A instalação da psique no corpo
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A instalação da psique no corpo
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE RIBEIRÃO PRETO A instalação da psique no corpo Estados de integração, não-integração e identificação primária Vincenzo Bonaminio, Roma1 Esce di mano a lui che la vagheggia prima che sia, a guisa di fanciulla che piangendo e ridendo pargoleggia, Poor soul, the centre of my sinful earth, My sinful earth these rebel powers array, Why dost thou pine within and suffer dearth, Painting thy outward walls so costly gay? Why so large cost, having so short a lease, Dost thou upon thy fading mansion spend? (i) l'anima semplicetta che sa nulla, salvo che, mossa da lieto fattore, volontier torna a ciò che la trastulla. Povera anima, centro di mia creta peccatrice,. Schiava di quei ribelli poveri che ti celano, Perché dentro sorridi e soffri fame Sì gaiamente fuori tue pareti adornando? Perché sì folli spese, con sì breve contratto, Sulla tua fuggevole dimora spandi? Pobre alma, centro de minha argila pecadora, Escrava daqueles pobres rebeldes que de guardam, Por que dentro sorri e sofre fome Se felizmente fora as tuas paredes adora? Por que tão desvairadas despesas, com tão breve contrato, Sobre a fugaz moradia despende? (tradução tradutora) W. Shakespeare, Sonnet # 146 Di picciol bene in pria sente sapore; quivi s'inganna, e dietro ad esso corre, se guida o fren non torce suo amore. Dante, Purgatorio, XVI, 85 Vem da mão d’Aquele que a contempla com amor, antes que ela viva – qual uma criança que brinca, chorando e sorrindo – a alma simples que nada sabe, exceto, movida pelo feliz Criador, voltar com gosto, àquilo que lhe agrada. De um pequeno bem sente o sabor, mas com isto se engana e atrás disto corre, se guia ou freio não corrigir-lhe esse amor. “A Divina Comédia”/Dante Alighierei; tradução, introdução e notas de Ronald C. Prater - Brasília:Thesaurus, 2005 1 Analista e Supervisor Didata da Sociedade Psicanalítica Italiana (SPI). 1 As considerações que irei expor neste trabalho têm uma base clínica. Nascem da minha experiência terapêutica de analista de crianças – além de adolescentes e de adultos – e da minha função de supervisor dos residentes em treinamento, que querem aprender o instrumento da psicoterapia e da análise de crianças no âmbito de sua formação de psiquiatras infantis, ou mais especificamente, de psicoterapeutas da idade evolutiva, ou analistas de crianças e adolescentes. Farei, portanto, referência à esta vasta clínica, minha e dos meus colegas ou estudantes - que agradeço de antemão por terem colocado à disposição suas experiências e material – podendo porém transferi-la somente em parte, uma pequena parte, dos muitos exemplos, ou das muitas experiências clínicas, que contribuíram para delinear as minhas idéias sobre este assunto, ou seja: a instauração da psique no soma, que constitui o tema que escolhi tratar. Vou me referir a dois casos clínicos, seguidos em análise por mim e à uma consulta diagnóstica, que supervisionei durante todo o processo de avaliação clínica e também terapêutico. Iniciarei contando a história do “estranho” sintoma de Luana, e do “espelho angustiante” de Gennaro. O “estranho incômodo” de Luana e o “espelho angustiante” de Gennaro Luana Duas senhoras, uma mais jovem, com seus trinta anos, outra mais madura, nos quarenta, estão na sala de espera do consultório do Departamento Universitário de Neuropsiquiatria infantil. Entre as duas está uma garotinha de sete anos e meio, Luana. Quando o nome e sobrenome da mãe e filha são chamados da porta do consultório onde será feita a consulta, as duas mulheres levantam-se em uníssono: cada uma por sua vez pede para que Luana “se mova” e, como a garotinha parece um pouco reticente, ambas empurram-na para dentro. Trata-se da primeira consulta: não é claro, à primeira vista, qual das duas é a mãe da garotinha para quem foi marcada a consulta. Esclarecendo-se, com educação e gentileza, comunica-se que é oportuna somente a presença da mãe e filha na sala. Uma das mulheres, a mais jovem, depois de um olhar tranqüilizador e empático para a outra - que descobriremos mais adiante tratar-se da irmã mais velha - afasta-se dizendo que esperará do lado de fora: “vou aproveitar para fumar” diz. A consulta começa sob um registro claro, quase ostensivo, de uma relação simbiótica entre as duas mulheres na qual a mais velha, a mãe de Luana, pede apoio e reasseguramento à irmã mais nova, que se oferece sem hesitar como “objeto anti-fóbico” em troca, do que se pode dizer, viver “a 2 vida dos outros” - parafraseando o título de um filme - devido à falta de uma gravidez própria e de uma relação sentimental estável, como se verá mais adiante durante a consulta. Mas não é por esta estrada que posso entrar na minha narração sobre o estranho sintoma de Luana, já que expandiria demais o campo de pesquisa. Ao ouvinte, deixem-me dizer, basta saber que, para os fins desta apresentação, Luana, filha única, vive dentro de um núcleo familiar muito simbiótico. E que esta particularidade será delineada durante a consulta com a garotinha como um problema “seu”, e ainda apresentando características evolutivas tipicamente diferentes e peculiares. Mãe e filha se acomodam. Pergunta-se qual seria o motivo da consulta. Para ser breve, devo contar um pouco da história de Luana e da estranheza de seus sintomas prevalentemente através da descrição inicial da mãe. Mas, nas sessões em um setting individual com Luana, que continuaram depois da primeira entrevista (e que depois deram origem a uma indicação de psicoterapia, ainda em andamento) a menina confirma substancialmente, através do jogo e da narrativa de si, a vivência “de estranheza” no corpo. Aliás, fala disso com um tom às vezes conformado, às vezes rebelde. Alterna um discurso adultomórfico a um modo enfaticamente infantil. A senhora começa a contar que Luana “tem dificuldade para vestir-se: sente toda a parte direita do corpo, esse hemisfério, maior do que a esquerda. Assim quando deve vestir-se reclama que as roupas estão mais apertadas de um lado e mais largas do outro”. Isso se associa regularmente à crises de angústia e raiva que podem durar “até duas horas”. Os sintomas tiveram um início evidente oito meses antes da consulta. Mas a senhora é peremptória e determinada ao referir que Luana “desde sempre teve um ‘incômodo’ - assim o chama – na parte direita do corpo”. Desde os dois ou três anos isto era evidente embora de formas mais sutis e controláveis, mas todavia estranhas e perturbadoras: “Imagine que desde muito nova, talvez ainda não tinha completado um ano – acrescenta a senhora – ela tirava somente a meia direita; depois, à medida em que foi crescendo acontecia, por exemplo, que não queria colocar os moletons pois apertavam-lhe o pequeno pulso direito”. Há mais ou menos um ano a freqüência dos episódios críticos passou de 1-2 vezes por mês para todos os dias, com um incremento paralelo também de intensidade. Não há um horário preferencial no qual se manifestam os sintomas: “chegamos ao ponto que todas as vezes em que deve sair tem uma crise”, acrescenta a senhora. Durante estes episódios a garotinha irrita-se muito e tira 3 todas as roupas, “quase as rasga”; grita, chora e joga no ar os sapatos e as outras vestimentas. Os pais não sabem como lidar com tais comportamentos da menina. Tentaram dar-lhe carinho, chamar a atenção, deixar que se tranqüilizasse sozinha, tentaram contê-la, “mas não há meio de acalmá-la”. A senhora acrescenta também que o pai é mais adequado que ela para lidar com a situação: “sabe melhor como levá-la; comigo, ao contrário, partimos para um embate direto”. Ultimamente, o pai inventou o “jogo do cronômetro” para tentar reduzir as reações de angústia da filha, ele cronometra enquanto ela se veste: “Luana concentra-se sobre o fato de que deve ser rápida e veste-se com menos dificuldade”. Luana apresenta também alguns sintomas obsessivos, e isto desde sempre: se recebe um beijo numa bochecha também deve recebê-lo na outra, se alguém toma-lhe um grão de arroz do seu prato, deve então pegar mais um, etc. É como se tivesse que reequilibrar de forma