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Transcrição

RSTJ 230_TOMO 2.indd - Superior Tribunal de Justiça
Terceira Turma
RECURSO ESPECIAL N. 1.162.281-RJ (2009/0207527-2)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: V E S VIN e Sprint Aktiebolag NY
Advogada: Kátia Patrícia Gonçalves Silva e outro(s)
Recorrido: Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI
Procurador: Leny Machado e outro(s)
EMENTA
Comercial e Processual Civil. Marca. Alto renome. Declaração.
Procedimento. Controle pelo Poder Judiciário. Limites.
1. Embora preveja os efeitos decorrentes do respectivo registro,
o art. 125 da LPI não estabeleceu os requisitos necessários à
caracterização do alto renome de uma marca, sujeitando o dispositivo
legal à regulamentação do INPI.
2. A sistemática imposta pelo INPI por intermédio da Resolução
n. 121/05 somente admite que o interessado obtenha o reconhecimento
do alto renome de uma marca pela via incidental.
3. O titular de uma marca detém legítimo interesse em obter,
por via direta, uma declaração geral e abstrata de que sua marca é de
alto renome. Cuida-se de um direito do titular, inerente ao direito
constitucional de proteção integral da marca.
4. A lacuna existente na Resolução n. 121/05 – que prevê a
declaração do alto renome apenas pela via incidental – configura
omissão do INPI na regulamentação do art. 125 da LPI, situação que
justifica a intervenção do Poder Judiciário.
5. Ainda que haja inércia da Administração Pública, o Poder
Judiciário não pode suprir essa omissão e decidir o mérito do processo
administrativo, mas apenas determinar que o procedimento seja
concluído em tempo razoável. Dessa forma, até que haja a manifestação
do INPI pela via direta, a única ilegalidade praticada será a inércia da
Administração Pública, sendo incabível, nesse momento, a ingerência
do Poder Judiciário no mérito do ato omissivo.
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6. Por outro lado, os atos do INPI relacionados com o registro
do alto renome de uma marca, por derivarem do exercício de uma
discricionariedade técnica e vinculada, encontram-se sujeitos a
controle pelo Poder Judiciário, sem que isso implique violação do
princípio da separação dos poderes.
7. Recurso especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os
Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas
Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). Indira E S Quaresma
(Procurador Federal), pela parte recorrida: Instituto Nacional de Propriedade
Industrial INPI.
Brasília (DF), 19 de fevereiro de 2013 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 25.2.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por V E S VIN e Sprint Aktiebolag NY, com fulcro no art. 105, III, a, da CF/1988,
contra acordão do TRF da 2ª Região.
Ação: rescisória, ajuizada pelo INPI - Instituto Nacional de Propriedade
Industrial em desfavor da recorrente, objetivando desconstituir sentença
proferida pela 35ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro-RJ, que
declarou ser de alto renome a marca Absolut, conferindo-lhe proteção especial
em todas as classes, condenando o INPI a proceder às alterações administrativas
cabíveis (fls. 13-15, e-STJ).
Acórdão: o TRF da 2ª Região julgou procedente o pedido rescisório, nos
termos do acórdão (fls. 577-584, e-STJ) assim ementado:
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Direito Processual Civil e da Propriedade Industrial. Ação rescisória. Declaração
judicial de notoriedade da marca Absolut. Impossibilidade. Procedência do
pedido rescidendo. Necessidade de observância do procedimento previsto na
Resolução n. 110-2004 do INPI.
I - O alto renome de uma marca é situação de fato que decorre do amplo
reconhecimento que o signo distintivo goza junto ao público consumidor, motivo
pelo qual não pode o juiz substituir o povo no seu pensamento e impressão e
declarar, de modo permanente e irrestrito, a sua fama.
II - É tarefa da justificação (art. 861 do Código de Processo Civil) e não da
declaração judicial (art. 4º do Código de Processo Civil) a de documentar a
existência de fato para utilização futura.
III - Procedência do pedido rescindendo, na forma do art. 485, V do Código
de Processo Civil, para desconstituir o decisum que declarou in abstracto da
notoriedade da marca Absolut.
IV - Improcedência do pedido da ação principal, de molde a permitir a verificação
do alto renome da marca Absolut pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial,
a partir do procedimento previsto na Resolução n. 110-2004.
Recurso especial: alega violação dos arts. 4º, 267, VI, e 485, V, do CPC; e
125 da LPI (fls. 589-604, e-STJ).
Prévio juízo de admissibilidade: o TRF da 2ª Região admitiu o recurso
especial (fls. 659-660, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a determinar
se o alto renome de uma marca pode ser reconhecido e declarado judicialmente,
ou se está obrigatoriamente sujeito a procedimento administrativo junto ao
INPI.
A marca, cuja propriedade é consagrada pelo art. 5º, XXIX, da CF, se
constitui num sinal distintivo de percepção visual que individualiza produtos
e/ou serviços. O seu registro confere ao titular o direito de usar, com certa
exclusividade, uma expressão ou símbolo.
A sua proteção, para além de garantir direitos individuais, salvaguarda
interesses sociais, na medida em que auxilia na melhor aferição da origem do
produto e/ou serviço, minimizando erros, dúvidas e confusões entre usuários.
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Na lição de Denis Borges Barbosa, o interesse constitucional nas marcas
está em “proteger o investimento em imagem empresarial, mas sem abandonar,
e antes prestigiar, o interesse reverso, que é o da proteção do consumidor”
(Proteção das marcas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 240).
Essa proteção varia conforme o grau de conhecimento de que desfruta a
marca no mercado. Prevalecem, como regra, os princípios da territorialidade
e da especialidade. Pelo princípio da territorialidade, a proteção conferida
à marca deve respeitar a soberania de cada Estado e as especificidades do
seu ordenamento jurídico. Direitos marcários concedidos à luz de diferentes
legislações, ainda que tenham por objeto a mesma marca, são absolutamente
distintos, susceptíveis de proteção autônoma em cada um dos Estados. Já
pelo princípio da especialidade, o registro da marca confere exclusividade de
uso apenas no âmbito do mercado relevante para o ramo de atividade ao qual
pertence o seu titular.
Essas regras, no entanto, comportam exceções, notadamente quando se
verifica o fenômeno que Denis Borges Barbosa denomina “extravasamento
do símbolo”, ou seja, marcas cujo conhecimento pelo público e/ou mercado
ultrapassa o âmbito de proteção conferido pelo registro.
A LPI, consagrando os princípios instituídos pela Convenção da União
de Paris (1967) e o acordo sobre os aspectos da propriedade intelectual
relacionados ao comércio - TRIPs/ADPIC (1994), admitiu duas formas de
“extravasamento do símbolo”, atuando no sentido de mitigar os mencionados
preceitos informadores do registro de marcas. Na primeira hipótese temos o que
o art. 125 da LPI denomina marca de alto renome, em que há temperamento
do princípio da especialidade e no segundo caso o que o art. 126 da LPI chama
de marca notoriamente conhecida, em que há abrandamento do princípio da
territorialidade.
Todavia, embora preveja os efeitos decorrentes do respectivo registro, o art.
125 da LPI não estabeleceu os requisitos necessários à caracterização do alto
renome, sujeitando o dispositivo legal à regulamentação do INPI, que veio por
intermédio da Resolução n. 110/04, posteriormente substituída pela Resolução
n. 121/05.
Ocorre que, diferentemente da revogada Lei n. 5.772/1971, que previa
uma declaração abstrata com o mesmo prazo de validade do registro básico, o
art. 3º da Resolução n. 121/05 dispõe que a declaração de alto renome deverá
ser requerida “como matéria de defesa, quando da oposição a pedido de registro
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
de marca de terceiro ou do processo administrativo de nulidade de registro de
marca de terceiro que apresente conflito com a marca invocada de alto renome”.
Vale dizer, a sistemática imposta pelo INPI somente admite que o
interessado obtenha o reconhecimento do alto renome de uma marca pela via
incidental.
Na prática, portanto, respeitada a regra da Resolução n. 121/05, o titular de
uma marca de alto renome só conseguirá a respectiva declaração administrativa
a partir do momento em que houver a adoção de atos potencialmente capazes
de violar essa marca.
A inexistência de um procedimento administrativo tendente à obtenção de
uma declaração direta e abstrata do alto renome suscitou severas críticas de parte
da doutrina, que considera essa declaração intrínseca ao direito constitucional
de proteção integral da marca, permitindo que o titular atue preventivamente,
antes do surgimento de um risco concreto de violação da propriedade industrial.
Diante disso, tornaram-se comuns ações como a presente, em que o titular
busca a declaração judicial do alto renome de sua marca.
O STJ já teve a oportunidade de apreciar essa questão, tendo consolidado
o entendimento de que “compete ao INPI avaliar a marca para caracterizá-la
como notória ou de alto renome” (REsp n. 716.179-RS, 4ª Turma, Rel. Min.
João Otávio de Noronha, DJe de 14.12.2009. No mesmo sentido: AgRg no
AgRg no REsp n. 1.116.854-RJ, 3ª Turma, Relator Min. Massami Uyeda, DJe
de 2.10.2012).
Esse entendimento se formou em torno do raciocínio construído pelo
i. Min. Jorge Scartezzini, em julgado precursor da matéria, no qual sua Exa.,
citando a lição de Fábio Ulhoa Coelho, conclui que a declaração do alto renome
“consiste em ato discricionário do INPI, insuscetível de revisão pelo Poder
Judiciário, senão quanto aos seus aspectos formais, em vista da tripartição
constitucional dos poderes do Estado” (EDcl nos EDcl no AgRg no REsp n.
653.609-RJ, 4ª Turma, DJ de 27.6.2005).
Entretanto, não obstante eu mesma já tenha me filiado a esse entendimento
em julgamentos anteriores, a relatoria deste processo me fez refletir melhor
sobre o tema.
Em primeiro lugar, destaco a necessidade de se estabelecer se há efetivo
interesse do titular em obter uma declaração geral e abstrata de que sua marca é
de alto renome.
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Nesse aspecto, noto que parte da doutrina, do que é exemplo José Carlos
Tinoco Soares, afirma que o alto renome não dependeria de registro, pois “tem
o seu conhecimento absoluto, granjeado em razão de seu conceito, qualidade do
produto e/ou serviço, distinguibilidade que se adquire pela aceitação pública e
manifesta de qualquer um do povo, sem distinção de classe social ou de lugar
onde a marca é empregada porque, na realidade, é a marca absoluta que ninguém
em sã consciência poderá desconhecer” (Marcas notoriamente conhecidas –
marcas de alto renome vs. Diluição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 215).
Não se ignora que o alto renome pressupõe a ampla e irrestrita notoriedade
da marca – ao ponto de se imaginar que qualquer produto que a ostente seja
fabricado pelo seu titular – circunstância que dá ensejo a uma proteção geral,
em todas as classes, de modo a evitar o aproveitamento indevido e parasitário da
propriedade intelectual, bem como a confusão do mercado consumidor.
A questão, porém, não se encerra aí. Ainda que uma determinada marca
seja de alto renome, até que haja uma declaração oficial nesse sentido, essa
condição será ostentada apenas em tese. Dessa forma, mesmo que exista
certo consenso de mercado acerca do alto renome, este atributo depende da
confirmação daquele a quem foi conferido o poder de disciplinar a propriedade
industrial no Brasil, declaração essa que se constitui num direito do titular,
inerente ao direito constitucional de proteção integral da marca, não apenas
para que ele tenha a certeza de que sua marca de fato possui essa peculiaridade,
mas sobretudo porque ele pode – e deve – atuar preventivamente no sentido de
preservar e proteger o seu patrimônio intangível, sendo despropositado pensar
que o interesse de agir somente irá surgir com a efetiva violação.
Pior do que isso, o reconhecimento do alto renome só pela via incidental
imporia ao titular um ônus injustificado, de constante acompanhamento dos
pedidos de registro de marcas a fim de identificar eventuais ofensas ao seu
direito marcário.
Ademais, não se pode perder de vista que muitas vezes sequer há a tentativa
de depósito da marca ilegal junto ao INPI, até porque, em geral, o terceiro sabe
da inviabilidade de registro, em especial quando a colidência se dá com marca
de alto renome. Nesses casos, a controvérsia não chega ao INPI, impedindo que
o titular da marca adote qualquer medida administrativa incidental visando à
declaração do alto renome.
Acrescente-se, por oportuno, que ao dispor que “a proteção de marcas de
alto renome não dependerá de registro na jurisdição em que é reivindicada”,
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
a AIPPI (Association Internationale pour la Protection de la Propriété
Industrielle) não isentou (ou pelo menos não impediu) essas marcas de registro,
tampouco afirmou que essa condição (de alto renome) independeria de uma
declaração oficial; apenas salientou que elas estariam resguardadas mesmo sem
prévio registro, ou seja, prevaleceriam sobre marcas colidentes, ainda que estas
fossem registradas anteriormente.
Até porque, como dito, por mais que se tenha um consenso em torno do
alto renome de uma marca, a confirmação desse atributo somente virá com uma
declaração oficial nesse sentido.
Verifica-se, portanto, haver efetivo interesse do titular em obter uma
declaração geral e abstrata de que sua marca é de alto renome.
A partir daí, conclui-se que a lacuna existente na Resolução n. 121/05 –
que prevê a declaração do alto renome apenas pela via incidental – configura
omissão do INPI na regulamentação do art. 125 da LPI, situação que justifica a
intervenção do Poder Judiciário.
Essa constatação nos remete a um segundo problema, qual seja, determinar
os limites da intervenção do Poder Judiciário no reconhecimento do alto
renome de uma marca.
Hely Lopes Meirelles aduz que a inércia do Poder Público caracteriza
abuso de poder, corrigível pela via judicial, ponderando que “o silencio não é ato
administrativo”, de maneira que “não cabe ao Judiciário praticar o ato omitido
pela Administração mas, sim, impor sua prática” (Direito administrativo
brasileiro, 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 114).
Outro não tem sido o entendimento do STJ, ao assentar que “ainda que
haja ato omissivo da Administração, o Poder Judiciário não pode suprir essa
omissão e decidir o mérito do processo administrativo, mas apenas determinar
que o procedimento seja concluído em tempo razoável” (MS n. 14.760-DF, 1ª
Seção, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 16.6.2010. No mesmo sentido:
REsp n. 958.641-PI, 1ª Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe de 26.11.2009;
e MS n. 10.778-DF, 1ª Seção, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de
14.8.2006).
Dessa forma, até que haja a manifestação do INPI pela via direta, a única
ilegalidade praticada será a inércia da Administração Pública, sendo incabível,
ao menos nesse momento, a ingerência do Poder Judiciário no mérito do ato
omissivo.
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Por outro lado, havendo decisão do INPI a respeito da existência ou não do
alto renome, a questão atinente à intervenção do Poder Judiciário ganha novos
contornos.
Os atos administrativos em geral encontram-se sujeitos a controle judicial,
corolário do preceito constitucional insculpido no art. 5º, XXXV, de que não se
excluirá da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito.
Há, porém, limitação quanto ao objeto do controle, que se restringe à
legalidade (conformidade com a legislação) e legitimidade (conformidade com
os princípios básicos da administração pública) do ato, sendo defeso ao Poder
Judiciário se manifestar acerca da sua conveniência, oportunidade e/ou eficiência,
isto é, sobre o que se convencionou denominar de mérito administrativo.
Cabem, nesse ponto, algumas considerações acerca dos atos administrativos
discricionários.
A discricionariedade administrativa deriva da multiplicidade e
complexidade das atividades desempenhadas pelo Poder Público, em relação às
quais a lei, por mais minuciosa e casuística que seja, não consegue prever todos
os caminhos a serem seguidos, ou pelo menos não o caminho que se mostre
mais vantajoso ou correto para cada hipótese.
Como leciona Hely Lopes Meirelles, a discricionariedade administrativa
é “a ferramenta jurídica que a ciência do Direito entrega ao administrador para
que realize a gestão dos interesses sociais respondendo às necessidades de cada
momento” (op. cit., p. 168).
Mas essa discricionariedade não se confunde com arbitrariedade, devendo
a autoridade administrativa, entre as alternativas que se apresentarem, optar por
aquela que melhor corresponda àquilo que está expresso ou subentendido em
lei, sempre com vistas a alcançar o fim por ela almejado.
Em complemento a esse raciocínio, Maria Sylvia Zanella Di Pietro lembra
a evolução das limitações impostas à discricionariedade administrativa e anota
que, após a construção da teoria dos motivos determinantes, passou-se a admitir
o controle judicial com base na violação de princípios gerais do direito, como
a boa-fé e a proporcionalidade, afirmando que “hoje, a discricionariedade
administrativa é vista como uma liberdade de opção entre duas ou mais
alternativas válidas perante o direito, e não apenas perante a lei”, motivo pelo
qual “sofre maiores limitações, ficando muito mais complexa a atividade de
controle” (Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa, in Revista
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 17, abr/jun 2007, pp.
77-78).
Nesse contexto, ganha relevância a distinção entre discricionariedade
técnica e discricionariedade administrativa, fruto dessa evolução do Direito
Administrativo, sobretudo a partir da reforma administrativa de 1998, que
culminou na privatização de serviços públicos e na criação de agências
reguladoras, autarquias especiais, dotadas de poder regulamentar, fiscalizador e
sancionatório.
Essa distinção, inspirada na doutrina portuguesa de Afonso Rodrigues
Queiró, parte da diferenciação entre discricionariedade e interpretação da
norma. Para o referido autor, a estruturação da norma se apoia em dois conceitos
que, embora igualmente advindos do ser e do dever-ser, distinguem-se em: (i)
conceito prático, suscetível de uma variedade de sentidos entre si diferentes,
impondo condições de fato que a norma só pode exigir de forma implícita e
que, portanto, confere competência discricionária; e (ii) conceito teorético, a
demandar perfeita subsunção das condições de fato à norma, fazendo exsurgir
uma competência vinculada.
Juliano Heinen bem sintetiza essa questão, frisando que a subjetividade
de um conceito não autoriza dizer que se têm, diante dele, várias alternativas.
