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Terceira Turma RECURSO ESPECIAL N. 1.162.281-RJ (2009/0207527-2) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: V E S VIN e Sprint Aktiebolag NY Advogada: Kátia Patrícia Gonçalves Silva e outro(s) Recorrido: Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI Procurador: Leny Machado e outro(s) EMENTA Comercial e Processual Civil. Marca. Alto renome. Declaração. Procedimento. Controle pelo Poder Judiciário. Limites. 1. Embora preveja os efeitos decorrentes do respectivo registro, o art. 125 da LPI não estabeleceu os requisitos necessários à caracterização do alto renome de uma marca, sujeitando o dispositivo legal à regulamentação do INPI. 2. A sistemática imposta pelo INPI por intermédio da Resolução n. 121/05 somente admite que o interessado obtenha o reconhecimento do alto renome de uma marca pela via incidental. 3. O titular de uma marca detém legítimo interesse em obter, por via direta, uma declaração geral e abstrata de que sua marca é de alto renome. Cuida-se de um direito do titular, inerente ao direito constitucional de proteção integral da marca. 4. A lacuna existente na Resolução n. 121/05 – que prevê a declaração do alto renome apenas pela via incidental – configura omissão do INPI na regulamentação do art. 125 da LPI, situação que justifica a intervenção do Poder Judiciário. 5. Ainda que haja inércia da Administração Pública, o Poder Judiciário não pode suprir essa omissão e decidir o mérito do processo administrativo, mas apenas determinar que o procedimento seja concluído em tempo razoável. Dessa forma, até que haja a manifestação do INPI pela via direta, a única ilegalidade praticada será a inércia da Administração Pública, sendo incabível, nesse momento, a ingerência do Poder Judiciário no mérito do ato omissivo. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 6. Por outro lado, os atos do INPI relacionados com o registro do alto renome de uma marca, por derivarem do exercício de uma discricionariedade técnica e vinculada, encontram-se sujeitos a controle pelo Poder Judiciário, sem que isso implique violação do princípio da separação dos poderes. 7. Recurso especial a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). Indira E S Quaresma (Procurador Federal), pela parte recorrida: Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI. Brasília (DF), 19 de fevereiro de 2013 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 25.2.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por V E S VIN e Sprint Aktiebolag NY, com fulcro no art. 105, III, a, da CF/1988, contra acordão do TRF da 2ª Região. Ação: rescisória, ajuizada pelo INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial em desfavor da recorrente, objetivando desconstituir sentença proferida pela 35ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro-RJ, que declarou ser de alto renome a marca Absolut, conferindo-lhe proteção especial em todas as classes, condenando o INPI a proceder às alterações administrativas cabíveis (fls. 13-15, e-STJ). Acórdão: o TRF da 2ª Região julgou procedente o pedido rescisório, nos termos do acórdão (fls. 577-584, e-STJ) assim ementado: 550 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Direito Processual Civil e da Propriedade Industrial. Ação rescisória. Declaração judicial de notoriedade da marca Absolut. Impossibilidade. Procedência do pedido rescidendo. Necessidade de observância do procedimento previsto na Resolução n. 110-2004 do INPI. I - O alto renome de uma marca é situação de fato que decorre do amplo reconhecimento que o signo distintivo goza junto ao público consumidor, motivo pelo qual não pode o juiz substituir o povo no seu pensamento e impressão e declarar, de modo permanente e irrestrito, a sua fama. II - É tarefa da justificação (art. 861 do Código de Processo Civil) e não da declaração judicial (art. 4º do Código de Processo Civil) a de documentar a existência de fato para utilização futura. III - Procedência do pedido rescindendo, na forma do art. 485, V do Código de Processo Civil, para desconstituir o decisum que declarou in abstracto da notoriedade da marca Absolut. IV - Improcedência do pedido da ação principal, de molde a permitir a verificação do alto renome da marca Absolut pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, a partir do procedimento previsto na Resolução n. 110-2004. Recurso especial: alega violação dos arts. 4º, 267, VI, e 485, V, do CPC; e 125 da LPI (fls. 589-604, e-STJ). Prévio juízo de admissibilidade: o TRF da 2ª Região admitiu o recurso especial (fls. 659-660, e-STJ). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a determinar se o alto renome de uma marca pode ser reconhecido e declarado judicialmente, ou se está obrigatoriamente sujeito a procedimento administrativo junto ao INPI. A marca, cuja propriedade é consagrada pelo art. 5º, XXIX, da CF, se constitui num sinal distintivo de percepção visual que individualiza produtos e/ou serviços. O seu registro confere ao titular o direito de usar, com certa exclusividade, uma expressão ou símbolo. A sua proteção, para além de garantir direitos individuais, salvaguarda interesses sociais, na medida em que auxilia na melhor aferição da origem do produto e/ou serviço, minimizando erros, dúvidas e confusões entre usuários. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 551 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Na lição de Denis Borges Barbosa, o interesse constitucional nas marcas está em “proteger o investimento em imagem empresarial, mas sem abandonar, e antes prestigiar, o interesse reverso, que é o da proteção do consumidor” (Proteção das marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 240). Essa proteção varia conforme o grau de conhecimento de que desfruta a marca no mercado. Prevalecem, como regra, os princípios da territorialidade e da especialidade. Pelo princípio da territorialidade, a proteção conferida à marca deve respeitar a soberania de cada Estado e as especificidades do seu ordenamento jurídico. Direitos marcários concedidos à luz de diferentes legislações, ainda que tenham por objeto a mesma marca, são absolutamente distintos, susceptíveis de proteção autônoma em cada um dos Estados. Já pelo princípio da especialidade, o registro da marca confere exclusividade de uso apenas no âmbito do mercado relevante para o ramo de atividade ao qual pertence o seu titular. Essas regras, no entanto, comportam exceções, notadamente quando se verifica o fenômeno que Denis Borges Barbosa denomina “extravasamento do símbolo”, ou seja, marcas cujo conhecimento pelo público e/ou mercado ultrapassa o âmbito de proteção conferido pelo registro. A LPI, consagrando os princípios instituídos pela Convenção da União de Paris (1967) e o acordo sobre os aspectos da propriedade intelectual relacionados ao comércio - TRIPs/ADPIC (1994), admitiu duas formas de “extravasamento do símbolo”, atuando no sentido de mitigar os mencionados preceitos informadores do registro de marcas. Na primeira hipótese temos o que o art. 125 da LPI denomina marca de alto renome, em que há temperamento do princípio da especialidade e no segundo caso o que o art. 126 da LPI chama de marca notoriamente conhecida, em que há abrandamento do princípio da territorialidade. Todavia, embora preveja os efeitos decorrentes do respectivo registro, o art. 125 da LPI não estabeleceu os requisitos necessários à caracterização do alto renome, sujeitando o dispositivo legal à regulamentação do INPI, que veio por intermédio da Resolução n. 110/04, posteriormente substituída pela Resolução n. 121/05. Ocorre que, diferentemente da revogada Lei n. 5.772/1971, que previa uma declaração abstrata com o mesmo prazo de validade do registro básico, o art. 3º da Resolução n. 121/05 dispõe que a declaração de alto renome deverá ser requerida “como matéria de defesa, quando da oposição a pedido de registro 552 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA de marca de terceiro ou do processo administrativo de nulidade de registro de marca de terceiro que apresente conflito com a marca invocada de alto renome”. Vale dizer, a sistemática imposta pelo INPI somente admite que o interessado obtenha o reconhecimento do alto renome de uma marca pela via incidental. Na prática, portanto, respeitada a regra da Resolução n. 121/05, o titular de uma marca de alto renome só conseguirá a respectiva declaração administrativa a partir do momento em que houver a adoção de atos potencialmente capazes de violar essa marca. A inexistência de um procedimento administrativo tendente à obtenção de uma declaração direta e abstrata do alto renome suscitou severas críticas de parte da doutrina, que considera essa declaração intrínseca ao direito constitucional de proteção integral da marca, permitindo que o titular atue preventivamente, antes do surgimento de um risco concreto de violação da propriedade industrial. Diante disso, tornaram-se comuns ações como a presente, em que o titular busca a declaração judicial do alto renome de sua marca. O STJ já teve a oportunidade de apreciar essa questão, tendo consolidado o entendimento de que “compete ao INPI avaliar a marca para caracterizá-la como notória ou de alto renome” (REsp n. 716.179-RS, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 14.12.2009. No mesmo sentido: AgRg no AgRg no REsp n. 1.116.854-RJ, 3ª Turma, Relator Min. Massami Uyeda, DJe de 2.10.2012). Esse entendimento se formou em torno do raciocínio construído pelo i. Min. Jorge Scartezzini, em julgado precursor da matéria, no qual sua Exa., citando a lição de Fábio Ulhoa Coelho, conclui que a declaração do alto renome “consiste em ato discricionário do INPI, insuscetível de revisão pelo Poder Judiciário, senão quanto aos seus aspectos formais, em vista da tripartição constitucional dos poderes do Estado” (EDcl nos EDcl no AgRg no REsp n. 653.609-RJ, 4ª Turma, DJ de 27.6.2005). Entretanto, não obstante eu mesma já tenha me filiado a esse entendimento em julgamentos anteriores, a relatoria deste processo me fez refletir melhor sobre o tema. Em primeiro lugar, destaco a necessidade de se estabelecer se há efetivo interesse do titular em obter uma declaração geral e abstrata de que sua marca é de alto renome. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 553 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Nesse aspecto, noto que parte da doutrina, do que é exemplo José Carlos Tinoco Soares, afirma que o alto renome não dependeria de registro, pois “tem o seu conhecimento absoluto, granjeado em razão de seu conceito, qualidade do produto e/ou serviço, distinguibilidade que se adquire pela aceitação pública e manifesta de qualquer um do povo, sem distinção de classe social ou de lugar onde a marca é empregada porque, na realidade, é a marca absoluta que ninguém em sã consciência poderá desconhecer” (Marcas notoriamente conhecidas – marcas de alto renome vs. Diluição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 215). Não se ignora que o alto renome pressupõe a ampla e irrestrita notoriedade da marca – ao ponto de se imaginar que qualquer produto que a ostente seja fabricado pelo seu titular – circunstância que dá ensejo a uma proteção geral, em todas as classes, de modo a evitar o aproveitamento indevido e parasitário da propriedade intelectual, bem como a confusão do mercado consumidor. A questão, porém, não se encerra aí. Ainda que uma determinada marca seja de alto renome, até que haja uma declaração oficial nesse sentido, essa condição será ostentada apenas em tese. Dessa forma, mesmo que exista certo consenso de mercado acerca do alto renome, este atributo depende da confirmação daquele a quem foi conferido o poder de disciplinar a propriedade industrial no Brasil, declaração essa que se constitui num direito do titular, inerente ao direito constitucional de proteção integral da marca, não apenas para que ele tenha a certeza de que sua marca de fato possui essa peculiaridade, mas sobretudo porque ele pode – e deve – atuar preventivamente no sentido de preservar e proteger o seu patrimônio intangível, sendo despropositado pensar que o interesse de agir somente irá surgir com a efetiva violação. Pior do que isso, o reconhecimento do alto renome só pela via incidental imporia ao titular um ônus injustificado, de constante acompanhamento dos pedidos de registro de marcas a fim de identificar eventuais ofensas ao seu direito marcário. Ademais, não se pode perder de vista que muitas vezes sequer há a tentativa de depósito da marca ilegal junto ao INPI, até porque, em geral, o terceiro sabe da inviabilidade de registro, em especial quando a colidência se dá com marca de alto renome. Nesses casos, a controvérsia não chega ao INPI, impedindo que o titular da marca adote qualquer medida administrativa incidental visando à declaração do alto renome. Acrescente-se, por oportuno, que ao dispor que “a proteção de marcas de alto renome não dependerá de registro na jurisdição em que é reivindicada”, 554 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a AIPPI (Association Internationale pour la Protection de la Propriété Industrielle) não isentou (ou pelo menos não impediu) essas marcas de registro, tampouco afirmou que essa condição (de alto renome) independeria de uma declaração oficial; apenas salientou que elas estariam resguardadas mesmo sem prévio registro, ou seja, prevaleceriam sobre marcas colidentes, ainda que estas fossem registradas anteriormente. Até porque, como dito, por mais que se tenha um consenso em torno do alto renome de uma marca, a confirmação desse atributo somente virá com uma declaração oficial nesse sentido. Verifica-se, portanto, haver efetivo interesse do titular em obter uma declaração geral e abstrata de que sua marca é de alto renome. A partir daí, conclui-se que a lacuna existente na Resolução n. 121/05 – que prevê a declaração do alto renome apenas pela via incidental – configura omissão do INPI na regulamentação do art. 125 da LPI, situação que justifica a intervenção do Poder Judiciário. Essa constatação nos remete a um segundo problema, qual seja, determinar os limites da intervenção do Poder Judiciário no reconhecimento do alto renome de uma marca. Hely Lopes Meirelles aduz que a inércia do Poder Público caracteriza abuso de poder, corrigível pela via judicial, ponderando que “o silencio não é ato administrativo”, de maneira que “não cabe ao Judiciário praticar o ato omitido pela Administração mas, sim, impor sua prática” (Direito administrativo brasileiro, 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 114). Outro não tem sido o entendimento do STJ, ao assentar que “ainda que haja ato omissivo da Administração, o Poder Judiciário não pode suprir essa omissão e decidir o mérito do processo administrativo, mas apenas determinar que o procedimento seja concluído em tempo razoável” (MS n. 14.760-DF, 1ª Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 16.6.2010. No mesmo sentido: REsp n. 958.641-PI, 1ª Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe de 26.11.2009; e MS n. 10.778-DF, 1ª Seção, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 14.8.2006). Dessa forma, até que haja a manifestação do INPI pela via direta, a única ilegalidade praticada será a inércia da Administração Pública, sendo incabível, ao menos nesse momento, a ingerência do Poder Judiciário no mérito do ato omissivo. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 555 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Por outro lado, havendo decisão do INPI a respeito da existência ou não do alto renome, a questão atinente à intervenção do Poder Judiciário ganha novos contornos. Os atos administrativos em geral encontram-se sujeitos a controle judicial, corolário do preceito constitucional insculpido no art. 5º, XXXV, de que não se excluirá da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito. Há, porém, limitação quanto ao objeto do controle, que se restringe à legalidade (conformidade com a legislação) e legitimidade (conformidade com os princípios básicos da administração pública) do ato, sendo defeso ao Poder Judiciário se manifestar acerca da sua conveniência, oportunidade e/ou eficiência, isto é, sobre o que se convencionou denominar de mérito administrativo. Cabem, nesse ponto, algumas considerações acerca dos atos administrativos discricionários. A discricionariedade administrativa deriva da multiplicidade e complexidade das atividades desempenhadas pelo Poder Público, em relação às quais a lei, por mais minuciosa e casuística que seja, não consegue prever todos os caminhos a serem seguidos, ou pelo menos não o caminho que se mostre mais vantajoso ou correto para cada hipótese. Como leciona Hely Lopes Meirelles, a discricionariedade administrativa é “a ferramenta jurídica que a ciência do Direito entrega ao administrador para que realize a gestão dos interesses sociais respondendo às necessidades de cada momento” (op. cit., p. 168). Mas essa discricionariedade não se confunde com arbitrariedade, devendo a autoridade administrativa, entre as alternativas que se apresentarem, optar por aquela que melhor corresponda àquilo que está expresso ou subentendido em lei, sempre com vistas a alcançar o fim por ela almejado. Em complemento a esse raciocínio, Maria Sylvia Zanella Di Pietro lembra a evolução das limitações impostas à discricionariedade administrativa e anota que, após a construção da teoria dos motivos determinantes, passou-se a admitir o controle judicial com base na violação de princípios gerais do direito, como a boa-fé e a proporcionalidade, afirmando que “hoje, a discricionariedade administrativa é vista como uma liberdade de opção entre duas ou mais alternativas válidas perante o direito, e não apenas perante a lei”, motivo pelo qual “sofre maiores limitações, ficando muito mais complexa a atividade de controle” (Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa, in Revista 556 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 17, abr/jun 2007, pp. 77-78). Nesse contexto, ganha relevância a distinção entre discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa, fruto dessa evolução do Direito Administrativo, sobretudo a partir da reforma administrativa de 1998, que culminou na privatização de serviços públicos e na criação de agências reguladoras, autarquias especiais, dotadas de poder regulamentar, fiscalizador e sancionatório. Essa distinção, inspirada na doutrina portuguesa de Afonso Rodrigues Queiró, parte da diferenciação entre discricionariedade e interpretação da norma. Para o referido autor, a estruturação da norma se apoia em dois conceitos que, embora igualmente advindos do ser e do dever-ser, distinguem-se em: (i) conceito prático, suscetível de uma variedade de sentidos entre si diferentes, impondo condições de fato que a norma só pode exigir de forma implícita e que, portanto, confere competência discricionária; e (ii) conceito teorético, a demandar perfeita subsunção das condições de fato à norma, fazendo exsurgir uma competência vinculada. Juliano Heinen bem sintetiza essa questão, frisando