onde a associação destes agrupamentos gerou diferentes
sistemas, situações que poderiam ser caracterizadas no máximo como um império absoluto.
Logo, ainda segundo o referido autor, é presumível que em toda a história conhecida do
mundo o cenário internacional pode ter compreendido ordenamentos formados por comunidades
semelhantes aos Estados contemporâneos que se encontravam em alguma posição intermediária
entre estes dois extremos dentro de um sistema. Isso significa que poderíamos apontar as recentes
mudanças no cenário internacional após 1989, por exemplo, como adequações de um sistema
específico dentro de uma linha temporal, onde comunidades políticas variaram sua existência
ocupando alguma posição intermediária dentro de um espectro extremado pela independência, por
um lado, e pelo total imperialismo, de outro.
Igualmente, o argumento explica a evolução da comunidade política contemporânea como
conhecemos – o Estado, que tem seus contornos consolidados com a Revolução Francesa e a
Revolução Norte-Americana, porém, que recebe modificações conceituais em dois outros períodos
na nossa história recente: ao final da II Guerra Mundial, com o processo de descolonização, e no
período posterior à desconstrução do antigo Império Soviético, já próximo ao século XXI. Logo,
estes atores internacionais alteraram algumas de suas características no tempo, tornando-se mais
complexos e maiores em algumas vezes, e por outras, apresentando uma fragmentação e evolução
da forma de existir.
Assim, a composição interna ou o exercício do poder, igualmente, sofreu modificações na
história, desde comunidades políticas baseadas no domínio de um rei ou imperador concedendo
participação limitada no exercício de seu governo à sua aristocracia, até o momento onde o cenário
internacional mostrou sinais de alteração de uma soberania monárquica para uma soberania popular,
concebendo a comunidade política independente como uma ordem política estabelecida pela
vontade do povo.
Ainda, analisando a recente história do século XXI é notória a alteração de comunidades
políticas completamente independentes entre si, que pela formação de alguns sistemas, se
aproximam de outros Estados modificando a caracterização de sua autonomia em alguns casos. Os
processos de integração regional, como o da União Europeia, exemplificam tal argumento, onde
comunidades politicamente independentes em um passado recente hoje se aglutinam sob uma
mesma bandeira, certamente, até o ponto em que novamente modificarão suas relações, entretanto,
ainda dentro de uma amplitude de extremos configurados como total dependência ou independência
entre estas comunidades.
Conclusão
Exposta a perspectiva teórica que aborda as relações internacionais como um sistema
internacional que repete suas características de forma relativamente homogênea na história, as
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similaridades nas relações internacionais ou as heterogeneidades das comunidades políticas
resultantes deste processo histórico podem ser verificadas. Assim, os diferentes agrupamentos
humanos na história construíram lógicas de interação que, se entendidas de forma desvinculada do
poder doméstico destas comunidades políticas, podem ratificar alguma similaridade de
comportamento entre os antecessores do atual Estado contemporâneo.
Existindo algum tipo de interação relativamente permanente entre as comunidades políticas,
pela necessidade da existência conjunta destas comunidades, algumas ferramentas são logicamente
construídas para a comunicação entre as partes envolvidas, tais como a diplomacia ou o comércio
internacional. Assim, desde que tenha existido um grupo de comunidades com relações
permanentes umas com as outras neste sistema, estas comunidades compuseram um cenário além
das suas próprias fronteiras, caracterizando um cenário internacional, de forma semelhante ao
moderno espaço internacional contemporâneo.
Logo, esta perspectiva valida a abordagem histórica das relações internacionais como
caminho apropriado para o entendimento de grandes padrões de existência dos atores
internacionais, bem como, corrobora a existência de uma série de importantes atores para
construção das relações internacionais, que, em última análise, demandam a existência de
comunidades políticas independentes para a composição de um espaço internacional.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Energia e integração regional: neofuncionalismo na América do Sul
Este artigo visa tratar da
possibilidade de uma integração
energética no Cone Sul focando
na importância geoestratégica,
política e econômica. Para tanto,
é abordado o desenvolvimento
da economia mundial de energia
e a possibilidade da cooperação
funcional pelo viés energético no
cone
sul.
Posteriormente,
apontam-se as teorias políticas
de
integração
econômica
regional, o funcionalismo e o
neofuncionalismo,
que
dão
suporte a este artigo. Ao final, é
apresentada uma proposta de
integração concreta para a
região do Cone Sul. Conclui-se
que a integração setorial, através
da energia, faz-se importante,
viável e necessária para a região.
Gustavo Tonon Lopes16
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 33 - 40
O desenvolvimento da economia mundial de energia
A energia sempre esteve presente na história da humanidade, entretanto a forma de obtenção e
utilização da energia se alterou muito ao longo do tempo. Durante os séculos XI e XIII inicia-se na
Europa Ocidental um processo de mecanização em decorrência da expansão das atividades
tecnológicas. Impulsionados pelas necessidades de uma indústria em estado embrionário, o moinho
hidráulico surge como importante fonte de energia mecânica. Logo depois a madeira passou a ser
utilizada como fonte energética e posteriormente, no século XIX, o carvão mineral se difundiu por
toda a Europa, enquanto importante fonte de energia.
16
Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade de São Paulo (PROLAM- USP) e Professor de Relações
Internacionais da FASM.
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Outro impulso importante no crescimento da demanda por energia se dá a partir do próprio
crescimento demográfico observado na Europa; entretanto, o consumo cresce a uma velocidade
muito mais elevada que o crescimento da população:
Para a economia da energia, o longo prazo é inicialmente um crescimento do consumo
mundial que se dissocia do da população no inicio do século XIX, que cresce a uma taxa
anual média aproximada de 2% durante um século (1850-1950), e que depois se acelera até
4,5% entre 1950 e 1970. O consumo médio por habitante passa, assim, de menos de 0,3 tep
em 1850 para 0,5 em 1900, 0,8 em 1950, 1,4 em 1970 e 1,6 em 1992. No que diz respeito
ao consumo anual de energia útil, ela poderia ter sido multiplicada por mais de duzentos
com a elevação da eficácia global do balanço energético. (MARTIN, 1992, p. 41).
Com o advento da industrialização a necessidade de iluminação mais eficiente se impõe como
um desafio para ciência, e a partir do progresso científico e inovações tecnológicas surge a indústria
elétrica. Uma indústria totalmente nova que responde às necessidades impostas pelas revoluções
industriais. O desenvolvimento tecnológico dessa indústria foi liderado pelos EUA e Alemanha;
entretanto, a forte demanda mundial logo forçou a “eletrificação” de toda a energia utilizada no
mundo. Esse processo foi acentuado no pós-Segunda Guerra Mundial. Nesse período a demanda
efetivamente parte de todas as partes do globo, inclusive a América Latina, que entrou em um
processo de industrialização mais profundo.
É evidente que a energia é fundamental para o crescimento econômico das nações; entretanto
é importante enfatizar que a energia não é o próprio desenvolvimento, mas uma ferramenta que
propicia o desenvolvimento. É necessário que haja uma política energética que fomente o
crescimento econômico a partir dessa poderosa ferramenta. Muitas vezes, se mal planejado, a
energia pode ser rarefeita e onerosa o que pode inclusive limitar o crescimento econômico. Dessa
maneira, a energia desde sua descoberta e massificação se tornou um recurso indispensável para o
desenvolvimento das nações. Em suas múltiplas formas, se tornou um produto passível de
negociação no mercado internacional; uma commodity energética.
A América do Sul é reconhecida internacionalmente pela abundância de recursos naturais;
podemos citar como exemplo a riqueza hídrica que a Bacia do Prata e o bioma amazônico nos
fornece e as enormes reservas de gás natural encontradas na região da Bolívia e Peru. A
complexidade no uso das energias em países de muita demanda, como o Brasil, exige uma
organização perfeita no fornecimento dos diferentes tipos de energia, nas quantidades suficientes
para suprir a demanda, determinantes para incentivar o crescimento econômico. E apesar da
América do Sul ser extremamente rica nesses recursos, nem todos são encontrados em cada um dos
países, em quantidades suficientes para suprir suas necessidades internas.
Os fornecedores ideais são aqueles que estão mais próximos (países vizinhos), pois como as
distâncias são menores haveria uma maior facilidade no transporte e infraestrutura, e,
consequentemente, uma redução no custo final da energia. Se houvesse, portanto, um sistema
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energético integrado no Cone-Sul haveria maior confiabilidade no processo de suprimento, além de
menores custos operacionais para todos os sistemas energéticos nacionais (OLIVEIRA, 2005).
A questão energética na América do Sul é muito interessante, pois alguns países da região
(notadamente Bolívia e Paraguai) têm a energia como seu único grande produto de exportação, e
passível de gerar riquezas internamente. As relações bilaterais do Brasil com esses dois países
sempre estiveram intrinsecamente ligadas à questão energética, o que colaborou, mas ao mesmo
tempo restringiu, o processo de integração no Cone-Sul (VIOTTI, 2000).
Teorias da Integração
Antes de abordar as teorias de integração, primeiramente tem-se que compreender no que
consiste a integração econômica regional em si e quais as causas que a motivam. Os países buscam
a integração através da formação de blocos econômicos, coalizões, grupos, áreas de livre comércio,
com o intuito maior de se fortalecerem, o que proporcionaria aos Estados alcançarem maior
inserção no sistema internacional e ampliarem sua participação no comércio e na economia
mundiais. Além dos benefícios econômicos, a integração é um mecanismo político para obter maior
influência regional, ou maior resistência frente a um ator hegemônico, segundo a definição de
alguns autores, como Regina Simões e Cristiano Morini (2002).
É importante observar que este trabalho aborda as teorias políticas de integração econômica
regional, que não dizem respeito às motivações para a integração, as quais podem ser as mais
variadas possíveis (motivações econômicas, políticas, tecnológicas, entre outras), mas concerne ao
processo de integração em si, isto é, como se daria este processo.
Para compreensão das teorias políticas de integração regional, é necessário o entendimento de
que o processo de integração regional é lento, porém, com grande probabilidade de eficiência.
Ocorre de maneira gradual e os melhores resultados são a médio e longo prazo. A abordagem das
duas teorias – funcionalista e neofuncionalista – explica porque o processo ocorre gradualmente,
sendo que começa por um setor e pode se transbordar para outros setores (Spill Over). Apesar das
limitações de ambas as teorias, estas auxiliam na compreensão da importância da integração setorial
inserida em um processo de integração regional mais amplo. A opção pelo funcionalismo e pelo
neofuncionalismo se deu em virtude da busca de um aporte teórico para a proposta integracionista,
que será apresentada ao final do trabalho, sendo que o mesmo não visa a discussão teórica, mas
apenas utiliza os dois modelos como base.
Mitrany formulou sua teoria no contexto do pós II Guerra Mundial, quando os paradigmas
realista e idealista não mais explicavam o sistema mundial. No caso do realista, que assume o
Estado como o único ator das Relações Internacionais, este não era mais aplicável devido ao
surgimento de outras organizações e atores privados que passam a ganhar espaço no cenário
internacional. Já o paradigma idealista entrou em contradição, pois sem restringir a soberania
política dos Estados (como se fosse somente jurídica) não é possível uma paz mundial, uma vez que
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os Estados, embora “moralmente conectados”, ainda seriam livres para se agredir (SARFATI,
2005).
Deste modo, o funcionalismo surge como uma proposta teórica que defende que a paz poderia
ser alcançada “em partes”, através da cooperação funcional em determinados setores, o que levaria
a um processo de integração gradual. Através da criação de uma nova estrutura institucional para
gerir a integração técnica, os Estados membros estariam cedendo parte de sua soberania em prol de
relações pacíficas de cooperação, tornando a possibilidade de guerra inviável para não prejudicar as
benéficas relações cooperativas.
À medida que os Estados cooperam em funções específicas e vão gradualmente cedendo
suas soberanias nessas funções, Mitrany acredita que seria alcançada uma ‘paz em partes’,
ou seja, cada parte de soberania cedida em prol do bem comum é mais uma parte
adicionada para as relações pacíficas entre as nações. (SARFATI, 2005, p. 185).
A teoria funcionalista considera que a forma mais segura de alcançar a integração e a paz é a
cooperação ao nível de certas tarefas funcionais, tanto de natureza técnica como econômica, ao
invés da criação de novas estruturas institucionais no plano político. Nesse sentido, as organizações
internacionais funcionais estariam mais habilitadas do que os Estados, para levar a cabo
determinadas tarefas, com o que conquistariam as "lealdades nacionais" e excluiriam quaisquer
suspeitas de pretenderem exercer um controle supranacional.
Um exemplo bastante claro no caso da América Latina é a CIER – Comisión de Integración
Eléctrica Regional – cuja sede fica no Uruguai. A Comissão é composta por dez países sulamericanos e foi criada em 1964. Hoje possui status de Organização Não Governamental, formada
por empresas do setor energético e organismos sem fins lucrativos, unida aos setores elétricos dos
dez países-membros, com o objetivo de trocar informações, conhecimentos, experiências, formar
profissionais e desenvolver projetos com enfoque regional. No total são duzentas e vinte e nove
empresas participantes, além do comitê CIER para América Central e Caribe (CECACIER). A
ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica do Brasil) e a Usina Hidrelétrica Binacional de
Itaipu são vinculadas.
A cooperação iniciada a partir de questões técnicas se dá mais rapidamente e é mais eficaz, de
acordo com Mitrany, do que a integração envolvendo questões políticas. No caso da integração
bilateral energética, da qual trata este artigo, a criação bem sucedida de Itaipu demonstra como a
integração setorial técnica acarretou benefícios aos dois países. Itaipu supriu deficiências elétricas
do Brasil para a região de maior produção industrial do país (região Sudeste) e aproveitou recursos
antes subutilizados no Paraguai, com mais eficiência do que uma integração política lenta
acarretaria.
O desenvolvimento econômico e tecnológico faz da integração uma situação possível e
necessária; o mundo integrado econômica e tecnologicamente deu lugar a muitos problemas
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tecnicamente complexos que os Estados individualmente não podem tratar eficazmente, mas que
organizações internacionais funcionais criadas para gerir determinado setor resolveriam.
No caso da teoria neofuncionalista, assume-se que as forças econômicas e tecnológicas estão
a conduzir a uma maior integração política. Haas define um aspecto de “spillover” da integração, ou
seja, o seu transbordamento (SARFATI, 2005). No caso em questão, de acordo com Haas, a
integração que se inicia pela questão energética poderia, e naturalmente iria, atingir outros setores
(educação, saúde, transporte, etc.), até que se alcançasse uma integração política total. Isto ocorreria
naturalmente, como consequência da própria conjuntura de interdependência entre os países.
Cabe aqui explicar que, segundo a Teoria da Interdependência das Relações Internacionais, o
mundo é interdependente, ao passo que as redes financeiras, econômicas, comerciais, políticas,
culturais, sociais, etc. estão interligadas e dependem umas das outras. O sistema internacional atual
pressupõe que os Estados “dependem” uns dos outros, em termos que a política de um afeta a
política de outro, reciprocamente (KEOHANE; NYE, 2001).
É importante salientar que a União Europeia era estudo de case de Haas e, portanto, não
necessariamente no caso de Brasil e Paraguai a união política total, completa e exclusiva seria
viável para os dois países no momento atual. Para Sarfati (2005), Haas assume que os próprios
interesses de grupos de poder nacionais induzem ao processo de integração, ao passo que a
integração parte de anseios e expectativas convergentes entre grupos de poder dentro dos países,
que criarão instituições para atendê-los.
Esta dinâmica fica evidente no caso do CIER, pois os grupos de empresários são importantes
atores privados na política doméstica e têm, na contemporaneidade, ganhado espaço e relevância no
cenário das relações internacionais. Para além desse fato, a energia é um dos principais interesses
estratégicos de um Estado, sendo fundamental para o crescimento econômico deste e necessária
para o próprio abastecimento da população, de modo que, neste caso, os interesses do setor privado
(empresários do setor de energia elétrica) e os interesses estatais atuam em conjunto, buscando
promover uma maximização de recursos e condições para o desenvolvimento. Tanto Mitrany
quanto Haas partem do pressuposto de que parte da autonomia decisória (soberania) dos Estados é
repassada às instituições de cooperação técnica, ou integração setorial técnica.
Proposta de Integração regional no Cone Sul e os benefícios energéticos
Partindo das teorias funcionalistas e neofuncionalistas de que uma integração setorial é mais
viável e de menor dificuldade de implantação, este trabalho propõe um modelo de integração
energética no Cone Sul baseado no artigo de Adilson de Oliveira (2005). De acordo com o autor,
grande parte do potencial hidrelétrico gerado pelas binacionais (Itaipu, Yaciretá e Salto Grande) na
bacia do Prata, bem como grandes bacias produtoras de gás natural (Neuquen, Campos e San
Alberto), geram um grande volume de energia que conjuntamente já seriam suficientes para
estruturar um mercado energético integrado da Patagônia ao Norte do Brasil.
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A criação do Pólo-Anel teria como principais funções:
i) operar como reservatório compartilhado de energia para a região, mitigando os riscos de
suprimento decorrentes dos ciclos econômicos e hidrológicos; ii) oferecer ao mercado
energético regional um preço de referência orientador da valorização dos recursos
energéticos regionais; iii) reduzir o custo do suprimento energético regional, incrementando
a competitividade das economias da região. (OLIVEIRA, 2005, p. 79).
É importante ressaltar que no contexto do Cone Sul, apesar de o Paraguai ser um país
relativamente pequeno ele ocupa uma posição estratégica, pois está situado no centro nevrálgico
entre os dois maiores consumidores, Brasil e Argentina, ao lado da Bolívia, que possui grandes
reservas de gás natural, além, claro, de possuir 50% de Itaipu.
O Pólo-Anel poderá utilizar parte da infra-estrutura física já existente na região (rodovias,
gasodutos, linhas de transmissão elétrica), mas obviamente que um grande volume de investimentos
adicionais se faz necessário para o incremento e modernização da infraestrutura, propiciando a
integração física da região. Uma empresa Plurinacional seria criada para a administração e
comercialização dos recursos gerados pelo Pólo-Anel; a institucionalização desse Pólo partiria de
uma decisão diplomática por parte dos países membros. Todas as decisões importantes dessa
empresa nacional, como o preço a ser cobrado pela energia produzida, seriam tomadas a partir do
consenso.
Um dos grandes entraves nos processos de integração é a perda da autonomia (ou mesmo
abdicação de parte da soberania) em detrimento de uma personalidade supranacional assumida pelo
bloco. Entretanto, em consonância com Mitrany, afirma-se que em um processo de integração
setorial a institucionalização da integração só regerá aquele setor específico, não interferindo
diretamente nos assuntos internos de cada Estado, ou seja, não implicando em perda de soberania.
Adilson de Oliveira também compartilha dessa hipótese:
Esta proposta de integração não mina a autonomia dos países, mas estimula de modo
prático a progressiva integração de mercados nacionais. A regulamentação dos mercados
nacionais não precisa ser alterada. Apenas as regras do funcionamento do Pólo-Anel devem
ser consensuais. Os países preservam sua independência para a configuração de seus
esquemas regulatórios e decisões em matéria de política energética. O Pólo-Anel funciona
apenas como elemento orientador da trajetória energética regional, oferecendo o benefício
de menores custos de suprimento e maior confiabilidade do suprimento. (2005, p. 81).
A proposta de Oliveira (2005) é apenas um estudo acadêmico, e não um projeto dos governos
sul-americanos. Porém, a viabilidade do projeto e seu potencial de sucesso, além dos prováveis
benefícios aos países compreendidos no Pólo-Anel, demonstram que tal proposta, em conformidade
com as teorias funcionalista e neofuncionalista, expostas neste trabalho, deveria ser considerada
pelos governos como uma possibilidade de desenvolvimento conjunto através da cooperação. Dada
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a importância da energia nas relações internacionais contemporâneas, já abordada anteriormente,
considera-se que o projeto de integração setorial energética deveria ser repensado, para ocupar um
papel primordial na agenda dos Estados do Cone Sul.
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Segurança humana: o discurso ‘para’ ou ‘da’ periferia?
Neste
artigo
será
apresentado o conceito de
segurança humana e sua interrelação com duas questões
clássicas
das
relações
internacionais e da ciência
política: desenvolvimento e
soberania.
O
objetivo
é
questionar se o discurso da
segurança humana é uma ação
política dirigida às periferias
ou uma bandeira levantada
pelas periferias em busca de
emancipação.
Ariana Bazzano17
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 41 - 53
Introdução
Dentro da Ciência Política e das Relações Internacionais, tradicionalmente, os estudos de
segurança se dedicavam aos assuntos ligados à proteção dos Estados e do território. No âmbito
interno, esses estudos se relacionavam com as questões de segurança pública, como a proteção da
vida dos seus cidadãos e do patrimônio, e os seus meios de proteção proveriam do aparato policial.