Para o autor, “indeterminação não se confunde com múltiplas opções de ação
previamente determinadas. A existência de muitas opções hermenêuticas
garante uma indeterminação momentânea, para, após uma juízo de valor, terse uma opção. Fato completamente diverso seria a existência, desde o início,
de duas ou mais alternativas de atuação, que permanecerão presentes até o
momento de se concentrar em apenas uma delas” (Para uma nova concepção do
princípio da legalidade em face da discricionariedade técnica, in Revista Forense, Rio
de Janeiro, ano 106, vol. 412, nov/dez 2010, p. 463).
Diante disso, conclui-se que a discricionariedade administrativa é de
certa forma residual, isto é, ela só se legitima quando não houver mais margem
para a interpretação da própria lei. Somente após o encerramento do processo
exegético da norma, o que inclui a aplicação dos seus conceitos teoréticos, e
perdurando mais de uma solução possível e aceitável à luz dos princípios básicos
da administração pública, é que se adentra o campo da discricionariedade
administrativa.
Percebe-se, com isso, que supostas discricionariedades presentes na norma
– emanadas de conceitos indeterminados – uma vez interpretadas podem, na
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prática, conduzir a uma única solução, o que, a rigor, não confere à administração
pública nenhuma margem de atuação discricionária.
É exatamente o que ocorre na discricionariedade técnica que, conforme
adverte Maria Sylvia Zanella di Pietro, não caracteriza uma discricionariedade
de fato. De acordo com a i. professora, na discricionariedade técnica “existe
uma solução única a ser adotada com base em critérios técnicos fornecidos
pela ciência. Quando um ente administrativo baixa atos normativos definindo
conceitos indeterminados, especialmente os conceitos técnicos e os conceitos de
experiência, ele não está exercendo o poder regulamentar, porque este supõe a
existência de discricionariedade administrativa propriamente dita que, no caso,
não existe” (op. cit., pp. 91-92).
Nesse sentido, somente haverá discricionariedade administrativa quando
a administração pública tiver de optar entre mais de um critério técnico. A
existência de um único critério técnico impõe ao agente estatal um padrão de
conduta vinculado.
Em suma, a possibilidade de mais de uma interpretação da norma conduz
à discricionariedade técnica, enquanto a possibilidade de mais de uma atuação
frente à norma conduz à discricionariedade administrativa.
A consequência dessa diferenciação é bem apreendida por Juliano Heinen,
ao consignar que “a discricionariedade técnica, porque mera consequência
de uma valoração do administrador público diante da abstração do texto
normativo, pode ser controlada pelo Poder Judiciário, pelo simples fato de que
a interpretação final de um texto legal é dada justamente pelo magistrado” (op.
cit., p. 465).
Essas considerações subsumem-se perfeitamente ao registro de marcas. A
análise do INPI encontra-se vinculada aos parâmetros técnicos estabelecidos na
Lei n. 9.279/1996 e em suas próprias resoluções, sendo-lhe em princípio vedado
negar registro a uma marca que preencha os requisitos legais.
Para coibir eventuais condutas abusivas, a Lei n. 9.279/1996 previu não
apenas recursos administrativos, mas uma ação de nulidade de registro de
marca, por meio da qual é dado ao Poder Judiciário rever o juízo discricionário
(técnico) do INPI. Vale dizer, o próprio legislador reconheceu que, embora
essa decisão envolva mérito administrativo, o ato deriva do exercício de uma
discricionariedade vinculada, portanto sujeita a controle pelo Poder Judiciário.
Raciocínio análogo pode ser desenvolvido em relação à Resolução n. 121/05,
editada pelo INPI para regulamentar o art. 125 da LPI. Ao fazê-lo estabeleceu,
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
no art. 2º, o que se entende por marca de alto renome, afirmando tratar-se
daquela que “goza de uma autoridade incontestável, de um conhecimento e
prestígio diferidos, resultantes da sua tradição e qualificação no mercado e da
qualidade e confiança que inspira, vinculadas, essencialmente, à boa imagem
dos produtos ou serviços a que se aplica, exercendo um acentuado magnetismo,
uma extraordinária força atrativa sobre o público em geral, indistintamente,
elevando-se sobre os diferentes mercados e transcendendo a função a que se
prestava primitivamente, projetando-se apta a atrair clientela pela sua simples
presença”.
Cuida-se de claro exercício de discricionariedade técnica, pois, não
obstante tenha tido liberdade para regulamentar o art. 125 da LPI, o INPI se
viu obrigado a respeitar conceitos técnico-científicos para definir o que vem a
ser marca de alto renome.
De forma semelhante, ao se manifestar acerca do alto renome de uma
marca, o INPI também agirá com discricionariedade técnica, pois realizará sua
análise com base na interpretação da legislação aplicável, inclusive sua própria
resolução, e, presentes os requisitos fixados, estará em princípio obrigado a
conceder o registro, ou seja, haverá duas possiblidades de interpretação, mas não
duas possiblidades de atuação.
Em síntese, conclui-se que os atos do INPI relacionados com o registro do
alto renome de uma marca, por derivarem do exercício de uma discricionariedade
técnica e vinculada, encontram-se sujeitos a controle pelo Poder Judiciário, sem
que isso implique violação do princípio da separação dos poderes.
Na hipótese específica dos autos, verifica-se que a recorrente teve a
iniciativa de ajuizar ação objetivando a declaração do alto renome da marca
Absolut, sem que houvesse prévia manifestação do INPI.
Como visto, porém, a lacuna presente na Resolução n. 121/05 autoriza o
Poder Judiciário a, num primeiro momento, apenas suprir a omissão do INPI
em declarar de forma direta a existência ou não do alto renome de uma marca.
Deveria a recorrente, portanto, ter se limitado a adotado medida judicial
tendente a provocar a manifestação do INPI.
Conclui-se, assim, que ao reconhecer o alto renome da marca Absolut,
na ausência de uma declaração administrativa do INPI a respeito, a decisão
rescindenda exerceu função que legalmente compete àquele órgão, violando a
tripartição dos poderes do Estado, assegurada pelo art. 2º da CF/1988. Vale
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dizer, não houve controle do ato administrativo, mas efetiva prática deste ato em
substituição ao INPI.
Nem se diga que essa ausência de manifestação do INPI estaria superada
pelo fato de a referida autarquia ter integrado o polo passivo da ação rescindenda,
pois é natural que a representação jurídica da administração pública, movida
pelos princípios da legalidade e da eventualidade, se veja na obrigação de
apresentar defesa, impugnando as alegações da parte contrária e evitando a
caracterização da revelia.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.176.320-RS (2010/0008120-3)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Octavio Mônaco
Advogado: José Dilson Fernandes
Recorrido: Golden Cross Assitência Internacional de Saúde Ltda
Advogado: Caio Múcio Torino e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Plano de saúde. Ação de ressarcimento.
Cirurgia cardíaca. Descumprimento de cláusula contratual. Prazo
prescricional decenal.
1.- Em se tratando de ação objetivando o ressarcimento de
despesas realizadas com cirurgia cardíaca para a implantação de
“stent”, em razão da negativa do plano de saúde em autorizar o
procedimento, a relação controvertida é de natureza contratual.
2.- Não havendo previsão específica quanto ao prazo prescricional,
incide o prazo geral de 10 (dez) anos, previsto no art. 205 do Código
Civil, o qual começa a fluir a partir da data de sua vigência (11.1.2003),
respeitada a regra de transição prevista no art. 2.028.
3.- Recurso Especial provido.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a)
Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino
e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente,
justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi.
Brasília (DF), 19 de fevereiro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 26.2.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Octavio Mônaco interpõe Recurso
Especial, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, contra
Acórdão unânime do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Rel.
Des. Luís Augusto Coelho Braga), assim ementado (e-STJ fl. 129):
Apelação cível. Seguro-saúde. Negativa de pagamento de stent. Segurado que
paga por conta própria. Prescrição. Art. 206, § 3º, V, do CCB. Negaram provimento ao
apelo. Unânime.
2.- No caso em exame, o autor, ora recorrente, propôs ação objetivando
o ressarcimento das despesas que realizou com cirurgia cardíaca para a
implantação de “stent”, em razão da negativa do plano de saúde em autorizar o
procedimento.
3.- Alega o recorrente violação dos arts. 205 e 206, § 3º, V, do Código
Civil, sustentando, em síntese, que o prazo prescricional para a ação que
visa ao reembolso de despesas efetuadas com tratamento de saúde é de dez
anos.
4.- Contra-arrazoado (e-STJ fls. 152-157), o recurso foi admitido (e-STJ
fls. 159-161), vindo os autos a este Tribunal.
É o relatório.
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Cinge-se a controvérsia em
definir qual é o prazo prescricional aplicável no caso de ação objetivando
o ressarcimento de despesas, no valor de R$ 6.365,66 (seis mil, trezentos e
sessenta e cinco reais e sessenta e seis centavos), realizadas com cirurgia cardíaca
para a implantação de “stent”, em razão da negativa do plano de saúde em
autorizar o procedimento.
6.- De início, cumpre salientar que a hipótese não se subsume à regra da
prescrição ânua prevista no art. 206, § 1º, II, do Código Civil, uma vez que a
causa de pedir da pretensão não decorre de contrato de seguro, mas da prestação
de serviço de saúde, que deve receber tratamento próprio.
7.- Verifica-se, assim, que a relação controvertida é de natureza contratual,
uma vez que, consoante alegou a própria ré, ora recorrida, em sua Contestação,
a recusa do plano de saúde em autorizar a cobertura deveu-se ao fato de que
“implantes estão excluídos de cobertura contratual”. (e-STJ fls. 26)
8.- Conforme salienta CARLOS ROBERTO GONÇALVES, o
Código Civil diferencia a responsabilidade civil contratual e a extracontratual,
observando quanto ao seu disciplinamento, o que se segue:
O Código Civil distinguiu as duas espécies de responsabilidade, disciplinando
genericamente a responsabilidade extracontratual nos arts. 186 a 188 e 927 e s.; e a
contratual, nos arts. 395 e s. e 389 e s., omitindo qualquer referência diferenciadora.
É certo, porém, que nos dispositivos em que trata genericamente dos atos ilícitos,
da obrigação de indenizar e da indenização (arts. 186 a 188, 927 e s. e 944 e s.),
o Código não regulou a responsabilidade proveniente do inadimplemento da
obrigação, da prestação com defeito ou da mora no cumprimento das obrigações
provenientes dos contratos (que se encontra no capítulo referente aos efeitos
da obrigações). Além dessas hipóteses, a responsabilidade contratual abrange
também o inadimplemento ou mora relativos a qualquer obrigação, ainda que
proveniente de um negócio unilateral (como o testamento, a procuração ou a
promessa de recompensa) ou da lei (como a obrigação de alimentos).
E a responsabilidade extracontratual compreende, por seu turno, a violação
dos deveres gerais de abstenção ou omissão, como os que correspondem aos
direitos reais, aos direitos de personalidade ou aos direitos de autor (à chamada
propriedade literária, científica ou artística, aos direitos de patente ou de
invenções e às marcas). (...).
Vejamos, assim, quais as diferenciações geralmente apontadas entre as duas
espécies de responsabilidade.
562
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
A primeira, e talvez mais significativa, diz respeito ao ônus da prova. Se a
responsabilidade é contratual, o credor só está obrigado a demonstrar que a
prestação foi descumprida. O devedor só não será condenado a reparar o dano se
provar a ocorrência de alguma das excludentes admitidas na lei: culpa exclusiva
da vítima, caso fortuito ou força maior. Incumbe-lhe, pois, o onus probandi.
No entanto se a responsabilidade for extracontratual, a do art. 186 (um
atropelamento, por exemplo), o autor da ação é que fica com o ônus de provar
que o fato se deu por culpa do agente (motorista). A vítima tem maiores
probabilidades de obter a condenação do agente ao pagamento da indenização
quando a sua responsabilidade deriva do descumprimento do contrato, ou seja,
quando a responsabilidade é contratual, porque não precisa provar a culpa. Basta
provar que o contrato não foi cumprido e, em conseqüência, houve o dano.
Outra diferenciação que se estabelece entre a responsabilidade contratual e
extracontratual diz respeito às fontes de que promanam. Enquanto a contratual
tem a sua origem na convenção, a extracontratual a tem na inobservância do
dever genérico de não lesar, de não causar dano a ninguém (neminem laedere),
estatuído no art. 186 do Código Civil.
Outro elemento de diferenciação entre as duas espécies de responsabilidade
civil refere-se à capacidade do agente causador do dano. Josserand entende
que a capacidade sofre limitações no terreno da responsabilidade simplesmente
contratual, sendo mais ampla no campo da responsabilidade extracontratual. (...).
Outro elemento de diferenciação poderia ser apontado no tocante à gradação
da culpa. Em regra, a responsabilidade, seja extracontratual (art. 186), seja
contratual (arts. 389 e 392), funda-se na culpa. A obrigação de indenizar, em se
tratando de delito, deflui da lei, que vale erga omnes.
Consequência disso seria que, na responsabilidade delitual, a falta se apuraria
de maneira mais rigorosa, enquanto na responsabilidade contratual ela variaria
de intensidade de conformidade com os diferentes casos, sem contudo alcançar
aqueles extremos a que se pudesse chegar na hipótese da culpa aquiliana,
em que vige o princípio do in lege Aquilia et levissima culpa venit. No setor da
responsabilidade contratual, a culpa obedece a um certo escalonamento, de
conformidade com os diferentes casos em que ela se configure, ao passo que, na
delitual, ela iria mais longe, alcançando a falta ligeiríssima.
(Responsabilidade Civil, São Paulo, 2011, Saraiva, 13ª ed., ps. 59-62).
9.- Por sua vez, adentrando ao exame da pretensão de reparação civil sob
o enfoque do prazo prescricional, CARLOS ALBERTO DABUS MALUF,
reportando-se à doutrina de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, observa
que o art. 206, § 3º, V, do Código Civil cuida do prazo prescricional relativo à
indenização por responsabilidade civil aquiliana, disciplinada pelos arts. 186 e
187 do mencionado diploma legal:
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563
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A Lei civil anterior não previa prazo específico para essa hipótese, sujeitandose ela ao prazo geral. (...).
A reparação civil decorrente de ato ilícito está disciplinada pelos arts. 186 e 187
da Lei Civil de 2002. (...).
Tratando-se de inovação, sem a correspondência no direito anterior, fica
excluída a regra de transição do art. 2.028 nesta hipótese, ressalvado, apenas, o
efeito imediato (art. 6º da LICC). (...).
Ainda para Humberto Theodoro Júnior: “Quando a norma do art. 206, § 3º,
inciso V, fala em prescrição da ‘pretensão de reparação civil’, está cogitando
da obrigação que nasce do ilícito stricto sensu. Não se aplica, portanto, às
hipóteses de violação do contrato, já que as perdas e danos, em tal conjuntura, se
apresentam com função secundária. O regime principal é o do contrato, ao qual
deve aderir o dever de indenizar como acessório, cabendo-lhe função própria do
plano sancionatório. Enquanto não prescrita a pretensão principal (a referente à
obrigação contratual) não pode prescrever a respectiva sanção (a obrigação pelas
perdas e danos). Daí que enquanto se puder exigir a prestação contratual (porque
não prescrita a respectiva pretensão), subsistirá a exigibilidade do acessório
(pretensão ao equivalente econômico e seus acréscimos legais). É, então, a
prescrição geral do art. 205, ou outra especial aplicável in concreto, como a
quinquenal do art. 206, § 5º, inciso I, que, em regra, se aplica à pretensão derivada
do contrato, seja originária ou subsidiária a pretensão. Esta é a interpretação que
prevalece no Direito Italiano (Código Civil, art. 2.947), onde se inspirou o Código
brasileiro para criar uma prescrição reduzida para a pretensão de reparação do
dano”.
(MALUF, CARLOS ALBERTO DABUS, Código Civil Comentado, São Paulo, 2009,
arts. 189 a 232, Atlas, ps. 111-112).
10.- Nessa linha de entendimento, decidiu este Tribunal no julgamento
do REsp n. 1.121.243-PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma,
DJe 5.10.2009, que o prazo de prescrição previsto no art. 206, § 3º, V, do
Código Civil não se aplica quando “a pretensão deriva do não cumprimento de
obrigação e deveres constantes de contrato”:
Civil e Processual. Ação de ressarcimento de danos. Nulidade do acórdão.
Violação ao art. 535 do CPC. Inexistência. Prescrição. Inocorrência. Juros de mora.
Inadimplemento contratual. Termo inicial. Data da citação. Precedentes.
I. Quando resolvidas todas as questões devolvidas ao órgão jurisdicional, o
julgamento em sentido diverso do pretendido pela parte não corresponde a
nulidade.
II. A pretensão autoral, de direito pessoal, obedece ao prazo prescricional
decenal.
564
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
III. Tratando-se de responsabilidade contratual, os juros incidirão a partir da
citação.
IV. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.
No mencionado precedente, consignou o E. Relator:
Quanto à alegada prescrição, não há que se falar em violação aos arts. 206, §
3º, II e V e 2.028 do Código Civil de 2002, ou ainda ao art. 178, § 10º, do Código
Civil anterior. Ora, não se está aqui a tratar de prestações vencidas de rendas
temporárias ou vitalícias e muito menos de reparação civil.
Na realidade, as instâncias ordinárias bem delimitaram a pretensão autoral,
dando seu correto enquadramento jurídico: a de que a ação versa sobre direito
pessoal, tendo-se como aplicável a prescrição comum.
Com efeito, a pretensão deriva do não cumprimento de obrigação e deveres
constantes de contrato firmado com a ré, prestadora de serviços, de natureza
pessoal e, conseqüentemente, está sujeita ao prazo prescricional decenal.
11.- Do mesmo modo, em julgamento proferido pela C. Segunda Seção,
decidiu-se que “a pretensão ao cumprimento de obrigação contratual está sujeita
à regra geral do art. 205 do Código Civil, que fixa o prazo de prescrição em dez
anos” (REsp n. 976.968-RS, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 20.11.2007).