que a subjetividade de um conceito não autoriza dizer que se têm, diante dele, várias alternativas. Para o autor, “indeterminação não se confunde com múltiplas opções de ação previamente determinadas. A existência de muitas opções hermenêuticas garante uma indeterminação momentânea, para, após uma juízo de valor, terse uma opção. Fato completamente diverso seria a existência, desde o início, de duas ou mais alternativas de atuação, que permanecerão presentes até o momento de se concentrar em apenas uma delas” (Para uma nova concepção do princípio da legalidade em face da discricionariedade técnica, in Revista Forense, Rio de Janeiro, ano 106, vol. 412, nov/dez 2010, p. 463). Diante disso, conclui-se que a discricionariedade administrativa é de certa forma residual, isto é, ela só se legitima quando não houver mais margem para a interpretação da própria lei. Somente após o encerramento do processo exegético da norma, o que inclui a aplicação dos seus conceitos teoréticos, e perdurando mais de uma solução possível e aceitável à luz dos princípios básicos da administração pública, é que se adentra o campo da discricionariedade administrativa. Percebe-se, com isso, que supostas discricionariedades presentes na norma – emanadas de conceitos indeterminados – uma vez interpretadas podem, na RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 557 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA prática, conduzir a uma única solução, o que, a rigor, não confere à administração pública nenhuma margem de atuação discricionária. É exatamente o que ocorre na discricionariedade técnica que, conforme adverte Maria Sylvia Zanella di Pietro, não caracteriza uma discricionariedade de fato. De acordo com a i. professora, na discricionariedade técnica “existe uma solução única a ser adotada com base em critérios técnicos fornecidos pela ciência. Quando um ente administrativo baixa atos normativos definindo conceitos indeterminados, especialmente os conceitos técnicos e os conceitos de experiência, ele não está exercendo o poder regulamentar, porque este supõe a existência de discricionariedade administrativa propriamente dita que, no caso, não existe” (op. cit., pp. 91-92). Nesse sentido, somente haverá discricionariedade administrativa quando a administração pública tiver de optar entre mais de um critério técnico. A existência de um único critério técnico impõe ao agente estatal um padrão de conduta vinculado. Em suma, a possibilidade de mais de uma interpretação da norma conduz à discricionariedade técnica, enquanto a possibilidade de mais de uma atuação frente à norma conduz à discricionariedade administrativa. A consequência dessa diferenciação é bem apreendida por Juliano Heinen, ao consignar que “a discricionariedade técnica, porque mera consequência de uma valoração do administrador público diante da abstração do texto normativo, pode ser controlada pelo Poder Judiciário, pelo simples fato de que a interpretação final de um texto legal é dada justamente pelo magistrado” (op. cit., p. 465). Essas considerações subsumem-se perfeitamente ao registro de marcas. A análise do INPI encontra-se vinculada aos parâmetros técnicos estabelecidos na Lei n. 9.279/1996 e em suas próprias resoluções, sendo-lhe em princípio vedado negar registro a uma marca que preencha os requisitos legais. Para coibir eventuais condutas abusivas, a Lei n. 9.279/1996 previu não apenas recursos administrativos, mas uma ação de nulidade de registro de marca, por meio da qual é dado ao Poder Judiciário rever o juízo discricionário (técnico) do INPI. Vale dizer, o próprio legislador reconheceu que, embora essa decisão envolva mérito administrativo, o ato deriva do exercício de uma discricionariedade vinculada, portanto sujeita a controle pelo Poder Judiciário. Raciocínio análogo pode ser desenvolvido em relação à Resolução n. 121/05, editada pelo INPI para regulamentar o art. 125 da LPI. Ao fazê-lo estabeleceu, 558 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA no art. 2º, o que se entende por marca de alto renome, afirmando tratar-se daquela que “goza de uma autoridade incontestável, de um conhecimento e prestígio diferidos, resultantes da sua tradição e qualificação no mercado e da qualidade e confiança que inspira, vinculadas, essencialmente, à boa imagem dos produtos ou serviços a que se aplica, exercendo um acentuado magnetismo, uma extraordinária força atrativa sobre o público em geral, indistintamente, elevando-se sobre os diferentes mercados e transcendendo a função a que se prestava primitivamente, projetando-se apta a atrair clientela pela sua simples presença”. Cuida-se de claro exercício de discricionariedade técnica, pois, não obstante tenha tido liberdade para regulamentar o art. 125 da LPI, o INPI se viu obrigado a respeitar conceitos técnico-científicos para definir o que vem a ser marca de alto renome. De forma semelhante, ao se manifestar acerca do alto renome de uma marca, o INPI também agirá com discricionariedade técnica, pois realizará sua análise com base na interpretação da legislação aplicável, inclusive sua própria resolução, e, presentes os requisitos fixados, estará em princípio obrigado a conceder o registro, ou seja, haverá duas possiblidades de interpretação, mas não duas possiblidades de atuação. Em síntese, conclui-se que os atos do INPI relacionados com o registro do alto renome de uma marca, por derivarem do exercício de uma discricionariedade técnica e vinculada, encontram-se sujeitos a controle pelo Poder Judiciário, sem que isso implique violação do princípio da separação dos poderes. Na hipótese específica dos autos, verifica-se que a recorrente teve a iniciativa de ajuizar ação objetivando a declaração do alto renome da marca Absolut, sem que houvesse prévia manifestação do INPI. Como visto, porém, a lacuna presente na Resolução n. 121/05 autoriza o Poder Judiciário a, num primeiro momento, apenas suprir a omissão do INPI em declarar de forma direta a existência ou não do alto renome de uma marca. Deveria a recorrente, portanto, ter se limitado a adotado medida judicial tendente a provocar a manifestação do INPI. Conclui-se, assim, que ao reconhecer o alto renome da marca Absolut, na ausência de uma declaração administrativa do INPI a respeito, a decisão rescindenda exerceu função que legalmente compete àquele órgão, violando a tripartição dos poderes do Estado, assegurada pelo art. 2º da CF/1988. Vale RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 559 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA dizer, não houve controle do ato administrativo, mas efetiva prática deste ato em substituição ao INPI. Nem se diga que essa ausência de manifestação do INPI estaria superada pelo fato de a referida autarquia ter integrado o polo passivo da ação rescindenda, pois é natural que a representação jurídica da administração pública, movida pelos princípios da legalidade e da eventualidade, se veja na obrigação de apresentar defesa, impugnando as alegações da parte contrária e evitando a caracterização da revelia. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.176.320-RS (2010/0008120-3) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Octavio Mônaco Advogado: José Dilson Fernandes Recorrido: Golden Cross Assitência Internacional de Saúde Ltda Advogado: Caio Múcio Torino e outro(s) EMENTA Recurso especial. Plano de saúde. Ação de ressarcimento. Cirurgia cardíaca. Descumprimento de cláusula contratual. Prazo prescricional decenal. 1.- Em se tratando de ação objetivando o ressarcimento de despesas realizadas com cirurgia cardíaca para a implantação de “stent”, em razão da negativa do plano de saúde em autorizar o procedimento, a relação controvertida é de natureza contratual. 2.- Não havendo previsão específica quanto ao prazo prescricional, incide o prazo geral de 10 (dez) anos, previsto no art. 205 do Código Civil, o qual começa a fluir a partir da data de sua vigência (11.1.2003), respeitada a regra de transição prevista no art. 2.028. 3.- Recurso Especial provido. 560 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Brasília (DF), 19 de fevereiro de 2013 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 26.2.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Octavio Mônaco interpõe Recurso Especial, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, contra Acórdão unânime do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Rel. Des. Luís Augusto Coelho Braga), assim ementado (e-STJ fl. 129): Apelação cível. Seguro-saúde. Negativa de pagamento de stent. Segurado que paga por conta própria. Prescrição. Art. 206, § 3º, V, do CCB. Negaram provimento ao apelo. Unânime. 2.- No caso em exame, o autor, ora recorrente, propôs ação objetivando o ressarcimento das despesas que realizou com cirurgia cardíaca para a implantação de “stent”, em razão da negativa do plano de saúde em autorizar o procedimento. 3.- Alega o recorrente violação dos arts. 205 e 206, § 3º, V, do Código Civil, sustentando, em síntese, que o prazo prescricional para a ação que visa ao reembolso de despesas efetuadas com tratamento de saúde é de dez anos. 4.- Contra-arrazoado (e-STJ fls. 152-157), o recurso foi admitido (e-STJ fls. 159-161), vindo os autos a este Tribunal. É o relatório. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 561 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Cinge-se a controvérsia em definir qual é o prazo prescricional aplicável no caso de ação objetivando o ressarcimento de despesas, no valor de R$ 6.365,66 (seis mil, trezentos e sessenta e cinco reais e sessenta e seis centavos), realizadas com cirurgia cardíaca para a implantação de “stent”, em razão da negativa do plano de saúde em autorizar o procedimento. 6.- De início, cumpre salientar que a hipótese não se subsume à regra da prescrição ânua prevista no art. 206, § 1º, II, do Código Civil, uma vez que a causa de pedir da pretensão não decorre de contrato de seguro, mas da prestação de serviço de saúde, que deve receber tratamento próprio. 7.- Verifica-se, assim, que a relação controvertida é de natureza contratual, uma vez que, consoante alegou a própria ré, ora recorrida, em sua Contestação, a recusa do plano de saúde em autorizar a cobertura deveu-se ao fato de que “implantes estão excluídos de cobertura contratual”. (e-STJ fls. 26) 8.- Conforme salienta CARLOS ROBERTO GONÇALVES, o Código Civil diferencia a responsabilidade civil contratual e a extracontratual, observando quanto ao seu disciplinamento, o que se segue: O Código Civil distinguiu as duas espécies de responsabilidade, disciplinando genericamente a responsabilidade extracontratual nos arts. 186 a 188 e 927 e s.; e a contratual, nos arts. 395 e s. e 389 e s., omitindo qualquer referência diferenciadora. É certo, porém, que nos dispositivos em que trata genericamente dos atos ilícitos, da obrigação de indenizar e da indenização (arts. 186 a 188, 927 e s. e 944 e s.), o Código não regulou a responsabilidade proveniente do inadimplemento da obrigação, da prestação com defeito ou da mora no cumprimento das obrigações provenientes dos contratos (que se encontra no capítulo referente aos efeitos da obrigações). Além dessas hipóteses, a responsabilidade contratual abrange também o inadimplemento ou mora relativos a qualquer obrigação, ainda que proveniente de um negócio unilateral (como o testamento, a procuração ou a promessa de recompensa) ou da lei (como a obrigação de alimentos). E a responsabilidade extracontratual compreende, por seu turno, a violação dos deveres gerais de abstenção ou omissão, como os que correspondem aos direitos reais, aos direitos de personalidade ou aos direitos de autor (à chamada propriedade literária, científica ou artística, aos direitos de patente ou de invenções e às marcas). (...). Vejamos, assim, quais as diferenciações geralmente apontadas entre as duas espécies de responsabilidade. 562 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA A primeira, e talvez mais significativa, diz respeito ao ônus da prova. Se a responsabilidade é contratual, o credor só está obrigado a demonstrar que a prestação foi descumprida. O devedor só não será condenado a reparar o dano se provar a ocorrência de alguma das excludentes admitidas na lei: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior. Incumbe-lhe, pois, o onus probandi. No entanto se a responsabilidade for extracontratual, a do art. 186 (um atropelamento, por exemplo), o autor da ação é que fica com o ônus de provar que o fato se deu por culpa do agente (motorista). A vítima tem maiores probabilidades de obter a condenação do agente ao pagamento da indenização quando a sua responsabilidade deriva do descumprimento do contrato, ou seja, quando a responsabilidade é contratual, porque não precisa provar a culpa. Basta provar que o contrato não foi cumprido e, em conseqüência, houve o dano. Outra diferenciação que se estabelece entre a responsabilidade contratual e extracontratual diz respeito às fontes de que promanam. Enquanto a contratual tem a sua origem na convenção, a extracontratual a tem na inobservância do dever genérico de não lesar, de não causar dano a ninguém (neminem laedere), estatuído no art. 186 do Código Civil. Outro elemento de diferenciação entre as duas espécies de responsabilidade civil refere-se à capacidade do agente causador do dano. Josserand entende que a capacidade sofre limitações no terreno da responsabilidade simplesmente contratual, sendo mais ampla no campo da responsabilidade extracontratual. (...). Outro elemento de diferenciação poderia ser apontado no tocante à gradação da culpa. Em regra, a responsabilidade, seja extracontratual (art. 186), seja contratual (arts. 389 e 392), funda-se na culpa. A obrigação de indenizar, em se tratando de delito, deflui da lei, que vale erga omnes. Consequência disso seria que, na responsabilidade delitual, a falta se apuraria de maneira mais rigorosa, enquanto na responsabilidade contratual ela variaria de intensidade de conformidade com os diferentes casos, sem contudo alcançar aqueles extremos a que se pudesse chegar na hipótese da culpa aquiliana, em que vige o princípio do in lege Aquilia et levissima culpa venit. No setor da responsabilidade contratual, a culpa obedece a um certo escalonamento, de conformidade com os diferentes casos em que ela se configure, ao passo que, na delitual, ela iria mais longe, alcançando a falta ligeiríssima. (Responsabilidade Civil, São Paulo, 2011, Saraiva, 13ª ed., ps. 59-62). 9.- Por sua vez, adentrando ao exame da pretensão de reparação civil sob o enfoque do prazo prescricional, CARLOS ALBERTO DABUS MALUF, reportando-se à doutrina de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, observa que o art. 206, § 3º, V, do Código Civil cuida do prazo prescricional relativo à indenização por responsabilidade civil aquiliana, disciplinada pelos arts. 186 e 187 do mencionado diploma legal: RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 563 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A Lei civil anterior não previa prazo específico para essa hipótese, sujeitandose ela ao prazo geral. (...). A reparação civil decorrente de ato ilícito está disciplinada pelos arts. 186 e 187 da Lei Civil de 2002. (...). Tratando-se de inovação, sem a correspondência no direito anterior, fica excluída a regra de transição do art. 2.028 nesta hipótese, ressalvado, apenas, o efeito imediato (art. 6º da LICC). (...). Ainda para Humberto Theodoro Júnior: “Quando a norma do art. 206, § 3º, inciso V, fala em prescrição da ‘pretensão de reparação civil’, está cogitando da obrigação que nasce do ilícito stricto sensu. Não se aplica, portanto, às hipóteses de violação do contrato, já que as perdas e danos, em tal conjuntura, se apresentam com função secundária. O regime principal é o do contrato, ao qual deve aderir o dever de indenizar como acessório, cabendo-lhe função própria do plano sancionatório. Enquanto não prescrita a pretensão principal (a referente à obrigação contratual) não pode prescrever a respectiva sanção (a obrigação pelas perdas e danos). Daí que enquanto se puder exigir a prestação contratual (porque não prescrita a respectiva pretensão), subsistirá a exigibilidade do acessório (pretensão ao equivalente econômico e seus acréscimos legais). É, então, a prescrição geral do art. 205, ou outra especial aplicável in concreto, como a quinquenal do art. 206, § 5º, inciso I, que, em regra, se aplica à pretensão derivada do contrato, seja originária ou subsidiária a pretensão. Esta é a interpretação que prevalece no Direito Italiano (Código Civil, art. 2.947), onde se inspirou o Código brasileiro para criar uma prescrição reduzida para a pretensão de reparação do dano”. (MALUF, CARLOS ALBERTO DABUS, Código Civil Comentado, São Paulo, 2009, arts. 189 a 232, Atlas, ps. 111-112). 10.- Nessa linha de entendimento, decidiu este Tribunal no julgamento do REsp n. 1.121.243-PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, DJe 5.10.2009, que o prazo de prescrição previsto no art. 206, § 3º, V, do Código Civil não se aplica quando “a pretensão deriva do não cumprimento de obrigação e deveres constantes de contrato”: Civil e Processual. Ação de ressarcimento de danos. Nulidade do acórdão. Violação ao art. 535 do CPC. Inexistência. Prescrição. Inocorrência. Juros de mora. Inadimplemento contratual. Termo inicial. Data da citação. Precedentes. I. Quando resolvidas todas as questões devolvidas ao órgão jurisdicional, o julgamento em sentido diverso do pretendido pela parte não corresponde a nulidade. II. A pretensão autoral, de direito pessoal, obedece ao prazo prescricional decenal. 564 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA III. Tratando-se de responsabilidade contratual, os juros incidirão a partir da citação. IV. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. No mencionado precedente, consignou o E. Relator: Quanto à alegada prescrição, não há que se falar em violação aos arts. 206, § 3º, II e V e 2.028 do Código Civil de 2002, ou ainda ao art. 178, § 10º, do Código Civil anterior. Ora, não se está aqui a tratar de prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias e muito menos de reparação civil. Na realidade, as instâncias ordinárias bem delimitaram a pretensão autoral, dando seu correto enquadramento jurídico: a de que a ação versa sobre direito pessoal, tendo-se como aplicável a prescrição comum. Com efeito, a pretensão deriva do não cumprimento de obrigação e deveres constantes de contrato firmado com a ré, prestadora de serviços, de natureza pessoal e, conseqüentemente, está sujeita ao prazo prescricional decenal. 11.- Do mesmo modo, em julgamento proferido pela C. Segunda Seção, decidiu-se que “a pretensão ao cumprimento de obrigação contratual está sujeita à regra geral do art. 205 do Código Civil, que fixa o prazo de prescrição em dez anos” (REsp n. 976.968-RS, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 20.11.2007). E, ainda, nos precedentes abaixo: Agravo regimental. Plano de saúde. Ação declaratória de restabelecimento de contrato de seguro. Prescrição. Aplicação do art. 205 do CC/2002. Direito a manutenção do contrato nas mesmas condições anteriores a aposentadoria. Súmula n. 7-STJ. Recurso não provido. 