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REVISTA
Araken Vaz Galvão
Claudia Alves
Demian Melo
Edina Rautenberg
Fabiano Godinho Faria
Helen Ortiz
Jussaramar da Silva
Mário Maestri
Paula Schaller
Raquel Varela
Romulo Costa Mattos
Waldir José Rampinelli
Ano 6 - Edição Nº 10
Novembro 2010 - R$ 15,00
Militares e
Luta de Classes
Revista História & Luta de Classes Nº 10 – Novembro de 2010
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................................................................ 5
DOSSIÊ MILITARES E LUTA DE CLASSES
Vida, Luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares
Mário Maestri e Helen Ortiz................................................................................................................................7
Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército
Claudia Alves....................................................................................................................................................16
O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República
Romulo Costa Mattos.......................................................................................................................................23
Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart
Fabiano Godinho Faria.....................................................................................................................................29
A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
Demian Melo....................................................................................................................................................36
A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972)
Edina Rautenberg............................................................................................................................................. 44
As AESI’s de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira
Jussaramar da Silva...........................................................................................................................................51
Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75)
Raquel Varela....................................................................................................................................................57
DEPOIMENTO
Brizola, os Sargentos e a Luta Armada
Araken Vaz Galvão...........................................................................................................................................64
ARTIGO
Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões
Paula Schaller...................................................................................................................................................69
RESENHA
Los Argentinos Somos Derechos y Humanos
Waldir José Rampinelli.....................................................................................................................................75
NORMAS PARA AUTORES...........................................................................................................................78
Organizadores gerais deste número: Felipe Demier (UFF), Mário José Maestri Filho (UPF), Renato Lemos (UFRJ).
Editor: Gilberto Calil (Unioeste).
Comissão Editorial: Danilo Martuscelli (SP), Enrique Serra Padros (RS), Gelsom Rozentino de Almeida (RJ), Gilberto Calil (PR), Igor Gomes Santos (BA), Kênia
Miranda (RJ), Lorene Figueiredo (MG), Lúcio Flávio de Almeida (SP), Virgínia Fontes (RJ).
Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UNIPAMPA), Afonso Alencastro (UFSJ), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira
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Dulce Portilho (UEG), Edílson José Gracioli (UFU), Enrique Serra Padrós (UFRGS), Eurelino Coelho (UEFS), Fabiano Faria (UFRJ), Fábio Frizzo (UFF), Felipe
Demier (UFF), Gabriela Rodrigues (RS), Gelsom Rozentino (UERJ), Gerson Fraga (UFFS), Gilberto Calil (UNIOESTE), Gilson Dantas (UEG), Gláucia Konrad
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Próximos Números: Violência e Criminalização. Envio de contribuições encerrado; Revolução e Contra-Revolução. Envio de contribuições até 30.03.2011; Educação e
Ensino de História. Envio de contribuições até 30.09.2011.
Distribuição: [email protected].
Projeto Gráfico, Capa e Diagramação: Cristiane Carla Johann. Imagem da Capa: 1. Cartaz da Confederação Nacional dos Trabalhadores, 1936, Guerra Civil Espanhola;
2. Revolta dos sargentos; 3. Repressão no Chile logo após o golpe de 1973; 4. Cartaz produzido pelos aparelhos repressivos, Brasil. Revisão e Edição: Gilberto Calil.
Impressão: Gráfica Líder, Av. Maripá, 796 – Telefax (45) 3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR.
Foram impressos 1.000 exemplares em Novembro de 2010.
APRESENTAÇÃO
5
Militares e Luta de Classes
O
exame sistemático da historiografia relativa ao campo temático militares-política sugere a persistência de um
modelo analítico cuja longevidade e capacidade de influenciar pesquisas o eleva à condição de verdadeiro paradigma.
Subjacente a ele, há uma concepção ideal de sociedade, identificada com o modelo liberal que serviu de base ao Estado
moderno. Nele, a função atribuída às instituições militares supõe que a sua participação política deve fazer-se de
maneira subordinada ao aparato político estatal e dentro da legalidade estabelecida. Desta maneira, a ação política dos
elementos militares é apreendida, sempre, por referência à ação política dos elementos não militares, os civis, portanto
como “relações militares-civis”.
Mais do que um preciosismo, a crítica da expressão “relações militares-civis” sugere um paradigma/programa
de pesquisa alternativo. Trata-se de superar a imprecisão dos seus termos. De que se fala? Do relacionamento entre
gente fardada e paisana? Sim, porque parte dos funcionários da área militar é paisana, exercendo, no entanto, função
política comum, enquanto funcionário do Estado. De que militares se fala? Das distinções recíprocas criadas por civis e
militares? Até que ponto elas contribuem para a determinação de atitudes políticas?
Neste dossiê, História e Luta de Classes apresenta análises da inserção do elemento militar em processos
políticos da perspectiva dos interesses sociais em conflito. Assim, a historicidade do tema será definida por sua conexão
estrutural com a dinâmica da sociedade de classes, que dá sentido lógico à ação das categorias sociais ligadas ao Estado,
como os militares.
O dossiê é constituído por oito artigos e um depoimento.
O artigo Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares apresenta breve resumo
biográfico de uma das mais destacadas e pouco conhecidas lideranças do movimento dos sargentos anti-golpistas e
revolucionários, aprisionado e morto, pela repressão policial-militar em 1966, no Rio Grande do Sul. Com forte
repercussão na mídia e entre a população sulina, o assassinato de Manoel Raimundo Soares ficou conhecido como "o
caso das mãos amarradas.
O artigo de Cláudia Alves − Exército e república: aspectos da liderança de Benjamin Constant – discute o papel
de segmentos da intelectualidade militar na derrubada da monarquia no Brasil, tomando como objeto as ideias de
Benjamin Constant, militar e professor que seria entronizado como “Fundador” no panteão republicano, que analisa de
acordo com as reflexões do pensador italiano Antônio Gramsci. Já artigo de Rômulo Costa Mattos – Favelas e militares
de baixa patente na Primeira República – tem o foco na base da pirâmide castrense, isto é, militares subalternos que se
encontraram, já na primeira década republicana, entre os primeiros habitantes de favelas no Rio de Janeiro, discutindo
que identidade lhes era conferida pela grande imprensa da capital: defensores da pátria ou membros das “classes
perigosas”?
Os textos de Fabiano Faria e Demian Melo discutem, sob diferentes aspectos, as estratégias constituídas pelo
governo de João Goulart para evitar ou enfrentar um Golpe de Estado. O primeiro – Defesa e contra-ataque! Uma breve
reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart -, analisa a constituição do chamado “dispositivo militar” do
governo João Goulart, à luz da discussão sobre o papel dos militares na política, avaliando as contradições e debilidades
da estratégia militar de Jango. O segundo – A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos
sessenta – enfoca a organização sindical janguista e os limites de sua relação com os militares legalistas, marcada pela
desconfiança destes em relação à organização autônoma dos trabalhadores.
O artigo de Edina Rautemberg A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972) discute o
tratamento dado pela revista Veja às organizações da esquerda armada, evidenciando sua intervenção política voltada à
estigmatização e combate aos grupos guerrilheiros, analisando criticamente suas estratégias discursivas e em sua ação
pedagógica antipopular.
O texto As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira, de Jussaramar da Silva, parte
da documentação das Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI's) da Itaipu Binacional para refletir
sobre os mecanismos de vigilância e controle desenvolvidos pelos organismos de informação em Foz do Iguaçu e em
toda região da Tríplice Fronteira.
6
A historiadora portuguesa Raquel Varela discute os impasses da Revolução dos Cravos no texto Quando os
soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75), apontando os
limites e contradições da ação política do Movimento das Forças Armadas (MFA) no período pós-revolucionário e sua
intervenção visando frear a Revolução Social, pôr fim à dualidade de poderes e restabelecer a ordem social.
O texto-depoimento do Sargento Araken Vaz Galvão relata a articulação dos sargentos revolucionários após o
Golpe de 1964 e sua relação com Leonel Brizola, bem como suas iniciativas voltadas à preparação de um levante
armado e condições que inviabilizaram sua concretização
Para além do dossiê, a revista traz ainda um artigo e uma resenha. O artigo Crise do sistema partidário na
Argentina, algumas reflexões, de Paula Schaller, propõe uma reflexão sobre o processo político argentino recente a
partir do conceito gramsciano de crise orgânica, demonstrando como uma conjunção de crise econômica, política e
social produz uma ruptura da hegemonia de um grupo social e permite a emergência de um novo bloco social.
A resenha de Waldir José Rampinelli, Los Argentinos Somos Derechos y Humanos, parte da abordagem de uma
obra fundamental sobre a ditadura argentina para discutir as estratégias de terror e dominação e o conteúdo antipopular
e anticomunista daquela ditadura.
História & Luta de Classes chega à sua décima edição, em seu sexto ano de publicação. O trabalho coletivo de
seus associados tem permitido manter periodicidade regular e rigor acadêmico, nos termos do perfil anunciado já seu
primeiro número, quando propunha “servir de canal para reflexão teórica, particularmente para aquela orientada
pelos ventos constantemente renovados do marxismo” Os objetivos então enunciados permanecem atuais:
Em tempos de domínio social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento
acadêmico, com destaque para a área da História e das Ciências Sociais, a REVISTA História & Luta de
Classes procura servir como ferramenta de intervenção daqueles historiadores e produtores de
conhecimento que se recusam a aderir e se opõem a essa dominação. As diferentes manifestações dos
conflitos sociais ao longo do tempo; a história social do mundo do trabalho; as propostas e processos
revolucionários; os temas políticos e as contradições econômico-sociais atuais e passadas; a cultura vista
por uma perspectiva materialista são alguns dos temas e áreas de estudo que serão abordados nos artigos
publicados por REVISTA História & Luta de Classes.
Hoje a crise geral do capitalismo e seus efeitos perversos não podem mais ser mascarados; os sinais de retomada
das lutas da classe trabalhadora se multiplicam; e constituem-se processos sociais que, ao menos parcialmente,
desafiam ou confrontam a ordem vigente. Ainda assim, a barbarização das relações sociais segue em marcha, junto às
formas de pensamento irracionalistas que a sustentam. Permanece urgente e necessária, portanto, a constituição de
instrumentos de reflexão, crítica e propagação de visões e perspectivas que correspondam aos interesses históricos das
classes trabalhadoras, ao enfrentamento da barbárie promovida pelo capitalismo e às perspectivas irracionalistas que
ainda proliferam nas ciências humanas. História & Luta de Classes se constitui com esta perspectiva, produzida a partir
do esforço coletivo e militante e sem se dobrar às imposições ranqueadoras e aos critérios produtivistas impostos por
agências governamentais. Os dez dossiês e mais de uma centena de artigos, resenhas, depoimentos e traduções
publicados constituem uma contribuição efetiva para a disseminação desta perspectiva, que se soma e se articula com
diversas outras que vêm se constituindo neste período.
Novembro de 2010
Gilberto Calil
Editor
Felipe Demier
Renato Luis do Couto Neto e Lemos
Mario José Maestri Filho
Coordenadores do Dossiê
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 7
Vida, Luta e Morte do Sargento Revolucionário
Manoel Raimundo Soares
1
Mário Maestri e Helen Ortiz2
N
a cidade de Belém, norte brasileiro, em 15 de
março de 1936, Etelvina Soares dos Santos pariu Manoel
Raimundo, possivelmente em sua residência humilde.
Como tantas outras mulheres paraenses fortes, criou o
menino e seus dois irmãos, desejando-lhes um futuro
melhor como trabalhadores dignos. Manoel Raimundo
mostrou-se muito logo menino e jovem inteligente e de
fibra. Após concluir o primário, cursou estudos técnicos,
enquanto trabalhava em oficina mecânica.
Em 1953, com apenas 17 anos, Manoel
Raimundo abandonou a pacata Belém para morar com
conhecidos na capital federal, então grande palco dos
fortes confrontos políticos e sociais que dilaceravam o
Brasil. Por se envolver neles, mais e mais, com a
galhardia dos velhos guerreiros cabanos, o menino de
dona Etelvina conheceria a morte, na luta por seus ideais,
aos trinta anos, distante de sua terra natal, nas águas
geladas do rio-estuário de Porto Alegre.
Rápida Progressão
Em 1955, meses após a comoção nacional
causada pelo suicídio de Getúlio Vargas, Manoel
Raimundo, com 19 anos, alistou-se no Exército,
alcançando o posto de segundo sargento, após quatro
promoções. Em setembro do mesmo ano, após namoro de
apenas três meses, casou-se com a jovem Elisabeth
Chalupp, mineira de origem humilde, criada por família
estranha, trabalhando no RJ como operária industrial.
Manoel Raimundo gostava de chamar a esposa de
Betinha e Beta.3
Falta-nos ainda informação mais precisa sobre a
precoce e destacada participação do jovem sargento
paraense nos conflitos vividos pela sociedade e, junto
com ela, pelas Forças Armadas, nesses anos em que o país
foi fortemente tensionado por sucessivas iniciativas
golpistas conservadoras, com destaque para a tentativa de
1
Versão resumida e atualizada do artigo “Por mais terras que eu
percorra...Vida, luta e martírio do sargento Manoel Raimundo
Soares” publicado pelos autores em Tribunal Federal da 4ª Região,
Coordenadoria de Documentação (org.). O Direito na História: o
caso das mãos amarradas. Porto Alegre: TRF da 4ª Região, 2008.
p.177-200.
2
Mário Maestri, 62, é professor do Curso e do PPG em História da
Universidade de Passo Fundo [[email protected]]; Helen Ortiz,
34, é doutoranda em História na PUCRS e professora do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
em Porto Alegre [[email protected]].
3
Cf. Entrevista de Elizabeth Chalupp, pela jornalista Tânia
Faillace, Zero Hora, Porto alegre, 2.09.1966.
deposição de Goulart, em 1961. Ensaio golpista
derrotado que transformou o jovem governador sulino
Leonel Brizola no principal líder nacionalista e grande
referência para o movimento dos suboficiais do Exército,
Marinha e Aeronáutica.4
Desde o governo de Juscelino Kubitschek [19561961], Manoel Raimundo começou a despontar como
militante de vanguarda da luta pela organização sindical e
política dos suboficiais do Exército. O ex-sargento
Araken Vaz Galvão assinala que, por voltas de 1958,
Manoel exercia o que ele definiu como “liderança suave,
relacionada com os problemas” dos sargentos discutidos
no Clube da classe, transformando-se, logo, em um dos
“principais fundadores” do “Movimento dos Sargentos”,
assim batizado por ele.5
Por sua cultura, inteligência e decisão, Manoel
Raimundo era referência entre seus companheiros de
farda. O ex-subtenente pára-quedista do Exército Jelsi
Rodrigues descreve-o como homem muito culto e
sobremaneira corajoso. Araken Galvão, seu companheiro
e particular amigo, lembra que era um “grande orador” e
“neurótico por cultura”. Antes mesmo do golpe,
interessava-se pela literatura marxista, lendo e
divulgando Marx, Engels, Lênin.6
O Golpe de Estado de 1964
No mínimo desde 1963, Manoel Raimundo
preocupava-se com a necessidade de organizar
resistência ao golpe militar, que se aproximava, tendo
procurado preparar as condições para resistência, na
Serra do Mar, nas proximidades do RJ, possivelmente
inspirado na experiência cubana. O que lhe ensejou
inquérito no Exército, por desvio de armas e cooptação de
sargentos.7
Devido à manifestação de sargentos do Exército,
em 11 de maio de 1963, no Sindicato dos Comerciários,
no centro do RJ, Manoel sofreu pena disciplinar e foi
transferido, do RJ para Campo Grande, no MT, o mesmo
ocorrendo com seus companheiros, promotores da
4
Cf. MARKUN, Paulo & HAMILTON, DUDA. 1961: que as
armas não falem. São Paulo: SENAC, 2001.
5
Depoimento aos autores do ex-sargento Araken Vaz Galvão,
através de e-mail, em 6 de maio de 2008; “Retrato de um sargento”,
capítulo do livro inédito “O Sargento na História do Brasil”, de
Araken Vaz Galvão, gentilmente cedido pelo autor.
6
COSTA, José Caldas da. Caparaó: a primeira guerrilha contra a
ditadura. São Paulo: Boitempo, 2007. pp. 26 e 67.
7
Id.ib. pp. 68.
8 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares
reunião, do Comando Geral dos Sargentos [CGS],
enviados para o mesmo estado e para outras destinações.8
Em 1964, as burguesias industrial e financeira
nacionais romperam com o projeto nacionaldesenvolvimentista autônomo, para impor padrão de
acumulação de capitais através de maior integração ao
capital mundial; super-exploração do trabalho;
orientação do consumo aos segmentos ricos nacionais e
ao comércio mundial, etc. O golpe iniciou em MG, em 31
de março, chefiado por militar ex-integralista, com o
apoio dos USA.
Em Porto Alegre, Brizola tentou reviver a
Legalidade, apoiado pelo comandante do III Exército,
pela Brigada, pelos sub-oficiais do Exército e da
Aeronáutica, por populares. Em 2 de abril, já na capital
sulina, João Goulart negou-se a chefiar a resistência,
permitindo que o golpismo se instalasse praticamente
sem oposição. Goulart viajou para sua estância em São
Borja e, dali, para o Uruguai. O PCB, única organização
de esquerda com força sindical e popular, subordinara a
oposição ao golpismo à direção de Goulart e a esquema
militar organizado em torno de altos membros das forças
golpistas.9
A imposição da ditadura sem resistência ensejou
a maior derrota histórica que o mundo do trabalho e da
democracia jamais viveu no Brasil, com gravíssimas
conseqüências para o país, para a América Latina e para o
mundo, que se mantém até hoje. Após o golpe, a alta
oficialidade militar interveio nas associações sindicais e
profissionais, no legislativo, no executivo e no judiciário;
expurgaram, prenderam e torturaram opositores, que
abandonaram comumente o país, quando puderam,
sobretudo pelo Uruguai, onde se encontravam Goulart e
Brizola, com as relações políticas e pessoais cortadas.
A Sub-Oficialidade Nacionalista
A frustração ensejada pela derrota sem
resistência e o crescente descontentamento popular
levaram a que sub-oficiais nacionalistas de esquerda das
forças armadas, sobretudo do Exército e da Marinha,
presos e reformados em grande número, tenham sido
setor social que se disponibilizou prontamente para a luta
anti-ditatorial direta, organizando-se em torno de
Brizola, que seguia no Uruguai disposto a lutar pelas
forças das armas pelo fim da ditadura.
Manoel Raimundo teve a prisão decretada, em
abril, e foi expulso do Exército, em junho de 1964. Para
não ser preso e poder integrar-se à luta anti-ditatorial,
apenas estourou o golpe, desertou seu quartel em Campo
Grande, junto ao sargento Araken Galvão, também
destacado no MT. Manoel e Araken viajaram para Juiz de
Fora e, a seguir, para o RJ, de onde partiram, mais tarde,
para o RS. Manoel Raimundo teria declarado à polícia
que viajou para Porto Alegre, em janeiro de 1965, à
procura de emprego, retornando ao RJ, em março. Em
fins de setembro, teria voltado ao Sul, sob promessa de
trabalho, feita pelo sub-oficial Leony Lopes, que lhe teria
igualmente apresentado Edu Rodrigues, civil
pretensamente oposicionista mas, nos fatos, informante
da polícia, como veremos.10
Mais de vinte sargentos teriam viajado, como
Manoel Raimundo, do RJ para Porto Alegre, para
integrar-se à resistência. Fato mais do que compreensível,
pois desde 1964, o RS tornara-se a principal via para
alcançar ou manter contatos com o Uruguai, então centro
anti-ditatorial.11
A Primeira Resposta Armada à Ditadura
Foi precisamente do Uruguai, em março de 1965,
que o coronel do Exército Jéferson Cardin de Alencar
Osório e o sargento da Brigada Militar Alberi Vieira dos
Santos ingressaram no RS para organizar coluna de
pouco mais de vinte homens. O grupo armado, após
tomar a cidade sulina de Três Passos, em 25 de março,
dirigiu-se ao oeste do Paraná, onde, no dia 27, foi
disperso, após combate desigual com as forças da
ditadura. No combate morreu sargento das forças
repressivas. O objetivo da coluna do Movimento
Nacionalista Revolucionário [MNR], ligado a Brizola,
era sublevar militares oposicionistas, no RS e, a seguir, no
Brasil.12
Em Porto Alegre, desde começos de 1965,
Manoel Raimundo, companheiros seus do CGS e outros
resistentes locais participaram ativamente da
organização de dois levantes de quartéis da Brigada e do
Exército da capital. O primeiro contaria com “entre
quarenta e setenta pessoas prontas para fazer a
insurreição”, “espalhadas por aparelhos em Porto
Alegre”, e mais outros suboficiais que chegariam do RJ.