E, ainda, nos precedentes abaixo:
Agravo regimental. Plano de saúde. Ação declaratória de restabelecimento
de contrato de seguro. Prescrição. Aplicação do art. 205 do CC/2002. Direito a
manutenção do contrato nas mesmas condições anteriores a aposentadoria.
Súmula n. 7-STJ. Recurso não provido.
1.- O prazo prescricional aplicável em hipóteses em que se discute a
abusividade de cláusula contratual, e, considerando-se a subsidiariedade do CC às
relações de consumo, deve-se aplicar, na espécie, o prazo prescricional de 10 (dez)
anos disposto no art. 205 do CC.
2.- Em relação ao direito dos aposentados que contribuíram por mais de 10
(dez) anos de ser mantido nas mesmas condições do seguro saúde enquanto
empregado, observa-se que a convicção a que chegou o Tribunal de origem
decorreu da análise do conjunto fático-probatório, que não tem como ser revisto
em sede de recurso especial, ante o preconizado na Súmula n. 7 do STJ.
3.- Agravo Regimental improvido.
(AgRg no AREsp n. 112.187-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe
28.6.2012);
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565
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Processual Civil. Recurso especial. Ação civil pública. Ministério Público. Plano
de saúde. Interesse individual indisponível. Reajuste. Cláusula abusiva. Prescrição.
Art. 27 do CDC. Inaplicabilidade. Lei n. 7.347/1985 omissa. Aplicação do art. 205
do CC/2002. Prazo prescricional de 10 anos. Recurso não provido.
1. A previsão infraconstitucional a respeito da atuação do Ministério Público
como autor da ação civil pública encontra-se na Lei n. 7.347/1985 que dispõe
sobre a titularidade da ação, objeto e dá outras providências. No que concerne ao
prazo prescricional para seu ajuizamento, esse diploma legal é, contudo, silente.
2. Aos contratos de plano de saúde, conforme o disposto no art. 35-G da
Lei n. 9.656/1998, aplicam-se as diretrizes consignadas no CDC, uma vez que a
relação em exame é de consumo, porquanto visa a tutela de interesses individuais
homogêneos de uma coletividade.
3. A única previsão relativa à prescrição contida no diploma consumerista (art.
27) tem seu campo de aplicação restrito às ações de reparação de danos causados
por fato do produto ou do serviço, não se aplicando, portanto, à hipótese dos
autos, em que se discute a abusividade de cláusula contratual.
4. Por outro lado, em sendo o CDC lei especial para as relações de consumo –
as quais não deixam de ser, em sua essência, relações civis – e o CC, lei geral sobre
direito civil, convivem ambos os diplomas legislativos no mesmo sistema, de
modo que, em casos de omissão da lei consumerista, aplica-se o CC.
5. Permeabilidade do CDC, voltada para a realização do mandamento
constitucional de proteção ao consumidor, permite que o CC, ainda que lei geral,
encontre aplicação quando importante para a consecução dos objetivos da
norma consumerista.
6. Dessa forma, frente à lacuna existente, tanto na Lei n. 7.347/1985, quanto no
CDC, no que concerne ao prazo prescricional aplicável em hipóteses em que se
discute a abusividade de cláusula contratual, e, considerando-se a subsidiariedade
do CC às relações de consumo, deve-se aplicar, na espécie, o prazo prescricional
de 10 (dez) anos disposto no art. 205 do CC.
7. Recurso especial não provido.
(REsp n. 995.995-DF, Relª. Minª. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe
16.11.2010).
12.- Com efeito, o caso em análise versa sobre ação de ressarcimento
por despesas que só foram realizadas em razão de suposto descumprimento
do contrato de prestação de serviços de saúde, hipótese sem previsão legal
específica, o que, na esteira dos precedentes colacionados, faz atrair a incidência
do prazo de prescrição geral de 10 (dez) anos, previsto no art. 205 do Código
Civil, e não o de 3 (três) anos, arrolado no art. 206, § 3º, V, cujo prazo começa a
fluir a partir da data de sua vigência (11.1.2003), respeitada a regra de transição
prevista no art. 2.028.
566
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
13.- Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso Especial, reconhecendo
a aplicação do prazo prescricional de 10 (dez) anos à hipótese.
RECURSO ESPECIAL N. 1.191.195-RS (2010/0076328-4)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Relator para o acórdão: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Clóvis Fernandes
Advogado: Anderson Luiz Rodrigues da Silva e outro(s)
Recorrido: HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo
Advogado: Clovys Bohrer Júnior e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Ação monitória. Valores bloqueados em conta
poupança vinculada a conta corrente. Impenhorabilidade. Art. 649,
inciso X, do CPC. Incidência.
1. Segundo o art. 649, inciso X, do CPC, a quantia depositada em
caderneta de poupança é impenhorável até o limite de 40 (quarenta)
salários mínimos.
2. A intenção do legislador foi a de proteger o pequeno investidor
detentor de poupança modesta, atribuindo-lhe uma função de
segurança alimentícia ou de previdência pessoal e familiar.
3. O valor de quarenta salários mínimos foi escolhido pelo
legislador como sendo aquele apto a assegurar um padrão mínimo
de vida digna ao devedor e sua família, assegurando-lhes bens
indispensáveis à preservação do mínimo existencial, incorporando o
ideal de que a execução não pode servir para levar o devedor à ruína.
4. Tal como a caderneta de poupança simples, a conta poupança
vinculada é considerada investimento de baixo risco e baixo rendimento,
com remuneração idêntica, ambas contando com a proteção do Fundo
Garantidor de Crédito (FGC), que protege o pequeno investidor, e
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567
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
isenção de imposto de renda, de modo que deve ser acobertada pela
impenhorabilidade prevista no art. 649, inciso X, do CPC.
5. Eventuais situações que indiquem a existência de má-fé do
devedor devem ser solucionadas pontualmente.
6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas,
decide Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei
Beneti, acompanhando a divergência, a Terceira Turma, por maioria, dar parcial
provimento ao recurso especial. Vencida a Sra. Ministra-Relatora Nancy
Andrighi. Votaram com o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, os Srs.
Ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino. Lavrará o acórdão o Sr.
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Brasília (DF), 12 de março de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 26.3.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Clóvis Fernandes, com fundamento no art. 105, III, a, da CF, contra acórdão
proferido pelo TJ-RS.
Ação: monitória, ajuizada por HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo, em
desfavor do recorrente, avalista de débito decorrente de contrato de abertura de
limite de crédito em conta corrente – conta empresarial.
Em razão do débito do qual o recorrente fora avalista, o juízo determinou
o bloqueio de valores eventualmente encontrados em nome deste. Desta feita,
foi bloqueado o montante de R$ 8.971,48 (oito mil, novecentos e setenta e um
reais e quarenta e oito centavos).
O recorrente, por sua vez, pleiteou a liberação do bloqueio do citado
montante, sob o argumento de que, além de se tratarem de proventos decorrentes
568
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
de aposentadoria, a maior parte deles estaria depositado em caderneta de
poupança.
Decisão interlocutória: liberou da penhora on line tão somente o valor
referente aos proventos do mês.
Decisão unipessoal: negou seguimento ao agravo de instrumento
interposto pelo recorrente, nos termos da seguinte ementa:
Agravo de instrumento. Ação monitória. Mandado executivo. Deferimento de
pedido de penhora on line, por meio do sistema Bacen-Jud. Poupança vinculada
a conta corrente.
Possível o bloqueio de valores em conta corrente/poupança quando se trata de
reserva financeira - acúmulo de proventos -, por não incidir a impenhorabilidade
previsto no artigo 649, incisos IV e X, do Código de Processo Civil.
Negado seguimento ao agravo, em decisão monocrática (e-STJ fl. 110).
Acórdão: negou provimento ao agravo interposto pelo recorrente (e-STJ
fls. 127-131), mantendo a decisão unipessoal do relator.
Recurso especial: alega violação do art. 649, IV e X, do CPC.
Aponta a impenhorabilidade do valor bloqueado, pois seriam decorrentes
de proventos de aposentadoria, além de a maior parte dele estar depositado
em caderneta de poupança. Sustenta que, ainda que os valores estivessem
depositados em poupança vinculada à conta corrente, deve-se considerá-los
como valores depositados em poupança e com clara finalidade de realização
de economia. Aduz que, da análise dos extratos juntados, pode-se verificar que
não há movimentação financeira que exceda ao limite dos valores recebidos
mensalmente pelo recorrente a título de benefício de aposentadoria, até mesmo
porque o saldo médio sempre foi mantido.
Prévio juízo de admissibilidade: após o decurso de prazo para a
apresentação das contrarrazões (e-STJ fl. 151) sem que o recorrido se
manifestasse, o recurso especial foi admitido na origem (e-STJ fls. 153-155).
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Inicialmente, defiro o pedido
de assistência judiciária gratuita formulado pelo recorrente, nos termos do art.
4º da Lei n. 1.060/1950.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I – Da delimitação da controvérsia
Cinge-se a controvérsia a determinar se deve ser aplicada a regra da
impenhorabilidade prevista no art. 649, X, do CPC a valores depositados não
propriamente em caderneta de poupança, mas em poupança vinculada à conta
corrente do recorrente, bloqueados para satisfação de débito do qual era avalista.
II – Do reexame de fatos e provas (art. 649, IV, do CPC).
Inicialmente, quanto à alegada violação do art. 649, IV, do CPC, fazse mister ressaltar que o recorrente insurge-se contra o bloqueio de R$
8.971,48 (oito mil, novecentos e setenta e um reais e quarenta e oito centavos),
encontrados em sua conta corrente, sob um primeiro argumento de que tais
valores seriam decorrentes de proventos de aposentadoria.
Ocorre que o TJ-RS deixou expressamente consignado que “a quantia em
dinheiro bloqueada na conta corrente do executado não tem natureza alimentar,
tratando-se de reserva financeira, já que a verba utilizada para o sustento da
família limita-se ao valor percebido pela aposentadoria, como afirmado pelo
agravante, que, inclusive, veio a ser desbloqueado pelo juízo a quo” (e-STJ fl. 130).
Nesse diapasão, tem-se que alterar o decidido no acórdão recorrido no que
se refere ao caráter do montante encontrado em sua conta corrente, bem como
à procedência de tal valor - até mesmo porque o Tribunal de origem revelou
tratar-se meramente de reserva financeira, sem caráter alimentar -, importaria
na reanálise de fatos e provas dos autos, inviável a esta Corte, em virtude da
aplicabilidade da Súmula n. 7-STJ.
III- Dos contornos da ação
O que se analisará no presente processo é se, de fato, poupança vinculada à
conta corrente enseja ou não a aplicação do art. 649, X, do CPC, para fins de se
detectar se o TJ-RS afastou corretamente a tese da impenhorabilidade trazida
pelo recorrente.
O recorrente apresenta irresignação contra o bloqueio dos valores
encontrados em sua conta corrente e em poupança vinculada à sua conta
corrente, sob um segundo argumento de que a maior parte desses valores estaria
depositada em caderneta de poupança, devendo ser considerada impenhorável,
diante da aplicação do art. 649, X, do CPC.
570
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Sobreleva-se destacar que o Tribunal a quo, no entanto, afastou o
argumento de que os valores estariam depositados em caderneta de poupança,
considerando que o depósito estaria, em verdade, em conta corrente, já que
delineou expressamente que “não prospera a afirmação do agravante de que
o bloqueio foi efetuado em numerário depositado em conta poupança, pois o
extrato da fl. 64 é de uma conta corrente, ainda que possua “poupança fácil”
vinculada para obtenção de rendimentos daqueles valores que ficam depositados
em conta por mais de trinta dias, ademais, considerando-se que a baixa é
automática para cobrir os débitos” (e-STJ fl. 130).
Nesse ínterim, cumpre, então, investigar se o valor bloqueado está, de fato,
alcançado pela impenhorabilidade prevista no art. 649, X, do CPC, afastada, por
sua vez, pelo TJ-RJ.
Ressalte-se, por oportuno, que à análise do presente ponto não incide
a já mencionada Súmula n. 7-STJ, tendo em vista que o Tribunal de origem
tem como argumento fulcral para o afastamento da impenhorabilidade legal o
reconhecimento de que se trata, na hipótese, de conta corrente com poupança a
ela vinculada, o que significaria, portanto, mera reserva financeira e acúmulo de
proventos, hábil a afastar a aplicabilidade do citado dispositivo legal.
IV – Da possibilidade de penhora dos valores encontrados em nome do
recorrente
Voltando-se a execução por quantia certa à expropriação de bens do
devedor, a fim de satisfazer o direito do credor, tem-se, nesse contexto, que a regra
é que o executado responde pela dívida com todos os seus bens, salvo as exceções
expressamente ditadas em lei, valendo-se citar a elencada impenhorabilidade
trazida pelo art. 649 do já mencionado diploma.
Objeto de insurgência no presente recurso especial, o art. 649, X, do CPC
prescreve que são absolutamente impenhoráveis, até o limite de 40 (quarenta)
salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança.
Nesse ínterim, sendo exceção à regra, o artigo em questão não comporta
interpretação extensiva, devendo-se compreender por impenhoráveis tão
somente os valores depositados em caderneta de poupança, respeitado o limite
legal indicado.
Ressalte-se que, inevitavelmente, a caderneta de poupança diferenciase da conta poupança, já que naquela o cliente entrega quantia pecuniária a
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571
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
instituição financeira, que adquire sua propriedade e obriga-se a restituir os
valores depositados quando lhe for exigido, sendo geralmente remunerado
o período durante o qual a instituição financeira permanece com os valores
(COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 18. ed. rev. e atual.
2007, p. 450), ao passo que esta caracteriza-se pela remuneração mensal
conjugada com a possibilidade de emissão de ordens de pagamento por parte
do correntista (BITTAR, Danilo Silva. Repensando a impenhorabilidade da
conta-poupança. In: Repertório IOB de jurisprudência: civil, processual, penal
e comercial, n. 11, p. 395-389, 1. quinz. jun. 2012).
O recorrente defende que a maior parte dos valores bloqueados é
impenhorável, por estar depositado em caderneta de poupança.
No entanto, contrariamente ao que alega o recorrente, verifica-se que
o extrato acostado à fl. 65 (e-STJ) dos autos, de fato, trata-se de um extrato
de conta corrente, não obstante possua uma poupança – denominada de
“poupança fácil” -, vinculada para a obtenção de rendimentos de eventuais
valores depositados em conta por mais de trinta dias.
Desta feita, nota-se que, apesar da denominação contida no referido
extrato - “poupança fácil” -, trata-se de espécie de conta poupança, à qual a
instituição financeira remunera com juros e correção monetária os eventuais
valores que permanecerem depositados, sem uso pelo correntista, além de poder
utilizar esses valores para cobrir quaisquer débitos deste.
Logo, o que se verifica é que, com efeito, os valores não estão depositados
em caderneta de poupança, já que se trata, em realidade, de conta corrente com
poupança a ela vinculada ou integrada, conforme se depreende do extrato em
questão, acostado aos autos.
Salienta-se que a caderneta de poupança diferencia-se da poupança
vinculada à conta corrente, pois nesta os depósitos são automaticamente
direcionados a uma conta poupança e, sempre que houver a necessidade de
cobertura de débitos, os valores são automaticamente resgatados para a conta
corrente, representando uma natureza meramente circulatória.
Ora, a regra da impenhorabilidade visa a garantir ao executado que terá
meios de subsistência mesmo em caso de vir a ter seus bens penhorados para
satisfação da dívida exequenda.
Nesta seara, infere-se que a intenção do legislador foi a de preservar
as reservas do pequeno poupador, isto é, preservar os interesses daquele que
572
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
mantém depósitos em caderneta de poupança com o nítido propósito de
resguardar as economias pessoais ou para algum fim específico, e não aquelas
importâncias mantidas a produzir renda enquanto não empregadas.
Ora, são absolutamente impenhoráveis, respeitado o limite legal
estabelecido, tão somente a quantia depositada em caderneta de poupança, não
podendo valer-se o recorrente deste amparo legal para tentar afastar a penhora
de valores encontrados em seu nome, tendo em vista que tais valores estão
claramente depositados em poupança vinculada à sua conta corrente.
Por esses fundamentos, entende-se que o art. 649, X, do CPC não pode ser
interpretado extensivamente, sendo inviável atribuir a exegese que lhe pretende
emprestar o recorrente, pois tal atitude significaria afastar o bloqueio de valores
mantidos, em verdade, em conta corrente remunerada, e não propriamente em
caderneta de poupança.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Pedi vista dos autos para
refletir melhor sobre a matéria em debate.
Trata-se de recurso especial interposto por Clóvis Fernandes, com arrimo
no artigo 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão
proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim
ementado:
Agravo interno. Negativa de seguimento de agravo de instrumento. Decisão
monocrática mantida. Agravo interno desprovido (e-STJ fl. 128).
A decisão monocrática que precedeu a interposição do agravo regimental
recebeu o seguinte resumo:
Agravo de instrumento. Ação monitória. Mandado executivo. Deferimento de
pedido de penhora on line, por meio do sistema Bacen-Jud. Poupança vinculada
a conta corrente.
Possível o bloqueio de valores em conta corrente/poupança quando se trata de
reserva financeira - acúmulo de proventos -, por não incidir a impenhorabilidade
prevista no artigo 649, incisos IV e X, do Código de Processo Civil.
Negado seguimento ao agravo, em decisão monocrática (e-STJ fl. 110).
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
573
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em suas razões (e-STJ fls. 142-147), o recorrente aponta violação do
artigo 649, incisos IV e X, do Código de Processo Civil.
Sustenta, em síntese, que, a despeito de os valores estarem depositados em
conta poupança vinculada à conta corrente, e não propriamente em caderneta
de poupança, possuem clara finalidade de economia sendo todos os recursos
oriundos de proventos de aposentadoria.