1.- O prazo prescricional aplicável em hipóteses em que se discute a abusividade de cláusula contratual, e, considerando-se a subsidiariedade do CC às relações de consumo, deve-se aplicar, na espécie, o prazo prescricional de 10 (dez) anos disposto no art. 205 do CC. 2.- Em relação ao direito dos aposentados que contribuíram por mais de 10 (dez) anos de ser mantido nas mesmas condições do seguro saúde enquanto empregado, observa-se que a convicção a que chegou o Tribunal de origem decorreu da análise do conjunto fático-probatório, que não tem como ser revisto em sede de recurso especial, ante o preconizado na Súmula n. 7 do STJ. 3.- Agravo Regimental improvido. (AgRg no AREsp n. 112.187-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 28.6.2012); RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 565 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Processual Civil. Recurso especial. Ação civil pública. Ministério Público. Plano de saúde. Interesse individual indisponível. Reajuste. Cláusula abusiva. Prescrição. Art. 27 do CDC. Inaplicabilidade. Lei n. 7.347/1985 omissa. Aplicação do art. 205 do CC/2002. Prazo prescricional de 10 anos. Recurso não provido. 1. A previsão infraconstitucional a respeito da atuação do Ministério Público como autor da ação civil pública encontra-se na Lei n. 7.347/1985 que dispõe sobre a titularidade da ação, objeto e dá outras providências. No que concerne ao prazo prescricional para seu ajuizamento, esse diploma legal é, contudo, silente. 2. Aos contratos de plano de saúde, conforme o disposto no art. 35-G da Lei n. 9.656/1998, aplicam-se as diretrizes consignadas no CDC, uma vez que a relação em exame é de consumo, porquanto visa a tutela de interesses individuais homogêneos de uma coletividade. 3. A única previsão relativa à prescrição contida no diploma consumerista (art. 27) tem seu campo de aplicação restrito às ações de reparação de danos causados por fato do produto ou do serviço, não se aplicando, portanto, à hipótese dos autos, em que se discute a abusividade de cláusula contratual. 4. Por outro lado, em sendo o CDC lei especial para as relações de consumo – as quais não deixam de ser, em sua essência, relações civis – e o CC, lei geral sobre direito civil, convivem ambos os diplomas legislativos no mesmo sistema, de modo que, em casos de omissão da lei consumerista, aplica-se o CC. 5. Permeabilidade do CDC, voltada para a realização do mandamento constitucional de proteção ao consumidor, permite que o CC, ainda que lei geral, encontre aplicação quando importante para a consecução dos objetivos da norma consumerista. 6. Dessa forma, frente à lacuna existente, tanto na Lei n. 7.347/1985, quanto no CDC, no que concerne ao prazo prescricional aplicável em hipóteses em que se discute a abusividade de cláusula contratual, e, considerando-se a subsidiariedade do CC às relações de consumo, deve-se aplicar, na espécie, o prazo prescricional de 10 (dez) anos disposto no art. 205 do CC. 7. Recurso especial não provido. (REsp n. 995.995-DF, Relª. Minª. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 16.11.2010). 12.- Com efeito, o caso em análise versa sobre ação de ressarcimento por despesas que só foram realizadas em razão de suposto descumprimento do contrato de prestação de serviços de saúde, hipótese sem previsão legal específica, o que, na esteira dos precedentes colacionados, faz atrair a incidência do prazo de prescrição geral de 10 (dez) anos, previsto no art. 205 do Código Civil, e não o de 3 (três) anos, arrolado no art. 206, § 3º, V, cujo prazo começa a fluir a partir da data de sua vigência (11.1.2003), respeitada a regra de transição prevista no art. 2.028. 566 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 13.- Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso Especial, reconhecendo a aplicação do prazo prescricional de 10 (dez) anos à hipótese. RECURSO ESPECIAL N. 1.191.195-RS (2010/0076328-4) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Relator para o acórdão: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Clóvis Fernandes Advogado: Anderson Luiz Rodrigues da Silva e outro(s) Recorrido: HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo Advogado: Clovys Bohrer Júnior e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação monitória. Valores bloqueados em conta poupança vinculada a conta corrente. Impenhorabilidade. Art. 649, inciso X, do CPC. Incidência. 1. Segundo o art. 649, inciso X, do CPC, a quantia depositada em caderneta de poupança é impenhorável até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos. 2. A intenção do legislador foi a de proteger o pequeno investidor detentor de poupança modesta, atribuindo-lhe uma função de segurança alimentícia ou de previdência pessoal e familiar. 3. O valor de quarenta salários mínimos foi escolhido pelo legislador como sendo aquele apto a assegurar um padrão mínimo de vida digna ao devedor e sua família, assegurando-lhes bens indispensáveis à preservação do mínimo existencial, incorporando o ideal de que a execução não pode servir para levar o devedor à ruína. 4. Tal como a caderneta de poupança simples, a conta poupança vinculada é considerada investimento de baixo risco e baixo rendimento, com remuneração idêntica, ambas contando com a proteção do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), que protege o pequeno investidor, e RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 567 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA isenção de imposto de renda, de modo que deve ser acobertada pela impenhorabilidade prevista no art. 649, inciso X, do CPC. 5. Eventuais situações que indiquem a existência de má-fé do devedor devem ser solucionadas pontualmente. 6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, acompanhando a divergência, a Terceira Turma, por maioria, dar parcial provimento ao recurso especial. Vencida a Sra. Ministra-Relatora Nancy Andrighi. Votaram com o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino. Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília (DF), 12 de março de 2013 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 26.3.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Clóvis Fernandes, com fundamento no art. 105, III, a, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-RS. Ação: monitória, ajuizada por HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo, em desfavor do recorrente, avalista de débito decorrente de contrato de abertura de limite de crédito em conta corrente – conta empresarial. Em razão do débito do qual o recorrente fora avalista, o juízo determinou o bloqueio de valores eventualmente encontrados em nome deste. Desta feita, foi bloqueado o montante de R$ 8.971,48 (oito mil, novecentos e setenta e um reais e quarenta e oito centavos). O recorrente, por sua vez, pleiteou a liberação do bloqueio do citado montante, sob o argumento de que, além de se tratarem de proventos decorrentes 568 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA de aposentadoria, a maior parte deles estaria depositado em caderneta de poupança. Decisão interlocutória: liberou da penhora on line tão somente o valor referente aos proventos do mês. Decisão unipessoal: negou seguimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrente, nos termos da seguinte ementa: Agravo de instrumento. Ação monitória. Mandado executivo. Deferimento de pedido de penhora on line, por meio do sistema Bacen-Jud. Poupança vinculada a conta corrente. Possível o bloqueio de valores em conta corrente/poupança quando se trata de reserva financeira - acúmulo de proventos -, por não incidir a impenhorabilidade previsto no artigo 649, incisos IV e X, do Código de Processo Civil. Negado seguimento ao agravo, em decisão monocrática (e-STJ fl. 110). Acórdão: negou provimento ao agravo interposto pelo recorrente (e-STJ fls. 127-131), mantendo a decisão unipessoal do relator. Recurso especial: alega violação do art. 649, IV e X, do CPC. Aponta a impenhorabilidade do valor bloqueado, pois seriam decorrentes de proventos de aposentadoria, além de a maior parte dele estar depositado em caderneta de poupança. Sustenta que, ainda que os valores estivessem depositados em poupança vinculada à conta corrente, deve-se considerá-los como valores depositados em poupança e com clara finalidade de realização de economia. Aduz que, da análise dos extratos juntados, pode-se verificar que não há movimentação financeira que exceda ao limite dos valores recebidos mensalmente pelo recorrente a título de benefício de aposentadoria, até mesmo porque o saldo médio sempre foi mantido. Prévio juízo de admissibilidade: após o decurso de prazo para a apresentação das contrarrazões (e-STJ fl. 151) sem que o recorrido se manifestasse, o recurso especial foi admitido na origem (e-STJ fls. 153-155). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Inicialmente, defiro o pedido de assistência judiciária gratuita formulado pelo recorrente, nos termos do art. 4º da Lei n. 1.060/1950. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 569 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA I – Da delimitação da controvérsia Cinge-se a controvérsia a determinar se deve ser aplicada a regra da impenhorabilidade prevista no art. 649, X, do CPC a valores depositados não propriamente em caderneta de poupança, mas em poupança vinculada à conta corrente do recorrente, bloqueados para satisfação de débito do qual era avalista. II – Do reexame de fatos e provas (art. 649, IV, do CPC). Inicialmente, quanto à alegada violação do art. 649, IV, do CPC, fazse mister ressaltar que o recorrente insurge-se contra o bloqueio de R$ 8.971,48 (oito mil, novecentos e setenta e um reais e quarenta e oito centavos), encontrados em sua conta corrente, sob um primeiro argumento de que tais valores seriam decorrentes de proventos de aposentadoria. Ocorre que o TJ-RS deixou expressamente consignado que “a quantia em dinheiro bloqueada na conta corrente do executado não tem natureza alimentar, tratando-se de reserva financeira, já que a verba utilizada para o sustento da família limita-se ao valor percebido pela aposentadoria, como afirmado pelo agravante, que, inclusive, veio a ser desbloqueado pelo juízo a quo” (e-STJ fl. 130). Nesse diapasão, tem-se que alterar o decidido no acórdão recorrido no que se refere ao caráter do montante encontrado em sua conta corrente, bem como à procedência de tal valor - até mesmo porque o Tribunal de origem revelou tratar-se meramente de reserva financeira, sem caráter alimentar -, importaria na reanálise de fatos e provas dos autos, inviável a esta Corte, em virtude da aplicabilidade da Súmula n. 7-STJ. III- Dos contornos da ação O que se analisará no presente processo é se, de fato, poupança vinculada à conta corrente enseja ou não a aplicação do art. 649, X, do CPC, para fins de se detectar se o TJ-RS afastou corretamente a tese da impenhorabilidade trazida pelo recorrente. O recorrente apresenta irresignação contra o bloqueio dos valores encontrados em sua conta corrente e em poupança vinculada à sua conta corrente, sob um segundo argumento de que a maior parte desses valores estaria depositada em caderneta de poupança, devendo ser considerada impenhorável, diante da aplicação do art. 649, X, do CPC. 570 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Sobreleva-se destacar que o Tribunal a quo, no entanto, afastou o argumento de que os valores estariam depositados em caderneta de poupança, considerando que o depósito estaria, em verdade, em conta corrente, já que delineou expressamente que “não prospera a afirmação do agravante de que o bloqueio foi efetuado em numerário depositado em conta poupança, pois o extrato da fl. 64 é de uma conta corrente, ainda que possua “poupança fácil” vinculada para obtenção de rendimentos daqueles valores que ficam depositados em conta por mais de trinta dias, ademais, considerando-se que a baixa é automática para cobrir os débitos” (e-STJ fl. 130). Nesse ínterim, cumpre, então, investigar se o valor bloqueado está, de fato, alcançado pela impenhorabilidade prevista no art. 649, X, do CPC, afastada, por sua vez, pelo TJ-RJ. Ressalte-se, por oportuno, que à análise do presente ponto não incide a já mencionada Súmula n. 7-STJ, tendo em vista que o Tribunal de origem tem como argumento fulcral para o afastamento da impenhorabilidade legal o reconhecimento de que se trata, na hipótese, de conta corrente com poupança a ela vinculada, o que significaria, portanto, mera reserva financeira e acúmulo de proventos, hábil a afastar a aplicabilidade do citado dispositivo legal. IV – Da possibilidade de penhora dos valores encontrados em nome do recorrente Voltando-se a execução por quantia certa à expropriação de bens do devedor, a fim de satisfazer o direito do credor, tem-se, nesse contexto, que a regra é que o executado responde pela dívida com todos os seus bens, salvo as exceções expressamente ditadas em lei, valendo-se citar a elencada impenhorabilidade trazida pelo art. 649 do já mencionado diploma. Objeto de insurgência no presente recurso especial, o art. 649, X, do CPC prescreve que são absolutamente impenhoráveis, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança. Nesse ínterim, sendo exceção à regra, o artigo em questão não comporta interpretação extensiva, devendo-se compreender por impenhoráveis tão somente os valores depositados em caderneta de poupança, respeitado o limite legal indicado. Ressalte-se que, inevitavelmente, a caderneta de poupança diferenciase da conta poupança, já que naquela o cliente entrega quantia pecuniária a RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 571 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA instituição financeira, que adquire sua propriedade e obriga-se a restituir os valores depositados quando lhe for exigido, sendo geralmente remunerado o período durante o qual a instituição financeira permanece com os valores (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 18. ed. rev. e atual. 2007, p. 450), ao passo que esta caracteriza-se pela remuneração mensal conjugada com a possibilidade de emissão de ordens de pagamento por parte do correntista (BITTAR, Danilo Silva. Repensando a impenhorabilidade da conta-poupança. In: Repertório IOB de jurisprudência: civil, processual, penal e comercial, n. 11, p. 395-389, 1. quinz. jun. 2012). O recorrente defende que a maior parte dos valores bloqueados é impenhorável, por estar depositado em caderneta de poupança. No entanto, contrariamente ao que alega o recorrente, verifica-se que o extrato acostado à fl. 65 (e-STJ) dos autos, de fato, trata-se de um extrato de conta corrente, não obstante possua uma poupança – denominada de “poupança fácil” -, vinculada para a obtenção de rendimentos de eventuais valores depositados em conta por mais de trinta dias. Desta feita, nota-se que, apesar da denominação contida no referido extrato - “poupança fácil” -, trata-se de espécie de conta poupança, à qual a instituição financeira remunera com juros e correção monetária os eventuais valores que permanecerem depositados, sem uso pelo correntista, além de poder utilizar esses valores para cobrir quaisquer débitos deste. Logo, o que se verifica é que, com efeito, os valores não estão depositados em caderneta de poupança, já que se trata, em realidade, de conta corrente com poupança a ela vinculada ou integrada, conforme se depreende do extrato em questão, acostado aos autos. Salienta-se que a caderneta de poupança diferencia-se da poupança vinculada à conta corrente, pois nesta os depósitos são automaticamente direcionados a uma conta poupança e, sempre que houver a necessidade de cobertura de débitos, os valores são automaticamente resgatados para a conta corrente, representando uma natureza meramente circulatória. Ora, a regra da impenhorabilidade visa a garantir ao executado que terá meios de subsistência mesmo em caso de vir a ter seus bens penhorados para satisfação da dívida exequenda. Nesta seara, infere-se que a intenção do legislador foi a de preservar as reservas do pequeno poupador, isto é, preservar os interesses daquele que 572 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA mantém depósitos em caderneta de poupança com o nítido propósito de resguardar as economias pessoais ou para algum fim específico, e não aquelas importâncias mantidas a produzir renda enquanto não empregadas. Ora, são absolutamente impenhoráveis, respeitado o limite legal estabelecido, tão somente a quantia depositada em caderneta de poupança, não podendo valer-se o recorrente deste amparo legal para tentar afastar a penhora de valores encontrados em seu nome, tendo em vista que tais valores estão claramente depositados em poupança vinculada à sua conta corrente. Por esses fundamentos, entende-se que o art. 649, X, do CPC não pode ser interpretado extensivamente, sendo inviável atribuir a exegese que lhe pretende emprestar o recorrente, pois tal atitude significaria afastar o bloqueio de valores mantidos, em verdade, em conta corrente remunerada, e não propriamente em caderneta de poupança. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial. VOTO-VISTA O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Pedi vista dos autos para refletir melhor sobre a matéria em debate. Trata-se de recurso especial interposto por Clóvis Fernandes, com arrimo no artigo 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado: Agravo interno. Negativa de seguimento de agravo de instrumento. Decisão monocrática mantida. Agravo interno desprovido (e-STJ fl. 128). A decisão monocrática que precedeu a interposição do agravo regimental recebeu o seguinte resumo: Agravo de instrumento. Ação monitória. Mandado executivo. Deferimento de pedido de penhora on line, por meio do sistema Bacen-Jud. Poupança vinculada a conta corrente. Possível o bloqueio de valores em conta corrente/poupança quando se trata de reserva financeira - acúmulo de proventos -, por não incidir a impenhorabilidade prevista no artigo 649, incisos IV e X, do Código de Processo Civil. Negado seguimento ao agravo, em decisão monocrática (e-STJ fl. 110). RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 573 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em suas razões (e-STJ fls. 142-147), o recorrente aponta violação do artigo 649, incisos IV e X, do Código de Processo Civil. Sustenta, em síntese, que, a despeito de os valores estarem depositados em conta poupança vinculada à conta corrente, e não propriamente em caderneta de poupança, possuem clara finalidade de economia sendo todos os recursos oriundos de proventos de aposentadoria. Decorrido sem manifestação o prazo para as contrarrazões (e-STJ fl. 151), e admitido o recurso na origem (e-STJ fls. 153-155), subiram os autos a esta colenda Corte. Levado o feito a julgamento pela egrégia Terceira Turma, em 23.10.2012, após a prolação do voto da ilustre relatora, Ministra Nancy Andrighi, negando provimento ao recurso especial, pedi vista antecipada dos autos e ora apresento meu voto. É o relatório. Cinge-se a controvérsia a perquirir se a quantia inferior a quarenta salários mínimos depositada em conta poupança vinculada a conta corrente pode ser acobertada pela proteção legal do artigo 649, inciso X, do Código de Processo Civil. Como é cediço, a impenhorabilidade prevista no artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil objetiva por a salvo de quaisquer constrições os valores percebidos a título de “vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal (...)” , em virtude da natureza alimentar de referidas verbas. A propósito: Processo Civil. Cumprimento de sentença. Penhora de valores em conta corrente. Proventos de funcionária pública. Natureza alimentar. Impossibilidade. Art. 649, IV, do CPC. 1. É possível a penhora ‘on line’ em conta corrente do devedor, contanto que ressalvados valores oriundos de depósitos com manifesto caráter alimentar. 