Maio/2004
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Maio/2004
CONSELHO DE ACOMPANHAMENTO DA PROGRAMAÇÃO DE RÁDIO E TV (CAP) CAMPANHA “QUEM FINANCIA A BAIXARIA É CONTRA A CIDADANIA” RELATÓRIO DE ANÁLISE DE PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA Relator (a): Pedrinho Arcides Guareschi - PUCRS Data da apresentação do relatório: 31 /05 /2004 Dados do Programa Analisado Nome: Novela “Celebridades” Emissora: Rede Globo Horário: Diariamente, das 20h30 às 22h00. Classificação etária: Não Consta Anunciantes: Patrocínio dos sabonete Albany e outros. Merchandising escancarado da “Natura” Histórico do programa (se disponível): Diretor: Gilberto Braga Informações sobre público / audiência do programa (se disponível): Maior índice de audiência da Globo. Dados preliminares A(s) denúncia(s) é (são): (a) Genérica (s) sobre a má qualidade do programa. (b) Sobre fato específico relacionado ao programa. Programa assistido em: Durante várias semanas dos meses de abril e maio. Descrição do fato específico, se cabível (incluir data): As denúncias podem ser classificadas em duas categorias centrais: apelo ao sexo (de um total de 187 reclamações, 107 referem-se a esse ponto), violência (25 denúncias). Além disso, 33 pessoas apontaram para ae impropriedade de horário. Emissora comunicada em: Teor resumido da manifestação da emissora, se houver: Conteúdo do parecer O programa fere dispositivos legais ou princípios da Campanha? Sim Quais? Os princípios 3 (incitamento ao ódio, vingança, violência de qualquer natureza), 6 (incitamento ao machismo e discriminação contra mulher) e 12 (cenas de sexo, envolvimento e insinuação de relações sexuais, cenas que estimulam e precipitam a sexualidade infantil). O programa contribui para a efetivação dos princípios da Campanha? Não O programa discrimina grupo social específico? Sim Qual? Há indícios fortes da existência de discriminações nas relações de gênero, com atitudes machistas e sexistas por parte de alguns atores masculinos como, por exemplo, o caso do Renato e do Marcos. Foram ouvidas entidades de defesa do(s) grupo (s) discriminado(s)? Não Qual? Síntese da opinião da(s) entidade(s) O parecer final deve ser encaminhado a algum órgão/instituição? Qual? A critério do CAP e do Conselho de Comunicação Social. Recomendações: Envio do parecer, com as justificativas e considerações a quem de direito. Justificativa e considerações gerais Parecer da Novela Celebridades da Rede Globo Introdução As análises se baseiam nas denúncias enviadas por cidadãos/ãs de todo Brasil, com referência à novela. Foram recebidas 107 denúncias e a elas estou incorporando considerações solicitadas por mim a alguns analistas sobre a novela: foram sugestões de 10 pessoas, juntamente com resultados de um grupo de discussão (grupo focal), constituído de 8 pessoas de nível superior incompleto, homens e mulheres, sobre a dimensão ética da novela. As informações A análise quantitativa das denúncias revela os seguintes números: 1. Sexo: 47 denúncias 2. Nudez: 16 denúncias 3. Baixo nível: 41 denúncias 4. Erotização e promiscuidade: 3 denúncias 5. Violência: 25 denúncias 6. Imprópria para o horário: 33 denúncias 7. Traição e engano: 5 denúncias 8. Luta por poder e fama: 5 denúncias Além das verbalizações acima, há ainda queixas com respeito a ódio (2), raiva (2), inveja e vingança (2), discriminação racial (2) e desrespeito aos idosos (1). Há uma denúncia de discriminação contra a instituição orfanato e, indiretamente, de pessoas que trabalham em orfanatos: em determinada cena, a mãe de uma criança teria dito o seguinte: “segura esse garfo direito, que eu não te achei em nenhum orfanato”. A soma total ultrapassa o total de denúncias enviadas pois algumas pessoas trouxeram denúncias referentes a mais itens. Se formos agrupar os números 1 a 4, que se referem de um modo ou outro a um comportamento sexual, teremos um número equivalente ao total de denúncias: 107. Isso mostra a importância desse aspecto nas denúncias dos cidadãos/ãs. A seguir vem a violência (25 denúncias). A impropriedade de horário (33 manifestações) pode sugerir que os ouvintes até