Decorrido sem manifestação o prazo para as contrarrazões (e-STJ fl. 151),
e admitido o recurso na origem (e-STJ fls. 153-155), subiram os autos a esta
colenda Corte.
Levado o feito a julgamento pela egrégia Terceira Turma, em 23.10.2012,
após a prolação do voto da ilustre relatora, Ministra Nancy Andrighi, negando
provimento ao recurso especial, pedi vista antecipada dos autos e ora apresento
meu voto.
É o relatório.
Cinge-se a controvérsia a perquirir se a quantia inferior a quarenta salários
mínimos depositada em conta poupança vinculada a conta corrente pode ser
acobertada pela proteção legal do artigo 649, inciso X, do Código de Processo
Civil.
Como é cediço, a impenhorabilidade prevista no artigo 649, inciso IV, do
Código de Processo Civil objetiva por a salvo de quaisquer constrições os valores
percebidos a título de “vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações,
proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas
por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os
ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal (...)” ,
em virtude da natureza alimentar de referidas verbas.
A propósito:
Processo Civil. Cumprimento de sentença. Penhora de valores em conta
corrente. Proventos de funcionária pública. Natureza alimentar. Impossibilidade.
Art. 649, IV, do CPC.
1. É possível a penhora ‘on line’ em conta corrente do devedor, contanto que
ressalvados valores oriundos de depósitos com manifesto caráter alimentar.
2. É vedada a penhora das verbas de natureza alimentar apontadas no art. 649,
IV, do CPC, tais como os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações,
proventos de aposentadoria e pensões, entre outras.
3. Recurso especial provido.
574
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
(REsp n. 904.774-DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 18.10.2011, DJe 16.11.2011)
Por outro lado, ainda que percebidos a título salarial, se não consumidos
integralmente para o suprimento de necessidades básicas, referidos valores
perdem a natureza alimentar, tornando-se penhoráveis.
Nesse sentido:
Processo Civil. Mandado de segurança. Cabimento. Ato judicial. Execução.
Penhora. Conta-corrente. Vencimentos. Caráter alimentar. Perda.
(...)
- Em princípio é inadmissível a penhora de valores depositados em contacorrente destinada ao recebimento de salário ou aposentadoria por parte do
devedor. Entretanto, tendo o valor entrado na esfera de disponibilidade do
recorrente sem que tenha sido consumido integralmente para o suprimento de
necessidades básicas, vindo a compor uma reserva de capital, a verba perde seu
caráter alimentar, tornando-se penhorável.
Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento.
(RMS n. 25.397-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
14.10.2008, DJe 3.11.2008)
De outra parte, nos termos do inciso X, do mesmo dispositivo legal, com a
redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006, a quantia depositada em caderneta de
poupança é impenhorável até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis
(...)’
X - até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em
caderneta de poupança. (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006).
A doutrina especializada converge na conclusão de que o objetivo da
mencionada regra legal foi proteger o pequeno investidor detentor de poupança
modesta, atribuindo-lhe uma função de segurança alimentícia ou de previdência
pessoal e familiar (Nesse sentido: ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11.
ed. São Paulo: RT, 2007, p. 225; DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito
processual civil. v. 5. 4. ed. Salvador: Jus Podium, 2012, p. 575 e THEODORO
JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. 2. 47. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2012, p. 291).
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
575
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Já o valor de quarenta salários mínimos foi escolhido pelo legislador como
sendo aquele apto a assegurar um padrão mínimo de vida digna ao devedor
e sua família, assegurando-lhes bens indispensáveis à preservação do mínimo
existencial, incorporando o ideal de que a execução não pode servir para levar o
devedor à ruína.
Assegurou-se, portanto, ao devedor o direito de manter uma poupança,
até o valor de quarenta salários mínimos, para fazer frente aos imprevistos da
vida ligados à sua subsistência e preservação da sua dignidade (alimentação,
medicamentos, saúde, moradia, previdência, etc.).
É certo que, de “lege ferenda”, é bastante discutível o privilégio
concedido ao devedor ao qual é permitido o acúmulo de capital em reserva
financeira quando seria muito mais salutar o estímulo ao cumprimento de suas
obrigações.
A despeito disso, diante da regra como posta, não há como afastar a
impenhorabilidade, sendo que eventuais situações de má-fé devem ser
solucionadas pontualmente, como já decidiu esta Corte:
Processo Civil. Impenhorabilidade de depósitos em caderneta de poupança.
Existência de mais de uma aplicação. Extensão da impenhorabilidade a todas elas,
até o limite de 40 salários mínimos fixado em lei.
1. O objetivo do novo sistema de impenhorabilidade de depósito em caderneta
de poupança é, claramente, o de garantir um mínimo existencial ao devedor,
como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Se o legislador
estabeleceu um valor determinado como expressão desse mínimo existencial, a
proteção da impenhorabilidade deve atingir todo esse valor, independentemente
do número de contas-poupança mantidas pelo devedor.
2. Não se desconhecem as críticas, ‘de lege ferenda’, à postura tomada pelo
legislador, de proteger um devedor que, em lugar de pagar suas dívidas, acumula
capital em uma reserva financeira. Também não se desconsidera o fato de que tal
norma possivelmente incentivaria os devedores a, em lugar de pagar o que devem,
depositar o respectivo valor em caderneta de poupança para burlar o pagamento.
Todavia, situações específicas, em que reste demonstrada postura de má-fé, podem
comportar soluções também específicas, para coibição desse comportamento.
Ausente a demonstração de má-fé, a impenhorabilidade deve ser determinada.
3. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 1.231.123-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
2.8.2012, DJe 30.8.2012 - grifou-se)
576
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Nessa ordem de ideias, perde relevância o tipo de investimento eleito pelo
devedor para o fim preconizado pela norma ou o rótulo dado pela instituição
financeira, se caderneta de poupança, conta poupança integrada, conta poupança
vinculada, poupança fácil, poupex, etc.
Com efeito, ao longo dos anos, tem se notado uma diversificação muito
grande de investimentos postos à disposição, inclusive da população de renda
mais baixa. Exemplo disso são os investimentos oriundos de saldos de contas
vinculadas ao FGTS em ações da Petrobrás.
Tais vicissitudes foram abordadas com muita lucidez, em sede doutrinária,
por Clito Fornaciari Júnior:
(...)
Se o objetivo da regra é assegurar uma reserva financeira, não faz sentido
restringir-se a proteção só a essa particular modalidade de investimento, que,
outrora, era o máximo a que o investidor, pessoa física, se dispunha. Atualmente,
porém, pessoas físicas, mesmo de baixa renda, não se restringem a guardar
suas sobras em cadernetas de poupança, dada a facilidade de aplicações e a
popularização de fundos de investimento. Nesse sentido, é conhecida a grande
soma que guardam os fundos de ações da Vale do Rio Doce e da Petrobras, que
foram constituídos a partir de saques em contas do FGTS. Dessa forma, melhor
entender-se a expressão caderneta de poupança como simplesmente poupança,
abrigando, pois, toda e qualquer reserva financeira, realizada sob quaisquer das
múltiplas modalidades de investimento disponíveis no mercado financeiro. (...)
(Execução: penhora em conta corrente e de poupança. Revista Magister de Direito
Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 27, nov./dez. 2008, p. 46-47).
Demais disso, as instituições financeiras, na linha de fomento aos pequenos
depositantes e investidores, têm agregado facilidades às poupanças tais como o
resgate e o débito automáticos, depósitos programados, etc.
Tais características, que diferenciam este ou aquele serviço oferecido pelas
instituições financeiras, não desnaturam a natureza do investimento.
Assim, tal como a caderneta de poupança simples, a conta poupança
vinculada ou, no caso, a denominada “poupança fácil” do Banco Bradesco
é considerada investimento de baixo risco e baixo rendimento e, segundo
informações extraídas do site da instituição financeira da internet, com
remuneração idêntica (TR + 0,5 % ao mês creditados no aniversário da conta,
até 3.5.2012), ambas contando com a proteção do Fundo Garantidor de Crédito
(FGC), que protege o pequeno investidor, e isenção de imposto de renda.
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
577
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Daí porque tenho que deve ser considerada impenhorável a quantia
depositada na conta poupança do ora recorrente que, em consulta aos autos,
representa o valor histórico de R$ 5.022,84 (e-STJ fl. 65).
Ante o exposto, com a devida vênia, voto no sentido de dar parcial
provimento ao recurso especial nos termos da fundamentação acima.
É o voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Acompanhando a divergência): 1.- A
questão cinge-se em saber se a impenhorabilidade de valor de até 40 saláriosmínimos depositado em caderneta de poupança ligada a conta corrente também
se beneficia da impenhorabilidade determinada pelo art. 649, X, do Cód. de
Proc. Civil, com a redação da Lei n. 11.382, de 6.12.2006, que dispõe:
Art. 649.- São absolutamente impenhoráveis:
(...)
X - até o limite de quarenta (40) salários mínimos, a quantia depositada em
caderneta de poupança.
2.- Meu voto acompanha a divergência, no sentido da impenhorabilidade,
atento à teleologia da norma, que visou a proteger o pequeno poupador,
garantindo-lhe o necessário à subsistência básica e, ao mesmo tempo,
incentivando o pequeno investimento em poupança, ante a certeza da
impenhorabilidade, pela qual imunizado, o pequeno valor, às vicissitudes da vida
econômico-patrimonial.
Na dúvida, aliás, vem em prol da impenhorabilidade a regra hermenêutica
de que “favorabilia amplianda, odiosa restringenda”. A finalidade legal é de
favorecer o micro-poupador especificamente indicado pela lei, não de atingi-lo.
E a espécie de conta, ainda que etiologicamente diversa da caderneta de
poupança, sem dúvida que mais a ela se analogiza do que se aproxima de outra
espécie de depósito bancário, de forma que o pequeno depositante na espécie de
conta bem que pode crer-se depositante como o de caderneta de poupança.
3.- Questões como a de fraude cometida por intermédio de cadernetas
múltiplas encontrarão mecanismos de coerção, como, aliás, consta de precedente,
de que Relatora a E. Ministra Nancy Andrighi, lembrado pelo E. Ministro
Ricardo Cueva no voto divergente.
578
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
4.- Ressaltado o maior respeito pelos argumentos expendidos pela E.
Relatora, em trabalho jurisdicional cuidadoso, como de seu feitio, meu voto
acompanha a divergência.
RECURSO ESPECIAL N. 1.196.824-AL (2010/0104820-7)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Andrew Ross de Oliveira Mello
Advogado: Alberto Jorge Ferreira dos Santos
Recorrido: Selene Andrade de Almeida
Advogado: Gustavo Antonio Góis dos Santos
EMENTA
Recurso especial. Locação. Natureza jurídica. Direito pessoal.
Ação de despejo por prática de infração legal ou contratual e por
inadimplemento de aluguéis. Legitimidade ativa. Prova da propriedade.
Desnecessidade. Doutrina.
1. Tendo em vista a natureza pessoal da relação de locação, o
sujeito ativo da ação de despejo identifica-se com o locador, assim
definido no respectivo contrato de locação, podendo ou não coincidir
com a figura do proprietário.
2. A Lei n. 8.245/1991 (Lei de Locações) especifica as hipóteses
nas quais é exigida a prova da propriedade para a propositura da
ação de despejo. Nos demais casos, é desnecessária a condição de
proprietário para o seu ajuizamento.
3. Recurso especial conhecido e não provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
a Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
579
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy
Andrighi, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Brasília (DF), 19 de fevereiro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 26.2.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial
interposto por Andrew Ross de Oliveira Mello, com fundamento no art. 105,
inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo
Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas.
Noticiam os autos que, em 30.11.2006, Selene Andrade de Almeida propôs
ação de despejo contra o ora recorrente, objetivando a rescisão do contrato
de locação com a consequente retomada do imóvel e a cobrança dos aluguéis
atrasados e demais acessórios da locação, amparada na falta de pagamento dos
aluguéis e no descumprimento de cláusulas contratuais (e-STJ fls. 4-9).
O juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos iniciais (e-STJ fls.
201-203).
Irresignado, o réu interpôs recurso de apelação suscitando, preliminarmente,
a ilegitimidade da autora para integrar o polo ativo da lide e, no mérito, pugnado
pela improcedência dos pedidos (e-STJ fls. 208-213).
O Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas afastou a preliminar de
ilegitimidade ativa e deu parcial provimento à apelação somente quanto ao
percentual de incidência dos juros moratórios, em aresto assim ementado:
Apelação cível. Ação de despejo. A recorrida é possuidora do imóvel litigioso e,
segundo a lei de inquilinato, tem legitimidade para figurar no polo ativo da citada
demanda. Descabida a alegação de inexistência de prova que ateste a titularidade
do imóvel, uma vez que é prescindível a exigência de ser proprietário do bem e,
ademais, a cessão de posse foi registrada em cartório competente. A afirmação
formulada pelo apelante quanto à não veracidade do cabedal probatório coligido
aos autos pela parte adversa não restou provada. Julgado singular reformado
especificamente para aplicar a Taxa Selic quanto aos juros moratórios. Recurso
conhecido e parcialmente provido. Decisão unânime (e-STJ fl. 365).
580
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Nas razões recursais (e-STJ fls. 384-388), o recorrente aponta violação do
artigo 6º do Código de Processo Civil, sustentando, em síntese, que “a recorrida
não tem legitimidade para pleitear o direito de um imóvel que legalmente não
lhe pertence” (e-STJ fl. 388).
Com as contrarrazões (e-STJ fls. 500-504) e admitido o recurso na origem
(e-STJ fls. 514-516), subiram os autos a esta colenda Corte.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): Prequestionado,
ainda que implicitamente, o dispositivo legal apontado pelo recorrente como
malferido, e preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade recursal,
impõe-se o conhecimento do especial.
Cinge-se a controvérsia a perquirir se a legitimidade para propor ação de
despejo - com base nas hipóteses previstas nos incisos II e III do artigo 9º da
Lei n. 8.245/1991 (prática de infração legal/contratual e falta de pagamento de
aluguéis) -, pressupõe a prova da propriedade do imóvel pelo locador.
A teor do artigo 60 da Lei n. 8.245/1991, “Nas ações de despejo fundadas
no inciso IV do art. 9º, inciso IV do art. 47 e inciso II do art. 53, a petição inicial
deverá ser instruída com prova da propriedade do imóvel ou do compromisso
registrado”.
Já o § 2º do artigo 47 dispõe que “Nas hipóteses dos incisos III e IV,
o retomante deverá comprovar ser proprietário, promissário comprador ou
promissário cessionário, em caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel
e título registrado junto à matrícula do mesmo”.
Eis as hipóteses a que fazem referência os referidos dispositivos legais:
Art. 9º A locação também poderá ser desfeita:
(...)
IV - para a realização de reparações urgentes determinadas pelo Poder Público,
que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário
no imóvel ou, podendo, ele se recuse a consenti-las.
Art. 47. Quando ajustada verbalmente ou por escrito e como prazo inferior a
trinta meses, findo o prazo estabelecido, a locação prorroga - se automaticamente,
por prazo indeterminado, somente podendo ser retomado o imóvel:
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
581
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...)
III - se for pedido para uso próprio, de seu cônjuge ou companheiro, ou para
uso residencial de ascendente ou descendente que não disponha, assim como
seu cônjuge ou companheiro, de imóvel residencial próprio;
IV - se for pedido para demolição e edificação licenciada ou para a realização
de obras aprovadas pelo Poder Público, que aumentem a área construída, em, no
mínimo, vinte por cento ou, se o imóvel for destinado a exploração de hotel ou
pensão, em cinqüenta por cento;
Art. 53 - Nas locações de imóveis utilizados por hospitais, unidades sanitárias
oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino autorizados e fiscalizados
pelo Poder Público, bem como por entidades religiosas devidamente registradas,
o contrato somente poderá ser rescindido. (Redação dada pela Lei n. 9.256, de
9.1.1996)
(...)
II - se o proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, em
caráter irrevogável e imitido na posse, com título registrado, que haja quitado o
preço da promessa ou que, não o tendo feito, seja autorizado pelo proprietário,
pedir o imóvel para demolição, edificação, licenciada ou reforma que venha a
resultar em aumento mínimo de cinqüenta por cento da área útil.
Da leitura dos dispositivos acima transcritos, extrai-se que, nas hipóteses
elencadas, exigiu o legislador, por exceção, a prova da condição de proprietário
para o ajuizamento da ação de despejo deixando de estabelecer exigência
semelhante para as demais situações embasadoras da ação.
Assim é porque, tendo em vista a natureza pessoal da relação de locação,
o sujeito ativo da ação de despejo identifica-se com o locador, assim definido
no respectivo contrato de locação, podendo ou não coincidir com a figura do
proprietário.
A doutrina especializada de Sylvio Capanema de Souza corrobora esse
entendimento:
(...)
Legitimado, ordinariamente, para ocupar o pólo ativo da relação processual é
o locador, ou seja, aquele que cedeu a posse direta do imóvel ao locatário e que,
por conseqüência lógica, pode recuperá-la.
Não há que se confundir a figura do locador com a do proprietário, embora
seja muito freqüente que ambas se fundam na mesma pessoa, o que, entretanto,
não é obrigatório.
582
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Constituindo a locação, como se sabe, mera cessão onerosa da posse de
coisa infungível, não se transfere ao locatário o domínio, tal como acontece, por
exemplo, na compra e venda, na permuta ou na doação.
Daí se infere que está autorizado a locar não só o proprietário da coisa, que
dela pode dispor, como o mero possuidor, desde que esteja este autorizado a
ceder a posse.
Para assestar em face do locatário sua pretensão desalijatória, precisa o
autor demonstrar, portanto, que é o locador, ou que esteja a ele equiparado,
dispensando-se, na maioria das hipóteses, a prova da propriedade.
É verdade que em algumas situações, como já vimos e que mais a frente
melhor examinaremos, exige a lei que o autor também comprove o domínio,
valendo citar, como exemplo, entre outros, a retomada para uso próprio do
locador, ou de seu ascendente ou descendente.