2. É vedada a penhora das verbas de natureza alimentar apontadas no art. 649, IV, do CPC, tais como os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria e pensões, entre outras. 3. Recurso especial provido. 574 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA (REsp n. 904.774-DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18.10.2011, DJe 16.11.2011) Por outro lado, ainda que percebidos a título salarial, se não consumidos integralmente para o suprimento de necessidades básicas, referidos valores perdem a natureza alimentar, tornando-se penhoráveis. Nesse sentido: Processo Civil. Mandado de segurança. Cabimento. Ato judicial. Execução. Penhora. Conta-corrente. Vencimentos. Caráter alimentar. Perda. (...) - Em princípio é inadmissível a penhora de valores depositados em contacorrente destinada ao recebimento de salário ou aposentadoria por parte do devedor. Entretanto, tendo o valor entrado na esfera de disponibilidade do recorrente sem que tenha sido consumido integralmente para o suprimento de necessidades básicas, vindo a compor uma reserva de capital, a verba perde seu caráter alimentar, tornando-se penhorável. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento. (RMS n. 25.397-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14.10.2008, DJe 3.11.2008) De outra parte, nos termos do inciso X, do mesmo dispositivo legal, com a redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006, a quantia depositada em caderneta de poupança é impenhorável até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos: Art. 649. São absolutamente impenhoráveis (...)’ X - até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança. (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006). A doutrina especializada converge na conclusão de que o objetivo da mencionada regra legal foi proteger o pequeno investidor detentor de poupança modesta, atribuindo-lhe uma função de segurança alimentícia ou de previdência pessoal e familiar (Nesse sentido: ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 225; DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil. v. 5. 4. ed. Salvador: Jus Podium, 2012, p. 575 e THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. 2. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 291). RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 575 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Já o valor de quarenta salários mínimos foi escolhido pelo legislador como sendo aquele apto a assegurar um padrão mínimo de vida digna ao devedor e sua família, assegurando-lhes bens indispensáveis à preservação do mínimo existencial, incorporando o ideal de que a execução não pode servir para levar o devedor à ruína. Assegurou-se, portanto, ao devedor o direito de manter uma poupança, até o valor de quarenta salários mínimos, para fazer frente aos imprevistos da vida ligados à sua subsistência e preservação da sua dignidade (alimentação, medicamentos, saúde, moradia, previdência, etc.). É certo que, de “lege ferenda”, é bastante discutível o privilégio concedido ao devedor ao qual é permitido o acúmulo de capital em reserva financeira quando seria muito mais salutar o estímulo ao cumprimento de suas obrigações. A despeito disso, diante da regra como posta, não há como afastar a impenhorabilidade, sendo que eventuais situações de má-fé devem ser solucionadas pontualmente, como já decidiu esta Corte: Processo Civil. Impenhorabilidade de depósitos em caderneta de poupança. Existência de mais de uma aplicação. Extensão da impenhorabilidade a todas elas, até o limite de 40 salários mínimos fixado em lei. 1. O objetivo do novo sistema de impenhorabilidade de depósito em caderneta de poupança é, claramente, o de garantir um mínimo existencial ao devedor, como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Se o legislador estabeleceu um valor determinado como expressão desse mínimo existencial, a proteção da impenhorabilidade deve atingir todo esse valor, independentemente do número de contas-poupança mantidas pelo devedor. 2. Não se desconhecem as críticas, ‘de lege ferenda’, à postura tomada pelo legislador, de proteger um devedor que, em lugar de pagar suas dívidas, acumula capital em uma reserva financeira. Também não se desconsidera o fato de que tal norma possivelmente incentivaria os devedores a, em lugar de pagar o que devem, depositar o respectivo valor em caderneta de poupança para burlar o pagamento. Todavia, situações específicas, em que reste demonstrada postura de má-fé, podem comportar soluções também específicas, para coibição desse comportamento. Ausente a demonstração de má-fé, a impenhorabilidade deve ser determinada. 3. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.231.123-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2.8.2012, DJe 30.8.2012 - grifou-se) 576 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Nessa ordem de ideias, perde relevância o tipo de investimento eleito pelo devedor para o fim preconizado pela norma ou o rótulo dado pela instituição financeira, se caderneta de poupança, conta poupança integrada, conta poupança vinculada, poupança fácil, poupex, etc. Com efeito, ao longo dos anos, tem se notado uma diversificação muito grande de investimentos postos à disposição, inclusive da população de renda mais baixa. Exemplo disso são os investimentos oriundos de saldos de contas vinculadas ao FGTS em ações da Petrobrás. Tais vicissitudes foram abordadas com muita lucidez, em sede doutrinária, por Clito Fornaciari Júnior: (...) Se o objetivo da regra é assegurar uma reserva financeira, não faz sentido restringir-se a proteção só a essa particular modalidade de investimento, que, outrora, era o máximo a que o investidor, pessoa física, se dispunha. Atualmente, porém, pessoas físicas, mesmo de baixa renda, não se restringem a guardar suas sobras em cadernetas de poupança, dada a facilidade de aplicações e a popularização de fundos de investimento. Nesse sentido, é conhecida a grande soma que guardam os fundos de ações da Vale do Rio Doce e da Petrobras, que foram constituídos a partir de saques em contas do FGTS. Dessa forma, melhor entender-se a expressão caderneta de poupança como simplesmente poupança, abrigando, pois, toda e qualquer reserva financeira, realizada sob quaisquer das múltiplas modalidades de investimento disponíveis no mercado financeiro. (...) (Execução: penhora em conta corrente e de poupança. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 27, nov./dez. 2008, p. 46-47). Demais disso, as instituições financeiras, na linha de fomento aos pequenos depositantes e investidores, têm agregado facilidades às poupanças tais como o resgate e o débito automáticos, depósitos programados, etc. Tais características, que diferenciam este ou aquele serviço oferecido pelas instituições financeiras, não desnaturam a natureza do investimento. Assim, tal como a caderneta de poupança simples, a conta poupança vinculada ou, no caso, a denominada “poupança fácil” do Banco Bradesco é considerada investimento de baixo risco e baixo rendimento e, segundo informações extraídas do site da instituição financeira da internet, com remuneração idêntica (TR + 0,5 % ao mês creditados no aniversário da conta, até 3.5.2012), ambas contando com a proteção do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), que protege o pequeno investidor, e isenção de imposto de renda. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 577 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Daí porque tenho que deve ser considerada impenhorável a quantia depositada na conta poupança do ora recorrente que, em consulta aos autos, representa o valor histórico de R$ 5.022,84 (e-STJ fl. 65). Ante o exposto, com a devida vênia, voto no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial nos termos da fundamentação acima. É o voto. VOTO-VISTA O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Acompanhando a divergência): 1.- A questão cinge-se em saber se a impenhorabilidade de valor de até 40 saláriosmínimos depositado em caderneta de poupança ligada a conta corrente também se beneficia da impenhorabilidade determinada pelo art. 649, X, do Cód. de Proc. Civil, com a redação da Lei n. 11.382, de 6.12.2006, que dispõe: Art. 649.- São absolutamente impenhoráveis: (...) X - até o limite de quarenta (40) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança. 2.- Meu voto acompanha a divergência, no sentido da impenhorabilidade, atento à teleologia da norma, que visou a proteger o pequeno poupador, garantindo-lhe o necessário à subsistência básica e, ao mesmo tempo, incentivando o pequeno investimento em poupança, ante a certeza da impenhorabilidade, pela qual imunizado, o pequeno valor, às vicissitudes da vida econômico-patrimonial. Na dúvida, aliás, vem em prol da impenhorabilidade a regra hermenêutica de que “favorabilia amplianda, odiosa restringenda”. A finalidade legal é de favorecer o micro-poupador especificamente indicado pela lei, não de atingi-lo. E a espécie de conta, ainda que etiologicamente diversa da caderneta de poupança, sem dúvida que mais a ela se analogiza do que se aproxima de outra espécie de depósito bancário, de forma que o pequeno depositante na espécie de conta bem que pode crer-se depositante como o de caderneta de poupança. 3.- Questões como a de fraude cometida por intermédio de cadernetas múltiplas encontrarão mecanismos de coerção, como, aliás, consta de precedente, de que Relatora a E. Ministra Nancy Andrighi, lembrado pelo E. Ministro Ricardo Cueva no voto divergente. 578 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 4.- Ressaltado o maior respeito pelos argumentos expendidos pela E. Relatora, em trabalho jurisdicional cuidadoso, como de seu feitio, meu voto acompanha a divergência. RECURSO ESPECIAL N. 1.196.824-AL (2010/0104820-7) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Andrew Ross de Oliveira Mello Advogado: Alberto Jorge Ferreira dos Santos Recorrido: Selene Andrade de Almeida Advogado: Gustavo Antonio Góis dos Santos EMENTA Recurso especial. Locação. Natureza jurídica. Direito pessoal. Ação de despejo por prática de infração legal ou contratual e por inadimplemento de aluguéis. Legitimidade ativa. Prova da propriedade. Desnecessidade. Doutrina. 1. Tendo em vista a natureza pessoal da relação de locação, o sujeito ativo da ação de despejo identifica-se com o locador, assim definido no respectivo contrato de locação, podendo ou não coincidir com a figura do proprietário. 2. A Lei n. 8.245/1991 (Lei de Locações) especifica as hipóteses nas quais é exigida a prova da propriedade para a propositura da ação de despejo. Nos demais casos, é desnecessária a condição de proprietário para o seu ajuizamento. 3. Recurso especial conhecido e não provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 579 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 19 de fevereiro de 2013 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 26.2.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial interposto por Andrew Ross de Oliveira Mello, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas. Noticiam os autos que, em 30.11.2006, Selene Andrade de Almeida propôs ação de despejo contra o ora recorrente, objetivando a rescisão do contrato de locação com a consequente retomada do imóvel e a cobrança dos aluguéis atrasados e demais acessórios da locação, amparada na falta de pagamento dos aluguéis e no descumprimento de cláusulas contratuais (e-STJ fls. 4-9). O juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos iniciais (e-STJ fls. 201-203). Irresignado, o réu interpôs recurso de apelação suscitando, preliminarmente, a ilegitimidade da autora para integrar o polo ativo da lide e, no mérito, pugnado pela improcedência dos pedidos (e-STJ fls. 208-213). O Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas afastou a preliminar de ilegitimidade ativa e deu parcial provimento à apelação somente quanto ao percentual de incidência dos juros moratórios, em aresto assim ementado: Apelação cível. Ação de despejo. A recorrida é possuidora do imóvel litigioso e, segundo a lei de inquilinato, tem legitimidade para figurar no polo ativo da citada demanda. Descabida a alegação de inexistência de prova que ateste a titularidade do imóvel, uma vez que é prescindível a exigência de ser proprietário do bem e, ademais, a cessão de posse foi registrada em cartório competente. A afirmação formulada pelo apelante quanto à não veracidade do cabedal probatório coligido aos autos pela parte adversa não restou provada. Julgado singular reformado especificamente para aplicar a Taxa Selic quanto aos juros moratórios. Recurso conhecido e parcialmente provido. Decisão unânime (e-STJ fl. 365). 580 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Nas razões recursais (e-STJ fls. 384-388), o recorrente aponta violação do artigo 6º do Código de Processo Civil, sustentando, em síntese, que “a recorrida não tem legitimidade para pleitear o direito de um imóvel que legalmente não lhe pertence” (e-STJ fl. 388). Com as contrarrazões (e-STJ fls. 500-504) e admitido o recurso na origem (e-STJ fls. 514-516), subiram os autos a esta colenda Corte. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): Prequestionado, ainda que implicitamente, o dispositivo legal apontado pelo recorrente como malferido, e preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade recursal, impõe-se o conhecimento do especial. Cinge-se a controvérsia a perquirir se a legitimidade para propor ação de despejo - com base nas hipóteses previstas nos incisos II e III do artigo 9º da Lei n. 8.245/1991 (prática de infração legal/contratual e falta de pagamento de aluguéis) -, pressupõe a prova da propriedade do imóvel pelo locador. A teor do artigo 60 da Lei n. 8.245/1991, “Nas ações de despejo fundadas no inciso IV do art. 9º, inciso IV do art. 47 e inciso II do art. 53, a petição inicial deverá ser instruída com prova da propriedade do imóvel ou do compromisso registrado”. Já o § 2º do artigo 47 dispõe que “Nas hipóteses dos incisos III e IV, o retomante deverá comprovar ser proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, em caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à matrícula do mesmo”. Eis as hipóteses a que fazem referência os referidos dispositivos legais: Art. 9º A locação também poderá ser desfeita: (...) IV - para a realização de reparações urgentes determinadas pelo Poder Público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário no imóvel ou, podendo, ele se recuse a consenti-las. Art. 47. Quando ajustada verbalmente ou por escrito e como prazo inferior a trinta meses, findo o prazo estabelecido, a locação prorroga - se automaticamente, por prazo indeterminado, somente podendo ser retomado o imóvel: RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 581 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (...) III - se for pedido para uso próprio, de seu cônjuge ou companheiro, ou para uso residencial de ascendente ou descendente que não disponha, assim como seu cônjuge ou companheiro, de imóvel residencial próprio; IV - se for pedido para demolição e edificação licenciada ou para a realização de obras aprovadas pelo Poder Público, que aumentem a área construída, em, no mínimo, vinte por cento ou, se o imóvel for destinado a exploração de hotel ou pensão, em cinqüenta por cento; Art. 53 - Nas locações de imóveis utilizados por hospitais, unidades sanitárias oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino autorizados e fiscalizados pelo Poder Público, bem como por entidades religiosas devidamente registradas, o contrato somente poderá ser rescindido. (Redação dada pela Lei n. 9.256, de 9.1.1996) (...) II - se o proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, em caráter irrevogável e imitido na posse, com título registrado, que haja quitado o preço da promessa ou que, não o tendo feito, seja autorizado pelo proprietário, pedir o imóvel para demolição, edificação, licenciada ou reforma que venha a resultar em aumento mínimo de cinqüenta por cento da área útil. Da leitura dos dispositivos acima transcritos, extrai-se que, nas hipóteses elencadas, exigiu o legislador, por exceção, a prova da condição de proprietário para o ajuizamento da ação de despejo deixando de estabelecer exigência semelhante para as demais situações embasadoras da ação. Assim é porque, tendo em vista a natureza pessoal da relação de locação, o sujeito ativo da ação de despejo identifica-se com o locador, assim definido no respectivo contrato de locação, podendo ou não coincidir com a figura do proprietário. A doutrina especializada de Sylvio Capanema de Souza corrobora esse entendimento: (...) Legitimado, ordinariamente, para ocupar o pólo ativo da relação processual é o locador, ou seja, aquele que cedeu a posse direta do imóvel ao locatário e que, por conseqüência lógica, pode recuperá-la. Não há que se confundir a figura do locador com a do proprietário, embora seja muito freqüente que ambas se fundam na mesma pessoa, o que, entretanto, não é obrigatório. 