Inovação e Regulação na Biotecnologia

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Inovação e Regulação na Biotecnologia
INOVAÇÃO E REGULAÇÃO NA BIOTECNOLOGIA: DESAFIOS PARA A
INTEGRAÇÃO INTERCONTINENTAL
Cristina de A . Possas1 2
No mundo contemporâneo, novos desenvolvimentos da biologia molecular e da engenharia
genética, resultantes da revolução introduzida pela nova biotecnologia, estão rompendo com
concepções científicas até bem pouco tempo dominantes, reestruturando a ciência e a tecnologia em
direção a novos paradigmas e desdobrando-se em processos e produtos diversos, com fantástico
potencial em diversas áreas da atividade humana.
Os crescentes investimentos em pesquisas inovativas, em particular no campo da
genômica e mais recentemente da proteômica, envolvendo a saúde humana, animal, a agricultura e
o meio ambiente, vêm resultando em avanços importantes e promissores em biotecnologia.
Esses avanços vêm possibilitando a pesquisa e o desenvolvimento de diversos
produtos de uso comum e sustentável no mundo, facilitando processos de obtenção de fármacos e
incrementando a produtividade agrícola, além de possibilitar a elevação da qualidade ambiental.
Esses novos desenvolvimentos da biotecnologia vêm representando mudança de
paradigma na ciência contemporânea, conferindo ao componente biológico papel crucial no
processo de inovação tecnológica e de destaque com relação a outras tecnologias de ponta.
A noção de “paradigma tecnológico” formulada por Dosi (1982) é uma referência
teórica importante para a compreensão dos impactos econômicos e sociais destes processos
inovativos da biotecnologia na economia e na sociedade contemporâneas.
A velocidade de tais transformações vem exigindo, em escala global, a definição de
de novas políticas estatais, novas estratégias de investimento e novas configurações organizacionais.
O Brasil tem despontado na América Latina como um grande potencial na
biotecnologia, sobretudo pela sua grande biodiversidade, que constitui a principal fonte de genes
necessários à bioindústria. Soma-se a este quadro, a excelência dos cientistas brasileiros, que têm
despontado na produção científica internacional neste campo, gerando patentes inovativas.
Nos planos ético e jurídico, esses novos desenvolvimentos da pesquisa em
biotecnologia vêm suscitando o debate sobre temas polêmicos relacionados aos direitos humanos e
à proteção do meio ambiente, acerca do que é moralmente aceitável ou reprovável e envolvendo
questões como uso da informação, direito de privacidade dos indivíduos, impacto da atividade
científica na sociedade e a apropriação econômica e legal dos resultados da pesquisa no processo de
competitividade internacional.
Nesse novo contexto, a biossegurança de organismos geneticamente modificados
emergiu como um conceito fundamental na regulação da atividade científica, constituindo campo
1
Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, atualmente Coordenadora da Área de Pesquisa e Desenvolvimen-to
Tecnológico do Programa Nacional de DST-AIDS do Ministério da Saúde. Esse artigo é resultado de estudos e
pesquisas realizados pela autora quando foi Secretária Executiva da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio (2002-2003).
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Trabalho apresentado em mesa redonda na Conferência Brasil e União Européia Ampliada, UFRJ, Rio de Janeiro,
setembro de 2004.
2
específico do conhecimento, relacionado à antecipação, identificação, gestão, avaliação e
comunicação dos riscos resultantes da biotecnologia.
Questões de biossegurança e bioética, relacionadas às implicações para a saúde
humana e o meio ambiente da atividade científica nesse campo, têm suscitado controvérsias e ainda
constituem importante desafio no plano internacional, em que pese os importantes avanços da
ciência nesta área e a ampliação do debate por organizações diversas da sociedade.
Nesse ambiente internacional de crescente valorização da dimensão regulatória e
normativa da pesquisa em biotecnologia, os governos, as distintas comunidades científicas e as
sociedades envolvidas, têm buscado criar procedimentos que permitam harmonizar, no plano
internacional, o tratamento dessas diferentes ordens de questão.
Busca-se, através da harmonização, assegurar, de um lado, a proteção dos direitos do
cidadão, a melhoria da qualidade de vida das populações envolvidas e a proteção do meio ambiente;
de outro, a criação de condições que, no acirrado processo de competição internacional, viabilizem
parcerias estratégicas e assegurem a efetiva integração econômica e social.
Dado o enorme potencial econômico da pesquisa em biotecnologia e suas
aplicações, a inserção deste tema no processo de integração intercontinental em curso é crucial e de
ordem estratégica. Faz-se necessário estimular os governos, as comunidade científica e tecnológica
e as sociedades na América Latina e União Européia a examinar alternativas e antecipar possíveis
cenários futuros para a cooperação neste campo nos diferentes setores de atividade. Para tanto será
necessário promover a reflexão e o debate sobre o papel da ciência e da tecnologia na construção
deste futuro e sobre estratégias para a superação dos atuais entraves que vêm dificultando os
avanços nesta área.
Neste trabalho discutiremos de forma sucinta algumas das questões regulatórias
que necessitam ser equacionadas no campo da biotecnologia em cada uma das áreas do
conhecimento
(nos campos da saúde humana e animal, questões envolvendo vacinas
recombinantes, fármacos e medicamentos, células tronco e clonagem terapêutica; nos campos da
agricultura e meio ambiente: questões relacionadas ao consumo e introdução de plantas
geneticamente modificadas no meio ambiente), visando identificar áreas estratégicas para esse
processo de integração.
O adequado equacionamento destas questões é crucial para assegurar que o
esforço regulatório e harmonizador no plano internacional não constitua um obstáculo ao avanço da
biotecnologia nos países em desenvolvimento, mas, ao contrário, contribua para impulsionar a
atividade científica e tecnológica neste campo, assegurando a necessária proteção à sociedade e ao
meio ambiente e contribuindo para o desenvolvimento econômico e social.
I. BIOTECNOLOGIA E SAÚDE: CONQUISTAS E OBSTÁCULOS
Uma nova fase na pesquisa genética foi inaugurada com a recente conclusão do
seqüenciamento do Genoma Humano. Esta conquista certamente representou importante marco na
história da humanidade suscitando uma série de questões de natureza ética e regulatória
relacionadas às possíveis formas de utilização do conhecimento resultante do mapeamento dos
genes de seres vivos.
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Estes avanços, introduzidos pela chamada Revolução Genômica, levaram a
mudanças paradigmáticas na compreensão e análise dos processos biológicos, possibilitando
determinar, em escala molecular, mecanismos de ação das mais variadas doenças.
Os resultados e aplicações destas conquistas têm possibilitado a identificação de
alvos para a atuação de novas drogas e vêm sendo crescentemente incorporados na pesquisa
biotecnológica pela indústria farmacêutica no desenvolvimento de novas moléculas e produção de
novos medicamentos.
Outra Revolução que já se encontra em curso e que também implicará mudanças
paradigmáticas neste campo é a da Proteômica, com importantes impactos na sociedade e na
economia. A Proteômica, ao realizar a análise funcional do genoma ao nível protéico, permite a
caracterização de padrões de produção de proteínas, que são essenciais à compreensão das funções
celulares e dos processos patológicos.
O Brasil tem atuado com destaque internacional na pesquisa genômica. O
projeto Genoma Nacional, com a participação de diversos grupos de pesquisa no País, tem realizado
conquistas importantes em várias áreas do conhecimento.
Na área da saúde humana, destaca-se, entre inúmeros outros, o Projeto Genoma
Humano do Câncer, coordenado pelo Instituto Ludwig (São Paulo), que permitiu o desenvolvimento
de técnica revolucionária baseada no seqüenciamento da parte central dos genes que codificam as
proteínas, a partir de estratégia altamente diferenciada e vantajosa.
No cenário internacional estas conquistas têm levando ao rápido crescimento nos
investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico e no número de instituições científicas e
empresas de biotecnologia.
Produtos resultantes de novos avanços da pesquisa biotecnológica nas áreas de
saúde humana e animal já estão sendo comercializados, como o interferon humano, a insulina, o
hormônio de crescimento, novas vacinas recombinantes, além dos novos desenvolvimentos em
biofármacos, terapia gênica.
Quanto aos fármacos e medicamentos, projetá-los e saber exatamente como
funcionam está se tornando cada vez mais fácil. Novos métodos de imagem das moléculas
individuais de DNA em aplicações farmacológicas, projetando novas drogas anti-virais, estão
surgindo e são bem mais rápidos que os métodos tradicionais, possibilitando informações valiosas
sobre como as drogas se ligam aos genes.
Na área farmacêutica, o impacto dessas transformações tem sido extraordinário.
Modelos animais de modificação genética indicam que essas novas tecnologistas vêm emergindo
como uma possibilidade muito promissora para a prevenção e tratamento de amplo espectro de
doenças, desde as infecciosas até as crônico-degenerativas, destacando-se em escala mundial, a
pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos para doenças como câncer, mal de Alzheimer e
AIDS, entre outras.
Especificamente no que diz respeito às vacinas, a tecnologia do DNA recombinante
vem possibilitando o desenvolvimento de vacinas preventivas e terapêuticas mais seguras, eficazes
e polivalentes, entre as quais destacam-se: vacinas recombinantes de subunidades, de segunda
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geração; vacinas gênicas; vacinas vetorizadas por microorganismos, de terceira geração (gens
carreados por plasmídeos de DNA).
Estudos diversos referentes às essas novas tendências do mercado global na
biotecnologia, chegam mesmo a estimar cifras gigantescas, projetando-se que, com relação
especificamente a fármacos e medicamentos bioengenheirados, em 2004 somente o mercado norteamericano para esses produtos alcançaria cifra da ordem de US$ 3,35 bilhões.