O plano teria desandado devido à prisão de Araken
Galvão.13
Em fevereiro-março de 1966, após o fracasso da
chamada “Guerrilha de Três Passos”, um segundo projeto
de levante em Porto Alegre não prosperou, devido à
denúncia do plano, com a prisão de oficiais, suboficiais,
trabalhadores, estudantes, etc. O fracasso do segundo
levante fortaleceu a proposta da organização da luta antiditatorial através de focos armados rurais, desejada pelos
suboficiais do Exército e Marinha, à qual Brizola resistia.14
A Queda de Manoel Raimundo
Na tarde de 11 de março, Manoel Raimundo foi
preso ao entregar panfletos, possivelmente por ele
10
Zero Hora, Porto Alegre, 05.09.1966.
Cf. VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. 3 ed.
Rio de Janeiro: Codecri, 1981 p.18.
12
Cf. CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros.
Porto Alegre: Arte & Ofícios, 1977. pp. 99 et seq.
13
Cf. COSTA, Ob. cit. pp. 118 et seq.
14
Id.ib. p. 123.
11
8
Id.ib. pp. 68 e 72
Cf. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O
governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil. 1961-1964. 7 ed.
rev. e ampl. Brasília: EdiUnB; Rio de Janeiro, Revan, 2001.
9
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 9
escritos, com os dizeres “Abaixo a ditadura militar”,
contra a chegada, naquele dia, a Porto Alegre, do generalditador Castelo Branco, a Edu Rodrigues, um civil
acagüete. Na distribuição dos manifestos estariam
envolvidos funcionários da Carris, empresa pública com
antiga tradição de luta sindical e política.15 Conhecido
pelo serviço de informação do Exército como uma das
principais lideranças do movimento dos sargentos e
possivelmente por seu envolvimento nos movimentos de
resistência em Porto Alegre e no RS, Manuel era uma
presa valiosa para a repressão.
A documentação conhecida assinala que, quando
da sua prisão, Manoel militava em pequeno grupo
reunindo sobretudo remanescentes da “Guerrilha de Três
Passos”, denominado Movimento Revolucionário 26 de
Março [MR-26]. Praticamente toda a escassa informação
disponível publicada sobre Manoel reafirma essa
militância.
Jelsi Rodrigues, companheiro de Manoel
Raimundo no RJ e em Porto Alegre, lembra que, naquele
então, os suboficiais resistentes reconheciam-se
sobretudo como membros do CGS. Quando muito,
Manoel se compreenderia como parte do MNR,
organizado sobretudo pelos suboficiais do Exército e da
Marinha, em associação com Brizola e seguidores. Jelsi
Rodrigues sequer tem conhecimento do MR-26.16 Araken
Galvão, com participação destacada na primeira tentativa
de levante em Porto Alegre e um dos companheiros mais
próximos de Manoel Raimundo, declarou: “Ao que eu
saiba, Soares nunca militou no MR-26. Aliás, nem sei que
movimento foi esse [...].”17
Companheiros de Farda
Manoel Raimundo foi preso por dois militares à
paisana, da 6ª Cia. da Polícia do Exército [PE], Carlos
Otto Bock e Nilton Aguaidas, sem qualquer determinação
judiciária, ao arrepio das próprias leis então reconhecidas
pela ditadura, devido à denúncia do informante Edu
Rodrigues, como visto. A ordem de prisão teria partido de
Darci Gomes Prange, capitão da referida companhia. Era
o início do longo calvário do jovem paraense, nas mãos
dos torcionários do Exército e da Polícia Política.
Manoel foi levado à sede da PE, onde, sem
delongas, sofreu as primeiras sevícias infligidas pelo
sargento Pedroso e pelos tenentes Nunes e Glênio
Carvalho de Sousa. A seguir, foi transferido para o mais
experiente Departamento de Ordem Política e Social
[DOPS], no Palácio de Polícia, para ser duramente
torturado e espancado, por longos dias, agora pelos
delegados Enir Barcelos da Silva, Itamar Fernandes de
Souza, José Morsch, entre outros.
15
Depoimento aos autores do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa
colhido por telefone em 04 de maio de 2008; Depoimento aos
autores do ex-sargento Araken Vaz Galvão, através de e-mail, em
06 de maio de 2008; Zero Hora, Porto Alegre, 03 e 05.09.1966;
COSTA, Ob.cit. p. 142.
16
Depoimento aos autores do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa
colhido por telefone em 04 de maio de 2008.
17
Depoimento aos autores do ex-sargento Araken Vaz Galvão,
através de e-mail, em 06 de maio de 2008.
O ódio acumulado por oficiais golpistas e
direitistas contra o destacado líder do CGS e sua
importância na resistência anti-ditatorial talvez
expliquem a violência com que foi interrogado. Sem
qualquer resultado. Ainda hoje, os companheiros de
Manoel Raimundo lembram-se emocionados da decisão
com que o jovem enfrentou o interrogatório, sem jamais
dobrar-se, não revelando sequer um nome de
companheiros e depósitos de armamentos, prontamente
transferidos, após a sua queda.18
Depoimentos Incontornáveis
São precisas, abundantes e concordantes as
declarações, sobretudo de outros presos políticos, sobre
os maus-tratos sofridos pelo jovem paraense, na semana
em que permaneceu no DOPS. Em depoimento publicado
no Jornal Zero Hora, de 17 de setembro de 1966, Antônio
Giudice, detido no DOPS, de 10 a 15 de março de 1966,
relatou “que conversou com Manoel Raimundo, vendo os
hematomas e cicatrizes” “das torturas que vinha
sofrendo”, pois “era diariamente, torturado, colocado
várias vezes no pau-de-arara, sofrendo choques
elétricos, espancado e queimado por pontas de
cigarros”.19
Aldo Alves Oliveira, funcionário da Cia. Carris,
preso no DOPS desde 10 de março, testemunhou ter
conhecido Manoel Raimundo, que “mostrava vários
sinais de sevícias”. Na ocasião, viu, quando o ex-sargento
“estava sentado no corredor” de “acesso à cela”, “sem
camisa”, “as marcas de queimaduras” e sinais de
violência. Tão forte fora o espancamento que ele “não
podia engolir alimentos sólidos, razão pela qual” Aldo e
outros presos forneciam-lhe “alguma porção” do “leite
que lhes era enviado por familiares”.20
Aldo Alves relatou igualmente que, durante o
tempo que esteve preso,
“Percebia que, quase todas as noites, pela
madrugada, o ex-sargento Manoel Raimundo
Soares era torturado, o que podia ser
comprovado pelos gritos da vítima e também
pelo aspecto físico que apresentava quando era
trazido de volta a sua cela e passava defronte a
porta em que se encontrava o depoente [...]”.21
Também presa no DOPS em março de 1966, a
advogada Élida Costa afirmou que, ao ouvir “gritos,
urros de dor e ruídos de coisas que caíam”, um “agente
policial” lhe explicara que “se tratava de uma festa em
[um] outro andar”.22 Ao deparar-se com “uns seis ou oito
presos”, todos da Carris, quando ia ao banheiro, ela
contou-lhes o que passava, “e o risco que todos [eles]
corriam”.23
18
Depoimento aos autores do ex-subtenente Jelsi Rodrigues Correa
colhido por telefone em 04 de maio de 2008; COSTA, Ob.cit. p. 14.
19
Dados retirados do site www.torturanuncamais-rj.org.br. Acesso
em 24 abril de 2008.
20
Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 41-42.
21
Loc.cit.
22
Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 43.
23
Loc.cit.
10 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares
do dia 11 de março, sexta-feira, em frente ao
Auditório Araújo Viana. Fui levado para o
quartel da P.E., onde fui “interrogado” durante
duas horas e depois fui levado para o DOPS.
Estou bem. Nesta ilha me recuperei do
“tratamento” policial. Até o dia em que fui
preso estava dormindo em hotéis e pensões
variadas.29
Élida passou a noite temendo “que o mesmo
poderia lhe suceder”. Temor acrescido quando, de
madrugada, “viu, com os próprios olhos, um rapaz que,
pelo estado de seu corpo, que estava inclinado para
frente, ia sendo carregado por dois homens”. Na ocasião,
“ouviu dizer” que o preso estava ferido, sangrava e se
encontrava em “coma” e que “fora recolhido a uma cela
fechada à chave”. Mais tarde, o ex-sargento “foi levado”,
com dificuldades, “pelos presos”, até a advogada, que
ouviu do mesmo chamar-se Soares.24
Manoel Raimundo seguia:
Não sei como vou me arranjar no dia em que eu
for solto pois o Leo [possivelmente o já citado
sargento Leony Lopes] único amigo que eu
tinha em Porto Alegre, perdi o contato com ele
e eu não sei o endereço. Espero que você esteja
bem e que se mantenha em calma. Isto passa.
Nos dias seguintes ao que eu for solto, teremos
uma nova lua de mel em uma cidade bonita
qualquer.30
Na Ilha do Presídio
Manoel Raimundo foi torturado em forma
incessante, por mais de uma semana, pelos torcionários à
procura de informação sobre seus companheiros de luta e
de ideal, sendo recolhido apenas em 19 de março de 1966,
nove dias após sua prisão, à ilha do Presídio, no rio
Guaíba, destinada desde o golpe militar também ao
encarceramento de presos políticos.
A ilha do Presídio, caracterizada pela forte
umidade, era local onde os prisioneiros políticos
encontravam-se relativamente protegidos das torturas
policiais, devido à estreiteza das instalações, ao elevado
número de detidos, às dificuldades dos inquisidores de se
deslocarem até ela. Para serem interrogados, os
prisioneiros eram habitualmente levados de volta a Porto
Alegre.
Em 1966, o guarda civil Selço José Muller dos
Santos permaneceu encarcerado na ilha por dez dias.
Mais tarde, declarou que, na ocasião, auxiliou Manoel
Raimundo a se mover “até sua cela”, pois se encontrava
“bastante ferido”, com “dificuldade para locomoverse”.25 À noite, Selço preparava “salmoura para passar
nas costas e pernas de Manoel”, partes do corpo muito
feridas devido aos espancamentos.26 Selço teria
aconselhado ao sargento que “pusesse água com açúcar”
em “uma espécie de hematoma” que tinha no olho.
Devido a ferimento propiciado pelo tenente Nunes
durante a tortura, Manoel perdera parcialmente a visão de
um olho.27
No Inverno, sem Sapatos
Manoel Raimundo pedia à esposa que enviasse,
se pudesse, “algum dinheiro” através de agência
bancária, pois precisava de coisas como “aparelho de
barba, um sapato 38, escova de dentes, roupa de frio e
coisas de comer”.31 O fato de ser filho de família humilde,
sem relações no Sul, dificultava a já difícil situação do
prisioneiro, preocupado igualmente com a sorte de sua
esposa.
Na mesma carta, Manoel Raimundo avançava
sugestão para a esposa: “Você NÃO precisa vir aqui. Isto
não ajudará NADA e você não conseguirá ver-me. Não
permitirão.” Possivelmente temia envolvimento da
esposa com a repressão. Pedia também para que ela
mantivesse a “calma” e, sobretudo, instruía a esposa a
procurar o “o Dr. Sobral Pinto”, no RJ, para providenciar
“pedido de habeas no Superior Tribunal Militar”.32
Em 5 de maio de 1966, Manoel escreveu a quinta
carta à esposa, a segunda que ela recebia. Na
correspondência, se refere as suas condições de
aprisionamento e às torturas que recebera:
Em meu corpo ficaram gravadas algumas das
medalhas com o que me agraciaram. Aqui
estou sem sapatos, sem roupas de frio, sem
cobertas, usando unicamente uma camisa de
Nylon e uma calça de lã preta. [...] Não sei bem,
mas creio que estou preso à disposição do III
Exército. Por isto, só um ‘habeas-corpus’ do
Superior Tribunal Militar poderá libertar-me.33
Cartas do Cárcere
Elizabeth, esposa de Manoel Raimundo, vivera
com ele por algum tempo em Porto Alegre, abandonando
a seguir a capital rio-grandense, para retornar ao RJ.28
Logo que pôde, Manoel Raimundo arranjou-se para
retomar contato com ela através de correspondência. Em
15 de abril de 1966, em carta que chegou às mãos de sua
esposa, relatava que fora preso para “averiguações”:
Finalmente acabei sendo preso. Caí em uma
cilada de um “dedo-duro” chamado Edu e vim
parar nessa ilha-presídio. Fui preso às 16.50 hs.
24
Loc.cit.
Relatório Tovo p. 22
26
Loc.cit.
27
Loc. cit.
28
Cf. COSTA, Ob.cit. p. 142.
25
29
Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 15 de abril
de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 23
30
Loc.cit.
31
Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 15 de abril
de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p.23.
32
Loc.cit.
33
Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 2 de maio
de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 24.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 11
A carta era igualmente momento de tentar
estreitar sentimentos pela esposa fortalecidos pelo
sofrimento:
Como vês o papel está acabando, por isto
aproveito para lembrar-te que meu pensamento
é só para ti; durante todas as horas destes
últimos dias não sais do meu pensamento. O
banquinho da cozinha, os beijos nos olhos,
tudo aquilo que liga meu corpo a tua alma (ou
espírito que é mais certo). Recebe mil beijos e
um caminhão de abraços do teu Manoel.34
Manoel Raimundo permaneceu durante cinco
meses na ilha do Presídio, incomunicável, privado de
notícias da família e do mundo, passou fome e,
certamente, muito frio, ao qual estaria pouco habituado.
Nas suas primeiras cartas conhecidas, dos primeiros
meses de cárcere, registra sua calma e esperanças.
Intensificando-se o martírio e a solidão, tentou fortalecerse centrando-se também no sentimento que nutria pela
esposa.
O ex-sargento acreditava que seria posto em
liberdade em pouco tempo. Na época, a instituição do
habeas corpus ainda vigia. Não sabia que dois pedidos de
libertação impetrados junto ao Superior Tribunal Militar
(STM) haviam sido negados, já que, em falsas
declarações, as autoridades militares e policiais
afirmavam que não estava preso. Mais tarde, o Exército
tentaria negar sua responsabilidade na prisão ilegal e
assassinato de Manoel Raimundo afirmando que
respondera ao STM que não tinha Manoel em seu poder,
sem informar, logicamente, que ele fora entregue pela PE
ao DOPS. Quando o terceiro habeas corpus estava para
ser julgado, os torturadores já haviam dado fim a sua vida.
Últimas Cartas
Manoel Raimundo contava:
[...] já tenho escova de dente, sabonete e até
roupas e sapatos, fizeram chegar até aqui. Mas,
nada disso pode aliviar a dor que me causa o
fato de não poder receber cartas de minha Beta.
Acredito que minha situação ainda não mudou
muito. Até hoje (amanhã completam-se quatro
meses), não fui ouvido em I.P.Ms. e desde que
mandaram-me para esta ilha não mais saí.36
Mais adiante, insistia com a esposa na
necessidade do pedido de habeas corpus perante o STM
para libertá-lo.
A segunda das duas cartas escritas por Manoel
Raimundo, em 10 de julho, foi a quarta e última que a
esposa recebeu. Ele iniciou com a mesma afirmação, que
à leitora deveria causar alívio e esperança, mas que parece
registrar a consciência do prisioneiro da ameaça sob a
qual vivia: “Ainda estou vivo”. Em seguida, relatava: “A
saúde que havia chegado ao meu corpo, partiu, deixando
a normalidade que você tão bem conhece. Fígado,
intestinos e estômago.37 Espero de todo o coração que
você tenha recebido as cartas anteriores. Esta é a de
número nove.”38
Manoel Raimundo seguiu falando de seu amor:
Nestes últimos dias tenho sido torturado pela
realidade de estar impedido de ver o rosto da
mulher que amo. Eu trocaria se possível fosse,
a comida de oito dias, por oito minutos junto ao
meu amor, ainda que fosse só para ver. Tenho
uma fé inabalável de que, os adversários não
conseguirão destruir nosso amor. Sei hoje, que
você tinha razão, em muitas de nossas
discussões sobre nosso tipo de vida.
Em seu dilacerante diálogo com a esposa
distante, Manoel retomava temas passados:
As duas últimas cartas que Elisabeth recebeu do
marido foram escritas em 10 de julho de 1966. Na
primeira, afirmava:
Ainda estou vivo. Espero de todo o coração que
você tenha recebido as cartas que remeti
anteriormente. Esta é a oitava. Nunca pensei
que o sentimento que me une a você chegasse
aos limites de uma necessidade. Nestes últimos
dias, tenho sido torturado pela idéia de que
estou impedido de ver teu rosto ou de beijar
teus lábios. Todas as torturas físicas a que fui
submetido na PE e no DOPS não me abateram.
No entanto, como verdadeiras punhaladas,
t o r t u r a - m e , m a c h u c a , a m a rg a , e s t e
impedimento ilegal de receber uma carta, da
mulher, que hoje, mais do que nunca, é a única
razão de minha vida.35
Você ganhou. [...] Tudo passará. A política, a
cadeia, os amigos; só uma coisa irá durar até a
morte: o amor que tenho por essa mulherzinha
que é hoje, a única razão de querer viver, deste
presidiário. [...] Só agora avalio o que é estar
junto da mulher amada. Com a tranquilidade da
certeza de que apesar de tudo ainda mereço o
teu amor remeto um caminhão de beijos, com o
calor dos dias mais felizes de nossa vida. Do
sempre teu Manoel.39
Novo Interrogatório
Em 13 de agosto de 1966, Manoel Raimundo foi
retirado da ilha do Presídio para ser levado outra vez ao
DOPS, para novo interrogatório e tortura, agora sob as
36
Loc.cit.
Manoel Raimundo sofria desses males. COSTA, Ob.cit. p. 145.
38
Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 10 de
julho de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005.
p.26.
39
Id. Ibid. p. 26-27.
37
34
Id. ibid. p. 24-25.
Carta de Manoel Raimundo Soares escrita à esposa em 10 de
julho de 1966. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005.
p.25.
35
12 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares
ordens dos tenentes coronéis Átila Rochester e Luiz
Carlos Menna Barreto, chefe do DOPS. Não sabemos as
razões precisas para o novo e violento inquisitório de
Manoel, após longos meses na prisão. Em depoimentos
concedidos recentemente, seus companheiros de luta
relatam que ele teria escrito clandestinamente também
para o STM sobre sua detenção e torturas em Porto Alegre
e, com a concessão de habeas corpus, fora subtraído da
prisão para revelar, sob tortura, os carcereiros que
eventualmente teriam facilitado a correspondência
clandestina.40
Em agosto de 1966, prosseguiam febrilmente os
preparativos do MNR para implantar colunas
combatentes em Goiás-Maranhão, no MT, e em Caparaó,
entre o ES e MG. Um quarto foco armado deveria nascer
no norte do RS e sudoeste de SC. Nos fatos, tratava-se de
ambiciosa articulação anti-ditatorial, envolvendo
argentinos, paraguaios e bolivianos. Quando a pequena
coluna do MNR instalou-se no alto da serra de Caparaó,
em fins de 1966, Che Guevara e seus companheiros
organizavam-se também na selva da Bolívia. Manoel
Raimundo participara ativamente da preparação desses
movimentos, após o fracasso do segundo levante em
Porto Alegre. Teria escrito até mesmo um “decálogo do
guerrilheiro” para as operações.41
Há alguma divergência sobre as razões do
abandono da frente armada no Brasil meridional. Flávio
Tavares propõe que a desistência deveu-se à prisão, “no
inverno de 1965”, do “seu subcomandante, o ex-sargento
Manuel Raimundo Soares”.42 Segundo a informação
confirmada por Jelsi Rodrigues, envolvido diretamente
na iniciativa, apesar da notícia da queda, continuaram os
planos para o estabelecimento do núcleo armado na serra
do Mar, em SC. A desconfiança de camponeses com a
perambulação de estranhos na região e a prisão de dois
militantes, sob suspeita de assalto a banco, teriam levado
ao abandono da proposta.43
Dos quatro núcleos guerrilheiros planejados
pelo MNR prosperou apenas o de Caparaó, desbaratado
em inícios de 1967, ensejando com esse tropeço o
abandono de Brizola do projeto de resistência militar à
ditadura, insurrecional ou guerrilheira. A seguir, o MNR
dividiria-se, confluindo seus militantes em outras
organizações armadas, como a VPR, a VAR-Palmares,
etc.44
Jacuí, para ser submetido a falsos afogamentos.