aceitariam tal programa, mas em horário diferente, mas não no horário em questão, em que muitas crianças estão ainda diante da TV. Discussão das informações a) Pressupostos para a análise No intuito de melhor se compreender a análise que segue, é necessário discutir dois pressupostos que servem para contextualizar essa análise. Em primeiro lugar, é fundamental uma consideração inicial sobre o que representam as novelas: nenhuma novela chega a atingir o público se não estiver embasada no cotidiano das pessoas. Ou melhor, ela terá tanto mais sucesso, quanto mais lidar e revelar as tramas vivenciais presentes no dia a dia dos seres humanos. A matéria prima de uma boa novela vai trazer à luz e retomar as dimensões fundamentais da vida das pessoas. Mas ela não permanece aí. Ela “trabalha”, “elabora” essas tramas, valores, vivências, até mesmo pulsões inconscientes existentes em cada ser humano. E é nesse momento, isto é, nessa prática de “elaboração” que um escritor, autor, roteirista, ou diretor, quer queira quer não, insere uma dimensão ética, valorativa. Ele não pode permanecer neutro, pois a toda ação corresponde uma dimensão valorativa, isto é, uma ética. São esses valores que são transmitidos numa novela. Em segundo lugar, é preciso deixar claro o pressuposto ético a partir do qual avaliamos a novela. Tomamos como referencial a ética do discurso, conforme discutida por Karl-Otto Apel, Habermas, Tugenhat e outros filósofos éticos. Superando um paradigma naturalista ou positivista (legalista), tomamos ética como “uma instância crítica e propositiva do dever ser das relações humanas que se constrói a partir da ação comunicativa” (Dos Anjos). Nesse sentido, o que fazemos é a apresentação dos pontos de vista de dezenas de cidadãos/ãs que consideram seus direitos desrespeitados e manifestam suas razões. Estamos, com isso, no mínimo, iniciando um diálogo com os responsáveis por esse serviço público para que se possa chegar, através dessa ação comunicativa, a um patamar ético mutuamente aceitável. É claro que já existem alguns princípios formulados na Cartilha, mas eles não precisam ser considerados como definitivos e podem ainda sofrer interpretações diferentes; através de uma ação comunicativa, poder-se-á estabelecer uma instância, sempre crítica, de como as coisas devem ser. No caso em questão, a peça se propõe discutir uma realidade muito provocante e candente, pois bebe de duas características extremamente atuais e interligadas entre si, presentes na sociedade contemporânea, que podem ser deduzidas do seu título, altamente sintomático e revelador: “Celebridade”. Por um lado, a peça mobiliza uma dimensão psicológica, presente em todo ser humano, que é a necessidade que toda pessoa tem de ser alguém, de ser reconhecida; por outro lado, ela revela uma faceta desumana dessa mesma sociedade e de nosso mundo “massificado”, onde as pessoas não passam de números anônimos. Todos procuram, por isso, maneiras de “aparecer”, de ser alguém dentro desse mundo anônimo e massificante. As pessoas vão em busca de uma identidade, de um reconhecimento pessoal. É sobre esse pano de fundo que a trama se desenrola. Num mundo uniformizado e descaraterizante como o nosso, apenas alguns conseguem aparecer como “especiais”, chegar a alguma notoriedade, conseguir alguma “celebridade”. Quem não consegue, inventa estratégias e práticas para chegar a ter nome, ser reconhecido e emergir de dentro dessa multidão anônima. Um modo de se viver em sociedade que poderia recuperar e dar sentido a uma vida plena e realizada seria a existência de comunidades participativas e democráticas, que poderiam ser definidas como “um modo de vida em sociedade onde todos são chamados pelo nome”. É essa, aliás, a alternativa proposta pelos maiores filósofos éticos da atualidade, desde Habermas que insiste na importância do “mundo da vida” em contraposição à colonização desse mundo imposta pela burocracia anônima, como por Karl-Otto Apel com as “comunidades de comunicação”, por Boaventura Sousa Santos com as “comunidades interpretativas” e muitos outros. Temos, então, o “caldo de cultura” onde se desenrola a trama. Nessa