No âmbito externo, a preocupação em relação à segurança internacional estava ligada à
possibilidade da guerra e o meio de proteção dos Estados eram os recursos militares.
Contudo, ao longo do século XX e especialmente, após a 2ª Guerra Mundial, houve um
intenso debate acadêmico e político a respeito da redefinição do conceito de segurança. Passa-se a
debater sobre quem deveria ser o referente principal da segurança (Estados, sociedades, indivíduos)
e quais meios seriam utilizados para a proteção (militar, economia, desenvolvimento social). Este
debate até hoje é polêmico e controverso, porém, com o fim da Guerra Fria, ganhou-se certo
reconhecimento internacional de que o referente principal da segurança deveria ser o indivíduo e
17
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP,
PUC-SP).
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um dos principais meios para protegê-los seria por meio do desenvolvimento humano. A essa
proposta de segurança convencionou-se chamar de Segurança Humana.
A percepção de que as inseguranças humanas estão interligadas, e que os direitos humanos e o
desenvolvimento precisavam estar associados com as questões de segurança, trouxe destaque à
ideia de segurança humana. Essa ideia foi popularizada na década de 1990 pelas agências da ONU,
como o PNUD, ACNUR, etc., que estavam empenhados em aliviar o sofrimento humano nos casos
em que o Estado não assume a responsabilidade de garantir a dignidade dos seus cidadãos
(CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p.76).
Neste artigo será apresentado o conceito de segurança humana e sua inter-relação com duas
questões clássicas das relações internacionais e da ciência política: desenvolvimento e soberania. O
objetivo é questionar se o discurso da segurança humana é uma ação política dirigida às periferias
ou uma bandeira levantada pelas periferias em busca de emancipação? Para responder a pergunta, o
texto será dividido em três seções: 1) nesta primeira parte é apresentado o conceito de segurança
humana, tal como proposto pelo PNUD em 1994; 2) na segunda seção, é destacada a relação entre
segurança humana e o desenvolvimento e 3) por fim, a relação entre as intervenções humanitárias,
prevenção de conflitos e a segurança humana.
O Conteúdo da Segurança Humana
A maior parte das publicações de segurança humana cita o fim da Guerra Fria como um fator
importante para permitir o desenvolvimento de abordagens alternativas para a segurança. Ao mudar
a ênfase do conflito entre os Estados para as necessidades de proteção de todas as pessoas,
independentemente do seu pertencimento a um determinado Estado, o discurso da segurança
humana se entrelaça com os direitos humanos e desenvolvimento, buscando se consolidar como
uma alternativa às tradicionais perspectivas de segurança estadocêntrica.
Em 1994, o PNUD lança em seu relatório anual – Informe sobre o Desenvolvimento Humano
– o conceito de segurança humana. O relatório recomenda uma transição conceitual profunda da
“segurança nuclear”, ou seja, militar, para a segurança humana. De acordo com o PNUD, para a
maioria das pessoas, a insegurança resulta muito mais de preocupações da vida cotidiana do que da
possibilidade de um evento cataclísmico. O relatório afirma que serão exploradas as novas
fronteiras da segurança humana da vida cotidiana, pois é necessário descobrir prematuramente os
sinais de alerta de uma possível crise, para que dessa maneira se possa colocar em prática ações de
diplomacia preventiva (PNUD, 1994, p. III). Para o PNUD, o cerne da insegurança humana é a
vulnerabilidade e a pergunta central que se deve fazer é: como proteger as pessoas?
A segurança humana possui dois aspectos principais: manter as pessoas a salvo das ameaças
crônicas como a fome, as doenças, a repressão (freedom from want) e protegê-las de mudanças
súbitas e nocivas nos padrões da vida cotidiana, por exemplo, das guerras, dos genocídios e das
limpezas étnicas (freedom from fear). Esses dois aspectos da segurança humana foram inspirados no
famoso discurso proferido pelo Presidente Franklin Roosevelt ao Congresso Americano em 1941,
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intitulado “As Quatro Liberdades”. Neste discurso, Roosevelt afirmou que um mundo seria justo e
seguro se estivesse fundado nessas liberdades: Liberdade de expressão e opinião; Liberdade de
culto; Liberdade das privações (freedom from want) e Liberdade dos temores (freedom from fear).
Dessa maneira, influenciados por Roosevelt, os formuladores da segurança humana
atribuíram a ela essas duas dimensões: freedom from want e freedom from fear. O que, por um lado,
significa proteger as pessoas das vulnerabilidades decorrentes do subdesenvolvimento e, por outro,
protegê-las das violências físicas que provêm das guerras e dos conflitos civis. Além desses dois
grandes aspectos principais, o PNUD identifica sete dimensões da segurança: 1) Segurança
Econômica; 2) Segurança Alimentar; 3) Segurança Sanitária; 4) Segurança Ambiental; 5)
Segurança Pessoal; 6) Segurança Comunitária; 7) Segurança Política.
Dessa maneira, uma das características que definem a nova natureza dos temas relacionados
com a segurança é a sua interdependência; o próprio relatório afirma que os sete elementos de
segurança humana são interligados e a ameaça contra um elemento provavelmente se propagará a
todos os outros. Para os formuladores da segurança humana, as ameaças provêm tanto de outros
Estados como de outros atores não estatais ou das relações estruturais de poder, nos seus mais
diferentes níveis. Para essa abordagem, as ameaças são transnacionais, não há fronteiras nacionais
para problemas como desequilíbrios ecológicos, terrorismo, epidemias, etc... E já que as ameaças
não se circunscreveriam às fronteiras nacionais, a solução dos problemas também não poderia ficar
restrita ao plano estatal.
Lloyd Axworthy, ex-ministro das Relações Exteriores do Canadá, sugeriu que o conceito de
segurança humana deveria se tornar um princípio organizador central das relações internacionais e
um importante catalisador para encontrar uma nova abordagem para a condução da diplomacia. A
noção de segurança humana é baseada na premissa de que o individuo é o foco irredutível para o
discurso de segurança. As reivindicações de todos os outros referentes (o grupo, a comunidade, o
Estado, a região e o globo) derivariam da autonomia do indivíduo e do direito à vida digna
(MACFARLANE, KHONG; 2006, p.02).
Além das discussões em torno do conceito de segurança humana como uma possibilidade de
condução da diplomacia e da cooperação internacional, alguns autores (Duffield, Waddell) ainda a
veem como uma categoria biopolítica, nos moldes foucaultianos. Mark Duffield afirma que a
segurança humana poderia ser considerada como uma relação ou tecnologia de governança que
permitiria aos diversos atores (Estados, ONGs, instituições internacionais) agirem e atuarem,
principalmente nos povos do Sul, o que lhe daria um caráter de biopolítica global. Por esse caráter,
a “segurança das populações contra os fatores antropogênicos que põem em risco a qualidade da
existência” se situaria na convergência de dois componentes: o desenvolvimento e a proteção
(segurança) (DUFFIELD; 2005, p.03).
O primeiro componente se insere na formulação da segurança humana ao securitizar as
questões advindas do subdesenvolvimento (pobreza, fome, epidemias), assim o subdesenvolvimento
é visto como uma ameaça à vida das pessoas. Duffield e Waddell afirmam:
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(...) o desenvolvimento relaciona-se com diversidade e escolhas que permitem às pessoas
gerir melhor as contingências de sua existência e, por meio de intervenções regulatórias e
compensatórias, ajudar as populações, à escala global, a atingir e manter a homeostase.
Essa é vida desenvolvida (developmental life) securitizada no âmbito da segurança humana
(idem, p.03).
E o segundo componente, a proteção, representaria, de acordo com Pureza, a ascensão do
horizonte normativo da “responsabilidade de proteger”. Assim, o objetivo estratégico seria proteger
as pessoas e dar aos Estados – a todos os Estados – “a capacidade efetiva de, in loco, criarem
condições para que as pessoas sob sua jurisdição sintam-se dia-a-dia seguras” (idem, p.03). Dessa
forma, Pureza destaca que a formulação da segurança humana se inscreve num certo consenso que
cada vez mais se consolida no meio acadêmico e político, favorável ao aumento do
intervencionismo internacional. Então, a segurança humana definiria:
(...) uma urgência e, em simultâneo, define um conjunto de tecnologias de resolução de
conflitos e de reconstrução social destinadas a separar governantes de governados e, ao
mesmo tempo, a atuar sobre as populações para incrementar sua resiliência, promover a
inclusão, reconstruir instituições civis e garantir a representação política (idem, p.01).
Para compreender os aspectos e as possibilidades dos campos de operacionalização da
segurança humana, neste trabalho, as duas faces da segurança humana – a “freedom from want” e a
“freedom from fear” – serão tratadas em itens distintos. Desta maneira, a face “freedom from want”,
será tratada neste texto, no item intitulado: o homem vulnerável, no qual será abordada a relação
entre desenvolvimento e segurança. E a face “freedom from fear”, será apontada no item o homem
desprotegido, que destacará a relação das intervenções humanitárias com a questão da soberania dos
Estados.
O Homem Vulnerável: A dimensão do desenvolvimento
Jorge Nef explica que, entre 1945 e 1989, o desenvolvimento e a segurança foram separados,
tanto conceitualmente como na prática. A segurança nacional foi enquadrada dentro de um debate
Leste-Oeste, enquanto a dinâmica Norte-Sul era tratada em torno do problema do desenvolvimento.
Depois de 1989, com a mudança de foco da segurança para os problemas internos, como as guerras
civis, os conflitos étnicos, a disputa por recursos naturais, etc., a segurança e o desenvolvimento não
poderiam mais ser vistos numa perspectiva de soma zero, mas sim a partir de uma perspectiva de
soma diferente de zero, com possibilidades de ganhar e perder juntos.
Com o advento das ameaças transfronteiriças, as sociedades aparentemente seguras do Norte
passaram a ser cada vez mais vulneráveis aos eventos nas regiões menos seguras e menos
desenvolvidas do globo. As mudanças após a década de 1990 precisavam ser cada vez mais
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entendidas através de uma conceituação abrangente e dinâmica, que exigem abordagens
interdisciplinares a fim de explicar melhor a interdependência complexa (CHENOY;
TADJBAKHSH, 2009, p.100).
Dado o contexto da década de 1990, Jorge Nef propõe reconceituar os paradigmas de
Norte/Sul (desenvolvimento) e Leste/Oeste (segurança) pelo modelo centro-periferia, baseado na
ideia de vulnerabilidade mútua. Para Nef, o paradigma da segurança humana se basearia na noção
de vulnerabilidade mútua, o que significaria dizer que, em um mundo interdependente, mesmo os
setores mais desenvolvidos e aparentemente mais protegidos se encontram também num estado de
vulnerabilidade, enquanto outros setores sofrem de uma situação de vulnerabilidade e insegurança
extrema. Nef afirma: “mientras exista vulnerabilidad e inseguridad extrema en algunos sectores del
conjunto, todos somos, en cierta medida vulnerables” (NEF; 1999, p.41). Assim, para Nef, o tema
central da segurança humana seria a redução do risco coletivo e compartilhado das causas e
circunstâncias da insegurança.
Para o autor, a segurança é a probabilidade de redução do risco e da vulnerabilidade, ou seja,
a diminuição e o controle da insegurança. Esta definição enfatiza a prevenção das causas e dos tipos
de inseguranças; o que preocupa Nef é aquilo que afeta a grande maioria da população,
especialmente os setores mais suscetíveis a uma maior vulnerabilidade e exposição de fatores de
risco.
Mahbub ul Haq é quem pela primeira vez afirma que a segurança humana é um suplemento
para o debate do desenvolvimento humano no Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD,
em 1994. De acordo com Chenoy e Tadjbakhsh, o conceito foi introduzido como uma “extensão
natural do desenvolvimento humano no campo da segurança” no contexto das oportunidades do
pós-Guerra Fria para os dividendos da paz (CHENOY; TADJBAKHSH, 2009, p. 98).
Os autores do Relatório do PNUD de 1994 ressaltam que a segurança humana não deve ser
equiparada ao desenvolvimento humano, pois este é um conceito mais amplo, que ressalta a
ampliação das oportunidades para os indivíduos. A segurança humana seria a possibilidade das
pessoas exercerem as suas opções de forma segura e livre, além de uma relativa confiança de que
essas oportunidades serão perenes (PNUD, 1994, p. 26-27). Assim, poder-se-ia afirmar que a
segurança humana seria a capacidade de desfrutar dos benefícios do desenvolvimento humano num
ambiente seguro e o desenvolvimento humano seria um dos meios de se criar a segurança humana.
Vale destacar que uma importante contribuição para a inserção da dimensão do
desenvolvimento na proposta de segurança humana são os trabalhos do economista indiano e
Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen. Os estudos de Sen identificam a superação das privações
como parte central do processo de desenvolvimento.
O autor destaca que o desenvolvimento e a riqueza são os meios para os indivíduos
conquistarem aquilo que desejam. Claro que essa relação não é exclusiva, nem uniforme, pois além
da importância de se reconhecer o papel crucial da riqueza na determinação das condições e da
qualidade de vida, também é preciso entender a natureza restrita e dependente dessa relação. Por
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isso, uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e
do crescimento econômico, em termos de PNB, “sem desconsiderar a importância do crescimento
econômico, precisamos enxergar muito além dele” (SEN, 2008, p.28).
Desta forma, para Sen, o objetivo do desenvolvimento deveria ser a melhora das vidas
humanas por meio da expansão de suas capacidades, tanto de ser como de fazer; assim, o
desenvolvimento significaria a remoção dos obstáculos que impedem a expansão das escolhas
individuais, tais como: o analfabetismo, a fome, ausência de atendimento médico ou ausência de
liberdades civis e políticas. Logo, as mulheres que nascem em sociedades repressoras, a criança que
não vai à escola, o trabalhador escravizado, não estão privados somente do bem-estar, mas das
capacidades e do potencial que os levariam a uma vida responsável e autônoma, já que esta
dependeria do usufruto de certas liberdades básicas, como diz Sen: “responsabilidade requer
liberdade” (idem, p. 322).
Em virtude disto, Sen insiste na necessidade de adotar a segurança humana como um
instrumento para repensar o futuro e o próprio desenvolvimento. O desenvolvimento não se
relaciona somente com o crescimento da renda per capita, mas também com a expansão das
liberdades humanas e da dignidade. Sen defende que se deve redefinir as velhas instituições
internacionais e elaborar uma agenda de mudanças necessárias, o que deveria incluir os acordos
comerciais, as leis de patentes, as iniciativas de saúde global, além de possibilitar a educação
universal, disseminar a tecnologia, preservar o meio-ambiente, alterar o tratamento dado à dívida
externa, investir no desarmamento e alterar a gestão dos conflitos. Enfim, uma agenda para tornar
viável a segurança humana.
Dessa forma, como afirma Ruth Jacoby, a “liberdade do querer” e a “liberdade do medo” são
indivisíveis, sendo o desenvolvimento outra palavra para essas duas liberdades. Para a autora, a
insegurança seria o desenvolvimento no seu sentido inverso, pois estudos empíricos mostram que a
insegurança não só prejudica as perspectivas de sobrevivência, como também diminui as variáveis
macroeconômicas e de qualidade de vida, particularmente para os mais pobres. Assim, para Jacoby,
o desenvolvimento deveria promover a segurança e as pesquisas têm demonstrado que a ausência de
desenvolvimento econômico e social estaria relacionada com a “falência” do Estado, com a
violência e conflito. Logo, estas interligações significariam que as estratégias para uma redução
efetiva da pobreza deve ser a parte central dos esforços para se alcançar um mundo mais seguro e
vice-versa (JACOBY, 2006, p.03).
O Homem Desprotegido: a dimensão humanitária
O contexto da década de 1990 e as “novas ameaças” na pauta política internacional trouxeram
à tona e evidenciaram as graves crises humanitárias que ocorriam no interior dos países. Ruanda,
Somália, Bósnia e Haiti são alguns dos exemplos que levantaram importantes questões a respeito da
defesa dos direitos humanos e da garantia da segurança humana. Desta maneira, ganhou evidência
nos anos 1990 o debate sobre as intervenções humanitárias. Além do contexto histórico, o próprio
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escopo conceitual da segurança humana questiona o status da soberania e o princípio de não
intervenção dos Estados, já que para os formuladores da segurança humana as ameaças são
transnacionais e o esforço para combatê-las também exigiria uma coalizão internacional. Assim, um
caso que exemplifica bem a inter-relação entre a segurança humana e a soberania, são as
intervenções humanitárias.
Sucintamente, pode-se definir as intervenções humanitárias como uma intervenção militar,
com ou sem a aprovação do Estado, para prevenir genocídios, violações em larga-escala dos direitos
humanos (incluindo a fome em massa) e as graves violações do direito internacional humanitário
(KALDOR, 2001, p. 109). A partir dessa definição, percebe-se o quão complexo, tanto na teoria,
como na prática, é o tema das intervenções humanitárias, pois envolve questões como os direitos
humanos e a soberania. E, talvez, uma das perguntas mais problemáticas que surge dessa definição
seja: é legítimo utilizar a força, num outro Estado, para defender outros cidadãos, em nome dos
direitos humanos?
Os analistas de operações de paz da ONU distinguem entre as diferentes “gerações” das
operações de paz: as de “primeira geração” consistiam na observação do cessar-fogo entre as forças
armadas regulares, e vingou do ano de 1948 até o fim da década de 80 (GALLARDO et all., 2006,
p.53). No início da década de 1990, tem-se as operações de apoio à paz de “segunda geração” ou
“multidimensionais”, que participavam da negociação dos acordos de paz. E no final da década de
1990, surgem as operações de paz de “terceira geração” ou “operações de imposição de paz”, que se
utilizam da força para estabilizar os conflitos, cujo marco é a Guerra de Kosovo, em 1999
(BARANYI, 2006, p.08).
Desde as intervenções dos EUA no final de 2001, os analistas internacionais e acadêmicos
discutem a possibilidade de incluir uma quarta geração de operações, chamadas pelos seus
promotores de “estabilização”. A invasão do Afeganistão liderada pelos EUA após os ataques
terroristas de 11/09 parece uma extensão dessa tendência em direção a uma intervenção forçada,
ainda que seja distinta em determinados pontos das demais intervenções, segundo Baranyi. A
intervenção no Afeganistão foi justificada por razões de auto-defesa, apoiada pelo Conselho de
Segurança da ONU por supostos motivos “humanitários”. Além do que, os EUA permitiram que a
ONU e as novas autoridades nacionais liderassem a reconstrução do país. Já a intervenção no
Iraque, dois anos depois, foi justificada pelos EUA como uma medida preventiva de auto-defesa,
jamais foi aprovada e sequer punida pelo Conselho de Segurança da ONU, e as potências ocupantes
mantiveram o controle quase total da vida pública no Iraque.
Assim, essas operações de estabilização começam a ser compreendidas como as iniciativas
que se iniciam como intervenções militares, que gozam de muito menos apoio multilateral, e na
maior parte das vezes são ações unilaterais ou coalizões de poucos países. Nestes casos, também
não há solicitação do país afetado e terminam combinando os instrumentos bélicos com as
ferramentas de consolidação de paz. Dessa forma, pode se observar uma tendência de transição,
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especialmente após o 11/09/01, de uma consolidação de paz, antes muito mais baseada em
processos negociados, para operações de estabilização de caráter militar.
Outra questão que especialistas em relações internacionais levantam é sobre os Estados
poderem ou não promover intervenções em outros países, sem a autorização expressa do Conselho
de Segurança da ONU. Numa mesa-redonda chamada Humanitarian Intervention After 9/11,
analistas se reuniram e tomaram posições bem distintas quanto à possibilidade de uma intervenção
sem a autorização da ONU. Autores como J.L. Holzgrefe e Tom Farer afirmaram que, caso o
Conselho de Segurança não consiga colocar fim às graves violações aos direitos humanos, os
Estados devem intervir, mesmo sem autorização. Já Daniele Archibugi e Nicholas Wheeler
consideram que todas as intervenções sem a autorização da ONU são ilegais, e se mostram
extremamente preocupados com ações unilaterais, tal como ocorreu no Iraque. Assim, para eles, há
a necessidade de se reestruturar e reafirmar o papel do ONU e especialmente do Conselho de
Segurança (FARER et all; 2005, pp. 211-251).
Por meio dessa mesa-redonda, percebe-se o quão controverso é o tema das intervenções
humanitárias, especialmente por causa da questão da soberania. A soberania é uma questão clássica
das relações internacionais e da ciência política. Muitos autores afirmam que a Paz de Westfalia, em
1648, na Europa, consolida a tendência de territorialização da política. Assim, com a Paz de
Westfalia ganha forma o sistema de Estados territoriais, conhecido como a “ordem westfaliana”,
para o qual a soberania é territorial e não existiria autoridade suprema acima dos Estados.