A prova da condição de locador far-se-á por qualquer dos meios admitidos
em direito, inclusive por testemunhas, se a locação for oralmente contratada (Da
locação do imóvel urbano: direito e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.
399).
Ainda sob a égide da antiga lei do inquilinato (Lei n. 6.649/1979), já
haviam se pronunciado Rogério Lauria Tucci e Álvaro Villaça de Azevedo no
sentido de que
(...)
Propiciada ao locador, poderá a ação de despejo ser ajuizada, tanto pelo
proprietário do imóvel locado, como por qualquer pessoa que, em posição à
dele equiparada pela legislação em vigor, especialmente pela Lei do Inquilinato,
satisfizer as condições tidas como indispensáveis, a saber: o promitente
comprador ou promitente cessionário, em caráter irrevogável, e imitido na posse,
com título registrado; o possuidor, o usufrutuário, o enfiteuta, o condômino
que administre o imóvel, sem oposição dos demais (cf. CC, art. 640); o marido,
quando se trate de bem pertencente à esposa, por ele administrado (cf. art. 289,
inc. III, também do CC); o administrador do imóvel, em virtude de representação
ou de função judicial, como o tutor, o curador e o depositário; o mandatário,
com poderes de administração; o credor anticrético e o sublocador (Tratado da
locação predial urbana. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 370-371).
No caso dos autos, a pretensão inicial de despejo veio embasada nos incisos
II e III do artigo 9º da Lei n. 8.245/1991 (prática de infração legal/contratual e
falta de pagamento de aluguéis - e-STJ fls. 7-8) - casos em que a legislação de
regência, como visto, não exige a prova da propriedade do imóvel pelo locador.
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
583
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Compulsando os autos, verifica-se, outrossim, que a autora se desincumbiu
satisfatoriamente do ônus de demonstrar que figurou no contrato de locação na
posição de locadora (e-STJ fls. 97-100).
Além disso, ambas as instâncias de cognição plena assentaram a sua
condição de possuidora, instrumentalizada por meio de escritura pública de
cessão de posse, devidamente registrada no Cartório competente (e-STJ fls. 202
e 373-374).
Nesse contexto, não está mesmo a merecer nenhum reparo o acórdão
recorrido que afastou a arguição de ilegitimidade ativa formulada pela parte
ré.
Esta Corte já teve a oportunidade de se manifestar em caso análogo, em
que se controvertia a legitimidade ativa de promitente comprador para propor
ação de despejo por inadimplemento de aluguéis, tendo assentado naquela
ocasião que “a priori, a inexistência de prova da propriedade do imóvel ou do
compromisso registrado não enseja a ilegitimidade do promitente comprador
em propor o despejo da locatária que não adimpliu os aluguéis” (AgRg nos
EDcl nos EDcl no Ag n. 704.933-SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis
Moura, Sexta Turma, julgado em 24.8.2009, DJe 14.9.2009).
No mesmo rumo:
Direito Civil. Processual Civil. Recurso especial. Locação. Execução.
Legitimidade ativa ad causam do locador. Prova da propriedade. Desnecessidade.
Fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Ônus da prova do
réu. Contrato de locação prorrogado por tempo indeterminado. Título executivo
extrajudicial. Precedentes. Liquidez e certeza. Exame. Impossibilidade. Súmula n.
7-STJ. Recurso especial conhecido e improvido.
1. O contrato de locação gera uma relação jurídica entre locador e locatário, razão
pela qual, em princípio, é dispensável a prova da propriedade do imóvel locado.
2. Tendo o recorrido, na espécie, demonstrado sua condição de locador
mediante a apresentação do respectivo contrato de locação, assinado, inclusive,
pelos recorrentes, na condição de fiadores, competiria a estes últimos comprovar
a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor,
conforme disposto no art. 333, II, do CPC.
3. Constitui título executivo judicial o contrato de locação escrito, devidamente
assinado pelos contratantes, ainda que o contrato tenha se prorrogado por
tempo indeterminado. Inteligência do art. 585, IV, do CPC. Precedentes.
584
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
4. O exame da liquidez e certeza do crédito pleiteado demandaria o
revolvimento de matéria fático-probatória, impossível pela via especial, por atrair
o óbice da Súmula n. 7-STJ.
5. Recurso especial conhecido e improvido.
(REsp n. 953.150-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado
em 7.10.2008, DJe 1º.12.2008 - grifou-se)
Por fim, ainda vale referir o AgRg no AgRg no Ag n. 610.607-MG,
Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado pela Sexta Turma,
em 25.6.2009, com especial destaque ao enfoque dado ao caso sob a ótica do
princípio da boa-fé objetiva cuja função de relevo “é impedir que o contratante
adote comportamento que contrarie o conteúdo de manifestação anterior,
cuja seriedade o outro pactuante confiou” de modo que “Celebrado contrato
de locação de imóvel objeto de usufruto, fere a boa-fé objetiva a atitude da
locatária que, após exercer a posse direta do imóvel por mais de dois anos, alega
que o locador, por ser o nú-proprietário do bem, não detém legitimidade para
promover a execução dos aluguéis não adimplidos”.
Ante o exposto, conheço do recurso especial, mas nego-lhe provimento.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.286.144-MG (2011/0242465-7)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais COHAB-MG
Advogado: Ronaldo Tadeu Bandeira de Mattos e outro(s)
Recorrido: Maria Madalena Batista e outro
Advogado: Regina Maris Freitas dos Santos e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito Civil. Resolução de contrato. Promessa
de compra e venda de imóvel. Determinação de restituição, pelo
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
585
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
promitente vendedor, das parcelas do preço pagas pelos promitentes
compradores. Desnecessidade de pedido expresso dos réus.
Concretização da eficácia restitutória da resolução. Inocorrência de
decisão extra petia.
1. Decretada a resolução do contrato de promessa de compra e
venda, deve o juiz, ainda que não tenha sido expressamente provocado
pela parte interessada, determinar a restituição, pelo promitente
vendedor, das parcelas do preço pagas pelos promitentes compradores.
2. Concretização da eficácia restitutória da resolução, aplicável
em benefício das duas partes do contrato, como consequência natural
da desconstituição do vínculo contratual.
3. Inocorrência de decisão extra petita.
4. Reafirmação da jurisprudência da Terceira e da Quarta Turma
deste STJ acerca do tema.
5. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça,por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do
Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy
Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 7 de março de 2013 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 1º.4.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Companhia de Habitação
do Estado de Minas Gerais - COHAB-MG interpôs recurso especial contra o
acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em sede
de embargos infringentes.
586
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
A recorrente ajuizou ação de resolução de compra e venda e de reintegração
de posse em face do casal recorrido.
O juízo de primeiro grau julgou integralmente procedentes os pedidos.
Interposta apelação pelos recorridos, o Tribunal de origem, por maioria,
deu parcial provimento à apelação.
Embora tenha confirmado a resolução do contrato e a reintegração da
posse do imóvel, o Tribunal, de ofício, determinou que a recorrente restituísse
50% das parcelas do preço pagas pelos recorridos, como forma de evitar o
enriquecimento sem causa.
O julgamento da apelação foi confirmado em sede de embargos
infringentes, por maioria de votos, da seguinte forma:
Embargos infringentes. COHAB-MG. Rescisão contratual c/c reintegração de
posse. Inadimplemento. Procedência dos pedidos na instância primeva. Sentença
reformada, em grau de recurso. Determinação de restituição de 50% dos valores
pagos pelos promitentes compradores, devidamente atualizados. Nulidade
do julgamento. Vício ultra petita. Inocorrência. Princípio de direito que veda o
enriquecimento sem causa. Embargos rejeitados.
1. Como se sabe, os artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil traçam os
limites da prestação da tutela jurisdicional final, sendo que, em razão do princípio
da correlação, a sentença há de corresponder ao pedido constante da petição
inicial.
2. De uma análise acurada dos autos, verifica-se que confrontado a pretensão
exposta na peça vestibular, o ato sentencial que dirimiu a lide e o correspondente
acórdão que reformou, em parte, o r. decisum, concluiu-se inexistir a equivocada
nulidade suscitada, consistente em vício ultra petita, porquanto esta egrégia
Câmara ao determinar, por maioria, a devolução de 50% (cinquenta por cento)
das parcelas pagas pela embargante, diante da rescisão contratual, limitou-se a
aplicar princípio de Direito que veda o enriquecimento sem causa.
Nas suas razões de recurso especial, a recorrente sustentou, em síntese,
a violação dos arts. 128, 459 e 460 do CPC, além de dissídio jurisprudencial.
Afirmou que a decisão contida no acórdão recorrido seria ultra petita, pois a
determinação de restituição das parcelas exigiria a iniciativa da parte.
Não foram apresentadas contrarrazões.
O recurso especial foi admitido pelo Tribunal de origem.
É o relatório.
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
587
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas,
a controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte pode ser resumida no
seguinte questionamento:
Decretada a resolução do contrato de promessa de compra e venda, a
determinação de restituição aos promitentes compradores das parcelas do preço
pagas ao promitente vendedor pode ser determinada de ofício pelo juízo ou
exige a iniciativa da parte mediante pedido expresso formulado na contestação
ou reconvenção?
Inicialmente, não conheço da alegação de dissídio jurisprudencial, pois não
realizado o devido cotejo analítico.
A resolução, própria dos contratos bilaterais, consiste basicamente na
extinção do contrato pelo inadimplemento definitivo do devedor.
Pelo aspecto subjetivo, a resolução constitui, como destaca Araken de Assis
(Resolução do contrato por inadimplemento. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora
RT, 2004), direito formativo extintivo, ou direito potestativo, ocasionando, com
o seu exercício, a desconstituição da relação obrigacional e a liberação de credor
e devedor de suas obrigações (eficácia liberatória).
Predomina, pois, na resolução, a desconstituição do contrato e,
consequentemente, da relação obrigacional dele nascida.
Nada obstante, resulta também da resolução do contrato o surgimento
de uma nova relação obrigacional, chamada relação de liquidação, pela qual
tanto o credor como o devedor devem restituir as prestações recebidas durante a
execução do contrato (eficácia restitutória) e pela qual o devedor culpado pelo
inadimplemento deve indenizar o credor.
A respeito da eficácia restitutória resultante da relação de liquidação, a
seguinte lição do eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior, exposta em
sede doutrinária (Extinção dos contratos por incumprimento do devedor [Resolução].
Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 254):
Resolvida a relação obrigacional, surge a relação de liquidação, na qual
serão tratados os direitos do credor e do devedor a restituição das prestações
já efetivadas e o direito do credor à indenização por perdas e danos (art. 1.092,
parágrafo único, do Código Civil).
PONTES DE MIRANDA atribui a origem dessa relação exclusivamente à
resolução, que desconstituiu os efeitos do negócio jurídico, e não ao fato do
588
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
inadimplemento do contrato, que está extinto, nem ao enriquecimento sem
causa, pois o devedor deve restituir tudo, não só o enriquecimento injustificado.
Mais aceitável, porém, na perspectiva dinâmica da obrigação, considerarse, como LARENZ, que a relação obrigacional não fica totalmente anulada,
persistindo dela os deveres de diligência e de indenização de danos.
Os direitos e deveres que integram a relação de liquidação tem sua causa
imediata na resolução, mas esta é apenas uma fase do desdobramento da relação
obrigacional.
A ef icácia restitutória ou a obrigação de restituir as prestações recebidas –
atribuída tanto ao credor como ao devedor – constitui, portanto, consequência
natural e indissociável da resolução do contrato, ao lado da eficácia liberatória e da
obrigação do devedor de indenizar as perdas e danos comprovadamente sofridas
pelo credor.
Assim, se o credor, na petição inicial, postula a resolução do contrato, não
há a necessidade de que o devedor, na contestação ou em reconvenção, requeira
a devolução das prestações entregues ao credor, a qual pode e deve ser determinada de
ofício pelo juiz como decorrência lógica da decretação de resolução do contrato.
Importante ressaltar ainda que o credor, da mesma forma e em decorrência
do mesmo pedido de resolução, também possui o direito ao recebimento de
eventuais prestações entregues ao devedor, o que, na ação de resolução do
contrato de compra e venda, se manifesta com a sua reintegração na posse do
imóvel.
Como se pode ver, a reciprocidade existente nos contratos bilaterais se
mantém mesmo depois da sua resolução, na chamada relação de liquidação, de
modo que a obrigação de restituir do credor (devolução das parcelas do preço) e
a obrigação de restituir do devedor (devolução da coisa) são causa uma da outra.
A respeito da controvérsia, a jurisprudência da Terceira e da Quarta Turma
deste STJ sempre foi no sentido da desnecessidade, na resolução da compra e
venda, da iniciativa da parte ré para que lhe seja assegurada a devolução das
parcelas do preço, embora os precedentes encontrados não sejam recentes, in
verbis:
Promessa de compra e venda. Rescisão. Devolução do que foi pago.
Reconhecido que o promitente comprador tem direito a devolução do que foi
pago, posto que negado o pleito do autor, no sentido da perda das importâncias
correspondentes, as partes haverão de ser repostas no estado anterior.
Possibilidade de determinar-se a devolução, sem necessidade de reconvenção.
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
589
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(REsp n. 49.396-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em
16.5.1995, DJ 12.6.1995, p. 17.624)
Processo Civil. Rescisão de contrato de promessa de compra e venda proposta pelo
vendedor. Devolução de parte das parcelas do preço. Desnecessidade de reconvenção.
Na ação de rescisão de contrato de promessa de compra e venda, proposta pelo
vendedor contra o comprador inadimplente, o juiz pode ordenar a devolução
de parte das parcelas do preço independentemente de reconvenção. Recurso
especial conhecido e provido. (REsp n. 97.538-SP, Rel. Ministro Ari Pargendler,
Terceira Turma, julgado em 10.4.2000, DJ 8.5.2000, p. 89)
Promessa de compra e venda. Parcelamento do solo. Resolução. Restituição.
CDC. Reconvenção.
- O CDC se aplica à relação de consumo estabelecida entre a empresa que
comercializa imóveis loteados urbanos e o promissário comprador, operação que
é regulada, no que tem de específico, pela legislação própria (Lei n. 6.766/1979).
- Resolvido o negócio, cabe a restituição das parcelas mensais pagas pelos
promissários compradores, que já perderam o sinal em favor da promitente
vendedora.
- A decisão sobre a restituição das partes à situação anterior integra resolução
judicial do contrato e deve ser objeto de decisão do juiz ainda que não tenha sido
requerido pela parte na contestação ou em reconvenção.
- Recurso não conhecido. (REsp n. 300.721-SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de
Aguiar, Quarta Turma, julgado em 4.9.2001, DJ 29.10.2001, p. 210)
Civil e Processual. Promessa de compra e venda de lote. Pagamento em
prestações. Inadimplemento dos réus. Ação de rescisão movida pela vendedora.
Desfazimento da relação. Devolução das parcelas pagas com retenção de
determinado percentual para fazer frente a despesas da credora. Contestação
omissa a respeito. Preclusão inexistente. Conseqüência inerente à rescisão. CPC,
art. 300. Ofensa não identificada.
I. Em havendo rescisão do compromisso de compra e venda, o desfazimento
da relação contratual implica, automaticamente, como decorrência lógica e
necessária, na restituição das prestações pagas, reservada uma parte, que fica
deduzida, em favor da alienante, para ressarcir-se de despesas administrativas,
sendo desnecessário que tal devolução conste nem do pedido exordial (quando
o autor é o vendedor), nem da contestação (quando o autor é o comprador), por
inerente à natureza da lide.
II. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 500.038-SP, Rel. Ministro Aldir
Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 22.4.2003, DJ 25.8.2003, p. 322)
590
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No caso concreto, ao determinar que a recorrente restituísse as parcelas
do preço entregues pelos recorridos, os quais já possuíam, desde a sentença, a
obrigação de restituir o imóvel em cuja posse se encontravam, o Tribunal de
origem nada mais fez do que concretizar a eficácia restitutória da resolução do
contrato de promessa de compra e venda decretada pela sentença.
Consequentemente, não houve julgamento ultra petita, não se
consubstanciando qualquer violação dos arts. 128, 459 e 460 do CPC.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.288.008-MG (2011/0248142-9)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Antonio Rodrigues Cordeiro
Advogado: Heloisa Helena Costa Nascimento
Recorrido: Primo Schincariol Industria de Cervejas e Refrigerantes S/A
Advogado: Renata Carvalho Lopes e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade
civil. Acidente de consumo. Explosão de garrafa perfurando o olho
esquerdo do consumidor. Nexo causal. Defeito do produto. Ônus da
prova. Procedência do pedido. Restabelecimento da sentença. Recurso
especial provido.
1 - Comerciante atingido em seu olho esquerdo pelos estilhaços
de uma garrafa de cerveja, que estourou em suas mãos quando a
colocava em um freezer, causando graves lesões.
2 - Enquadramento do comerciante, que é vítima de um acidente
de consumo, no conceito ampliado de consumidor estabelecido pela
regra do art. 17 do CDC (bystander).
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
591
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3 - Reconhecimento do nexo causal entre as lesões sofridas pelo
consumidor e o estouro da garrafa de cerveja.
4 - Ônus da prova da inexistência de defeito do produto atribuído
pelo legislador ao fabricante.
5 - Caracterização da violação à regra do inciso II do § 3º do art.
12 do CDC.
6 - Recurso especial provido, julgando-se procedente a demanda
nos termos da sentença de primeiro grau.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça,
Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro João Otávio de
Noronha,por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do
voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas
Cueva, Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha (voto-vista) e Sidnei Beneti
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 4 de abril de 2013 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 11.4.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Antonio Rodrigues Cordeiro
interpôs recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais.
O recorrente ajuizou ação indenizatória em face de Primo Schincariol
Industria de Cervejas e Refrigerantes S.A. em razão de acidente de consumo,
decorrente de explosão de garrafa de cerveja que lhe causou lesão permanente
no olho esquerdo. Postulou indenização pelos danos materiais e morais sofridos.