contínua o que ela percebe como “torto”, que incomoda, pois está “desequilibrado” ou “desarmônico”. Gennaro A narrativa de Gennaro na sessão parece-me quase evocar o pertubador que está no incipit do livro de Pirandello “Uno, nessuno, centomila” [Um, nenhum, cem mil (1925)] de Luigi Pirandello: “De um espelho, da sua inquietante superfície, vem refletido o rosto de Gengé [o protagonista], um rosto de si mesmo, até então ignorado, e que revela um nariz inopinadamente pendente à direita: - O que você está fazendo? – perguntou minha mulher vendo-me demorar inusitadamente em frente ao espelho. -Nada, - respondi, estou olhando aqui, dentro do nariz, nesta narina... Apertando-a sinto uma dorzinha. Minha esposa me sorriu e disse: - Pensei que estava olhando para que lado te pende. Virei-me como um cachorro quando lhe pisam no rabo: -Pende? Em mim? O nariz? E minha mulher placidamente: - Mas claro querido. Olha bem: ele pende para a direita. (...) A minha mulher entendeu, talvez, muito mais profundamente que eu, aquela minha raiva, e acrescentou imediatamente que, se eu estava tranqüilo na certeza de ser totalmente sem defeito, que eu podia sair desta certeza, porque assim como o meu nariz pendia para a direita, também... - O que mais? - E mais, mais! Mais! As minhas sobrancelhas pareciam como dois acentos circunflexos ^^ , as minhas orelhas eram mal coladas, uma mais saliente do que a outra e outros defeitos... - Ainda outros? - Eh sim, ainda ... (...)” 4 O núcleo central de “Um, Nenhum, Cem mil” é a análise impiedosa de Pirandello sobre a ambigüidade e da "difusão" da identidade do indivíduo na multiplicidade impessoal e despersonalizante. Também para Gennaro, a ambigüidade e a intolerância da sua identidade derivada do seu Self corpóreo é o núcleo central do seu problema. Para Gennaro, um adolescente de 19 anos, que iniciou recentemente comigo uma análise com uma freqüência de três sessões semanais, a desarmonia do seu corpo representa um desgosto fundamental que o faz sentir-se “diferente”, “não à vontade” e coagido a recorrer, de forma contínua, a operações de “ajuste corpóreo de impostação física” quando está com os outros: e isto – diz desconsolado – o faz sentir-se esquisito, inseguro, não espontâneo, levando-o a auto observar-se constantemente. Por conseqüência, isto subtrai energia para outras experiências de si. Tenho a impressão que ele “pega no ar” o tênue aceno que lhe faço sobre o uso do divã analítico, que percebo olhar muitas vezes da poltrona durante as primeiras consultas. Aliás, é quase ele mesmo que o pede desde o início, como que para fugir do meu olhar, pois teme possa transmitirlhe a impressão - expressa sobre o meu rosto - da “percepção real” - assim a chama - ou seja, da desarmonia de uma parte do seu rosto, à direita, da percepção do seu rosto torto. Uma vez deitado sobre o divã, justifica a sua escolha dizendo que ele quer fazer uma “verdadeira análise” que pegue o problema pela raiz. E com tal afirmação, Gennaro, de forma não consciente, mas na comunicação transferêncial, indica-me imediatamente “a estrada a ser tomada”, que não somente chega às raízes mais profundas no seu senso de si corpóreo mas, provavelmente também, àquelas históricas que remetem à fase germinativa no sentido de existir no corpo. Na transferência inicial, a urgência de Gennaro em deitarse no divã é um enactment, cujos “poderes evocativos”, compelem sua necessidade de automutilação, como por assim dizer, mutilando o campo visual do analista devido ao seu difuso sentimento de vergonha. Como K. Wright (1991) demonstrou de forma convincente, tanto clinicamente como conceitualmente, "a vergonha - o ser visto como um objeto, o ser visto pela visão do outro - traz de volta a idéia de que o Self como objeto visual é, originariamente, constituído onde a experiência (interna) de cada um e a visão do Outro (externa) invariavelmente se encontram na interface entre as pessoas" (K. Wright, 1991, p.29). O contato visual é um dos componentes principais da capacidade da mãe de dar à criança uma experiência de ser contida (holding), isto é, uma em que todas as partes podem ser contidas (be held) juntas numa unidade coerente. E isto constitui o que Winnicott chama 5 de realização da integração que garante a experiência de continuidade (going-on) (cf. Giannakoulas, 2005) ou como Kenneth Wright (2008) recentemente afirmou a possibilidade de ser. Ao mesmo tempo, tenho a impressão que ao deitar-se sobre o divã, quase como uma atuação, um acting-out, Gennaro quer fugir ativamente do meu olhar repetindo, ab initio e in toto, na transferência, aquilo que se pode pensar que seja uma carência de contenção de investimento visual por parte do objeto primário no qual re-espelhar-se. “O que vê o bebê quando olha o rosto da mãe?”, perguntou-se Winnicott no ensaio “ O papel de espelho da mãe” (1967) incluído em O Brincar e a realidade. “O que o bebê vê é ele mesmo”. Em outras palavras, a mãe olha para o seu bebê e “aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali” (p.191). Esta referência – como ele mesmo diz textualmente – “a função materna de devolver à criança o próprio self" (p. 199), constitui a matriz para a metáfora da relação analítica e a função da interpretação do analista: "O vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (Self) no rosto da mãe e, posteriormente, num espelho, proporcionam um modo de olhar a análise e a tarefa psicoterapêutica. Psicoterapia não é fazer interpretações brilhantes e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz.(...) O paciente descobrirá o seu próprio eu (Self) e será capaz de existir e sentir-se real” (p.199). Somos imediatamente conduzidos, quer com Gennaro ou quer com Luana, para uma área primária e primitiva da vida psíquica, onde se constituem os processos fundamentais para o senso de continuidade da existência do Self no corpo, e que parecem distorcidos, deslocados, não perfeitamente colocados “em foco” e, portanto, interferem continuamente sobre o senso de si - como claramente diz Gennaro com a sua inteligência aguda que é acompanhada por um humor sutil, porém consistentemente deprimido. Conjecturalmente, podemos também relacionar estes estados a uma origem muito primitiva que se poderia descrever como enclaves psicossomáticos, ou encapsulamentos, nos termos em que Frances Tustin (1981, p.32-33; 1990; Bion, 1962) parece ter intuído quando falou de uma divisão binária entre corpo e Self. Ela também fez referências a como esta divisão binária entre corpo e Self opera em diversas formas de organizações autísticas, encapsuladas, confusas, fragmentadas, adquirindo manifestações significativamente diferenciadas. Seguindo estas conjecturas “reconstrutivas", não poderemos negar que na base destes tipos de 6 distúrbios no sentido de corpo e Self, há uma “organização primitiva de defesa” muito sofisticada, por exemplo, aquela dos encapsulamentos ou enclaves autísticos. Em desenvolvimentos mais tardios, estes têm, até certo ponto, um efeito profundo no sentido de individualidade e identidade do self. A própria Tustin parece fazer alusão a isto quando descreve “o ‘corpo-Self’ da criança", ou a sua 'sensação-Self’, seu ‘Self-básico’, seu ‘Self-arcaico’, seu ‘Self-sentido’ (todos estes adjetivos que usa insistem em coisas das quais a psique brota e se desenvolve). Tustin liga explicitamente suas idéias aos temas que Winnicott escreveu extensivamente em termos de ruptura psicótica entre psique e soma (1981, p.186; Hansen, Y. ,1994; J. Mitrani, 1992, 1996). É interessante notar o modo pelo qual Tustin inicia a sua aproximação às áreas primitivas do desenvolvimento precoce, que parecem-lhe estar fora do domínio das descrições kleinianas da primeira infância. Ela direciona sua mente à Winnicott, embora não possa completamente abraçar a linguagem de Winnicott; é como se ainda se sentisse “obrigada” a usar os termos kleinianos como split, splitting. Talvez, naquela época, ela não possuísse outro vocabulário além do estabelecido e kleiniano, e ela ainda não podia observar as diferenças semânticas (e conceituais) entre splitting e dissociation, um termo usado por Winnicott para explicar a falência na integração entre psique