582 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Constituindo a locação, como se sabe, mera cessão onerosa da posse de coisa infungível, não se transfere ao locatário o domínio, tal como acontece, por exemplo, na compra e venda, na permuta ou na doação. Daí se infere que está autorizado a locar não só o proprietário da coisa, que dela pode dispor, como o mero possuidor, desde que esteja este autorizado a ceder a posse. Para assestar em face do locatário sua pretensão desalijatória, precisa o autor demonstrar, portanto, que é o locador, ou que esteja a ele equiparado, dispensando-se, na maioria das hipóteses, a prova da propriedade. É verdade que em algumas situações, como já vimos e que mais a frente melhor examinaremos, exige a lei que o autor também comprove o domínio, valendo citar, como exemplo, entre outros, a retomada para uso próprio do locador, ou de seu ascendente ou descendente. A prova da condição de locador far-se-á por qualquer dos meios admitidos em direito, inclusive por testemunhas, se a locação for oralmente contratada (Da locação do imóvel urbano: direito e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 399). Ainda sob a égide da antiga lei do inquilinato (Lei n. 6.649/1979), já haviam se pronunciado Rogério Lauria Tucci e Álvaro Villaça de Azevedo no sentido de que (...) Propiciada ao locador, poderá a ação de despejo ser ajuizada, tanto pelo proprietário do imóvel locado, como por qualquer pessoa que, em posição à dele equiparada pela legislação em vigor, especialmente pela Lei do Inquilinato, satisfizer as condições tidas como indispensáveis, a saber: o promitente comprador ou promitente cessionário, em caráter irrevogável, e imitido na posse, com título registrado; o possuidor, o usufrutuário, o enfiteuta, o condômino que administre o imóvel, sem oposição dos demais (cf. CC, art. 640); o marido, quando se trate de bem pertencente à esposa, por ele administrado (cf. art. 289, inc. III, também do CC); o administrador do imóvel, em virtude de representação ou de função judicial, como o tutor, o curador e o depositário; o mandatário, com poderes de administração; o credor anticrético e o sublocador (Tratado da locação predial urbana. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 370-371). No caso dos autos, a pretensão inicial de despejo veio embasada nos incisos II e III do artigo 9º da Lei n. 8.245/1991 (prática de infração legal/contratual e falta de pagamento de aluguéis - e-STJ fls. 7-8) - casos em que a legislação de regência, como visto, não exige a prova da propriedade do imóvel pelo locador. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 583 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Compulsando os autos, verifica-se, outrossim, que a autora se desincumbiu satisfatoriamente do ônus de demonstrar que figurou no contrato de locação na posição de locadora (e-STJ fls. 97-100). Além disso, ambas as instâncias de cognição plena assentaram a sua condição de possuidora, instrumentalizada por meio de escritura pública de cessão de posse, devidamente registrada no Cartório competente (e-STJ fls. 202 e 373-374). Nesse contexto, não está mesmo a merecer nenhum reparo o acórdão recorrido que afastou a arguição de ilegitimidade ativa formulada pela parte ré. Esta Corte já teve a oportunidade de se manifestar em caso análogo, em que se controvertia a legitimidade ativa de promitente comprador para propor ação de despejo por inadimplemento de aluguéis, tendo assentado naquela ocasião que “a priori, a inexistência de prova da propriedade do imóvel ou do compromisso registrado não enseja a ilegitimidade do promitente comprador em propor o despejo da locatária que não adimpliu os aluguéis” (AgRg nos EDcl nos EDcl no Ag n. 704.933-SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 24.8.2009, DJe 14.9.2009). No mesmo rumo: Direito Civil. Processual Civil. Recurso especial. Locação. Execução. Legitimidade ativa ad causam do locador. Prova da propriedade. Desnecessidade. Fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Ônus da prova do réu. Contrato de locação prorrogado por tempo indeterminado. Título executivo extrajudicial. Precedentes. Liquidez e certeza. Exame. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Recurso especial conhecido e improvido. 1. O contrato de locação gera uma relação jurídica entre locador e locatário, razão pela qual, em princípio, é dispensável a prova da propriedade do imóvel locado. 2. Tendo o recorrido, na espécie, demonstrado sua condição de locador mediante a apresentação do respectivo contrato de locação, assinado, inclusive, pelos recorrentes, na condição de fiadores, competiria a estes últimos comprovar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, conforme disposto no art. 333, II, do CPC. 3. Constitui título executivo judicial o contrato de locação escrito, devidamente assinado pelos contratantes, ainda que o contrato tenha se prorrogado por tempo indeterminado. Inteligência do art. 585, IV, do CPC. Precedentes. 584 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 4. O exame da liquidez e certeza do crédito pleiteado demandaria o revolvimento de matéria fático-probatória, impossível pela via especial, por atrair o óbice da Súmula n. 7-STJ. 5. Recurso especial conhecido e improvido. (REsp n. 953.150-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 7.10.2008, DJe 1º.12.2008 - grifou-se) Por fim, ainda vale referir o AgRg no AgRg no Ag n. 610.607-MG, Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado pela Sexta Turma, em 25.6.2009, com especial destaque ao enfoque dado ao caso sob a ótica do princípio da boa-fé objetiva cuja função de relevo “é impedir que o contratante adote comportamento que contrarie o conteúdo de manifestação anterior, cuja seriedade o outro pactuante confiou” de modo que “Celebrado contrato de locação de imóvel objeto de usufruto, fere a boa-fé objetiva a atitude da locatária que, após exercer a posse direta do imóvel por mais de dois anos, alega que o locador, por ser o nú-proprietário do bem, não detém legitimidade para promover a execução dos aluguéis não adimplidos”. Ante o exposto, conheço do recurso especial, mas nego-lhe provimento. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.286.144-MG (2011/0242465-7) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais COHAB-MG Advogado: Ronaldo Tadeu Bandeira de Mattos e outro(s) Recorrido: Maria Madalena Batista e outro Advogado: Regina Maris Freitas dos Santos e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito Civil. Resolução de contrato. Promessa de compra e venda de imóvel. Determinação de restituição, pelo RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 585 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA promitente vendedor, das parcelas do preço pagas pelos promitentes compradores. Desnecessidade de pedido expresso dos réus. Concretização da eficácia restitutória da resolução. Inocorrência de decisão extra petia. 1. Decretada a resolução do contrato de promessa de compra e venda, deve o juiz, ainda que não tenha sido expressamente provocado pela parte interessada, determinar a restituição, pelo promitente vendedor, das parcelas do preço pagas pelos promitentes compradores. 2. Concretização da eficácia restitutória da resolução, aplicável em benefício das duas partes do contrato, como consequência natural da desconstituição do vínculo contratual. 3. Inocorrência de decisão extra petita. 4. Reafirmação da jurisprudência da Terceira e da Quarta Turma deste STJ acerca do tema. 5. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça,por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 7 de março de 2013 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 1º.4.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais - COHAB-MG interpôs recurso especial contra o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em sede de embargos infringentes. 586 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA A recorrente ajuizou ação de resolução de compra e venda e de reintegração de posse em face do casal recorrido. O juízo de primeiro grau julgou integralmente procedentes os pedidos. Interposta apelação pelos recorridos, o Tribunal de origem, por maioria, deu parcial provimento à apelação. Embora tenha confirmado a resolução do contrato e a reintegração da posse do imóvel, o Tribunal, de ofício, determinou que a recorrente restituísse 50% das parcelas do preço pagas pelos recorridos, como forma de evitar o enriquecimento sem causa. O julgamento da apelação foi confirmado em sede de embargos infringentes, por maioria de votos, da seguinte forma: Embargos infringentes. COHAB-MG. Rescisão contratual c/c reintegração de posse. Inadimplemento. Procedência dos pedidos na instância primeva. Sentença reformada, em grau de recurso. Determinação de restituição de 50% dos valores pagos pelos promitentes compradores, devidamente atualizados. Nulidade do julgamento. Vício ultra petita. Inocorrência. Princípio de direito que veda o enriquecimento sem causa. Embargos rejeitados. 1. Como se sabe, os artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil traçam os limites da prestação da tutela jurisdicional final, sendo que, em razão do princípio da correlação, a sentença há de corresponder ao pedido constante da petição inicial. 2. De uma análise acurada dos autos, verifica-se que confrontado a pretensão exposta na peça vestibular, o ato sentencial que dirimiu a lide e o correspondente acórdão que reformou, em parte, o r. decisum, concluiu-se inexistir a equivocada nulidade suscitada, consistente em vício ultra petita, porquanto esta egrégia Câmara ao determinar, por maioria, a devolução de 50% (cinquenta por cento) das parcelas pagas pela embargante, diante da rescisão contratual, limitou-se a aplicar princípio de Direito que veda o enriquecimento sem causa. Nas suas razões de recurso especial, a recorrente sustentou, em síntese, a violação dos arts. 128, 459 e 460 do CPC, além de dissídio jurisprudencial. Afirmou que a decisão contida no acórdão recorrido seria ultra petita, pois a determinação de restituição das parcelas exigiria a iniciativa da parte. Não foram apresentadas contrarrazões. O recurso especial foi admitido pelo Tribunal de origem. É o relatório. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 587 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas, a controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte pode ser resumida no seguinte questionamento: Decretada a resolução do contrato de promessa de compra e venda, a determinação de restituição aos promitentes compradores das parcelas do preço pagas ao promitente vendedor pode ser determinada de ofício pelo juízo ou exige a iniciativa da parte mediante pedido expresso formulado na contestação ou reconvenção? Inicialmente, não conheço da alegação de dissídio jurisprudencial, pois não realizado o devido cotejo analítico. A resolução, própria dos contratos bilaterais, consiste basicamente na extinção do contrato pelo inadimplemento definitivo do devedor. Pelo aspecto subjetivo, a resolução constitui, como destaca Araken de Assis (Resolução do contrato por inadimplemento. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora RT, 2004), direito formativo extintivo, ou direito potestativo, ocasionando, com o seu exercício, a desconstituição da relação obrigacional e a liberação de credor e devedor de suas obrigações (eficácia liberatória). Predomina, pois, na resolução, a desconstituição do contrato e, consequentemente, da relação obrigacional dele nascida. Nada obstante, resulta também da resolução do contrato o surgimento de uma nova relação obrigacional, chamada relação de liquidação, pela qual tanto o credor como o devedor devem restituir as prestações recebidas durante a execução do contrato (eficácia restitutória) e pela qual o devedor culpado pelo inadimplemento deve indenizar o credor. A respeito da eficácia restitutória resultante da relação de liquidação, a seguinte lição do eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, exposta em sede doutrinária (Extinção dos contratos por incumprimento do devedor [Resolução]. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 254): Resolvida a relação obrigacional, surge a relação de liquidação, na qual serão tratados os direitos do credor e do devedor a restituição das prestações já efetivadas e o direito do credor à indenização por perdas e danos (art. 1.092, parágrafo único, do Código Civil). PONTES DE MIRANDA atribui a origem dessa relação exclusivamente à resolução, que desconstituiu os efeitos do negócio jurídico, e não ao fato do 588 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA inadimplemento do contrato, que está extinto, nem ao enriquecimento sem causa, pois o devedor deve restituir tudo, não só o enriquecimento injustificado. Mais aceitável, porém, na perspectiva dinâmica da obrigação, considerarse, como LARENZ, que a relação obrigacional não fica totalmente anulada, persistindo dela os deveres de diligência e de indenização de danos. Os direitos e deveres que integram a relação de liquidação tem sua causa imediata na resolução, mas esta é apenas uma fase do desdobramento da relação obrigacional. A ef icácia restitutória ou a obrigação de restituir as prestações recebidas – atribuída tanto ao credor como ao devedor – constitui, portanto, consequência natural e indissociável da resolução do contrato, ao lado da eficácia liberatória e da obrigação do devedor de indenizar as perdas e danos comprovadamente sofridas pelo credor. Assim, se o credor, na petição inicial, postula a resolução do contrato, não há a necessidade de que o devedor, na contestação ou em reconvenção, requeira a devolução das prestações entregues ao credor, a qual pode e deve ser determinada de ofício pelo juiz como decorrência lógica da decretação de resolução do contrato. Importante ressaltar ainda que o credor, da mesma forma e em decorrência do mesmo pedido de resolução, também possui o direito ao recebimento de eventuais prestações entregues ao devedor, o que, na ação de resolução do contrato de compra e venda, se manifesta com a sua reintegração na posse do imóvel. Como se pode ver, a reciprocidade existente nos contratos bilaterais se mantém mesmo depois da sua resolução, na chamada relação de liquidação, de modo que a obrigação de restituir do credor (devolução das parcelas do preço) e a obrigação de restituir do devedor (devolução da coisa) são causa uma da outra. A respeito da controvérsia, a jurisprudência da Terceira e da Quarta Turma deste STJ sempre foi no sentido da desnecessidade, na resolução da compra e venda, da iniciativa da parte ré para que lhe seja assegurada a devolução das parcelas do preço, embora os precedentes encontrados não sejam recentes, in verbis: Promessa de compra e venda. Rescisão. Devolução do que foi pago. Reconhecido que o promitente comprador tem direito a devolução do que foi pago, posto que negado o pleito do autor, no sentido da perda das importâncias correspondentes, as partes haverão de ser repostas no estado anterior. Possibilidade de determinar-se a devolução, sem necessidade de reconvenção. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 589 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (REsp n. 49.396-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 16.5.1995, DJ 12.6.1995, p. 17.624) Processo Civil. Rescisão de contrato de promessa de compra e venda proposta pelo vendedor. Devolução de parte das parcelas do preço. Desnecessidade de reconvenção. Na ação de rescisão de contrato de promessa de compra e venda, proposta pelo vendedor contra o comprador inadimplente, o juiz pode ordenar a devolução de parte das parcelas do preço independentemente de reconvenção. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 97.538-SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 10.4.2000, DJ 8.5.2000, p. 89) Promessa de compra e venda. Parcelamento do solo. Resolução. Restituição. CDC. Reconvenção. - O CDC se aplica à relação de consumo estabelecida entre a empresa que comercializa imóveis loteados urbanos e o promissário comprador, operação que é regulada, no que tem de específico, pela legislação própria (Lei n. 6.766/1979). - Resolvido o negócio, cabe a restituição das parcelas mensais pagas pelos promissários compradores, que já perderam o sinal em favor da promitente vendedora. - A decisão sobre a restituição das partes à situação anterior integra resolução judicial do contrato e deve ser objeto de decisão do juiz ainda que não tenha sido requerido pela parte na contestação ou em reconvenção. - Recurso não conhecido. (REsp n. 300.721-SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 4.9.2001, DJ 29.10.2001, p. 210) Civil e Processual. Promessa de compra e venda de lote. Pagamento em prestações. Inadimplemento dos réus. Ação de rescisão movida pela vendedora. Desfazimento da relação. Devolução das parcelas pagas com retenção de determinado percentual para fazer frente a despesas da credora. Contestação omissa a respeito. Preclusão inexistente. Conseqüência inerente à rescisão. CPC, art. 300. Ofensa não identificada. I. Em havendo rescisão do compromisso de compra e venda, o desfazimento da relação contratual implica, automaticamente, como decorrência lógica e necessária, na restituição das prestações pagas, reservada uma parte, que fica deduzida, em favor da alienante, para ressarcir-se de despesas administrativas, sendo desnecessário que tal devolução conste nem do pedido exordial (quando o autor é o vendedor), nem da contestação (quando o autor é o comprador), por inerente à natureza da lide. II. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 500.038-SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 22.4.2003, DJ 25.8.2003, p. 322) 590 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No caso concreto, ao determinar que a recorrente restituísse as parcelas do preço entregues pelos recorridos, os quais já possuíam, desde a sentença, a obrigação de restituir o imóvel em cuja posse se encontravam, o Tribunal de origem nada mais fez do que concretizar a eficácia restitutória da resolução do contrato de promessa de compra e venda decretada pela sentença. Consequentemente, não houve julgamento ultra petita, não se consubstanciando qualquer violação dos arts. 128, 459 e 460 do CPC. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.288.008-MG (2011/0248142-9) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Antonio Rodrigues Cordeiro Advogado: Heloisa Helena Costa Nascimento Recorrido: Primo Schincariol Industria de Cervejas e Refrigerantes S/A Advogado: Renata Carvalho Lopes e outro(s) EMENTA Recurso especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade civil. Acidente de consumo. Explosão de garrafa perfurando o olho esquerdo do consumidor. Nexo causal. Defeito do produto. Ônus da prova. Procedência do pedido. Restabelecimento da sentença. Recurso especial provido. 1 - Comerciante atingido em seu olho esquerdo pelos estilhaços de uma garrafa de cerveja, que estourou em suas mãos quando a colocava em um freezer, causando graves lesões. 2 - Enquadramento do comerciante, que é vítima de um acidente de consumo, no conceito ampliado de consumidor estabelecido pela regra do art. 17 do CDC (bystander). RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 591 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 3 - Reconhecimento do nexo causal entre as lesões sofridas pelo consumidor e o estouro da garrafa de cerveja. 4 - Ônus da prova da inexistência de defeito do produto atribuído pelo legislador ao fabricante. 5 - Caracterização da violação à regra do inciso II do § 3º do art. 12 do CDC. 6 - Recurso especial provido, julgando-se procedente a demanda nos termos da sentença de primeiro grau. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro João Otávio de Noronha,por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha (voto-vista) e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 4 de abril de 2013 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 11.4.