Como resultado desse rápido processo inovativo, vacinas, fármacos, medicamentos e
kits para diagnóstico e monitoramento baseados na tecnologia do DNA recombinante já estão sendo
crescentemente incorporados às rotinas médicas em todo o mundo, na prevenção, no diagnóstico e
na terapêutica de doenças diversas, inclusive em países em desenvolvimento como o Brasil.
Outra característica importante desta revolução biotecnológica é que, como veremos
mais adiante, a flexibilidade de seus procedimentos tecnológicos acaba rompendo com os limites
tradicionais que costumam demarcar setores como a saúde humana, a saúde animal e a agricultura.
Um bom exemplo de convergência tecnológica entre os setores da saúde humana e
animal e a agricultura é o desenvolvimento de plantas com propriedades diversas imunizantes e
terapêuticas
Como área de fronteira, na interface entre os campos da saúde e agricultura, destacase ainda, como veremos mais adiante, o desenvolvimento de “plantas-vacina”, que são plantas
contendo vacinas recombinantes que assegurem imunização oral contra doenças diversas como
cólera Hepatite B e cáries dentárias (S.mutans), como mostram Richter e Kipp (1999), além do
desenvolvimento de plantas transgênicas para imunização oral contra diarréias de origem
bacteriana, que matam mais de 1 milhão e meio de crianças por ano no mundo, tais como a batata
transgênica contendo subunidade LT-B de E.coli enterogênica induzindo resposta imune (Arntzen,
1998). Além de propriedades imunizantes, destaca-se também o desenvolvimento de plantas
engenheiradas com finalidade terapêutica, para suprir carências alimentares, por exemplo).
Esta convergência tecnológica entres os campos da saúde e agricultura vem cada vez
mais colocando novos desafios de ordem regulatória e também nos planos político-institucional e
cultural, o que impõe de forma a necessidade de tratamento integrado das novas questões, numa
perspectiva intersetorial e interdisciplinar, pelos governos, empresas e sociedades.
Esse cenário vem exigindo crescentemente, dos países desenvolvidos e também em
desenvolvimento, como o Brasil, que vêm investindo na engenharia genética, prioridade para novas
questões regulatórias e normativas que resultam dessas novas tecnologias, relacionadas à
biossegurança e à bioética.
Essas novas tendências certamente estão tendo significativo impacto na atividade
científica no setor farmacêutico. Nesse setor, além das questões de bioética na pesquisa com seres
humanos, questões de biossegurança diversas envolvendo o uso em contenção de organismos
geneticamente modificados (OGMs) estão requerendo cada vez mais abordagens apropriadas e
viáveis para a antecipação, avaliação, monitoramento e gestão dos riscos potenciais à saúde
humana, animal, agricultura e meio ambiente.
No Brasil, é crescente a demanda de avaliações de bioética e biossegurança
nesta
área. Com relação especificamente a questões de bioética relacionadas à pesquisa com seres
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humanos, aas avaliações são realizadas pela CONEP, Comissão de Ética em Pesquisa do Ministério
da Saúde, voltada especificamente, conforme a Resolução 196/96 do Ministério da Saúde, a quem
compete tratar questões de bioética envolvendo a pesquisa com seres humanos.
Quanto à biossegurança, a CTNBio, através de sua sub-Comissão de Saúde Humana e
Animal avalia pesquisas, processos e produtos resultantes do desenvolvimento de fármacos de alto
valor agregado, anticorpos monoclonais, interferons, terapias anticâncer, proteínas, hormônio de
crescimento, insulina, fatores de coagulação e novas vacinas recombinantes para prevenção de
doenças diversas (HIV/AIDS, Hepatites e outras).
Essas novas demandas na avaliação e monitoramento de riscos relacionados a
atividades com organismos geneticamente modificados, contemplam aspectos distintos que devem
ser
considerados: identificação do risco; monitoramento da exposição e avaliação das
conseqüências da exposição; monitoramento do nível de risco; gestão do risco; definição e
avaliação de medidas apropriadas de controle; e comunicação do risco.
Essas transformações vêm impondo ainda a necessidade de revisão de prioridades
nessa área, que transcendem a dimensão regulatória e normativa. É necessário assegurar a a curto
prazo a realização de investimentos estratégicos em redes de pesquisa clínica (adequada infraestrutura para pesquisa clínica nas Universidades e Institutos de Pesquisa para atuarem em parceria
com empresas), capacitação de recursos humanos, qualificação da percepção do risco pela
população e pelos profissionais envolvidos, boas práticas de laboratório e infraestrutura de
biossegurança.
Tais investimentos podem ser instrumentos poderosos para alavancar a pesquisa e o
desenvolvimento nesse campo, especialmente nos países em desenvolvimento como o Brasil,
ajudando-os a melhorar sua capacidade de lidar com os problemas de saúde de suas populações e a
proteger o meio ambiente.
No Brasil, os principais obstáculos referem-se à falta de investimentos na pesquisa
clínica e na inovação tecnológica nesta área, destacando os atuais obstáculos às relações
universidade-empresa (propriedade intelectual, contratos, etc.), problema que poderá ser superado
caso seja aprovada pelo Congresso Nacional as nova Leis de Inovação e da Parcerias PúblicoPrivadas (PPP). Em que pese os recentes e importantes avanços na formulação da nova Política
Industrial na área farmacêutica (PRO-FARMA), no plano regulatório as instituições científicas e as
empresas ainda se ressentem do grande atraso na aprovação pelo Congresso Nacional dessas leis e
da nova Lei de Biossegurança.
Destaca-se, também, numa outra linha de investigações no campo da saúde humana e
animal, a pesquisa com células-tronco (células-tronco embrionárias, células-tronco adultas e outras
células tronco não-embrionárias), que têm enorme potencial como fonte de novo tecido para uso
terapêutico no tratamento de ampla gama de doenças (diabetes, câncer e queimaduras severas, além
de novos desenvolvimentos no tratamento de doenças genéticas, neuromusculares e
neurodegenerativas como a esclerose múltipla, a doença de Parkinson . Em trabalho anterior,
destacamos esse potencial terapêutico das células-tronco embrionárias e suas implicações para a Lei
de Biossegurança (Possas, 2002).
São diversas as fontes de células-tronco: embriões em fase muito inicial (blastocistos)
criados por fertilização in vitro, embriões iniciais criados por transferência nuclear ou “clonagem”,
feto abortado (células germinais ou órgãos), células do cordão umbilical, de alguns tecidos adultos
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(medula óssea), de células de tecido adulto maduro reprogramadas para se comportarem como
células-tronco embrionárias (pesquisas ainda em desenvolvimento).
A pesquisa com células-tronco possui, apesar da enorme potencialidade, inúmeras
dificuldades de natureza prática na sua aplicação, uma vez que o processo de indução da
diferenciação das células tronco nos tecidos do corpo humano é bastante complexo.
O Brasil tem realizado pesquisas importantes com células-tronco adultas e outras células não
embrionárias, como, por exemplo, no tratamento de lesões cardíacas. Estas células tronco adultas e
não embrionárias têm sido apontadas como uma alternativa, pois não envolvem questões éticas
suscitadas pela utilização de células-tronco embrionárias.
No entanto, as células tronco embrionárias são, ao que tudo indica, as que possuem maior
potencial terapêutico, por sua extraordinária plasticidade e capacidade de se diferenciar em qualquer
tipo celular. São células pluripotentes, com o maior potencial de desenvolvimento nos mais
diversos tipos de tecido, ocupando com facilidade áreas lesionadas. No futuro, pretende-se
reprogramar células adultas para que se comportem com todo o potencial das células embrionárias,
evitando as atuais questões éticas e legais.
As células tronco embrionárias, utilizadas na chamada “clonagem terapêutica”, são
encontradas em embriões de poucos dias de vida, na fase do blastocisto, portanto antes de sua
fixação no útero. A clonagem terapêutica, a partir da utilização de linhagens de células
embrionárias com fins terapêuticos, é defendida por grande parte da comunidade científica
internacional, em oposição à “clonagem reprodutiva” (colocação de um embrião criado pelo
processo de transferência nuclear no útero de uma mulher), considerada um ato criminoso na
maioria dos países e também no Brasil.
A principal questão envolvendo a clonagem terapêutica é de natureza ética e legal, pois
a obtenção de linhagens de células tronco embrionárias resulta no sacrifício dos embriões clonados.
O debate ético centra-se no status de ser humano, se blastocistos ainda não fixados no útero são
seres humanos em potencial.
Este debate remete ao campo da bioética. Como bem colocam autores como Henri
Atlan (1999) e o próprio Potter(1970), criador do conceito de bioética, esse conceito refere-se à
orientação do comportamento humano no momento da realização de pesquisas envolvendo a vida
humana e extra humana (plantas e animais), no campo da biociência, diferenciando-se pois da ética
clássica.
De um lado, há aqueles que se orientam por princípios de ordem moral, religiosa ou
cultural, e que defendem que a utilização de qualquer embrião, mesmo em fase muito inicial, para
fins de pesquisa, é anti-ética e inaceitável. Para estes, qualquer embrião, mesmo que ainda não
implantado no útero ou mesmo não viável para implantação (por defeito genético ou outras
características) merece o status de ser humano desde o momento de sua criação e deverá estar
sujeito ao mesmo nível de proteção legal de um recém-nascido.
De outro, aqueles que numa posição oposta, julgam que um embrião ainda não implantado,
sobretudo em uma fase muito inicial como o blastocisto, não deve ser objeto de atenção especial.
Para estes o embrião não é vida por si só, ele se transforma em vida no momento em que nada, se
fixa no útero. Nesse entendimento, a pesquisa científica com embriões não suscitaria maiores
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questionamentos de natureza ética. Um argumento aqui refere-se à grande quantidade de embriões
descartados pelas clínicas de fertilização.