Possivelmente jamais saberemos se Manoel escapou
inadvertidamente das mãos dos seus torcionários ou foi
abandonado propositadamente às águas geladas para
morrer. Era habitual militares e policiais torturarem
alcoolizados e drogados prisioneiros políticos. Até agora,
o que sabemos de certo é que, onze dias mais tarde,
Manoel Raimundo foi encontrado, morto, boiando no rio,
com os pés e as mãos atadas.
O corpo de Manoel foi descoberto, em 24 de
agosto de 1966, boiando entre algumas taquareiras, por
dois moradores da ilha das Flores, próxima a Porto
Alegre, que informaram rapidamente as autoridades
policiais. O policial responsável pela operação de resgate
do cadáver declararia que o mesmo tinha
As mãos amarradas às costas pela própria
camisa que vestia, sendo que as ataduras
cobertas por um suéter banlon que a vítima
trajava; os bolsos laterais das calças
completamente repuxados para fora [...];
calças de cor escura; um pé calçado com um
sapato marrom e outro descalço.45
Na madrugada do dia 25, peritos do Instituto de
Criminalística analisaram o corpo, determinando que a
morte se dera por afogamento e que a vítima estaria
embriagada. Destaque-se que Manoel Raimundo era
abstêmio, entre outras razões, por problemas com o
fígado. Entretanto, mesmo que ele se encontrasse
embriagado, quando de sua morte, não significa que se
houvesse embriagado. Anos após o homicídio, em
processo movido pela viúva, os defensores da União
alegaram o estado de embriaguez do ex-sargento. Defesa
rejeitada pelo juiz, que, irônico, lembrou que “seria
realmente uma façanha de Manoel Raimundo Soares:
amarrar as mãos às costas, e então embriagar-se. Ou
então embriagar-se e amarrar suas mãos às costas”.46
Acidente de Trabalho
Após acompanhar as investigações sobre o
homicídio, o promotor Paulo Cláudio Tovo propôs uma
provável sequência para os fatos:
[...] A vítima teria sido passível de “banho” ou
“caldo”, por parte dos agentes do DOPS [...],
processo despótico que consiste em mergulhar
o paciente nas águas do rio, quase até a asfixia,
para dele extorquir a confissão [...]. Nesse
“trabalho” [...] realizado dentro de uma lancha
[...] com a vítima segura pelos pés e o restante
do corpo mergulhado na água, seus
torturadores teriam-na deixado escapar, por
[...] "acidente de trabalho” não conseguindo
mais encontrá-la [...].47
Mãos Amarradas
Talvez a vontade de arrancar rapidamente
informações de Manoel Raimundo sobre apoios na ilha
do Presídio ou sobre os atos em cursos de seus
companheiros tenha levado seus torturadores a
transportá-lo, na mesma noite de 13 de agosto até ao rio
40
Cf. COSTA, Ob.cit. p. 145.
Id.ib. 141.
42
TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo:
Globo, 1999. p. 195.
43
Cf. COSTA, Ob.cit. p. 127; Depoimento do ex-subtenente Jelsi
Rodrigues Correa, colhido por telefone em 04.05.2008.
44
Cf. CAPITANI, Ob.cit. p. 101-2.
41
45
Relatório Tovo. p. 3.
Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 72.
47
Relatório Tovo. p. 34.
46
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 13
Não é de se afastar igualmente a hipótese de uma
execução do prisioneiro, devido a sua negativa em
fornecer as informações exigidas, para aterrorizar seus
companheiros, ou por qualquer outra razão
desconhecida. É também possível que Manoel tenha
morrido afogado inadvertidamente durante a tortura,
sendo após lançado ao rio. O fato que os responsáveis
pelos atos não tenham jamais sido levados a julgamento
impede a possível elucidação da sequência precisa do
assassinato.
Não há sequer informação precisa sobre o dia da
morte de Manoel Raimundo, ocorrida entre 13 e 20 de
agosto. Em data de 19 daquele mês, telegrama do STM,
encaminhado primeiramente ao diretor da ilha do
Presídio e, no dia seguinte, ao DOPS, pedia informações
urgentes sobre Manoel para fins de habeas corpus.
Enquanto o DOPS permanecia em silêncio, em 20 de
agosto, o delegado e diretor da Divisão de Segurança
Política e Social, José Morsch, entrou no necrotério do
Instituto Médico Legal, à procura de cadáver de
identidade ignorada.48
Foi em vão a tentativa de Morsch de localizar o
corpo de Manoel Raimundo pois, como referido, só seria
encontrado no dia 24. Entretanto, o ato registrou o
conhecimento anterior ao achado, pelas autoridades, da
morte do prisioneiro político. Mesmo após o corpo ser
encontrado e identificado como sendo de Manoel, os
agentes do DOPS seguiram teimando que nada sabiam
sobre os acontecimentos.
Na época, havia ainda liberdade de informação
relativa. Nas páginas de Zero Hora, de 2 de setembro de
1966, o jornalista e humorista Carlos Nobre comentava
irônico e indignado:
O troféu bolha da semana é para o DOPS
porque, segundo o delegado Delmar Kuhn, os
agentes levaram o sargento Manoel Raimundo
Soares para a Ilha do Presídio, dias depois ele
aparece morto, boiando no rio Jacuí com as
mãos atadas e o DOPS diz ignorar qualquer
violência na vítima [...].49
Os assassinos de Manoel Raimundo tentaram
mascarar os fatos, com a ajuda de alguns jornalistas de
grandes meios de comunicação. Foi longamente
divulgado que a morte do Sargento faria parte de “trama
subversiva diabólica” “para fins de propaganda antirevolucionária”, ou seja, contra o governo ditatorial. A
versão oficial dizia que ele fora posto em liberdade em 13
de agosto, apoiada em documento de soltura
pretensamente assinado pelo sargento. No livro de
registros de presos da Ilha, constava que Manoel fora
retirado de lá naquele dia. No livro de ocorrências do
DOPS, podia-se ler: “Às 13:30 horas foi liberado por este
DOPS, o detido MANOEL RAIMUNDO SOARES.”50
48
Cf. Relatório Tovo. p. 32.
VILLALOBOS, Marco Antônio. A guerrilha do riso: Carlos
Nobre x ditadura militar brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto,
2000. p. 60.
50
Relatório Tovo. p. 25.
49
Acidente ou Execução?
Na época, a proposta de libertação, em 13 de
agosto, de Manoel Raimundo, foi defendida para negar a
responsabilidade do Exército e da Polícia. O que sugere
que a assinatura tenha sido forjada pelas autoridades,
preventivamente, após o "acidente de trabalho" no rio
Jacuí, talvez sob a injunção dos pedidos prementes de
informação determinados pelos habeas corpus
impetrados em favor do prisioneiro.
Entretanto, a assinatura foi autenticada pela
perícia. Caso ela realmente pertencesse ao prisioneiro, se
fortalece a hipótese de execução através de afogamento,
realizada talvez após o ministro forçado de bebida
alcoólica. Araken Galvão, ex-sargento e seu
companheiro de luta, subscreve a tese do assassinato.
“Aplicaram-lhe injeções de álcool nas veias para
embriagá-lo – ele que nunca colocara na boca uma taça
de vinho sequer – quando viram que ele não delataria
ninguém [...] jogaram, depois de uma terrível sessão de
torturas, ainda vivo no Rio Guaíba [...].”51 Nesse caso, o
único acidente teria sido o lançamento de Manoel com os
pés e as mãos amarradas, o que tirava credibilidade à tese
de suicídio ou acidente devido à embriaguez. O registro
da libertação teria sido medida preparatória à execução.
Manoel Raimundo não foi positivamente
libertado às 13:30 horas. Em depoimento de 3 de
novembro de 1966, o guarda civil Gabriel Medeiros de
Albuquerque Filho afirmou que viu o ex-sargento em
uma das celas do DOPS, na noite de 13 de agosto, quando
prestava serviço naquele local.52 Esta informação foi
também confirmada pelo então estudante Luis Renato
Pires de Almeida, detido à mesma época naquela prisão.53
Um Último Encontro
Araken Galvão relata sobre a viagem de
Elizabeth a Porto Alegre, onde chegou em 30 de agosto de
1966: “Quando a notícia de sua morte chegou ao Rio eu
recebia [...] a missão de acompanhar Betinha até Porto
Alegre e, durante a viagem, já ir preparando o seu
espírito para amortecer o impacto da tragédia.”54 No
necrotério, Elizabeth fez o reconhecimento do cadáver.
De pequena estatura, acabrunhada pela morte, a jovem
mostrou grande decisão e coragem na defesa da memória
de seu esposo e na exigência do castigo dos culpados.
Em 2 de setembro, o enterro de Manoel
Raimundo foi acompanhado por pequena multidão. Por
onde passava o cortejo triste, as lojas fechavam-se em
sinal de homenagem ao combatente caído. Trabalhadores
da Carris tomaram o caixão pela alça e carregaram-no até
51
“Retrato de um sargento”. Capítulo de livro inédito “O Sargento
na História do Brasil”, de Araken Vaz Galvão, gentilmente cedido
pelo autor.
52
Cf. Relatório Tovo. p. 27.
53
Dados retirados do site www.torturanuncamais-rj.org.br . Acesso
em 24 abr. 2008.
54
“Retrato de um sargento”. Capítulo de livro inédito “O Sargento
na História do Brasil”, de Araken Vaz Galvão, gentilmente cedido
pelo autor.
14 - Vida, luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares
a Pira da Pátria, no Parque Farroupilha. Já no cemitério,
um estudante gritou para policial que vigiava à paisana o
ato fúnebre: “Assassinos!” O cadáver foi depositado,
finalmente, no Cemitério São Miguel e Almas.55
A jovem Elizabeth não teve forças para
acompanhar a longa marcha fúnebre, pois a “três dias não
comia e quase não dormia”.56 Uma semana depois,
também não compareceu à missa de sétimo dia de
falecimento. Em ato de vilania inusitada, após vitimarem
o jovem suboficial, os esbirros da ditadura voltavam-se
agora contra sua esposa, golpeada pela perda irreparável.
Elisabeth fora convocada para depor na Secretaria de
Segurança naquela data, sendo interrogara por cinco
horas.57
Total Impunidade
A Procuradoria Geral do Estado designou o
promotor Paulo Cláudio Tovo para acompanhar as
investigações sobre o crime. Mesmo pressionado pelo
Secretário de Segurança, ele concluiu relatório em inícios
de 1967, produzindo provas fundamentais. A Assembléia
Legislativa do RS instaurou também CPI para averiguar
as circunstâncias da morte e a forma como eram tratados
os presos políticos, que resultou em valioso relatório
publicado no Diário da Assembléia, em junho de 1967.
Divulgado por dias amplamente pelos meios de
comunicação, o homicídio de Manoel Raimundo chocou
profundamente a sociedade sulina e brasileira da época. A
ilegalidade do ato, as torturas praticadas, a violência com
que fora tratado anunciavam porém as práticas e as armas
que o governo militar empregaria nos anos seguintes
contra seus opositores, agora sob a proteção do
amordaçamento absoluto da imprensa.
Até hoje, não houve elucidação precisa da
execução de Manoel Raimundo. Os responsáveis
denunciados jamais foram punidos, seguindo suas
carreiras encobertados e protegidos pelas autoridades
civis e militares superiores, sob as ordens das quais
cometeram aquelas e tantas outras violências. Sequer
após a redemocratização do país, em 1985, seriam
levados à Justiça.
Em agosto de 1973, a viúva Elizabeth ajuizou
ação indenizatória pelo assassinato de seu esposo contra a
União, o estado do RS e alguns militares do Exército
Brasileiro. Transferido da Justiça estadual para a federal,
o processo tramitou por mais de trinta anos! Quando, em
dezembro de 2000, a autora conseguiu sentença
favorável, a União recorreu da decisão. Somente em
setembro de 2005, a ação foi julgada procedente pelo
Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
A Elizabeth foi garantido pela Justiça o direito à
pensão mensal vitalícia (retroativa a 13 de agosto de
55
Dados retirados do site www.torturanuncamais-rj.org.br . Acesso
em 24 abril de 2008; Zero Hora, Porto Alegre, 1 de setembro de
1966.
56
Discurso do deputado Jacques D´Ornellas em 28 de maio de
1984. In: Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 59.
57
Acórdão publicado no D.J.U. em 05/10/2005. p. 59.
1966, relativa à remuneração integral de segundosargento) e ressarcimento por gastos à época com
viagem, hospedagem, alimentação, funeral e luto de
família. Foi-lhe determinado pagamento de indenização
por dano moral. Porém, o processo criminal ajuizado foi
arquivado por caducidade, garantindo a impunidade dos
torcionários e executores de Manoel Raimundo.
Na obra Segurança Nacional, ao enumerar
medidas necessárias para reduzir o poderio e privilégio
dos militares na Nova República, Roberto Martins alerta
para que “sejam desvendados os crimes contra os direitos
humanos. Se a impunidade for mantida, muito fácil será
no futuro repetir os mesmos crimes. Sem justiça, será
falsa qualquer democracia implantada”.58
***
ANEXO: O que sei sobre o caso das Mãos
Amarradas.
por Jorge Loeffler - 18/10/2009
Em 1965, com vinte e um anos, decidi submeter-me a
um concurso público, ingressando na então Escola de Polícia.
Enfrentei o curso de formação de Inspetores e Escrivães.
Aquela foi uma das melhores, senão a melhor turma da Escola.
Lembro de alguns colegas de curso como do Joaci Casagrande
Paulo, hoje psiquiatra, do Jorge Anselmo Barrios, Procurador
da República aposentado, do Julio Cezar Coitinho, Juiz de
Direito aposentado, do Luiz Carlos Celi Garcia, hoje cirurgião
plástico bem sucedido em Caxias do Sul, do Arnaldo Buede
Sleimon, desembargador em nosso TJ ainda em atividade, do
Edemar Mainardi, engenheiro ferroviário aposentado.
Belíssima turma. Havia muitos outros que foram
muito bem sucedidos e cujos nomes no momento não recordo,
pois nossa turma era composta de cerca de 150 alunos
Terminado o curso, em meados de 1966, fui lotado na
Delegacia de Polícia de Bom Jesus. Meu único irmão
consangüíneo, o Henrique que trabalhava na REFAP, refinaria
da Petrobrás em Canoas, foi removido para a refinaria de
Araucária no Paraná que estava por inaugurar. Nossos pais já
com 60 anos, o que na época era considerado velhice, ficaram
sozinhos. Tínhamos um vizinho, Escrivão de Polícia e redator
no Correio do Povo. Seu nome Luiz Carlos Costa, já falecido e
que se aposentou como Delegado de Polícia.
O Costa, um excelente vizinho, e por sua condição de
jornalista conseguiu junto a então Chefia de Polícia meu
retorno à Capital, mas a lotação conseguida seria no DOPS.
Não me restou alternativa. Ali me apresentei dia primeiro de
agosto de 1966 e permaneci até o final daquele ano. Fui lotado
no plantão. Havia lá uma escala de sobreaviso, ou seja, durante
a folga ficávamos sempre a disposição para eventual
substituição de algum colega. Pois no dia 13 daquele mês, no
final da tarde, fui buscado em casa tendo em vista que o
Escrivão de Polícia Laurentino Scomazzon adoecera. Mal
havia chegado lá chegou o Delegado Enir Barcelos da Silva,
irmão de um oficial do Exército e que se comportava com se
fosse militar. Mandão como ele só.
58
MARTINS, Roberto. Segurança Nacional. São Paulo:
Brasiliense, 1986. p. 77-78.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (7-15) - 15
Chegara ele trazendo um jovem casal. Eram
namorados. Reconheci a ele como sendo vizinho no meu
bairro, era o Edgar Pernau, filho do senhor Henrique Pernau,
gerente de Lojas Renner. O crime do Edgar e sua acompanhante
fora ter participado de um leve acidente com danos matérias
com a viatura discreta usada pelo Delegado Enir. Tão somente
por isto foram conduzidos ao plantão do DOPS. Meu Deus o
que ocorrera neste país para chegarmos a tamanha
barbaridade?
Enquanto os dois ali estavam, um colega lotado há
mais tempo naquele Departamento trouxe da cela um sujeito de
altura média, com feições típicas de nordestino. Ele trajava
uma calça de nycron preta, sapatos sociais pretos, camisa volta
ao mundo, branca, com as mangas arregaçadas. Sob um dos
braços tinha uma caixa de sapatos com objetos de higiene e
outros pessoais.
Ele me pareceu nervoso. Em poucos momentos foi
liberado e recebi de um veterano a ordem de não me aproximar
da janela. Descumpri tal determinação e vi que o preso cuja
identidade ainda não conhecia, depois de sair da porta lateral do
prédio (Avenida Ipiranga), rumou até a Rua da Azenha [av.
João Pessoa] e então tomou o rumo do centro, mas ainda sobre a
ponte da Azenha [João Pessoa] foi apanhado por dois homens
que trajavam gabardines e colocado num automóvel Renault
Gordini.
Depois fiquei sabendo que sua soltura fora registrada
em livro próprio como tendo ocorrido ao meio dia. Não mais o
vi. Na noite do dia 23, ou seja, dez dias depois surgiu a notícia
de que haviam encontrado corpo de um preso político boiando
no Guaíba. No dia seguinte, ou seja, 24 de agosto fomos, eu e o
Régis ao antigo necrotério (fundos da Santa Casa). Lá
chegando reconheci o cadáver como sendo daquele preso
liberado ao anoitecer do dia 13.
O colega que me acompanhou era o Dionísio Régis
Torres Medeiros, Guarda Civil e cedido ao DOPS. Alguns dias
depois nos encontramos na escada do prédio e ele feliz da vida
me disse que iria para Rio Grande, se livrando daquilo ali. Ele
fora campeão de pugilismo quando no Exército. Lembro ter
dito a ele que tomasse cuidado, pois Rio Grande era um porto
marítimo e, portanto sempre perigoso. Ali nos despedimos e ele
disse-me que sabia se cuidar.
Alguns dias depois fiquei sabendo que no mesmo dia
em que chegara a Rio Grande ele se envolveu numa briga no
porto e o dono do bar o matou com um tiro na cabeça. Esta foi a
versão do fato que chegou ao meu conhecimento, porém se
verdadeira ou não, confesso que não sei. Naquele período
negro e lamentável de nossa história recente morrer ou
desaparecer não era algo tão difícil assim.
Uma coincidência me despertou a atenção. É que na
manhã do dia 24 de agosto, algumas horas depois da
“descoberta” do corpo no Guaíba, desembarcava de um ônibus
na Rodoviária, a senhora Elizabete Chalupe Soares, esposa da
vítima, vinda do Rio de Janeiro. Lembro quão difícil foi esta
situação. Anos mais tarde um advogado desqualificado de
nome Aldrovando de Oliveira Micelli decidiu escrever um
livro no qual afirmava terem sido matadores do sargento os
Comissários João Ribeiro e Jorge Pinto Loeffler.
Num determinado dia cheguei a Área Judiciária para
trabalhar e um dos Escrivães que compunham nossa equipe me
mostrou o Correio do Povo com a matéria sobre o tal livro.
Aquelas 24 horas custaram muito a passar. No dia seguinte
rumei cedo para Cidreira onde minha esposa e filhos, todos
pequenos, me aguardavam. A Cíntia era a mais velha deles e
tinha seis anos. Hoje ela tem 36 anos, logo isto ocorreu faz
trinta anos.
Até mesmo foram à porta da casa do meu irmão em
Curitiba perguntar para minha cunhada se o assassino era
parente deles.