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Antonio Rodrigues Cordeiro interpôs recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. O recorrente ajuizou ação indenizatória em face de Primo Schincariol Industria de Cervejas e Refrigerantes S.A. em razão de acidente de consumo, decorrente de explosão de garrafa de cerveja que lhe causou lesão permanente no olho esquerdo. Postulou indenização pelos danos materiais e morais sofridos. Em sua inicial, a parte recorrente relatou que, 6 de setembro de 2002, no dia seguinte a entrega dos produtos, ao retirar as garrafas de cerveja de um engradado para adicioná-las em um freezer, uma garrafa estourou, causando592 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA lhe a dilaceração da pálpebra inferior esquerda, bem como do olho esquerdo, ocasionando-lhe a perda do conteúdo ocular com a colocação de prótese. Postulou indenização pelos danos materiais e morais sofridos decorrentes do acidente de consumo. Citada, a empresa recorrida apresentou contestação alegando a inexistência de relação de consumo entre as partes, a inexistência de responsabilidade objetiva e a consequente inaplicabilidade do Código de Defesa Consumidor, requerendo, ainda, a aplicação da pena de multa de litigância de má-fé. Durante a instrução, foram realizadas três perícias técnicas. As duas primeiras foram perícia médicas para exame das lesões sofridas pelo autor. A primeira delas constatou a debilidade e deformidade permanente do sentido da visão, confirmando a ausência da íris e pupila do globo ocular esquerdo, bem como atestando que o autor foi vítima de acidente com garrafa de cerveja no olho esquerdo, em 2002, tendo sido submetido à cirurgia, tendo evoluido com atrofia do globo ocular esquerdo e visão zero neste olho, sendo irreversível este quadro (e-STJ Fls. 326-327). A segunda perícia médica, no mesmo sentido da primeira, confirmou que o autor é portador de prótese ocular no olho esquerdo; portador de evisceração (perda total) do globo ocular esquerdo; que a lesão é passível de ter sido produzida por instrumento perfuro-cortante; que estilhaços de vidro podem provocar a laceração da pele e outros tecidos como globo ocular; que a capacidade visual do autor está em 50%, reduzindo sua capacidade laboral (visão monocular), em caráter irreversível (e-STJ Fls. 352-353). A terceira perícia técnica foi realizada junto à linha de produção da empresa demandada, concluindo que o processo de produção da Schincariol na linha inspecionada é eficiente e segura para processar a eliminação de garrafas de vidro que apresente defeito potencialmente crítico que possam comprometer a resistência necessária das garrafas que são enviados aos fornecedores. (e-STJ Fls. 358-397). Encerrada a instrução, sobreveio sentença que, aplicando o Código de Defesa do Consumidor, por considerar o autor consumidor equiparado, vítima do evento danoso, com base no artigo 17 deste diploma legal, julgou parcialmente procedentes os seus pedidos, condenando a empresa demandada a indenizá-lo em: RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 593 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (i) R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) pelos danos morais sofridos; (ii) R$ 25.000,00 (vinte cinco mil reais) pelos danos estéticos; (iii) R$ 394,50 (trezentos e noventa e quatro reais e cinquenta centavos) pelos danos materiais, conforme recibos; (iv) um salário mínimo por mês, desde a data do acidente até a data prevista para que o autor complete 70 (setenta) anos de idade, a título de pensão correspondente à importância da redução da capacidade para o trabalho, considerando que, embora a lesão seja definitiva, a parte autora teria outros meios de sobrevivência; (v) custas e honorários de sucumbência arbitrados em 15% sobre o valor total da condenação. Irresignadas, as partes apelaram ao Tribunal a quo postulando a reforma da sentença. Em suas razões, a empresa demandada aduziu que a prova realizada nos autos evidenciou a ausência de falhas na linha de produção da cerveja fabricada pela ré, atestando a segurança do produto que, segundo alega, não explode sem a provocação de atrito e choque. Alegou ainda que a prova documental produzida evidencia que a recorrente emprega tecnologia de ponta na fabricação de seus produtos. Sustentou a falta de credibilidade da prova testemunhal carreada aos autos. Afirmou que a incidência da responsabilidade objetiva não isenta a parte autora de provar que os vidros que feriram seu olho de fato teriam advindo do estouro da garrafa de cerveja. Assinalou ademais que o autor não é consumidor, mas sim comerciante, estando como tal, do mesmo modo que o fabricante, sujeito ao risco do negócio. Em outro vertente, assinalou que a perícia médica demonstrou que o acidente que afetou o globo ocular do autor não o torna inapto para o trabalho. Por outro lado, em razões do apelo adesivo, a parte autora postulou majoração do quantum indenizatório. O Tribunal de origem, dando provimento à apelação da empresa demandada, julgou prejudicado o apelo adesivo do autor, em acórdão ementado nos seguintes termos: Responsabilidade civil. Acidente por fato do produto. Nexo de causalidade entre o defeito e o dano experimentado. Demonstração. Necessidade. - Para que reste configurada a responsabilidade por fato do produto é imprescindível a demonstração do nexo de causalidade entre o defeito da coisa e o dano experimentado. 594 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Em suas razões, no recurso especial, a parte recorrente alegou que o acórdão recorrido violou os artigos 4º, I, 6º, VIII, 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor; 927 e 931 do Código Civil, 333, I e 131 do Código de Processo Civil, além de apontar dissídio jurisprudencial. Sustentou que os fatos da causa, interpretados em consonância com o princípio da vulnerabilidade do consumidor, evidenciam a responsabilidade objetiva da empresa recorrida. Sustentou a necessidade de inversão do ônus da prova, nos termos da legislação consumerista, questionando a interpretação conferida às provas coletadas no processo levado a efeito pela Câmara julgadora, insistindo no seu direito à indenização pleiteada. Alegou a ocorrência de dissídio jurisprudencial acerca do tema. Pediu o provimento do recurso especial, inclusive com a elevação do valor da indenização por danos morais. Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas. Merece provimento o presente recurso especial. A polêmica central do processo situa-se em torno da responsabilidade civil da empresa fabricante de cerveja em razão de acidente de consumo, decorrente de explosão de uma garrafa de cerveja que causou lesão grave e permanente no olho esquerdo do autor, ora recorrente. Inicialmente, deve-se reconhecer a plena aplicabilidade do microssistema normativo do consumidor, instituído pela Lei n. 8.078/1990, ao caso. A circunstância de se tratar de comerciante, que se lesionou com o estouro da garrafa de cerveja no momento em que a manuseava em seu estabelecimento comercial, não afasta a condição de consumidor, em face da regra de extensão do art. 17 do CDC, que ampliou o conceito básico de consumidor do art. 2º da Lei n. 8.078/1990. Efetivamente, a regra do art. 17 do CDC é um dos momentos em que houve ampliação do conceito básico de consumidor para efeito da responsabilidade pelo fato do produto e pelo fato do serviço, equiparando “aos consumidores todas as vítimas do evento”: RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 595 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Art. 17 - Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento. Assim, toda e qualquer vítima de acidente de consumo equipara-se ao consumidor para efeito da proteção conferida pelo CDC, abrangendo os chamados bystanders, na terminologia da common law, que são os terceiros que, embora não estejam diretamente envolvidos na relação de consumo, são atingidos pelo aparecimento de um defeito no produto ou no serviço. No conceito de bystander estão abrangidos tanto o usuário direto do bem adquirido por outro consumidor, como a empregada doméstica que está trocando o botijão de gás defeituoso que explode em suas mãos, quanto o espectador ou o transeunte anônimo que se encontra nas imediações do local do evento no momento que se manifesta o defeito, como é o caso clássico de acidente de consumo de um automóvel desgovernado pelo estouro de um pneu defeituoso que vai atingir um pedestre na calçada. Enfim, são as vítimas ocasionais ou anônimas de um acidente de consumo. A análise rigorosa das cadeias contratuais de consumo, desde a fabricação do produto, passando pela rede de distribuição, até chegar ao consumidor final, mostra que, freqüentemente, as vítimas ocasionais de acidentes de consumo não têm qualquer tipo de vínculo efetivo com o fabricante. No rigor da regra restritiva do artigo 2º, caput, do CDC, o bystander ficaria fora da proteção conferida pelo legislador, pois não é destinatário final do bem ou serviço que lhe causou o dano. Essas vítimas, porém, são abrangidas por força da regra de extensão do art. 17 do CDC, tendo, inclusive, legitimidade para acionar diretamente o fornecedor responsável pelos danos sofridos. Uma questão relevante que tem sido enfrentada pela doutrina refere-se à extensão da responsabilidade do fornecedor em relação à vítima profissional, que não se enquadra no conceito básico de consumidor. As pessoas jurídicas, assim como os intermediários da cadeia de consumo, incluindo comerciantes, atacadistas, varejistas, transportadores, também podem ser vítimas de acidente de consumo. Normalmente, essas pessoas não seriam consideradas consumidoras para efeito de incidência do CDC, salvo quando destinatárias finais do produto ou do serviço (art. 2o do CDC). Todavia, em face da regra do artigo 17 do CDC, a pessoa jurídica e o intermediário, ainda que não sejam destinatários finais, ficam equiparados ao consumidor, caso sejam vítimas de um acidente de consumo. 596 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O Ministro Herman Benjamin, em seus Comentários ao código de proteção do consumidor, fornece exatamente o exemplo do dono de um supermercado que, ao inspecionar sua seção de enlatados, sofre ferimentos pela explosão de uma lata com defeito de fabricação, reconhecendo que ele pode pleitear, do mesmo modo que o consumidor que está a seu lado, reparação pelos danos sofridos em decorrência do produto defeituoso (BENJAMIN, Antônio Hermen de Vasconcelos. Comentários ao código de proteção do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 81). Na mesma linha, James Marins fornece outro exemplo elucidativo de bystander, mencionando o caso de um comerciante de defensivos agrícolas, que se vê seriamente intoxicado pelo simples ato de estocagem em decorrência de defeito no acondicionamento do produto (defeito de produção). Embora não seja consumidor, pode socorrer-se da proteção conferida pelo art. 17 do CDC (MARINS, James. Responsabilidade pelo fato do produto: os acidentes de consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 71). Na jurisprudência desta Corte, localizei os seguintes precedentes: Agravo regimental. Recurso especial. Procuração. Desnecessidade de autenticação. Afastamento da Súmula n. 115-STJ. Civil e Processo Civil. Indenização. Danos morais e materiais. Relação de consumo. Prescrição quinquenal. Responsabilidade solidária. Legitimidade passiva ad causam. Divergência jurisprudencial. Ausência de cotejo analítico. Inépcia da inicial. Inexistência. Manutenção da multa. Art. 538, parágrafo único, do CPC. 1. Em se tratando do agravo de instrumento disciplinado nos artigos 522 e seguintes do CPC, é dispensável a autenticação das peças que o instruem, tendo em vista inexistir previsão legal que ampare tal formalismo. 2. Nos termos do que dispõe o art. 17 da Lei n. 8.078/1990, equipara-se à qualidade de consumidor para os efeitos legais, àquele que, embora não tenha participado diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica. 3. Caracterizada a relação de consumo, aplica-se ao caso em apreço o prazo de prescrição de 5 (cinco) anos estabelecido no art. 27 da Lei n. 8.078/1990. 4. Respondem solidariamente todos aqueles que contribuíram para a causa do dano. 5. Considerando que a petição inicial da ação de indenização por danos materiais e morais forneceu de modo suficiente os elementos necessários ao RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 597 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA estabelecimento da relação jurídico-litigiosa, apresentando os fatos que permitem a identificação da causa de pedir, do pedido e do embasamento legal, correto o acórdão recorrido que afastou a inépcia da exordial. 6. Em razão do manifesto caráter protelatório dos embargos de declaração, a multa aplicada pela instância a quo deve ser mantida. 7. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.000.329-SC, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.8.2010, DJe 19.8.2010) Responsabilidade civil e Direito do Consumidor. Recurso especial. Alegação de omissão do julgado. Art. 535 do CPC. Inexistência. Espetáculo circense. Morte de criança em decorrência de ataque de leões. Circo instalado em área utilizada como estacionamento de shopping center. Legitimidade passiva das locadoras. Desenvolvimento de atividade de entretenimento com o fim de atrair um maior número de consumidores. Responsabilidade. Defeito do serviço (vício de qualidade por insegurança). Dano moral. Valor exorbitante. Redução. Multa. Art. 538 do CPC. Afastamento. 1- O órgão julgador deve enfrentar as questões relevantes para a solução do litígio, afigurando-se dispensável o exame de todas as alegações e fundamentos expendidos pelas partes. Precedentes. 2- Está presente a legitimidade passiva das litisconsortes, pois o acórdão recorrido afirmou que o circo foi apenas mais um serviço que o condomínio do shopping, juntamente com as sociedades empresárias rés, integrantes de um mesmo grupo societário, colocaram à disposição daqueles que frequentam o local, com o único objetivo de angariar clientes potencialmente consumidores e elevar os lucros. Incidência da Súmula n. 7-STJ. 3- No caso em julgamento - trágico acidente ocorrido durante apresentação do Circo VostoK, instalado em estacionamento de shopping center, quando menor de idade foi morto após ataque por leões -, o art. 17 do Código de Defesa do Consumidor estende o conceito de consumidor àqueles que sofrem a consequência de acidente de consumo. Houve vício de qualidade na prestação do serviço, por insegurança, conforme asseverado pelo acórdão recorrido. 4- Ademais, o Código Civil admite a responsabilidade sem culpa pelo exercício de atividade que, por sua natureza, representa risco para outrem, como exatamente no caso em apreço. 5- O valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior Tribunal de Justiça, na hipótese de se mostrar manifestamente exagerado ou irrisório, distanciando-se, assim, das finalidades da lei. O valor estabelecido para indenizar o dano moral experimentado revela-se exorbitante, e deve ser reduzido aos parâmetros adotados pelo STJ. 6- Não cabe multa nos embargos declaratórios opostos com intuito de prequestionamento. Súmula n. 98-STJ. 598 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 7- Provimento parcial do recurso especial. (REsp n. 1.100.571-PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7.4.2011, DJe 18.8.2011) Civil, Processo Civil e Consumidor. Reparação civil. Prescrição. Prazo. Conflito intertemporal. CC/1916 e CC/2002. Acidente de trânsito envolvendo fornecedor de serviço de transporte de pessoas. Terceiro, alheio à relação de consumo, envolvido no acidente. Consumidor por equiparação. Embargos de declaração. Decisão omissa. Intuito protelatório. Inexistência. 1. Em relação à regra de transição do art. 2.028 do CC/2002, dois requisitos cumulativos devem estar presentes para viabilizar a incidência do prazo prescricional do CC/1916: i) o prazo da lei anterior deve ter sido reduzido pelo CC/2002; e ii) mais da metade do prazo estabelecido na lei revogada já deveria ter transcorrido no momento em que o CC/2002 entrou em vigor. Precedentes. 2. Os novos prazos fixados pelo CC/2002 e sujeitos à regra de transição do art. 2.028 devem ser contados a partir da sua entrada em vigor, isto é, 11 de janeiro de 2003. 3. O art. 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação (bystander), sujeitando à proteção do CDC aqueles que, embora não tenham participado diretamente da relação de consumo, sejam vítimas de evento danoso decorrente dessa relação. 4. Em acidente de trânsito envolvendo fornecedor de serviço de transporte, o terceiro vitimado em decorrência dessa relação de consumo deve ser considerado consumidor por equiparação. Excepciona-se essa regra se, no momento do acidente, o fornecedor não estiver prestando o serviço, inexistindo, pois, qualquer relação de consumo de onde se possa extrair, por equiparação, a condição de consumidor do terceiro. 5. Tendo os embargos de declaração sido opostos objetivando sanar omissão presente no julgado, não há como reputá-los protelatórios, sendo incabível a condenação do embargante na multa do art. 538, parágrafo único, do CPC. 6. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.125.276-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28.2.2012, DJe 7.3.2012) Enfim, o recorrente, como comerciante, enquadra-se perfeitamente ao conceito ampliado de consumidor do art. 17 do CDC, atraindo a incidência do microssistema normativo da Lei n. 8.078/1990 no que tange à responsabilidade civil por acidentes de consumo (arts. 12 e segs. do CDC). No mérito, o Tribunal de origem, ao dar provimento à apelação da recorrida, reformou a sentença que julgara procedentes os pedidos do recorrente, afirmou não estar evidenciado o nexo causal entre o estouro da garrafa de cerveja e as lesões sofridas pelo autor. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 599 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Entretanto, o acórdão recorrido, ao examinar o quadro fático dos presentes autos asseverou o seguinte, verbis: Ambas as testemunhas inquiridas afirmam que, ao passarem pelo bar, logo após o acidente, notaram uma aglomeração de pessoas e adentaram ao recinto, onde observaram que o autor estava com o olho ferido, e também que no local do evento existira uma garrafa Schincariol estourada. (...) Os documentos carreados aos autos junto com a inicial, dentre os quais merecem destaque o relatório médico e laudo de exame de corpo de deito, confirmam que o acidente do qual resultou a debilidade permanente do olho esquerdo do autor foi causado por uma garrafa de cerveja (...) (grifos meus). Apesar dessa contundente base fática, o Tribunal a quo concluiu não estar comprovado nexo causal. Merece, portanto, revisão a qualificação jurídica dada aos fatos supracitados pelo acórdão recorrido, em face da confusão estabelecida entre nexo causal e defeito do produto, que constitui elemento distinto na responsabilidade civil pelo fato do produto, regulada pelo art. 12 do CDC. Efetivamente, a partir da leitura dos fatos relatados no aresto fustigado, para que se pudesse afastar o nexo causal entre o dano sofrido pelo recorrente e o defeito do produto, seria necessário imaginar que o recorrente teria cortado seu olho esquerdo propositalmente com uma garrafa, causando lhe debilidade permanente, o que, além de fugir da razoabilidade, sequer foi alegado pela parte contrária. Conforme já me manifestei doutrinariamente, as lesões causadas no rosto do consumidor pelo estouro, em suas mãos, de uma garrafa de cerveja não exigem maior indagação sobre qual teria sido a causa (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. 