sociedade massificante e descaracterizante, as pessoas empregam todos os truques possíveis para poder “aparecer”, tornar-se “célebres”. Esse é o cotidiano de milhões de pessoas. A questão que agora se coloca é: como esse cotidiano é “elaborado” e que ética está presente nas práticas apresentadas? Colocam-se aqui, portanto, os questionamentos principais que podem ser feitos à novela e a razão, parece-nos, das reclamações e denúncias dos telespectadores. Enfocamos dois pontos que julgamos centrais: b) Sensacionalismo através do sexo e da violência Tudo bem que a novela discuta as paixões, as tramas, mas há, nitidamente, um nítido exagero em apelar para o sexo e a violência. Qual a razão, por exemplo, de, ao se discutirem invejas, raivas, tramas maldosas das pessoas, envolver e dimensionar todos os lances com cenas extremamente fortes e chocantes de erotismo e sexo? Muito disso seria dispensável na discussão e no tratamento do problema em questão. Pode-se discutir qualquer tema, mas dentro de um quadro crítico, sensato, proporcional ao tema proposto, sem as excrescências que a novela apresenta. Na novela, o sexo é moeda de troca. São casamentos forjados, uso perverso da sexualidade, uso da nudez para conseguir celebridade, criação de desejos a partir de artistas infantilizadas. O sexo é vinheta. Não há o êxtase erótico da contemplação, mas a sexualidade se transforma em sexo de puro prazer, baseado na atração física, no poder; estimulando o que há de pior. Há, pois, uma nítida procura de sensacionalismo doentio, um sensacionalismo muito bem criticado por Barthes em suas análises do “fait divers”, isto é, de componentes que distorcem, desviam do objetivo principal. São tais distorções e desvios que, não sem razão, são denunciados pelos telespectadores. São tais situações que vem ferir uma ética de respeito a esses mesmos telespectadores, respeito a valores que essas pessoas merecem e que deveriam ser levados em consideração por quem detém a concessão de um serviço público que tem o dever de ser respeitoso e ético. c) A naturalização do banal Mas há um segundo ponto a considerar. Discutimos até aqui reclamações de pessoas que se manifestaram denunciando práticas que podem ferir a ética. Mas o que estará acontecendo com os milhões de pessoas que não se propõem, ou não têm capacidade de desenvolver uma assistência crítica? O primeiro argumento que algumas emissoras apresentam, ao receberem as avaliações da Comissão de Acompanhamento à Programação (CAP) é, muitas vezes (como no caso da carta de Luis Erlanger, Diretor da Central Globo de Comunicação, de 29-05-04, em resposta às reclamações dos telespectadores enviadas à Globo) “a quantidade pequena de manifestações críticas em relação à novela Celebridade, ainda mais se comparada à massa dos seus telespectadores”. O argumento do missivista nos ajuda a refletir sobre o ponto que queremos discutir agora. Em primeiro lugar, é sintomático o emprego do termo “massa”, na resposta do Diretor da Globo. Na verdade, os telespectadores, infelizmente, são considerados e são tratados como “massa” pela mídia em geral. Diante do enorme bombardeio de informações e imagens (uma pessoa de uma cidade recebe em média ao redor de 30 mil mensagens pro dia), as pessoas não têm tempo de refletir, de digerir, de assimilar tais mensagens. O resultado disso é, conseqüentemente, uma massificação da audiência, coerentemente colocada pelo Diretor da Globo. O missivista não se dá conta, contudo, que apesar dessa avalanche de mensagens, ainda há pessoas, e não poucas, que decidem fazer ouvir sua voz, tomar uma iniciativa e contestar, por escrito, uma programação que as ofende e com a qual não concordam. Mas o ponto central que merece ser destacado nesse contexto é que a veiculação indiscriminada e acrítica de cenas como as oferecidas pela novela, leva a uma “naturalização” daquilo que é apresentado. Os principais analistas da mídia ressaltam a importância dessa estratégia ideológica que consiste no fato de, à custa de serem apresentadas, com muita freqüência, apenas determinadas realidades, as pessoas acabem achando que essa é a “única” realidade, e