Hoje tenho 65 anos e ainda não me considero velho o
bastante, mas longe estou de ser jovem. Muito tenho refletido e
sempre me lembro do Scomazzon que nem mesmo lá estava
quando da saída da vítima e sempre constou como sendo um
dos envolvidos nesta morte covarde. Até mesmo circularam as
versões de que teria sido um “caldo”. Conversa fiada, ele foi
mesmo afogado, pois para o tal caldo não é necessário um rio
inteiro. Versão infantil mesmo. Circulou naquela época o
rumor de que ele havia sido morto para vingar uma surra
aplicada por companheiros dele num major do Exército ligado
a repressão.
Ao lado da Delegacia de Polícia do Oitavo Distrito
residia um sargento do Exército que chegou a major durante a
repressão política, era o senhor Darci Paiva Soares. Seu filho, o
Carlinhos acabou “trabalhando” no DOI-CODI por influência
do pai e sempre contava suas façanhas, isto já anos depois,
quando eu trabalhei no plantão daquele distrito.
Não sei onde anda o Scomazzon que fora meu vizinho
na Chácara das Pedras. Lembro que tinha duas filhas. Sua
esposa era professora e amiga da minha. Não sei se ele ainda
vive. Espero que sim e que tome conhecimento deste meu
desabafo que lhe faz justiça, pois além do sargento ele é outra
vítima.
Sei que este texto poderá me causar algumas
incompreensões, mas nesta quadra da vida, isto a mim pouco
importa. Me importa sim que matar alguém por determinação e
num regime ditatorial é algo inconcebível a alguém como eu
que tive uma família que muito bem soube me educar.
Lembro do que o meu pai me contava sobre como
enfrentou uma rejeição estúpida depois da guerra, tendo sido
naturalizado ainda em 1927, pois foi considerado quinta coluna
vez que mandava daqui, via Cruz Vermelha, para suas irmãs e
sua cunhada café, açúcar e roupas. Meu tio que morreu faz
alguns anos em Munique, era então prisioneiro dos ingleses em
Bari, no sul da Itália, onde permaneceu até fins de 1947. Num
salto foi atingido ainda no ar por fogo inglês e sofreu fratura
numa das pernas. Tio Edmund acabou se familiarizando com
aquela cidade e depois da guerra passou a veranear lá.
PS. A noite deste domingo, depois de ter encerrado
este texto soube do telefone do Scomazzon e conversei com ele.
Está com mais de setenta anos e bem de saúde.
16 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército
Formação militar: aspectos da liderança de
Benjamin Constant no âmbito do Exército
Claudia Alves1
A
participação da oficialidade do exército no
golpe que instaurou o regime republicano tem sido
tratada na historiografia sobre o tema como um elemento
dos mais relevantes. Entretanto, a ênfase tem sido
colocada quase exclusivamente sobre o protagonismo da
mocidade militar, organizada a partir da Escola Militar da
Praia Vermelha, o centro mais importante de formação
intelectual e profissional da oficialidade do exército
naquele momento. Argumentos consistentes foram
reunidos para fundamentar esse enfoque, que está
centrado nos momentos finais da monarquia, quando o
quadro de crise se agudiza e atores decisivos assumem o
centro da cena.2
Nossa atenção, entretanto, tem se voltado para
outros engajamentos que, por vezes de maneira
subterrânea, constituíram a possibilidade de ação política
desse sujeito coletivo “corporação militar”, por meio de
uma fração organizada de seus oficiais.3 Temos nos
ocupado em perseguir indícios da construção da
organização de uma parcela da intelectualidade militar.
Temos como pressuposto que toda ação política se
alicerça na possibilidade de algum nível de direção
intelectual e moral, em conformidade com as reflexões
teóricas de Antonio Gramsci, em suas anotações nos
Cadernos do Cárcere.
No presente artigo, tomamos um caso particular
de mobilização da oficialidade do exército como
expressão da organização que se processava por dentro da
instituição. Interessa-nos compreender a maneira como
Benjamin Constant se inseriu nos debates que
envolveram a oficialidade na década final do período
imperial, tomando as propostas que elaborou nos anos
1887/1888 como expressão do papel que passara a
desempenhar entre as lideranças da corporação. Para tal,
elegemos os documentos redigidos pelo próprio
Benjamin, nas duas ocasiões, conservados dentre os
manuscritos de seu acervo particular, como as principais
fontes para a nossa análise.
A formação de oficiais em debate na década
de 1880
Desde sua criação, como Real Academia Militar,
em 1810, a principal escola de oficiais, que se
notabilizaria com o nome de Escola Militar, teve seu
ensino reformado várias vezes durante o império.4 Na
segunda metade do século XIX, é possível observar a
crescente participação de oficiais intelectualizados nas
comissões encarregadas de construir as reformas do
ensino militar. Constituídas por nomeação direta do
Ministro da Guerra, tais comissões tinham a
possibilidade de catalisar posições presentes nos debates
travados entre parte da oficialidade. O auge desse
processo ocorreu na década de 1880, quando um grupo de
oficiais tomou a iniciativa de criar um periódico que se
constituiu em veículo para a discussão de temáticas
relativas a esses interesses, a Revista do Exército
Brasileiro.
No ano de 1881, um decreto imperial5 atingia o
ensino militar, alterando a formação de oficiais, de modo
a aprofundar a diferença entre, de um lado, as chamadas
armas científicas - a artilharia e a engenharia – e, de outro,
as não científicas – a infantaria e a cavalaria. Pelo
decreto, a formação de infantes e cavalarianos poderia ser
concluída com a aprovação apenas nas disciplinas do
primeiro ano da Escola Militar da Corte ou da Escola de
Infantaria e Cavalaria do Rio Grande do Sul.
Na perspectiva gramsciana, esse tipo de
iniciativa deve ser tomado como parte da construção da
direção intelectual, necessária à luta por hegemonia. No
caso particular que abordamos, é nítido o investimento de
parte da intelectualidade do exército em tentar influir nas
decisões sobre a formação da oficialidade, por meio de
um instrumento próprio à ação “de partido”, com a
finalidade de ganhar adesão para a sua concepção: “A
imprensa (quem o contesta?) é o mais poderoso meio que
se tem inventado para a divulgação do pensamento, e pôlo em dúvida seria arremessar o paradoxo contra a
evidência”.6
1
Professora Associada da Faculdade e do Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.
2
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no
Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CASTRO, Celso. Os
Militares e a República. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. SCHULZ,
John. O Exército na Política: Origens da Intervenção Militar,
1850-1894. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1994.
3
ALVES, Claudia. Cultura e Política no Século XIX: O Exército
como campo de constituição de sujeitos políticos no Império.
Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002.
4
MOTTA, Jehovah. Formação do oficial do Exército Brasileiro:
currículos e regimes na Academia Militar, 1810-1944. Rio de
Janeiro: Cia. Brasileira de Artes Gráficas, 1976.
5
Decreto n. 8205, de 30 de julho de 1881. Altera algumas
disposições dos Regulamentos das Escolas Militar da Corte e de
infantaria e cavalaria da província do Rio Grande do Sul.
6
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 161.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (16-22) - 17
Pelo que se pode depreender da leitura de
diversos artigos escritos por oficiais do exército nos anos
que se seguiram ao decreto, seu conteúdo despertou
reações de lideranças importantes do corpo de oficiais,
que o entenderam como uma desqualificação das armas
de infantaria e cavalaria. O principal veículo de
circulação dessas idéias, a Revista do Exército Brasileiro,
publicou textos assinados por oficiais de diversas
patentes, em torno de questões que estavam no centro das
preocupações da oficialidade. A reestruturação do
exército e a formação de seus quadros, em todos os níveis,
eram os dois eixos que polarizavam as discussões e
definiam posições expressas por esses autores.
Um exame da Revista do Exército Brasileiro
(1882-1889) demonstra a importância que esse periódico
assumia, diante daquele contexto, para um grupo de
oficiais. A capacidade de refletir sobre os problemas da
corporação e de apresentar caminhos possíveis de
estruturação de suas forças aparecia, nas páginas da
revista, associada ao acervo de conhecimentos
acumulados pela oficialidade por intermédio dos estudos
formais, das leituras efetuadas, da prática vivenciada no
exercício de suas funções e das oportunidades de contato
com a experiência de exércitos estrangeiros. Embora o
móvel imediato do envolvimento no debate estivesse
referido à distribuição do poder e das posições na
corporação, que interferiam nas possibilidades de
ascensão na carreira, é notável a visão de conjunto e o
nível de elaboração de propostas de que dispõem os
oficiais que participam do debate.
No que dizia respeito à formação de oficiais, para
além de divergências pontuais, ganhava dimensão
importante, nos artigos, a preocupação comum com a
diminuição das distâncias entre as armas, sobretudo entre
os dois blocos – as científicas e as não científicas – pela
promoção de uma instrução mais sólida aos alunos
inscritos nos cursos de infantaria e cavalaria. De modo
geral, a ênfase recaía sobre a necessidade da instrução,
tanto teórica quanto prática, como meio de afirmação do
exército. O enfoque do tema insistia na qualificação de
seus quadros como parte da construção de forças armadas
mais eficientes, ao mesmo tempo em que a considerava
patamar indispensável à projeção e conquista de
reconhecimento pela sociedade.
Nos discursos que circulavam no seio da
oficialidade do exército nessa década, o protagonismo da
instrução aparecia vinculado a dois aspectos
considerados centrais para a elevação do nível da
corporação: de um lado, a garantia da disciplina; de outro,
a preparação para o uso das inovações tecnológicas que
estavam transformando a guerra. Na representação
construída nos discursos, a instrução aprimorada
potencializaria o cumprimento das ordens pelo aumento
da compreensão dos comandados a seu respeito. Pelo
avesso, as dificuldades de disciplina no exército
brasileiro eram pensadas como resultado de uma frágil
formação. Pressupunha-se que o soldado
intelectualmente mais bem preparado, compreenderia
sua própria importância para a nação, lutando imbuído de
verdadeiro sentimento patriótico. Um certo ideal de
racionalidade se impunha como remédio para as atitudes
movidas pela emoção, que estariam na base da
indisciplina.
Com relação à inovação tecnológica, a urgência
de preparar a tropa para adequar-se às suas exigências
direcionava os discursos para o anseio por estudos de
caráter científico. Nas palavras de um orador daquele
momento, dirigindo-se à alta oficialidade, encontramos
uma imagem que sintetiza essa preocupação: para ele, a
guerra deixara de ser escola para ser exame.7 Em sua
explanação, argumentava que o tempo de concentração
das tropas, que antecedia a luta propriamente dita,
reduzira-se drasticamente, exigindo que o exército
chegasse ao campo de batalha já treinado para se por em
movimento. A velocidade que os novos armamentos
imprimiam aos conflitos armados fazia com que a guerra
se tornasse cada vez mais mental e menos corporal.
Benjamin Constant e a reforma de 1887
Benjamin Constant integrava a geração de
oficiais que, naquele momento, organizava-se em torno
desses debates. Embora não se incluísse entre os
articulistas da Revista do Exército Brasileiro, nem seu
nome seja citado entre os participantes que faziam
intervenções durante as chamadas Palestras militares,
realizadas na Biblioteca do Exército, em 1885, sua
presença na Escola Militar foi marcada por uma posição
de liderança. Há um indício, ainda, em um dos
documentos analisados para este trabalho8, de sua
proximidade com o círculo da Revista do Exército
Brasileiro, pois, ao referir-se a um livro publicado em
francês, no ano anterior, afirma que ele pode ser
encontrado na biblioteca da revista, o que indica que
conhecia seu acervo e mantinha, com aquele ambiente,
relações próximas.
A solicitação feita pelo comandante da Escola
Militar, em 1886, general Severiano da Fonseca, para que
redigisse o projeto de um novo Regulamento, ou seja, que
elaborasse ou sistematizasse um plano de reforma dos
estudos ministrados naquela escola, também pode ser
tomada como um indicador do respeito e confiança de
que gozava naquele meio intelectual militar. Naquele
contexto, suas idéias pareciam ganhar uma receptividade
significativa entre importantes setores da oficialidade, ao
mesmo tempo em que se abria uma oportunidade real
para a participação de Benjamin Constant nos debates
acerca da formação dos militares.
No entanto, não era somente no âmbito do
exército que Benjamin Constant vinha ganhando um grau
considerável de reconhecimento profissional. No
panorama educacional da Corte, a sua figura de professor
e intelectual positivista também vinha recebendo,
naqueles últimos anos, mostras progressivamente mais
significativas de importância. A experiência adquirida ao
7
Senador Henrique d'Ávila, Palestras militares, Revista do
Exército Brasileiro, ano quarto, 1885, p. 77.
8
Trata-se do Parecer ao conselheiro Tomás Coelho, Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios da guerra, sobre a reforma da
escola Militar da Corte, p. 4.
18 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército
longo dos anos em instituições educativas do Império –
tais como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, o
Instituto Comercial do Rio de Janeiro, a Escola
Politécnica e o Colégio de Pedro II – e o posicionamento
diante de questões que passavam pela organização do
campo educacional, qualificaram Benjamin Constant
para uma inserção mais dinâmica no ambiente intelectual
do país.
Entre julho e agosto de 1880, Benjamin Constant
participaria, na qualidade de diretor da Escola Normal, de
uma comissão interna que avaliou os primeiros meses de
experiência da Escola e propôs mudanças no
regulamento então vigente. Em fevereiro do ano
seguinte, foi escolhido para integrar a Comissão Especial
formada para estudar a reforma das bases de cálculo das
porcentagens das jóias e anuidades do Montepio Geral.
As discussões mobilizaram importantes intelectuais do
país e foram divulgadas pelos jornais da Corte e pelo
Instituto Politécnico Brasileiro.
Ainda naquele ano de 1881, Benjamin foi
convidado a intervir em um debate que vinha
mobilizando as energias intelectuais do país. Fora
submetido à apreciação das congregações de diversos
estabelecimentos de ensino do país, inclusive a Escola
Normal da Corte, o projeto de reforma no ensino superior
e de criação de uma universidade na Corte. Atuando
como diretor da Escola, Benjamin seguiu, de maneira
geral, a posição tomada pela Congregação da Escola
Normal, votando contra o projeto e argumentando que a
proposta era contrária à tendência geral e bem acentuada
do movimento intelectual moderno (...) tendência que
consiste essencialmente em por toda a parte o ensino
público, ou seja científico, leigo e livre.9
Já em 1882, foi solicitado pelo novo Ministro do
Império para que opinasse sobre as bases do Congresso
Pedagógico Brasileiro que estava sendo organizado.
Benjamin foi convidado a participar dos trabalhos da 1ª
seção. Em seu parecer, de ordem pública, e destinado
especificamente ao conjunto de autoridades do sistema
educacional, criticou duramente os responsáveis pela
situação em que se encontrava a instrução pública
primária do país. Partindo da importância da educação
como preparo para o exercício da cidadania e como
instrumento de formação da visão de mundo do homem,
criticou o espírito geral da instrução oferecida e a
precariedade do direito à educação primária no país.
Como destaca Renato Lemos, as constantes
iniciativas que tomara, como professor, militar e
intelectual positivista, no sentido de tentar reformar
aspectos vistos como problemáticos da sociedade
brasileira, acabavam esbarrando na inércia institucional
do país. Tanto na Escola Normal, como no exército, suas
concepções como professor, pedagogo e militar
combinaram-se com uma progressiva tomada de
consciência político-corporativa para dar um novo
conteúdo ao seu relacionamento com o poder público.10
9
Apud LEMOS, Renato Luís Couto Neto e. Benjamin Constant:
vida e história. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1997.
(Tese de Doutorado em História).
10
Idem, p. 273.
Em 21 de janeiro de 1887, o então major e
repetidor interino da Escola Militar Benjamin Constant
começava a redigir um novo projeto de Regulamento para
a Escola Militar da Corte, intitulado Plano Geral de
Ensino Teórico e Prático. A proposta, cuja solicitação
havia sido feita pelo próprio comandante da Escola,
general Severiano da Fonseca, definia um novo currículo
para a Escola, e situava a instrução ali ministrada diante
das “transformações” por que passava o mundo no final
daquele século. Além de indicar a redistribuição dos
conteúdos ensinados de acordo com a natural
dependência entre as ciências e as suas leis gerais de
desenvolvimento, o documento chama a atenção por
tencionar oferecer aos oficiais militares uma sólida
instrução científica indispensável a todo cidadão. No seu
texto, o redator insistia para que se proporcionasse ao
oficial do exército, além dos conteúdos puramente
profissionais vinculados à teoria e à prática militar, uma
instrução geral necessária ao bom desempenho de seus
deveres cívicos e profissionais.
Se desde o começo da década de 1880
circulavam, pelos diferentes espaços da corporação,
propostas para a reforma de aspectos da educação militar
que conferiam um lugar privilegiado à instrução da
oficialidade, os anos subseqüentes demonstraram como a
figura de Benjamin Constant acabou por ampliar, nesse
movimento, a sua receptividade entre importantes setores
do exército. Quando submetido à Congregação da Escola
Militar da Corte, o projeto seria unanimemente apoiado e
aceito por seus membros. Também, posteriormente,
Benjamin Constant desempenharia um papel
fundamental nas discussões sobre a reforma do
Regulamento das Escolas Militares, influindo ativamente
nas discussões que culminariam na organização do
Regulamento das Escolas Militares de 1889.
O trabalho de construção de uma direção
político-cultural, como parte da constituição de um
sujeito coletivo, contou, portanto, desde o primeiro
momento de sua articulação, com a liderança que esse
intelectual exercia, não só sobre a juventude. A
conjugação entre sua projeção nos círculos fora do
exército e a respeitabilidade interna à Escola Militar o
posicionaria no Estado, de forma a transitar entre
sociedade política e sociedade civil, na consecução de um
certo consenso em torno da proposta que representava.
O projeto da reforma e a construção do
consenso
O extenso projeto elaborado por Benjamin
Constant, em 1887, estava dividido em duas partes: uma
em que expunha o currículo proposto e outra na qual
justificava a reorganização do conteúdo oferecido nas
diferentes etapas da instrução dos oficiais. O documento
inicia-se com a apresentação do Plano Geral de Ensino
Teórico e Prático, em que são listadas as disciplinas a
serem estudadas, sob a forma de aulas e cadeiras, por ano,
a cada etapa da formação: Curso preparatório, Curso
Geral e Cursos Especiais. Pelo plano, pretendia-se
dividir a instrução oferecida na Escola Militar em dois
níveis de ensino – um literário e científico, comum a
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (16-22) - 19
todas as armas e composto conjuntamente pelo ensino
secundário anexo à Escola Militar (o Curso Preparatório)
e um Curso Geral a ser instituído; e outro de caráter
essencialmente profissional, composto dos cursos
especiais das diferentes armas do exército: infantaria,
cavalaria, artilharia, estado maior e engenharia militar.
Interessante observar como sua concepção de
formação inicia-se nos estudos preparatórios, que
correspondiam ao nível secundário, deixando
transparecer o quanto o ensino ministrado nesse curso,
edificado pelos próprios militares durante as décadas
anteriores, era caro a essa oficialidade. Benjamin não se
detém em discuti-lo, posto que, àquela altura, seu formato
seriado em três anos já atingira o ponto de estabilidade
possível e necessário aos exames de ingresso na Escola
Militar. Ainda assim, introduz modificações que
acentuam seu duplo caráter propedêutico e de formação
profissional. O texto valoriza essa característica,
procurando demonstrar o quanto os conteúdos que o
compõem estão relacionados ao conhecimento
introdutório às disciplinas dos cursos superiores, ao
mesmo tempo em que garantem a preparação do futuro
agrimensor – profissão para a qual se destinava sua
formação.
Apesar de se dedicar à exposição dos diferentes
grupos de instrução em separado, a ênfase da
argumentação foi colocada na justificativa de
organização do Curso Geral, comum às três armas do
exército, que ocupa cerca de três quartos do documento.
Diferentemente do que se vinha fazendo, Benjamin
Constant estava propondo, através da criação do Curso
Geral, o estabelecimento de uma instrução geral que
condensasse, em uma pequena enciclopédia, os
conhecimentos científicos fundamentais necessários a
todos os oficiais.
Aqui se encontrava o ponto de convergência de
todo o debate empreendido pelos intelectuais do exército
nesse período. Ao construir a proposta de um Curso
Geral, Benjamin procurava atender ao desejo de que se
eliminasse a distância na formação entre as armas
científicas e as não científicas, ao mesmo tempo em que
pretendia adensar a formação do conjunto dos oficiais,
com um currículo recheado de disciplinas que, nas suas
palavras, compreendiam todos os elementos constitutivos
de uma sã instrução fundamental.