e soma. Como estudante e supervisionando da Sra. Tustin por mais de dez anos (começando em meados dos anos 70), lembro-me bem como em supervisões individuais ou de grupo, assim como na comunicação pessoal, ela fazia uso de referências, pode-se dizer tímidas, porém constantes, ao fenômeno clínico descrito por Winnicott que a fascinava, pois “faziam sentido” para ela e para sua experiência com as crianças autistas. Uma vez me disse que as descrições clínicas de Winnicott (que descobrira tarde em sua vida e que achou muito estimulante) “não poderiam ser pensadas” por ela a não ser em sua própria (da Tustin) terminologia, e que tudo não estava “coberto” ou sobreposto com a sua terminologia. Mais tarde, no fim de sua vida, ela dizia - como Suzanne Maiello (1995) conta que deveríamos “crescer além de nossa própria teoria”, por exemplo, deveríamos ultrapassar nossas formulações consolidadas, se estas são “superadas”, em respeito à evidência e descrição clínica, e reconhecer nossos próprios erros (Tustin, 1994). Porém naquela época, em meados dos anos 70, contando-me sobre seu esforço em incluir as descrições recém encontradas de Winnicott sobre o desenvolvimento precoce do Self e das ansiedades primitivas, a minha impressão era de que ela estava tanto admitindo uma limitação, assim como orgulhosamente apoiando-se em seu treinamento kleiniano bem consolidado e em sua análise com Bion. 7 Voltemos agora para Gennaro, para apreciarmos como, na sua narrativa, o sentido de estar fora de sua forma está profundamente enraizado, como tentei hipotetizar nos comentários a seguir (Bonaminio, 2008): “Desde pequeno – diz – mas bem pequeno, tipo quando eu tinha uns três anos, ou até menos, sempre me senti ‘deslocado’ como se eu não estivesse perfeitamente dentro do meu corpo, como se o meu corpo estivesse um pouco largo pra mim ou talvez meio apertado, como se um lado meu ficasse um pouco para fora, mas só um pouco. Como quando me compravam um casaco de chuva de um tamanho maior - assim serviria também para o ano seguinte - e eu tinha vergonha de usá-lo, pois evidenciava o quanto eu era ‘torto’; ou quando eu usava um moletom do ano anterior: os pulsos curtos, as axilas ficavam apertadas e a linha da cintura muito alta.” Ainda hoje tem um problema análogo, não só com o seu rosto, mas com o formato dos cabelos: passa horas para decidir quando lavá-los porque, se sabe que precisa usar o capacete para andar de moto, os cabelos apenas lavados ficam com uma “forma ridícula”, ficam todos virados para um lado, armados, enquanto do outro lado, amassado”, e deste modo, revelam a forma assimétrica de sua cabeça. E então, passa horas calculando o momento, o dia da semana para lavá-los, quando sabe que não usará logo a moto, ou então, que deve ir á uma festa, ou ainda que encontrará os amigos no pub. Gennaro diz que não suporta olhar-se nas fotografias tiradas quando era pequeno e nas junto à mãe e ao pai; ou pior, naquelas de turma da escola primária ou do jardim da infância, porque já naquela época era clara a “desarmonia” no rosto e nos cabelos. E esta é a “prova comprovada” – além de qualquer tentativa de convencê-lo do contrário – do que ele já sentia naquela época. Os pais, para os quais ele reclamava “sua estranheza”, passavam por cima disto como uma coisa chata, como algo que não se deveria pensar, e que passaria com o tempo. Ele, pelo contrário, gostaria de ir de casa em casa, dos seus colegas de então, para buscar as várias cópias daquelas fotos horríveis e destruí-las para sempre. Na transferência, Gennaro me pede quase explicitamente, pode-se dizer que eu não passe por cima destas suas sensações, que as ouça, as entenda, as leve a sério, mas, que primeiramente as aceite. Ele se lembra bem que o primeiro “trauma” aconteceu aos seus cinco/seis anos, quando fazia aula de natação, a qual não mais lhe agradou. No vestiário, um dia, os amiguinhos vendo-o no grande 8 espelho que cobria quase toda uma parede, o haviam ridicularizado: “olha este aí com essa cara de pudim doing doing doing, parece ser feita de massinha e que saiu torta”. Ele sentiu como se estivesse morrendo, quase vomitou, mas não pode fazer outra coisa além de aceitar a confirmação daquilo que havia sempre sentido e percebido. Desde então, odiou a natação, os colegas, os pais, o professor de natação. Era um sofrimento precisar arriscar ser “desmascarado” e caçoado pela desarmonia do seu rosto, dos seus cabelos. Mas era assim: os seus colegas o viam no espelho, isto é, ao contrário de como sempre o viam, e notavam o seu rosto torto, o mesmo rosto que ele sempre via no espelho, isto é, o rosto com o qual ele se via e se reconhecia e do qual não podia escapar: “Não é possível sair de si para ver-se do lado de fora como se é realmente, ou melhor, não posso debruçar-me mais ainda do quanto já não me sinta “debruçado” pra fora, torto. Quando estou no Metrô procuro evitar de me olhar, ainda que rapidamente e por acaso, nos vidros da janela que se tornam “espelhados” quando se está dentro do túnel, mas fico atraído também, quase por uma força magnética que me empurra, para eu me olhar porque, sem me dar conta, queria me surpreender e olhar-me do lado de fora.” Acrescenta: “ no fundo é como se eu estivesse sempre na tentativa de ver-me do lado de fora, como se a minha mente estivesse, por assim dizer, fora de mim, assim eu posso controlar como eu sou, como os outros me vêem, e então fico esquisito, ”impostado”, “ajeitando-me de propósito” para fazer uma determinada ação, sei lá, na entrada com um grupo de amigos, e me sinto desnudado, sem qualquer espontaneidade. Queria me sentir livre, cada parte no seu lugar e a mente dentro da minha cabeça, não fora, como frequentemente a sinto quando observo o meu corpo, a sinto mover-se; queria colocá-la num lugar certo para não ter que pensar nisso”. Nota-se, além da forma dramática da sua descrição, o pedido de ser entendido pelo analista, ainda que o modo narrativo quase filosófico-existencial, que põe bem em evidência a contradição, o paradoxo do tipo de uma espécie de lúcida hiper-consciência de si, da qual não pode se privar, mas da qual desejaria se livrar. Para Gennaro, portanto, a desarmonia é tanto um dado “natural” do seu rosto (ele teve este azar, ele diz), quanto o resultado da sua tentativa vazia de “ver-se de fora para saber realmente como se sente por dentro”. Uma condição paradoxal, muito angustiante. Estas manifestações que podem parecer graves em termos psicopatológicos para quem trabalha com adolescentes são, pelo contrário, narrações que, se não são encontradas com freqüência, tampouco são raras, e são acompanhadas por todas as formas de dismorfo-fobias, típicas da adolescência. Como também, transformações somáticas que irrompem no corpo na fase da 9 puberdade, chacoalhando as bases, e colocando o adolescente em risco de viver aquele break-down evolutivo do qual nos falam os Laufer - que nos ensinam a reconhecer a importância da articulação e do risco evolutivo. Naturalmente, o risco do desmoronamento evolutivo sob a pressão das rápidas mudanças pulsionais e do “senso de si”, permanece sempre um risco, e não necessariamente se concretiza como uma ruptura psicótica do “senso de si”. Muitas vezes, estas manifestações retraem-se de forma espontânea, sustentadas por um processo silencioso de elaboração interna. Na análise de adultos, às vezes é possível observar através dos sonhos ou das lembranças, ou ainda na transferência, os sinais arqueológicos, resquícios desta atormentada experiência da adolescência no que se refere ao relacionamento entre mente, psique e soma. Por outro lado, o que caracteriza o ponto crítico nas experiências de Luana e Gennaro, é a persistência delas, a continuidade durante o tempo de vida vivida até aquele momento, e a sua localização num determinado ponto do percurso evolutivo do zero aos seis anos. Dos seus discursos, das suas narrações, sentimo-nos imediatamente induzidos a considerar as fases primitivas e primárias do desenvolvimento individual, constitutivas do Self e do “senso de si”, que têm a ver com os processos de amadurecimento de base que, facilitados ou obstruídos pelo ambiente, se referem à integração e a não-integração primária e à pseudo-integração. Ou seja, a precoce hiper-dependência dos processos mentais, a personalização e o conjunto de situações de despersonalização que indicam que algo “deu errado”- parafraseando as palavras de Gennaro - neste processo. A instalação da psique no soma é a base deste processo de personalização que se realiza nos primeiros meses, nas primeiras semanas de vida, facilitada pelos cuidados maternos.