É claro que o conceito de soberania e a questão da inviolabilidade dos territórios é um assunto
controverso e polêmico. Contudo, em várias situações da política internacional, os Estados não
hesitam em levantar o argumento da soberania e da inviolabilidade dos territórios quando se sentem
ameaçados por outros Estados. E as intervenções humanitárias só veem a aprofundar essa polêmica
em torno da soberania e do princípio de não intervenção dos Estados.
A relação entre a soberania e as intervenções humanitárias é tratada por Robert Keohane, no
livro Humanitarian Intervention – Ethical, Legal and Political Dilemmas, publicado em 2003. A
questão central do livro é sobre que circunstâncias a intervenção humanitária não autorizada pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas está justificada eticamente, legalmente ou politicamente,
como, por exemplo, o caso da intervenção da OTAN em Kosovo, em 1999. Todos os autores dos
artigos apresentados no livro não consideram a intervenção humanitária como algo condenável em
si, mas estão cientes do potencial de abuso inerente em sua prática (KEOHANE, HOLZGREFE,
2005, p. 01). O enfoque do livro é na análise das intervenções humanitárias no contexto dos
“Estados falidos” e explora questões fundamentais da teoria moral, além dos processos de mudança
no direito internacional e como as concepções de soberania estão se movendo como resultado das
mudanças das normas em direitos humanos (idem, p. 02).
Num panorama geral do livro, pode-se observar uma forte tendência liberal. Há uma grande
defesa dos direitos humanos, mesmo que seja necessária uma intervenção humanitária, seja ela
autorizada ou não. Dessa maneira, para os autores do livro, a soberania é um valor instrumental, útil
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em algumas condições, mas não uma condição inabalável, principalmente quando há riscos à vida
humana. Assim, a omissão teria consequências mais graves do que a atuação, como por exemplo, a
ausência de intervenção para impedir o genocídio em Ruanda, em 1994.
Outro texto importante que se preocupa com a eficácia das intervenções humanitárias é o
livro, escrito por Michael W. Doyle e Nicholas Sambanis, Making War and Building Peace –
United Nations Peace Operations, publicado em 2006. O livro examina o trabalho das Nações
Unidas nas missões de manutenção da paz após a guerra civil, comparando os processos de paz nos
quais houve o envolvimento da ONU com aqueles sem a presença da organização, analisando
estatisticamente todas as guerras civis de 1945 a 1999. Michael Doyle e Nicholas Sambanis
argumentam que cada missão tem de ser projetada para se encaixar no conflito, com a autoridade e
os recursos adequados. As missões da ONU podem ser eficazes ao apoiar novos atores
comprometidos com a paz e com a construção de instituições governamentais, acompanhando e
fiscalizando a execução dos acordos de paz. Mas os autores concluem que não é bom a ONU
intervir em guerras em curso. Se o conflito é controlado por spoilers ou se as partes não estão
prontas para fazer a paz, a ONU não pode desempenhar um papel de aplicação efetiva. Pode, no
entanto, oferecer os seus conhecimentos técnicos em operações de paz multidimensionais para
acompanhar a execução de missões realizadas por Estados ou organizações regionais, como a
OTAN. Os autores constatam que as missões da ONU são mais eficazes nos primeiros anos após o
fim da guerra, e que o desenvolvimento econômico é a melhor maneira de diminuir o risco de novos
combates em longo prazo. Além disso, o livro discute que o papel da ONU no lançamento de
projetos de desenvolvimento após a guerra civil deve ser ampliado.
Uma lacuna das intervenções da ONU é de que não são adequadamente focalizadas na relação
entre a reconstrução econômica, o desenvolvimento e a paz. Os autores apontam que as capacidades
locais são importantes para alcançar a paz negativa (ausência de guerra), tanto no curto como no
longo prazo. Já as missões de paz da ONU podem até expandir a participação política, porém não
têm conseguido iniciar um processo de auto-sustentação do crescimento econômico. O crescimento
econômico é fundamental no apoio aos incentivos para a paz (particularmente, negativa) e contribui
para evitar a guerra, mesmo na ausência de extensas capacidades internacionais. Além de ser um
determinante importante de uma paz duradoura, o crescimento econômico e uma redução nos níveis
de pobreza são determinantes de uma democracia sustentável. Assim, reduzir o fosso entre a
política de manutenção da paz e a assistência no desenvolvimento, com ênfase na transformação
estrutural, é uma boa estratégia de consolidação da paz. Os autores sugerem que as missões de
peacebuilding das Nações Unidas se beneficiariam ao adicionar políticas econômicas nas suas
operações, e isto é um fator decisivo para resolver essa lacuna das operações de paz.
Portanto, de acordo com os autores apresentados acima, as intervenções humanitárias seriam
necessárias, principalmente, pela possibilidade da reconstrução político-econômica dos Estados que
sofrem as intervenções. Os autores, apesar de trabalharem os seus argumentos de forma diferente –
Robert Keohane discute teoricamente o conceito de soberania e a sua relação com as intervenções e
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Michael Doyle e Nicholas Sambanis analisam as missões de paz e os fatores que podem garantir o
seu sucesso – apresentam as mesmas conclusões: de que não basta por um fim no conflito, é preciso
garantir que eles não ocorram novamente e a melhor maneira para se garantir isso, é investir na
construção de instituições políticas fortes e na estabilidade econômica.
A partir desses dois textos, algumas questões sobre intervenções humanitárias podem ser
discutidas, dentre elas: em que condições há o uso da força nas intervenções humanitárias? Quais
elementos justificam o uso da força? Intervenções ocorrem em momentos de graves violações aos
direitos humanos, mas o que determina a gravidade das violações dos direitos humanos? Enfim, o
que é uma emergência humanitária? E quando deve ser feita uma intervenção?
Todas essas questões giram em torno da problemática dos direitos humanos, afinal os direitos
humanos são um importante fator para a autorização de uma intervenção. Os direitos humanos
aparecem no cenário internacional como uma bússola moral, assim a violação dos direitos humanos
está além das questões jurídicas, política e estatais. Os direitos humanos implicam em questões
morais e, por isso, os abusos aos direitos humanos mobilizam fortemente a comunidade
internacional.
Contudo, apesar das questões morais e do forte conteúdo normativo que os direitos humanos
mobilizam, as intervenções humanitárias não são um consenso e vários problemas preocupam
durante a sua execução e eficácia. Uns dos problemas mais discutidos é a seletividade das
intervenções.
A ausência de clareza do que é uma emergência humanitária pode gerar situações de
seletividade das intervenções, afinal essas missões dependem da aprovação do Conselho de
Segurança da ONU, embora haja casos de intervenção que ocorreram sem autorização da ONU,
como o caso da invasão do Iraque, em 2003, pelos Estados Unidos, que se utilizou da terminologia
de intervenção humanitária. As situações ficam sujeitas à seletividade dos atores envolvidos, o que
cria um espaço muito grande para cálculos estratégicos e políticos. Além do que, atualmente, as
intervenções humanitárias são muito mais reativas do que preventivas, quando, na verdade, o que
deveria ocorrer era justamente o contrário, as intervenções humanitárias deveriam agir como um
mecanismo dissuasório de conflitos internos.
Assim, o fato das intervenções humanitárias serem reativas e padecerem da seletividade dos
agentes envolvidos leva a situações nas quais há uma forte resposta internacional, enquanto outras
são veemente ignoradas. Ruanda e Darfur são exemplos de que as intervenções humanitárias não
estão pautadas inteiramente nos direitos humanos e que os interesses dos grandes países – que não
querem gastar dinheiro, nem soldados, em missões sem interesses econômicos – ainda é um ponto
crucial na decisão de intervir. O que leva a uma pergunta fundamental: Por que algumas situações
de violações de direitos humanos merecem a atenção das organizações internacionais e dos Estados
e outras não, apesar de todas elas terem algo em comum: o sofrimento humano?
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Considerações Finais
Neste texto, buscou-se apresentar o conceito de segurança humana e, por meio dos seus
aspectos principais – “freedom from want” e “freedom from fear”, a sua inter-relação com os temas
de desenvolvimento e soberania, esta através do debate das intervenções humanitárias.
Pureza destaca que a discussão sobre a segurança humana possui um eixo alicerçado em três
causas principais. A primeira causa seria conseguir estabelecer políticas que possam garantir bemestar e dignidade aos seres humanos, apesar das tensões entre os Estados e indivíduos. Desta forma,
para Pureza, a segurança humana representaria um arcabouço conceitual demonstrativo da periferia
“como o lugar de falha da modernidade”, no seu sentido institucional e jurídico. Assim, a
construção do conceito de segurança humana está enraizada no discurso que estabelece “relações de
causalidade entre subdesenvolvimento, má governança, insegurança e violência comunitária”, ou
seja, os problemas advindos da vulnerabilidade estariam interconectados com os problemas de
segurança. Portanto, a dimensão do freedom from want seria vista “como requisito de continuidade
entre a segurança individual e as seguranças nacionais e internacionais” (PUREZA, 2009, p.29).
A segunda causa é que a segurança humana seria uma projeção, no campo da segurança, da
credibilidade obtida pelo regime internacional de direitos humanos, o que pode ter legitimado a
compreensão da soberania baseada no princípio da responsabilidade de proteger (idem, p.29).
Assim, em nome da proteção dos indivíduos, a dimensão do freedom from fear se relaciona com a
garantia de sobrevivência a esta e às gerações futuras, independente de religião, gênero ou etnia,
assegurada pelos Estados ou pela comunidade internacional.
E, finalmente, para Pureza, a terceira causa seria a prevenção da insegurança estrutural, uma
clara influência dos estudos de paz. Dessa maneira, os formuladores da segurança humana
incorporaram a discussão sobre a violência estrutural, proposta por Johan Galtung. Assim, a
segurança humana agregou a orientação preventiva que se traduziu “no combate às causas
profundas da insegurança antes que estas deflagrem em violência, o que torna a prevenção de
expressões de violência estrutural e de violência cultural ingrediente essencial da segurança
humana” (idem, p.29-30).
Por fim, vale a pena destacar que embora a formulação da segurança humana seja uma
proposta institucional do PNUD, dois grandes intelectuais e economistas participaram e
colaboraram ativamente no interior do PNUD para o desenvolvimento do conceito de segurança
humana, são eles: Mahbub ul Haq e Amartya Sen. Mahbub ul Haq foi um renomado economista
paquistanês e os seus trabalhos se destacaram pela formulação do conceito de desenvolvimento
humano. Ele e o seu amigo, Amartya Sen, economista indiano, formularam o IDH, enunciado no
relatório do PNUD de 1993, e, no ano seguinte, apresentaram a segurança humana. A participação
ativa desses dois economistas, juntamente com os seus trabalhos intelectuais – marcadamente
dirigidos às periferias – pode explicar o grande peso dado à dimensão do desenvolvimento na
proposta de segurança humana.
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Contudo, esse caráter preventivo da segurança humana, pode ter ficado momentaneamente
obscurecido, em virtude das consequências políticas da “guerra ao terror”. É difícil avaliar os
efeitos políticos de um evento tão recente, mas há alguns indícios para se afirmar que a “guerra ao
terror” possa, ao menos, ter desvirtuado os propósitos iniciais da formulação de segurança humana.
Um desses indícios seria a mudança nos critérios de ajuda internacional. O que antes estava
associado ao combate a pobreza passa a ser associado com a cooperação às políticas de combate ao
terror, encabeçadas pelos Estados Unidos. Florian Hoffmann afirma que após o 11/09 teria havido
“um deslocamento da ênfase para um conceito abstrato de segurança, que corresponde à percebida
demanda pública pela securitização das relações sociais” (HOFFMANN, 2010, p.271).
Desta maneira, como expõe Pureza, a “guerra ao terror” teria causado uma crise no equilíbrio
dinâmico entre as dimensões da segurança humana – o desenvolvimento e a proteção – fazendo
com que a face da proteção seja priorizada, em detrimento das políticas de desenvolvimento. Assim,
se na década de 1990 as políticas de segurança humana eram destinadas às comunidades das
periferias do sistema internacional, após os atentados de 11 de setembro de 2001 a preocupação
seria garantir a segurança de quem estava no centro, ou seja, dos países mais ricos. A periferia
passaria a ser fonte de todas as ameaças – terrorista, migração, pandemias - e “essa visão da
periferia tem como consequência uma tendência geral para acentuar a segurança, a “nossa”
segurança, em detrimento da segurança “deles”” (PUREZA, 2009, p.31-32).
Quanto à resposta da pergunta que intitula este trabalho – “discurso da ou para as periferias? Talvez ela se encontre numa frase de Ken Booth, inspirada nos estudos construtivistas: “segurança é
o que fazemos dela, é um epifenômeno, intersubjetivamente criada” (BOOTH, 1994, p.15). Dessa
forma, as políticas de segurança humana serão aquilo que os seus formuladores fizerem dela:
desenvolvimento, proteção ou até mesmo retórica vazia.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Soberania, direitos humanos e autoridade no debate contemporâneo sobre
Intervenções Humanitárias
Os debates contemporâneos
sobre intervenções humanitárias
parecem contrapor soberania e
não intervenção como normas
irreconciliáveis
do
Direito
Internacional. Em meio a isso,
subjazem
discussões
mais
profundas sobre moral e ética
das intervenções humanitárias,
sobre autoridade e novas formas
de imperialismo e, por fim, sobre
as implicações políticas do
humanitarismo militarizado.
Ana Clara de Souza18
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 54 - 62
Introdução
À primeira vista, os debates em torno das intervenções humanitárias, sejam eles de cunho
teórico ou empírico, parecem se resumir às contradições decorrentes da interação entre duas normas
internacionais em parte derivadas dessas duas narrativas: a norma de não intervenção nos assuntos
internos de um Estado, derivada de uma concepção westfaliana sobre a formação do Estado
moderno; e a(s) norma(s) de proteção e promoção de Direitos Humanos universais, baseada em
concepções modernas sobre humanidade. De acordo com Martha Finnemore (2008), essas
contradições são resultado de mudanças na estrutura normativa da política internacional, que
produzem novas definições sobre humanidade e novas expectativas em relação à atuação dos
governos nacionais em relação à sua população. Para a autora, estruturas normativas em mutação
moldam não apenas as percepções da comunidade internacional sobre o que constitui uma crise
humanitária, mas também as respostas apresentadas a elas, inclusive as militares. Uma vez que
põem em conflito diferentes normas fundamentais à sobrevivência da comunidade internacional
como a conhecemos – sejam elas a soberania, os direitos humanos ou a autodeterminação –, as
crises humanitárias colocam em pauta genuínos dilemas morais sobre que normas devem prevalecer
sobre as demais (Finnemore, 2008).
18
Mestranda do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, bolsita do CNPq.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
O objetivo do presente artigo é apresentar um panorama das discussões sobre moral, ética e
direito internacional que subjazem a literatura corrente de Relações Internacionais sobre
intervenções humanitárias. Pretende-se discutir a leitura tradicional derivada da contraposição entre
soberania e não intervenção para, posteriormente, explicitar de que maneira esse debate é
atravessado por discussões sobre autoridade e neoimperialismo colocadas à mesa por potências
emergentes do Sul Global. Por fim, oferecemos uma breve exposição sobre o posicionamento ético
de leituras teóricas pós-estruturalistas e pós-coloniais sobre intervenções humanitárias, que
procuram apontar as implicações políticas de um projeto global de tratar intervenções militares em
termos humanitários.
Entre humanos e soberanos
Kai Michael Kenkel (2012a) aponta para a existência de um debate contínuo entre duas
interpretações normativas sobre soberania, não intervenção e Direitos Humanos: uma que percebe
tanto a igualdade horizontal dos Estados – i.e., as normas internacionais de autodeterminação e não
intervenção – quanto o contrato vertical entre Estados e cidadãos como partes integrantes de uma
tensão inerente ao conceito de soberania; e outra que entende a soberania como constituída
exclusivamente pelo “componente externo horizontal da não intervenção e da inviolabilidade das
fronteiras” (Kenkel, 2012a, p. 18). Esse debate é sustentado por interpretações sobre as próprias
normas que dão base às Nações Unidas: por um lado, a determinação expressa da Carta da ONU,
que, em seu Artigo 2º, §4º, proscreve a seus Estados-membros o uso da força contra a integridade
territorial e a autonomia política de seus pares; e, por outro, a Declaração Universal de Direitos
Humanos (1948) e demais instrumentos normativos que levam adiante a agenda da organização de
proteção a direitos e garantias fundamentais. Nesse contexto, proliferam visões que entendem que, a
partir da difusão de normas e práticas relacionadas à promoção dos Direitos Humanos, associada à
transformação na própria concepção de humanidade levada adiante por acontecimentos históricos
como a abolição da escravidão e a descolonização, emergiram novas concepções de soberania que
desafiam as visões tradicionais sobre o Estado moderno westfaliano, como as conceituadas por
pluralistas e realistas das Relações Internacionais (Finnemore, 2008). Nas palavras de Koffi Annan,
Secretário-Geral das Nações Unidas entre 1997 e 2007, “qualquer evolução em nosso entendimento
sobre soberania estatal e individual será encarada, em alguns lugares, com desconfiança, ceticismo e
até mesmo hostilidade. Mas é uma evolução a qual devemos dar boas vindas” (Annan, 1999, sem
página – tradução livre).
Nicholas Wheeler (2004) argumenta que, no pós-Guerra Fria, estava em curso, de fato, o
desenvolvimento de uma norma internacional que protegesse civis ameaçados em contextos de
genocídio, assassinatos em massa e limpeza étnica. Para o autor, o ponto máximo de inflexão das
concepções internacionais sobre não intervenção em direção à noção de “soberania como
responsabilidade” vem com a operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)
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durante a Guerra do Kosovo, em 1999. Segundo Wheeler, após o início das atividades de
bombardeio da OTAN em Kosovo – sem que houvesse autorização expressa do Conselho de
Segurança das Nações Unidas (CSNU) para tal –, a maioria dos membros do CSNU rejeitou
resolução russa que pedia a interrupção da ação da OTAN, porque entendeu que a mesma se
justificava por questões humanitárias. De fato, quando analisamos a literatura contemporânea sobre
o tema, a operação da OTAN durante a Guerra do Kosovo parece ser paradigmática em demonstrar
a alegada inconsistência entre a legalidade – o que a Carta das Nações Unidas e demais
instrumentos normativos prescreveria ou proscreveria em relação ao uso da força em contexto
internacional – e a legitimidade – a pretensa evolução de uma norma ou um paradigma de atuação
sobre o uso da força em contextos de crise humanitária – das intervenções humanitárias.
Sendo assim, de acordo com Martha Finnemore, “o que há de novo sobre crises humanitárias
não é o fato dos assassinatos em massa, [mas] o quadro normativo através do qual o mundo vê esses
episódios” (Finnemore, 2008, p. 206 – tradução livre). O “horror da inação” (ICISS, 2001, p. 1)
derivado do fracasso em se prevenir o genocídio e os assassinatos em massa em Ruanda e Somália
contribuiu para que a comunidade internacional se engajasse na busca de práticas de intervenção
humanitária que não esbarrassem nas limitações impostas pelas normas de soberania e não
intervenção derivadas do sistema de Estados westfaliano. Durante a Guerra do Kosovo, conforme
argumenta Wheeler (2004), a comunidade internacional pareceu priorizar a proteção e a promoção
dos Direitos Humanos em detrimento da inviolabilidade de fronteiras, contribuindo para que se
conformasse um novo arcabouço normativo em torno da legalidade e da legitimidade de
intervenções em contextos de emergência humanitária.
Não obstante, para Finnemore, o principal ponto de tensão normativa em torno do tema de
intervenções humanitárias não vem tanto da contraposição entre intervenção e soberania, mas entre
intervenção e autodeterminação. Segundo a autora, a perspectiva ética liberal sobre
autodeterminação é ingênua ou, no pior dos casos, hipócrita, uma vez que torna invisível o fato de o
próprio processo de autodeterminação dos Estados ocidentais – aqueles que, hoje, pretendem-se
interventores em nome do humanitarismo – ter-se constituído através da violência. Essas
contradições deixam claro, para a autora, que as discussões sobre intervenções humanitárias não
deve tentar esconder os diversos dilemas morais que as subjazem, mas entender que a existência de
tensões éticas faz parte da tentativa de encontrar soluções pacíficas mais adequadas aos problemas
que se apresentam.