As estratégias que utilizou para construir a
argumentação constituem-se em indícios da relação que
guardava a proposta por ele apresentada com o debate
geral. Recorreu, por exemplo, ao registro da fala de um
dos lentes catedráticos, Francisco Carlos da Luz, que, em
reunião anterior da congregação, havia reclamado da
redução constante da instrução científica destinada às
armas da cavalaria e da infantaria, perceptível em todos
os regulamentos do ensino militar desde 1845. Frisou,
ainda, a reconhecida importância dessa instrução para
formar cidadãos, palavra recorrente nos discursos dessa
geração de oficiais.
Os oficiais de infantaria e cavalaria são, ao
mesmo tempo como os das outras armas,
cidadãos e soldados, e precisam portanto da
mesma instrução geral necessária ao simples
cidadão, além da instrução técnica
indispensável à sua conveniente adaptação à
classe à qual se destinam, e portanto ao bom
desempenho de seus importantes deveres. (...)
Anotemos, embora de passagem, que a falta de
homogeneidade na instrução geral do nosso
exército é um dos principais sintomas
característicos de sua anomalia constitucional
atual.
Levando-se em conta o público a que se
destinava o documento que redigira, é possível supor que,
não só o recurso de apoiar-se na fala de um dos
componentes da Congregação, mas o tom geral do texto,
buscava angariar adesão por meio de argumentos que
construíssem a aproximação das percepções dos
professores da escola. A expressão que sintetizava a
proposta que buscava contemplar esse anseio por
formação era instrução integral. Esse era o cerne da
proposta de formação comum, condensada nos cursos
preparatório e geral, entendida como “... resumo do que
há de verdadeiramente útil e fundamental no saber real
da humanidade, relativamente ao mundo, à sociedade e
ao homem considerados em seus diferentes aspectos
essenciais...”.
Tanto nessa concepção quanto na forma como
apareciam ordenadas as disciplinas, a instrução integral
trazia um forte conteúdo positivista, aspecto já bastante
associado à figura de Benjamin Constant pela
historiografia. Também é admitido pelos historiadores
que se dedicaram ao estudo do exército que, embora não
fosse posição unânime, o positivismo encontrava
ressonância nesse meio intelectual militar Lins, 1936). A
linguagem de Benjamin Constant, no documento,
expressa, então, tanto a sua adesão ao ideário de Augusto
Comte, quanto a anuência dos professores da escola em
relação a essa forma de entender a ciência e o ensino.
Outro aspecto da escrita do documento que vale
notar é a transcrição de parte do parecer que o mesmo
Benjamin havia escrito sobre as escolas normais anos
antes, e que, neste contexto, funciona como reafirmação
de princípios que deveriam ser comuns a qualquer
seleção de conteúdos para o ensino. Além de demonstrar
a coerência do autor, a legitimidade de um texto já
tornado público através de publicação oficial, funcionava
como aval à proposta. Nessa passagem, não por acaso, a
atenção está centrada na introdução das matérias de
Moral e Sociologia, expressão pura do pensamento
comtiano, e que, dentro do exército talvez fossem as mais
estranhas à formação militar.
A apresentação dos Cursos Especiais, etapa final
da formação de oficiais em cada arma, segue a forma
escritural que busca fundamentar a seleção e organização
das disciplinas num arcabouço teórico mais amplo, de
cunho positivista. A separação entre a parte teórica e a
profissional é apresentada como normal, ou se já, a que
corresponde à norma, à regra, à normalidade, que se
identifica com a própria natureza dos fenômenos, das leis
que os regem e das ciências que os estudam. Com o
propósito, certamente, de conseguir o apoio da
20 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército
congregação, o texto enfatiza a vantagem dessa
separação, também, pela diminuição da carga de ensino
teórico nesse nível, o que abria espaço para maior
preparação prática. Essa era outra mudança ansiada pela
oficialidade.
Com essas características, o projeto submetido e
aprovado pela Congregação foi encaminhado, pelo
comandante da Escola, general Severiano da Fonseca, ao
Ministro da Guerra Alfredo Rodrigues Fernando Chaves.
Estratégias de enfrentamento na sociedade
política
No ano seguinte, o novo ministro, o conselheiro
Tomás Coelho, constituiu uma comissão para avaliar a
dita proposta de reforma e organizar um projeto de
Reforma Geral para as Escolas Militares da Corte e do
Rio Grande do Sul. O próprio Benjamin Constant
participaria da Comissão, acompanhado pelo general
José Simeão de Oliveira, o capitão de infantaria
Belarmino Mendonça, e sob a presidência do general
Severiano da Fonseca.
A necessidade de reformar o ensino militar não
era uma idéia que circulasse unicamente nos espaços
restritos da oficialidade. Os relatórios dos Ministros da
Guerra vinham insistentemente retomando esse ponto a
cada início de ano, diante da Assembléia Geral. O texto
do relatório de 1885 era bastante claro a esse respeito:
escrita, transparece o clima de aliança nessa construção
comum. Na carta de 23 de outubro de 1888, uma frase
evidencia a expectativa de que Benjamin elaborasse o
texto do parecer e, ainda, que conseguisse um efeito de
escrita que deslocasse as propostas divergentes: Na
exposição ponha à margem toda a modéstia.13
Também no diário de Benjamin Constant foram
encontradas anotações a respeito das reuniões da
comissão, dando conta de que as reuniões iniciavam-se às
11 horas e terminavam no meio ou final da tarde,
conforme o dia. Em 24 de julho, escreve: O Ex.° Sr.
Brigadeiro José Simeão concordou afinal com o plano
por mim proposto para o ensino da Escola.14
O documento manuscrito, de que nos utilizamos
para o presente trabalho, traz o título de Borrão do
parecer dirigido ao Ministro da Guerra sobre a Reforma
da Escola Militar da Corte. Igualmente extenso, esse
texto difere daquele apresentado à Congregação da
Escola, pela mudança de finalidade e de público receptor.
Após a apresentação inicial, em que o texto
remete o leitor aos documentos que embasaram os
trabalhos da comissão – o projeto enviado pela
Congregação da Escola da Corte e as alterações propostas
pelo comandante da Escola do Rio Grande do Sul –, o
trecho seguinte trata de dirigir o foco para duas
preocupações centrais, a primeira por parte do governo, a
segunda por parte dos oficiais. É evidente o tom de
negociação:
Penso que esses projetos além de não exigirem
aumento nas despesas que atualmente faz o
Estado com a manutenção dessas escolas, e não
ferirem direitos adquiridos, abrindo ao
contrário mais largos horizontes às justas e
bem fundadas pretensões dos distintos
lecionistas, ex-alunos que na qualidade de
coadjuvantes do ensino, tem dado no lago
[exercício?] do magistério, numerosas e
exuberantes provas de sua elevada
competência moral e profissional e do seu
louvável devotamento à causa da instrução,
consultam de modo racional, completo e
eficaz, incomparavelmente superior ao dos
atuais e anteriores regulamentos que estas
escolas têm tido desde sua origem, as várias e
complexas necessidades teóricas e
profissionais de nossa instrução e educação
militar.
Em Relatórios apresentados por alguns de
meus antecessores, tratando-se deste nosso
mais importante estabelecimento de instrução
militar, mostrou-se a urgente necessidade de
dar-se-lhe novo Regulamento, no duplo intuito
de fazer-se uma melhor distribuição das
doutrinas que ali se professam.11
O encaminhamento da proposta assumida pela
Congregação da Escola, portanto, além de seguir um
trâmite esperado, respondia a uma demanda explicitada
pelos próprios ministros. Isso explica o fato de que, diante
do projeto pensado para a Escola Militar da Corte, a
comissão tenha sido nomeada para uma tarefa mais
abrangente, que incluía a Escola do Rio Grande do Sul.
Mais uma vez, Severiano, agora no lugar de
presidente dessa comissão, solicitou que Benjamin
redigisse o documento final que relatava os trabalhos ali
desenvolvidos, embora o mesmo fosse escrito na
primeira pessoa e assinado pelo Presidente da Comissão.
A informação de que coube a Benjamin essa redação é
apresentada por Renato Lemos. 12 De fato, na
documentação preservada no arquivo pessoal de
Benjamin Constant, encontram-se várias cartas a ele
endereçadas pelo general Severiano, durante o período de
funcionamento da comissão. Nelas, percebe-se a
cumplicidade dos dois na direção dos trabalhos, em que
documentos são repassados e, apesar da objetividade da
Vê-se que Benjamin seguiu à risca a instrução do
general, já que, entre os professores coadjuvantes aos
quais se referia, incluía-se ele mesmo. Talvez por
escrever um texto que viria assinado por outrem isso
tenha sido mais fácil. Porém, o que é mais importante
nesse parágrafo é a maneira como a construção do
primeiro período procura mascarar a divergência de
13
BC/Doc. Par. Esc. Mil. 888.10.23
Transcrito por MENDES, Raimundo Teixeira. Benjamin
Constant. Esboço de uma apreciação sintética da vida e obra do
Fundador da República Brasileira. Rio de Janeiro, Apostolado
Positivista do Brasil, 1891-1894, v. 2, p. 198.
14
11
Relatório do Ministro do Império dos Negócios da Guerra
apresentado à Assembléia Geral. Ano de 1885, p. 11.
12
LEMOS, Op. Cit., p. 323.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (16-22) - 21
posições que se havia manifestado entre os componentes
da comissão, e que refletia a oposição entre interesses do
governo – que devia contar com o apoio de oficiais – e da
oficialidade intelectualizada, em particular aquela
envolvida com o ensino militar.
Na comissão, esse confronto ficou caracterizado
pelo voto em separado de José Simeão de Oliveira, que
havia proposto alguns dispositivos que atingiriam
diretamente os professores militares. Na sua proposição,
extinguir-se-ia a vitaliciedade das três categorias existentes
– lentes, repetidores e professores – com o estabelecimento
de períodos de exercício que durariam de três a cinco anos,
sendo nomeados pelo comandante da escola após
aprovação em concurso, mas podendo ser por ele demitidos
a qualquer momento, em determinados casos. Tratava-se,
como se pode ver, de um estratagema para retirar a
autonomia dos professores militares, até então amparados
pelo instituto do cargo vitalício, acentuando o poder dos
comandantes das escolas, de quem, em última instância,
dependeria a permanência em serviço.
O parecer redigido por Benjamin teve de
apresentar a proposta de Simeão, depois de ter exposto
toda a fundamentação científica do formato geral que
defendia. Tratava, entretanto, de deixar claro que as
razões em que se baseou o distinto Sr. Brigadeiro (...) são
de todo inaceitáveis. Passava, então, a demonstrar como a
adoção daquele modelo, baseado nas escolas militares da
Prússia, seria incompatível com a organização das
escolas brasileiras. A seu ver, as escolas militares
prussianas eram de caráter essencialmente prático,
porque contavam com o ensino literário e científico em
escolas não militares, o que não ocorria no Brasil, onde a
mesma escola militar acumulava a função de ministrar a
instrução geral.
O verdadeiro substrato do debate em torno da
vitaliciedade dizia respeito à disciplina. O texto do
parecer é explícito mais adiante:
Teme-se ainda que a vitaliciedade origine
abusos e desmandos por parte do corpo
docente, em detrimento da disciplina e da
autoridade do comandante da escola.
Este temor é completamente infundado. Não
há um só fato que o justifique. (...)
O que se deve temer e com fundadas razões, é
que as corporações docentes sem as garantias
de vitaliciedade fiquem a mercê dos abusos e
dos desmandos dos comandantes das escolas e
de outras autoridades, sofrendo grandemente
com isso não só a sua dignidade, e o livre
exercício de suas árduas e melindrosas
funções, mas também a causa da instrução,
principalmente num país em que o patronato é
exigente e por demais ousado.
Por esse exemplo, é possível depreender que esse
documento guarda uma grande distância em relação ao
que havia sido apresentado à Congregação da Escola
Militar no ano anterior, não pelo conteúdo do projeto que
defendia, mas pela função que deveria cumprir no debate,
frente aos constrangimentos de suas condições de
produção e às necessidades de preparar a recepção dos
indivíduos a quem se destinava. O tom do documento é
menos teórico e mais político, chegando a tangenciar a
crítica aos próprios dirigentes do exército e do país.
Os argumentos mobilizados no parecer, em
relação à organização dos estudos aprovada pela
Congregação, e que se procurava reafirmar naquela
instância superior, apresentavam-se menos travestidos do
linguajar comtiano. A lógica da organização curricular é
demonstrada exclusivamente pela articulação entre as
disciplinas dos Cursos Preparatório e Geral e as dos
Cursos Especiais, de forma a explicitar a necessidade do
estudo dos conhecimentos científicos fundamentais.
Uma passagem sintetiza o esforço de convencimento de
que o parecer está imbuído:
Desde a sua entrada para a escola até terminar
seu curso, a atenção do aluno é constante e
sistematicamente citada para assuntos
inerentes à profissão militar e para os múltiplos
e[...] deveres de cidadão e soldado.
A ênfase no vocabulário militar, na instrução
técnica e na indispensável referência à literatura e aos
exércitos europeus compõem, ainda, o arsenal estilístico
instrumentalizado no texto. Nesse último caso, as
citações em francês, de títulos e trechos de obras
militares, adequava-se às práticas discursivas do meio
militar daquele momento. Por outro lado, cabe notar o
cuidado em preservar a autonomia em relação aos
modelos externos, com a análise crítica da instrução do
exército prussiano, considerado o mais bem preparado de
todos, após a vitória sobre o exército francês em 1870.
Com sua referência crítica, Benjamin, ao mesmo tempo,
demonstrava sua ilustração de oficial estudioso –
expressão característica da Revista do Exército Brasileiro
– e demolia antecipadamente argumentos que imaginava
poderem ser levantados por seus opositores.
Enfim, a comissão era uma frente de batalha, em
que a objetividade, o conhecimento militar e o argumento
técnico seriam as melhores armas de defesa de um
projeto. Projeto que havia elaborado, mas que sabia
representar as aspirações de boa parte da oficialidade que
lhe era próxima, fato expresso na aprovação unânime da
Congregação da Escola Militar. Sua responsabilidade e
compromisso apareciam traduzidos, ainda, na confiança
depositada pelo general Severiano da Fonseca que, nas
duas ocasiões o convocou.
Os desdobramentos dessa movimentação,
entretanto, não seriam os mais felizes. Pelo que se pode
observar do Regulamento finalmente aprovado em 1889,
as vitórias obtidas na Congregação e na comissão
ministerial não foram suficientes para garantir uma
reforma do ensino militar sintonizada com os princípios
defendidos pela intelectualidade do exército. No diário de
Benjamin Constant, anotações de fevereiro de 1889
mostram-no ainda às voltas com esse embate,
escrevendo: Estive todo o dia lendo e escrevendo para
preparar o plano de reforma que devia apresentar ao
Ministro da Guerra em substituição ao dele que é mau.15
15
Transcrito por TEIXEIRA MENDES, Op. Cit., v. 2, p. 199.
22 - Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército
Parece, porém, que o investimento foi inútil. Severiano
morreria logo após a promulgação do novo Regulamento.
Considerações finais
Este trabalho concentrou-se em abordar a
participação de Benjamin Constant na construção da
proposta de reforma dos estudos militares na segunda
metade da década de 1880, por meio da análise de dois
documentos que redigiu. A análise que empreendemos
procurou demonstrar como as idéias que defendia,
integravam um conjunto de demandas que ultrapassavam
sua percepção individual, sendo partilhadas por aquela
intelectualidade militar. Por outro lado, na escrita dos
documentos, é possível perceber sua capacidade de
operar com ferramentas intelectuais que permitem
moldar o discurso aos diferentes momentos e públicos,
lidando com os constrangimentos postos na busca de
adesão e consentimento.
A palavra torna-se arma na luta por um projeto
coletivo que aposta na formação intelectual sólida como
pré-requisito de uma atitude cidadã. O soldado seria mais
cidadão quanto mais científica fosse a escola de sua
preparação. A instrução integral, fundada num
conhecimento enciclopédico, era a bandeira desfraldada
por aquela oficialidade, que contava com a competência
de Benjamin Constant para defendê-la, ao traduzir sua
bagagem positivista associada à sua experiência
pedagógica na elaboração de um projeto.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (23-28) - 23
O“
”:
Favela e Militares de baixa patente na Primeira República
Romulo Costa Mattos1
A
rticuladores vitoriosos e orgulhosos do golpe
que pôs fim à monarquia no Brasil, os militares de alta
patente, na virada do século XIX para o XX, sentiam os
efeitos da perda do controle político para os setores
cafeeiros de São Paulo. Mas, enquanto marechais,
generais e almirantes se preocupavam com a diminuição
de seu poder e prestígio no plano da política institucional
brasileira, militares de baixa patente viviam no Rio de
Janeiro outro tipo de problema, de ordem social: os
efeitos da crise habitacional que assolou a cidade. Nesse
contexto, muitos membros das Forças Armadas,
proletarizados, subiram os morros e construíram
“barracos” e “casebres” para abrigar a si e aos seus
familiares. Além de apresentar indícios de que os
militares de baixa patente estavam entre os primeiros
habitantes das favelas cariocas, este artigo mostra como
os mesmos acabaram sendo alvo de uma campanha
sistemática da grande imprensa, no sentido estigmatizar
os padrões comportamentais dos moradores desse tipo de
assentamento habitacional. Dessa prática, identificamos
uma questão curiosa nas páginas dos diários cariocas da
Primeira República: seriam os militares que moravam em
favelas defensores da pátria ou membros das “classes
perigosas”?2
I
O primeiro aspecto a ser abordado nesse texto diz
respeito ao fato de que os militares de baixa patente estão
relacionados com o surgimento das favelas cariocas.
Entre 1893 e 1894, por exemplo, soldados que
combateram a Revolta da Armada se instalaram no morro
de Santo Antônio, no centro da cidade, sendo
comprovadamente os seus primeiros moradores.
Documentos oficiais mostram que, em 1897, já havia
nesse morro 41 “barracões” construídos por praças do 7º
Batalhão de Infantaria de Linha do Exército, com
autorização do Coronel Moreira César.3 Quanto ao
1
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
e professor da Universidade Severino Sombra (USS).
2
Nas últimas décadas do século XIX, era possível distinguir uma
lógica dominante nos debates parlamentares brasileiros: “os
pobres carregavam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os
malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da
cadeia, temos a noção de que os pobres são, por definição,
perigosos”. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e
epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. p. 22.
3
ABREU, Mauricio de Almeida; VAZ, Lilian Fessler. Sobre as
origens da favela. IV Encontro Nacional da ANPUR, Salvador,
1991. p. 489.
povoamento do morro da Providência, localizado na
região portuária, é provável que tenha sido iniciado por
ex-moradores do cortiço Cabeça de Porco, demolido por
ordem do prefeito Barata Ribeiro, em 1893.4 No entanto,
a ocupação dessa colina só veio a ganhar características
de adensamento e aglomeração em 1897, com a chegada
de soldados que defenderam a República na Guerra de
Canudos. Apesar da inexistência de documentos que
comprovem esse episódio, geralmente considerado o
mito de origem das favelas no Rio de Janeiro, há toda uma
tradição oral que vai ao encontro de tal realidade.
O morro da Providência merece mais atenção,
uma vez que nele a herança deixada pelos integrantes das
Forças Armadas foi ainda mais forte. O próprio termo
favela – tal como o entendemos nos dias de hoje – está
relacionado com a chegada das tropas republicanas a essa
colina. É necessário explicar que, no município de Monte
Santo, na Bahia, as tropas oficiais se alojaram em torno
do morro da Favela, que tinha esse nome, justamente, por
ser coberto por uma planta conhecida como favela. A
questão é que a estada dos soldados da União ali
acumulou baixas e desmoralizou a expedição.5 Como
uma parte dos combatentes retornados ao Rio de Janeiro
se alojou no morro da Providência, com o passar do
tempo, ele também passou a ser chamado pela população
da cidade de morro da Favela. Se essa mudança de nome
pode ser observada na grande imprensa por volta de 1902,
a forma substantivada e com f minúsculo da palavra
favela apareceria somente em meados década de 1920.6
Folheando os jornais da Primeira República, é
possível encontrar alusões à presença dos veteranos de
Canudos no morro da Favela, o que geralmente se dava de
forma pejorativa. Em 1909,7 o Correio da Manhã
escreveu sobre o ex-praça do exército Julio de Souza
Arruda, de 27 anos, “que diz ser um dos heróis de
4
VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. Revista do
Rio de Janeiro, Niterói, vol. 1, n. 2, 1986. p. 35.