Em sua inicial, a parte recorrente relatou que, 6 de setembro de 2002,
no dia seguinte a entrega dos produtos, ao retirar as garrafas de cerveja de um
engradado para adicioná-las em um freezer, uma garrafa estourou, causando592
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
lhe a dilaceração da pálpebra inferior esquerda, bem como do olho esquerdo,
ocasionando-lhe a perda do conteúdo ocular com a colocação de prótese.
Postulou indenização pelos danos materiais e morais sofridos decorrentes do
acidente de consumo.
Citada, a empresa recorrida apresentou contestação alegando a inexistência
de relação de consumo entre as partes, a inexistência de responsabilidade
objetiva e a consequente inaplicabilidade do Código de Defesa Consumidor,
requerendo, ainda, a aplicação da pena de multa de litigância de má-fé.
Durante a instrução, foram realizadas três perícias técnicas.
As duas primeiras foram perícia médicas para exame das lesões sofridas
pelo autor.
A primeira delas constatou a debilidade e deformidade permanente do
sentido da visão, confirmando a ausência da íris e pupila do globo ocular
esquerdo, bem como atestando que o autor foi vítima de acidente com garrafa
de cerveja no olho esquerdo, em 2002, tendo sido submetido à cirurgia, tendo
evoluido com atrofia do globo ocular esquerdo e visão zero neste olho, sendo
irreversível este quadro (e-STJ Fls. 326-327).
A segunda perícia médica, no mesmo sentido da primeira, confirmou
que o autor é portador de prótese ocular no olho esquerdo; portador de
evisceração (perda total) do globo ocular esquerdo; que a lesão é passível de
ter sido produzida por instrumento perfuro-cortante; que estilhaços de vidro
podem provocar a laceração da pele e outros tecidos como globo ocular; que a
capacidade visual do autor está em 50%, reduzindo sua capacidade laboral (visão
monocular), em caráter irreversível (e-STJ Fls. 352-353).
A terceira perícia técnica foi realizada junto à linha de produção da
empresa demandada, concluindo que o processo de produção da Schincariol na
linha inspecionada é eficiente e segura para processar a eliminação de garrafas
de vidro que apresente defeito potencialmente crítico que possam comprometer
a resistência necessária das garrafas que são enviados aos fornecedores. (e-STJ
Fls. 358-397).
Encerrada a instrução, sobreveio sentença que, aplicando o Código
de Defesa do Consumidor, por considerar o autor consumidor equiparado,
vítima do evento danoso, com base no artigo 17 deste diploma legal, julgou
parcialmente procedentes os seus pedidos, condenando a empresa demandada a
indenizá-lo em:
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
593
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(i) R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) pelos danos morais sofridos;
(ii) R$ 25.000,00 (vinte cinco mil reais) pelos danos estéticos;
(iii) R$ 394,50 (trezentos e noventa e quatro reais e cinquenta centavos) pelos
danos materiais, conforme recibos;
(iv) um salário mínimo por mês, desde a data do acidente até a data prevista
para que o autor complete 70 (setenta) anos de idade, a título de pensão
correspondente à importância da redução da capacidade para o trabalho,
considerando que, embora a lesão seja definitiva, a parte autora teria outros
meios de sobrevivência;
(v) custas e honorários de sucumbência arbitrados em 15% sobre o valor total
da condenação.
Irresignadas, as partes apelaram ao Tribunal a quo postulando a reforma da
sentença.
Em suas razões, a empresa demandada aduziu que a prova realizada nos
autos evidenciou a ausência de falhas na linha de produção da cerveja fabricada
pela ré, atestando a segurança do produto que, segundo alega, não explode sem a
provocação de atrito e choque. Alegou ainda que a prova documental produzida
evidencia que a recorrente emprega tecnologia de ponta na fabricação de seus
produtos. Sustentou a falta de credibilidade da prova testemunhal carreada aos
autos. Afirmou que a incidência da responsabilidade objetiva não isenta a parte
autora de provar que os vidros que feriram seu olho de fato teriam advindo do
estouro da garrafa de cerveja. Assinalou ademais que o autor não é consumidor,
mas sim comerciante, estando como tal, do mesmo modo que o fabricante,
sujeito ao risco do negócio. Em outro vertente, assinalou que a perícia médica
demonstrou que o acidente que afetou o globo ocular do autor não o torna
inapto para o trabalho.
Por outro lado, em razões do apelo adesivo, a parte autora postulou
majoração do quantum indenizatório.
O Tribunal de origem, dando provimento à apelação da empresa
demandada, julgou prejudicado o apelo adesivo do autor, em acórdão ementado
nos seguintes termos:
Responsabilidade civil. Acidente por fato do produto. Nexo de causalidade
entre o defeito e o dano experimentado. Demonstração. Necessidade. - Para
que reste configurada a responsabilidade por fato do produto é imprescindível
a demonstração do nexo de causalidade entre o defeito da coisa e o dano
experimentado.
594
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Em suas razões, no recurso especial, a parte recorrente alegou que o
acórdão recorrido violou os artigos 4º, I, 6º, VIII, 12 e 14 do Código de Defesa
do Consumidor; 927 e 931 do Código Civil, 333, I e 131 do Código de
Processo Civil, além de apontar dissídio jurisprudencial. Sustentou que os fatos
da causa, interpretados em consonância com o princípio da vulnerabilidade
do consumidor, evidenciam a responsabilidade objetiva da empresa recorrida.
Sustentou a necessidade de inversão do ônus da prova, nos termos da legislação
consumerista, questionando a interpretação conferida às provas coletadas no
processo levado a efeito pela Câmara julgadora, insistindo no seu direito à
indenização pleiteada. Alegou a ocorrência de dissídio jurisprudencial acerca do
tema. Pediu o provimento do recurso especial, inclusive com a elevação do valor
da indenização por danos morais.
Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas.
Merece provimento o presente recurso especial.
A polêmica central do processo situa-se em torno da responsabilidade civil
da empresa fabricante de cerveja em razão de acidente de consumo, decorrente
de explosão de uma garrafa de cerveja que causou lesão grave e permanente no
olho esquerdo do autor, ora recorrente.
Inicialmente, deve-se reconhecer a plena aplicabilidade do microssistema
normativo do consumidor, instituído pela Lei n. 8.078/1990, ao caso.
A circunstância de se tratar de comerciante, que se lesionou com o estouro
da garrafa de cerveja no momento em que a manuseava em seu estabelecimento
comercial, não afasta a condição de consumidor, em face da regra de extensão do
art. 17 do CDC, que ampliou o conceito básico de consumidor do art. 2º da Lei
n. 8.078/1990.
Efetivamente, a regra do art. 17 do CDC é um dos momentos em que houve
ampliação do conceito básico de consumidor para efeito da responsabilidade
pelo fato do produto e pelo fato do serviço, equiparando “aos consumidores
todas as vítimas do evento”:
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
595
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Art. 17 - Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as
vítimas do evento.
Assim, toda e qualquer vítima de acidente de consumo equipara-se ao
consumidor para efeito da proteção conferida pelo CDC, abrangendo os
chamados bystanders, na terminologia da common law, que são os terceiros
que, embora não estejam diretamente envolvidos na relação de consumo, são
atingidos pelo aparecimento de um defeito no produto ou no serviço.
No conceito de bystander estão abrangidos tanto o usuário direto do
bem adquirido por outro consumidor, como a empregada doméstica que está
trocando o botijão de gás defeituoso que explode em suas mãos, quanto o
espectador ou o transeunte anônimo que se encontra nas imediações do local
do evento no momento que se manifesta o defeito, como é o caso clássico
de acidente de consumo de um automóvel desgovernado pelo estouro de um
pneu defeituoso que vai atingir um pedestre na calçada. Enfim, são as vítimas
ocasionais ou anônimas de um acidente de consumo.
A análise rigorosa das cadeias contratuais de consumo, desde a fabricação
do produto, passando pela rede de distribuição, até chegar ao consumidor final,
mostra que, freqüentemente, as vítimas ocasionais de acidentes de consumo não
têm qualquer tipo de vínculo efetivo com o fabricante.
No rigor da regra restritiva do artigo 2º, caput, do CDC, o bystander ficaria
fora da proteção conferida pelo legislador, pois não é destinatário final do bem
ou serviço que lhe causou o dano.
Essas vítimas, porém, são abrangidas por força da regra de extensão do
art. 17 do CDC, tendo, inclusive, legitimidade para acionar diretamente o
fornecedor responsável pelos danos sofridos.
Uma questão relevante que tem sido enfrentada pela doutrina refere-se à
extensão da responsabilidade do fornecedor em relação à vítima profissional,
que não se enquadra no conceito básico de consumidor. As pessoas jurídicas,
assim como os intermediários da cadeia de consumo, incluindo comerciantes,
atacadistas, varejistas, transportadores, também podem ser vítimas de acidente
de consumo. Normalmente, essas pessoas não seriam consideradas consumidoras
para efeito de incidência do CDC, salvo quando destinatárias finais do produto
ou do serviço (art. 2o do CDC).
Todavia, em face da regra do artigo 17 do CDC, a pessoa jurídica e o
intermediário, ainda que não sejam destinatários finais, ficam equiparados ao
consumidor, caso sejam vítimas de um acidente de consumo.
596
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
O Ministro Herman Benjamin, em seus Comentários ao código de proteção
do consumidor, fornece exatamente o exemplo do dono de um supermercado que,
ao inspecionar sua seção de enlatados, sofre ferimentos pela explosão de uma
lata com defeito de fabricação, reconhecendo que ele pode pleitear, do mesmo
modo que o consumidor que está a seu lado, reparação pelos danos sofridos
em decorrência do produto defeituoso (BENJAMIN, Antônio Hermen de
Vasconcelos. Comentários ao código de proteção do consumidor. São Paulo: Saraiva,
1991. p. 81).
Na mesma linha, James Marins fornece outro exemplo elucidativo de
bystander, mencionando o caso de um comerciante de defensivos agrícolas,
que se vê seriamente intoxicado pelo simples ato de estocagem em decorrência
de defeito no acondicionamento do produto (defeito de produção). Embora
não seja consumidor, pode socorrer-se da proteção conferida pelo art. 17 do
CDC (MARINS, James. Responsabilidade pelo fato do produto: os acidentes de
consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993. p. 71).
Na jurisprudência desta Corte, localizei os seguintes precedentes:
Agravo regimental. Recurso especial. Procuração. Desnecessidade de
autenticação. Afastamento da Súmula n. 115-STJ. Civil e Processo Civil.
Indenização. Danos morais e materiais. Relação de consumo. Prescrição
quinquenal. Responsabilidade solidária. Legitimidade passiva ad causam.
Divergência jurisprudencial. Ausência de cotejo analítico. Inépcia da inicial.
Inexistência. Manutenção da multa. Art. 538, parágrafo único, do CPC.
1. Em se tratando do agravo de instrumento disciplinado nos artigos 522 e
seguintes do CPC, é dispensável a autenticação das peças que o instruem, tendo
em vista inexistir previsão legal que ampare tal formalismo.
2. Nos termos do que dispõe o art. 17 da Lei n. 8.078/1990, equipara-se à qualidade
de consumidor para os efeitos legais, àquele que, embora não tenha participado
diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do evento danoso
decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco
à sua segurança física e psíquica.
3. Caracterizada a relação de consumo, aplica-se ao caso em apreço o prazo de
prescrição de 5 (cinco) anos estabelecido no art. 27 da Lei n. 8.078/1990.
4. Respondem solidariamente todos aqueles que contribuíram para a causa do
dano.
5. Considerando que a petição inicial da ação de indenização por danos
materiais e morais forneceu de modo suficiente os elementos necessários ao
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
estabelecimento da relação jurídico-litigiosa, apresentando os fatos que
permitem a identificação da causa de pedir, do pedido e do embasamento legal,
correto o acórdão recorrido que afastou a inépcia da exordial.
6. Em razão do manifesto caráter protelatório dos embargos de declaração, a
multa aplicada pela instância a quo deve ser mantida.
7. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 1.000.329-SC, Rel. Ministro
João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.8.2010, DJe 19.8.2010)
Responsabilidade civil e Direito do Consumidor. Recurso especial. Alegação
de omissão do julgado. Art. 535 do CPC. Inexistência. Espetáculo circense. Morte
de criança em decorrência de ataque de leões. Circo instalado em área utilizada
como estacionamento de shopping center. Legitimidade passiva das locadoras.
Desenvolvimento de atividade de entretenimento com o fim de atrair um
maior número de consumidores. Responsabilidade. Defeito do serviço (vício de
qualidade por insegurança). Dano moral. Valor exorbitante. Redução. Multa. Art.
538 do CPC. Afastamento.
1- O órgão julgador deve enfrentar as questões relevantes para a solução do
litígio, afigurando-se dispensável o exame de todas as alegações e fundamentos
expendidos pelas partes. Precedentes.
2- Está presente a legitimidade passiva das litisconsortes, pois o acórdão
recorrido afirmou que o circo foi apenas mais um serviço que o condomínio do
shopping, juntamente com as sociedades empresárias rés, integrantes de um
mesmo grupo societário, colocaram à disposição daqueles que frequentam o
local, com o único objetivo de angariar clientes potencialmente consumidores e
elevar os lucros. Incidência da Súmula n. 7-STJ.
3- No caso em julgamento - trágico acidente ocorrido durante apresentação do
Circo VostoK, instalado em estacionamento de shopping center, quando menor de
idade foi morto após ataque por leões -, o art. 17 do Código de Defesa do Consumidor
estende o conceito de consumidor àqueles que sofrem a consequência de acidente
de consumo. Houve vício de qualidade na prestação do serviço, por insegurança,
conforme asseverado pelo acórdão recorrido.
4- Ademais, o Código Civil admite a responsabilidade sem culpa pelo
exercício de atividade que, por sua natureza, representa risco para outrem, como
exatamente no caso em apreço.
5- O valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle do Superior
Tribunal de Justiça, na hipótese de se mostrar manifestamente exagerado ou
irrisório, distanciando-se, assim, das finalidades da lei. O valor estabelecido para
indenizar o dano moral experimentado revela-se exorbitante, e deve ser reduzido
aos parâmetros adotados pelo STJ.
6- Não cabe multa nos embargos declaratórios opostos com intuito de
prequestionamento. Súmula n. 98-STJ.
598
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
7- Provimento parcial do recurso especial. (REsp n. 1.100.571-PE, Rel. Ministro
Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7.4.2011, DJe 18.8.2011)
Civil, Processo Civil e Consumidor. Reparação civil. Prescrição. Prazo. Conflito
intertemporal. CC/1916 e CC/2002. Acidente de trânsito envolvendo fornecedor
de serviço de transporte de pessoas. Terceiro, alheio à relação de consumo,
envolvido no acidente. Consumidor por equiparação. Embargos de declaração.
Decisão omissa. Intuito protelatório. Inexistência.
1. Em relação à regra de transição do art. 2.028 do CC/2002, dois requisitos
cumulativos devem estar presentes para viabilizar a incidência do prazo
prescricional do CC/1916: i) o prazo da lei anterior deve ter sido reduzido pelo
CC/2002; e ii) mais da metade do prazo estabelecido na lei revogada já deveria ter
transcorrido no momento em que o CC/2002 entrou em vigor. Precedentes.
2. Os novos prazos fixados pelo CC/2002 e sujeitos à regra de transição do art.
2.028 devem ser contados a partir da sua entrada em vigor, isto é, 11 de janeiro
de 2003.
3. O art. 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação (bystander),
sujeitando à proteção do CDC aqueles que, embora não tenham participado
diretamente da relação de consumo, sejam vítimas de evento danoso decorrente
dessa relação.
4. Em acidente de trânsito envolvendo fornecedor de serviço de transporte, o
terceiro vitimado em decorrência dessa relação de consumo deve ser considerado
consumidor por equiparação. Excepciona-se essa regra se, no momento do
acidente, o fornecedor não estiver prestando o serviço, inexistindo, pois, qualquer
relação de consumo de onde se possa extrair, por equiparação, a condição de
consumidor do terceiro.
5. Tendo os embargos de declaração sido opostos objetivando sanar omissão
presente no julgado, não há como reputá-los protelatórios, sendo incabível a
condenação do embargante na multa do art. 538, parágrafo único, do CPC.
6. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.125.276-RJ, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28.2.2012, DJe 7.3.2012)
Enfim, o recorrente, como comerciante, enquadra-se perfeitamente ao
conceito ampliado de consumidor do art. 17 do CDC, atraindo a incidência do
microssistema normativo da Lei n. 8.078/1990 no que tange à responsabilidade
civil por acidentes de consumo (arts. 12 e segs. do CDC).
No mérito, o Tribunal de origem, ao dar provimento à apelação da
recorrida, reformou a sentença que julgara procedentes os pedidos do recorrente,
afirmou não estar evidenciado o nexo causal entre o estouro da garrafa de
cerveja e as lesões sofridas pelo autor.
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599
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Entretanto, o acórdão recorrido, ao examinar o quadro fático dos presentes
autos asseverou o seguinte, verbis:
Ambas as testemunhas inquiridas afirmam que, ao passarem pelo bar, logo
após o acidente, notaram uma aglomeração de pessoas e adentaram ao recinto,
onde observaram que o autor estava com o olho ferido, e também que no local do
evento existira uma garrafa Schincariol estourada. (...)
Os documentos carreados aos autos junto com a inicial, dentre os quais
merecem destaque o relatório médico e laudo de exame de corpo de deito,
confirmam que o acidente do qual resultou a debilidade permanente do olho
esquerdo do autor foi causado por uma garrafa de cerveja (...) (grifos meus).
Apesar dessa contundente base fática, o Tribunal a quo concluiu não estar
comprovado nexo causal.
Merece, portanto, revisão a qualificação jurídica dada aos fatos supracitados
pelo acórdão recorrido, em face da confusão estabelecida entre nexo causal e
defeito do produto, que constitui elemento distinto na responsabilidade civil
pelo fato do produto, regulada pelo art. 12 do CDC.