É em sentido semelhante que Aidan Hehir (2012) caminha quando diz que o verdadeiro
obstáculo à consolidação de uma norma de intervenção humanitária, sobretudo dentre os países em
desenvolvimento, vem da suposta falta de legitimidade com que ela é empregada. Entendida como
um ato unilateral, a intervenção humanitária encontra resistência entre Estados cujo passado recente
foi marcado pela colonização e que temem que o humanitarismo seja instrumentalizado em atos de
neoimperialismo. As normas de soberania, não intervenção e, em última instância,
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autodeterminação parecem ser, nesse contexto, fatores de proteção contra operações humanitárias
em nome do universalismo dos direitos humanos.
Nesse quadro, Hehir oferece uma contribuição diferenciada, uma vez que entende que a
aparente contradição entre as normas de não intervenção e de intervenção humanitária para a
proteção de Direitos Humanos deriva do fato de ambas as interpretações dividirem entre si um
entendimento equivocado do conceito de soberania, enxergando-a como incompatível com a
intervenção. Segundo o autor, a “imagem negativa” da soberania é uma caricatura que tem pouca
aplicabilidade no mundo real, em que intervenções, inclusive aquelas com pretensa motivação
humanitária, aconteceram historicamente a despeito de uma concepção absolutista do Estado
soberano. Para Hehir, a soberania é um conceito relativo de natureza mutável, que depende da
comunidade internacional e de fatores externos, como o direito internacional e as transformações na
natureza dos atores internacionais, para existir. Sendo assim, uma norma de intervenção não
necessariamente elimina ou se contrapõe à soberania como norma internacional, apenas altera o
entendimento da comunidade internacional sobre ela, como vem acontecendo costumeiramente na
história mundial, segundo ele.
Nesse sentido, para o autor, o obstáculo à consolidação de uma norma internacional de
intervenção humanitária é menos teórico e mais prático – deriva da capacidade da comunidade
internacional de construir um instrumento coletivo de decisão e execução de estratégias de
intervenção que seja legítimo aos olhos de todos. Nesse quadro, a soberania seria normativamente
rearticulada e passaria a ser entendida como condicional à aderência e ao respeito dos Estados ao
regime internacional de Direitos Humanos. Sendo assim, segundo Hehir (2012), o debate em torno
das intervenções humanitárias está relacionada à questão de autorização e, de modo mais
abrangente, de autoridade em relação a quem formula e executa suas práticas – é uma questão que
necessita, portanto, ser despolitizada, diz ele.
É com o objetivo de responder às demandas por delimitação das práticas da intervenção
humanitária que surge o conceito da Responsabilidade de Proteger (R2P), elaborado pela Comissão
Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS), em 2001. Emergindo em um contexto
histórico em que estava em voga o termo droit d’ingerence (Kenkel, 2012a), a R2P muda a
perspectiva do debate sobre intervenções do direito das grandes potências para o direito dos atores
afetados por crises humanitárias. Na esteira da intervenção da OTAN na Guerra do Kosovo, e dado
o amargor provocado pela inação da comunidade internacional diante do genocídio em Ruanda, a
R2P surge como tentativa de estabelecer parâmetros consensuais para a implementação de
estratégias de intervenção no contexto de graves violações aos Direitos Humanos (Hehir, 2012).
Nesse sentido, a R2P partia do princípio de que, dado que a responsabilidade de proteção dos
cidadãos reside primordialmente no Estado nacional, e uma vez que ela não seja cumprida – que o
Estado falhe em proteger sua população ou que seja ele mesmo o perpetrador de graves violações
dos Direitos Humanos de seus cidadãos –, a comunidade internacional tem uma responsabilidade
residual de intervir (Kenkel, 2012a). Em consonância com o argumento de Hehir (2012), a R2P
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avançava rumo a uma definição diferenciada de soberania, entendendo-a como uma
responsabilidade. Nesse sentido, o conceito de soberania como atributo westfaliano por excelência,
entendida como conceito absoluto que se contrapõe, inclusive, às normas internacionais de Direitos
Humanos, é deixada de lado em favor de um entendimento que a condiciona à garantia de que os
Estados nacionais protegeriam suas populações. Ao contrário da norma de Proteção de Civis (POC),
que operava em nível tático no contexto das operações de paz, a R2P pretendia ser um instrumento
eminentemente político para lidar com as incertezas e contradições do debate sobre intervenções
humanitárias. Embora não constituísse um conceito novo – inseria-se em um conjunto mais amplo
de tentativas de delimitação conceitual e prática das intervenções humanitárias –, a R2P foi capaz
de estabelecer um quadro em torno do qual os debates sobre intervenções humanitárias poderiam
orbitar a partir de então (Hehir, 2012). Para Luke Glanville (2010), o aspecto inédito da R2P residia
especificamente na rearticulação da intervenção para fins humanitários também como uma
responsabilidade, e não mais como direito (“de ingerência”), cujas origens podem ser identificadas
na Convenção das Nações Unidas contra o genocídio de 194819.
Segundo Aidan Hehir (2012), a absorção da R2P pela comunidade internacional foi feita de
maneira ambígua e condicionada a mudanças no princípio originalmente formulado pela ICISS. De
acordo com o autor, na Cúpula Mundial de 2005, o princípio da R2P foi incorporado ao relatório
final com escopo de atuação limitado e sem que se tocasse em uma das questões mais importantes
da discussão sobre intervenções militares para fins humanitários – a autoridade. Anos mais tarde,
esse princípio seria mais uma vez retrabalhado pelo debate da Assembleia Geral das Nações Unidas
de 2009 – que, com base no relatório “Implementing the Responsibility to Protect”, elaborado pelo
Secretário Geral da organização, deveria discutir os parágrafos 138 e 139 do relatório final da
Cúpula Mundial de 2005 –, mas teria, segundo Hehir, “influência prática mínima”: reiteraria
compromissos já existentes, falharia ao não abordar, mais uma vez, questões centrais de contestação
e não ofereceria nenhuma proposta legal ou institucional concreta.
O “humanitarismo oportunista”
De fato, dentro do debate sobre intervenções humanitárias, a discussão sobre mudança de
regime em contextos de atuação militar estrangeira é uma das mais controversas, e que se relaciona
diretamente com questões relativas à autoridade. No caso da Resolução 1973 do CSNU sobre a
Líbia – cuja intervenção teve como consequência última a dissolução do regime de Muammar alGaddafi (Welsh, 2011; Bellamy & Williams, 2011) –, a posição brasileira foi desfavorável e
justificada por sua visão de que o uso da força não é parte mandatória da responsabilidade de
proteger, que deve ser implementada de forma essencialmente pacífica (Kenkel, 2012b). Mais
explicitamente, o Brasil frisou sua preocupação com a possibilidade de a norma de POC ser
utilizada “como cortina de fumaça para intervenções ou mudanças de regimes” (CSNU, 2011a, p.
19
Em seu termo oficial, Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.
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11 – tradução livre). Endossada por outras potências emergentes como Rússia e África do Sul, a
posição brasileira evidencia ser a relação entre proteção de civis e manutenção ou mudança de
regime político um dos principais desafios a ser enfrentado pela comunidade internacional quando
da operacionalização da R2P (Bellamy & Williams, 2011). As contradições existentes entre o
posicionamento das potências ocidentais e dos países emergentes em torno da implementação da
R2P no caso da Líbia mostram, ainda, que esse debate está intimamente relacionado, em última
instância, à própria discussão sobre autoridade – quem define o que é a R2P, quais são suas funções
e como e em que ocasiões ela será colocada em prática.
Sendo assim, entram em disputa os próprios mecanismos de autoridade que são estabelecidos
para regular e decidir sobre intervenções militares de fins humanitários – sejam eles as Nações
Unidas, organizações regionais ou o próprio CSNU. Nos debates acadêmicos sobre intervenções
humanitárias, distintas respostas a essa questão emergem. Para Hehir (2012), a preocupação dos
países em desenvolvimento com uma autoridade neutra e independente depende necessariamente da
capacidade desses Estados de promover reformas no sistema das Nações Unidas. Já para Alex J.
Bellamy (2011), ela tem de ser desviada para o que realmente importa: a implementação efetiva das
decisões do CSNU, e não tanto o processo de decisão do Conselho em si. Sobre essa questão,
Ramesh Thakur (2011) oferece argumento interessante, uma vez que entende a própria delimitação
normativa da R2P como um potencial para que o “Norte” se sinta gradualmente constrangido a
implementar medidas unilaterais contra o “Sul”.
A posição brasileira no caso da Líbia nos sugere também que, se por um lado, motivações
morais e éticas são utilizadas para endossar posicionamentos favoráveis às intervenções
humanitárias, por outro, elas também são mobilizadas por atores que se posicionam de forma crítica
ao uso da força para fins humanitários. É nesse último quadro que se encaixa a proposição brasileira
de Responsabilidade ao Proteger (RwP), apresentada ao CSNU em novembro de 2011, meses
depois da intervenção na Líbia. Adotando um tom crítico ao uso indiscriminado da força no âmbito
das intervenções humanitárias, o documento chama a atenção para os efeitos negativos das
intervenções – o agravamento de conflitos, de ciclos de violência e da vulnerabilidade de
populações – e também questiona o uso da retórica da intervenção humanitária para o alcance de
objetivos outros, entre eles, a mudança de regime político. Nas palavras de Maria Luiza Ribeiro
Viotti, representante permanente do Brasil nas Nações Unidas:
Even when warranted on the grounds of justice, legality and legitimacy, military action
results in high human and material costs. That is why it is imperative to always value,
pursue and exhaust all diplomatic solutions to any given conflict. [...] The use of force must
produce as little violence and instability as possible and under no circunstance can it
generate more harm than it was authorized to prevent. (CSNU, 2011b, p. 2-3).
Nesse sentido, o posicionamento brasileiro se alimenta claramente de uma ética
consequencialista em relação a intervenções militares em casos de crise humanitária. De acordo
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com Eric A. Heinze (2009), a ética consequencialista parte do pressuposto de que avaliações morais
sobre determinada ação devem levar em consideração até que ponto suas consequências promovem
ou maximizam determinado valor ou bem. Para Heinze, o consequencialismo ético leva
necessariamente à restrição do escopo da ação para situações em que as perspectivas de impacto
positivo se mostram mais proeminentes, sobretudo em relação aos custos da inação – lógica
relativamente absorvida pelos “Seis Critérios de Intervenção Militar” da R2P. No entanto, o
posicionamento brasileiro é ligeiramente peculiar porque enfatiza a prioridade absoluta da resolução
de conflitos por meios pacíficos em relação ao uso da força – o que inclui, ainda, a
“responsabilidade de prevenir” como consta na R2P – e pede aos Estados, sobretudo as potências
ocidentais, responsabilidade ao empregá-la.
A ética para além do humanitarismo
Por fim, em âmbito teórico, questionamentos éticos às intervenções humanitárias também são
sistematizados, produzidos e reproduzidos por correntes teóricas como o pós-colonialismo e o pósestruturalismo. Em grande parte, essa literatura busca explicitar as consequências políticas e/ou
morais da articulação de discursos sobre humanitarismo e intervenções humanitárias, e a forma
como se reproduzem hierarquias e desigualdades que impactam na vida de atores e populações
marginalizadas para além das consequências materiais (mas também através delas) do uso da força.
Para Costas Douzinas (2007), por exemplo, a própria articulação entre militarismo e humanitarismo
através de discursos morais produz hierarquias entre identidades antagônicas, entre o “eu” e o
“outro”, entre o “salvador” e o “resgatado”, cujas consequências políticas são o apagamento e, por
consequência, o aprofundamento das relações desiguais de poder entre Norte e Sul globais.
Em sentido parecido, Vivienne Jabri (2007) argumenta que, na modernidade tardia,
determinadas práticas de guerra e violência – entre elas, as próprias intervenções humanitárias –
redefinem e rearticulam os limites do internacional, deslocando-os de suas dimensões territoriais e
políticas em direção à inscrição de fronteiras no corpo e na vida dos indivíduos entendidos como os
“outros”. Através de discursos e práticas cosmopolitas liberais, essas guerras produzem a violência
em nome da paz e subjugam e oprimem populações que pretendem “salvar”. É em nome do global e
do cosmopolita – articulado pelo neoliberalismo cosmopolita da modernidade tardia como
“humanitarismo” – que se reproduzem práticas biopolíticas de controle nessas novas zonas
fronteiriças, que são destituídas, justamente, de traços de humanidade. Nesse sentido, a guerra
“humanitária” tem menos a ver com motivações – obedece menos a uma lógica instrumentalista ou
humanitarista – e mais com a (re)constituição de identidades e diferenças (Jabri, 2007).
Entende-se, portanto, que o debate sobre intervenções humanitárias traz consigo mais tensões
e contradições que a dicotomia entre soberania e Direitos Humanos é capaz de dar conta. Para Jabri,
a própria judicialização do debate – “são as intervenções humanitárias legais ou ilegais perante o
Direito Internacional?” – é uma forma de despolitizar suas questões mais importantes, torná-las
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invisíveis diante de classificações arbitrárias sobre quem está “dentro” e “fora” da lei. Ao contrário
de teóricos como Aidan Hehir (2012), que vê na politização da discussão sobre intervenções
humanitárias uma ameaça à sua implantação, esses autores e autoras veem na politização uma
chance de mais vozes serem ouvidas. O que se conclui a partir disso é que questões sobre moral,
ética e legalidade são parte fundamental do debate contemporâneo sobre intervenções humanitárias.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
MONUSCO e Ilhas de Estabilidade: influência sobre a operacionalização da
proteção de civis nas missões de paz da ONU
A proposta do presente
artigo é explanar como o uso
legítimo da força aplicado em
ações ofensivas pela Força da
Brigada de Intervenção na
República
Democrática
do
Congo,
autorizado
pela
Resolução 2098 do Conselho de
Segurança, levou à emergência
do conceito de “ilhas de
estabilidade” e modificou a
operacionalização da proteção
de civis.
Graziene Carneiro de Souza 20
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 63 - 77
Introdução
A Resolução 2098 do Conselho de Segurança da ONU autorizou a criação da Força da
Brigada de Intervenção (FIB na sigla em inglês) da Missão de Estabilização das Nações Unidas na
República Democrática do Congo - MONUSCO, e, pela primeira vez na história das operações de
paz sob bandeira desta organização, permitiu o uso da força para neutralizar grupos armados.
O engajamento ativo da FIB permitiu que os aspectos político, militar, e humanitário da
MONUSCO fossem conjuntamente adaptados, influenciando a operacionalização da proteção de
civis (PoC na sigla em inglês), e corroborando para a elaboração do conceito de “ilhas de
estabilidade”. O uso legítimo da força aplicado em ações ofensivas pela Força da Brigada de
Intervenção na República Democrática do Congo (RDC) modificou a operacionalização da proteção
de civis. Se anteriormente os capacetes azuis assistiam estáticos à violação dos direitos humanos,
agindo de forma reativa na RDC, a FIB passou a empregar ações robustas preemptivamente 21 a fim
de evitar estas violações (BRAGA, 2010).
20
Mestre em Estudos Estratégicos em Defesa e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Consultora
do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA).
21
Operações de paz robustas são as missões de paz que realizam operações militares ofensivas.
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Neste contexto, o presente artigo tem o objetivo de analisar como a proteção de civis tem
sua implementação modificada por meio da Resolução 2098, por sua Força da Brigada de
Intervenção e pela autorização do uso da força. Com este propósito, este trabalho se dividirá em três
partes: primeiramente, esboçará as principais características das três gerações de operações de paz;
em seguida, exporá o conceito das “ilhas de estabilidade” e sua influência sobre a operacionalização
da proteção de civis; e, posteriormente, apresentará algumas das principais críticas a esse novo
conceito.
A evolução das operações de paz da ONU e a origem do conceito de segurança humana
e de proteção de civis
Desde a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, as Resoluções do Conselho
de Segurança, respaldadas nos Capítulos VI, VII e VIII de sua Carta, legitimaram a atuação de
forças militares multilaterais22 na solução pacífica ou coercitiva das crises e conflitos. As operações
de paz foram, então, empregadas como instrumento para ações reativas da comunidade
internacional, representada pela ONU, face às ameaças à paz e à segurança internacionais.
A partir de suas características de implementação, as operações de paz sob égide da ONU
foram divididas em três fases. O período entre 1956 e 1987 foi assinalado com o auge de operações
de manutenção da paz definidas como “clássicas”, “tradicionais” ou de “primeira geração” 23
(TAYLOR, CURTIS, 2006: 412), a maioria delas com mandatos que objetivavam o monitoramento
de cessar-fogos, tréguas e armistícios, o patrulhamento de fronteiras e zonas de exclusão militar, o
apoio à retirada de tropas e o acompanhamento de negociações para a assinatura de tratados de paz
definitivos. Após a Guerra Fria, as operações de manutenção da paz foram denominadas como de
“segunda geração” 24 (MALAN, 1998), o que, de acordo com Mark Malan (1998: 2), significa
operações de paz desenvolvidas em associação ao fim dos conflitos remanescentes da Guerra Fria,
em que a ONU, ou outra organização internacional, buscava a negociação de soluções políticas
baseadas no compromisso mútuo dos adversários 25(BARNET, 1995: 415).
22
O caráter multilateral significa a participação ativa de países contribuintes de tropas para as operações, já que a ONU
não dispõe de força militar própria.
23
As operações de manutenção da paz tradicionais envolvem o estabelecimento de um grupo de observadores ou de
uma força de paz militar, sob o comando da ONU, que deve ser desdobrada e disposta entre as partes de um conflito,
normalmente após um cessar fogo.
24
Exemplos inequívocos da concepção dessas operações de paz ocorreram na Namíbia (UNTAG), no Camboja
(UNTAC), em Angola (UNAVEM I e II), em El Salvador (ONUSAL) e em Moçambique (ONUMOZ).
25
Segundo Michael Barnett, as operações de manutenção da paz ou peacekeeping operations e as operações de
imposição da paz ou peace enforcement, constituem a segunda fase das operações de paz, visto que elas consideram a
“segurança interna” e a “ordem doméstica” relevantes, também, para a manutenção da segurança regional e
internacional. Barnett afirma que “se a maioria das operações de paz antes de 1988 diz respeito à transição da
descolonização à soberania jurídica, quase todas, desde então, diz respeito à transição da guerra civil para a sociedade
civil, refletindo uma mudança na conceituação de como melhor encorajar um sistema de paz estável e os meios
adequados para realizá-lo”.
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A partir da segunda geração, a ONU passou a se envolver no término de conflitos internos,
com a atribuição de tarefas multidimensionais às tropas mantenedoras da paz, que normalmente
incluíam atividades de: separação de combatentes; desarmamento de forças irregulares;
desmobilização e transformação de forças regulares e irregulares em um exército unificado;
assistência para a reintegração de ex-combatentes na sociedade civil; estabelecimento de novos
sistemas de policiamento ou instituições de polícia; e monitoramento de eleições para novos
governos.
Em 1992, Boutros-Ghali classificou as missões aprovadas sob o Capítulo VII como a
“terceira geração” 26 das operações de paz, multilaterais e multidimensionais, 27 as quais envolviam
a proteção de civis e mandatos diferenciados, relacionados às características das novas guerras.
Caracterizados pelas dificuldades das distinções tradicionais entre vítima e agressor, público e
privado, crime de guerra e delito, os novos conflitos deram origem a impasses relacionados aos três
princípios norteadores das operações de paz; o consentimento das partes, a
imparcialidade/neutralidade, e o uso da força apenas em caráter excepcional.
Nas últimas décadas, a “terceira geração” de operações de paz representadas pelo consenso
nas Nações Unidas tornou-se a principal resposta às violações sistemáticas dos direitos humanos e à
ameaça à paz e à segurança internacionais 28. O esforço político de prevenir catástrofes
humanitárias, no intuito de proteger o indivíduo, dentro da recente compreensão de que o ser
humano e os direitos humanos devem ser valorizados na política internacional, tornou-se
compromisso no cenário mundial (WEISS, 2004).
Estas inquietações, juntamente às contribuições herdadas dos debates da década de 1990, em
relação à segurança humana formulada por Bernard Kouchner e Tony Blair, enfatizaram este
compromisso, com discussões a respeito de como e quando a comunidade internacional deveria
intervir e usar a força em casos de violação sistemática dos direitos humanos 29. O parágrafo quinto
da Resolução 1296 de 2000 foi além, anotando que:
26
Disponível em: http://www.un-documents.net/a47-277.htm. Acesso em 02 out. 2014.
As Nações Unidas definem missões “multidimensionais,” aquelas operações “criadas para assegurar a implementação
de abrangentes acordos de paz e ajudar a estabelecer as bases para uma paz sustentável.” Diferente das missões
“tradicionais,” nas quais envolvem somente tarefas militares, as missões multidimensionais são operações complexas
que abrangem desde o aparato militar até organizações civis para “ajudar a instituir governos, monitorar o cumprimento
dos direitos humanos, assegurar reformas setoriais, até o desarmamento, desmobilização e reintegração de excombatentes.” Disponível em: http://www.peacekeepingbestpractices.unlb.org/Pbps/library/Handbook%20on%20UN
%20PKOs.pdf. Acesso em 3 out. 2014.