5
CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. p.
362.
6
ABREU, Mauricio de Almeida. Reconstruindo uma história
esquecida: origem e expansão das favelas no Rio de Janeiro.
Espaço & Debates, São Paulo, v.14, n. 37, 1994. p. 40.
7
Contextualizando, esse ano correspondeu ao auge da
estigmatização imposta pelos jornalistas aos moradores das
favelas. Nele observamos a alta dos aluguéis combinada com o
aumento do custo dos gêneros alimentícios e a eclosão de uma
revolta popular motivada pela alteração no trajeto dos bondes da
Light. Desde 1908, as greves haviam retomado um ritmo
ascendente, tendo culminado em 1912 e 1913 com a campanha
24 - O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República
Canudos”.8 O texto ironizava esse “homenzinho [que]
tem um gênio levado de todos os diabos”. Segundo o
periódico, o fato de Julio não ter conseguido iniciar uma
briga com “um rixento como ele [...] revoltou-lhe o
sangue escaldante e pior ficou ingerindo copos de
paraty”.9 Note-se aqui a associação da suposta
agressividade do ex-militar e morador do morro com o
álcool – lembrando que a campanha contra o consumo
dessa substância foi uma constante na Primeira
República, tendo envolvido preocupações médicas e
policiais.10 Seja como for, “bêbedo e a chorar de raiva por
não encontrar o outro, Julio que se achava no morro da
Favela, vingou-se em seu próprio corpo golpeando com
diversos talhos o braço direito”.11
Percebamos no trecho acima que o repórter
incluiu o nome do morro da Favela na narrativa para dar
relevância à reportagem e prender a atenção dos leitores,
acostumados que estavam com as notícias de desordem
envolvendo a localidade. No encerramento do texto,
lemos que, “Tinto de sangue”, Julio foi preso e depois
conduzido para o Posto Central da Assistência, onde o
médico Augusto Costallat “teve ocasião de apreciar
quanto valia a língua desbragada do pavoroso caboclo”.
Portanto, a referência racial não foi esquecida, tendo
aparecido na última linha da matéria.12
Um detalhe nessa reportagem é que não podemos
acreditar na afirmação de que o ex-praça feriu o próprio
braço por não ter encontrado uma pessoa com quem
pudesse brigar. Provavelmente, Julio ocultou o nome de
seu agressor, por ter preferido a “privatização” do
conflito. Devido à descrença de que as autoridades
policiais e judiciais pudessem arbitrar seus conflitos, os
trabalhadores recorriam à “resolução de acordo com as
regras de comportamento próprias do grupo
sociocultural em questão”.13
Voltemos então à década de 1890, que foi
marcada por distúrbios políticos, interdições e
demolições de cortiços e crise habitacional. Nela os
militares de baixa patente iniciaram ou adensaram a
ocupação das primeiras favelas surgidas no Rio de
Janeiro, sendo elas o morro de Santo Antonio e o morro da
contra a carestia, a reorganização e o congresso operários e a luta
contra o desemprego. MATTOS, Romulo Costa. A “aldeia do
mal”. O Morro da Favela e a construção social das favelas
durante a Primeira República. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. pp. 72-87.
8
Correio da Manhã. “Um herói de Canudos – Feriu-se cheio de
raiva”. 26 de janeiro de 1909.
9
Idem.
10
MENEZES, Ary Fialho de. Aspectos Médicos e legais da luta
anti-alcoólica no Rio de Janeiro, entre 1915-1940. A construção
de demandas e de objetos de saber. Monografia (Especialização
em Assistência a Dependentes de Álcool e outras Drogas) –
Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2005.
11
Correio da Manhã. op. cit.
12
Idem.
13
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas:
Edunicamp, 2001. p. 304.
Providência, mais tarde chamado de morro da Favela. É
possível encontrar na grande imprensa indícios ou
mesmo provas de que os soldados rasos criaram ou
integraram a primeira leva de moradores de favelas que se
encontravam distantes do perímetro central da cidade.
Em 190714, o Correio da Manhã enviou uma
equipe para conhecer o morro da Babilônia, localizado no
bairro do Leme. O autor da matéria conversou com o
morador João Carlos de Andrade, ex-praça do batalhão de
engenheiros, que servia como ordenança do coronel
Muniz Freire. “Tendo baixa e não podendo com a carestia
de vida na cidade recolheu-se com a sua companheira”.15
O homem vendia bengalas de pequiá, produzidas pelo
próprio, enquanto a sua companheira vendia em
Copacabana aipim, batatas e frutas extraídas da horta
do casal.
O repórter travou contato também com o
pernambucano Antonio José Bernardo, outro ex-praça do
batalhão de engenheiros, que era “um dos mais antigos
moradores da montanha” (grifo nosso). Veterano, tendo
participado das campanhas do Uruguai e do Paraguai,
sofria de reumatismo: “Que quer, meu senhor? aquela
vida danada, às vezes toda uma noite nos banhados com
água até a cima, à espera do inimigo...”. O interessante é
que sua companheira, “uma cabocla rio-grandense”16,
deixara o sul com um marinheiro, que morreu no Rio de
Janeiro.
Essa mulher não era a única no morro que perdera
um companheiro militar na capital federal. O já citado
João Andrade, ao ser perguntado sobre os seus vizinhos,
respondeu: “Aqui perto mora uma muié, viúva d'um
sordado; vive com o fio trabaiando na roça. Boa gente”.17
Note-se que o redator teve a intenção de aproximar o
vocabulário dos habitantes da colina aos dos sertanejos.
Era difundido o pensamento de que as favelas seriam, no
melhor jargão euclidiano, sertões em plena capital
federal.18 O mais intrigante foi a suposta relação
estabelecida por aquele homem entre a forma de
ocupação do morro da Babilônia e o cotidiano dos
14
Nessa conjuntura, os jornalistas já trabalhavam com a ideia de
que as reformas urbanas haviam provocado a expansão das favelas
na cidade. As matérias sobre esse tipo de assentamento
habitacional assumiram um tom mais agressivo, ao mesmo tempo
que ele passava a ser a principal representação de moradia popular
– condição que antes pertencia aos cortiços. O Estado também
começou a se preocupar mais com a ocupação dos morros pelos
trabalhadores: os habitantes do morro da Favela, por exemplo,
foram intimados pelo diretor geral de Saúde Pública Oswaldo Cruz
a abandonarem suas casas, que seriam demolidas. A resistência dos
primeiros, além de ter impedido a concretização de tal medida,
colocou o tema das favelas no primeiro plano dos noticiários – o
que explica a publicação da matéria que analisaremos a seguir.
MATTOS, Romulo Costa. op. cit. pp. 58-72.
15
Correio da Manhã. “No morro da Babilônia”. 02 de julho de 1907.
Data citada em: ABREU, Mauricio de Almeida. op. cit. p. 38.
16
Idem.
17
Idem.
18
Licia Valadares afirmou que o “mito de Canudos” esteve presente em
várias descrições realizadas sobre as favelas na Primeira República.
VALLADARES, Maria Licia do Prado. A gênese da favela carioca. A
produção anterior às ciências sociais. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, v. 15, n. 44, out., 2000. pp. 09-12.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (23-28) - 25
militares: “aqui p´ra cima, como isto já teve baterias, é
assim como um veterano, é militá reformado. A gente
chega, escoie um canto, finca os esteio, barreia e fica
morando”.19
Embora, é claro, não possamos garantir a
fidelidade da reprodução dos depoimentos dos
moradores pelo jornalista, o Correio da Manhã se
preocupou em comprovar a veracidade das personagens e
paisagens abordadas na reportagem com a farta
publicação de fotos. Mesmo se aceitarmos a hipótese de
que tais depoimentos foram deliberadamente inventados
pelos repórteres20, ainda assim seria significativa a
insistência do periódico no tema dos militares
reformados no morro...
Passemos da zona sul para a zona norte do Rio de
Janeiro, e da década de 1900 para a de 1910, quando
surgiram diversas favelas no tecido urbano da cidade, que
apresentavam em comum a localização nas encostas dos
morros e a proximidade de importantes fontes de
emprego. Em 1916, o Correio da Manhã denunciou o
surgimento de uma favela em plena Vila Militar. Segundo
o jornal, a inação das autoridades civis e do Exército
estava fazendo das aldeias regimentais “pontos
perigosos para a ordem e também em foco de moléstias
pela falta de higiene e imundície que ali se nota”.21 Nessa
passagem, vemos a união da retórica da segurança com a
da saúde pública, sendo que os pobres podiam ser
perigosos também pelo risco que ofereceriam à higiene
da cidade. Por essa razão, o jornal pedia “ao digno
coronel Monteiro de Barros que lance suas vistas para os
lados da Olaria, onde se estão formando uma verdadeira
Favela, constituída por praças dos regimentos de
infantaria e artilharia”.22 Percebamos que a palavra
Favela foi escrita com f maiúsculo, como referência ao
morro da Favela, considerado pela grande imprensa o
principal território das “classes perigosas” na capital;
utilizá-lo como exemplo podia garantir o entendimento
correto do conteúdo do texto pelo público consumidor de
notícias, de acordo com as intenções do autor.
Cabe enfatizar que essa reportagem antecipa uma
problemática que iremos explorar mais detalhadamente
no próximo tópico deste artigo: muitas vezes, longe de
serem abordados pela grande imprensa como defensores
da pátria, os militares que moravam em favelas eram
tratados como integrantes das “classes perigosas”. O
periódico salientava “o estado de anarquia e imoralidade
que dominam na aldeia do 2o regimento de infantaria,
para onde tem ultimamente afluído toda a escória que
tem sido corrida do 10o regimento de infantaria”. E
encerrava a matéria com o pensamento de que o morro do
Capão seria “coito de tudo que é ruim e pernicioso”, uma
vez nele ocorreriam “atos criminosos e imorais [de]
desertores [e] analfabetos”.23
19
Correio da Manhã. “No morro da Babilônia”...
Podemos ler em um romance de Lima Barreto a afirmação de que,
nessa época, o jornalista “possuía uma imaginação doentia”.
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1976. p. 127.
20
21
Correio da Manhã. “A Vila Militar e a sua Favela”. 07 de janeiro de 1916.
22
Idem.
Idem.
23
Os ataques contra os moradores da Vila Militar,
citados no parágrafo anterior, devem ser analisados mais
detalhadamente. Em primeiro lugar, vemos a menção a
um “estado de anarquia”; ou seja, os militares eram
associados a uma vertente política que era vista pelas
classes dominantes como a principal promotora da
desordem no país, uma flor exótica em meio à suposta
índole pacífica do trabalhador brasileiro. Não obstante, o
criminologista italiano Cesare Lombroso afirmou em
seus estudos que os anarquistas seriam criminosos natos,
em virtude de um desvio de histeria dos mesmos.24 Em
segundo, observamos a referência à “imoralidade” de tais
soldados, uma acusação relevante em um contexto de
tentativa de imposição dos padrões e valores burgueses à
população. Em terceiro, assistimos à denúncia de que
haveria “desertores” no morro do Capão, o que era
recorrente em relação às favelas. De fato, era grande o
número de deserções na cidade, o que se relacionava com
a aversão popular ao serviço militar, explicada, entre
outros motivos, pela continuidade da aplicação dos
castigos físicos aos soldados.25 Por fim, notamos a alusão
aos “analfabetos”, os quais também poderiam constituir
perigo para as elites, conforme Olavo Bilac escreveu por
ocasião da Revolta da Vacina: “Quem não sabe ler [...]
não é homem, é um instrumento passivo e triste, que todos
os espertos podem manejar sem receio”.26
II
Presente na reportagem acima analisada, a
estigmatização dos militares que moravam em favelas era
uma prática comum nos jornais da Primeira República,
conforme veremos neste tópico. Antes de aprofundarmos
essa reflexão, é importante perceber que era disseminada
a ideia segundo a qual os soldados rasos compunham uma
parcela significativa da população das favelas. Ao refletir
sobre a pobreza no Rio de Janeiro do início da década de
192027, Lima Barreto referiu-se aos “soldados e
lavadeiras da Favela”.28 Portanto, mesmo descrevendo
em poucas palavras os habitantes desse morro, o cronista
não deixou de mencionar os militares de baixa patente.
24
SAMIS, Alexandre. Clevelândia. Anarquismo, Sindicalismo e
Repressão Política no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro:
Imaginário/Achiamé, 2002. Ver capítulo 2, “Operários, repressão
e polícia nos anos 20”.
25
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina
na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad:
FAPERJ, 2008. pp. 87-88.
26
Apud: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas
da Saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira
República. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. p.
110.
27
Nesse decênio, o processo de favelização na cidade se tornou
“multidirecional e incontrolável”. ABREU, Mauricio de Almeida.
op. cit. p. 38. Esse fenômeno foi incrementado pela compra de
lotes pelo trabalhador suburbano para a realização da chamada
autoconstrução. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiros. Dos cortiços
aos condomínios fechados. As formas da produção da moradia na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira:
IPPUR, UFRJ: Fase, 1997. pp. 197, 198.
28
BARRETO, Lima. “O Prefeito e o povo”. In: BARRETO, Lima.
Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 117. (Careta, 15 de
janeiro de 1921).
26 - O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República
Outro intelectual militante da classe trabalhadora
abordou os soldados que residiam em favelas, sem a
intenção de estigmatizá-los. A respeito do morro de Santo
Antonio, Evaristo de Moraes afirmou, em 1909: “Assim
se confundem na mesma desmoralizadora penúria, os
representantes da nossa força armada, com certos
miseráveis que vão esconder naquelas choupanas a
hediondez de suas vidas”.29 Note-se que o objetivo do
chamado advogado dos operários era denunciar a
situação, no seu entender degradante, dos integrantes das
Forças Armadas em tal colina. Por essa razão, ressaltou
que os mesmos viveriam “esquecidos de todos os
preceitos da Higiene, vitimados por toda sorte de
degradações físicas e morais”.30
A questão é que, conforme afirmamos, os pobres
eram considerados perigosos não apenas pelo risco que
ofereceriam à ordem, mas também à higiene pública,
considerando-se as históricas epidemias que assolavam a
cidade do Rio de Janeiro, principalmente no verão. Ou
seja, mesmo escrevendo com a finalidade de defender os
militares que moravam no morro de Santo Antonio, ao
reproduzir os postulados higienistas, Evaristo de Moraes
reforçava o pensamento de que tais pessoas pertenceriam
às “classes perigosas”. Convém então não perder de vista
os discursos pejorativos sobre os membros das Forças
Armadas que habitavam as favelas.
A seguir, analisaremos três reportagens sobre o
morro da Favela – publicadas na primeira década do
século XX pelo Correio da Manhã –, para vermos em
detalhes como os militares de baixa patente podiam ser
considerados nocivos à capital da República. Em abril de
190531, a matéria intitulada “Tentativa de assassinato”
anunciava com dramaticidade: “Um amante desprezado,
vendo-se ferido do seu amor próprio não trepidou em,
com uma arma assassina, tentar por termo aos duros
sofrimentos que lhe invadiam a alma apaixonada,
despertando contra si, ao mesmo tempo, o mais profundo
rancor”.32 É nítida, portanto, a forma romanceada com o
que o jornalista iniciou sua reportagem.
Segundo o Correio da Manhã, com o tempo vieram as
brigas e, vez ou outra, o nordestino ofendia sua
companheira com toda a sorte de impropérios e tentava
espancá-la. A narrativa do ataque de José Francisco a sua
“amásia” seguia os romances naturalistas, uma vez que o
homem se deixava guiar pelos instintos biológicos:
“Com um olhar brilhante, fulo de raiva, Francisco tentou
fazê-la calar e sacando da tesoura, de que se achava
armado, cravou-a no ombro direito da infeliz,
penetrando a arma cerca de quatro polegadas”. O
periodista contava o desenrolar da história como se
estivesse presente no momento da contenda: “Um grito
de dor irrompeu dos lábios da pobre vítima que, numa
luta horrível, tentava arrancar a arma das mãos do
estúpido assassino!”.33
Vale observar que, mesmo não tendo matado sua
companheira, José Francisco foi taxado de “estúpido
assassino”. Mais adiante, o autor da matéria enfatizou o
derramamento de sangue, o elemento por excelência da
narrativa sensacional: “A infeliz caiu por terra, banhada
num lago de sangue”. A emoção não parou por aí, tendo o
repórter guardado mais uma novidade para o leitor. Eis
que apareceu em socorro à vitima a vizinha Maria
Antonieta: “Atracaram-se ambos numa titânica luta,
Francisco, com uma agilidade indescritível, vibrou-lhe
um profundo golpe nas costas, fugindo em seguida”.34
Vemos na sugestão de uma “agilidade incrível” mais uma
influência dos romances naturalistas, posto que o
agressor parecia ter os reflexos de uma fera,
provavelmente, de um felino.
Mesmo ferida, Maria Antonia correu para a rua,
gritando por socorro. Alguns vizinhos, que já haviam
corrido para o local, prestaram os devidos socorros às
duas vítimas, enquanto outros corriam ao encalço do
“criminoso”. A narrativa se encerrava com a captura de
José Francisco, realizada por outro militar que morava no
morro:
A descer a ladeira, numa carreira vertiginosa,
com as vestes tintas de sangue e rotas, foi ele
surpreendido pela praça do 10º batalhão de
infantaria José Joaquim da Costa e os srs. João
Jorge Vidal, Julio de Andrade Bastos e
Francisco Pereira de Lima que, agarrando-o,
conseguiram prendê-lo.
O agressor José Francisco era natural da Paraíba
do Norte, onde verificara praça no 23º Batalhão de
Infantaria. No Rio de Janeiro, “amasiou-se com uma
linda rapariga” chamada Luiza Baptistina da Silva, com
quem foi residir no Beco dos Melões, no morro da Favela.
29
Correio da Manhã. “A habitação”. 02 de junho de 1909.
Idem.
31
Nesse ano, os impactos sociais das reformas urbanas começaram
a ser percebidos mais nitidamente por diversos setores da
sociedade. Houve, sobretudo, um forte clamor popular
relacionado com o agravamento da crise de moradias. Os reflexos
da insatisfação dos trabalhadores – que, durante o governo de
Rodrigues Alves, passaram a ter nas greves uma nova estratégia de
luta – podem ser vistos na campanha pela construção de casas
“higiênicas” promovida pela grande imprensa e na movimentação
do Estado em torno do tema da habitação. MATTOS, Romulo
Costa. Pelos Pobres! As campanhas pela construção de
habitações populares e o discurso sobre as favelas na Primeira
República. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2008. pp. 45-53.
32
Correio da Manhã. “Tentativa de assassinato”. 23 de abril de 1905.
30
O redator lançou mão de uma descrição do
“criminoso”, em que ressaltava a sua ligação com as
Forças Armadas:
Tipo perfeito de nortista, rosto quadrado,
cabeça grande e um tanto achatada, cabelos
encaracolados, olhos vivos, tem Francisco uma
entonação particular na fala, deixando a cada
momento escapar frases que [definem]
perfeitamente a mais antiga posição de
soldado.35
33
Idem.
Idem.
35
Idem.
34
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (23-28) - 27
No trecho acima, podemos perceber também
resquícios da frenologia de Lombroso.36 Baptistina foi
atendida em uma farmácia e depois encaminhada para sua
casa, enquanto Maria Antonieta apresentou ferimento sem
gravidade. Já Francisco foi remetido para a Detenção.
Note-se que o estardalhaço feito pelo Correio da Manhã
com a ocorrência policial, “uma cena de sangue
emocionante”37, não correspondia à gravidade do conflito.