Em alguns países, como a Inglaterra, uma posição considerada intermediária neste debate
ético e regulatório, está sendo adotada com sucesso e nos parece a mais adequada. Embora a
legislação naquele país reconheça o status especial de um embrião como um ser humano potencial,
considera-se que a proteção legal aumenta na medida em que o embrião se desenvolve. Assim,
nesse enfoque, embora haja certa proteção legal ao embrião, ela é ponderada nos estágios iniciais do
blastocisto, para assegurar benefícios de pesquisas promissoras e a clonagem terapêutica certamente
inclui-se entre elas.
Quanto à viabilidade dos embriões, estima-se que cerca de metade dos embriões se perdem
durante a gravidez e nunca se tornam seres humanos. Quanto aos embriões descartados pelas
clínicas de fertilização, a viabilidade é muito mais reduzida. Diante deste quadro, os defensores da
clonagem terapêutica argumentam com um argumento de natureza ética: o uso dos embriões
descartados pelas clínicas de fertilização e em grande parte não viáveis para implantação, deveria
ser legalizado em benefício da ciência, para salvar vidas.
A limitação da pesquisa com células adultas tem sido também apontada, em defesa das
células embrionárias. Em doenças de origem genética, células tronco adultas do próprio doente não
têm efeito por terem o mesmo DNA relacionado ao problema genético. E mesmo no caso das
demais doenças, tudo indica que não possuem a mesma plasticidade e capacidade de regeneração
das células tronco embrionárias.
As perspectivas futuras para a medicina são extraordinárias: pessoas forneceriam suas
próprias células para criação de embriões clonados, obtendo-se células-tronco em cultura. Isto
permitiria implante de células e tecidos sem os problemas atuais de rejeição que afetam o
transplante.
Parcela importante da comunidade científica brasileira tem se pronunciado brasileira
favorável às pesquisas com células tronco embrionárias e à clonagem terapêutica, destacando seu
enorme potencial para a cura de doenças diversas. Para os cientistas que defendem sua utilização, os
benefícios da técnica justificam o procedimento: como as clínicas de fertilização utilizam muito
embriões que nunca vão ser usados, argumentam que entre descartá-los e usá-los para terapia a
escolha é óbvia. Além disto, para muitos destes cientistas, se o novo projeto de lei for aprovado, a
autorização para essas pesquisas daria ao Brasil importante vantagem comparativa no cenário
internacional.
É inegável o maior potencial terapêutico das células embrionárias. A clonagem terapêutica
está sendo tratada no âmbito da nova Lei de Biossegurança e as instituições científicas envolvidas
vêm se ressentindo do grande atraso na aprovação desta Lei pelo Congresso Nacional. Se aprovada
no Congresso, esta Lei, que dispõe sobre a atuação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio), deverá manter a proibição da clonagem reprodutiva, mas permitirá a pesquisa com
células embrionárias e a clonagem terapêutica. Países desenvolvidos como, por exemplo, a
Inglaterra têm avançado rapidamente neste campo, tanto no plano legal quanto no plano
institucional.
A defasagem do Brasil com relação a esses novos tratamentos poderá significar importante
ônus econômico e social para o País, em particular no que diz respeito ao Sistema Único de Saúde e
à Previdência Social. Caso novos tratamentos de doenças hoje incuráveis surjam, a legislação
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brasileira em vigor dispõe, que no caso de tratamentos não disponíveis no País, estes poderão ser
realizados no exterior, o que certamente onerará de forma considerável os cofres públicos.
Os principais desafios éticos e legais no debate da clonagem terapêutica envolvem o
enfrentamento de três ordens distintas de questão. A primeira, a necessidade de balancear direitos:
direitos de embriões ainda não implantados no útero e descartados pela natureza e por clínicas de
fertilização versus direitos de pacientes graves portadores de doenças neurodegenerativas, genéticas
e lesões a uma melhor qualidade de vida. A segunda, a de preservar os direitos do cidadão de
injunções de natureza religiosa ou ideológica. Finalmente, a terceira, a de criar um ambiente
regulatório adequado ao desenvolvimento da ciência.
Aqui, a adequada regulamentação da atividade científica constitui o principal desafio. Essa
regulamentação poderia permitiri o uso de embriões de clínicas de fertilização que já não podem
gerar uma gravidez, mas ainda são fontes de células-tronco. Esta pesquisa se limitaria a uma Rede
Nacional de Centros de Excelência credenciados e submetidos a rigoroso controle e à avaliação por
Comitês de Ética, que estabeleceriam limites aceitáveis para a pesquisa nesse campo.
II. BIOTECNOLOGIA E AGRICULTURA: PERSPECTIVAS E DESAFIOS
Na biotecnologia vegetal, a velocidade dos seus processos inovativos vem suscitando
questões novas e sensíveis relacionadas a mudanças em práticas agrícolas tradicionais, resultando
em considerações diversas sobre seus potenciais riscos à saúde humana e animal e ao meio
ambiente.
Estes avanços tornaram, por outro lado, ainda mais complexa as relações entre a sociedade e
a ciência, suscitando o debate de questões de biossegurança envolvendo a atividade científica no
campo da engenharia genética, pela natural preocupação da sociedade sobre os riscos que poderiam
acarretar.
Examinaremos inicialmente aqui, de forma sucinta, a situação atual da pesquisa em
biotecnologia vegetal no Brasil, seus diferentes estágios inovadores e os principais desafios
regulatórios para o dimensionamento e gestão do risco na atividade científica e tecnológica neste
campo. A seguir, discutiremos questões envolvendo a percepção pública do risco e em que medida
esta percepção pode afetar os procedimentos regulatórios e institucionais na biotecnologia agrícola.
Como indica James (2001), a engenharia genética aplicada ao melhoramento vegetal já vem
provocando expressivas mudanças nos sistemas de produção agrícola, possibilitando aumento da
produtividade na produção de alimentos, com segurança ambiental e redução dos custos de
produção.
Nepomuceno (2001) aponta para o fato de que a competitividade da agricultura mundial em
um mercado globalizado está portanto diretamente vinculada à capacidade de se incorporar os
avanços da biotecnologia vegetal ao processo produtivo, reduzindo custos de produção e
assegurando o aumento da produtividade agrícola em condições adversas de clima e solo.
Na agricultura brasileira, a biotecnologia vem passando por rápidas e importantes
transformações, em particular na última década. Programas de pesquisa e desenvolvimento nesta
área vêm se beneficiando da aplicação de importantes ferramentas biotecnológicas:
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desenvolvimento de animais e plantas assistidos por marcadores genéticos; mapeamento do genoma
de várias espécies, transferência nuclear gerando embriões de diversas espécies animais;
caracterização e conservação de recursos genéticos e desenvolvimento de diversos produtos
geneticamente modificados (Sampaio, 2000).
A pesquisa genômica na agricultura tem sido conduzida por destacados institutos nacionais
de pesquisa, com reconhecimento científico internacional. Em 1997, a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) lançou programa de pesquisa nesta área com a
finalidade de seqüenciar o genoma completo da bactéria fitopatogênica Xyllela fastidiosa, causadora
da doença de Pierce (clorose variegada do citrus), doença que afeta 30% dos laranjais paulistas
causando danos estimados em US$ 50 milhões ao ano. O referido seqüenciamento foi realizado
por um grupo de pesquisa apoiado pela FAPESP em colaboração com o US Agricultural Research
Service (ARS), destacando-se o fato de que pela primeira vez no mundo uma bactéria fitopatogênica
foi seqüenciada (Simpson et al. 2000).
Nesse contexto foi estruturada no Brasil a rede ONSA (Organization for Nucleotide
Sequencing and Analysis Net) abrangendo pesquisadores em diversas universidades e institutos de
pesquisa no País. Nesta rede, diversos outros projetos foram desenvolvidos: o genoma da cana de
açúcar (Sugar Cane EST Project) e o genoma da Xanthomonas citri, além do genoma humano do
câncer. Além dos trabalhos de seqüenciamento, a rede ONSA, que conta atualmente com cerca de
500 pesquisadores, estudantes e técnicos está também trabalhando com análise funcional de
genomas de plantas e microorganismos para a agricultura.
Destacam-se ainda no País inúmeras outras pesquisas de ponta na biotecnologia agrícola:
desenvolvimento do milho brasileiro para produzir hormônio do crescimento, em desenvolvimento
pelo Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e o Instituto de Química da Universidade de São Paulo; desenvolvimento da soja para
produzir insulina e hormônio de crescimento pela EMBRAPA; desenvolvimento de mamão papaya
resistente à variedade brasileira do Ring Spot Virus, desenvolvido pela EMBRAPA em colaboração
com a Universidade de Cornell; desenvolvimento de feijões comuns (Common beans) resistentes ao
Virus do Mosaico Dourado (Golden Mosaic Virus), desenvolvido pela EMBRAPA Centro Arroz e
Feijão.
Estas novas conquistas no campo da biotecnologia agrícola estão estimulando grupos de
pesquisa nacionais e internacionais a desenvolver novas plantas com maior resistência ao estresse,
cultivadas com menores quantidades de pesticidas químicos, que podem ser transformados em biofábricas, que propiciam colheita mais rápida, que transformam a luz solar e que serão mais
resistentes à radiação ultravioleta (um efeito da diminuição da camada de ozônio) (Sampaio, 2000).
A biotecnologia de plantas pode também projetá-las no sentido de reduzir os componentes
alergênicos de alimentos convencionais como o trigo e o amendoim (Avery, 2000).
Com esta perspectiva, o Ministério da Ciência e Tecnologia, tem apoiado, através do
CNPq e da FINEP, em colaboração com as Fundações Estaduais de Pesquisa e com os demais
Ministérios, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, através da EMBRAPA,
projetos em áreas cruciais para a biotecnologia brasileira.