28
Em 1994, Bouttros Bouttros-Ghali anunciou que as operações de manutenção da paz se tornariam prioridade das
Nações Unidas, com aproximadamente 70.000 tropas em 17 operações em todo mundo. Em 2013, o DPKO afirmou que
117 países contribuíam com tropas, com um total de 97.157 pessoas, em 16 operações de paz. Disponível em:
http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/contributors_archive.shtml. Acesso em 05 out. 2014.
29
“Em janeiro de 2008, 119 países estavam contribuindo com forças militares e policiais para as operações de paz da
ONU.”
27
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
(...) o ataque deliberado às populações civis ou outras pessoas protegidas e o cometimento
de violações sistemáticas, flagrantes e generalizadas do direito internacional humanitário e
de direitos humanos em situações de conflito armado podem constituir uma ameaça à paz e
à segurança internacionais... prontidão a considerar tais situações e, sempre que necessário,
adotar medidas adequadas.30
O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD ou UNDP em inglês) em seu
relatório intitulado Human Development Report (Relatório de Desenvolvimento Humano), de 1994,
destacou as políticas de segurança afastadas do conceito tradicional de “segurança pelas armas”
para concentrar a atenção na segurança humana. Duas noções de segurança humana foram
propostas: a primeira enfatizou a proteção contra a violência física (“freedom from fear”); a
segunda, uma concepção mais geral relacionada à possibilidade de ameaça à dignidade humana
(adicionando “freedom from want”), considerou a segurança contra pobreza e a ameaça de guerra
ou conflito violento, e a sobrevivência da população na qual cada indivíduo deve ser respeitado. O
relatório adicionou, ainda, que a “insegurança humana é a violação dos direitos humanos
perpetrados por Estados ou atores não estatais em casos de guerra ou independente dela”.31
A implementação do conceito de segurança humana em operações de paz é vista na
aplicação da proteção de civis. A definição de proteção de civis ainda não foi determinada pelo
Conselho de Segurança. Contudo, em Setembro de 1999, o Conselho de Segurança adotou a
Resolução 1265, na qual expressou a vontade da comunidade internacional em responder a
situações de conflito armado, onde civis são alvos ou a assistência humanitária está sendo obstruída
deliberadamente, considerando a adotar medidas apropriadas. 32 A Resolução, igualmente, alertou os
Estados a ratificarem ameaças aos direitos humanos e processarem aqueles responsáveis por
genocídio, crimes contra a humanidade e sérias violações à lei humanitária internacional.
Finalmente, o Conselho expressou sua vontade em explorar o mandato das operações de paz e
reestruturar o conceito sobre a proteção de civis.
O Centro Global para a Responsabilidade de Proteger refere-se à proteção de civis como
medidas que podem ser usadas para proteger a segurança, a dignidade, e a integridade de todos os
seres humanos em tempos de guerra, nas quais estão enraizadas em obrigações da lei humanitária
internacional (LHI), da lei sobre os refugiados, e da lei dos direitos humanos. 33
Em Abril de 2000, o relatório de Kofi Annan sobre a proteção de civis focou em seus
aspectos operacionais a fim de melhorar a capacidade das forças de operações de paz para a
proteção de civis. De acordo com nota conceitual do Departamento de Operações de Paz (DPKO) e
30
Traduções livre direto do texto em inglês.
Disponível em: http://www.un-documents.net/a47-277.htm. Acesso em 02 out. 2014.
32
Maiores descrições sobre a emergência do conceito da Proteção de Civis no Conselho de Segurança estão disponíveis no
Relatório do Conselho de Segurança intitulado “Protection of Civilians,” N. 2, 14 de out. de 2008.
33
Ver também Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas sobre a Proteção de Civis em conflito armado.
(Security Council document S/2007/643). 28 de out. de 2007. Parágrafo 11. Disponível em:
http://globalsolutions.org/files/public/documents/CivPro_R2P_POC.pdf. Acesso em 24 fev. 2012.
31
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do Departamento de Apoio Logístico (DFS) da ONU, o conceito de Proteção de Civis perdurará por
longo tempo, baseado em lições aprendidas e que proverão estratégias gerais para sua aplicação.
Adicionalmente, a nota conceitual afirmou que a operacionalização da proteção de civis nas
operações de paz está organizada seguindo três linhas de atuação:
1) Proteger por meio de processo político;
2) Prover proteção da violência física; e
3) Estabelecer ambiente protegido.34
Na concepção da ONU, apesar de a agenda de proteção de civis requerer ações militares
coordenadas e concentradas, sua operacionalização precisa ser integrada em um plano de conduta
conjunto com organizações não governamentais e outras agências das Nações Unidas (NAÇÕES
UNIDAS, 2008: 23). Ela deve englobar grande variedade de atividades, tanto relacionadas ao
Conselho de Segurança, em medidas acordadas com os Capítulos VI, VII, e VIII da Carta das
Nações Unidas, quanto atividades relacionadas às outras instituições, envolvendo diversos atores
governamentais, grupos armados organizados, instituições das Nações Unidas, e ONGs.
A fim de promover a proteção de civis sob ameaça de violência física, as operações de paz
possuem mandato específico baseado nas características de cada caso. Em cada parte do globo, as
organizações regionais, juntamente com órgãos especializados das Nações Unidas, acordam e
estabelecem planos e políticas para as operações de paz, fundamentados na lei internacional
endossada pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança 35.
Apesar da compreensão do conceito de proteção de civis permanecer a mesma, no caso da
MONUSCO, a criação da FIB e a autorização do uso da força deram início a uma nova conduta na
proteção da violência física, conforme evidenciado abaixo.
O caso da MONUSCO: o ineditismo da Força de Brigada de Intervenção na proteção
de civis
Ao longo do processo de evolução das operações de paz, seus três princípios norteadores
(consenso, imparcialidade e uso mínimo da força) foram adaptados às necessidades de respostas
imediatas às novas ameaças e conflitos. Neste contexto, atuações da ONU como no caso do Haiti
(1990-1997), da Somália (1992-1995), da ex-Iugoslávia (1992-1995), de Ruanda (1993-1996) e de
Serra Leoa (1998-2005), apesar de planejadas para responder a distintos contextos locais, são
exemplos de missões que inicialmente possuíam um mandato multidimensional não coercitivo, e
que, com a escalada da violência, incorporaram elementos impositivos para tentar superar a
34
Disponível em: http://www.peacekeeping.org.uk/wp-content/uploads/2013/02/100129-DPKO-DFS-POC-Operational
-Concept.pdf. Acesso em 01 out. 2014.
35
Isto resultou na necessidade do Secretário-Geral em relatar regularmente a proteção de civis em conflito armado. O
Conselho de Segurança desde então adotou quatro resoluções especificamente observando a proteção de civis (1265,
1296, 1674, 1738). Resoluções sobre mulheres (1325), crianças (1612), a proteção para especialistas humanitários
(1502), prevenção de conflitos (1625), e exploração sexual (1820) também incluem proteção de civis em situação de
conflito.
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fragilidade de situações de recrudescimento de agressões, crimes contra a humanidade e abuso dos
direitos humanos.
O caso mais recente de inovação e resposta inédita do Conselho de Segurança ocorreu em
2013, por meio da Resolução 2098, a qual estabeleceu a criação da Força da Brigada de Intervenção
da MONUSCO com mandato para realizar, inclusive, operações ofensivas.
Devido aos ataques a civis, às contínuas ondas de violência, às crises humanitárias, às
graves violações dos direitos humanos, principalmente, aquelas relacionadas à natureza sexual e de
gênero, implementadas por grupos armados nacionais e estrangeiros na República Democrática do
Congo (RDC), a Resolução 2098 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 28 de março de
2013, na tentativa de sublinhar as causas do conflito e garantir uma paz sustentável tanto no país
quanto na região, criou a Força da Brigada de Intervenção (Force Intervention Brigade – FIB) 36.
A MONUSCO foi autorizada a usar todos os meios necessários para alcançar e
operacionalizar seu mandato, com destaque, entre outras coisas, para a proteção de civis, do pessoal
humanitário e de agentes defensores dos direitos humanos, sob iminente ameaça de violência física,
assim como para apoiar as FARDC (Forças Armadas da República Democrática do Congo) e o
Governo da RDC nos esforços de estabilização e consolidação da paz.
A resolução 2098 condenou fortemente o Movimento 23 de Março (M23), as Forças
Democráticas para Libertação de Ruanda (RDLR), o Exército de Resistência do Senhor (LRA) e
“todos os outros grupos armados e suas contínuas violações e abusos aos direitos humanos” 37. A
FIB consiste de: três batalhões de infantaria, um de artilharia, uma força especial e uma companhia
de reconhecimento com sede em Goma, comandada diretamente pelo Comandante da Força da
MONUSCO, e tem a responsabilidade de neutralizar grupos armados e o objetivo de contribuir na
redução de ameaças postas pelos grupos armados à autoridade do Estado e à segurança de civis no
leste da RDC.38 Frente ao cenário daquela operação, atribui-se como mandato da FIB, a
responsabilidade de:
realizar operações ofensivas, unilateralmente ou em conjunto com as FARDC, de forma
robusta, highlymobile e versátil e em estreita conformidade com o direito internacional,
incluindo o direito internacional humanitário (...) para evitar a expansão de todos os grupos
armados, para neutralizá-los, e para desarmá-los (...).39
36
(S/2013/131) Resolução do Conselho de Segurança. Peace, Security and Cooperation Framework for the Democratic
Republic of the Congo and the region. 5 mar. 2013. Parágrafo quinto.
37
(S/RES/2098) Resolução do Conselho de Segurança sobre a situação na República Democrática do Congo. 28 mar.
2013.
38
Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monusco/background.shtml. Acesso em 20 jun. 2014.
39
“Carry out offensive operations, either unilaterally or jointly with the FARDC, in a robust, highlymobile and
versatile manner and in strict compliance with international law, including international humanitarian law (...) to
prevent the expansion of all armed groups, neutralize the groups, and to disarm them (…).” Tradução livre direto do
texto em inglês. (S/RES/2098) Resolução do Conselho de Segurança sobre a situação na República Democrática do
Congo. 28 de mar. de 2013. Parágrafo nono.
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A Força da Brigada de Intervenção é o primeiro núcleo de combate ofensivo criado pelo
Conselho de Segurança para operacionalizar ações militares contra grupos armados na RDC.
Alguns autores consideram que na história das operações de paz sob a égide das Nações Unidas, a
presença de forças com este tipo de conformação e mandato foi utilizada nos casos da Somália e
Haiti40 (BLYTH, 2013). Contudo, de acordo com Priscila Fett, os dois casos “não servem de base
comparativa” uma vez que ambos representam o modelo de missão de estabilização, não sendo
“adequados para fazer frente aos níveis de violência encontrados no país africano” (FETT, 2013).
No Departamento de Operações de Manutenção da Paz do Secretariado das Nações
Unidas, o debate sobre operações robustas não é recente. Ele permeia sobre a legitimidade da ação
ofensiva e o perigo do limite do uso da força exercido por operações multinacionais. 41
No caso da MONUSCO a discussão remete à relação entre os três princípios norteadores
das operações de paz e à implementação do mandato da Força da Brigada de Intervenção. Na
Resolução 2098, inicialmente, a Brigada de Intervenção foi autorizada sob uma base excepcional,
sem criar precedente ou qualquer prejuízo que discordasse dos princípios das operações de paz da
ONU.
De acordo com a Capstone Doctrine42 das Nações Unidas, as operações de paz são
operacionalizadas com o consentimento das principais Partes do conflito (Nações Unidas, 2008:31).
Na República Democrática do Congo, a MONUSCO obteve consentimento do Governo congolês,
entretanto, a outra parte do conflito, a saber, os grupos armados ilegais, foram considerados a
principal ameaça à segurança da população. Neste contexto, não se fazia conveniente buscar
consentimento uma vez que aqueles grupos armados ilegais eram a parte “inimiga”.
Elucidada naquele mesmo documento, a imparcialidade significa que o mandato deve ser
implementado sem favorecer ou prejudicar qualquer das partes. Na MONUSCO, o princípio da
imparcialidade/neutralidade foi esvaziado quando se identificou as Partes do conflito e se decidiu
“autorizar a FIB a usar todos os meios necessários para alcançar e operacionalizar seu mandato,”
apoiando a soberania do Estado e o Governo da RDC nos esforços de estabilização e consolidação
da paz.
A própria criação da Força da Brigada de Intervenção é contra o princípio mais
controverso das operações de paz, o uso da força. O legítimo uso da força na República
Democrática do Congo em ações ofensivas unilaterais ou em conjunto com as FARDC, de modo
40
Disponível em: http://theglobalobservatory.org/analysis/475-too-risk-averse-un-peace-keepers-in-the-dre-get-newmandate-and-more-chanllenges.html. Acesso em 21 jun. 2014.
41
Disponível em: http://www.r2pasiapacific.org/docs/R2P%20Ideas%20in%20Brief/UN_Peace_Operations_and_
All_Necessary_Means.pdf. Acesso em 4 jul. 2014.
42
A Capstone Doctrine é um documento do Departamento de Operações de Paz da ONU, produzido em 2008, que
contém os princípios e as linhas gerais sobre as operações de paz da ONU. Disponível em:
http://pbpu.unlb.org/pbps/library/capstone_doctrine_eng.pdf Acesso em 26 jul. 2014.
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robusto e versátil para neutralizar grupos armados, ocasiona mudanças na compreensão destes três
pilares.
O princípio do não-uso da força, exceto em autodefesa, data do primeiro desdobramento de
capacetes azuis armados das Nações Unidas, em 1956. Entretanto, ao longo da evolução das
operações de paz, as operações de manutenção de paz, como mencionado acima, passaram a
empregar, pontualmente, o uso da força, como no Congo, entre 1960 e 1964, na BósniaHerzegovina, no período de 1992 a 1995, na Somália entre 1993 e 1995, e, recentemente, no Haiti
entre 2007 e 2009. Apesar de seguirem modelo de missão de estabilização e não possuírem os
mesmos níveis de violência encontrados na RDC, o Conselho de Segurança permitiu o uso da força
limitado naquelas operações, em consonância com o princípio da autodefesa.
Na República Democrática do Congo, o Conselho de Segurança percebeu a dificuldade de
seu componente militar em antecipar-se às ameaças e agir pró-ativamente a fim de reduzir
vulnerabilidades e dissuadir os grupos armados. Destarte, mais uma vez, a necessidade de
atualização, adaptação e evolução para realizar a proteção efetiva de civis foi concretizada na FIB.
Constituída de 3.069 militares da África do Sul, Maláui e Tanzânia, o mandato da Força da
Brigada de Intervenção modificou a implementação da proteção de civis. Se anteriormente, os
capacetes azuis assistiam estáticos aos abusos dos direitos humanos, à violência sexual, e aos crimes
contra a humanidade na RDC, a FIB passou a desempenhar ações preemptivas com o propósito de
evitar tais violações. As ações ofensivas preemptivas embasadas em dados da inteligência e de
recursos tecnológicos, usados pela primeira vez em operações de paz, como os drones, permitiram
resultados positivos na proteção de civis.
De acordo com o Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas (Special
Representative of the Secretary General – SRSG), Martin Kobler, em sua Declaração “Building on
the momentum” para o Conselho de Segurança, em 14 de março de 2014, muito foi realizado. A
derrota do Movimento 23 de Março – M23, as operações conjuntas contra as Forças democráticas
de liberação de Ruanda – FDLR e as Forças Democráticas Aliadas – ADF, e a volta da segurança
aos territórios liberados têm contribuído para a emergência das “ilhas de estabilidades,” (islands of
stability) com a intenção de gradualmente restabelecer a autoridade Estatal no leste da RDC. 43
As ações militares ofensivas desempenhadas pela FIB permitiram que a proteção de civis
tivesse uma nova abordagem. Apesar de a MONUSCO operacionalizar a proteção de civis dentro
de um novo contexto, a Missão segue as linhas de atuação do DPKO, protegendo por meio de
processo político; provendo proteção da violência física; e, estabelecendo ambiente protegido à
população civil.
O conceito de “ilhas de estabilidade” foi criado por Martin Kobler, com o propósito de
concentrar os esforços militares, políticos e humanitários em uma determinada área, baseando-se
43
Disponível em: http://monusco.unmissions.org/Portals/monuc/Speeches/140314%20Statement%20of%20SRSG%20
Martin%20Kobler%20to%20the%20Security%20Council%20-20March%202014%20(%20version%20%20 W%20Eng
).pdf. Acesso em 10 set. 2014.
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nas prioridades da MONUSCO: primeiramente, a proteção e a segurança dos civis; segundo, a
estabilização das áreas afetadas pelo conflito; e, terceiro, o apoio ao processo de reforma e
implementação da paz, da segurança e do quadro de cooperação.
As “ilhas de estabilidade” são um processo, iniciado pela ação robusta do componente
militar. Nesta primeira etapa, a proteção de civis está relacionada à proteção física do civil,
implementada por meio de ações robustas da FIB e não somente pela presença dos capacetes azuis.
A ação militar dissuade os grupos armados e libera a área dominada, permitindo o retorno da
população civil e o restabelecimento da autoridade Estatal, apoiados por organizações nãogovernamentais, agências das Nações Unidas e instituições que atuam na reconstrução da paz.
Conforme Martin Kobler, o objetivo geral das “ilhas de estabilidade” é evitar a recaída imediata das
comunidades envolvidas em um ciclo de violência depois que grupos armados liberaram uma
determinada área, devido às operações robustas ou negociações da FIB e/ou das FARDC. De acordo
com o SRSG, “a proteção robusta e a estabilidade duramente conquistada são a base para construir
a paz”.44
Na RDC, após definição da causa do conflito, da identificação das partes e da ameaça, em
particular, a ação robusta contra os grupos armados possibilitou o início do retorno da autoridade
Estatal àquelas áreas anteriormente dominadas. É o caso de Kiwanja-Rutshuru, onde sucederam
avanços na implementação de unidades policiais apoiadas pela UNPOL (Polícia das Nações
Unidas), no retorno da administração territorial e de servidores civis, na reabilitação da justiça, da
polícia, e dos edifícios da administração, e na reabertura da prisão da cidade após treinamento de
seu pessoal pela MONUSCO.
A transformação da MONUSCO em uma missão de campo fez com que sua sede,
anteriormente em Kinshasa, fosse transferida para o leste, na cidade de Goma, na tentativa de
reforçar o apoio às operações naquela parte do país. O estabelecimento da presença permanente de
pessoal civil da ONU nas áreas mais atingidas, como nas cidades de Rutshuru, Masisi e Walikale,
confirma a reconfiguração da interpretação do mandato da MONUSCO e sua influência sobre a
operacionalização da proteção de civis.
O esforço conjunto em todo o processo foi mencionado por Martin Kobler. Segundo o
SRSG, “o uso da força sozinho não alcança resultados sustentáveis se não embutido em um quadro
político.” Conjuntamente acertados, bem definidos no lema da Missão – “Um Mandato, Uma
missão, Uma força” (“One Mandate, One mission, One force”) – os aspectos políticos, militares, e
humanitários, concentram esforços em dinâmica única. A atuação política da MONUSCO
empenha-se na busca de parcerias na comunidade internacional, de maior legitimidade e apoio do
Conselho de Segurança, e de aproximação com o Governo da RDC, na tentativa de coordenar,
principalmente, a reforma do setor de segurança, o processo de DDR e DDRRR, e a preparação de
44
Disponível em: http://monusco.unmissions.org/Portals/monuc/Speeches/140314%20 Statement%20of%20SRSG
%20Martin%20Kobler%20to%20the%20Security%20Council%20-%20March%202014%20(%20version%20%20W%
20Eng).pdf. Acesso em 10 set. 2014.
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eleições e estabilização. O componente militar empenha-se em ações conjuntas com as FARDC a
fim de agir prontamente e garantir a segurança e a proteção de civis. Já o elemento humanitário
emprega suas tarefas, principalmente, na entrega de serviços à população, relacionados aos direitos
humanos, à violência sexual, à pobreza, à educação, e à saúde, com projetos de impacto imediato
(Quick Impact Project – QIP).
“Ilhas de Estabilidade”: principais críticas e observações
Desde que o SRSG, Martin Kobler, lançou o conceito de “ilhas de estabilidade,” muitas
críticas se opuseram à compreensão do mesmo. As principais observações remetem à relação civilmilitar, à vinculação do pessoal humanitário ao aparato militar da MONUSCO, ao restabelecimento
da autoridade Estatal, ao limitado contingente e capacidade da FIB, e à dificuldade de realização do
processo de DDR e DDRRR.