uma realidade “normal”, “natural”, isto é, que é assim que as coisas são e devem ser. Pode até acontecer que, ao final da novela Celebridade, algumas situações de traição, intriga, raiva etc. possam ser resgatadas e algum vilão possa ser punido. Mas a generalização, recorrência, insistência e repetição são tantas que já definiram o cotidiano da sociedade. Uma analista, por nós consultada, analisa essa questão da seguinte maneira: A morte vem sendo banalizada há algum tempo em nossa sociedade e já escreveram e refletiram, muito, sobre isso. Mas a banalização do sexo e da violência, e mais do que isso, a aceitação dessas situações como familiares ao quotidiano das pessoas, como valores socialmente aceitos e introjetados como algo “normal”, não havia ainda sido apresentado tão cruamente como nessa novela da Rede Globo. O que incomoda é sentir que a violência, na novela, parece estar de tal forma entranhada na teia do quotidiano de todas as pessoas que se mostra como se fosse aceitável, como se o autor do script dissesse: “agora a vida é assim”. A violência não é algo a ser lamentado, pois a vida é assim: dente por dente, olho por olho. Mesmo que ao final a situação possa ser revertida, a novela já terá envenenado e influenciado muita gente. Não se trata da violência dos morros, dos assaltantes, dos traficantes, dos drogados, mas da generalização de uma maneira de existir violenta que, de uma forma ou de outra, atinge praticamente a todos. É difícil encontrar um personagem que tenha sido poupado. A conclusão a que se chega, então, é que a novela, a partir das necessidades não realizadas das pessoas de quererem ser gente, se realizar, terem voz e nome, vai apresentando diferentes estratégias, mecanismos, truques, práticas de vingança, rivalidades, competitividade criminosa, através dos quais tais pessoas conseguem se “projetar” na vida, serem reconhecidas. Enquanto isso for o retrato de uma situação, pode até ser aceitável. Acontece, contudo que há um “vale tudo”, acrítico e sensacionalista, na apresentação de tais práticas. É selecionado o que há de mais diabólico, desumanizante, violento e mau no ser humano para preencher necessidades que poderiam até mesmo ser consideradas importantes na realização da pessoa. A questão de fundo é: Não haveria maneiras mais inteligentes, mais criativas, humanizadoras, solidárias, etc. para se conseguir fazer com que as pessoas se tornassem “célebres”, pudessem ser reconhecidas como sujeitos com voz e nome? Por que buscar apenas práticas tão chocantes e envoltas, sempre, em doses fortes de sexo e violência? Se não há dúvida que a novela “reflete” um mundo desumanizante, competitivo, de um darwinismo social assustador, porque tal apresentação desse mundo real não poderia vir acompanhada de uma crítica construtiva, ou de alternativas que poderiam levar à denúncia desse mundo-cão? O grande perigo que se corre é de que esse mundo, pelo fato de não ser discutido e criticado a partir de valores éticos, acabe sendo “naturalizado” e considerado como o único possível. Alguns poderiam argumentar que, afinal, a novela ainda não terminou e que poderá haver alguma oportunidade de redenção. Seria ótimo se isso ocorresse, pois sabe-se de exemplos de roteiros de novelas que foram reescritos por diversos motivos. A quantidade e a recorrência, contudo, de cenas e cenários desumanizadores já foi grande e já, contribuiu, certamente, para a construção de um cotidiano que dificilmente pode ser redimido. Alguns vilões podem ser castigados, mas a carga de mensagens, a trama e a sua duração já contribuíram, certamente, para a naturalização de um mundo perverso. Conclusão A novela, pelo que se viu acima, fere normas de ética e respeito principalmente no referente à apelação sexual e à violência. O fato de ser colocado em outro horário poderia sanar tal situação? Talvez no que se refira ao apelo sexual, mas não quanto a sua moralidade intrínseca. O que é de lamentar é que um tema tão atual como é o desejo das pessoas de realizarem e serem reconhecidas em suas diferentes subjetividades, tenha de vir embalado em material tão pouco nobre e humanizante.