Os novos Fundos Setoriais criados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, foram
criados para propiciar novo arranjo institucional e novas fontes adicionais de recursos extraorçamentárias para financiamento às atividades de pesquisa e desenvolvimento na biotecnologia,
com a perspectiva de significativo impacto no sistema de inovação no País.
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Em artigo anterior (Possas e Nepomuceno, 2002), ressaltamos a importância da adequada
compreensão dos estágios inovadores da biotecnologia vegetal. Procuramos mostrar que a
engenharia genética aplicada à agricultura, em que pese as importantes conquistas já alcançadas,
encontra-se ainda em fase muito inicial de desenvolvimento, pois a tradução do conhecimento
gerado pelo desenvolvimento da genômica para a identificação e o mapeamento de genes e sua
modificação ainda é um processo relativamente recente.
Como mostramos naquele trabalho, estamos assistindo na atualidade à “primeira onda” do
processo inovativo da biotecnologia vegetal, que se caracteriza pela incorporação das características
dos produtos convencionais nos produtos geneticamente modificados e seus derivados, como é o
caso da soja resistente ao herbicida glifosato.
Portanto nesta “primeira onda” estão sendo introduzidas em plantas, principalmente,
características que permitem a tolerância à ação de herbicidas (e.g. Glifosato, gene CP4 EPSPS;
Glufosinato de Amônia, genes bar e par, Imidazolinonas, gene ahas, etc.), características que
impedem o ataque de insetos (e.g. plantas Bt com os genes Cry1, Cry2, Cry3, Cry4 e Cry9),
características que retardam a maturação de frutos (e.g. genes ACC, Aminocyclopropane; gene
SAM – S-Adenosylmethionine; gene PG – Polygalacturonase) e características que conferem
resistência a vírus (e.g. gene CMV – CP, Cucumber Mosaic Virus Coat Protein; gene CP-VMDF,
Capa Protéica do Vírus do Mosaico Dourado do Feijão) onde a inserção de DNA que codifica para a
CP-Capa Protéica do Vírus reduz a reprodução do vírus (Miflin, 2000).
Estas características são importantes agronomicamente, podendo favorecer o manejo das
lavouras e, em muitas situações, reduzir os custos da produção. Como observa Nepomuceno
(Nepomuceno 2001, Nepomuceno et al 2001.), dentro de um curto prazo ainda veremos, nesta
primeira onda, outras características de tolerância a diferentes moléculas de herbicidas, insetos,
vírus e outros patógenos como fungos e bactérias, assim como características que conferem
tolerância a estresses abióticos, como à seca.
A “segunda onda” dos alimentos geneticamente modificados já começa a apresentar ao
mercado seus primeiros produtos. Nessa onda tem-se a incorporação de características que
adicionam qualidades físico/químicas que aumentam o valor agregado do produto final.
Aqui são incorporadas características que aumentam o valor nutricional na soja (e.g. gene
GmFad2-1, que confere à soja altos teores de ácido oleico, high oleic soybean), do girassol (e.g.
com baixos teores de ácidos graxos saturados, mid-oleic sunflower), do trigo (exemplo: alteração
nos teores de gluten e amido), e da canola (e.g. High laurate (12:0) and myristate (14:0) canola) já
estão disponíveis comercialmente em alguns países (Dellapenna, 2001).
A segunda onda inovativa introduzirá no mercado produtos que diferem dos obtidos de
forma convencional. Esses novos desenvolvimentos da biotecnologia na agricultura permitirão
disponibilizar grãos com maior valor nutricional e desenvolver cultivos orientados para um mercado
crescente em busca de produtos mais saudáveis (Gruzak e Dellapenna, 1999). Alimentos mais
saudáveis com características que reduzem, por exemplo, a alergenicidade que certas substâncias
(e.g. soja com o silenciamento da Proteína P34) causam em alguns grupos de pessoas sensíveis.
Além disto, características que buscam a proteção do meio ambiente também estão sendo
disponibilizadas. O milho com baixos teores de ácido fítico é um exemplo (low-phytic-acid corn).
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Nesse milho há uma redução dos teores de fósforo, o que reduz a quantidade de fósforo nos dejetos
animais, diminuindo a poluição ambiental.
Contudo, considera-se que a maior revolução nos sistemas de produção agrícola virá nas
próximas décadas com a chamada “terceira onda”, introduzindo características talvez inimagináveis
até então. Plantas geneticamente modificadas desempenharão o papel de vacinas, alimentando e ao
mesmo tempo combatendo doenças; ou atuarão como biofábricas com aplicação nas indústrias de
medicamentos (plantas geneticamente modificadas expressando insulina, hormônios de crescimento
e outros produtos de aplicação farmacêutica), alimentos e rações. Nesta “terceira onda”, as plantas
passam a ser biofábricas e biorreatores, o que poderá colocar, como se verá mais adiante,
importantes desafios de natureza ética e regulatória, por envolverem a transferência de genes
humanos e animais para plantas geneticamente modificadas.
Um bom exemplo aqui é a gastroenterite suína, causada por uma espécie de vírus
(“Transmissible Gastroenteritis Virus” – TGEV) e tem causado perdas de mais de US$ 10 milhões
anuais na suinocultura canadense. Pesquisadores da Universidade de Guelph no Canadá, iniciaram
trabalhos visando o desenvolvimento de plantas forrageiras geneticamente modificadas cujos
genes introduzidos expressam proteínas que imunizam os suínos que se alimentam destas plantas. A
viabilização desta tecnologia (que vem sendo chamada de Vacinas Comestíveis), provavelmente
facilitará e ampliará a imunização do rebanho suíno canadense. A mesma estratégia já vem sendo
trabalhada por diversos grupos visando a vacinação de humanos contra hepatites e desinterias
(Giddings et al., 2000).
No Brasil, pesquisas desenvolvidas em parceria entre a EMBRAPA e a UNICAMP têm
demonstrado a viabilidade da produção de insulina humana e hormônio humano de crescimento em
sementes de soja e milho. Hoje aproximadamente 60% da insulina e boa parte do hormônio humano
de crescimento vendido nas farmácias são produzidos por meio de técnicas de DNA recombinante,
em que essas substâncias são produzidas em bactérias e leveduras. Essa tecnologia permitiu reduzir
custos e aumentar a qualidade do produto. A proximidade evolucionária entre plantas e seres
humanos, em comparação entre bactérias/leveduras e seres humanos, permite transformar plantas
em ótimas biofábricas que podem produzir fármacos com eficácia ainda maior (Leite et al., 2000).
Um outro exemplo do potencial do uso de plantas para produção de diversos compostos é o
trabalho da equipe do Dr. Kenneth Gruys, publicado na revista “Nature Biotechnology” (Slater et
al., 1999). Neste trabalho, o autor mostra que é possível a produção de bioplástico por intermédio de
plantas. O bioplástico é um excelente concorrente do plástico produzido a partir do petróleo. A
introdução de genes induziu a expressão de cristais de bioplástico em folhas de tabaco, indicando
tratar-se de tecnologia com grande potencial.
À medida que estas novas tecnologias tornam-se mais aceitas pela sociedade, existem
expectativas otimistas no sentido de que o baixo custo de produção de substâncias terapêuticas
livres de patógenos e toxinas e a produção de matérias primas importantes para a indústria por meio
de plantas geneticamente modificadas, serão instrumentos decisivos para a ampliação dos
benefícios sociais da saúde pública e da atividade agrícola.
Segurança Alimentar
12
Há no Brasil diversos estudos que analisam em profundidade a questão da biossegurança
de alimentos derivados da biotecnologia do DNA recombinante (Belém et al. 2001, Belém et al.
2000), indicando a complexidade do tema e suas implicações para a saúde humana.
No cenário internacional, merece destaque nesta área relatório recente da Royal Society
do Reino Unido. De início, cabe observar que uma observação importante neste relatório, que
fundamenta também a Lei de Biossegurança brasileira e os pareceres da CTNBio, é que os
organismos geneticamente modificados têm que quer ser analisados caso a caso, em profundidade,
sem generalizações.
O referido relatório conclui que não há evidência científica de que os alimentos
geneticamente modificados aprovados, até então, para consumo humano, possam ser prejudiciais à
saúde.
1998 a “Royal Society” publicou um relatório intitulado “Genetically modified plants for
food use” (Plantas geneticamente modificadas utilizadas para uso como alimento), que concluiu que
o uso dessas plantas pode oferecer benefícios importantes à atividade agrícola e ao incremento da
qualidade nutricional dos alimentos. Destacou porém, naquele relatório, que existiam vários
aspectos que teriam que ser levados em consideração para o uso seguro destes alimentos.
Em 2002, a “Royal Society” selecionou um grupo de especialistas do mais alto nível para
atualizar o relatório anterior, baseando-se nos resultados das pesquisas científicas realizadas
internacionalmente desde 1998. (Royal Society, 2002).
Essa atualização centrou-se basicamente nos possíveis efeitos dos alimentos
geneticamente modificados na saúde humana e no meio ambiente. Esse relatório faz várias
sugestões de como se poderá melhorar os testes feitos com transgênicos. O referido relatório trata
de diversos itens, tais como: uso do princípio da equivalência substancial nos testes de segurança
alimentar dos produtos alimentícios geneticamente modificados; possíveis efeitos desses produtos
na nutrição humana; possíveis reações alérgicas causadas por estes alimentos; potenciais efeitos do
uso de seqüências virais em plantas transformadas geneticamente na saúde humana e o destino do
DNA da planta geneticamente modificada no trato digestivo do ser humano.
As principais conclusões extraídas deste documento são que não há evidências para se
acreditar que os alimentos geneticamente modificados aprovados, até então, para consumo humano,
possam ser prejudiciais á saúde.