É um processo que não pode ser considerado implícito e que a genialidade da obra de Winnicott, justamente neste caso, nos ajuda a compreender melhor o fundamento da existência do individuo no próprio corpo, o significado da pulsão, as fantasias do corpo e sobre o corpo, e o surgimento da individualidade. Eis o cerne da minha argüição. No seu ensaio de 1945 "Primitive Emotional Development” - um ensaio que, dizendo de forma implícita, é um tipo de masterplan, de um "manifesto programático", ainda que inconsciente, que contém em nuance todos os desenvolvimentos futuros da sua reflexão clínica e conceitual – 10 Winnicott é muito claro em traçar as linhas fundamentais daquelas que são, para ele, as fases germinativas da vida psíquica. Correndo o risco de esquematizar as riquezas do seu discurso, as resumirei sinteticamente, usando as suas próprias palavras: “Existem três processos que, parece-me, começam de muito precocemente: 1) a integração, 2) a personalização e, a seguir, 3) a valorização do tempo e do espaço e das outras características da realidade, e mais, a aquisição do senso de realidade (...) A integração começa desde o início da vida, porém, no nosso trabalho, não podemos nunca tomá-la como fato óbvio. Devemos estar conscientes de seu funcionamento e observar suas flutuações. Um exemplo do fenômeno de nãointegração nos é oferecido pela experiência muito comum do paciente que nos dá cada detalhe do seu final de semana, e sente-se no final satisfeito se tudo foi dito, mesmo que o analista se dê conta que nenhum trabalho analítico tenha sido feito. Algumas vezes temos que interpretar este comportamento do paciente como a sua necessidade de ser conhecido em todas as partes por uma pessoa: o analista. Ser conhecido significa sentir-se integrado ao menos na pessoa do analista. Isto é habitual na vida da criança pequena, e uma criança que não tenha nenhuma pessoa para reunir os seus pedaços, uns aos outros, começa com uma desvantagem na integração do Self que deve cumprir, e pode ser que não consiga alcançá-la e não consiga mantê-la com a confiança necessária. A tendência à integração é sustentada por dois tipos de experiências: a técnica dos cuidados maternos que faz com que a criança seja mantida no calor, cuidada, ninada, chamada pelo seu nome, como também as intensas experiências instintivas que, desde dentro, tendem a reunir num todo único os segmentos da personalidade. (...) Há longos períodos, na vida da criança, durante os quais pouco importa a ela de estar dividida em tantas partes, ou de estar inteira, de viver no rosto de sua mãe ou de viver no próprio corpo, desde que, às vezes, se una e sinta alguma coisa. Em seqüência, tentarei explicar porque a desintegração é aterrorizante enquanto não o é a não-integração (...) É na situação da transferência da análise dos psicóticos que obtemos a prova mais clara que o estado psicótico de não-integração tinha um lugar natural no estádio primitivo do desenvolvimento emocional do indivíduo. (...) Tão importante quanto a integração é o desenvolvimento do sentimento que se tem da pessoa estar dentro do próprio corpo. “Ainda mais uma vez, são as experiências excitadas e as experiências tranquilas repetidas, dos cuidados oferecidos ao corpo que estabelecem 11 gradativamente o que se pode chamar uma personalização satisfatória. E assim, como para a desintegração, também os fenômenos de despersonalização da psicose ligam-se aos atrasos da personalização ocorridos em fase precoce" (1945). Mas voltemos por um momento para Luana. Os pais da garotinha consultaram o pediatra da família pela persistência do “incômodo” do qual a menina reclamava, e este os enviou ao nosso departamento com um diagnostico de “distúrbio da imagem corpórea e da percepção”, e com indicação de psicoterapia. Durante a consulta, a menina não parece preocupada, nem assustada; alterna momentos em que parece mais velha do que é, nos quais descreve com exatidão o sintoma e a percepção que tem, o incômodo que “a persegue e não a deixa ficar tranqüila”, como se fosse uma estranha no seu corpo: “o sinto estranho”, diz; com momentos em que parece regredir: esconde o rosto com o braço aproximando-se da mãe. Os comportamentos regressivos se manifestam com mais freqüência diante das minhas perguntas feitas diretamente à garotinha, com o objetivo de compreender percepções, sensações e sentimentos relacionados ao vestir-se. A mãe se mostra indecisa em relação à Luana: por um lado pede a ela que me responda, por outro, o tom destes pedidos traem um temor e uma condescendência que me fazem pensar numa adesividade materna, num “regime semi-ditatorial” da garotinha. O seu tom varia entre a complacência e a “falsa ironia”, tentando de forma desajeitada deixar a paciente à vontade e, ao mesmo tempo, diminuir o significado das suas reações emotivas. Durante o primeiro encontro mal escondo a sensação de alarme que me provoca ao ouvir os sintomas da garotinha. Muitas interrogações me ocorrem a propósito da peculiaridade do sintoma apresentado de forma absoluta, mas ainda mais, em relação à sua jovem idade e ao delicado período evolutivo que Luana está atravessando. Parece que se pode colher, quase ao vivo, das narrações de Luana e da mãe sobre ela, um defeito de integração da mente e do corpo, cujo êxito e cujo destino interferem no clínico, que decide, por isso, a favor de uma psicoterapia que possa oferecer à menina um lugar onde ela possa levar a incipiente “dissociação mente-corpo”, correndo o risco de um Spaltung ulterior, e onde possa ser ajudada a “recolher os pedaços espalhados”, graças à escuta e ao holding do terapeuta que, através da transferência prevalentemente pré verbal, poderá oferecer-se à menina como um objeto aglutinador que possa ser introjetado. Isto é o “racional” que o projeto psicoterapêutico sustenta. 12 A integração de mente e corpo é descrita por Winnicott como uma “colusão psicossomática”, a qual se refere também em termos de “psiche in-dwelling in the soma”. O termo in-dwelling descreve o êxito positivo de um processo de personalização que ocorre como resultado do handling (manipulação) materno do bebê durante a fase do holding , uma fase de dependência absoluta do bebê, quando a mãe (sana) está no estado de preocupação materna primária. O uso que Winnicott faz da palavra psique merece uma atenção particular, porque a distingue de outros usos de outros autores só aparentemente análogos: para Winnicott a psique é “elaboração imaginativa das partes somáticas, sentimentos e funções, e é praticamente sinônimo de fantasia, realidade interna, e Self.” (cfr J. Abram,1996). Analogamente o termo mind é usado por Winnicott em uma acepção de fato diversa daquela normalmente em uso na psicanálise; por exemplo, é totalmente diversa da acepção bioniana. “Mente” (mind) é para Winnicott uma defesa sofisticada que surge precocemente como resultado da falência de uma satisfatória integração, colusão, ou instalação da psique no corpo. É para Winnicott a expressão de uma dissociação no indivíduo, e descreve prevalentemente um funcionamento intelectual aonde o indivíduo sente a mente como uma entidade separada e não como parte integrada do seu senso de si. Os sinais desta “defesa mental”, desta dissociação, são evidentes nas narrativas de Gennaro e Luana como creio ter mostrado. O ensaio de 1970 On The Basis for Self in Body, escrito um ano antes da sua morte, é ainda mais esclarecedor sobre este conceito da personalização/des-personalização, tão relevante para a nossa argumentação. “Adotei o termo “personalização” – ele escreve -, como um tipo de forma positiva de despersonalização, termo usado e discutido amplamente. À palavra “despersonalização” foram atribuídos diversos significados, mas no todo estes