Mais de quinhentas agências humanitárias operam na província de North Kivu. De acordo
com Michelle Brown e Michael Boyce, dentro do contexto da implementação das “ilhas de
estabilidade” na RDC, muitas recriminam a falta de articulação clara do conceito. Elas temem sua
vinculação à estratégia militar da MONUSCO contra os grupos armados, defendendo que sua
associação com a Missão poderia colocar humanitários sob risco de violência ou ter suas operações
obstruídas, particularmente, dado que a MONUSCO é uma missão estruturalmente integrada 45
(BROWN, BOYCE, 2014).
Apesar de temerem a associação com a MONUSCO, nenhuma agressão às agências
humanitárias foi reportada. Todavia, esta crença, de fato, dificulta a cooperação civil-militar na
condução da proteção de civis e na reconstrução da paz.
Em entrevista com o Coordenador Geral da Sede da MONUSCO em North Kivu (North
Kivu Head of Office), Ray Torres confirmou seu apoio ao conceito de “ilhas de estabilidade,”
sublinhando que a MONUSCO marcará a história das operações de paz, por inovar sua
implementação e por ser a primeira vitória militar das Nações Unidas.
A MONUSCO tem 13 sessões civis, incluindo desde direitos humanos às relações
políticas e ao vírus da imunodeficiência humana (HIV na sigla em inglês). De acordo com o
Coordenador Geral, após a criação das “ilhas de estabilidade,” o trabalho destas sessões se
transformou, focalizando a presença permanente de civis da ONU em campo. Diariamente,
servidores da ONU passaram a acompanhar o trabalho daqueles que receberam treinamento da
MONUSCO, analisando se estão de acordo com o padrão solicitado pelas Nações Unidas e se estão
suficientemente qualificados para realizar suas tarefas. Torres sublinhou, ainda, que a nova
abordagem deixou de se basear somente no número de pessoas treinadas (“input of training”) para
45
Disponível em: http://refugeesinternational.org/policy/field-report/dr-congo-north-kivu%E2%80%99s-long-rockyroad-stability. Acesso em 18 set. 2014.
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concentrar-se na entrega de serviços (“delivery of service”), permitindo maiores garantias de
estabilidade e a não retomada do conflito.
Em relação ao medo de associação de organizações não governamentais e mesmo das
agências humanitária à MONUSCO, Ray Torres assegurou que ele é causado pela falta de
experiência (“lack of experience”) e de análises aprofundadas (“indepth analisis”) sobre a situação
na RDC. Ainda assim, o Coordenador-Geral admitiu a dificuldade de relacionamento entre
operações de paz e agências humanitárias e da distinção entre elas, já que trabalham conjuntamente,
e, devido a recente criação da FIB, observou que o pessoal humanitário deveria tentar se manter
distante do contingente militar para não ser percebido como parte do conflito. Contudo, reforçou
que no caso da RDC, a imparcialidade é uma ilusão.46
Já Christoph Vogel mencionou o perigo da “noção de governança sem governo”,
denominando as “ilhas de estabilidade” como “swamps of insecurity” relacionados à falta de
governança Estatal. O autor alertou sobre o risco político e operacional da MONUSCO restabelecer
a autoridade em partes nas províncias Kivu, com e para o Governo congolês, acrescentando, que
isto é um desafio paradoxal, uma vez que o próprio exército congolês é uma das várias forças
abusivas no país. As implicações políticas se referem à segregação de prioridades; enquanto
algumas áreas serão consideradas importantes ou estratégicas, outras serão negligenciadas. O maior
perigo político, entretanto, está no estabelecimento das “ilhas de estabilidade,” visto que as áreas
próximas serão passíveis de falta de estabilidade, contrariamente à ilha, como, de acordo com o
autor, nos casos das margens de Walikale e Shabunda. Operacionalmente, Vogel reiterou a
dificuldade da MONUSCO em acessar certas áreas devido ao limitado pessoal militar e meios
logísticos da FIB. Neste contexto, o autor afirmou que estabelecer “ilhas de estabilidade” pode se
tornar mera securitização de áreas urbanas ou requerer, a nível local, investimentos massivos
adicionais de reconstrução da paz (VOGEL, 2014).
Os programas de DDR e DDRRR sofrem, igualmente, desaprovação. Os números de
combatentes desmobilizados superam 2.500 (e mais de 3.000 dependentes) de mais de 20 grupos
armados instalados na província de North Kivu. Todavia, a MONUSCO tem ainda dezenas de
outros grupos armados para desmobilizar, especialmente, aqueles baseados nos vizinhos Uganda e
Ruanda. O recém-criado processo de DDR ainda não iniciou suas tarefas na RDC, e o programa de
DDRRR enfrenta dificuldades, mantendo dezenas de combatentes estrangeiros desmobilizados
aguardando transferência para os campos designados. Christopher Vogel reiterou que se esforços
conjuntos sobre DDR não ocorrerem em breve, como em exemplos prévios, os desmobilizados
retornarão às florestas e aqueles que ainda não participaram do processo não estarão dispostos a
cooperar.
46
Entrevista conduzida com o Coordenador Geral da Sede da MONUSCO em North Kivu (North Kivu Head of Office),
Ray Torres, durante visita à MONUSCO, no dia 3 de setembro de 2014, em Goma, North Kivo, República Democrática
do Congo.
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Apesar das ações robustas não terem causado efeito colateral sobre o aspecto humanitário e
de sua influência sobre a condução da proteção de civis, seu mandato tem gerado discussões acerca
de sua duplicação. Ela é uma missão peculiar, não somente por usar a força contra grupos armados,
mas, também, pela forma como é coordenada.
O modo como o mandato da MONUSCO é interpretado, tornou-se, se não, o fator mais
importante, muito influente sobre seus resultados. O SRSG, Martin Kobler, o Comandante da Força
Militar, General-de-Divisão Carlos Alberto dos Santos Cruz e o Coordenador Humanitário Adjunto
(Deputy Special Representative of the Secretary-General and UN Resident Coordinator,
Humanitarian Coordinator, and Resident Representative of UNDP), Moustapha Soumaré,
juntamente aos outros coordenadores da Missão, sistematizaram uma interpretação concisa e coesa
nos três aspectos da operação de paz.
A interpretação do mandato pelos líderes da MONUSCO diversificou a proteção de civis
perante o uso da força. No contexto da RDC, o conceito de “ilhas de estabilidade” pôde ser criado
devido aos acertos políticos entre a MONUSCO e o governo congolês naquela ocasião específica. A
identificação da ameaça permitiu o estabelecimento de objetivos, a decisão de apoiar o governo
congolês possibilitou que estes objetivos fossem mais prontamente conquistados, e a autorização do
uso da força para desempenhar ataques ofensivos preemptivos unilaterais ou juntamente às FARDC
viabilizou a implementação das “ilhas de estabilidade”.
A duplicação deste modelo pode ser muito perigosa se as articulações políticas regionais e
locais de cada caso não forem consideradas. Os resultados positivos das ações ofensivas da FIB
ainda são demasiadamente recentes. Contudo, observa-se similaridades no mandato da MINUSMA
(Missão de Estabilização das Nações Unidas no Mali). A Resolução 2100 do Conselho de
Segurança permitiu a MINUSMA adotar objetivos militares ofensivos para estabilizar os centros
populacionais e consentiu resposta militar híbrida, ligando a estabilização internacional às forças
francesas com objetivos múltiplos, incluindo a criação de ambiente seguro para a passagem de
assistência humanitária47.
A Resolução 2102 do Conselho de Segurança sobre a Somália visou alinhar as atividades
do pessoal da ONU (UN country team) aos objetivos da UNSOM (Missão de Assistência das
Nações Unidas na Somália) e do Governo Federal da Somália para a proteção de civis 48. Do mesmo
modo, a Resolução 2155 do Conselho de Segurança sobre o Sudão do Sul modificou o mandato da
UNMISS, centralizando as ações de proteção de civis a fim de direcionar as necessidades
humanitárias e as questões de segurança 49.
Estas resoluções comprovam o envolvimento das Nações Unidas em conflitos sob uma nova
perspectiva. Considerando a complexidade de todos os elementos que o cercam: a vontade política
47
Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minusma/documents/mali%20_2100_E_.pdf. Acesso
em 01 out. 2014.
48
Disponível em: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF9 6FF9%
7D/s_res_2102.pdf. Acesso em 01 out. 2014.
49
Disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2155(2014). Acesso em 01 out. 2014.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
dos países contribuintes de tropas (TCCs na sigla em inglês), os riscos no emprego de engajamento
ativo, a eficiência dos resultados das ações militares, e as ações que envolvem os esforços político,
humanitário e militar no que tange à proteção de civis, à estabilização e à reconstrução da paz, no
contexto das operações de paz, a proteção de civis se tornou um paradigma.
Considerações finais
A emergência do conceito de “ilhas de estabilidade” representa a visão dinâmica da
proteção de civis, mais flexível e adaptada ao contexto da RDC e da ameaça dos grupos armados.
Como já mencionado acima, esta nova interpretação influenciará não só a forma como as operações
de paz serão conduzidas, mas, também, sua relação com as agências humanitárias e o modo como a
assistência humanitária é administrada.
Esta atualização, adaptação e evolução causaram o esvaziamento dos três princípios
norteadores das operações de paz. Consequentemente, novas interpretações sobre o consentimento
das partes, a imparcialidade/neutralidade, e o uso da força precisarão ser identificadas. Estudos
aprofundados sobre os casos da MONUSCO, UNMISS, MINUSMA e UNSOM serão necessários
para abarcar a amplitude e a complexidade destes conflitos e sua relação com o uso da força, para,
assim, designar respostas apropriadas da comunidade internacional.
É evidente que o uso da força não é a solução para o conflito, entretanto, se aprovado em
nome da segurança coletiva, é, inicialmente, a forma que permite que problemas profundos
enraizados nas sociedades, manifestados na organização de grupos armados, encontrem,
posteriormente, solução política, econômica e social. No caso da República Democrática do
Congo, a operacionalização da proteção de civis foi adaptada à sua realidade. O uso legítimo da
força implementado pela FIB diversificou o modo como a proteção da violência física é conduzida.
Neste sentido, ainda que muito recente, a implementação das “ilhas de estabilidade” mostra ser a
prova da evolução e do início de um novo processo de transição das operações de paz.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Ascensão do sul e governança global: contribuições do sul para a segurança e
desenvolvimento humanos
A partir do Informe de
Desenvolvimento Humano do
Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD)
de 2013, este texto analisará como
esta instituição relaciona as
mudanças na dinâmica global por
conta da ascensão dos países
emergentes com a importância
deste
fenômeno
para
o
desenvolvimento humano. Diante
deste processo, entende-se que o
Relatório procura não apenas
reforçar
as
ideias
de
desenvolvimento
humano
e
segurança
humana
como
elementos essenciais para a
manutenção
da
governança
global, como também procura
alertar para a importância da
participação dos países do Sul nos
esforços
internacionais
que
procuram
validar
esse
engajamento.
Juliana Bulsonaro 50
Tadeu Morato Maciel 51
Sarah Serrano 52
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p.78 -87
Introdução
A partir das discussões realizadas no âmbito da linha de pesquisa “Segurança Internacional
Contemporânea: um estudo focado nas mudanças conceituais e práticas na segurança internacional
pós-Guerra Fria”, foram idealizados alguns textos que congregam os resultados obtidos até o
momento, os quais compõem o dossiê “Segurança Humana e Relações Internacionais" que está
50
Estudante do 4º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
Professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM). Doutorando em Ciências
Humanas e Sociais pela UFABC, e Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP.
52
Estudante do 4º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
51
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
sendo apresentado nesta edição do Inter-Relações. Este texto em específico procura problematizar o
vínculo entre a ascensão dos países do Sul e as transformações na governança global. A
participação mais ativa nas relações internacionais de alguns países outrora denominados como
Terceiro Mundo, Subdesenvolvidos, Em Desenvolvimento, Não Alinhados, Emergentes,
Dependentes, Periféricos, etc., influenciou a potencialização de uma nova denominação para este
grupo: o Sul Global.
Diante da ascensão de diversos desses atores do Sul Global após o fim da Guerra Fria, Bruno
Ayllón entende que este conceito faz referência “aos países e sociedades em desenvolvimento do
hemisfério Sul, e a outros localizados no hemisfério Norte, mas que possuem indicadores de
desenvolvimento médios e baixos. Referimo-nos a maioria dos países africanos, latino-americanos e
asiáticos, em um número próximo a 150 Estados independentes” (2013, p. 15). O termo Sul Global
configura-se como uma designação simbólica para um grupo bastante heterogêneo de nações em
desenvolvimento, gerando os riscos de homogeneização de realidades diversas em um mesmo
conceito, tal como ocorre com diversas outras definições, visto que pode englobar realidades tão
díspares como a Bolívia e a China. Além disso, alguns autores ressaltam o desafio de eleger quem
pode ou não ser inserido dentro desta denominação, pois “cada vez é mais difícil identificar quem
pertence ao Sul Global, pois está em curso um processo de reformatação do mesmo, vinculado à
localização e ao deslocamento do poder rumo a novas geografias” (LECHINI, 2012, p. 17;
MILANI, 2012 apud AYLLÓN, 2013).
Alguns elementos ajudam a explicar o aumento da atuação internacional dos países que
formam o Sul Global no início do século XXI, tais como: a crise financeira internacional,
especialmente a partir de 2008; a ampliação do comércio entre os países do Sul, com destaque para
o incremento das relações comerciais chinesas; o aumento dos investimentos estrangeiros diretos
recebidos e efetuados por tais países (inclusive entre eles); a ampliação de espaços para a atuação
mais ativa em instituições centrais no processo de governança global; a formação de blocos como o
BRICS (Brasil, Rússia, Índia e China) e o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).
Diversos atores internacionais, tais como os Estados, as organizações internacionais, as
organizações não governamentais e os grupos acadêmicos, passaram a dar maior atenção a este Sul
Global, como se verifica a partir do Informe de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2013, intitulado “A ascensão do Sul: Progresso
Humano num Mundo Diversificado”, no qual a ONU destaca as mudanças na dinâmica global por
conta da ascensão dos países em desenvolvimento e a importância deste fenômeno para o
desenvolvimento humano. Neste processo, os países do Sul seriam um elemento essencial no
combate aos problemas globais que afetam a segurança internacional em diferentes esferas, tais
como crises econômicas, políticas, ambientais, sociais e alimentares, permeadas por temas como os
terrorismos, as violações de direitos humanos, as migrações forçadas, etc. É neste ambiente que se
estabelece uma forte relação entre as contribuições dos países do Sul para a ordem internacional e o
fortalecimento da concepção de segurança humana. Antes da análise mais focada em relação às
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
propostas que conformam o Relatório do PNUD, considera-se essencial uma rápida abordagem
sobre a evolução do conceito de segurança internacional nas últimas décadas.
A ampliação do conceito de segurança internacional: rumo à segurança humana
O final da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlin e a extinção da União Soviética geraram
certo frenesi por parte de um amplo grupo de autores das relações internacionais, os quais se
lançaram na busca por novos conceitos que abarcassem a realidade internacional que seria
estabelecida a partir daquele momento. Em 1989, a revista norte-americana “National Interest”,
publicou o artigo de Francis Fukuyama intitulado “Será o Fim da História?”, no qual o autor afirma
que o fracasso do socialismo de Estado (pautado pelo marxismo-leninismo) cristalizaria a vitória da
democracia liberal ocidental como modelo universal de governo. Fukuyama utiliza Hegel para
alegar o fim do combate de ideias por conta da vitória e universalização da democracia liberal.
Assim, parte do internacionalismo liberal proclamou que a nova ordem internacional seria definida
pela “paz democrática”, a partir da expansão do capitalismo e da democracia, assim como a
disseminação de valores universais atrelados aos direitos humanos.
Nesse ambiente, as preocupações do internacionalismo liberal em relação aos elementos que
poderiam abalar a ordem internacional também foram afetadas. Se com a queda do Muro de Berlim
e o fim da URSS desapareceu o medo do embate entre as duas grandes potências, no decorrer das
décadas seguintes outros temas ganharam relevância nas agendas dos governos e organismos
internacionais, tais como: os terrorismos; os tráficos transnacionais de drogas, de armamentos e de
pessoas; as guerras civis e étnicas, os genocídios e as epidemias; e as questões climáticas e
ambientais. Nesse processo, os mais diversos campos de estudos das Relações Internacionais
(inclusive autores realistas) passaram a questionar o conceito de segurança como exclusivamente
vinculado à segurança nacional e ao equilíbrio de poder entre potências, havendo o deslocamento
do “foco do problema da segurança do seu vínculo exclusivo com o Estado para associá-lo a
questões para além, para aquém e através do Estado” (RODRIGUES, 2012, p. 8).
Estabelecia-se um novo cenário em relação às diretrizes que balizavam os debates sobre os
temas de paz e segurança mundiais. O que era designado como internacional, especialmente no
concernente à segurança, deixava de ser tema exclusivamente tratado no âmbito do Estado, havendo
a atuação mais ativa de diversos atores internacionais no processo de governança global. Os
conflitos nas relações internacionais começam a ser afetados pelos discursos em prol da ação
conjunta de Estados e outros atores internacionais em nome de valores universais e de uma nova
ordem mundial. Para o então presidente norte-americano George Bush, conforme declaração em
1991, a ação do governo dos EUA contra o Iraque naquele momento não significava a simples
defesa do Kuwait, mas a busca por uma nova ordem mundial, na qual estariam garantidos os valores
universais da humanidade.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Partindo deste panorama, o cientista britânico Barry Buzan afirmou que a segurança das
coletividades (organizadas no sistema estatal) não se resumiria apenas a fatores militares (como
antes pressupunham os autores realistas), mas também a fatores políticos (estabilidade e
legitimidade das instituições políticas), econômicos (acesso a recursos mínimos para a manutenção
do bem-estar e das instituições), societais (preservação de elementos como a língua, os costumes, a
religião) e ambientais (manutenção da biosfera, necessária para o desenvolvimento dos outros
fatores) (BUZAN, 2007, p. 38). Assim, a redefinição do conceito de segurança propunha que não
somente as fronteiras estatais deveriam ser protegidas, e, por conseguinte, não apenas os conflitos
interestatais seriam uma ameaça à segurança internacional, mas também problemas como a
degradação ambiental, as epidemias, os deslocamentos massivos de populações e a pobreza
extrema, elementos que afetavam sobremaneira os países do Sul, especialmente aqueles definidos
como Estados falidos, fracos ou débeis.
Neste sentido, os esforços realizados no decorrer do século XX para a criação de princípios de
direito internacional que viabilizassem relações pacíficas frente à ameaça das grandes guerras
parecia defasado frente às novas formas de violência que escapam aos conceitos de regulamentação
da guerra de tipo clausewitziana (RODRIGUES, 2010). Neste ponto é de extrema importância
destacarmos a ressalva de Florian Hoffmann (2010) e Thiago Rodrigues (2012), no sentido de que
embora alguns acadêmicos tenham destacado a redefinição da ideia de segurança internacional no
imediato pós-Guerra Fria, desde o final da Segunda Guerra Mundial a dinâmica dos conflitos
globais “já registrava o movimento em direção ao aumento dos enfrentamentos dentro e através
das fronteiras, mobilizados por grupos não-estatais” (RODRIGUES, 2012, p. 13). Embora inúmeras
guerras civis e outras ameaças transnacionais tenham aumentado desde meados do século XX,
apenas no início dos anos 1990 algumas correntes teóricas atentaram para a mudança no objeto da
segurança, que migra do Estado (como era a característica da segurança nacional) para a população
(o sujeito que deve ser protegido, frente às ameaças internas e transnacionais).
Essa mudança foi operacionalizada no âmbito da ONU a partir da atuação do secretário-geral
Boutros-Boutros Ghali (1992-1996), o qual apoiou a elaboração do Relatório do Desenvolvimento
Humano (1994) por parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no
qual constava o conceito de segurança humana, por meio do qual deveria ser afirmada a ênfase na
defesa da população, o que resultaria na mudança da segurança por meios exclusivamente militares
para a segurança por meio do desenvolvimento humano sustentável. É neste momento que termos
como segurança humana e desenvolvimento humano passam a ser centrais dentro da concepção
mais ampla de segurança internacional, sendo esta atualizada pela ideia de governança global, a
qual pode ser definida como “o conjunto de instituições e normativas, composto pelos Estados e
baseado em valores universais, voltadas à gestão de problemas que governo isolado algum, mesmo
os mais poderosos, podem dar conta sós” (RODRIGUES, 2012, p. 31-2).