O relatório trata também da controvérsia envolvendo o princípio da equivalência
substancial de alimentos geneticamente modificados e convencionais (uma discussão sobre esta
questão no Brasil foi feita por Belém et al, 2000).
Este relatório da Royal Society observa que essa controvérsia foi reconhecida num
relatório conjunto da FAO/OMS (Food and Agriculture Organization, ligada às Nações Unidas, e a
Organização Mundial da Saúde) em 2000, como uma percepção errônea de que o uso deste
instrumento seria um ponto final nos testes de segurança para a liberação de organismos
geneticamente modificados e não são encarados como um ponto de partida, como deveriam ser
entendidos.
A “Royal Society” concorda com este ponto de vista da FAO/OMS com relação à
equivalência substancial e defende que este estudo deve ser mais bem elaborado, de forma mais
13
objetiva, levando-se em consideração as diferenças nas condições de aplicação desses testes, como
por exemplo, as condições de aplicação nos diferentes estados membros da União Européia,
inclusive levantando várias sugestões e recomendações.
Sobre os efeitos nutricionais, o relatório considera que especial atenção deve ser dada às
características fisiológicas particulares de bebês, crianças, mulheres grávidas ou em fase de
amamentação e idosos.
Embora os princípios básicos para os estudos desses efeitos já tenham sido bem
estabelecidos pela “European Commission Scientific Committee for Food”, o relatório sugere que
um maior detalhamento deste protocolo deva ser feito, considerando a forma em que o alimento é
oferecido e a adequação do alimento em termos de energia e nutrientes.
Com relação às respostas alérgicas, o relatório concluiu que, até o momento, não há
evidências de que esses alimentos já aprovados para consumo humano causem manifestações
clínicas de alergenicidade. Os riscos destas reações ocorrerem são basicamente os mesmos de num
alimento convencional. Por isso, é sempre necessário que testes sejam realizados em alimentos
“novos”, quando disponibilizados no mercado.
Finalmente, sobre os efeitos das seqüências virais e do destino do DNA no trato digestivo
humano, também não há resultados disponíveis até o momento de que isso possa prejudicar a saúde
humana. Em relação às seqüências virais, apesar do ser humano ter se alimentado de plantas
infectadas com vírus durante milênios, não há evidências da criação de uma nova doença resultante
da recombinação virótica. Já sobre a absorção do DNA no trato digestivo, concluiu-se que não há
evidências de transferência de genes intactos para humanos.
Outro estudo, cujos resultados foram recentemente divulgados pela União Européia (2001),
certamente contribuirá para a discussão mundial sobre uso e segurança de organismos
geneticamente modificados. Realizado no período de 15 anos (entre 1985 e 2000), o referido estudo
atesta que as plantas geneticamente modificadas, além de serem seguras para o consumo humano e
o meio ambiente, podem na verdade, o que causou surpresa, ser ainda mais seguras do que as
convencionais, pela regulamentação cada vez mais rigorosa a que vêm sendo submetidas.
Esse estudo abrangeu 81 projetos em diversos países europeus que envolveram mais de
400 equipes de diversas áreas, como saúde, nutrição, biotecnologia aplicada à agricul-tura e à
indústria de alimentos. No estudo foi acompanhado todo o processo, desde a fase inicial de
desenvolvimento das plantas geneticamente modificadas até a etapa final do consumo de alimentos.
O estudo concluiu que não foi identificado qualquer risco à saúde humana ou ao meio
ambiente, além dos já percebidos nas plantas convencionais.
Com base nos dados disponíveis, destaca que “além disso, o uso de tecnologia mais precisa
e a maior rigidez dos processos de regulamentação fazem das plantas e alimentos geneticamente
modificados, provavelmente, produtos mais seguros que os convencionais”.
Relatório recente da FAO, “A Situação da Alimentação e da Agricultura em 2003-2004”
destaca o papel crucial que a biotecnologia vegetal poderá desempenhar nos países em
desenvolvimento, uma vez que atualmente mais de 70% da população mundial vive em áreas rurais
e depende da agricultura para sua sobrevivência. Acresce-o o fato de que o setor agrícola terá que
sustentar dois bilhões a mais de pessoas nos próximos 30 anos.
14
Segundo a FAO, o principal desafio para a humanidade está no desenvolvimento de
tecnologias que permitam combinar aumento da produtividade, diminuição dos custos de produção
e proteção do meio ambiente
O relatório observa que a biotecnologia deverá complementar a agricultura convencional,
acelerando a obtenção de novas variedades vegetais e contribuindo
para a produção
de plantas livres de doenças e o desenvolvimento de variedades resistentes a pragas, reduzindo o
emprego de alguns defensivos agrícolas que prejudicam o meio ambiente e a saúde humana.
Um ponto importante destacado pelo relatório é o fato de que são basicamente os produtores
rurais dos países desenvolvidos que têm se beneficiado da biotecnologia vegetal e que pouca
atenção vem sendo dada à pesquisa com alimentos básicos consumidos pela população carente,
como é o caso da mandioca, batata, arroz e trigo. Um exemplo mencionado é o das plantas
geneticamente modificadas, que tiveram 99% de sua área cultivada em seis países (Estados Unidos,
Argentina, Brasil, Canadá, China e África do Sul), envolvendo apenas quatro culturas (soja, milho,
canola e algodão) e dois atributos (tolerância a herbicidas e resistência a insetos).
Ainda segundo o relatório uma das principais barreiras para a adoção da biotecnologia
vegetal por muitos países em desenvolvimento tem sido a falta de pessoal qualificado para as
pesquisas, pela falta de investimentos nessa tecnologia. Países como Brasil, China e Índia, dispõem
de programas públicos de pesquisa na área agrícola, mas com gastos anuais inferiores a meio bilhão
de dólares, enquanto as dez maiores corporações multinacionais investem anualmente quase U$ 3
bilhões em pesquisa e desenvolvimento na biotecnologia vegetal.
Nesse relatório a FAO destaca que nos poucos países em desenvolvimento nos quais as
lavouras transgênicas foram introduzidas, o uso de defensivos agrícolas foi reduzido e os pequenos
agricultores estão sendo beneficiados economicamente.
Os ganhos por hectare com a utilização dos transgênicos são consideráveis quando
comparados com outras inovações tecnológicas introduzidas em décadas recentes. Na China, por
exemplo, cerca de 30% da área com algodão é cultivada com algodão transgênico resistente a
insetos, beneficiando mais de 4 milhões de pequenos agricultores.
Segundo o relatório, a produtividade média obtida com o algodão transgênico é 20% superior
àquela do algodão convencional, e os gastos com inseticidas são 70% menores. O uso de defensivos
agrícolas em toda a China foi reduzido em cerca de 25% depois da introdução do algodão
transgênico e, conseqüentemente, o índice de envenenamento dos agricultores que cultivam o
algodão transgênico foi bastante reduzido.
Segurança Ambiental
Questões envolvendo possíveis impactos da introdução de organismos geneticamente
modificados no meio ambiente têm sido objeto de intensa controvésia nos meios científicos
internacionais.
De um lado, pesquisadores chamam atenção para a drástica redução na utilização de
pesticidas químicos na agricultura que a introdução de variedades geneticamente modificadas
propicia, com efeitos benéficos para a saúde humana, com redução de intoxicações,
envenenamentos e neoplasias, e para o meio ambiente.
15
De outro, pesquisadores chamam atenção para os riscos dos plantios geneticamente
modificados para o meio ambiente, relacionados ao fluxo gênico, e enfatizam a necessidade de
preservação da biodiversidade e de proteção dos centros de recursos genéticos, especialmente em
países de megabiodiversidade como o Brasil.
Pesquisadores como Phipps e Park (2002) do Departamento de Agricultura da Universidade
de Reading, do Reino Unido, embora reconhecendo que a introdução de plantios geneticamente
modificados é um tema controverso, chamam atenção para os possíveis benefícios desses plantios
na redução do uso de pesticidas no mundo, que só agora está começando a ser documentado.
Os autores trabalham com dados publicados para estimar os efeitos dos plantios
geneticamente modificados em escala global, realizando depois projeções sobre qual efeito teriam
se amplamente plantados na União Européia. Concluem que, ao nível global, a tecnologia da
modificação genética de plantas reduziu o uso de pesticidas, observando que a magnitude desta
redução variou entre plantios e de acordo com o traço introduzido.
Esses pesquisadores estimam que o uso de variedades de soja, canola, algodão e milho
geneticamente modificadas para tolerância a herbicida e variedades de algodão geneticamente
modificadas para resistência a insetos reduziram em escala global o uso de pesticidas em um total
de 22,3 mil toneladas de produtos químicos formulados no ano 2000, com importantes benefícios
para a proteção da saúde humana e preservação do meio ambiente.
Os autores projetam ainda que, se metade da produção de milho, canola, cana-de-açúcar e
algodão da União Européia fosse substituída por variedades modificadas geneticamente, o consumo
de pesticidas cairia em 14,5 mil toneladas por ano. Isto possibilitaria, segundo estas projeções,
diminuição de 7,5 mil toneladas de hectares na área pulverizada e corte de 73 mil toneladas nas
emissões de gás carbônico, pela diminuição do trânsito de tratores.
Esta questão certamente requer discussão em profundidade quanto às alternativas
possíveis neste setor para a agricultura brasileira, pois é enorme o peso dos pesticidas no mercado
agro-químico brasileiro. O Brasil constitui hoje o terceiro mercado global (8%) para proteção
agrícola, abrangendo herbicidas, inseticidas, fungicidas, reguladores do crescimento de plantas,
além de outros produtos. Este mercado está estimado em cerca de 2,5 bilhões de dólares (Wood
Mackenzie Agrochemical Services, 2001 in James, 2001). É também o sexto mercado mundial para
sementes e materiais para plantio, estimado em 1,2 bilhões de dólares (FIS 2001).