se relacionavam à perda de contato da criança ou do paciente com o próprio corpo e com o funcionamento corpóreo, o que implica na existência de algum outro aspecto da personalidade. Com o termo “personalização” queria chamar atenção sobre o fato que a inserção desta parte da personalidade no corpo e a ligação estável com qualquer coisa que possa chamar-se “psique” representa, em termos de desenvolvimento, uma conquista da saúde. É uma conquista que se estabelece gradativamente, e que certamente não é patológica, mas um verdadeiro sinal de saúde de que a criança possa usar relações nas quais coloca a máxima confiança, e que em tais relações às vezes se desintegre, se despersonalize e, por um momento, possa até abandonar a necessidade, quase fundamental, de existir e sentir-se existente. As duas coisas caminham juntas no desenvolvimento sadio: o senso de confiança numa relação oferece a 13 oportunidade de uma serena inversão dos processos integrativos, enquanto ao mesmo tempo, facilita a tendência geral e inata que a criança tem em relação à integração e, como não me canso de evidenciar neste texto, em relação à instalação (indwelling) da psique no corpo e no funcionamento corpóreo. O desenvolvimento que se segue está estritamente conectado a este processo, como com outros aspectos da integração, mas sua continuidade, é de todos os pontos de vista assustadora para quem teme não poder voltar para trás à total dependência. E isto é particularmente verdadeiro dos dois aos cinco anos, depois de que, em termos de experiência clínica, o retorno à dependência é obscurecido por uma série de passos mais evoluídos. Durante a adolescência há um novo período em que, por causa das vastas implicações do novo e rápido desenvolvimento da capacidade de enfrentar o mundo, retorna a necessidade de deixar uma estrada aberta em direção à dependência. Clinicamente é fácil que isto se manifeste na fase da pré-puberdade, dos doze aos quatorze anos, depois disto, a dependência é facilmente absorvida pela dependência natural, privada de elementos regressivos relativos aos pais, que já olha para a condição adulta, e isto chama-se apaixonamento, e de todos os tipos de experiências que tem a ver com este estado. “O termo “personalização” que usei a meu beneíicio, poderia não ser aceito em linha geral, mas me deixou apto para fornecer alguns exemplos de trabalho clínico que me pareceram relevantes para estes aspectos das conquistas do desenvolvimento humano” (1970, p.284-285). Também o termo in-dwelling merece uma atenção particular: ele é usado por Winnicott de modo idiossincrático, por assim dizer, pegando emprestado um vocábulo incomum da língua inglesa. O in-dwelling se refere “ao ocupar um lugar, um espaço, um habitar um lugar, ao arrumar-se, acomodar-se em um lugar”. Tem então para Winnicott uma acepção positiva que poderemos traduzir em italiano como o hospedar da psique no corpo, o sentir-se bem dentro do corpo como se sente na própria casa. Onde “vive” o menino autista? Onde se encontra a sua alma, o seu elemento humano, que as recentes teorias neurobiológicas e neuro-cognitivas - às quais devemos muito em termos de conhecimento das diversas formas em que se apresentam os disturbio do chamado “spectrum autístico” – parecem não querer levar em consideração, na pressa afoita de descobrir quanto de “falso” e “fora do trilho” - como dizem - teria sido veiculada a compreensão psicanalítica do autismo, até o ponto de desumanizar a criança autista, indo assim exatamente na mesma direção na qual tende a defesa autista? 14 Antonio e a mosca voadora Onde habita, então, a criança autista, em termos de “experiência interna”, por ser elementar ou estar enterrada pelas próprias estereotipias? Está sempre dentro do seu corpo, ou o corpo é – como dizia Bruno Bettelheim – uma “fortaleza vazia”? Ou então, como replicava Winnicott, somente em alguns casos a fortaleza está realmente vazia, pois amiúde permaneceu-lhe dentro algo que deve ser defendido, algo que vale a pena proteger, mesmo que com um tipo de defesa tão sofisticada e radical como a autística. Penso em Antonio, um garotinho autista de quatro anos e meio, que tive em tratamento por três anos desde que, após uma consulta clínica aprofundada - em todas as áreas até então exploráveis por uma estrutura como aquela do Instituto de Psiquiatria Infantil - diagnosticou-se um autismo do tipo “confusional” segundo a classificação de Frances Tustin, com quem havíamos trabalhado por mais de dez anos. Estamos no segundo ano de psicoterapia. Algumas mudanças significativas aconteceram: de um difuso desassossego inicial e de uma descarga contínua de estereotipias motoras e lingüísticas, Antonio, que vejo com uma freqüência de três vezes por semana, tornou-se progressivamente mais capaz de “juntar-se” a mim, embora de forma intermitente. No período de um ano apareceram formas intermitentes de jogo quase simbólico, antes praticamente inexistentes. Também se observou o uso apropriado, na sala de análise, dos vários objetos colocados à sua disposição e da decoração da sala; capacidade de manter um contato visual com o analista; trechos de interação lingüística antes quase ausentes, ou substituídos por vocalizações guturais bastante articuladas, mas que expressavam, sobretudo, uma descarga de tipo afetivo. Esta sessão que trago, é uma que me encontro num estado de espera ansioso e preocupado. É um período em que Antonio foi separado da mãe por quase dez dias devido a uma cirurgia. “Mudou-se” para casa dos avós maternos junto à babá, que é quem o acompanha durante a sessão devido à ausência temporária da mãe. A babá “esqueceu” de acompanhá-lo à sessão na segunda-feira anterior – como viria a saber mais adiante, logo após um telefonema noturno - e agora, quarta-feira, a minha espera para vê-lo aparecer no fundo do corredor que o traz até a minha sala é bem ansiosa. Penso que me encontrarei diante de um menino que sofreu uma tripla privação: da mãe, ausente 15 porque hospitalizada, a falta de cuidado da babá, que se “esqueceu” de um compromisso que o garotinho havia já interiorizado como um encontro ritual, e a ausência do analista que aos seus olhos, acredito, teria aparecido como ‘mal’, pois o havia deixado de lado. Quando o vejo aparecer no fundo do longo corredor – eu o espero, como sempre, em frente à porta, mas suficientemente à vista para ser visto e para que ele se dê conta, mesmo longe, da minha presença - me “alivio” imediatamente: o garotinho corre em minha direção, como empurrado, puxado por uma força de atração. Se “solta” da mão da babá e atravessa o corredor correndo, diferente do habitual, mas com seu típico modo de andar: na ponta dos pés, o eixo do corpo inclinado à frente, a cabeça ainda mais adiantada como aquela de um corredor de prova de cem metros, o qual tenta cortar os adversários “com o máximo possível do seu corpo” projetando-se à frente. Os braços, semi-flexionados, saem do tronco como duas asinhas não completamente abertas. As mãos, girando de forma frenética como duas hélices. Parece-me, pela imagem que vejo, que o garotinho voa em minha direção para “juntar-se” de novo a mim. Parece. Mas quando se aproxima, dou-me conta que não é bem assim: vivo um fugaz momento de desilusão. Antonio está definhado, pálido, me parece mais magro que o normal, como se o seu corpo estivesse vazio e seus nervos tensos. Faz uma curva correndo dentro da sala, quase me empurrando de lado, ainda que eu lhe tenha dito inclinando-me em sua direção: “Antonio, bemvindo, finalmente você está aqui! Vincenzo estava esperando você!”