3 ed. - São Paulo: Saraiva, 2010, p. 257). A relação de causa e efeito entre o dano e o produto (nexo de causalidade), portanto, no presente caso, mostra-se evidente, constituindo típica hipótese de acidente de consumo. Nesse mesmo sentido, o Magistrado de primeiro grau, em contato mais estreito com a prova dos autos, assentou em sua sentença, verbis: No caso dos autos, é incontroverso o fato descrito na inicial, de que o autor perdeu a capacidade visual do olho esquerdo, por ter sido atingido por estilhaços 600 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA decorrentes da explosão de uma garrafa de cerveja produzida pelo requerido conforme faz prova o laudo pericial acostado aos autos. (...) A hipótese versada nestes autos de ação de indenização é derivada de explosão de garrafa de cerveja, que causou lesão em um olho do autor. Vale dizer, o comerciante, que ao manipular garrafa de cerveja e acondicioná-la ao refrigerador, para gelá-la, experimentou ou presenciou explosão dela. O caco ou estilhaço do vidro feriu-lhe o olho, gravemente.” Esses fatos denotam a inserção, dada a ocorrência de fatos em várias hipóteses, da necessidade de informação e orientação sobre o uso e manuseio das garrafas envasadas com líquidos a base de malte, inserindo o fato na segurança da saúde dos consumidores e, no âmbito da política de proteção das relações de consumo, prevista no artigo 4º, CDC, onde elenca-se, inclusive, a imperiosidade da informação adequada, com condição de implemento de igualdade jurídica nos tratos do consumo. (...) De fato, determina o caput do artigo 8º, do Código de Defesa do Consumidor que “os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou Segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigandose os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar ‘as informações necessárias e adequadas a seu respeito”. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo estipula que, “em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devem acompanhar o produto”. Por isto, prevê o já transcrito artigo 12, que a responsabilidade objetiva decorre, também, de “informações ou inadequadas” sobre a “utilização e riscos” do produto. Desta forma, o dano restou comprovado, qual seja a perda total da visão do olho esquerdo, conforme resposta do perito às fls. 274-298, bem como dos atestados de fls. 20 e 277. (...) Assim, estando comprovado nos autos o dano sofrido pelo autor, e não tendo requerido comprovado em nenhum momento que o estouro da garrafa, foi ocasionado pela conduta exclusiva da vítima ou inexistência do defeito, cumpre ao requerido o dever de indenizar o requerente pelos danos advindo de sua conduta. Portanto, estabelecida a relação de causalidade entre o dano e o produto, resta que se analise a excludente da inexistência de defeito do produto, que foi acolhida pela corte de origem, nos seguintes termos: Ainda que possível a presunção de que realmente foi uma das garrafas de cerveja produzidas pela ré que causou a lesão no olho do autor, não foi RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 601 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA demonstrado defeito do produto, ou seja, que a garrafa de cerveja simplesmente estourou enquanto manuseada pela parte autora sem qualquer motivo aparente. Na realidade, o acórdão recorrido atribuiu ao consumidor demandante o ônus da prova da ocorrência de defeito do produto, quando esse encargo de demonstrar a inexistência do defeito era do fabricante demandado, em face do disposto no art. 12, § 3º, II, do CDC, verbis: Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. § 1º O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação. § 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado. § 3º O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Uma das peculiaridades da responsabilidade pelo fato do produto (art. 12), assim como ocorre na responsabilidade pelo fato do serviço (art. 14), como modalidades de acidentes de consumo, é a previsão expressa, no microssistema normativo do CDC, de regra específica acerca da distribuição do ônus da prova da “inexistência de defeito”. A previsão legal é sutil, mas de extrema importância na prática processual, como se pode observar no presente caso. O fornecedor, no caso o fabricante, na precisa dicção legal, “só não será responsabilizado quando provar (...) que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste.” Ou seja, o ônus da prova da inexistência de defeito 602 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA do produto ou do serviço é do fornecedor, no caso, do fabricante demandado, ora recorrido. A inversão do ônus da prova, nessa hipótese específica, não decorre de um ato do juiz, nos termos do art. 6º, VIII, do CDC, mas derivou de decisão política do próprio legislador, estatuindo a regra acima aludida. É a distinção entre a inversão do ônus da prova “ope legis” (ato do legislador) e a inversão “ope judicis” (ato do juiz). Em sede doutrinária, já tive oportunidade de analisar essa delicada questão processual (Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 355-357). Em síntese, são duas modalidades distintas de inversão do ônus da prova previstas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), podendo ela decorrer da lei (ope legis) ou de determinação judicial (ope judicis). Na primeira hipótese, a própria lei – atenta às peculiaridades de determinada relação jurídica – excepciona a regra geral de distribuição do ônus da prova. Isso ocorreu nas duas hipóteses previstas pelos enunciados normativos dos arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I, do CDC, atribuindo ao fornecedor o ônus de comprovar, na responsabilidade civil por acidentes de consumo (fato do produto - art. 12 - ou fato do serviço - art. 14), a inexistência do defeito, encargo que, segundo a regra geral do art. 333, I, do CPC, seria do consumidor demandante. Nessas duas hipóteses de acidentes de consumo, mostra-se impertinente a indagação acerca dessa questão processual de se estabelecer qual o momento adequado para a inversão do ônus da prova. Na realidade, a inversão já foi feita pelo próprio legislador (“ope legis”) e, naturalmente, as partes, antes mesmo da formação da relação jurídicoprocessual, já devem conhecer o ônus probatório que lhe foi atribuído por lei. A segunda hipótese prevista pelo CDC, relativa à inversão do ônus da prova “ope judicis”, mostra-se mais tormentosa, pois a inversão resulta da avaliação casuística do magistrado, que a poderá determinar uma vez verificados os requisitos legalmente previstos, como a “verossimilhança” e a “hipossuficiência” a que refere o enunciado normativo do art. 6º, VIII, do CDC. Nesse ponto, no julgamento do REsp n. 802.832-MG, na Segunda Seção, já manifestei minha posição no sentido de que a inversão ope judicis do ônus da RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 603 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA prova deve ocorrer preferencialmente no despacho saneador mediante decisão fundamentada de molde a assegurar plenamente o contraditório e a ampla defesa. O presente caso, porém, é um típico acidente de consumo em que o consumidor demandante, no momento em que colocava garrafas de cerveja em um freezer, foi atingido em seu olho esquerdo pelos estilhaços de vidro de uma delas, que estourou em suas mãos. Esse fato amolda-se perfeitamente à regra do art. 12 do CDC, que contempla a responsabilidade pelo fato do produto. Consequentemente, a regra de inversão do ônus da prova da inexistência de defeito do produto é a do art. 12, § 3º, inciso II, do CDC, e não a do art. 6º, VIII, do CDC, atribuído pelo próprio legislador ao fabricante, não havendo necessidade de qualquer ato decisório prévio do juiz. Normalmente, a prova do defeito, como fato constitutivo do direito do demandante, deveria ser produzida pelo consumidor lesado, como autor da ação indenizatória. Essa modificação na distribuição dos encargos probatórios pela própria lei, denominada de inversão ope legis do ônus da prova, tem um motivo claro, que ficou bem evidente no julgamento feito pelo tribunal de origem. Historicamente, a proteção efetiva ao consumidor sempre foi dificultada pela necessidade de ele comprovar os fatos constitutivos de seu direito. A vulnerabilidade do consumidor, no mercado massificado das relações de consumo em geral, sempre constituiu um enorme obstáculo a que ele obtenha os elementos de prova necessários à demonstração de seu direito. Isso é particularmente mais grave quando se sabe que essa prova é, via de regra, eminentemente técnica, sendo o fornecedor um especialista na sua área de atuação. Por isso, tendo o fabricante as melhores condições técnicas de demonstrar a inexistência de defeito no produto colocado no mercado, foi procedida a essa inversão pelo próprio legislador, sendo-lhe atribuído esse encargo. No caso, deve-se, efetivamente, reconhecer a dificuldade probatória da empresa recorrente, pois, em face do estouro da garrafa, não foi possível uma perícia direta no produto no curso da instrução, tendo sido apenas produzida uma perícia indireta acerca da segurança de sua linha de montagem. 604 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA De todo modo, competia ao fabricante a comprovação da inexistência de defeito nesse produto específico, não bastando meras ilações acerca da possibilidade de o evento danoso ter decorrido de um choque térmico causado pela retirada do produto de um engradado para colocação em freezer com baixa temperatura, ou do manejo inadequado das garrafas, ou de um atrito entre as garrafas. Havia necessidade de uma prova concreta da inexistência do defeito do produto, que não foi produzida pelo fabricante demandado, sendo seu esse ônus probatório. Não era suficiente a prova indireta produzida no sentido da preocupação com a segurança em sua linha de produção. Portanto, deve-se reconhecer a responsabilidade civil da empresa fabricante pelos danos sofridos pelo recorrente. Consequentemente, merece provimento o presente recurso especial, restabelecendo-se, em seu inteiro teor, a bem lançada sentença de primeiro grau, inclusive no que concerne a indenização por danos materiais e morais. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial, para restabelecer, em seu inteiro teor, a douta sentença de primeiro grau. É o voto. VOTO-VISTA O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Tratam os autos de ação indenizatória ajuizada por Antônio Rodrigues Cordeiro contra Primo Schincariol Indústria de Cervejas e Refrigerantes S.A. O ora recorrente reclama indenização por danos morais e materiais sofridos em razão de acidente de consumo decorrente da explosão de garrafa de cerveja que lhe atingiu o olho esquerdo, cegando-o permanentemente. Na sentença, o Juiz, aplicando o Código de Defesa do Consumidor ao caso por considerar o comerciante consumidor equiparado com base no art. 17 desse diploma legal, julgou parcialmente procedentes os pedidos e condenou a empresa a indenizar. Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões propostas e, inicialmente, inclinei-me em sentido contrário ao do Ministro relator, não por ser avesso à equiparação a consumidor, em acidente de consumo, daqueles que RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 605 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA não são destinatários finais do bem ou do serviço, os quais devem ser protegidos, já que é essa a intenção da norma. Divergi por duas razões: primeiro, por causar-me preocupação, como já tive oportunidade de dizer, que, nesse ímpeto protetivo, ocorra uma extensão irresponsável do conceito de consumidor e de suas garantias a situações em que não haja, de fato, relação de consumo; segundo, por acreditar que alcançaríamos o mesmo resultado se aplicássemos as regras do Direito Civil, pois a lei nova veio justamente para regular as relações entre iguais: dois iguais consumidores ou dois iguais fornecedores entre si. Todavia, quanto à aplicação do CC, em um segundo olhar sobre os autos, percebi que, no caso em comento, não se discutia regular direito entre iguais (dois fornecedores), tendo em vista a vulnerabilidade do pequeno comerciante, dono de bar, diante de grande fábrica de bebidas. Dessa forma, acompanho o voto do relator, não sem antes registrar os comentários de Cláudia Lima Marques, prestigiada doutrinadora da Lei Consumerista que, ao tratar da presunção de vulnerabilidade e equidade contratual, leciona: O novo direito dos contratos procura evitar este desequilíbrio, procura a equidade contratual. Mas existiria desequilíbrio em um contrato firmado entre dois profissionais? Como regra geral, presume-se que não há desequilíbrio, ou que ele não é tão grave a ponto de merecer uma tutela especial, não concedida pelo direito civil renovado (pelo direito das obrigações do CC/2002). Aqui presume-se a inexistência de vulnerabilidade. Esta presunção estava presente, igualmente na lei alemã de 1976 e encontra-se hoje nas novas legislações do direito comparado, que preferem reduzir sua proteção às pessoas físicas agindo fora de sua profissão. (Assim o direito italiano, que regulou as cláusulas abusivas perante os consumidores-pessoas físicas nos arts. 1.469- bis a sexies do Código Civil unitário de 1942 Reformado. Mencione-se aqui também a recente lei norteamericana sobre assinatura eletrônica, que também preferiu uma definição restritiva de consumidor: ‘2000-SEC. 106 Definitions. The term ‘consumer’ means an individual who obtains, through a transaction, products or services which are used primarily for personal, family, or household purposes, and also means the legal representative of such an individual’ - v. US - Eletronic Signatures in Global and National Commerce Act, de 08.06.2000). Mas por vezes o profissional é um pequeno comerciante, dono de bar, mercearia, que não pode impor suas condições contratuais para o fornecedor de bebidas, ou que não compreende perfeitamente bem as remissões feitas a outras leis no texto do contrato ou que, mesmo sendo um advogado, assina o contrato abusivo do único fornecedor legal de computadores, pois confia que nada ocorrerá de errado. Nestes três 606 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA casos, pode haver uma exceção à regra geral: o profissional pode também ser ‘vulnerável’, ser ‘mais fraco’ para se proteger do desequilíbrio contratual imposto. (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3 ed. Coment. por MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Hermann V. e MIRAGEM, Bruno. Revista dos Tribunais, 2010, p. 108.) Com base em tais lições, curvo-me à doutrina e jurisprudência majoritárias por se adequarem perfeitamente ao embate travado e aos fundamentos do relator, os quais salientam a condição de vulnerabilidade da parte e estão em consonância com o objetivo do CDC: “alcançar a equidade ou uma justiça reequilibradora das desigualdades porventura existentes”. Assim, com essas considerações, também observando as circunstâncias do caso concreto, acompanho o relator, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, para dar provimento ao recurso especial a fim de restabelecer, em seu inteiro teor, a sentença de primeiro grau. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.317.472-RJ (2012/0066277-0) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Ivan Cláudio Meneses da Silva Advogado: Carmem Lúcia Alves de Andrade - Defensoria Pública da União Recorrido: Caixa Econômica Federal - CEF Advogado: Cesar Eduardo Fueta de Oliveira e outro(s) Advogada: Lenymara Carvalho e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação de compensação por dano moral e reparação por dano material. Violação de dispositivo constitucional. Descabimento. Prequestionamento. Ausência. Súmula n. 282-STF. Disparo de arma de fogo no interior de unidade lotérica. Caixa RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 607 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Econômica Federal. Parte passiva ilegítima. Dissídio jurisprudencial. Cotejo analítico e similitude fática. Ausência. 1. A interposição de recurso especial não é cabível quando ocorre violação de dispositivo constitucional ou de qualquer ato normativo que não se enquadre no conceito de lei federal, conforme disposto no art. 105, III, a da CF/1988. 2. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial. 3. A Lei n. 8.987/1995 - que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos - é expressa ao estabelecer que o permissionário deve desempenhar a atividade que lhe é delegada por sua conta e risco. 4. As unidades lotéricas, conquanto autorizadas a prestar determinados serviços bancários, não possuem natureza de instituição financeira, já que não realizam as atividades referidas na Lei n. 4.595/1964 (captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros). 5. A imposição legal de adoção de recursos de segurança específicos para proteção de estabelecimentos que constituam sedes de instituições financeiras, dispostos na Lei n. 7.102/1983, não alcança as unidades lotéricas. 6. A possibilidade de responsabilização subsidiária do delegante do serviço público, configurada em situações excepcionais, não autoriza o ajuizamento da ação indenizatória unicamente em face da recorrida. 7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas. 8. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Senhora Ministra Relatora. Os Srs. 608 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). Lenymara Carvalho, pela parte recorrida: Caixa Econômica Federal - CEF. Brasília (DF), 5 de março de 2013 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 8.3.