Vemos, inclusive, que Baptistina foi socorrida em uma
farmácia, não tendo sido necessário levá-la à Santa Casa;
portanto, os seus ferimentos também foram leves.
depoimento. Após ser autuado em flagrante, Alfredo foi
novamente removido para o seu Batalhão.40 Cabe o
esclarecimento de que oficiais das Forças Armadas
intervinham frequentemente e perturbavam a rotina da
atividade policial. A prisão de um desordeiro podia ser
tumultuada pela aparição repentina de um militar a
interceder pelo suposto criminoso, disposto a fazer valer
a autoridade de seu cargo. Um problema comum na ação
policial ocorria quando um preso ou envolvido, vestido à
paisana, declarava ser oficial do exército, sem disso
apresentar prova.41
Fica evidente o objetivo da grande imprensa de
dar ênfase aos conflitos ocorridos nas favelas no contexto
das reformas urbanas, movimento em que os militares de
baixa patente foram incluídos, de forma negativa.
Embora criticasse fervorosamente as obras de renovação
espacial empreendidas por Pereira Passos e Rodrigues
Alves, o Correio da Manhã não poupou os trabalhadores
do estigma das “classes perigosas”. Outra briga conjugal
ocorrida no morro da Favela teve como protagonistas
Amélia de Brito e Alfredo Ramos da Silva, ex-praça do
16º Batalhão de Infantaria na Bahia e, na época da
reportagem, praça do 10º Batalhão de Infantaria da
capital da República. O sonho do casal de se mudar para o
Rio de Janeiro foi concretizado quando o pedido de
transferência de Alfredo foi aceito pelo Exército. De
acordo com o Correio da Manhã, os dois viviam na Bahia
“em completa paz, já pelo procedimento bom da moça, já
pelo carinho que ela dispensava a seu companheiro”.38
Essa reportagem do Correio da Manhã levantou
um aspecto que não pode passar despercebido: a ideia de
que Alfredo Ramos da Silva seria uma “perversa praça”.42
Vemos nessa frase que a grande imprensa deflagrara o
processo de estigmatização dos militares que residiam
em favelas. O problema aqui é que os portadores do
estigma não são considerados completamente humanos,
motivo pelo qual se constrói uma ideologia para explicar
sua inferioridade e dar conta do perigo representado.
Racionaliza-se, assim, uma animosidade baseada em
outras diferenças, tais como as de classe social.43
Em apenas 15 dias de Rio de Janeiro, o casal
brigou seriamente, por um motivo claro: “Chegados eles
a esta capital, foram residir no morro da Favela [...]
lugar viciado [...] quase não se respeita quem lá reside”.
Nessa localidade estigmatizada pelo jornal, Alfredo teria
passado a desconfiar do comportamento de sua
companheira: “Depois de aí estabelecidos, começou
Alfredo a cismar que sua companheira não estava
procedendo como dantes”. A agressividade do homem
contrastava com a serenidade da vítima: “Esta, como
tivesse a consciência tranqüila, respondeu às suas
interrogativas, ao que Alfredo, mais indignado ainda,
armou-se de uma enxada e, sem dó nem piedade,
começou a esbordoá-la”.39
Os gritos da moça atraíram diversas pessoas,
entre as quais David Ribeiro, também praça, embora do
23º Batalhão de Infantaria. A disputa entre a polícia e o
Exército aparece sutilmente na narrativa do desfecho
desse caso. David Ribeiro levou o seu colega agressor
para o quartel. No entanto, o delegado da 9ª Delegacia
urbana requisitou ao Exército o comparecimento de
Alfredo Ramos da Silva, para que esse prestasse
36
O criminologista italiano achava que o tipo físico do criminoso
era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma objetiva.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993. pp. 49, 166.
37
Correio da Manhã. “Tentativa de assassinato”...
38
Correio da Manhã. “Amante feroz – Quase morta – No morro da
Favela”. 25 de junho de 1905.
39
Idem.
Em termos de discursos negativos contra os
moradores dos morros cariocas, o exemplo mais
contundente foi a matéria intitulada “Os dramas da
Favela”44, de 1909, ano que correspondeu ao auge dos
ataques da grande imprensa contra tais pessoas, conforme
dissemos. Na introdução da reportagem, o Correio da
Manhã publicou que o morro da Favela seria a “aldeia do
mal” e também o “endemoninhado vilarejo”, entre outras
ofensas. Nesse caso, além da sugestão de que a colina
seria um povoado primitivo situado à margem da capital
(“aldeia” e “vilarejo”) – no que podemos entrever a
manifestação de uma distância simbólica –, cabe apontar
que o demônio é o mal supremo na tradição cristã
(“endemoninhado”).
A associação do morro ao cotidiano dos militares
de baixa patente foi bastante pejorativa: “A Favela é o
grande mercado da prostituição barata, é o porto de
rendez-vous da soldadesca”.45 Vale dizer que a
prostituição era vista como um mal moral e sanitário; com
a modernização, o saber médico condenou essa prática
por ser um dos aspectos que expressariam o perfil caótico
e colonial da cidade.46 Nessa perspectiva, os membros das
Forças Armadas engrossariam a massa dos “habituées da
Favela”47, entendidos como aqueles que “decidem ali
40
Idem.
BRETAS, Marcos. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 58.
42
Correio da Manhã. “Amante feroz – Quase morta – No morro da
Favela”...
43
GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da
identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. pp.
14, 15.
44
Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”. 05 de julho de 1909.
45
Idem.
46
Ver: ENGEL, Magali Gouveia. Meretrizes e doutores. Saber
médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo:
Brasiliense, 1989.
47
Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”...
41
28 - O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República
todas as suas pendências, com um duelo à faca ou com
dúzia e meia de tiros de revólver”. Na condição de
moradores ou frequentadores do morro, os soldados rasos
dariam sua contribuição aos “dias de muito sangue, [às]
tardes de refrega, em que há tripas humanas expostas ao
sol ou à lua”.
O episódio que inspirou essas linhas agressivas
foi protagonizado pelo corneteiro do Exército Manoel
Nogueira da Silva, que matou a golpes de navalha o
soldado da polícia Isidro José dos Santos. Também
envolvido no conflito, Manoel Sant'Anna, cuja profissão
não foi informada pelo jornal, saiu ferido à bala. O
assassino foi encontrado por acaso pela polícia. De
passagem pela Rua dos Arcos, no bairro da Lapa, o militar
se vangloriou por ter dado uma navalhada “nas tripas de
um meganha que com ele se metera em um conflito na
Favela”.48 Através de uma rede de comunicações
aparentemente despretensiosa, a polícia tomou
conhecimento dessa autopropaganda e chegou até Silva.
Baleado, Sant'Anna preferiu a “privatização” do conflito:
afirmou que não sabia por quem havia sido atingido, pois
se tratava de uma bala perdida. Já os outros presos
disseram que não conheciam a pessoa que morrera.
Esse parece ter sido mais um conflito resultante da
rivalidade que opunha polícia e Exército no Distrito
Federal. A transitividade existente entre a população
marginal e o serviço militar garantia uma permanente
antipatia dos inferiores das Forças Armadas contra os
policiais.49 Além de uma caprichada introdução, a
reportagem “Os dramas da Favela” também tinha uma
espécie de conclusão, na qual “as tradições da aldeia da
morte”50 eram ressaltadas: “Eis como a Favela recolheu
mais uma página para a sua história vermelha – mandando
para outros mundos um desgraçado soldado [...] e pondo
em risco de ter igual fim um outro homem, que talvez já não
pertença ao número dos vivos”. Sendo o terror o espaço do
medo, o morro da Favela ganhava vida e se personificava.
Transformada em uma personagem criminosa, a localidade
virava protagonista de um folhetim policial: o jornalista
escreveu as palavras “história” e “página”.
III
No entender das classes dominantes, não haveria
lugar para as favelas em uma cidade-capital, que tinha por
função exercer o papel de foco da civilização, núcleo da
modernidade, teatro de poder e lugar de memória.51 Por
esse motivo, os diários cariocas promoveram campanhas
sistemáticas contra a permanência desse tipo de
assentamento habitacional no Rio de Janeiro, nas quais os
seus moradores foram tratados como membros das
“classes perigosas”. Nesse movimento, foram também
estigmatizados os homens das Forças Armadas que,
pauperizados, subiram os morros em busca de uma
moradia barata ou mesmo sem custo – lembrando que
48
Idem.
BRETAS, Marcos. op. cit. p. 55.
50
Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”...
51
SILVA, Marly Motta. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2004. p. 09.
49
a Primeira República foi o período em que a crise
habitacional assumiu grandes proporções no Distrito
Federal.
Segundo a grande imprensa, esse seria o
problema número um da época. É importante frisar que,
historicamente, havia uma percepção social negativa em
torno dos militares de baixa patente. No século XIX, o
recrutamento forçado levava para os quartéis aqueles que
apresentavam um ônus social, sendo assim merecedores
de punição. Nesse sentido, “para a maior parte dos
homens livres, fosse ela rica ou pobre, o serviço militar
não era lugar de pessoas 'honradas', cidadãs,
proprietárias e trabalhadoras”.52 Embora aquele sistema
de alistamento arbitrário tenha sido interrompido a partir
de 1874, nas primeiras décadas do século XX, ainda era
permitido o ingresso de homens levados pela polícia por
vadiagem, contravenção e pequenos crimes. O
interessante é que o novo método adotado, o sorteio
militar, era atravessado por critérios que favoreciam a
exclusão de indivíduos mais ricos.53 Portanto, as Forças
Armadas arregimentavam homens para complementar
suas tropas entre os filhos da classe trabalhadora.
Em resumo, os jornalistas apenas
potencializaram um antigo preconceito – contra os
militares de baixa patente –, ao conectá-lo a uma
novíssima e já poderosa intolerância na cidade – em
relação aos moradores das favelas. Dessa prática,
evidenciou-se nas páginas dos diários uma questão
intrigante: os homens que tinham como função defender
as instituições e a soberania do país eram tratados como
um risco à segurança e à higiene de sua capital, o Rio de
Janeiro. Na condição de “classes perigosas”, os soldados
que moravam em favelas eram então apresentados pelos
repórteres como um rosto “homogêneo, identitário, uno
54
e, portanto, imutável”. Eram também considerados o
“outro” indesejado, em um contexto marcado pela
condenação dos hábitos relacionados à sociedade
tradicional, pela negação da cultura popular, pela
expulsão dos trabalhadores do centro da cidade e pela
promoção ostensiva do cosmopolitismo.55 Eram, por fim,
enquadrados em um tipo de discurso que justificava a
negação da cidadania a uma parcela significativa dos
trabalhadores da época: “essa gente não tem deveres nem
direitos em face da lei”, dizia aquela reportagem
sugestivamente batizada de “Os dramas da Favela”. 56
52
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. op. cit. pp. 88.
Idem. p. 101.
54
COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes
perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia imprensa e
os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do
Autor; Niterói: Intertexto, 2001. p. 250.
55
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e
criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense,
1999. p. 30.
56
Correio da Manhã. “Os dramas da Favela”...
53
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 29
Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão
sobre o “dispositivo militar” de João Goulart
Fabiano Godinho Faria1
N
enhum presidente do Brasil teve seu mandato
tão marcado pela ameaça de golpe de Estado como João
Goulart. Não era segredo pra ninguém na época de
Goulart, que seu governo sofria oposição e corria o risco
de ser deposto por uma parte dos militares. A participação
destes na política era então muito mais intensa do que
hoje concebemos e estamos predispostos a aceitar. Desde
a revolução de 30 sempre estiveram de uma forma ou de
outra estiveram presentes ativamente no cenário
nacional. A eleição que sucedeu Vargas em 1945 foi
disputada entre dois oficiais, em todas as eleições
presidenciais desde então até 1960, sempre houve um
candidato da caserna entre os favoritos.
Além da disputa eleitoral, absolutamente
constitucional, homens de farda estiveram presentes em
praticamente todas as crises. Não por acaso, depois de
1945, só dois presidentes eleitos concluíram seu
mandato, um foi Juscelino Kubitschek, o outro Dutra,
(que era general). Um sujeito que em 1964 tivesse 40 anos
teria assistido intervenções militares desde o ano de seu
nascimento.
Em relação ao golpe de 64, existe uma ausência
de estudos no que se refere ao dispositivo de defesa, o
célebre “dispositivo militar” de João Goulart. Afinal, se
as intervenções castrenses eram tão recorrentes e esse
chefe de Estado em particular tinha razões tão sérias para
temê-las, é perfeitamente natural que procurasse delas se
defender antecipadamente. E apesar de existirem
evidências de que se movimentou nesse sentido, não
conseguiu evitar sua queda.
Goulart foi deposto sem resistências, ou quase. O
levante de uma tropa secundária se beneficiou de várias
adesões. E batalhões de primeira linha a serviço do
“dispositivo militar” não se moveram. Na vasta
bibliografia que analisa a queda de João Goulart, muito já
se falou sobre os movimentos conspirativos, mas quase
nada se falou sobre o “dispositivo militar” que não
funcionou. Existem repetidas referências ao “mistério da
não reação”. Mas a história propriamente dos vencidos
ainda não foi contada. O fracasso do tão propalado
esquema foi de tal modo retumbante que mesmo seu
principal articulador, o general Assis Brasil – chefe da
Casa Militar – chegou a negar posteriormente que o
mesmo existisse.2
1
Doutorando em história pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. [email protected]
2
Ver: SILVA, Hélio. Golpe ou contragolpe? Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1975, pág. 395.
O que proponho neste trabalho, é fazer uma breve
reflexão sobre a política militar de João Goulart.
Comparar brevemente medidas neste sentido com outros
exemplos. Analisar alguns fatos que possam indicar uma
direção inicial para posteriores pesquisas sobre esse tão
misterioso “dispositivo militar”. Não tenho a pretensão
de chegar a muitas respostas, mas ao menos de poder
começar a fazer as perguntas certas.
Os militares na política.
A participação dos militares na política não é um
“privilégio” das nações latino-americanas, mas não há
dúvida que neste subcontinente a participação dos
homens de farda nos assuntos de Estado tenha se
manifestado com força desde seu período colonial, e de
forma particularmente dramática durante as décadas de
60 e 70 do século XX.
Evidentemente toda esta tradição de
intervenções militares tem sua explicação na história.
Quem são nossos homens de farda? Serão, como amiúde
se apresentam, os defensores do Estado? Ou do status
quo? Se aceitarmos que são os guardiões dos Estados, o
que entendemos como “Estado”? Haverá algum traço
mais ou menos presente em todos os exércitos latinoamericanos que explique, ou ao menos indique este
comportamento histórico?
A discussão acerca do que são as Forças Armadas
e a que interesses elas servem suscita discussões às vezes
apaixonadas. Em termos elementares os militares fazem
parte da classe média, visto que suas atividades não estão
diretamente relacionadas nem à produção direta, nem à
posse dos meios de produção.3 Todavia isso não esclarece
o problema de sua origem e sua filiação de classe. Existe
um consenso na historiografia quanto à origem de classe
média da maior parte dos oficiais e da origem proletária
da massa das tropas. No caso brasileiro, seguindo o
trabalho de Stepan4, as regiões periféricas, do Sul e do
Nordeste fornecem a maior parte dos alunos nas escolas
3
Embora no período imediatamente anterior ao processo histórico
de 1964, vários oficiais tenham entrado para o mundo dos
negócios na qualidade de executivos de grandes empresas ou
mesmo como empresários, passando a fazer parte organicamente
da burguesia. É evidente que são casos isolados, mas nem por isso
irrelevantes. Ver:DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do
estado; ação política, poder e golpe de classe. Vozes, Petrópolis,
1981.
4
STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro,
Artenova, 1975. cap.1
30 - Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart
de preparação de oficiais. O estado de São Paulo, por
exemplo, fornece um contingente pequeno em relação
aos estados dessas regiões em função da existência de
maiores oportunidades para os filhos da classe média. Os
cadetes de Nordeste, em especial, provêm de famílias da
antiga aristocracia rural decadente. Possuem ainda a
referência de sua importância social, malgrado já tenha
perdido sua base material. Podemos usar esse exemplo
para debater rapidamente uma afirmação muito
recorrente de que os militares expressam em sua atuação
política os anseios da classe média da qual se originam e
fazem parte. Essa transposição direta de origem de classe
e ideologia, por vezes atribui às Forças Armadas um
perfil progressista. Tal é o caso de Nelson Werneck
Sodré5, que vê nas Forças Armadas uma tradição
progressista e democrática (afirmação que do nosso
ponto de vista contém alguns exageros). A visão de Sodré,
que foi um general de idéias progressistas, pode ser
interpretada como uma variante à esquerda da visão que
os próprios atores em questão sempre fizeram de si
mesmos: defensores da “pátria”, do “povo”, da
“nacionalidade”, etc. Em função de seu perfil político
pessoal, Sodré tende a interpretar esses termos, que em si
são eivados de subjetivismo, de um modo mais engajado
à esquerda.
Também importante sublinhar que enquanto
categoria de classe média, os homens da caserna também
têm suas especificidades. As instituições Forças Armadas
são instituições totais, e como tal6, são fechadas sobre si
mesmas. De um ponto de vista político, constituem em si
o elemento força do Estado, enquanto para si, constituem
uma complexa rede de interesses profissionais e
corporativos, que vão desde as promoções dos oficiais às
patentes mais elevadas até a participação ativa nos
assuntos de Estado. Essa interdependência dos militares
com a política, concomitante a existência de uma lógica
específica levou Stepan a tomá-los como um subsistema
do sistema político global.7 Para Edmundo Campos
Coelho, que trabalha a partir de uma perspectiva
sistêmica e recusando conceitos marxistas, como de
classe e luta de classes, um progressivo processo de
isolamento das Forças Armadas em relação à sociedade
civil, gerou níveis cada vez maiores de autonomia e
engendrou nestes, uma concepção de Estado e sociedade
segundo valores próprios, nascidos e desenvolvidos a
partir da convivência na caserna.8
Para Alain Rouquié9, que trabalha a partir de uma
perspectiva histórica da América Latina, as Forças
Armadas latino-americanas se constituíram desde a
formação desses Estados, nas instituições mais firmes,
5
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de
Janeiro, Civilização brasileira, 1965.
6
Para a compreensão do conceito de “instituição total”, consultar:
GOFFMAN, Erving. Manicômios, conventos e prisões. São
Paulo, Editora Perspectiva, 1974.
7
STEPAN, 1975, op cit. Cap.1.
8
COELHO, Edmundo Campos. Em busca da identidade: o
exército e a política na sociedade brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
9
ROUQUIÉ, Alain. O Estado militar na América Latina. São
Paulo, editora Alfa – Omega, 1974.
em face de sociedades civis gelatinosas, instituições civis
frágeis e um tipo de poder político que tem no elemento
força, muito mais peso que no consenso, sua justificativa
e reprodução. As Forças Armadas desde sempre
defendem um tipo de Estado historicamente espaço de
uma negociação entre elites locais e estrangeiras. Existe
na região, um abismo entre as constituições oficiais e
reais. A imitação das superestruturas jurídicas européias
(como os parlamentos, por exemplo) não absorve o
grosso da sociedade. As elites, ainda herdeiras de um
habitus10 colonial, buscam afirmar sua superioridade
“ontológica” sobre as populações mestiças com extrema
arrogância. Segundo Rouquié, é freqüente que nessas
sociedades “a manutenção dos privilégios, às vezes,
passa à frente da manutenção das taxas de lucro”.11 E
“qualquer tentativa de participação não controlada, isto
é, não decorrente de um acordo dos participantes da
“cena privada”, é então considerada uma ameaça para o
'pacto de dominação'”.12 Assim as Forças Armadas atuam
como prepostos radicais das elites dominantes. Muito
embora tenham surgido em defesa das elites tradicionais,
elas seguem defendendo o status quo, mesmo quando o
grupo dominante se altera qualitativamente. Recorrendo
a Gramsci, autor que não parece estranho a Rouquié, a
oficialidade militar atua como camada intelectual dos
grupos dirigentes. Segundo este autor, todo grupo social
que aspira à hegemonia e ao poder político, organiza uma
ou mais camadas de intelectuais, não apenas no campo
econômico, mas também no social e político, no intuito
de elaborar sua vontade de classe em termos de um
projeto político para toda a sociedade. Alguns desses
intelectuais são orgânicos, ou seja, nascem e se
desenvolvem junto com a classe. Outra parte pode ser de
formação independente ou anterior: “Categorias
intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás,
como representantes de uma continuidade histórica que
não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas
e radicais modificações das formas sociais e políticas”.13
Seguindo a linha de Rouquié, que nos parece a
mais profícua dentre as analisadas, as Forças Armadas
constituem uma categoria de classe média e de origem
majoritariamente de membros oriundos deste segmento.