É neste cenário que os conflitos e as possibilidades de insegurança que afetam as populações
dos países do Sul passam a assumir um lugar central nos debates sobre segurança global. Ao tratar
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
sobre segurança humana e desenvolvimento humano no Relatório do Desenvolvimento Humano de
2014, o PNUD destaca que “em algumas regiões da África Ocidental e Central, situações de
anarquia e conflito armado continuam a fazer perigar os avanços no domínio do desenvolvimento
humano”, enquanto em alguns “países da América Latina e das Caraíbas, a despeito dos grandes
avanços alcançados no plano do desenvolvimento humano, muitas pessoas sentem-se ameaçadas
pelo crescimento das taxas de homicídio e outro tipo de criminalidade violenta” (PNUD, 2014, p. 45). Desta forma, exigia-se uma atuação conjunta em nível global para a gestão e controle dos
problemas que afetam as populações que conformam o Sul Global, tais como os terrorismos, os
tráficos transnacionais (drogas, armamentos, pessoas), os conflitos internos e transnacionais, a
pobreza extrema, as violações dos direitos humanos e a degradação do meio ambiente. Tais
problemas não significariam ameaças exclusivas a determinados Estados, mas à governança global
como um todo.
Além disso, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2013 ressalta um elemento adicional
neste processo, pois ao analisar os novos atores e questões que determinam o panorama do
desenvolvimento no século XXI, este Relatório afirma que a ascensão do Sul deve ser vinculada ao
progresso sustentado do desenvolvimento humano (baseado na possibilidade das pessoas alargarem
suas escolhas e capacidades), fazendo com que seja essencial a participação dos países emergentes
nos processos que favorecem o fortalecimento da segurança e do desenvolvimento humanos. É a
partir desta argumentação que o Relatório do PNUD procura vincular a participação dos países do
Sul na governança global à segurança humana e ao desenvolvimento humano, o que será
apresentado na seção abaixo.
A participação dos países do Sul na consolidação da segurança e do desenvolvimento
humanos
Segundo o Relatório do PNUD de 2013, “a notável transformação de um elevado número de
países em desenvolvimento em grandes economias dinâmicas com crescente influência política
produz um impacto significativo no progresso do desenvolvimento humano” (PNUD, 2013, p. iv).
Por exemplo, quanto ao primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, o qual trata da redução
da extrema pobreza (pessoas que vivem com menos de 1,25 dólares por dia), verifica-se que “o
Brasil, a China e a Índia reduziram, todos eles, de forma drástica a percentagem da sua população
em situação de pobreza de rendimentos - o Brasil, de 17,2% da população em 1990 para 6,1% em
2009, a China, de 60,2% em 1990 para 13,1% em 2008, e a Índia, de 49,4% em 1983 para 32,7%
em 2010” (PNUD, 2013, p. 14). Apesar de possuírem intensos níveis de desigualdade – como
afirma o próprio Relatório “existe um ‘Sul’ no Norte e um ‘Norte’ no Sul” (PNUD, 2013, p. 2) – e
de abrigarem grande parte da população pobre do mundo, ao desenvolverem políticas pragmáticas e
ao focarem no desenvolvimento, tais países, com a ajuda da globalização, estariam abrindo caminho
para oportunidades crescentes para suas economias.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Entende-se, ainda, que a crise do Norte poderia abrandar o desenvolvimento do Sul, por conta
das políticas de austeridade e da redução da capacidade do Estado Providência, o que afetaria não
apenas as suas populações, mas também minaria as perspectivas de desenvolvimento humano de
inúmeras pessoas ao redor do mundo, devido à interdependência econômica. Assim, segundo o
Relatório, “o Sul precisa do Norte, mas cada vez mais o Norte precisa do Sul” (PNUD, 2013, p. 2),
visto que, por exemplo, depois de 2007 as exportações norte-americanas aumentaram 20% para
países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), enquanto para a
América Latina e Caribenha e para a China aumentaram 50%.
Ao alertar que crescimento econômico não se traduz, por si só, em desenvolvimento humano,
o Relatório propõe quatro temas que devem ser abordados para ampliar o desenvolvimento: reforçar
a equidade, incluindo a dimensão do gênero; permitir uma maior representação e participação dos
cidadãos; fazer face aos desafios ambientais; e gerir as alterações demográficas (PNUD, 2013, p.
89). Para o PNUD não é possível angariar grandes conquistas na matéria de desenvolvimento
humano se temas como desigualdade e destruição ambiental não constarem como prioridade. Além
disso, a crescente interdependência nas relações internacionais faz com que deva haver ações
conjuntas em temas como a erradicação da pobreza, as mudanças climáticas, ou a paz e a segurança.
O Relatório também reflete sobre a possibilidade de novas instituições que facilitem a
integração regional e a cooperação Sul-Sul, tendo em vista as experiências profícuas para o
desenvolvimento humano que podem ser obtidas com esta modalidade de cooperação, além de
exigir que existam estruturas mais representativas de governança internacional que considerem a
inequívoca ascensão do Sul. “Na verdade, todos os processos intergovernamentais ganhariam
robustez com uma maior participação do Sul, que pode contribuir com recursos financeiros,
tecnológicos e humanos substanciais, bem como apresentar boas soluções para os problemas
mundiais prementes” (PNUD, 2013, p. 7). Nesse processo de criação ou reforma das instituições
internacionais rumo a estruturas mais representativas, permanece a preocupação em relação à
soberania nacional. Contudo, “as medidas nacionais não garantem aos cidadãos dos países o acesso
a bens públicos globais. Alguns governos não são capazes de proteger suficientemente os direitos
humanos dos seus cidadãos” (PNUD, 2013, p. 121). Desta forma, o PNUD entende que se deve
caminhar rumo à ideia de “soberania responsável”, que busque a cooperação em nível mundial,
responda pelos seus atos, busque o bem-estar mundial, auxilie na provisão de bens públicos globais,
garanta o respeito aos direitos humanos, propicie a segurança da população, etc. Assim, para o
PNUD “a soberania é vista não apenas como um direito, mas como uma responsabilidade” (PNUD,
2013, p. 8). Neste ponto, o Relatório utiliza o exemplo da Responsabilidade de Proteger como
tentativa de uma nova segurança internacional que se baseie na ideia de soberania como
responsabilidade, ao demonstrar que esta prática sofre pela falta de procedimentos que
responsabilizem governos que violem princípios orientadores da governança global (PNUD, 2013,
p. 121).
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
A partir do contexto apresentado acima, a ideia de segurança humana e o vínculo com a
ascensão do Sul parecem essenciais para o PNUD. Sobre este ponto, o Relatório de 2013 retoma a
ideia do Relatório do Desenvolvimento Humano de 1994, no qual constava que era essencial que o
conceito de segurança evoluísse da ideia de proteção militar das fronteiras do Estado “para a
redução da insegurança na vida quotidiana dos indivíduos (ou insegurança humana)” (PNUD, 2013,
p. 39). Nesse sentido, o Relatório afirma que a segurança humana tem sido prejudicada por diversas
ameaças, como a fome, a doença, a criminalidade, o desemprego, as violações de direitos humanos
e os desafios ambientais. De forma mais específica, o Relatório procura demonstrar diversos
elementos que devem compor a ideia de segurança, como algumas questões econômicas (jovens
desempregados no norte ou agricultores forçados a migrarem no Sul), alimentares (famílias que não
conseguem ter pelo menos duas refeições ao dia) e de acesso à saúde (que adensam o caminho rumo
ao empobrecimento). Portanto, “é preciso que as perspectivas sobre a segurança abandonem uma
ênfase errônea colocada na força militar em benefício de um conceito equilibrado centrado nas
pessoas” (PNUD, 2013, p. 40).
Os avanços (ou retrocessos) nessa mudança de foco da segurança do Estado para as pessoas
poderiam ser medidos por meio das estatísticas sobre despesas militares e criminalidade (altas taxas
de homicídio, por exemplo, refletiriam na participação e confiança cívicas). O Relatório ressalta que
embora os conflitos entre Estados pareçam estar em declínio desde o final da Guerra Fria, os
conflitos intraestatais aumentaram a partir de meados do século XX. “Hoje, a maioria das ameaças à
segurança não provém de outros países, mas sim de insurreições, do terrorismo e de outros conflitos
civis” (PNUD, 2013, p. 41). Também é destacado o aumento dos gastos militares nos últimos anos,
independente do nível do IDH (apenas países com IDH elevado reduziram o percentual de gastos
militares). O Relatório afirma que tais gastos poderiam ser direcionados para programas e
investimentos sociais, utilizando-se a Costa Rica como exemplo, e destaca que “nem todos os países
possuem condições prévias propícias para concluir a desmilitarização, mas a maioria tem margem
de manobra para proceder a um abrandamento substancial das suas despesas militares” (PNUD,
2013, p. 41). Por fim, o Relatório sublinha a importância de se atentar para o desenvolvimento
humano como solução para os conflitos internos, pois, por exemplo, “a Índia mostrou que, embora a
curto prazo o policiamento possa ser mais eficaz na redução da violência, a redistribuição e o
desenvolvimento geral são, a médio prazo, estratégias mais eficazes na prevenção e contenção da
agitação civil” (PNUD, 2013, p. 41).
Conforme destacado no início do texto, para Florian Hoffmann (2010), desde a segunda
metade do século XX (especialmente após o final da Guerra Fria) os conflitos entre Estados caíram,
enquanto aumentaram vertiginosamente os conflitos intra-Estados. “Dessa forma, tanto o objeto
quanto o sujeito da segurança mudaram, não se referindo mais a ameaças vindas de outros Estados,
mas de atores não estatais dentro e fora das suas fronteiras, que ameaçam, primordialmente, a
população civil” (HOFFMANN, 2010, p. 258). Segundo o autor, frente a um Estado que passa a ser
considerado também um possível perigo para a segurança internacional, ou seja, que pode ser parte
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
do problema (não mais simplesmente o ente a ser defendido), o foco da segurança internacional
passa dos Estados para a vida humana. Em consonância com esse processo, passa-se a questionar a
ideia de soberania, a qual, segundo o PNUD, deve ser “vista não apenas como um direito, mas
como uma responsabilidade”, conforme exposto acima (PNUD, 2013, p. 8). Em consonância, surge
a concepção da Responsabilidade de Proteger, como forma de atuação da sociedade internacional
frente a Estados que não exercem a soberania como responsabilidade, colocando em risco seus
próprios cidadãos. Neste ponto é possível analisar a proposta do PNUD por meio da discussão
realizada por Mark Duffield, o qual se utiliza da analítica foucaultiana para vincular a segurança
humana a uma biopolítica global das populações. A identificação de uma série de vulnerabilidades
por parte da população ativaria um conjunto de “tecnologias de governança internacional”, o que
permite compreender a segurança humana como uma tecnologia que fornece poder a instituições e
atores internacionais para que possam agir, de forma individual ou em grupo, em países do Sul
(DUFFIELD, 2005, p. 3). A segurança e o desenvolvimento humanos, em termos biopolíticos,
potencializariam a capacidade de promover a vida da população. Com o crescimento dos
Emergentes, tais países também deveriam ser inseridos no grupo daqueles que são autorizados a
implementarem esforços em prol da gestão de possíveis riscos à governança global, adaptando,
inclusive, seu know-how específico sobre desenvolvimento para situações de resolução de conflitos
e reconstrução social, o que os habilitaria a lidar com situações mais próximas do seu cotidiano.
Desta forma, esta governança mais plural em nome da segurança e do desenvolvimento mais
equitativo também pode ser vista como uma espécie de “governança das desigualdades”, a ser
gerida por diversas missões pontuais de intervenções sociais nos países mais pobres. Esta
participação do Sul romperia com a ideia típica da Guerra Fria de que a segurança era alimentada
pelo debate Leste-Oeste, enquanto a dimensão Norte-Sul definiria a questão do desenvolvimento53.
Com este Relatório, o PNUD procura consolidar a ideia de participação ampla no processo de
governança, destacando a essencialidade do aumento da representatividade dos países emergentes
para o enfrentamento das vulnerabilidades e inseguranças que afetam a segurança das populações.
Alinhada a esse processo, a preocupação com o desenvolvimento socioeconômico ganha
novos contornos, fazendo com que as discussões sobre o tema deixem cada vez mais de mencionar
o desenvolvimento estatal como processo de modernização pelo crescimento econômico e passe a
falar no desenvolvimento sustentável centrado nos indivíduos (desenvolvimento humano): “o
conceito de desenvolvimento sustentável tem desagregado o foco original do desenvolvimento, o
Estado como unidade integral, enfatizando, em vez disso, aspectos específicos do espaço público
estatal, tais como a saúde, a educação, a inclusão social ou o próprio meio ambiente”
(HOFFMANN, 2010, p. 258). Essa concepção de desenvolvimento passou a ser divulgada em larga
escala a partir da construção do Índice de Desenvolvimento Humano e sua incorporação no
primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, em 1990. Assim, o Relatório do PNUD
53
Para ampliar esta questão, este texto sugere os debates propostos por Jorge Nef sobre segurança humana,
desenvolvimento e vulnerabilidades mútuas.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
de 2013 procura não apenas reforçar as ideias de desenvolvimento, soberania e segurança como
termos mais abrangentes (que consideram diversos outros problemas que afetam o “humano”),
como procura convocar os países do Sul a cada vez mais participarem dos esforços internacionais
que procuram validar esses entendimentos em prol da prevenção e combate às novas ameaças que
colocam em risco a governança global.
Considerações Finais
O Relatório do PNUD de 2013 (A Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo
Diversificado) produz uma importante reflexão sobre a denominada ascensão do Sul, nos auxiliando
a compreender como alguns fatores foram centrais neste processo, tais como a crise financeira
internacional em 2008, o aumento do comércio e as boas perspectivas para o PIB em relação aos
países do Sul (o que já não é a situação atual), o incremento dos investimentos estrangeiros diretos
recebidos e efetuados por tais países, a aplicação de políticas públicas exitosas (em áreas como o
combate à fome, saneamento básico e habitação), o fortalecimento de políticas externas que buscam
novas formas de inserção internacional (especialmente a partir de coalizões sul-sul, formando
blocos como o BRICS e o IBAS) e a atuação mais ativa em instituições centrais no processo de
governança global.
Após demonstrar a ascensão dos países emergentes e as novas possibilidades de
desenvolvimento humano que eles podem proporcionar, o PNUD procura destacar a essencialidade
da inclusão desses Estados nos esforços de governança global, como forma de potencializar o
combate às possibilidades de inseguranças que desconhecem as fronteiras estatais. Por meio da
análise do Relatório torna-se possível verificar a importância da relação entre desenvolvimento e
segurança para o PNUD, como forma de corrigir as “imperfeições” que assolam inúmeras
populações pobres ao redor do mundo, as quais geram vulnerabilidades para todos (tanto no Norte
quanto no Sul). Ao vincular a ascensão do Sul a conceitos como desenvolvimento humano,
soberania responsável e segurança humana, este Relatório se insere no debate contemporâneo das
Relações Internacionais, no qual novos atores, temas e abordagens são alçados como essenciais para
a compreensão do mundo e sua gestão.
Referências bibliográficas:
AYLLÓN, Bruno. La Cooperación Sur-Sur y Triangular: ¿Subversión o adaptación de la
cooperación internacional? 1ª ed., Quito, Editorial IAEN, 2013.
DUFFIELD, Mark. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror. Paper
prepared for the GDI panel ‘New Interfaces between Security and Development. 11th General
Conference of the EADI, Bonn, 21-24 September, 2005.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
HOFFMANN, Florian. “Mudança de paradigma? Sobre direitos humanos e segurança humana no
mundo pós-11 de Setembro” In: HERZ, Monica; AMARAL, Arthur Bernardes do (orgs.).
Terrorismo e Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 2010.
NEF, Jorge. Human Security and Mutual Vulnerability: An Exploration into the Global Political
Economy of Development and Underdevelopment. International Development Research Centre,
Ottawa, Canada, 1997.
PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Novas Dimensões da Segurança
Humana. Relatório do Desenvolvimento Humano, Nova Iorque, EUA, 1994.
______. A Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo Diversificado. Relatório do
Desenvolvimento Humano, Nova Iorque, EUA, 2013.
____. Sustentar o Progresso Humano: Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência.
Relatório do Desenvolvimento Humano, Nova Iorque, EUA, 2014.
RODRIGUES, Thiago. Guerra e política nas relações internacionais. São Paulo: Educ, 2010.
____. Segurança Planetária, entre o climático e o humano. In: Ecopolítica. Nº 3, 2012, p. 5-41.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
O engajamento internacional pela segurança humana: apontamentos de uma
crítica pós-colonial
O presente artigo, que
resulta de pesquisa desenvolvida
no Laboratório de Análise
Internacional
(LAI-FASM),
realiza uma reflexão crítica a
respeito da introdução da
temática da segurança humana
nas relações internacionais. A
argumentação teórica utilizada
vai de encontro aos Estudos Póscoloniais, apontando como o
engajamento
contemporâneo
pela proteção humana dá
continuidade à lógica orientalista
imposta aos países, culturas e
sociedade consideradas falidas,
atrasadas e subdesenvolvidas.
Carolina Yamada 54
João Paulo Gusmão P. Duarte 55
Rafaela Godoi 56
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 88 - 95
Introdução
O chamado aprofundamento e ampliação dos estudos de segurança internacional, ocorrido
entre as décadas de 1980 e 1990, abriu espaço para a inserção de abordagens e perspectivas
inovadoras no campo das Relações Internacionais (RIs). Impulsionado por uma conjuntura histórica
de recomposição de forças e reconfiguração do sistema de Estados com o fim da Guerra Fria, o
desenvolvimento de análises denominadas como reflexivistas motivou o ressurgimento de um
vigoroso debate em torno das problemáticas de segurança. Durante longo período restrito às
abordagens racionalistas – isto é, ao debate entre realistas e liberais, com amplo predomínio dos
primeiros –, os estudos de segurança internacional passaram a incorporar perspectivas críticas e
construtivistas que impuseram reflexões questionadoras às premissas tradicionais que praticamente
54
Estudante do 8º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
Doutorando em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-SP; e Professor da FASM.
56
Estudante do 4º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
55
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
restringiam a segurança à temática militar, e que reconheciam os Estados como únicos sujeitos e
objetos da segurança (Nye & Lynn-Jones, 1988).
Desde então, novos temas foram incorporados e os assuntos militares passaram a dividir
espaço com outros aspectos entendidos como fundamentais para o estudo da segurança
internacional. O contexto de globalização, no qual vários atores passaram a interagir e se relacionar
nos chamados processos de interdependência, impôs também a necessidade de se considerar novos
agentes e matérias como componentes da segurança.
Assim, a partir da percepção do surgimento de um cenário em que os conflitos interestatais
entrariam em declínio, cedendo espaço para uma nova conjuntura política, problemas relativos à
ecologia e economia, às questões identitária e humanitária, bem como diversos assuntos de ordem
social entraram na pauta da produção teórica de segurança internacional57.
Dentre os estudos que mais se destacaram, dois são emblemáticos e podem ser utilizados
como exemplo desse novo engajamento de pesquisa que imprimiu análises com o intuito de
aumentar a abrangência do entendimento que se tinha sobre o conceito de segurança: a abordagem
multissetorial da Escola de Copenhagen, e a perspectiva liberal em torno da segurança humana.
No primeiro, proveniente dos estudos de Barry Buzan e outros eminentes pesquisadores da
Escola de Copenhagen, foi desenvolvida uma argumentação que indicou que a segurança
internacional estava envolvida em assuntos que se dividiam em cinco setores fundamentais: militar,
político, econômico, societal e ambiental. Nos setores militar e político permanecem as ideias
tradicionais da segurança vinculada à defesa do Estado e da soberania por meio do uso da força
bélica. No entanto, nos setores econômico, societal e ambiental, é apontado o alargamento da
agenda, que passava a vincular questões como o controle sobre o mercado financeiro, e sobre crises
sociais e desastres ambientais como pertencentes ao rol de problemas da segurança internacional
(Buzan et al, 1998).
Outro exemplo que demonstra o engajamento teórico pela ampliação dos temas de segurança
vem de estudos liberais do início da década de 1990. De maneira geral, essa perspectiva indicou que
o fim da Guerra Fria possibilitou a efetivação de novos objetivos na política internacional. Nesse
sentido, reivindicaram o aprofundamento da segurança a partir da inclusão de novos princípios que
iam além da esfera estatal, passando a demandar a introdução de questões referentes à proteção dos
seres humanos como temática primordial da segurança (Rothschild, 1995).
Segurança humana para quem?