Com efeito, em recente conferência em nosso País, um desses pesquisadores
(Phipps, 2002) realizou também projeções para o Brasil. Observou que se o país destinasse 10
milhões de hectares da área plantada com soja (existem 15,8 milhões de hectares plantados) à
variedade geneticamente modificada seria possível reduzir em 1 mil toneladas (1 aplicação por
hectare) o uso de pesticidas e cortar em 31 milhões de litros o consumo de diesel, com economia em
combustíveis de US$ 13 milhões, além da redução dos gastos com mão-de-obra. No algodão, com a
migração de 700 mil hectares para variedades geneticamente modificadas, o corte seria de US$ 1,9
milhão, pela redução de 4,3 milhões de litros no consumo de diesel e redução de 150 mil toneladas
(2 aplicações) no uso de pesticidas.
16
Outros pesquisadores, com enfoque oposto, examinam os possíveis impactos dos plantios
geneticamente modificados no meio ambiente e na biodiversidade, especialmente nos países que são
centros de origem de recursos genéticos.
Discussões no meio acadêmico internacional envolvendo a possível chegada de variedades
transgênicas em plantações de milho nativo no sul do México (centro de origem do milho)
receberam ampla cobertura da mídia.
Cientistas da Universidade da Califórnia de Berkeley (Quist e Chapela, 2001) publicaram
artigo na revista Nature no qual diziam ter encontrado traços de contaminação por milho
geneticamente modificado nas montanhas de Oaxaca, no México.
Esses resultados foram questionados por diversos autores (Kaplinsky et al. 2002, Metz e
Füterrer, 2002), chamando atenção para a falta de evidência científica e concluindo que, diante dos
dados apresentados por aqueles autores, tudo indicava que se tratavam de artefatos, resultantes da
metodologia utilizada na pesquisa e não transgênicos.
Diante da argumentações e críticas apresentadas por diversos cientistas à revista Nature,
os editores daquela revista, em nota editorial reconheceram que as evidências até então apresentadas
por Quist e Chapela eram insuficientes e não justificavam a publicação do artigo original. Ainda
assim, alguns pesquisadores e grupos locais continuam sustentando que o milho geneticamente
modificado está se espalhando pela serra de Oaxaca.
Ao mesmo tempo, diante deste quadro, uma comissão ambiental do Acordo de Livre
Comércio da América do Norte (Nafta) foi constituída para investigar esses relatórios sobre o milho
mexicano. O cultivo de milho transgênico foi banido no México em 1998 em meio a preocupações
de que ele pudesse contaminar centenas de variedades nativas cultivadas no país, centro de origem
da planta.
A direção do CYMMIT (Centro Internacional de Melhoramento do Milho e Trigo),
instituição de pesquisa internacionalmente reconhecida por sua responsabilidade social e ambiental,
viu-se obrigada a vir a público para esclarecer esta controvérsia, emitindo nota a respeito.
Na referida nota, o CYMMIT nega que seu banco genético de milho (parte do
Wellhausen-Anderson Plant Genetic Resources Center) tenha sido “contaminado”por transgênicos e
que o CIMMYT tenha se mantido omisso nesta polêmica. A nota informa que, ao contrário,
constatou-se, após amplo levantamento, que não há qualquer evidência no referido banco de
presença do promotor mais comum associado a plantas transgênicas (o CaMV 35S). Os resultados
mais recentes foram publicados na página do CYMMIT na internet.
Em que pese o desmentido pelo CYMMIT, certamente este debate reforçou a preocupação
quanto à necessidade imperiosa de fortalecimento de procedimentos que assegurem a preservação
dos centros de recursos genéticos, crucial para assegurar a biodiversidade em países de
megabiodiversidade como o Brasil .
Ainda com relação à introdução de espécies geneticamente modificadas no meio
ambiente, mas numa perspectiva distinta, alguns autores, como Muir and Howard (1999) da
Universidade de Purdue a partir de estudos teóricos e hipotéticos baseados modelagens
computacionais e construção de cenários para possíveis riscos, observam que a introdução de
OGMs em populações de espécies silvestres poderia representar maior risco teórico de extinção de
espécies naturais do que antes se acreditava.
17
Este artigo científico foi financiado pelo U.S. Department of Agriculture (USDA), através de
seu Programa de Avaliação de Riscos na Biotecnologia, com ênfase nas questões envolvendo a
transferência de material genético de uma espécie para a outra.
Seus autores reconhecem no entanto que experimentos hipotéticos como os realizados neste
estudo podem não refletir o que ocorre de fato no mundo real, mas alertam para a necessidade de
uma atitude precautória.
Segundo eles, quanto mais selvagem e menos domesticado é um animal, maior seria o
risco ambiental de se utilizar este animal para se fazer um organismo geneticamente modificado.
Em 2001, relatório da Royal Canadian Society descobriu que plantas muito domesticadas,
como milho e soja, raramente se tornam pragas em ambientes naturais porque “as espécies
cultivadas foram geneticamente paralisadas através de intensa seleção artificial”.
Segundo os autores da Universidade de Purdue, nesta linha de raciocínio baseada na
domesticação e no impacto da pressão seletiva, fazer um salmão transgênico poderia representar
risco ambiental maior que fazer uma vaca transgênica. Em síntese, Muir e Howard consideram que
a história genética do organismo geneticamente modificado pode ser uma chave para o risco
potencial.
Ainda segundo esses autores, o cruzamento seletivo baseia-se na herança poligênica onde
o resultado é o efeito cumulativo de muitos – talvez centenas – de genes com reduzido efeito. Ao
contrário, muitas modificações genéticas envolvem um gene com efeito muito importante. Portanto,
tudo indica, segundo os autores, que embora os dois métodos não sejam equivalentes, poderiam ter
sido legalmente regulados como se fossem.
Finalmente, outro estudo realizado na Austrália (país de megabiodiversidade como o
Brasil) e recém publicado na revista Science por Rieger (2002), da Universidade de Adelaide,
examina os efeitos de plantios geneticamente modificados em escala comercial sobre os campos
adjacentes.
Este estudo analisou mais de 48 milhões de plantas constatou, de um lado, que o pólen
de canola com resistência a um tipo de herbicida pode se espalhar por um raio de até três
quilômetros, mostrando que os campos adjacentes não se encontram 100% seguros ao lado de uma
plantação geneticamente modificada. Por outro lado, concluiu que embora preocupante, esta
transferência de genes pelo pólen da canola teve impacto reduzido e em alguns casos considerado
desprezível: dos campos analisados, o que sofreu maior impacto teve uma taxa de “contaminação”
de 0,2% e a média de todos os 63 campos analisados (dos quais 40 apresentaram alguma
“contaminação”), o número foi ainda menor: cerca de 0,07%.
A polarização em torno das questões aqui apresentadas, pelos diferentes grupos de
interesse representados, certamente requer o necessário aprofundamento no plano científico.
Somente a partir da análise em profundidade, caso a caso, para cada evento de transformação
genética de plantas, procedimento adotado no Brasil pela CTNBio, será possível dimensionar seus
possíveis impactos ambientais.
Esse procedimento requer ainda medidas que assegurem, através do adequado
zoneamento agro-ecológico e da criteriosa vigilância e monitoramento de plantios geneticamente
18
modificados, a preservação dos centros de recursos genéticos em países de megabiodiversidade
como o Brasil.
Bioética
Na biotecnologia agrícola, da mesma forma que na saúde humana e animal, os rápidos
avanços do conhecimento científico e tecnológico referidos vêm também conferindo especial
destaque à bioética, que constitui um dos campos de aplicação da biossegurança.
Este quadro tornou necessária a definição de procedimentos que permitam identificar
questões de bioética relacionadas aos experimentos e às novas práticas agrícolas, orientar a
comunidade científica e a população quanto às implicações das questões envolvidas nessas novas
práticas e tornar disponíveis os fatos relevantes identificados nessas novas tecnologias, como é o
caso das plantas geneticamente modificadas, de modo a facilitar o debate público e o escrutínio
social.
Na agricultura, as questões de bioética colocados pela biotecnologia tocam em questões
sensíveis do ponto de vista cultural, social e político que envolvem mudanças em práticas agrícolas
tradicionais, a relação com a natureza, o meio ambiente e a saúde dos agricultores e dos
consumidores.
Frente à rapidez do desenvolvimento desses processos biotecnológicos na agricultura,
várias empresas se viram diante da necessidade de se pronunciar a esse respeito, manifestando-se
sobre questões éticas e de responsabilidade social e ambiental.
É interessante notar aqui o compromisso assumido por algumas empresas de
biotecnologia no plano internacional de criar conselhos consultivos com a atribuição de examinar e
se pronunciar sobre questões sensíveis com implicações éticas e legais, de natureza social ou
ambiental, no campo da biotecnologia.
Com esta perspectiva, várias empresas manifestaram a intenção de não desenvolver
pesquisas tecnológicas com genes estéreis e de não usar genes humanos ou animais em plantas
geneticamente modificadas.
No entanto, cabe notar que esta última questão está atualmente em debate, pelo rápido
desenvolvimento científico nesta área em escala global e no Brasil, que vem possibilitando o
desenvolvimento de novas tecnologias que permitem a transferência genética de genes humanos e
animais para plantas geneticamente modificadas, atuando como biofábricas ou biorreatores em
pesquisas de ponta que vinculam cada vez mais a biotecnologia agrícola a novos e importantes
desenvolvimentos na área farmacêutica.
Pesquisas de ponta nesta área já estão sendo desenvolvidas no País, a partir de plantas
geneticamente modificadas como, por exemplo o milho, pela UNICAMP e a soja, pela EMBRAPA,
para expressar hormônio de crescimento e insulina a partir da transferência de material genético de
uma espécie para outra, experimentos estes realizados em casas de vegetação (estufas herméticas
em experimentos em contenção), após avaliação pela CTNBio.