Efetivamente, a partir da leitura dos fatos relatados no aresto fustigado,
para que se pudesse afastar o nexo causal entre o dano sofrido pelo recorrente
e o defeito do produto, seria necessário imaginar que o recorrente teria cortado
seu olho esquerdo propositalmente com uma garrafa, causando lhe debilidade
permanente, o que, além de fugir da razoabilidade, sequer foi alegado pela parte
contrária.
Conforme já me manifestei doutrinariamente, as lesões causadas no rosto
do consumidor pelo estouro, em suas mãos, de uma garrafa de cerveja não exigem
maior indagação sobre qual teria sido a causa (SANSEVERINO, Paulo de Tarso
Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. 3
ed. - São Paulo: Saraiva, 2010, p. 257).
A relação de causa e efeito entre o dano e o produto (nexo de causalidade),
portanto, no presente caso, mostra-se evidente, constituindo típica hipótese de
acidente de consumo.
Nesse mesmo sentido, o Magistrado de primeiro grau, em contato mais
estreito com a prova dos autos, assentou em sua sentença, verbis:
No caso dos autos, é incontroverso o fato descrito na inicial, de que o autor
perdeu a capacidade visual do olho esquerdo, por ter sido atingido por estilhaços
600
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
decorrentes da explosão de uma garrafa de cerveja produzida pelo requerido
conforme faz prova o laudo pericial acostado aos autos. (...)
A hipótese versada nestes autos de ação de indenização é derivada de
explosão de garrafa de cerveja, que causou lesão em um olho do autor. Vale
dizer, o comerciante, que ao manipular garrafa de cerveja e acondicioná-la ao
refrigerador, para gelá-la, experimentou ou presenciou explosão dela. O caco ou
estilhaço do vidro feriu-lhe o olho, gravemente.”
Esses fatos denotam a inserção, dada a ocorrência de fatos em várias hipóteses,
da necessidade de informação e orientação sobre o uso e manuseio das garrafas
envasadas com líquidos a base de malte, inserindo o fato na segurança da
saúde dos consumidores e, no âmbito da política de proteção das relações de
consumo, prevista no artigo 4º, CDC, onde elenca-se, inclusive, a imperiosidade
da informação adequada, com condição de implemento de igualdade jurídica nos
tratos do consumo. (...)
De fato, determina o caput do artigo 8º, do Código de Defesa do Consumidor
que “os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão
riscos à saúde ou Segurança dos consumidores, exceto os considerados
normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigandose os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar ‘as informações necessárias e
adequadas a seu respeito”.
Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo estipula que, “em se tratando
de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere
este artigo, através de impressos apropriados que devem acompanhar o produto”.
Por isto, prevê o já transcrito artigo 12, que a responsabilidade objetiva
decorre, também, de “informações ou inadequadas” sobre a “utilização e riscos”
do produto.
Desta forma, o dano restou comprovado, qual seja a perda total da visão
do olho esquerdo, conforme resposta do perito às fls. 274-298, bem como dos
atestados de fls. 20 e 277. (...)
Assim, estando comprovado nos autos o dano sofrido pelo autor, e não tendo
requerido comprovado em nenhum momento que o estouro da garrafa, foi
ocasionado pela conduta exclusiva da vítima ou inexistência do defeito, cumpre
ao requerido o dever de indenizar o requerente pelos danos advindo de sua
conduta.
Portanto, estabelecida a relação de causalidade entre o dano e o produto,
resta que se analise a excludente da inexistência de defeito do produto, que foi
acolhida pela corte de origem, nos seguintes termos:
Ainda que possível a presunção de que realmente foi uma das garrafas
de cerveja produzidas pela ré que causou a lesão no olho do autor, não foi
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
601
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
demonstrado defeito do produto, ou seja, que a garrafa de cerveja simplesmente
estourou enquanto manuseada pela parte autora sem qualquer motivo aparente.
Na realidade, o acórdão recorrido atribuiu ao consumidor demandante
o ônus da prova da ocorrência de defeito do produto, quando esse encargo de
demonstrar a inexistência do defeito era do fabricante demandado, em face do
disposto no art. 12, § 3º, II, do CDC, verbis:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e
o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de
projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação
ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes
ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
§ 1º O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele
legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias
relevantes, entre as quais:
I - sua apresentação;
II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi colocado em circulação.
§ 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor
qualidade ter sido colocado no mercado.
§ 3º O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será
responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Uma das peculiaridades da responsabilidade pelo fato do produto (art.
12), assim como ocorre na responsabilidade pelo fato do serviço (art. 14), como
modalidades de acidentes de consumo, é a previsão expressa, no microssistema
normativo do CDC, de regra específica acerca da distribuição do ônus da prova
da “inexistência de defeito”.
A previsão legal é sutil, mas de extrema importância na prática processual,
como se pode observar no presente caso.
O fornecedor, no caso o fabricante, na precisa dicção legal, “só não será
responsabilizado quando provar (...) que, embora haja colocado o produto no
mercado, o defeito inexiste.” Ou seja, o ônus da prova da inexistência de defeito
602
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
do produto ou do serviço é do fornecedor, no caso, do fabricante demandado,
ora recorrido.
A inversão do ônus da prova, nessa hipótese específica, não decorre de
um ato do juiz, nos termos do art. 6º, VIII, do CDC, mas derivou de decisão
política do próprio legislador, estatuindo a regra acima aludida.
É a distinção entre a inversão do ônus da prova “ope legis” (ato do
legislador) e a inversão “ope judicis” (ato do juiz).
Em sede doutrinária, já tive oportunidade de analisar essa delicada
questão processual (Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do
Fornecedor, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 355-357).
Em síntese, são duas modalidades distintas de inversão do ônus da prova
previstas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), podendo ela decorrer
da lei (ope legis) ou de determinação judicial (ope judicis).
Na primeira hipótese, a própria lei – atenta às peculiaridades de
determinada relação jurídica – excepciona a regra geral de distribuição do ônus
da prova.
Isso ocorreu nas duas hipóteses previstas pelos enunciados normativos
dos arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I, do CDC, atribuindo ao fornecedor o ônus de
comprovar, na responsabilidade civil por acidentes de consumo (fato do produto
- art. 12 - ou fato do serviço - art. 14), a inexistência do defeito, encargo que,
segundo a regra geral do art. 333, I, do CPC, seria do consumidor demandante.
Nessas duas hipóteses de acidentes de consumo, mostra-se impertinente
a indagação acerca dessa questão processual de se estabelecer qual o momento
adequado para a inversão do ônus da prova.
Na realidade, a inversão já foi feita pelo próprio legislador (“ope legis”)
e, naturalmente, as partes, antes mesmo da formação da relação jurídicoprocessual, já devem conhecer o ônus probatório que lhe foi atribuído por lei.
A segunda hipótese prevista pelo CDC, relativa à inversão do ônus da prova
“ope judicis”, mostra-se mais tormentosa, pois a inversão resulta da avaliação
casuística do magistrado, que a poderá determinar uma vez verificados os
requisitos legalmente previstos, como a “verossimilhança” e a “hipossuficiência” a
que refere o enunciado normativo do art. 6º, VIII, do CDC.
Nesse ponto, no julgamento do REsp n. 802.832-MG, na Segunda Seção,
já manifestei minha posição no sentido de que a inversão ope judicis do ônus da
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603
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
prova deve ocorrer preferencialmente no despacho saneador mediante decisão
fundamentada de molde a assegurar plenamente o contraditório e a ampla
defesa.
O presente caso, porém, é um típico acidente de consumo em que o
consumidor demandante, no momento em que colocava garrafas de cerveja em
um freezer, foi atingido em seu olho esquerdo pelos estilhaços de vidro de uma
delas, que estourou em suas mãos.
Esse fato amolda-se perfeitamente à regra do art. 12 do CDC, que
contempla a responsabilidade pelo fato do produto.
Consequentemente, a regra de inversão do ônus da prova da inexistência
de defeito do produto é a do art. 12, § 3º, inciso II, do CDC, e não a do art. 6º,
VIII, do CDC, atribuído pelo próprio legislador ao fabricante, não havendo
necessidade de qualquer ato decisório prévio do juiz.
Normalmente, a prova do defeito, como fato constitutivo do direito do
demandante, deveria ser produzida pelo consumidor lesado, como autor da ação
indenizatória.
Essa modificação na distribuição dos encargos probatórios pela própria lei,
denominada de inversão ope legis do ônus da prova, tem um motivo claro, que
ficou bem evidente no julgamento feito pelo tribunal de origem.
Historicamente, a proteção efetiva ao consumidor sempre foi dificultada
pela necessidade de ele comprovar os fatos constitutivos de seu direito.
A vulnerabilidade do consumidor, no mercado massificado das relações
de consumo em geral, sempre constituiu um enorme obstáculo a que ele
obtenha os elementos de prova necessários à demonstração de seu direito.
Isso é particularmente mais grave quando se sabe que essa prova é, via de
regra, eminentemente técnica, sendo o fornecedor um especialista na sua área
de atuação. Por isso, tendo o fabricante as melhores condições técnicas de
demonstrar a inexistência de defeito no produto colocado no mercado, foi
procedida a essa inversão pelo próprio legislador, sendo-lhe atribuído esse
encargo.
No caso, deve-se, efetivamente, reconhecer a dificuldade probatória da
empresa recorrente, pois, em face do estouro da garrafa, não foi possível uma
perícia direta no produto no curso da instrução, tendo sido apenas produzida
uma perícia indireta acerca da segurança de sua linha de montagem.
604
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
De todo modo, competia ao fabricante a comprovação da inexistência
de defeito nesse produto específico, não bastando meras ilações acerca da
possibilidade de o evento danoso ter decorrido de um choque térmico causado
pela retirada do produto de um engradado para colocação em freezer com baixa
temperatura, ou do manejo inadequado das garrafas, ou de um atrito entre as
garrafas.
Havia necessidade de uma prova concreta da inexistência do defeito do
produto, que não foi produzida pelo fabricante demandado, sendo seu esse ônus
probatório.
Não era suficiente a prova indireta produzida no sentido da preocupação
com a segurança em sua linha de produção.
Portanto, deve-se reconhecer a responsabilidade civil da empresa fabricante
pelos danos sofridos pelo recorrente.
Consequentemente, merece provimento o presente recurso especial,
restabelecendo-se, em seu inteiro teor, a bem lançada sentença de primeiro grau,
inclusive no que concerne a indenização por danos materiais e morais.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial, para restabelecer, em seu
inteiro teor, a douta sentença de primeiro grau.
É o voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Tratam os autos de ação
indenizatória ajuizada por Antônio Rodrigues Cordeiro contra Primo Schincariol
Indústria de Cervejas e Refrigerantes S.A. O ora recorrente reclama indenização
por danos morais e materiais sofridos em razão de acidente de consumo
decorrente da explosão de garrafa de cerveja que lhe atingiu o olho esquerdo,
cegando-o permanentemente.
Na sentença, o Juiz, aplicando o Código de Defesa do Consumidor ao
caso por considerar o comerciante consumidor equiparado com base no art. 17
desse diploma legal, julgou parcialmente procedentes os pedidos e condenou a
empresa a indenizar.
Pedi vista dos autos para melhor examinar as questões propostas e,
inicialmente, inclinei-me em sentido contrário ao do Ministro relator, não por
ser avesso à equiparação a consumidor, em acidente de consumo, daqueles que
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605
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
não são destinatários finais do bem ou do serviço, os quais devem ser protegidos,
já que é essa a intenção da norma.
Divergi por duas razões: primeiro, por causar-me preocupação, como já
tive oportunidade de dizer, que, nesse ímpeto protetivo, ocorra uma extensão
irresponsável do conceito de consumidor e de suas garantias a situações em que
não haja, de fato, relação de consumo; segundo, por acreditar que alcançaríamos
o mesmo resultado se aplicássemos as regras do Direito Civil, pois a lei nova
veio justamente para regular as relações entre iguais: dois iguais consumidores
ou dois iguais fornecedores entre si. Todavia, quanto à aplicação do CC, em um
segundo olhar sobre os autos, percebi que, no caso em comento, não se discutia
regular direito entre iguais (dois fornecedores), tendo em vista a vulnerabilidade
do pequeno comerciante, dono de bar, diante de grande fábrica de bebidas.
Dessa forma, acompanho o voto do relator, não sem antes registrar os
comentários de Cláudia Lima Marques, prestigiada doutrinadora da Lei
Consumerista que, ao tratar da presunção de vulnerabilidade e equidade
contratual, leciona:
O novo direito dos contratos procura evitar este desequilíbrio, procura a
equidade contratual. Mas existiria desequilíbrio em um contrato firmado entre
dois profissionais? Como regra geral, presume-se que não há desequilíbrio, ou
que ele não é tão grave a ponto de merecer uma tutela especial, não concedida
pelo direito civil renovado (pelo direito das obrigações do CC/2002). Aqui
presume-se a inexistência de vulnerabilidade. Esta presunção estava presente,
igualmente na lei alemã de 1976 e encontra-se hoje nas novas legislações do
direito comparado, que preferem reduzir sua proteção às pessoas físicas agindo
fora de sua profissão. (Assim o direito italiano, que regulou as cláusulas abusivas
perante os consumidores-pessoas físicas nos arts. 1.469- bis a sexies do Código
Civil unitário de 1942 Reformado. Mencione-se aqui também a recente lei norteamericana sobre assinatura eletrônica, que também preferiu uma definição
restritiva de consumidor: ‘2000-SEC. 106 Definitions. The term ‘consumer’ means
an individual who obtains, through a transaction, products or services which are
used primarily for personal, family, or household purposes, and also means the
legal representative of such an individual’ - v. US - Eletronic Signatures in Global
and National Commerce Act, de 08.06.2000). Mas por vezes o profissional é
um pequeno comerciante, dono de bar, mercearia, que não pode impor suas
condições contratuais para o fornecedor de bebidas, ou que não compreende
perfeitamente bem as remissões feitas a outras leis no texto do contrato ou que,
mesmo sendo um advogado, assina o contrato abusivo do único fornecedor
legal de computadores, pois confia que nada ocorrerá de errado. Nestes três
606
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
casos, pode haver uma exceção à regra geral: o profissional pode também
ser ‘vulnerável’, ser ‘mais fraco’ para se proteger do desequilíbrio contratual
imposto. (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3 ed. Coment. por
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Hermann V. e MIRAGEM, Bruno.
Revista dos Tribunais, 2010, p. 108.)
Com base em tais lições, curvo-me à doutrina e jurisprudência majoritárias
por se adequarem perfeitamente ao embate travado e aos fundamentos do
relator, os quais salientam a condição de vulnerabilidade da parte e estão em
consonância com o objetivo do CDC: “alcançar a equidade ou uma justiça
reequilibradora das desigualdades porventura existentes”.
Assim, com essas considerações, também observando as circunstâncias do
caso concreto, acompanho o relator, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, para
dar provimento ao recurso especial a fim de restabelecer, em seu inteiro teor, a sentença
de primeiro grau.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.317.472-RJ (2012/0066277-0)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Ivan Cláudio Meneses da Silva
Advogado: Carmem Lúcia Alves de Andrade - Defensoria Pública da
União
Recorrido: Caixa Econômica Federal - CEF
Advogado: Cesar Eduardo Fueta de Oliveira e outro(s)
Advogada: Lenymara Carvalho e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Ação de compensação por dano moral e
reparação por dano material. Violação de dispositivo constitucional.
Descabimento. Prequestionamento. Ausência. Súmula n. 282-STF.
Disparo de arma de fogo no interior de unidade lotérica. Caixa
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Econômica Federal. Parte passiva ilegítima. Dissídio jurisprudencial.
Cotejo analítico e similitude fática. Ausência.
1. A interposição de recurso especial não é cabível quando ocorre
violação de dispositivo constitucional ou de qualquer ato normativo
que não se enquadre no conceito de lei federal, conforme disposto no
art. 105, III, a da CF/1988.
2. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados
como violados impede o conhecimento do recurso especial.
3. A Lei n. 8.987/1995 - que dispõe sobre o regime de concessão
e permissão de serviços públicos - é expressa ao estabelecer que o
permissionário deve desempenhar a atividade que lhe é delegada por
sua conta e risco.
4. As unidades lotéricas, conquanto autorizadas a prestar
determinados serviços bancários, não possuem natureza de
instituição financeira, já que não realizam as atividades referidas na
Lei n. 4.595/1964 (captação, intermediação e aplicação de recursos
financeiros).
5. A imposição legal de adoção de recursos de segurança
específicos para proteção de estabelecimentos que constituam sedes de
instituições financeiras, dispostos na Lei n. 7.102/1983, não alcança as
unidades lotéricas.
6. A possibilidade de responsabilização subsidiária do delegante
do serviço público, configurada em situações excepcionais, não autoriza
o ajuizamento da ação indenizatória unicamente em face da recorrida.
7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante
o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas
idênticas.
8. Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto da Senhora Ministra Relatora. Os Srs.
608
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas
Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). Lenymara Carvalho, pela
parte recorrida: Caixa Econômica Federal - CEF.
Brasília (DF), 5 de março de 2013 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 8.3.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Ivan Cláudio Meneses da Silva, com fundamento nas alíneas a e c do
permissivo constitucional.
Ação: de reparação por danos materiais e compensação por danos morais,
ajuizada em face da Caixa Econômica Federal - CEF.
Narra o recorrente que foi atingido por disparo de arma de fogo no
interior de agência lotérica, em virtude de tentativa de roubo. Entende que
estabelecimentos dessa natureza detêm o status de agentes da CEF, que está
obrigada à prestação de segurança aos consumidores.
Sentença: extinguiu a ação, na forma do art. 267, VI, do CPC, em virtude
da ilegitimidade passiva da recorrida.
Acórdão: negou provimento à apelação interposta pelo recorrente.