. No fundo, dou-me conta que estou “falando” com o “garotinho que não está”, como mil vezes nos havia dito Francis Tustin colocando-nos em sobreaviso, durante as suas supervisões, sobre o risco de “construir” uma criança inexistente para preencher o vazio de comunicação, de sentimentos, de símbolos, dos quais uma criança autista pode ser portadora temporariamente ou permanentemente. Enfim, havia-me “predisposto” em relação a ele, achando que estaria entrando em sintonia com aquele humano que naquele momento não existia, e que eu, pelo contrário, insistia em ver para me reassegurar. Antonio, pelo contrário, naquele momento está ausente como um pequeno alienígena assustado, assim me parece, que se encontra na sala como se por acaso tivesse entrado num beco sem saída. Não sabe o que fazer. Continua por um tempo a correr em círculos, depois a sua corrida termina, quase que se apaga, e a criança se joga ao chão como um boneco sem fios. Digo-lhe, agora sintonizado num nível de comunicação que me parece mais próximo à sua experiência: “Antonio está assustado, não sabe onde está, se sente como um “Pimpi” [o boneco de pano da série Winnie the Pooh que às vezes traz consigo durante as sessões] jogado assim no chão.” 16 A minha rápida mudança de registro, ao tentar sintonizar a minha comunicação com o garotinho num nível no qual acredito que eu “sinto” que ele esteja, é todavia perturbada pelo zumbir de uma mosca que ficou presa na minha sala quando fechei a porta atrás de mim assim que entrou Antonio. Às vezes, ouve-se um pequeno golpe seco que me incomoda muito: é a mosca que tenta sair, atraída pela luz, mas continua batendo contra o amplo vidro da minha janela. É uma janela basculante, e sendo assim não posso abri-la totalmente para deixá-la sair, mas está semi-aberta pois há uma fresta. Noto que Antonio sente-se progressivamente atraído pelo barulho e pelo zumbido da mosca. Parece perturbado como eu, mas penso que pelo menos aquela é uma reação vital em relação ao afrouxamento anterior. A atração pelo zumbido torna-se uma verdadeira vitalidade, uma presença do garotinho naquela situação quando, com o olhar, consegue focalizar a mosca que gira enlouquecidamente na sala. Digo-lhe que “aquela mosca, que gira e bate as asas no vidro, é como Antonio. Ela também se sente assustada e fora do lugar. Não sabe onde está, e tampouco sabe quem é. Bate e machuca, mas não sabe o porquê, sente só o “dodói”. Como Antonio, que tem “dodói” por todo lado e não sabe o porquê. A mamãe não está e ele não sabe o porquê; ele está em uma outra casa e não sabe o porquê; Lilli se esqueceu de levá-lo ao Vincenzo e não sabe o porquê; Vincenzo “desapareceu” outro dia, foi mal com ele, também lhe fez “dodói” e ele não sabe o porquê. Ele nem reconhece mais o Vincenzo”. Desta vez, parece-me que o Antonio demonstra “compreender” o que lhe estou dizendo sobre ele e sobre a mosca. A sua atenção parece tornar-se ligeiramente mais focada. “Reanimado” por este tênue gancho digo-lhe quase sem pensar: “Escuta Antonio, vamos mandar esta mosca para a sua casinha? Porque assim ela está perdida e acaba se machucando, o que você acha? Vincenzo abre a porta para ela sair? Assim ela encontra o caminho de casa e se sente de novo inteira e não fica mais com medo?” Incrível como ao pronunciar a palavra “porta” Antonio levanta-se e aproxima-se da mesma, tenta seguir com dificuldade o vôo sempre mais inconstante da mosca: abro a porta, e por um momento me vejo com Antonio como se fôssemos “guardiões”, ao lado de uma passagem, vigilantes e prontos para verificar se algo vai acontecer. Retrospectivamente (nachträglich), posso dizer que naquele momento eu e o garotinho estávamos como diante de um espelho: ele é eu e eu sou ele. Retrospectivamente, posso dizer que aquele é um momento transitório de sintonia entre eu e ele, poderia dizer que estávamos na área da identificação primária. 17 Logo a mosca acha a sua estrada e ambos, acredito, a vemos passar pela porta. Antonio dá um passo para fora, no corredor, como se quisesse seguir o vôo. Há também uma insinuação de um movimento da mão, como se indicasse a mosca, ou como se quisesse juntar-se a ela para fazer-se levar. Logo, espontaneamente, volta para sala. Está mais tranqüilo, ou ao menos assim me parece, como se uma experiência tivesse sido cumprida, como se uma experiência tivesse seguido o seu curso completando-se. Digo-lhe: “Ainda bem que a mosca encontrou o seu caminho de casa, imagine como vai estar bem lá! Até o Antonio reencontrou a sua sala, reencontrou o Vincenzo, e agora se sente mais inteiro”; e mais adiante: “Agora o Antonio reconhece as suas coisas, os seus pedacinhos de madeira, os seus brinquedos” – digo-lhe enquanto noto que, explorando com o olhar as paredes da sala, ele lentamente se aproxima do móvel que contém as suas coisas. Passam-se ainda alguns segundos e o ouço sussurrar, como se estivesse falando sozinho, “bincar” que na sua linguagem significa “brincar”. “Tá vivo”: é a expressão que ele usa quando manipula os seus brinquedos que estão quase todos quebrados, os seus bloquinhos de madeira, os pedacinhos de pano trazidos de casa durante este primeiro ano de terapia. Assim, Winnicott, no capitulo 3 de Natureza Humana, complementa o artigo já citado Sobre as bases do Self no corpo - que vale a pena ser citado porque é precedente a este - conhecido na forma de anotações, e que, depois deveria ter sido desenvolvido na forma de um livro: “Como é fácil considerar óbvia a localização da psique no corpo, esquecendo mais uma vez que se trata de algo a ser alcançado. É uma aquisição que de modo algum se encontra ao alcance de todos. Em alguns, este processo é a até mesmo exagerado, forçado por pais muito orgulhosos com as realizações infantis.. Mesmo aqueles que parecem viver em seu corpo podem desenvolver a idéia de existir um pouco para além da pele, e a palavra ectoplasma parece ter sido aplicada à parte do Self não contida pelo corpo. Por contraste, na histeria, pode existir uma situação em que a pele não está incluída na personalidade, tornando-se até mesmo destituída de vida e de sentido para o paciente. Universalmente, a pele é de importância obvia no processo de localização da psique exatamente no e dentro do corpo. O manuseio da pele no cuidado do bebê é um fator importante no estímulo à uma vida saudável dentro do corpo, da mesma forma como os modos de segurar a criança auxiliam o processo de integração. Se a utilização de processos intelectuais cria obstáculos 18 para a coexistêncoa entre psique e soma, a experiência de funções e sensações da pele e do erotismo muscular fortalecem essa coexistência. Poderíamos dizer sobre todos os seres humanos que nos momentos em que uma frustração instintiva provoca um sentimento de desesperança ou futilidade, a fixação da psique no corpo enfraquece, sendo então necessário tolerar um período de não relação entre a psique e o soma. Este fenômenno pode ser exarcebado em todos os graus possíveis da doença. A idéia de um fantasma, um espiríto desencarnado, deriva desta falta de ancoragem fundamental da psique no soma. O valor das histórias de fantasmas se deve ao fato de elas chamarem a atenção para a precariedade da coexistência da psique no soma. Aqui há uma aplicação direta da teoria não só ao estudo e tratamento clínico das doenças da pele, como também aos conhecimentos sobre grande parte dos problemas psicossomáticos. Os disturbios psicossomáticos são determinados por muitos fatores, mas aquele geralmente omitido é talvez o mais importante. É comum assistirmos a uma discussão sobre a psicologia de um distúrbio psicossomático sem que se faça menção alguma ao valor positivo que existe para o paciente na vinculação entre algum aspecto da psique a alguma parte do corpo. Existem ansiedades psicóticas subjacentes às pertubações psicossomáticas, ainda que, em muitos casos, em níveis mais superficiais, possam ser percebidos claramente os fatores hipocondríacos ou neuróticos. Não existe uma identidade inerente entre corpo e psique. Da forma como nós, os observadores o vemos, o corpo é essencial para a psique, que depende do funcionamento cerebral, e que surge como uma organização da elaboração imaginativa do funcionamento corporal. Do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, no entanto, o Self e o corpo não são intrinsicamente superpostos, embora, para haver saúde seja necessário que esta superposição se torne um fato, para que o indivíduo venha a poder identificar-se com aquilo que, estritamnete falando, não é o self. Gradualmente, a psique chega a um acordo com o corpo, de tal modo que na saúde existe eventualmente um estado no qual as fronteiras do corpo são também fronteiras da psique. O círculo que uma criança de 3 anos desenha e chama de “pato” é tanto a “ pessoa do pato” quanto