19
A Lei de Biossegurança (Lei 8.974/95), que se examinará a seguir, conferiu à CTNBio a
responsabilidade de elaborar o Código de Ética das Manipulações Genéticas, abrangendo as áreas de
saúde humana, animal, agricultura e meio ambiente. Contudo, o principal desafio da bioética na
pesquisa em biotecnologia vegetal, área onde o debate ético ainda não tem experiência acumulada,
como nas áreas de saúde humana e animal, está na definição de procedimentos que assegurem o
compartilhamento de pontos de vista distintos.e a avaliação das possíveis conseqüências dessas
novas tecnologias para a saúde eo meio ambiente.
Biossegurança: o arcabouço regulatório
No Brasil, os avanços até aqui referidos nas atividades de pesquisa e desenvolvimento
em biotecnologia só foram possíveis pelo arcabouço legal consolidado no País na última década,
que instituiu uma das mais modernas legislações do mundo nos campos da biociência e da
biossegurança.
Em 1995, foi sancionada a Lei 8.974, conhecida como Lei de Biossegurança e criada
a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), como instância colegiada
multidisciplinar de apoio técnico consultivo e de assessoramento ao Governo Federal, face à
pesquisa com engenharia genética no País.
Visando proteger a vida e a saúde humanas, dos animais e o meio ambiente, a
legislação confere à CTNBio competência para "estabelecer normas e regulamentos relativos às
atividades e projetos que contemplem construção, cultivo, manipulação, uso, transporte,
armazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte relacionados a organismos
geneticamente modificados". Com a Medida Provisória MP nº 2.137, de 28/12/2000, depois MP
2.191-9/ 01, que alterou e acrescentou dispositivos à referida lei, a CTNBio teve seus
procedimentos e competências mais bem esclarecidos, o que propiciou uma nova e revigorada etapa
em sua trajetória.
O desempenho da CTNBio, pela reconhecida excelência dos seus membros científicos
(comunidade científica nas áreas de saúde humana, animal,agricultura e meio ambiente),
governamentais (Ministérios setoriais e Ministério das Relações Exteriores) e da sociedade
(consumidores e setor empresarial) resultou em crescimento significativo do setor biotecnológico
nacional, reconhecido internacionalmente.
Tal situação só se tornou possível mediante o estímulo, pela CTNBio e instituições
públicas e privadas que integram sua Rede de Comissões Internas de Biossegurança (CIBios), à
capacitação de profissionais atuantes na análise de risco, avaliação da biossegurança e no estudo
das implicações resultantes da tecnologia do DNA recombinante para os diferentes setores de
atividade,.
Essa capacidação foi crucial para a consolidação institucional da CTNBio, uma vez
que as demandas das empresas, dos institutos de pesquisa e das universidades à Comissão cresceu
rapidamente e se diversificou em áreas de alta complexidade.
No processo estabelecido pela Lei da Biossegurança, a CTNBio analisa, com
cuidadosa fundamentação científica, caso a caso, cada evento de transformação genética, cabendo
ao solicitante o ônus de demonstrar a biossegurança do organismo geneticamente modificado
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(OGM), fornecendo todos os dados necessários para a avaliação da CTNBio, sendo que a Comissão
pode exigir informações e testes adicionais.
O Parecer Técnico Prévio Conclusivo da CTNbio contempla necessariamente os
seguintes aspectos da segurança do OGM: 1. Riscos para o Meio Ambiente, que são examinados e
avaliados pela Comissão Setorial Específica da Área Ambiental, presidida pelo representante do
Ministério do Meio Ambiente e cientistas da área ambiental; 2. Riscos para a Agricultura e Saúde
Animal, que são examinados pelas Comissões Setoriais Específicas das Áreas Vegetal e da Saúde
Animal, presididas por representante do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e
cientistas com atuação nessas áreas; 3. Riscos para a Saúde Humana, examinados pela Comissão
Setorial Específica da Saúde Humana, presidida pelo representante do Ministério da Saúde e
cientistas dessa área.
Neste processo de consolidação de seus procedimentos, a CTNBio constituiu uma
ampla rede de CIBIOs (Comissões Internas de Biossegurança) em todo o País, integrada por
instituições públicas e privadas universitárias, de pesquisa e desenvolvimento e empresariais com
atuação importante nos campos da biotecnologia e da engenharia genética nas áreas de saúde
humana, animal, agricultura e meio ambiente.
No entanto, apesar desses avanços na estruturação institucional e do aparato regulatório
brasileiro relacionado à biotecnologia agrícola, em apoio à capacidade científica e agroexportadora do País, as atividades de pesquisa, desenvolvimento e plantio comercial de plantas
geneticamente modificadas foram retardadas por força de ações judiciais.
Em 1998 a CTNBio deu parecer favorável à comercialização da soja Round Up Ready da
empresa Monsanto do Brasil Ltda., por entender não haver, neste caso específico, pela não
existência, entre outras considerações de natureza científica, de espécies silvestres no País, riscos ao
meio ambiente, à agricultura, à saúde humana e animal. Esse parecer ficou desde então ‘sub
judice’ .por ação judicial movida por entidades não-governamentais (Greenpeace e Instituto de
Defesa do Consumidor – IDEC) e a longa demora no julgamento desta ação judicial configurou em
nosso País a chamada “moratória branca”.
Somente recentemente, em setembro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região
publicou acórdão reconhecendo a competência da CTNBio para identificar, caso a caso, as
atividades causadoras de significativa degradação do meio ambiente.
Uma boa síntese desta situação e do atual cenário jurídico na biossegurança de OGMs
pode ser encontrada em dois artigos de jurista especializado nesta área (Minaré, 2004) onde o autor
faz uma síntese deste acórdão e da situação da Lei de Biossegurança no Senado.
Chama atenção inicialmente para o fato de que o conflito entre a Lei de Biossegurança
atual (Lei 8.974/1995) e a Lei Ambiental (Lei 6.938/1981) era o que mais dificultava o avanço das
atividades no campo da engenharia genética.
A primeira, Lei de Biossegurança, atribui à CTNBio a identificação caso a caso de
atividades com OGMs que possam causar significativa degradação ao meio ambiente) e a segunda,
Lei Ambiental, estabelece a priori lista de atividades poluidoras, atribuindo competência ao órgão
ambiental, IBAMA, para exigir licenciamento e Estudo de Impacto ambiental de qualquer
introdução de espécie geneticamente modificada).
21
Lembra que o conflito entre ambas as Leis foi o principal elemento motivador da
propositura de uma nova Lei de Biossegurança por parte do Poder Executivo.
Contudo, como lembra o autor, esse conflito entre esses dois instrumentos legais foi parar
no Poder Judiciário e em 01.09.2004, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região publicou acórdão
reconhecendo a competência da CTNBio para identificar, caso a caso, as atividades causadoras de
significativa degradação do meio ambiente.
Este acórdão dispôs que para as atividades com OGM deve ser aplicado o que é disposto
na atual Lei de Biossegurança, reconhecendo portanto, a legitimidade da atuação da CTNBio e a
constitucionalidade da competência atribuída à Comissão para identificar a necessidade ou não de
uma atividade com OGM ser submetida ao licenciamento ambiental, conforme o disposto na
Constituição Federal, em seu artigo 225, § 1º inciso IV.
Segundo o autor, prevaleceu na decisão o entendimento jurídico de que a lei posterior
revoga a anterior quando regular inteiramente a matéria de que tratava uma lei anterior, o que é
exatamente o caso da Lei de Biossegurança com relação à Lei Ambiental,
Além de sanar o conflito entre a Lei de Biossegurança e a Lei Ambiental, ao reformar a
sentença proferida em 1ª instância pelo Juiz Antonio Prudente, o Tribunal afastou qualquer
obstáculo judicial que impedia a CTNBio de emitir pareceres técnicos em pedidos de liberação
comercial de OGM.
Diante dessa decisão do TRF, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis - IBAMA, só poderá exigir licenciamento ambiental e estudo de impacto
ambiental das atividades com OGM, sejam elas atividades de pesquisas ou comerciais, quando
identificadas pela CTNBio como potencialmente causadoras de significativa degradação do meio
ambiente. Ou seja, a Resolução 305 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA, só
poderá ser aplicada quando a CTNBio identificar que a atividade com OGM é potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente.
No caso especifico da soja geneticamente modificada, a liminar deferida na ação cautelar
preparatória da ação civil pública não foi cassada, ficando, assim, a sua efetiva liberação
dependendo ainda do julgamento da ação cautelar que hoje se encontra no Superior Tribunal de
Justiça - STJ.
O autor destaca que, embora a decisão do Tribunal Regional Federal seja passível de
recurso, dificilmente poderia ser modificada por decisão que primasse pela boa técnica jurídica, pois
a solução do conflito aparente de normas foi fundamentada em regra estabelecida pela Lei de
Introdução ao Código Civil - Decreto-lei 4.657, de 1942 -, e pela boa técnica de hermenêutica
jurídica, cujo entendimento é de que quando uma lei ou dispositivo de lei geral anterior é
incompatível com lei ou dispositivo de lei especial posterior, aplica-se a lei ou o dispositivo da lei
especial posterior.
Quanto ao Projeto de Lei de Biossegurança encaminhado pelo Poder Executivo ao
Congresso Nacional, o mesmo foi votado pela Câmara dos Deputados, e atualmente encontra-se no
Senado Federal para votação. O autor destaca que, nesse Projeto, dois pontos, estão criando
polêmicas e dificuldades para sua aprovação:
22
a) - O texto aprovado pela Câmara não atribui competência à CTNBio para avaliação de
atividades comerciais com OGMs, e todas as atividades estariam sujeitas às exigências da Lei
Ambiental.
b) - O texto também proíbe a realização de pesquisas com células-tronco embrioná-rias.