Recurso especial: alega violação dos arts. 186 e 927, parágrafo único,
do CC; 14 do CDC; 273 do CPC; e 5º, LIV e LV, da CF; além de dissídio
jurisprudencial. Sustenta que, ao indeferir pedido de produção de provas, o
acórdão recorrido violou os princípios constitucionais do devido processo
legal, do contraditório e da ampla defesa. Aduz que a recorrida é parte legítima
para responder pelos danos ocorridos no interior de casas lotéricas, pois estas
constituem “estabelecimentos conveniados” (e-STJ, fl. 142). Defende a tese de
que a teoria do risco, incorporada no CC/2002, alberga sua pretensão. Afirma
que “a CEF como empresa que permite a atividade das casas lotéricas, delas
auferindo percentual de comissão, tem responsabilidade objetiva, nos casos
de dano que venham a ocorrer em razão do risco da atividade normalmente
desenvolvida” (e-STJ, fl. 143).
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Decisão de admissibilidade: o TRF- 2ª Região admitiu o recurso especial
e determinou a remessa dos autos a esta Corte.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia a
determinar se a Caixa Econômica Federal é parte legítima para figurar no polo
passivo de ação em que se postula reparação por danos materiais e compensação
por danos morais em razão de ferimento provocado por disparo de arma de fogo
ocorrido no interior de casa lotérica.
I- Da violação do art. 5º, LIV e LV, da CF.
A interposição de recurso especial não é cabível quando ocorre violação de
dispositivos constitucionais ou de qualquer ato normativo que não se enquadre
no conceito de lei federal, conforme disposto no art. 105, III, a, da CF/1988.
Nesse sentido: AgRg nos EDcl no REsp n. 1.266.402-RS, Rel. Min. Antonio
Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 20.6.2012, e AgRg no AREsp n. 136.371PR, minha relatoria, Terceira Turma, DJe 31.8.2012.
II- Da ausência de prequestionamento.
Depreende-se que o acórdão recorrido não decidiu acerca dos arts. 14
do CDC e 273 do CPC, dispositivos legais indicados como violados pelo
recorrente. Por isso, quanto às normas neles contidas, o julgamento do recurso
especial é inadmissível. Aplica-se, neste caso, o enunciado n. 282 da SúmulaSTF.
III- Da ilegitimidade passiva da CEF.
Na linha do entendimento doutrinário contemporâneo, a legitimidade
ad causam, qualidade jurídica relativa às partes do processo, deve ser analisada
diante da situação afirmada no instrumento da demanda, revelando-se à luz da
relação jurídica substancial deduzida (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito
Processual Civil. 12ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, vol. 1, p. 204).
Na hipótese, constata-se que o recorrente, na petição inicial da presente
ação, defende a tese de que a Caixa Econômica Federal deve responder pelos
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
danos que lhe foram causados no interior de casa lotérica, pois, segundo ele,
trata-se de estabelecimento equiparado à instituição financeira, sobretudo
porque presta serviços bancários “em nome da CEF” (e-STJ, fl. 4).
Seguindo essa ordem de ideias, considera “impossível cogitar que os bancos
populares venham oferecer tamanha brecha para as instituições financeiras
burlarem a Lei n. 7.102/1983, que disciplina os requisitos de segurança para tais
empresas” (e-STJ, fl. 4).
Em suma, o recorrente procura equiparar a unidade lotérica onde ocorreu
o evento danoso a uma agência bancária, com o escopo de imputar à CEF a não
observância das disposições legais que versam sobre os recursos de segurança
obrigatórios às instituições financeiras, culminando com o reconhecimento de
sua responsabilidade objetiva.
Nas razões deste recurso, assevera também que a natureza do vínculo
jurídico (permissão de serviço público) estabelecido entre a recorrida e a unidade
lotérica enseja a responsabilização civil daquela por danos experimentados por
terceiros no interior desses estabelecimentos. (e-STJ, fl. 142).
Ocorre que, de um lado, a partir da análise da Circular Caixa n. 539/2011
(itens 4 e 6) - que regulamenta as permissões lotéricas e delimita a atuação
das respectivas unidades - pode-se inferir que estas, embora autorizadas a
prestar determinados serviços bancários, não possuem natureza de instituição
financeira, já que não realizam as atividades referidas na Lei n. 4.595/1964
(captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros).
Já a Lei n. 7.102/1983 - diploma que estabelece normas de segurança
para estabelecimentos financeiros - restringe sua aplicabilidade aos seguintes
entes: “bancos oficiais ou privados, caixas econômicas, sociedades de crédito,
associações de poupança, suas agências, postos de atendimento, subagências
e seções, assim como as cooperativas singulares de crédito e suas respectivas
dependências” (art. 1º, § 1º).
Nesse contexto, exsurge da interpretação dos dispositivos precitados que
a imposição legal de adoção de recursos de segurança específicos para proteção
dos estabelecimentos que constituam sedes de instituições financeiras não
alcança as unidades lotéricas.
Não se pode olvidar também que, consoante se extrai do teor do acórdão
impugnado,
a cláusula vigésima-primeira, constante do termo aditivo ao termo de
responsabilidade e compromisso para comercialização de loterias federais” dispõe
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
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que a unidade lotérica assume responsabilidade direta e exclusiva “por todos
e quaisquer ônus, riscos ou custos das atividades decorrentes da operação da
unidade lotérica, arcando em consequência, com todos os encargos trabalhistas,
fiscais, previdenciários e indenizações de qualquer espécie reivindicados por seus
empregados ou terceiros prejudicados (e-STJ, fls. 126-127).
De outro lado, ao revés da tese defendida pelo recorrente, a Lei n.
8.987/1995 - que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços
públicos -, é expressa ao prever que o permissionário (no particular, a unidade
lotérica) deve desempenhar a atividade que lhe é delegada “por sua conta e risco”
(art. 2º, IV).
Em sentido idêntico, seu art. 25 impõe ao delegatário a responsabilidade
“por todos os prejuízos causados [...] aos usuários ou a terceiros”.
Quanto à matéria, oportuna se mostra a lição de DI PIETRO, segundo a
qual, em hipóteses como a presente, “quem responde [pelos danos] é a própria
concessionária ou permissionária do serviço concedido, já que é ela que está
prestando o serviço público” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na
Administração Pública. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 92).
Nessa medida, claro está que a pessoa jurídica delegante do serviço não é
responsável pela reparação de eventuais danos causados a terceiros no interior
do estabelecimento do permissionário.
Ademais, eventual possibilidade de responsabilização subsidiária do
concedente, verificada apenas em situações excepcionais, não autoriza, por
imperativo lógico decorrente da natureza de tal espécie de responsabilidade, o
ajuizamento de demanda indenizatória unicamente em face dele.
A Segunda Turma desta Corte já teve oportunidade de se manifestar
a respeito do tema, em hipótese análoga à presente - demanda movida
exclusivamente contra o delegatário do serviço -, oportunidade em que ficou
assentado que, “ainda que objetiva a responsabilidade da Administração, esta
somente responde de forma subsidiária ao delegatário, sendo evidente a carência
de ação por ilegitimidade passiva ad causam” (REsp n. 1.087.862-AM, Rel.
Min. Herman Benjamin, DJe 19.5.2010).
Portanto, sob qualquer ângulo que se examine a questão, a conclusão
resultante é a de que não há obrigação legal ou contratual imposta à CEF que
conduza à sua responsabilização pelo dano causado ao recorrente no interior de
unidade lotérica, ficando evidente que a presente ação foi proposta em face de
parte ilegítima.
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IV- Da divergência jurisprudencial.
Entre os acórdãos trazidos à colação, não há o necessário cotejo
analítico nem a comprovação da similitude fática, elementos indispensáveis
à demonstração da divergência. Assim, a análise da existência do dissídio é
inviável, porque foram descumpridos os arts. 541, parágrafo único, do CPC e
255, §§ 1º e 2º, do RISTJ.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.355.554-RJ (2012/0098185-2)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Gafisa S/A
Advogado: Ricardo de Menezes Saba e outro(s)
Recorrido: Tânia Barreto Simões Correa e outro
Advogado: Marcelo Negrão Debenedito Silva
EMENTA
Direito Civil. Promessa de compra e venda de imóvel em
construção. Inadimplemento parcial. Atraso na entrega do imóvel.
Mora. Cláusula penal. Perdas e danos. Cumulação. Possibilidade.
1.- A obrigação de indenizar é corolário natural daquele que
pratica ato lesivo ao interesse ou direito de outrem. Se a cláusula
penal compensatória funciona como pre-fixação das perdas e danos, o
mesmo não ocorre com a cláusula penal moratória, que não compensa
nem substitui o inadimplemento, apenas pune a mora.
2.- Assim, a cominação contratual de uma multa para o caso de
mora não interfere na responsabilidade civil decorrente do retardo
no cumprimento da obrigação que já deflui naturalmente do próprio
sistema.
RSTJ, a. 25, (230): 547-618, abril/junho 2013
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3.- O promitente comprador, em caso de atraso na entrega do
imóvel adquirido pode pleitear, por isso, além da multa moratória
expressamente estabelecida no contrato, também o cumprimento,
mesmo que tardio da obrigação e ainda a indenização correspondente
aos lucros cessantes pela não fruição do imóvel durante o período da
mora da promitente vendedora.
4.- Recurso Especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas
Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, a
Sra. Ministra Nancy Andrighi.
Brasília (DF), 6 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 4.2.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Gafisa S/A interpõe Agravo de Decisão
que negou seguimento a Recurso Especial, manejado contra Acórdão do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Relator o Desembargador
Caetano E da Fonseca Costa, assim ementado (fls. 176):
Responsabilidade civil. Promessa de compra e venda de imóvel novo. Atraso
na entrega. Força maior. Inocorrência. Cláusula penal moratória lucros cessantes.
Acumulação. Possibilidade.
- Cuida a hipótese de Ação Ordinária objetivando a declaração da mora da Ré
desde 1º.9.2008 a 26.11.2009, conforme cláusula 3.2 do contrato de promessa
de compra e venda de imóvel novo, além de sua condenação ao pagamento da
multa de 1% (um por cento) ao mês prevista na mesma cláusula.
- Alegação da Ré de atraso na entrega do imóvel por motivo de força maior
que não se sustenta.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
- Cláusula penal moratória instituída contratualmente para o caso de atraso na
entrega do imóvel.
- Lucros cessantes que foram objeto de ação diversa, o que não constitui coisa
julgada em face da presente demanda.
- Cláusula penal moratória e lucros cessantes que possuem naturezas diversas.
- Possibilidade de acumulação da cláusula penal com os lucros cessantes, que
podem ser pleiteados em ações distintas.
- Sentença mantida.
- Desprovimento do Recurso.
2.- Os Embargos de Declaração foram rejeitados (fls. 190-196).
3.- A Agravante, nas razões do Recurso Especial, sustenta que o promitente
comprador diante do atraso na entrega do imóvel adquirido à construtora que
o prometeu vender não pode cobrar, simultaneamente, a cláusula penal prevista
no contrato consistente em multa de 1% por mês de atraso, e ainda, valor mensal
correspondente ao aluguel desse mesmo imóvel. Segundo alega, a cláusula penal
não pode ser cobrada juntamente com os lucros cessantes, sob pena de se ofensa
ao artigo 402, 410 e 411 do Código Civil, porque ela já serve como fixação
antecipada das perdas e danos.
Além disso o contrato não permitia a cobrança indenização suplementar
àquela pré-fixada no próprio contrato. O Tribunal de origem, assim não
entendendo, teria violado os artigos 416 e 421 do Código Civil.
4.- Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por força
de Agravo Provido.
É o breve relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Consta dos autos que Tânia
Barreto Simões Correa e seu marido Ernani Simões Corrêa celebraram com a
Gafisa contrato de promessa de compra e venda de apartamento em construção
que seria entregue até o 1º.9.2008, mas que, em razão de atraso na conclusão da
obra, somente veio a ser entregue no dia 26.11.2009.
6.- Em razão disso os promitentes compradores ajuizaram uma ação (fls. 8996) distribuída sob o n. 0131725-61.2010.8.19.001 ao 4º Juizado Especial Cível
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- Catete, pleiteando indenização pelos lucros cessantes consistentes no valor
estimado do aluguel do imóvel, haja vista que o bem havia sido adquirido por
eles com esse objetivo. O pedido formulado foi julgado parcialmente procedente
para condenar a Gafisa ao pagamento de R$ 13.000,00, correspondentes à mora
verificada entre outubro de 2008 e novembro de 2009 (fls. 98-100).
7.- Também ajuizaram a ação que deu origem aos presentes autos,
distribuída sob o n. 0131601-78-2010.8.19.001 à 30ª Vara Cível da Comarca da
Capital, pleiteando a condenação da Gafisa ao pagamento da multa contratual
pelo período de mora verificado (fls. 03-07).
8.- A Sentença afastou a preliminar de coisa julgada invocada em sede de
contestação, afirmando que o pedido formulado nesses feitos não era o mesmo,
embora conectados pela mesma causa de pedir: a mora. Em seguida julgou
procedente o pedido formulado nesse segundo processo para condenar a Ré ao
pagamento da multa contratual de 1% ao mês sobre o valor do imóvel, conforme
viesse a ser apurado em liquidação, incidente no período compreendido entre
1º.9.2008 e 26.11.2009 (fls. 147-151).
9.- O Tribunal de origem, conforme se extrai da ementa constante do
relatório, também rechaçou a preliminar de coisa julgada e, no mérito, manteve
a conclusão da sentença, ressaltando a possibilidade de cumulação da multa
contratual moratória e da indenização por perdas e danos (lucro cessante).
10.- Nas razões do especial discute-se, essencialmente, se é possível cumular
a indenização correspondente à cláusula penal moratória e a indenização por
lucros cessantes.
Impende saber, portanto, se o promitente comprador, em caso de atraso
na entrega do imóvel adquirido pode pleitear além da multa moratória
expressamente estabelecida no contrato, também uma indenização
correspondente aos lucros cessantes pela não fruição do imóvel durante o
período da mora.
11.- A cláusula penal, também chamada de pena convencional, ensinam
NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA NERY (Código Civil Anotado.
8ª ed.: Revista dos Tribunais, 2011, p. 526) “é o pacto acessório à obrigação
principal, no qual se estipula a obrigação de pagar pena ou multa, para o caso de
uma das partes se furtar ao cumprimento da obrigação”.
12.- Nos termos do artigo 408 do Código Civil, a possibilidade de uma parte
exigir a cláusula penal surge de pleno direito desde de que a outra parte contratante
tenha, culposamente, deixado de cumprir a obrigação, ou incorrido em mora.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
13.- O artigo 409, na mesma linha, assinala que: “A cláusula penal
estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referirse à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou
simplesmente à mora”.
14.- Já aí se percebe que existem essencialmente dois tipos diferentes de
cláusula penal: aquela vinculada ao descumprimento (total) da obrigação, e
aquela que incide na hipótese de mora (descumprimento parcial). A primeira é
designada pela doutrina como compensatória, a segunda como moratória.
15. Conquanto se afirme que toda cláusula penal tem, em alguma
medida, o fito de reforçar o vínculo obrigacional (Schuld), essa característica se
manifesta com maior evidência nas cláusulas penas moratórias, visto que, nas
compensatórias, a indenização fixada contratualmente serve como pré-fixação
das das perdas e danos decorrentes do inadimplemento (artigo 410).
16.-Tratando-se de cláusula penal moratória, o credor estará autorizado a
exigir não apenas o cumprimento (tardio) do avençado, como ainda a cláusula
penal estipulada. Nesses termos a dicção expressa do artigo 411 do Código
Civil: “Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em
segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio
de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da
obrigação principal.”
17.- A questão que se coloca é se o credor também estará autorizado a
exigir (além da prestação tardia e da multa) as perdas e danos decorrentes da
mora.
18.- Dentro do nosso sistema, a obrigação de indenizar é corolário natural
daquele que pratica ato lesivo ao interesse ou direito de outrem. Se a cláusula
penal compensatória funciona como pré-fixação das perdas e danos, o mesmo
não ocorre com a cláusula penal moratória, que não compensa nem substitui o
inadimplemento, apenas pune o retardamento no cumprimento da obrigação.
19.- Assim, a cominação contratual de uma multa para o caso de mora não
interfere com a responsabilidade civil correlata que já deflui naturalmente do
próprio sistema.
20.- Concede-se ao credor, nesses casos, a faculdade de requerer,
cumulativamente: a) o cumprimento da obrigação, b) a multa contratualmente
estipulada e ainda c) indenização correspondente às perdas e danos decorrentes
da mora.
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Nesse sentido a lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:
(...) Quando a cláusula penal é moratória, não substitui nem compensa o
inadimplemento. Por essa razão, nenhuma alternativa surgem, mas, ao revés,
há uma conjugação de pedidos que o credor pode formular: o cumprimento da
obrigação principal que não for satisfeita oportunamente, e a penal moratória,
devida como punição ao devedor, e indenização ao credor pelo retardamento
oriundo da falta daquele. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito
Civil Vol. II, 17ª ed.: Forense, Rio de Janeiro, 1999, p. 106-107).
Na mesma linha:
Civil e Processual Civil. Compromisso de compra e venda. Rescisão contratual.
Promitente comprador que não reúne condições econômicas para o pagamento
das prestações. Reajuste do saldo devedor. Resíduo inflacionário. Cláusula penal.
Indenização pela fruição. Cumulação. Possibilidade.
(...)
- A multa prevista pela cláusula penal não deve ser confundida com a
indenização por perdas e danos pela fruição do imóvel, que é legítima e não tem
caráter abusivo quando há uso e gozo do imóvel.
(REsp n. 953.907-MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe
9.4.2010);
Recurso especial. Ação rescisória. Obrigação. Descumprimento. Cláusula penal
moratória. Cumulação com lucros cessantes. Possibilidade. Violação a literal
disposição de lei. Inexistência. Dissídio jurisprudencial. Ausência de similitude
fática.
1. A instituição de cláusula penal moratória não compensa o inadimplemento,
pois se traduz em punição ao devedor que, a despeito de sua incidência, se vê
obrigado ao pagamento de indenização relativa aos prejuízos dele decorrentes.
Precedente.
(REsp n. 968.091-DF, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJe
30.3.2009).
21.- Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.
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