o corpo do pato.. Isto é algo que vem a ser alcançado juntamente com a capacidade para usar o pronome na primeira pessoa do singular. É bem conhecido o fato de que nem todos chegam tão longe, e de que muitos perdem aquilo que haviam alcançado. Muito do que foi escrito sobre a integração aplica-se também à instalação da psique no corpo. As experiêncais tranquilas e excitadas dão cada qual a sua próxima contribuição. O processo de localização da psique no corpo se produz a partir de duas direções, a pessoal e a ambiental: a 19 experiência pessoal de impulsos e sensações da pele, de erotismo muscular e instintos envolvendo excitação da pessoa total, e também tudo aquilo que se refere aos cuidados do corpo, à satisfação das exigências instintivas que possibilita a gratificação. Podemos dar neste ponto uma ênfase especial ao exercício físico, especialmente àquele realizado de forma espontânea. Hoje em dia reconhece-se o valor positivo do pequenino prazer que o bebê usufrui ao ser deixado deitado, nu e esperneando. Os efeitos dos cueiros ( enfaixamento) já foram estudados, e verificou-se que eles afetam o desenvolvimento da personalidade. Quando a experiência instintiva é deflagrada em vão, o vínculo entre a psique e o corpo pode vir a se afrouxar ou até mesmo a perder-se. Esse relacionamento, no entanto, retorna com o tempo desde que haja uma boa base para o manejo tranquilo do bebê. Na psiquiatria dos adultos o termo “ despersonalização” é utilizado para descrever a perda da vinculação entre psique e o soma. Esse termo pode ser utilizado para descrever um estado clínico comum de crianças normais, um estado que é geralmente chamado de “ataque de bílis”, ainda que o vômito nem sempre esteja presente: a criança fica por algum tempo flácida, pálida como a morte e inacessível a qualquer contato- mas em pouco tempo ela retorna e se mostra perfeitamente normal, com tônus muscular normal e a pele na temperatura adequada.” (1954-1971 [1988], pp.141-144) Também é interessante, para os fins do nosso discurso, resumir o quanto Winnicott escreve a este respeito, colocando surpreendentemente em oposição, “paranóia” e “ingenuidade” em relação aos processos de integração e de instalação da psique no corpo: Paranóia e ingenuidade Às vezes é instrutivo confrontar dois extremos. No desenvolvimento normal, a integração e a instalação do psico-soma dependem ambos dos fatores pessoais da experiência funcional do viver e dos cuidados ambientais. De vez em quando, porém, o acento vem colocado sobre o primeiro aspecto e às vezes sobre o segundo. No primeiro tipo de desenvolvimento a criança é envolvida pela expectativa de uma perseguição. A junção do Self constitui um ato de hostilidade em relação ao “ não-eu” e o retorno ao repouso não é um retorno a um lugar de paz porque este lugar foi alterado e se tornou perigoso. Porisso, neste caso, se forma uma fonte de disposição paranóide muito precoce, muito precoce mas não herdada e nem verdadeiramente constitucional. 20 No outro extremo, o cuidado ambiental é a causa principal da aglutinação do Self; na verdade se poderia dizer que o Self foi aglutinado. Aqui existe uma relativa ausência de expectativa de perseguição, mas se encontra porém, a base para a ingenuidade, para a incapacidade de esperar a perseguição e para uma irremediável dependência de uma boa provisão ambiental. . No sujeito normal, que se encontra na metade do caminho entre dois extremos, se manisfesta a expectativa de perseguição, mas também a expectativa dos cuidados como proteção da perseguição. Desta condição inicial, o indivíduo pode gradualmente se tornar capaz de substituir os cuidados recebidos por um cuidar de si mesmo, e pode então atingir um grau de independência que não seria possivel nem no extremo ingênuo, nem “naquele paranóide”.(ibidem) Aquilo que descrevo como “in-dwelling of psyche in the body”, ou seja, a instalação da psique no corpo - e que tentei descrever como momento transiente - entendido de forma ambígua no curso do tratamento psicoterapêutico com uma criança autista, é um conceito clínico derivado e desenvolvido do trabalho de Winnicott, que eu encontrei entre tantos, particularmente útil na minha prática clínica. Não somente porque aclara e ilumina de forma eficaz os processos que permaneceriam obscuros ou “tomados como algo subentendido” - já que observa o desenvolver da criança nos seus primeiros meses, ou melhor, nas primeiras semanas de vida - mas também quando o trabalho analítico chega a aflorar àqueles estados de germinação da vida psíquica. Porém, está quase ausente em outros modelos das primeiras fases do desenvolvimento, ou por assim dizer, tão “misturado” com outros processos, até perder a sua importância específica. Digo de forma intencional “ausente” e, portanto, descuidado, omisso, apagado das outras teorias do desenvolvimento e não “dito com outras palavras”. Suponho que esta afirmação dará espaço para um debate, e é isto que espero: o confronto entre os diversos modos de “ver” as fases germinativas da vida psíquica e as suas múltiplas declinações durante o desenvolvimento a seguir, seja aquele normal como também aquele psicopatológico. 21 Algumas considerações epistemológicas sobre fases germinativas da vida psíquica A psicopatologia – e correlatamente a nossa aproximação clínica e terapêutica às várias formas da perturbação psíquica que se apresentam na infância, assim como no curso da primeira juventude; aquela que entendemos como developmental psychopathology, que considera as contínuas e incessantes reestruturações que o desenvolvimento provê e fornece ao indivíduo, as “ocasiões” que brotam do ambiente humano, ou os traumas, ou simplesmente os eventos que lhe pairam na vida – continua a ser, a meu ver, um ponto privilegiado para observar fenômenos que ainda permanecem não vistos pela sua ação silenciosa no desenvolvimento. Como diria Winnicott, isto já é “suficientemente bom”. E não quero repetir quanta “epistemologia” está contida neste advérbio “suficientemente”. Seria necessário outro trabalho para poder enfrentar esta argüição. É somente quando o ambiente “suficientemente bom” falha mais ou menos de forma maciça que é possível ver, através dos efeitos sobre o eu do bebê, estes processos que não aconteceram ou que determinaram, através de um impingment ambiental, uma distorção do desenvolvimento. Como diz Winnicott na sua já famosa metáfora “um bebê não pode recordar-se de ter sido segurado nos braços de forma suficientemente adequada para que esta experiência se torne parte constitutiva do seu eu”. Porém, terá a sensação psicótica de cair no infinito (falling for ever) e será tomado por uma angustia impensável se a experiência vivida for incerta, precária ou até ausente no sentido psíquico. Naturalmente, a ênfase sobre o ponto de vista psicopatológico como vértice revelador dos processos que outrora não seriam visíveis, não implica na diminuição ou desvalorização ou “irrelevância” [como diriam P. H. Wolf e A. Green embora em contextos diferentes] da observação direta da criança e dos dados tomados deste âmbito, e pelo contrário, contribuem da mesma forma em oferecer um quadro articulado do que é o desenvolvimento da criança, tanto nos seus aspectos normais, quanto nas suas diversas patologias mais ou menos graves. Parafraseando uma afirmação do nosso prestigioso colega Daniel Stern, a “criança reconstruída” não é mais importante daquela “observada”. Mas talvez, contrariando Stern, eu diria que a visão retrospectiva que nos oferece o tratamento psicanalítico da criança, irá enriquecer a própria “criança observada” que somente a observação direta pode nos oferecer. É a única visão que pode nos dar acesso àquela dimensão de profundidade psíquica dos processos mentais infantis que de outra forma permaneceriam “esmagados” e, portanto, não vistos na superfície do comportamento 22 observável. Estou falando aqui da Nachträglichkeit, da posteridade, do aprés-coup que Winnicott descreve de forma exemplar quando enfrenta o tema da diferença entre “profundo” e “precoce”. Convém determo-nos, mesmo de forma breve, numa pequena digressão sobre a distinção de Winnicott entre “profundo” e “precoce”, no momento