O vento crispava na vidraça da sala, Rebeca percorria o salão

Transcrição

O vento crispava na vidraça da sala, Rebeca percorria o salão
CONTO
A imagem de Vênus
Héllen de Souza Dutra 1
Colégio Pedro II
Rebeca percorria o salão principal, não a olhar, mas a sentir o cair da chuva. O balé
das árvores lá fora dava a ela a impressão de uma dança macabra, ritmada pelo assoviar agudo
da tempestade. Toda paisagem era molhada, de uma umidade doce que trazia o cheiro de
manacá, impregnando os poros de uma saudade – era mais melancolia – de uma planta
roxinha que enfeitava a fachada da casa de vovó. Como era linda aquela arvorezinha; quando
florida, alegrava todo o jardim e fazia a festa dos primos que arrancavam, uma a uma, as
flores para presentear as primas mais jovens. Já que primos não eram irmãos e podiam
namorar. Isso era o que pensava a criançada, diferentemente dos adultos, que sempre
espreitando a brincadeira, preocupavam-se com os beijos escondidos atrás dos troncos.
Sempre era possível deitar na grama ou abrigar-se à sombra das imensas árvores que
cruzavam seus galhos no ar. Era bonito ver o apoiar de um galho no outro que, roçando de vez
em quando as folhas, confundiam-se. Havia várias trilhas cortando o jardim, caminhos tortos
e irregulares que sempre nos levavam a lugares iguais, mas ao mesmo tempo diferentes;
caminhos que convidavam à deliciosa tarefa de perder-se e achar-se a qualquer hora do dia.
Ao ocasional toque no braço, Rebeca voltou a observar o quadro de Velásquez.
Aquela imagem de Vênus – a deusa do amor e da sensualidade mirando-se no espelho –
quebrou, em fragmentos eternos, a memória de infância. Como o estridente barulho do
despertador cessa a noite tranquila de sono, a realidade intimou a volta. A imagem das curvas
sinuosas, das costas alvas e brilhantes, das nádegas de uma perfeição geométrica da deusa
grega, levou Rebeca a querer reconhecer a beleza de seu próprio corpo. Ao primeiro toque,
suas mãos não ousaram prosseguir, a sobressalência do rosto enrugado era desanimadora.
Com a língua provou, nas comissuras dos lábios, o amargo do passar do tempo. Continuou a
caminhar e se deparou com um espelho imenso que parecia aumentar, em mil vezes, a sua
imagem. Agora, não mais a Afrodite, mas apenas ela – Rebeca – a olhar-se no espelho.
Olhou, olhou, olhou de novo. Em que milímetro de seu corpo estaria aquela criança solta,
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alegre da vida? Aquela moça rendida a amores? Não achava vestígio algum, nem de longe.
Seu olhar percorreu o cabelo acaju, as maçãs do rosto, se reteve um pouco mais no pescoço e
escorregou até a banal silhueta criada pela blusa social preta e a saia jeans. Parecia outra ou
era outra? Aquela imagem a repugnava. Como uma estranha, pegou o casaco, o guarda-chuva,
olhou-se uma vez mais no espelho e caminhou resignada em direção à saída. Fora da galeria,
seguiu reto, dobrou a esquerda, parou em frente ao sinal de trânsito e esperou o vermelho
virar verde. Lembrou ainda que não tinha descongelado o frango e, por isso, o jantar daria
mais trabalho para ser preparado. Talvez fosse melhor ir ao mercado, comprar algo pronto,
um enlatado qualquer, ou poderia fazer um lanche. Para que jantar? Queria mesmo era ficar
ali a vagar pela rua sem preocupações domésticas.
Não aguentava mais aquele insuportável cheiro azedo de mofo que emanava de tudo
em sua casa. Os móveis, testemunhas do tempo, descascavam como pele estriada de cascavel.
O ranger do assoalho em ruínas denunciava cada passo que ousasse interromper o silêncio
mórbido da casa. Desde os vidros da janela, impregnados de gordura humana, até as teias de
aranha que decoravam as paredes pardas, tudo ali lembrava abandono. O marido, mais um
acessório da mobília, confundia-se com os bibelôs da estante na impassividade e na cafonice.
Não se sabe se por asco ou apenas por impotência, hesitava em tocá-la. Seu corpo magro,
enrugado e fedorento de mulher passada há muito não recebia o bom quente do calor de
nenhum outro. Não se incomodava com isso, não precisar assistir ao espetáculo de sua
flacidez generalizada era mais um prêmio do que um fardo.
Mesmo ao verdear do semáforo, Rebeca permanecia estática, inebriada pelo tom limão
florescente que criava uma iluminação toda diferente nas poças de água, quando foi
surpreendida por um gelado na nuca e um sussurro no ouvido. “Segue sem olhar pra trás” foi
a ordem que ela imediatamente atendeu. O coração aos pulos quase arrebentava as veias que
recebiam o forte bombear do sangue nervoso, a respiração ofegante fazia os seios arquearem
pra cima e pra baixo na blusa molhada. Seguiu por uma viela e foi atirada contra uma parede
suja, num beco escuro que ela nem sabia que existia naquela cidade. Uma mão com violência
arrebentou todos os botões de sua blusa, mostrando o velho sutiã bege. Com uma voracidade
de animal no cio, sentiu o sugar no bico do peito que começava a enrijecer-se não mais pelo
frio do que pelo toque da língua molhada e quente que subia e descia numa louca fricção. Fez
menção de gritar, tentar correr, pedir ajuda, mas um puxão de cabelo e um soco a fizeram
calar.
Caída no chão, arrastou-se o que pôde, mas a força do outro a impedia de qualquer
fuga. Molhada, sentiu o entrar violento que fendia sua carne, a principio relutante, mas que,
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ao contato abrasador da pele do outro, relaxou desejosa. Num preenchimento quase que total,
sentiu agulhas picarem todos os espaços de seu corpo, criando uma dormência que paralisava
a alma. Foi envolvida por um cheiro acre de cachaça misturado com perfume barato e suor
operário – cheiro de macho. Abriu os olhos e contemplou a barba por fazer e a achou a bonita
tanto quanto a cicatriz do braço direito. A cada arremetida, sentia o abrir de seu corpo
exatamente na mesma proporção da ferida em seu ventre, que rasgado pelo canivete, fazia
jorrar um sangue grosso, fervente, vermelho-negro que pintava sensualmente suas coxas. O
cheiro de manacá a embriagou, quase como um ópio, ficou de novo menina, deitada na relva
fresca do jardim de vovó, olhando os galhos cruzados no ar. Na última investida do membro,
que coincidiu com a facada fatal, foi toda ela banhada por um líquido viscoso que a
encharcava da cintura para baixo. Experimentou o vazio da saída. Ainda teve tempo para virar
um pouco a cabeça para o lado na tentativa de gravar na memória a última imagem daquele
homem. Deparou-se, no entanto, com o seu próprio reflexo na poça d’água, como um espelho,
fixou o olhar já turvado e confuso pela perda de sangue, mas pôde ainda ver a imagem de
Vênus.
Recebido em 16/06/2010.
Aprovado em 22/06/2010.
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