Paralelamente ao desenvolvimento teórico, o exercício prático em torno dos novos temas de
segurança passou a ocorrer com frequência cada vez maior. Em relação à segurança humana, desde
57
É importante ressaltar que embora o período pós-Guerra Fria tenha impulsionado a introdução de novas temáticas nos
estudos e práticas de segurança internacional, existem algumas procedências anteriores de grande relevância que,
sobretudo a partir das décadas de 1960-70, impuseram ao campo a necessidade de abrangência nas abordagens sobre
segurança. Conforme apontam Buzan e Hansen (2012), os Estudos da Paz são um exemplo.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
a década de 1990, vários acordos mediados por Estados, instituições internacionais e organizações
não governamentais (ONGs) de grande influência foram assinados, levando a uma gradual inscrição
normativa de recomendações e procedimentos em defesa da vida humana como sendo a real
finalidade de qualquer engajamento pela segurança 58.
Nesse processo, uma das determinações no plano dos regimes internacionais que alcançou
grande destaque e efetividade de ações é o princípio da Responsabilidade de Proteger (RdeP), um
mecanismo jurídico-diplomático-militar aprovado no âmbito das Nações Unidas (ONU), que
possibilita o rompimento da soberania de Estados em que se detecta algum tipo de problema de
ordem social e política que represente risco ou ameaça à sua população, permitindo,
sequencialmente, a execução de intervenções externas para salvaguarda humanitária.
A RdeP, idealizada em 2001 e homologada como instrumento de direito internacional em
2005, mesmo propagando ações e discursos grandiloquentes em defesa do humanitarismo numa
escala mundial, expõe como o engajamento contemporâneo pela segurança está envolvido com
interesses questionáveis e até mesmo escusos, nos quais se nota, de um lado, a transformação da
proteção humana em uma panaceia global, e, de outro, a efetivação de estratégias de poder
articuladas por alianças que dominam o sistema internacional.
Desse modo, conforme apontam Rodrigues e Souza (2012), podemos estabelecer uma
primeira crítica que identifica o mecanismo proposto pela RdeP como parte de um sistema
interessado na gestão do planeta e do fluxos populacionais que nele habitam e transitam. Em ligação
direta com o desenvolvimento discursivo e prático pela segurança humana, uma intervenção que
segue o modelo da Responsabilidade de Proteger estaria envolvida, portanto, no objetivo de
acompanhamento e controle sobre a vida humana numa escala que rejeita os limites da soberania.
Então, busca estabelecer padrões de vida por meio da gestão e disposição das populações mundiais,
idealizando a produção de um estado de paz baseado na expansão de valores ocidentais, tais como a
democracia, o liberalismo e, fundamentalmente, o humanismo.
Uma segunda crítica à utilização da RdeP indica como esse dispositivo funciona como um
instrumento de poder angariado por organizações internacionais, ONGs e principalmente alianças
de Estados que possuem e exercem a hegemonia no sistema. Nesse caso, é explícito o emprego das
intervenções direcionado à periferia do sistema e aos chamados Estados falidos59, considerados
hospedeiros de várias formas de violências que ascendem também ao campo internacional. O
discurso humanitário, portanto, seria apenas a forma de justificar estas ações.
58
Entre as primeiras normativas que reconsideraram o conceito de segurança, colocando-o no centro de debate sobre
desenvolvimento humano e proteção da vida, estão a Agenda para paz, documento emitido pelo secretário-geral das
Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, em 1992, e o Relatório sobre Desenvolvimento Humano, de 1994, produzido
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
59
A noção de Estado fraco, débil ou falido foi desenvolvida por Fukuyama (2005), e se caracteriza por instituir a
necessidade de intervenções militares – justificadas como ações humanitárias – para a proteção da população de países
em que o Estado não possuiria condições de governá-la de maneira eficiente, seja por deficiência ou ausência de seu
escopo estatal de prestação de serviços sociais, seja por debilidades que o impedem de deter a coesão e monopólio do
exercício da violência.
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Então, na prática o que se nota é que essa determinação legitima uma série de incursões em
países que possuiriam a necessidade de tutela ou proteção externa, permitindo, objetivamente, uma
forma de controlar o surgimento de violências nesses locais e, ao mesmo tempo, de sustentar a
lógica de imposição de valores, possibilitando, por consequência, a manutenção de processos
exploratórios que correspondem ao fluxo centro-periferia (Duffield, 2010).
Ambas as críticas permitem afirmar que o desenvolvimento de iniciativas pela segurança
humana dentro da esfera das relações internacionais não pressupõe uma real preocupação com a
proteção humanitária, mas, sim, a ampliação contínua de um sistema de governamentalidade
interessado em gerir a vida em todos os espaços do planeta, e um complexo jogo de poder que
institui hierarquias que beneficiam os agentes controladores do sistema internacional.
Segurança humana e Pós-colonialismo: uma análise teórica
Diante das críticas apresentadas a respeito da funcionalidade do princípio da
Responsabilidade de Proteger, é possível indicar que o empreendimento pela segurança humana
também carrega consigo uma forte tendência de afirmação de padrões civilizacionais para a
humanidade, isto é, uma lógica que opera por enquadramentos que ignoram as diferenças culturais
entre os povos e os vinculam à obrigatoriedade de aceitação e assimilação de valores marcadamente
ocidentais.
Por conseguinte, havendo domínios de poder que se articulam pela lógica civilizacional, notase que tais procedimentos securitários atuam pela positivação e manutenção das disparidades
existentes entre sociedades e culturas que se posicionam de maneira absolutamente desigual na
estrutura da política internacional. Com isso, estabelece-se um exercício de dominação baseado em
distinções identitárias que resultam na classificação de Estados e grupos sociais como
subdesenvolvidos, subalternos, atrasados, perigosos e falidos. Não é difícil de identificar que a
maior parte deles se localiza geograficamente na África, Oriente Médio e Ásia, locais em que o
engajamento colonial dos séculos xix e xx foi ostensivo e que, atualmente, a segurança humana é
evocada como receituário para a resolução da maior parte dos “problemas” que afetam o
desenvolvimento dessas regiões.
Essa situação nos leva a reconhecer a pertinência dos Estudos Pós-coloniais para a análise das
relações internacionais contemporâneas. Partindo dos estudos de Edward Said (1978), um dos
precursores do Pós-colonialismo, pode-se apontar que a submissão de culturas e sociedades possui
como objetivo primordial autorizar ações de domínio e governo comandadas por unidades políticas
que propagam e se beneficiam do discurso civilizacional – e, com isso, ocupam o topo da hierarquia
do sistema internacional.
Said explica que essa estratégia foi desenvolvida na Europa, no século xix, por meio da
distinção normativa entre ocidente e oriente, tendo como uma das finalidades a legitimação das
práticas colonialistas das grandes nações europeias em vários dos territórios que foram
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denominados como pertencentes ao oriente. Isso se tornou possível pela invenção epistemológica
do oriente pelo ocidente, que pressupõe uma distinção ontológica entre os “dois espaços”, fixando
aos conceitos “oriente” e “oriental” os estereótipos de irracionalidade, atraso, barbárie, entre outros
aspectos difamatórios, e de “ocidente” e “ocidental” as representações de racionalidade, progresso e
civilidade.
A imposição desse discurso construído historicamente, que o autor chama de orientalismo,
resulta na determinação de uma missão civilizatória direcionada àqueles grupos que representariam
uma condição de inferioridade cultural, social, política e econômica. E então, o que se comprova
com essa separação entre dois patamares supostamente distintos é criação de instrumentos de tutela
de algumas culturas ou sociedades em relação a outras, consideradas deficitárias de um conteúdo
civilizacional; ou seja, entre unidades providas e guiadas por valores classificados discursivamente
como bons e verdadeiros, e aquelas desprovidas e não guiadas por esses mesmos valores (Puchala,
1998).
Esse empreendimento pode ser visto, por exemplo, na instrumentalização das intervenções
militares, que desde a oficialização da RdeP, são cada vez mais justificadas pela necessidade de
defesa humanitária e proteção de populações vulneráveis nos Estados falidos e regiões classificadas
como subdesenvolvidas e atrasadas. Torna-se explícito, portanto, que tal iniciativa faz funcionar a
antiga lógica colonial, conformada, atualmente, em novas modulações da política internacional que
perpetuam a primazia de relações hegemônicas, operadas pelo mesmo fundamento que impôs da
distinção ocidente/oriente60.
Segurança humana e Pós-colonialismo: uma constatação empírica
Uma breve iniciativa de pesquisa nas disposições do Conselho de Segurança das Nações
Unidas confirma essa situação. Desde 2005, quando se homologou a Responsabilidade de Proteger,
o número de resoluções do Conselho de Segurança que foram direcionadas a países que são
considerados pela lógica orientalista como deficitários de um conteúdo civilizacional obteve um
crescimento substancial. Por outro lado, o número de resoluções voltadas aos países em que se
identifica o provimento de valores ocidentais se manteve estável.
Para ilustrar essa constatação61, o gráfico abaixo demonstra o percentual anual de resoluções
voltadas a países africanos entre 2005 e 2014. De um total de 579 resoluções que o Conselho de
Segurança emitiu nesse período, 317 são relacionadas a países do continente, representando uma
60
A utilização do conceito de orientalismo nesse artigo tem a função de exemplificar a missão civilizatória que está por
trás do engajamento pela segurança humana. Desse modo, não significa que apenas países ou sociedades que se
encontram geograficamente naquilo que se definiu como oriente são sujeitas a essas ações internacionais.
61
Considerando os limites desse artigo, a escolha do recorte da pesquisa empírica feita a partir da análise das resoluções
do Conselho de Segurança da ONU foi direcionada apenas aos países do continente africano, no período referido de
Janeiro de 2005 à Agosto de 2014. Esse quadrante, no entanto, já demonstra claramente a disparidade do engajamento
internacional – no que se refere às questões de segurança – em relação ao que se denominou, pela lógica orientalista,
como países atrasados, falidos, subdesenvolvidos e que não atingiram de certo patamar civilizatório.
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média de 54,75%. Os anos de 2005 e 2011 chegaram a atingir os picos de 69% e 65,2%,
respectivamente.
Porcentagem de Resoluções de Conselho de Segurança da
ONU direcionadas a países do continente africano
(Janeiro de 2005 - Agosto de 2014)
80,00%
60,00%
40,00%
Ano
69,0%
51,7%
59,0%
65,2%
52,3% 48,0% 50,8%
52,8% 48,9%
46,5%
20,00%
Relacionadas ao
continente africano
0,00%
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Fonte: Pesquisa feita pelos autores no site do Conselho de Segurança da ONU (http://www.un.org/es/sc/documents/resolutions/).
Nesse período, os países mais notificados por resoluções do Conselho de Segurança foram
Sudão, Costa do Marfim, Mali, Congo, Somália, Libéria e Líbia. Em boa parte das resoluções o
conteúdo está relacionado a algum tipo de problema ou questão que envolve a segurança de suas
populações. Significa dizer que os procedimentos adotados ou recomendados quase sempre se
vinculam à necessidade de promoção da segurança humana.
Um dos casos mais emblemáticos e exemplares a se destacar é o da Líbia, país do norte da
África que durante a onda de revoltas que ficou conhecida como Primavera Árabe, foi subitamente
acusado de violar os direitos humanos de seus cidadãos. Naquele momento, uma parcela da
população questionava a legitimidade do regime ditatorial de Muammar al-Gaddafi, e reivindicava
mudanças políticas e sociais no país. Com o confronto que se estabeleceu entre o governo e os
opositores, a comunidade internacional – representada, na ocasião, sobretudo por Estados Unidos,
Israel, França e outros países da União Europeia –, passou a solicitar uma intervenção militar,
autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, sob a alcunha do princípio da Responsabilidade de
Proteger.
Então, um forte engajamento internacional se voltou para as condições políticas e sociais na
Líbia, que até meados da década de 2000 mantinha boas relações com os governos desses mesmos
países que passaram a reivindicar a intervenção externa, além de apresentar razoáveis taxas de
crescimento econômico e desenvolvimento humano 62. Conforme aponta Pureza (2012), apesar
62
No ano de 2011, a Líbia ocupava a 64ª posição no ranking de países avaliados pelo Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), à frente, por exemplo, de países como Rússia e Brasil. No ano de 2013, em que foi feita a última
avaliação
do
IDH,
a
Líbia
seguia
ocupando
a
64ª
posição.
Disponível
em:
<http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH_global_2011>. Acesso em: 15 set. 2014.
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dessa situação, como base na RdeP, uma série de resoluções foi aprovada no Conselho de
Segurança, sendo a mais importante delas a que autorizou uma zona de exclusão aérea que
viabilizou bombardeios que desmobilizaram as forças do governo, possibilitando, inclusive, a
captura e execução de Gaddafi e de vários de seus apoiadores.
No conteúdo das resoluções são explícitos os discursos pela segurança humana. Nelas se
condena as violações dos direitos humanos e o uso da força contra civis (Resolução 1970, de
fevereiro de 201163), se reivindicam medidas para garantir a segurança da população – ao mesmo
tempo em que se permite a formação da zona de exclusão para bombardeios aéreos (Resolução
1973, de março de 201164), e se decide sobre a implantação da United Nations Support Mission in
Libya, missão da ONU destinada ao controle da transição política e social no país, que pressupõe o
estabelecimento de uma nova autoridade responsável por gerir as condições de vida dos líbios
(Resolução 2009, de setembro de 201165).
Considerações finais
A partir desse exemplo recente, é possível identificar que o grande empreendimento que se
desenvolve atualmente por um almejado alcance pleno da segurança, não apenas imprime a
necessidade de padrões de vida baseados na universalização do modelo ocidental de liberdade
democrática e economia de mercado capitalista, como também garante aos promotores das
operações de paz (quase sempre acionadas nos rincões do mundo globalizado), grandes domínios
de poder exercidos por policiamentos de grandes dispêndios militares, endividamentos e submissões
de ordem econômica, e ainda humilhações e hierarquizações pelo rebaixamento de valores culturais.
Esse controle que atua pela demarcação e graduação de identidades e por uma remodulação
autoritária quando se ativa as intervenções, de acordo com a leitura dos Estudos pós-coloniais,
perpetua a lógica orientalista, sendo a segurança humana, na contemporaneidade, o instrumento
discursivo por excelência a ser utilizado para se alcançar tal objetivo, pois representaria um valor
universal e inquestionável, já que seria resultado do alcance máximo do desenvolvimento
civilizacional.
É essa a fórmula atual que possibilita prolongar a lógica de domínio colonial sobre regiões e
países que seguem sofrendo com processos exploratórios, notadamente no Sudeste Asiático, no
Oriente Médio e – como demonstrado – na África, mantendo-os subordinados ao ideário político
ocidental e, com isso, na base da estrutura internacional. Ao mesmo tempo, é também a fórmula que
viabiliza o estabelecimento de uma governamentalidade inédita interessada no controle da vida, que
63
Disponível em: <<http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1970(2011)>. Acesso em: 06 set.
2014.
64
Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1973(2011)>. Acesso em: 06 set.
2014.
65
Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2009(2011)>. Acesso em: 06 set.
2014.
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opera transpondo as barreiras da soberania, com uma atenção especial àqueles marcados pela
identidade que simboliza a mais perfeita imagem da barbárie, do atraso e da irracionalidade: o
oriental e suas inúmeras resignificações contemporâneas.
Referências bibliográficas:
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Londres: Lynne Rienner Publishers.
BUZAN, Barry; HANSEN, Lene (2012). A evolução dos estudos de segurança internacional. São
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
Controlar o insuportável
Resenha
DUARTE, João Paulo. Terrorismo: caos, controle e segurança. São Paulo: Desatino, 2014, pp.
108. ISBN: 978-85-88467-28-6.
Tiago Guimarães Marmund 66
Inter-Relações / Ano 14 - Nº 40 / 2º semestre 2014 / p. 96 - 97
Um livro curto, mas que remete a inquietações. Lançado pela editora Desatino, - uma editora
pequena formada por quatro amigos que quiseram enfrentar o cruel mercado editorial – o novo livro
do professor e pesquisador João Paulo Duarte é o sexto volume da série Elementos, pensada no
intuito de trazer aos estudantes, sejam eles de ensino médio ou de graduação, e aos leitores como
um todo, livros que discutam temas variados, mas importantes na atualidade. A partir disto, a série
já publicou livros com temas que abrangem desde a discussão sobre o narcotráfico e a Primavera
Árabe, até o Futebol, e, agora, sobre o Terrorismo.
João Paulo Duarte é professor no bacharelado de Relações Internacionais da Faculdade Santa
Marcelina e pesquisador no GAPCon (Grupo de Análise e Prevenção de Conflitos Internacionais) e
neste livro nos convida a pensar e analisar a temática do terrorismo a partir de um olhar mais crítico
e incisivo. Terrorismo: caos, controle e segurança é fruto de uma dissertação de mestrado
defendida no ano de 2011, mas que somente agora no ano de 2014 foi editada e publicada.
Com o intuito de ampliar a discussão acerca de um tema tão caro às Relações Internacionais, a
obra é dividida em três capítulos, ou melhor, movimentos, como prefere o autor. Desde as primeiras
páginas da apresentação do livro, deve-se ter em mente que por toda a sua extensão, se buscará
discutir a “atualidade do terrorismo e do contraterror” (DUARTE, p.20); para isto, o primeiro
capítulo busca fazer uma digressão histórica do terrorismo na modernidade. Deste modo, Duarte
nos lembra logo de início que o terror, ou terrorismo, se preferir, não é algo que surgiu com o 11 de
setembro de 2001, mas sim que remonta desde o cristianismo. Mais que isso, o terrorismo remonta
também à consolidação do Estado como o conhecemos hoje.
Significa dizer, portanto, que durante a Revolução Francesa e o terror instaurado pelos
jacobinos com suas execuções contra todo e qualquer tipo de opositor do novo regime, o Estado era
o principal meio pelo qual era usada a violência e o terrorismo. E ainda mais, vale notar que foi
exatamente este novo regime político, que surge em meio a mortes e decapitações, que “hoje serve
de modelo e é tido como a mais perfeita organização institucional das sociedades: a república
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Estudante do 8º período do Curso de Relações Internacionais da FASM.
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Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº 40 / 2º Semestre 2014
democrática” (DUARTE, p.27). O autor chama a atenção também a outras procedências terroristas,
como: o terrorismo anarquista, o terror nacionalista, comunista e o fundamentalista.
O que a pesquisa nos traz de novo para a compreensão do terrorismo é que após os ataques
terroristas de 11 de setembro, inaugurou-se então novas formas de conflito. A guerra como a
conhecemos antes se tornou agora “não convencional e de caráter transterritorial” (DUARTE, p.48).
Desta forma, como mostra João Paulo, há “um estado de ameaça terrorista sempre presente,
estabelecido por meio da promoção contínua de uma cultura do medo” produzida pela Guerra ao
Terror (DUARTE, p.49).
Foi dentro deste âmbito de caça e guerra a grupos e países considerados terroristas ou que
alojavam grupos terroristas que se instaurou o que o autor chama de novo paradigma de segurança
internacional, marcado por guerras preventivas em nome da paz. E a principal característica desta
nova guerra é, segundo ele, “a generalização do estado de exceção” (DUARTE, p.59). Ao utilizarse desta definição proposta pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, Duarte demonstra como as
medidas tomadas pelos Estados Unidos, ao não respeitarem, por exemplo, as normas de direito
internacional e a própria ONU, estão numa espécie de limbo jurídico, no qual o não acatamento do
ordenamento jurídico é justificado pela busca e reestabelecimento da paz mundial. Como mostra a
pesquisa, para melhor entendermos como funciona este uso contínuo de medidas de exceção, por
exemplo, basta lembrarmos da base de Guantánamo em território cubano.
Com isso, como afirma o autor, há uma mudança clara nas práticas de segurança internacional
que devemos prestar atenção. A partir do início da Guerra ao Terror dois conceitos são importantes
para se entender o atual cenário das políticas de segurança internacional: as intervenções militares e
a Responsabilidade de Proteger. Com a inscrição desta última como um princípio do Direito
Internacional pela ONU, tornou-se, desde então, imprescindível a necessidade de zelar e proteger
outros Estados ou populações em risco. Como consequência, a Responsabilidade de Proteger age
como um ato policial que gere, molda e padroniza a vida das pessoas num âmbito planetário,
buscando sempre prevenir a explosão de uma má conduta, neste caso, o terrorismo.
É esta nova forma de vida que João Paulo Duarte nos chama a atenção. Uma vida controlada a
todo momento para que qualquer sinal de insegurança seja rastreado de perto. Contudo, quanto
mais controle se exerce, mais bombas explodem, pessoas morrem, terroristas e terrorismos surgem,
pois o inimigo agora pode ser qualquer um, o seu vizinho ou você mesmo. Assim, quanto mais se
procura controlar o insuportável, mais o insuportável nos rodeia.
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