em que nos aproximamos da compreensão e da ilustração de um processo como este da instalação da psique no corpo. Naturalmente o conceito de “in-dwelling” é uma metáfora, como são todos os conceitos, todas as inferências que construímos sobre o desenvolvimento infantil, e que nos ajudam a compreendê-lo melhor e com maior precisão, independente do fato de as metáforas se apresentarem aos nossos olhos “vestidas” de dados observados, e por isso, “aparentemente” objetivos. Ou que sejam, por definição, o resultado de uma elaboração específica, fortemente impregnada de elementos de conhecimento afetivo que o psicanalista traz da sua sala de análise. Tanto as primeiras, assim como as segundas inferências, são e sempre possuem um caráter metafórico, pois voltaríamos realmente para um realismo ingênuo se pensássemos que as observações são mais verdadeiras e objetivas que as interpretações do psicanalista. Fazem parte somente de um modelo interpretativo distinto, que não é necessariamente inconciliável com aquele baseado principalmente na observação. É por isso que, em tal contexto, a distinção feita por Winnicott entre “profundo” e “precoce” é particularmente útil: uma distinção que se caracteriza pela acuidade e o rigor metodológico que ele introduz desde 1957, em uma contribuição significativa intitulada “Il contributo dell’osservazione diretta del bambino alla psiconalisi” [A contribuição sobre a observação direta da criança na psicanálise]. Pode ser útil seguir, mesmo de forma breve, algumas observações de Winnicott anteriores ao artigo de 1957, e que preparam metodologicamente o terreno da distinção entre “precoce” e “profundo”. Já 15 anos antes, num artigo que é um exemplo de rara eficácia da aproximação clínica orientada à psicanálise, Winnicott toca em dois pontos centrais do problema da observação direta para a psicanálise: a relação entre esta e a reconstrução através da análise e a questão do conhecimento psicanalítico das fases pré-verbais. Assim ele descreve na “L’Osservazione dei bambini piccoli in una situazione prefissata”(1941) [“A observação de crianças pequenas numa situação prefixada”]: “É muito esclarecedor observar crianças pequenas diretamente e é necessário que o façamos. Em muitos aspectos, no entanto, a análise das crianças de dois anos fornece-nos muito mais informação sobre a criança pequena do que a observação poderá jamais proporcionar. Isto não nos surpreende; a singularidade da psicanálise como instrumento de pesquisa, como sabemos, está em sua capacidade de descobrir a parte inconsciente da mente ligando-a a parte consciente [...] Isto vale também para 23 a criança pequena, apesar de podermos obter muitas informações a partir da observação direta, se soubermos como realmente olhar e o que buscar. O procedimento correto é, obviamente, conseguirmos o máximo possível tanto da observação quanto da análise e deixar que uma ajude a outra.” (1941, p. 77). Estes dois temas são, portanto, retomados e desenvolvidos, e levados a cabo no artigo de 1957, no qual Winnicott faz a sua estréia declarando querer ocupar-se da “confusão que pode surgir do assumir a palavra “profundo” como se fosse sinônimo de “precoce” [...] ‘Profundo’ não é sinônimo de ‘precoce’ pois uma criança necessita de certa maturidade antes de tornar-se gradualmente capaz de certa profundidade [....]. De certa forma sempre mais profundo implica naturalmente sempre mais precoce, mas somente até um certo limite”. Se ‘sempre mais profundo’ coincidisse com ‘sempre mais precoce’, observa Winnicott, então a criança deveria ser ciente do ambiente. O ambiente, ao contrário, induz reações somente quando falha em algum aspecto importante. É aqui que Winnicott avança aquela afirmação, já citada e notória, porém ainda esclarecedora dos diferentes pontos de vista sobre a criança, implicados nesta necessária distinção entre ‘profundo’ e ‘precoce’ e, podemos somar, entre observação psicanalítica direta e empírica: “Um paciente pode fazer referências durante a análise à sensação de cair, proveniente dos primeiros anos de vida, porém não pode nunca fazer referência ao ter sido pego nos braços durante este estágio precoce do desenvolvimento” (p. 143). A criança, nos seus primeiros estágios, não está ciente do ambiente que pode apresentar-se como material analítico, por isso, é necessário “fazer referência ao que é profundo” como parte da criança, entretanto, quando nos referimos ao que é ‘precoce’ devemos levar em consideração o ambiente que suporta o “Eu”, que é inseparável – até metodologicamente, como observamos mais acima – da criança, a qual sem este “não existe” ( there is no such a thing as a baby). Esta distinção tão fecunda segundo a qual ‘profundo’ está conectado à vida fantasmática da criança, ou seja, ao seu mundo interno, e emerge através da pesquisa analítica, enquanto ‘precoce’ está ligado ao ambiente que suporta a criança, e é observável diretamente, implica que “quem observa diretamente as crianças, deve estar preparado para permitir que o analista possa formular idéias sobre a primeira infância que possam ser psiquicamente verdadeiras, e mesmo assim não demonstráveis; pode, aliás, por ventura ser demonstrado mediante uma observação direta, que o que foi encontrado na análise não pode realmente ter existido devido às limitações impostas pela imaturidade. Mas o que é encontrado de forma repetida na análise não pode ser invalidado pela observação direta. A “observação direta pode demonstrar somente que os pacientes têm antecipado 24 (antedatado) alguns fenômenos.” (Winnicott, 1957, pp. 141-142). Com esta referência, ao “antecipar” os ‘fatos clínicos’ que emergem na análise sobre a experiência infantil, Winnicott introduz, implicitamente, mais um registro que nos parece indispensável para descrever ou esclarecer metodologicamente, o conflito atual entre as diferentes visões da criança que emerge da infant research e da psicanálise: ou seja, as diferentes concepções de temporalidade. Como foi evidenciado recentemente também por R. Steiner (2000), a propósito do debate entre Green e Stern, a visão que a psicanálise propõe da criança é fundante e iniludível ao conceito freudiano de Nachträglichkeit (posterioridade, aprés-coup), o que implica que, qualquer experiência pode ser reconstruída post factum, com todas as complicações, as distorções, os processos inconscientes e as defesas, e as projeções do observador adulto, do intérprete e do narrador de tais eventos (Cfr. A. Green); onde , ao contrário, as interações descritas pela infant research apóiam-se sobre uma temporalidade imediata, fundamentada no “aqui e agora”, no imediatamente experimentável e observável.( CfrD. Stern). Se esta linguagem é, sem dúvida, mais sofisticada do ponto de vista epistemológico e teórico para esclarecer os termos destas contraposições entre as duas visões da criança, deveríamos de todas as formas relembrar o que Winnicott, na obra citada acima, já havia resumido em termos mais simples e ‘conciliados’: “a psicanálise tem muito o que aprender dos que observam diretamente os bebês, e as mães e os bebês juntos, e as crianças pequenas no ambiente em que vivem. Mas a observação direta não é capaz de construir sozinha uma psicologia da primeira infância. Colaborando continuamente, psicanalistas e observadores diretos podem ser capazes de correlacionar o que é profundo na análise com o que é precoce no desenvolvimento infantil. Resumindo, uma criança deve distanciar-se do que é precoce com a finalidade de adquirir a maturidade necessária para ser profunda”. (1957, pp. 143-144) Tradução - Francesca Cricelli Revisão - Ana Rita Nuti Pontes e Sandra Luiza Nunes Caseiro i A propósito do soneto 146 de Shakespeare nota-se que “elaborado o jogo das metáforas: nos primeiros dois quartetos a alma é dona do edifício do corpo e o poeta pergunta-se se convem curar uma propriedade que se perde tão cedo; o terceiro quarteto é um incitar a procurar-se invés de bens celestes, e disto deriva a conclusão expressa no dístico final, no qual o triunfo da alma sobre a morte é celebrado através da uma série de transições sutis de metáfora em metáfora. 25
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