Caso o Senado Federal modifique o texto votado pela Câmara, atribuindo maior
competência para a CTNBio no âmbito das atividades comerciais com OGMs e liberando as
pesquisas com células-tronco embrionárias, o Projeto de Lei voltará para a Câmara que poderá
acatar ou não as alterações propostas pelo Senado. Não sendo acatadas as modificações propostas
pelo Senado, prevalecerá o texto que foi aprovado anteriormente pela Câmara, ou seja, todas
atividades comerciais com OGMs estarão sujeitas às exigências da Lei Ambiental e as pesquisas
com células-tronco estarão proibidas.
O autor observa que, quanto à avaliação para liberação comercial, a atual Lei de
Biossegurança garante exatamente isso, e a recente decisão do Tribunal Regional Federal reconhece
essa competência atribuída à CTNBio e a constitucionalidade da mesma. Portanto, caso o Senado
não modifique o texto que veio da Câmara, a CTNBio, com relação às atividades comerciais, ficará
com competência inferior à que a atual Lei de Biossegurança atribui à mesma.
Da mesma forma, com relação àqueles que defendem a liberação das pesquisas com célulastronco embrionárias, a situação não é diferente. Pois o Senado precisaria modificar o texto que foi
enviado pela Câmara, o Governo Federal se comprometer com a defesa da modificação proposta,
garantindo maioria na Câmara, e finalmente a Câmara aceitar as modificações propostas pelo
Senado.
Com este entendimento, conclui que a aprovação do projeto nos termos aprovados pela
Câmara interessa apenas àqueles que são contrários ao desenvolvimento e uso de técnicas de
engenharia genética na agricultura e que defendem a proibição das pesquisas com células-tronco
embrionárias.
Negociações Internacionais
Além das discussões sobre propriedade intelectual nas negociações do TRIPS
(Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) no
âmbito da OMC, com importantes implicações para o comércio dos produtos da biotecnologia
agrícola, questões relacionadas à segurança dos alimentos geneticamente modificados suscitaram
diversas negociações internacionais envolvendo movimentos transfronteiriços (“transboundary
movements”) de organismos modificados vivos, com importantes implicações para o comércio
agrícola.
Tais discussões resultaram no Protocolo de Cartagena de Biossegurança da
Convenção de Diversidade Biológica, recentemente ratificado pelo Brasil.
Estas negociações internacionais do Protocolo, fundadas no princípio da precaução,
vêm suscitando ampla gama questões relacionadas à proteção do meio ambiente e também da saúde
humana.
.
23
A lei de biossegurança brasileira, que data de 1995 e é portanto muito anterior ao
Protocolo de Cartagena, já expressava preocupação precautória quanto à necessidade de proteção
ambiental e da saúde humana de possíveis riscos resultantes da engenharia genética.
Com efeito, a estruturação do sistema nacional de biossegurança que, como
mencionado anteriormente, vincula a CTNBio à rede CIBios no país e a articula com os Ministérios
setoriais, inclusive o do Meio Ambiente, foi concebida de forma a assegurar, com base no princípio
da prudência ou precaução (Possas e Minaré, 2002) que o desenvolvimento social e econômico se
realizasse de forma sustentável e compatível com a megabiodiversidade brasileira.
Na lei da biossegurança brasileira é claro o tratamento conceitual dado à prudência
ou precaução: a incerteza é considerada com um componente essencial da construção da
conhecimento científico e ela é enfrentada, com base num sistema de gestão do risco, na previsão de
análise caso a caso de cada evento de transformação genética.
Nas negociações do Protocolo de Cartagena, a preocupação dos grandes
exportadores agrícolas (o Brasil foi até o momento o único grande exportador agrícola a ratificá-lo)
era de que prevalecesse o entendimento de alguns países de que, como não há certeza absoluta (e
nunca haverá) quanto aos riscos existentes, o princípio da precaução fosse, na incerteza, invocado.
A preocupação desses países exportadores era de que uma interpretação apriorística
do Protocolo pudesse estabelecer, em nome da biossegurança e da preservação ambiental, a partir
das novas exigências documentais e de rastreabilidade, possíveis barreiras comerciais à exportação
de organismos modificados vivos. Entendia-se que isto poderia eventualmente inviabilizar, por
interesses econômicos, a comercialização de produtos agrícolas por países exportadores ou
potencialmente exportadores dos mesmos, como o Brasil.
Contudo, uma vez que já foi ratificado pelo Brasil o referido Protocolo, a nova
legislação brasileira em biossegurança deverá se adequar aos seus dispositivos, prevendo os novos
procedimentos e o atendimento às exigências documentais e de rastreabilidade nele estabelecidas.
Considerações Finais
No que diz respeito aos novos produtos geneticamente modificados aplicados à saúde
humana e animal, como medicamentos e vacinas recombinantes, que já vêm sendo largamente
consumidos pela população, como a insulina, não há, curiosamente, em contraste com a área
alimentar, maiores questionamentos pela opinião pública, embora seus riscos, em alguns casos,
possam ser maiores.
Na área de saúde humana, a controvérsia tem na verdade se limitado, como observado
anteriormente, aos debates quanto à chamada “clonagem terapêutica”, pela possibilidade de
utilização de células tronco embrionárias no tratamento de doenças diversas, assunto ainda pendente
e que aguarda a definição da nova Lei de Biossegurança, que ainda está sendo debatida pelo
Congresso Nacional.
Por outro lado, com relação às questões de segurança alimentar envolvendo o consumo de
plantas geneticamente modificadas, pode-se observar que em geral, no meio científico, os
24
transgênicos e seus produtos são aceitos como seguros para a alimentação humana, após a
necessária avaliação, caso a caso, pelas entidades reguladoras nacionais.
No entanto, em que pese essa aceitação pela comunidade científica, ainda persistem, no
entanto, por parte da opinião pública, especialmente em alguns países europeus, como mostram dos
dados da FAO (2004), preocupações sobre a segurança alimentar, resultante da percepção pública,
que tende a maximizar o risco, por organizações de consumidores e outras organizações nãogovernamentais.
Contudo, é, na verdade, com relação à segurança ambiental, especialmente em países com
megabiodiversidade, como o Brasil que ocorrem as maiores divergências no meio científico.
Ainda assim, no mencionado relatório, a FAO observa que, mesmo com relação à
segurança ambiental, em que pese a persistência de controvérsias no meio científico e questões que
ainda precisam ser esclarecidas, ainda não foram até o momento observados efeitos ambientais
adversos causados pelas lavouras comerciais de transgênicos
Diante deste quadro, aquela organizacão internacional recomenda, em escala global, a
incorporação, pelos países, de procedimentos que já vêm sendo adotados, nas últimas décadas, nos
países centrais pelas respectivas agências reguladoras e no Brasil pela CTNBio: a fundamentação
científica, pela análise dos resultados de pesquisas bem conduzidas, caso a caso, antes da liberação
comercial de plantas transgênicas. Defende ainda neste relatório, como já determinou a CTNBio no
caso de sua avaliação da soja geneticamente modificada, o monitoramento ambiental pós-liberação
comercial.
A fundamentação científica, a avaliação caso a caso e a realização dos testes de
biossegurança são a garantia, como recomenda a FAO nesse relatório, de que as lavouras
transgênicas não causarão impacto ao meio ambiente, e que serão eficientes no controle de pragas,
evitando a necessidade de utilização adicional de defensivos químicos e o surgimento de pragas
resistentes.
É necessário portanto ressaltar aqui que observações genéricas e superficiais, baseadas
simplesmente na percepção pública do risco sobre a tecnologia, sem a necessária retaguarda
científica em sistemas bem estruturados para avaliação e gestão do risco, podem conduzir a
equívocos e conclusões errôneas, retardando desnecessariamente o processo inovativo nesta área,
com irreparáveis prejuízos para a agricultura mundial e, particular, para países em desenvolvimento
como o Brasil.
Finalmente, no que diz respeito a convenções e acordos internacionais, faz-se necessária,
como já observado a adequação da nova Legislação de Biossegurança às exigências internacionais
do Protocolo de Cartagena de Biossegurança da Convenção da Diversidade Biológica.
Esse Protocolo criou instância internacional para orientar os procedimentos que deverão
nortear a introdução de OGMs por países como o Brasil que o ratificaram e mecanismo de consulta,
que assegura aos países importadores solicitar antecipadamente do país exportador informações
detalhadas sobre a biossegurança do produto.
Uma vez que o País optou por ratificar o Protocolo de Cartagena, tornando-se o único
grande exportador agrícola mundial a fazê-lo, terá que adequar sua legislação e suas exportações
agrícolas ao disposto neste instrumento legal, atendendo a diversas exigências e requerimentos
25
documentais e de rastreabilidade dos países importadores nos movimentos transfronteiriços de
Organismos Modificados Vivos.
Contudo, a demora pelo Congresso Nacional na definição da nova Lei de
Biossegurança, que sucedeu um longo período de “moratória branca” por ações judiciais, poderá
retardar esse processo de adequação
O atraso na definição pelo Legislativo quanto às regras do jogo nessa área poderá
prejudicar de forma irreversível os envolvidos na cadeia produtiva (instituições públicas e privadas
de pesquisa e empresas), o que será injusto com a excelência construída, com grande esforço, nas
últimas décadas no País em biotecnologia.
A futura integração do Brasil com a União Européia na atividade científica e
tecnológica nesse campo certamente poderá contribuir para uma reflexão conjunta sobre as
principais questões aqui abordadas e os possíveis cenários futuros, fundamentando estratégias e
procedimentos que possibilitarão vislumbrar novas contribuições da biotecnologia para a
humanidade.
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