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Ivan Cláudio Meneses da Silva, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional. Ação: de reparação por danos materiais e compensação por danos morais, ajuizada em face da Caixa Econômica Federal - CEF. Narra o recorrente que foi atingido por disparo de arma de fogo no interior de agência lotérica, em virtude de tentativa de roubo. Entende que estabelecimentos dessa natureza detêm o status de agentes da CEF, que está obrigada à prestação de segurança aos consumidores. Sentença: extinguiu a ação, na forma do art. 267, VI, do CPC, em virtude da ilegitimidade passiva da recorrida. Acórdão: negou provimento à apelação interposta pelo recorrente. Recurso especial: alega violação dos arts. 186 e 927, parágrafo único, do CC; 14 do CDC; 273 do CPC; e 5º, LIV e LV, da CF; além de dissídio jurisprudencial. Sustenta que, ao indeferir pedido de produção de provas, o acórdão recorrido violou os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Aduz que a recorrida é parte legítima para responder pelos danos ocorridos no interior de casas lotéricas, pois estas constituem “estabelecimentos conveniados” (e-STJ, fl. 142). Defende a tese de que a teoria do risco, incorporada no CC/2002, alberga sua pretensão. Afirma que “a CEF como empresa que permite a atividade das casas lotéricas, delas auferindo percentual de comissão, tem responsabilidade objetiva, nos casos de dano que venham a ocorrer em razão do risco da atividade normalmente desenvolvida” (e-STJ, fl. 143). RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 609 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Decisão de admissibilidade: o TRF- 2ª Região admitiu o recurso especial e determinou a remessa dos autos a esta Corte. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia a determinar se a Caixa Econômica Federal é parte legítima para figurar no polo passivo de ação em que se postula reparação por danos materiais e compensação por danos morais em razão de ferimento provocado por disparo de arma de fogo ocorrido no interior de casa lotérica. I- Da violação do art. 5º, LIV e LV, da CF. A interposição de recurso especial não é cabível quando ocorre violação de dispositivos constitucionais ou de qualquer ato normativo que não se enquadre no conceito de lei federal, conforme disposto no art. 105, III, a, da CF/1988. Nesse sentido: AgRg nos EDcl no REsp n. 1.266.402-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 20.6.2012, e AgRg no AREsp n. 136.371PR, minha relatoria, Terceira Turma, DJe 31.8.2012. II- Da ausência de prequestionamento. Depreende-se que o acórdão recorrido não decidiu acerca dos arts. 14 do CDC e 273 do CPC, dispositivos legais indicados como violados pelo recorrente. Por isso, quanto às normas neles contidas, o julgamento do recurso especial é inadmissível. Aplica-se, neste caso, o enunciado n. 282 da SúmulaSTF. III- Da ilegitimidade passiva da CEF. Na linha do entendimento doutrinário contemporâneo, a legitimidade ad causam, qualidade jurídica relativa às partes do processo, deve ser analisada diante da situação afirmada no instrumento da demanda, revelando-se à luz da relação jurídica substancial deduzida (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 12ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, vol. 1, p. 204). Na hipótese, constata-se que o recorrente, na petição inicial da presente ação, defende a tese de que a Caixa Econômica Federal deve responder pelos 610 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA danos que lhe foram causados no interior de casa lotérica, pois, segundo ele, trata-se de estabelecimento equiparado à instituição financeira, sobretudo porque presta serviços bancários “em nome da CEF” (e-STJ, fl. 4). Seguindo essa ordem de ideias, considera “impossível cogitar que os bancos populares venham oferecer tamanha brecha para as instituições financeiras burlarem a Lei n. 7.102/1983, que disciplina os requisitos de segurança para tais empresas” (e-STJ, fl. 4). Em suma, o recorrente procura equiparar a unidade lotérica onde ocorreu o evento danoso a uma agência bancária, com o escopo de imputar à CEF a não observância das disposições legais que versam sobre os recursos de segurança obrigatórios às instituições financeiras, culminando com o reconhecimento de sua responsabilidade objetiva. Nas razões deste recurso, assevera também que a natureza do vínculo jurídico (permissão de serviço público) estabelecido entre a recorrida e a unidade lotérica enseja a responsabilização civil daquela por danos experimentados por terceiros no interior desses estabelecimentos. (e-STJ, fl. 142). Ocorre que, de um lado, a partir da análise da Circular Caixa n. 539/2011 (itens 4 e 6) - que regulamenta as permissões lotéricas e delimita a atuação das respectivas unidades - pode-se inferir que estas, embora autorizadas a prestar determinados serviços bancários, não possuem natureza de instituição financeira, já que não realizam as atividades referidas na Lei n. 4.595/1964 (captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros). Já a Lei n. 7.102/1983 - diploma que estabelece normas de segurança para estabelecimentos financeiros - restringe sua aplicabilidade aos seguintes entes: “bancos oficiais ou privados, caixas econômicas, sociedades de crédito, associações de poupança, suas agências, postos de atendimento, subagências e seções, assim como as cooperativas singulares de crédito e suas respectivas dependências” (art. 1º, § 1º). Nesse contexto, exsurge da interpretação dos dispositivos precitados que a imposição legal de adoção de recursos de segurança específicos para proteção dos estabelecimentos que constituam sedes de instituições financeiras não alcança as unidades lotéricas. Não se pode olvidar também que, consoante se extrai do teor do acórdão impugnado, a cláusula vigésima-primeira, constante do termo aditivo ao termo de responsabilidade e compromisso para comercialização de loterias federais” dispõe RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 611 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que a unidade lotérica assume responsabilidade direta e exclusiva “por todos e quaisquer ônus, riscos ou custos das atividades decorrentes da operação da unidade lotérica, arcando em consequência, com todos os encargos trabalhistas, fiscais, previdenciários e indenizações de qualquer espécie reivindicados por seus empregados ou terceiros prejudicados (e-STJ, fls. 126-127). De outro lado, ao revés da tese defendida pelo recorrente, a Lei n. 8.987/1995 - que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos -, é expressa ao prever que o permissionário (no particular, a unidade lotérica) deve desempenhar a atividade que lhe é delegada “por sua conta e risco” (art. 2º, IV). Em sentido idêntico, seu art. 25 impõe ao delegatário a responsabilidade “por todos os prejuízos causados [...] aos usuários ou a terceiros”. Quanto à matéria, oportuna se mostra a lição de DI PIETRO, segundo a qual, em hipóteses como a presente, “quem responde [pelos danos] é a própria concessionária ou permissionária do serviço concedido, já que é ela que está prestando o serviço público” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 92). Nessa medida, claro está que a pessoa jurídica delegante do serviço não é responsável pela reparação de eventuais danos causados a terceiros no interior do estabelecimento do permissionário. Ademais, eventual possibilidade de responsabilização subsidiária do concedente, verificada apenas em situações excepcionais, não autoriza, por imperativo lógico decorrente da natureza de tal espécie de responsabilidade, o ajuizamento de demanda indenizatória unicamente em face dele. A Segunda Turma desta Corte já teve oportunidade de se manifestar a respeito do tema, em hipótese análoga à presente - demanda movida exclusivamente contra o delegatário do serviço -, oportunidade em que ficou assentado que, “ainda que objetiva a responsabilidade da Administração, esta somente responde de forma subsidiária ao delegatário, sendo evidente a carência de ação por ilegitimidade passiva ad causam” (REsp n. 1.087.862-AM, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 19.5.2010). Portanto, sob qualquer ângulo que se examine a questão, a conclusão resultante é a de que não há obrigação legal ou contratual imposta à CEF que conduza à sua responsabilização pelo dano causado ao recorrente no interior de unidade lotérica, ficando evidente que a presente ação foi proposta em face de parte ilegítima. 612 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA IV- Da divergência jurisprudencial. Entre os acórdãos trazidos à colação, não há o necessário cotejo analítico nem a comprovação da similitude fática, elementos indispensáveis à demonstração da divergência. Assim, a análise da existência do dissídio é inviável, porque foram descumpridos os arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.355.554-RJ (2012/0098185-2) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Gafisa S/A Advogado: Ricardo de Menezes Saba e outro(s) Recorrido: Tânia Barreto Simões Correa e outro Advogado: Marcelo Negrão Debenedito Silva EMENTA Direito Civil. Promessa de compra e venda de imóvel em construção. Inadimplemento parcial. Atraso na entrega do imóvel. Mora. Cláusula penal. Perdas e danos. Cumulação. Possibilidade. 1.- A obrigação de indenizar é corolário natural daquele que pratica ato lesivo ao interesse ou direito de outrem. Se a cláusula penal compensatória funciona como pre-fixação das perdas e danos, o mesmo não ocorre com a cláusula penal moratória, que não compensa nem substitui o inadimplemento, apenas pune a mora. 2.- Assim, a cominação contratual de uma multa para o caso de mora não interfere na responsabilidade civil decorrente do retardo no cumprimento da obrigação que já deflui naturalmente do próprio sistema. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 613 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 3.- O promitente comprador, em caso de atraso na entrega do imóvel adquirido pode pleitear, por isso, além da multa moratória expressamente estabelecida no contrato, também o cumprimento, mesmo que tardio da obrigação e ainda a indenização correspondente aos lucros cessantes pela não fruição do imóvel durante o período da mora da promitente vendedora. 4.- Recurso Especial a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Brasília (DF), 6 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 4.2.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Gafisa S/A interpõe Agravo de Decisão que negou seguimento a Recurso Especial, manejado contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Relator o Desembargador Caetano E da Fonseca Costa, assim ementado (fls. 176): Responsabilidade civil. Promessa de compra e venda de imóvel novo. Atraso na entrega. Força maior. Inocorrência. Cláusula penal moratória lucros cessantes. Acumulação. Possibilidade. - Cuida a hipótese de Ação Ordinária objetivando a declaração da mora da Ré desde 1º.9.2008 a 26.11.2009, conforme cláusula 3.2 do contrato de promessa de compra e venda de imóvel novo, além de sua condenação ao pagamento da multa de 1% (um por cento) ao mês prevista na mesma cláusula. - Alegação da Ré de atraso na entrega do imóvel por motivo de força maior que não se sustenta. 614 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA - Cláusula penal moratória instituída contratualmente para o caso de atraso na entrega do imóvel. - Lucros cessantes que foram objeto de ação diversa, o que não constitui coisa julgada em face da presente demanda. - Cláusula penal moratória e lucros cessantes que possuem naturezas diversas. - Possibilidade de acumulação da cláusula penal com os lucros cessantes, que podem ser pleiteados em ações distintas. - Sentença mantida. - Desprovimento do Recurso. 2.- Os Embargos de Declaração foram rejeitados (fls. 190-196). 3.- A Agravante, nas razões do Recurso Especial, sustenta que o promitente comprador diante do atraso na entrega do imóvel adquirido à construtora que o prometeu vender não pode cobrar, simultaneamente, a cláusula penal prevista no contrato consistente em multa de 1% por mês de atraso, e ainda, valor mensal correspondente ao aluguel desse mesmo imóvel. Segundo alega, a cláusula penal não pode ser cobrada juntamente com os lucros cessantes, sob pena de se ofensa ao artigo 402, 410 e 411 do Código Civil, porque ela já serve como fixação antecipada das perdas e danos. Além disso o contrato não permitia a cobrança indenização suplementar àquela pré-fixada no próprio contrato. O Tribunal de origem, assim não entendendo, teria violado os artigos 416 e 421 do Código Civil. 4.- Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por força de Agravo Provido. É o breve relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Consta dos autos que Tânia Barreto Simões Correa e seu marido Ernani Simões Corrêa celebraram com a Gafisa contrato de promessa de compra e venda de apartamento em construção que seria entregue até o 1º.9.2008, mas que, em razão de atraso na conclusão da obra, somente veio a ser entregue no dia 26.11.2009. 6.- Em razão disso os promitentes compradores ajuizaram uma ação (fls. 8996) distribuída sob o n. 0131725-61.2010.8.19.001 ao 4º Juizado Especial Cível RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 615 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Catete, pleiteando indenização pelos lucros cessantes consistentes no valor estimado do aluguel do imóvel, haja vista que o bem havia sido adquirido por eles com esse objetivo. O pedido formulado foi julgado parcialmente procedente para condenar a Gafisa ao pagamento de R$ 13.000,00, correspondentes à mora verificada entre outubro de 2008 e novembro de 2009 (fls. 98-100). 7.- Também ajuizaram a ação que deu origem aos presentes autos, distribuída sob o n. 0131601-78-2010.8.19.001 à 30ª Vara Cível da Comarca da Capital, pleiteando a condenação da Gafisa ao pagamento da multa contratual pelo período de mora verificado (fls. 03-07). 8.- A Sentença afastou a preliminar de coisa julgada invocada em sede de contestação, afirmando que o pedido formulado nesses feitos não era o mesmo, embora conectados pela mesma causa de pedir: a mora. Em seguida julgou procedente o pedido formulado nesse segundo processo para condenar a Ré ao pagamento da multa contratual de 1% ao mês sobre o valor do imóvel, conforme viesse a ser apurado em liquidação, incidente no período compreendido entre 1º.9.2008 e 26.11.2009 (fls. 147-151). 9.- O Tribunal de origem, conforme se extrai da ementa constante do relatório, também rechaçou a preliminar de coisa julgada e, no mérito, manteve a conclusão da sentença, ressaltando a possibilidade de cumulação da multa contratual moratória e da indenização por perdas e danos (lucro cessante). 10.- Nas razões do especial discute-se, essencialmente, se é possível cumular a indenização correspondente à cláusula penal moratória e a indenização por lucros cessantes. Impende saber, portanto, se o promitente comprador, em caso de atraso na entrega do imóvel adquirido pode pleitear além da multa moratória expressamente estabelecida no contrato, também uma indenização correspondente aos lucros cessantes pela não fruição do imóvel durante o período da mora. 11.- A cláusula penal, também chamada de pena convencional, ensinam NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA NERY (Código Civil Anotado. 8ª ed.: Revista dos Tribunais, 2011, p. 526) “é o pacto acessório à obrigação principal, no qual se estipula a obrigação de pagar pena ou multa, para o caso de uma das partes se furtar ao cumprimento da obrigação”. 12.- Nos termos do artigo 408 do Código Civil, a possibilidade de uma parte exigir a cláusula penal surge de pleno direito desde de que a outra parte contratante tenha, culposamente, deixado de cumprir a obrigação, ou incorrido em mora. 616 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 13.- O artigo 409, na mesma linha, assinala que: “A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referirse à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora”. 14.- Já aí se percebe que existem essencialmente dois tipos diferentes de cláusula penal: aquela vinculada ao descumprimento (total) da obrigação, e aquela que incide na hipótese de mora (descumprimento parcial). A primeira é designada pela doutrina como compensatória, a segunda como moratória. 15. Conquanto se afirme que toda cláusula penal tem, em alguma medida, o fito de reforçar o vínculo obrigacional (Schuld), essa característica se manifesta com maior evidência nas cláusulas penas moratórias, visto que, nas compensatórias, a indenização fixada contratualmente serve como pré-fixação das das perdas e danos decorrentes do inadimplemento (artigo 410). 16.-Tratando-se de cláusula penal moratória, o credor estará autorizado a exigir não apenas o cumprimento (tardio) do avençado, como ainda a cláusula penal estipulada. Nesses termos a dicção expressa do artigo 411 do Código Civil: “Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.” 17.- A questão que se coloca é se o credor também estará autorizado a exigir (além da prestação tardia e da multa) as perdas e danos decorrentes da mora. 18.- Dentro do nosso sistema, a obrigação de indenizar é corolário natural daquele que pratica ato lesivo ao interesse ou direito de outrem. Se a cláusula penal compensatória funciona como pré-fixação das perdas e danos, o mesmo não ocorre com a cláusula penal moratória, que não compensa nem substitui o inadimplemento, apenas pune o retardamento no cumprimento da obrigação. 19.- Assim, a cominação contratual de uma multa para o caso de mora não interfere com a responsabilidade civil correlata que já deflui naturalmente do próprio sistema. 20.- Concede-se ao credor, nesses casos, a faculdade de requerer, cumulativamente: a) o cumprimento da obrigação, b) a multa contratualmente estipulada e ainda c) indenização correspondente às perdas e danos decorrentes da mora. RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013 617 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Nesse sentido a lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: (...) Quando a cláusula penal é moratória, não substitui nem compensa o inadimplemento. Por essa razão, nenhuma alternativa surgem, mas, ao revés, há uma conjugação de pedidos que o credor pode formular: o cumprimento da obrigação principal que não for satisfeita oportunamente, e a penal moratória, devida como punição ao devedor, e indenização ao credor pelo retardamento oriundo da falta daquele. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil Vol. II, 17ª ed.: Forense, Rio de Janeiro, 1999, p. 106-107). Na mesma linha: Civil e Processual Civil. Compromisso de compra e venda. Rescisão contratual. Promitente comprador que não reúne condições econômicas para o pagamento das prestações. Reajuste do saldo devedor. Resíduo inflacionário. Cláusula penal. Indenização pela fruição. Cumulação. Possibilidade. (...) - A multa prevista pela cláusula penal não deve ser confundida com a indenização por perdas e danos pela fruição do imóvel, que é legítima e não tem caráter abusivo quando há uso e gozo do imóvel. (REsp n. 953.907-MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 9.4.2010); Recurso especial. Ação rescisória. Obrigação. Descumprimento. Cláusula penal moratória. Cumulação com lucros cessantes. Possibilidade. Violação a literal disposição de lei. Inexistência. Dissídio jurisprudencial. Ausência de similitude fática. 1. A instituição de cláusula penal moratória não compensa o inadimplemento, pois se traduz em punição ao devedor que, a despeito de sua incidência, se vê obrigado ao pagamento de indenização relativa aos prejuízos dele decorrentes. Precedente. (REsp n. 968.091-DF, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJe 30.3.2009). 21.- Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial. 618