Todavia, tal constatação não ajuda muito a definir seu
posicionamento político, em primeiro, por ser esse grupo
social muito amplo e impreciso, em segundo porque em
razão de seu intenso treinamento e vivência militar, os
oficiais trazem mais forte em si as marcas da sua
instituição do que de sua classe original (o que não quer
dizer que esta influência seja irrelevante).
De tudo isto, podemos extrair duas conclusões
iniciais: a) “pátria”, “nação”, “povo”, etc. são categorias
tautológicas sempre usadas pelos homens de farda para
10
Empregamos a expressão habitus para indicar uma determinada
predisposição para determinada prática; um conjunto de
disposições regradas duravelmente armado. Para uma melhor
compreensão deste conceito, consultar: BOURDIEU Pierre. O
poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
11
ROUQUIÉ, 1974. op cit, pág 44.
12
Ibid, pag49.
13
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2006. caderno 12.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 31
justificar suas atitudes sejam elas quais forem. Mas
quando as Forças Armadas se unificam ou se dividem em
relação a um governo ou regime, atuam em função de
interesses concretos, se posicionam em relação a um
conflito de classe existente, atuam sob a hegemonia de
um grupo econômico fundamental e afirmam esse projeto
de classe como a “causa da nação” e; b) as Forças
Armadas fazem parte do Estado. Mas se ampliamos o
conceito de Estado para além da sua estrutura jurídica
formal, se reconhecemos os aparelhos privados de
hegemonia como parte do Estado ampliado14, veremos
que as Forças Armadas interagem e se posicionam em
relação à sociedade civil e seus conflitos. Assim os
militares em sua ação transbordam as fronteiras do
Estado oficial e atuam como força partidária de frações da
sociedade política. Sendo o Estado um equilíbrio
inconstante entre as frações da sociedade civil, um
organismo em permanente construção e reconstrução, as
Forças Armadas atuam segundo sua própria lógica neste
complexo, fazem parte também deste equilíbrio e têm sua
importância aumentada ou diminuída em função da
conjuntura e do tipo de Estado. Quando o grupo
dominante possui grande poder hegemônico, tendem a se
submeter ao consenso. Se por outro lado existe uma crise
de hegemonia, a tendência é intervirem negando ou
apoiando o grupo dominante. Neste caso, podem até se
dividir em duas ou mais facções, expressando à sua
maneira a crise de hegemonia existente, mas sempre em
defesa da “pátria”, da “nação”, etc.
Porém não apenas as intervenções, mas também
as aderências, sejam na forma de participação em cargos
oficiais ou o simples apoio passivo envolvem a aceitação
a priori de um determinado projeto político. Quando se
dividem em relação a um governo, expressam em seu
próprio seio, as divisões políticas, os projetos de
hegemonia conflitantes. É muito comum, aliás, que as
Forças Armadas se cindam em partidos militares15,
grupos de oficiais que se organizam e se combatem por
um longo período (no Brasil, o Clube Militar se constituiu
historicamente no espaço reconhecido pelos oficiais para
este tipo de disputa). Em épocas normais, as disputas dãose no âmbito da instituição (eleições para o clube militar,
indicações para promoção, etc). Todavia, em situação de
crise orgânica, onde o grupo dominante não mais detém
hegemonia política, a política militar se reveste de grande
importância, pois a vitória de determinada fração pode
conduzir a um novo equilíbrio de poder e a um novo
Estado.
Na América Latina, assim como em grande parte
do chamado “terceiro mundo”, o receio das intervenções
militares é constante16, daí a recorrência a tomada de
medidas com o fim de conter as intervenções, e dentre
estas, os dispositivos militares.
Um pouco de história
A expressão “dispositivo” é muito recorrente em
linguagem militar, indica grosso modo uma determinada
disposição de forças a serviço de uma tática ofensiva ou
defensiva. Paradoxalmente, o mais famoso dos
“dispositivos militares” foi o do general Assis Brasil, e foi
justamente o que se celebrizou por não funcionar. Antes
do “dispositivo de João Goulart”, outros existiram não
apenas no Brasil, mas também na América Latina. Já no
século XIX, o Chile tem um bom exemplo de “dispositivo
militar” bem sucedido. Após vitória dos conservadores
sobre seus inimigos liberais, em 1830, os vencedores
cuidaram de se precaver de possíveis intervenções
militares (o país já contava cinco intervenções nos último
oito anos). O ministro conservador Portales não só
organizou milícias civis em efetivos maiores que as
tropas militares, como também cuidou de afastar da
carreira das armas todo e qualquer elemento suspeito:
“Impõe a preponderância do poder civil depurando sem
piedade o corpo dos oficiais dos elementos liberais e de
todos aqueles que se tinham feito notar, até o momento,
pela propensão aos pronunciamientos e às rebeliões”.17
Ainda segundo Rouquié, os Estados unidos, após
a vitória da Revolução Cubana, estruturam um
“dispositivo militar interamericano”, oferecendo armas
leves e treinamento antiguerrilha às Forças Armadas
latino americanas.18
Hélio Silva também usa a expressão em vários
momentos. Um bom exemplo, é o “dispositivo militar de
Lott”. O próprio general, em depoimento citado por este
autor, o descreve:
Dei ordem ao general Denys que elaborasse
ordens constituindo uma série de
destacamentos, para que, se a ordem pública
pudesse ser perturbada, imediatamente o
exército interviesse e evitasse que a situação se
agravasse. (...) Então, o general Denys e um
auxiliar redigiram essas ordens, que foram
trazidas a mim, e eu as examinei, fiz
modificações na constituição dos
destacamentos, depois disso, foram copiadas à
máquina, seladas, guardadas, estavam prontas.
De modo que nessa ocasião19 bastava distribuir
as ordens que já estavam endereçadas aos
comandantes, para imediatamente a tropa agir.
E assim foi feito, e sem perda de tempo. O
exército aqui, na I região militar, tomou todas
as disposições necessárias. Agora, isso, eu
sabia que iria se passar dessa maneira.20
O mesmo general Lott Permaneceu na pasta do
Ministério da Guerra durante o governo de Juscelino
Kubitschek. Carlos Castelo Branco menciona a
17
ROUQUIÉ, 1984, op cit. Pág 40.
Ibid, pág 160.
19
A “ocasião”, foi o contragolpe preventivo comandado por Lott
em 11 de novembro de 1955, que entrou para história como A
Novembrada.
20
SILVA, Hélio Silva. O poder militar. Porto Alegre, L&PM, 1984,
pág 119.
18
14
Ibid.
ROUQUIÉ, Alain (org.) Os partidos militares no Brasil. Rio de
Janeiro: Record, 1980.
16
STEPAN, 1975. op cit, cap 1.
15
32 - Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart
importância de Lott contra a oposição militar golpista.
Fazendo uma breve comparação do governo de João
Goulart com o governo Juscelino Kubitschek, afirma que
este também teve de enfrentar intensa atividade golpista,
especialmente no início de seu governo. Contudo os
serviços de segurança permaneciam obedientes e
solidários a seus chefes, e assim: “O general Lott
identificava com facilidade as atividades conspiratórias
e desarticulava os núcleos sem precisar sequer recorrer a
processos dramáticos”.21 Prestes, em depoimento,
ressalta que em seu “dispositivo”, Lott afastou os oficiais
identificados com a oposição à Juscelino Kubitschek,
mesmo em detrimento de suas próprias convicções
políticas pessoais. Lott era anticomunista e católico
praticante. Porém, para sabotar a influência de um oficial
ligado à UDN22, promoveu ao comando, um que era
reconhecidamente comunista. Podemos deduzir que nem
esse oficial tinha condições de organizar uma
conspiração pela esquerda, e nem seus subordinados uma
conspiração pela direita:
Havia um oficial do Exército que era
comunista declarado (...) Quando Lott deu o
golpe preventivo de 55 para assegurar a
legalidade e a posse de JK, chamou esse oficial
e disse: “conheço suas idéias, sei o que o
senhor pensa. Mas vou lhe dar uma tarefa: o
senhor vai ser chefe do serviço de
recrutamento em Teresina”. O oficial
respondeu: “Mas marechal, logo eu que estou
há tanto tempo sem ligação com a tropa! Eu
queria ir para o corpo da tropa e não para o
serviço de recrutamento”. Lott foi inflexível:
“não, o senhor vai para o recrutamento porque
é um oficial mais antigo que o comandante do
batalhão de Teresina”. Acontecia o seguinte: o
comandante do batalhão, um dos irmãos Serpa,
era udenista. E Lott escolheu justamente um
comunista para neutralizá-lo.23
O general e historiador Nelson Werneck Sodré
usa repetidamente a expressão “dispositivo militar”, no
sentido acima empregado. De acordo com este autor, os
setores golpistas das Forças Armadas tornaram-se muito
poderosos já ao final do governo de Kubitschek, quando
Lott entregou o ministério da Guerra ao Marechal da
reserva Odílio Denys, seu antigo aliado na novembrada,
mas que já então, se entendia e se articulava com seus
antigos adversários. Os militares a serviço de Jânio
identificaram e isolaram ao máximo possível aqueles que
identificavam como “de esquerda”, segundo Sodré:
Jamais existiu em nosso país dispositivo
militar como aquele que, à sombra da omissão
ou da ingenuidade do presidente Jânio
21
BRANCO, Carlos Castelo. Da conspiração à revolução. IN:
DINES, Alberto, et all. Os Idos de março e a queda de abril. José
Álvaro editor, Rio de Janeiro, 1964. pág 286.
22
União democrática Nacional, a UDN foi a agremiação partidária
que, entre os governos de Vargas a Jango se notabilizou pela
oposição intransigente e a pregação golpista.
23
MORAES, Denis de & VIANA, Francisco. Prestes: lutas e
autocríticas. Vozes, Petrópolis, 1982. pág 370,371. pág 163.
Quadros, foi montado. O golpismo afastou,
sem nenhuma exceção, sem nenhuma
tolerância, de todos os comandos, de todas as
funções, de todos os campos, de todas as
atividades, todos os elementos que não
merecessem a máxima confiança. Montou
dispositivo integralmente seu. Colheu todos os
elementos suspeitos e deslocou-os para pontos
distantes; cortou-lhes as perspectivas de
carreira; privou-os de todos os direitos e
recompensas, atirou todos à margem. Nos
ministérios da Marinha e da Aeronáutica, a
limpeza foi também rigorosa. (...) Assim, a
reação militar assumiu as rédeas do poder e,
dentro em pouco, Jânio Quadros estava nas
condições de simples prisioneiro daqueles que
escolhera.24
Conforme já salientado acima, a participação ou
apoio dos militares a um determinado governo, não pode
deixar de ser um tipo de aquiescência a um determinado
projeto político. Nenhum observador negará o apoio
ativo da fração majoritária dos militares ao “Estado
Novo” de Vargas ou ao governo de Eurico Gaspar Dutra
(aliás, ex-ministro de Vargas). Também não se poderá
desconsiderar que as conspirações militares contra
Juscelino Kubitschek não mobilizaram senão uma
minoria ultratradicionalista sem base social, isto em
função do enorme apoio obtido por este entre as frações
burguesas ligadas ao capital monopolista. Jânio constitui
um caso diferente. Eleito com o apoio entusiasmado da
UDN e dos oficiais conservadores, perdeu muito
rapidamente sua base de apoio. Acossado por Lacerda e
pela maior parte da UDN, Jânio tentou um lance
arriscado: renunciou esperando voltar com plenos
poderes. Como hoje sabemos, não funcionou.
O fato é que Jânio deixou no controle do aparato
militar o setor mais conservador e de histórico mais
golpista da tropa. Para assumir, seu vice João Goulart teve
de se apoiar na oficialidade legalista que, em 1961 ainda
era maioria. De acordo com Skidmore, por exemplo: “Se
os militares estivessem unidos contra a ascensão de
Jango, é provável que nunca tivesse assumido a
presidência”.25 Durante seu governo, os militares
seguiram participando da política. Não há dúvida de que
Jango também recorreu aos militares como forma de
pressão. O que não quer dizer em absoluto que este
presidente também pretendia se colocar á frente de um
golpe de Estado.26 Polêmicas a parte, Goulart precisava
enfraquecer o “dispositivo golpista” que herdara de
Jânio, sem fazer isso, não tinha chances de derrubar a
emenda parlamentarista que lhe subtraíra os poderes. Era
preciso agir pragmaticamente e assim procedeu.
A renúncia de Tancredo, em 26 de junho de 62,
por exigência legal de desincompatibilização de cargo de
confiança para a participação nas eleições do mesmo ano,
deu início a uma das crises ministeriais mais latentes do
24
SODRÉ, 1965. op cit. pág 370,371.
SKIDMORE, Thomas. De Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz
e Terra. 7 edição, 1982. pág 261.
26
Para alguns autores, Jango também planejava um golpe.
25
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 33
governo João Goulart. Pois caindo o primeiro ministro,
caía todo seu gabinete. A possibilidade de um ministério
militar favorável à antecipação do plebiscito era um
desejo de Jango e um temor da oposição. Alguns
observadores da época chegaram a sugerir que fosse este
o objetivo real da renúncia de Tancredo. Tal é o caso do
general Olympio Mourão Filho: “A razão provável da
demissão do Presidente do Conselho, fazendo cair o
Gabinete, seria derrubar os Ministros Militares,
especialmente o General João Segadas Vianna, Ministro
da Guerra, os quais eram contra a volta do
presidencialismo”.27
A oposição unida não aceitou a indicação de San
Tiago Dantas, sendo aprovada a posterior indicação do
conservador Auro de Moura Andrade. Este parlamentar,
não comprometido com o projeto de Jango, rapidamente
entrou em conflito com o presidente. Em notícia do dia 2
de julho de 1962, o jornal opositor “A Tribuna da
Imprensa” criticava a “Criação de um esquema militar
forte e formado por elementos ideologicamente
identificados com o presidente da república” de acordo
com a reportagem: “outro sentido não tem a indicação do
almirante Pedro Paulo de Araújo Suzano para a pasta da
Marinha, tida há poucas semanas atrás como
impraticável”.28 De acordo com o mesmo veículo, as
dificuldades entre Auro e Jango eram mesmo em relação
à indicação dos ministros militares: “O presidente
afirmou que não consentirá que se torne realidade o que
já soube estar sendo tramado: “a entrega das pastas
militares a elementos que participaram ou inspiraram
movimentos golpistas, entre os quais o de agosto do ano
passado”.29
Auro renunciou e foi sucedido por Brochado da
Rocha, que encaminhou projeto de lei ao Congresso para
a antecipação do plebiscito. Às vésperas da votação, Jair
Dantas Ribeiro, comandante do III Exército faz um
comunicado ao Ministro da Guerra, de que não se poderia
garantir a ordem, se a emenda fosse rejeitada pelo
Congresso (o comunicado vazou para imprensa e teve
grande repercussão). A emenda do plebiscito acabou
sendo aprovada pelo Congresso em tumultuada sessão na
madrugada do dia 14 para 15 de setembro de 1962. A
advertência de Jair causou algum mal estar mesmo entre
os aliados de Goulart, como o então ministro da guerra
Nelson de Melo. Mais tarde, Jair também seria Ministro
da Guerra.
O “dispositivo militar” de João Goulart
O período 62-64 foi marcado por uma grande
politização social, com radicalizações de parte a parte,
um presidente que não se definia claramente, e se isolava
cada vez mais. Goulart, tal como todos os presidentes até
ele, tinha em alta conta a “questão militar”. É evidente
que a atuação no Congresso e nos demais organismos da
sociedade civil foram tão ou mais importantes que sua
política militar. Por questão de espaço não poderemos
enveredar por estes aspectos de sua gestão. O que nos
parece mais óbvio é que para este presidente em questão,
a fidelidade dos homens de farda era mais importante que
para seus antecessores em virtude mesmo da enorme
oposição que lhe fazia a direita militar. Neste ponto entra
a questão do seu “dispositivo militar”. De acordo com
Skidmore, era “evidente, que Jango queria formar um
dispositivo militar (...) nomeando oficiais notoriamente
pró-Jango para postos de importância”.30 Assim,
Segundo o mesmo autor: “Começou por tentar desarmar
seus opositores mais poderosos, especialmente os
militares antigetulistas que forçaram sua demissão do
ministério de trabalho em 1954, e que tentaram impedir
sua posse em 1961”.31
Essa política militar de Jango foi também amiúde
usada como argumento contra ele. A indicação de
militares de confiança para os postos de maior
importância foi denunciada pelos opositores como um
expediente para um futuro golpe de Estado. Tal
argumento foi utilizado pelos militares que o depuseram,
antes, durante e depois de golpe de 64. Mas ainda hoje é
repetida por vários autores. Para Gaspari, por exemplo,
existiam dois movimentos golpistas: “Se o golpe de
Jango se destinava a mantê-lo no poder, o outro
destinava-se a pô-lo para fora”.32 Assim, a montagem do
“dispositivo militar” por parte de Jango deveria ser
tomada como parte da sua estratégia golpista. Para Hélio
Silva, que também defende a hipótese do golpe janguista,
o “dispositivo” de Goulart era um “mal necessário”,
composto de oficiais que não eram de sua inteira
confiança, mas que precisava existir em função de seu
estilo populista:
Assim, apertado entre dois fogos e não sendo
revolucionário, nem pretendendo fazer
nenhuma revolução, conforme ele mesmo
declarava, via-se o governo levado a preservar
um dispositivo político militar que não
confiava, mas que funcionava como fator de
equilíbrio na sua política de harmonização dos
contrários, de concessões ora à esquerda ora
muito mais à direita.33
Falando sobre dispositivos militar, tanto para
Vargas, como para Jango, Coelho – terceiro representante
da opinião do golpe janguista – atribui a construção do
dispositivo militar a lealdades pessoais. Em sua opinião,
o fracasso militar desses governos está relacionado à
aproximação exagerada com setores civis que eram
hostilizados pelos militares, pela crença de dominar os
militares através de relações de proximidade pessoal com
alguns de seus líderes e pela busca de oficiais
politicamente engajados:
Foi o que aconteceu com Vargas e Goulart,
ambos líderes populistas que alienaram o
30
SKIDMORE, 1982. op cit, pag 287.
Ibid, pag 264.
32
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada.. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. Pag 52.
33
SILVA, Hélio. Memória dos vencidos. A vez e a voz dos vencidos.
Militares x militares. Petrópolis, Vozes, 1988. Pag 92-93.
31
27
MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um
revolucionário. Porto Alegre, L&PM, 1978. pág 40.
28
Tribuna da Imprensa, 02 de Julho de 1962, pág 4.
29
Ibid. 03 de Julho de 1962, capa
34 - Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart
suporte militar de seus governos ao tentarem
governar com as massas. O processo é bem
conhecido. Os presidentes confiam nos
respectivos “dispositivos militares”, isto é, em
oficiais de sua inteira confiança colocados em
comandos importantes ou em posições
estratégicas da administração militar.
Frequentemente, estes oficiais adotam a
mesma semântica radical e tentam estabelecer
suas “bases” dentro do próprio exército, que já
estabeleceu uma tradição de anti-radicalismo
de esquerda a partir de experiências anteriores
com estes movimentos. Dentre todos os outros,
o governo Goulart foi particularmente fecundo
em criar “generais do povo”, que,
aparentemente, aumentam a margem de
manobra do governante ao criarem a impressão
generalizada de que dispõem de um “Exército
Popular” como suporte de seus programas
reformistas ou revolucionários.34
Realmente, há indicativos de que a “lealdade
pessoal” tenha sido um critério importante na construção
do dispositivo. Os generais Justino Alves Bastos e
Amaury Kruel, por exemplo, sempre foram articulados
com a direita militar, inclusive tendo atuado na linha de
frente contra o seu ministério em 1954. Mas em 1961,
Kruel, por exemplo, era compadre de Goulart e tinha sua
confiança. Certa vez teria inclusive chegado a comentar:
“ele é meio de direita, mas é meu amigo, então posso
contar com ele”.35 Às vésperas do comício de 1964, o
presidente confiava plenamente em seu “dispositivo
militar”, em encontro com Prestes disse que “20 generais
estavam do lado dele”.36 Iniciado o levante Goulart
assistiu, espantado, alguns de seus homens de confiança
exercendo papel decisivo no movimento que se propunha
a derrubá-lo.
Mas a hipótese de Jango tenha montado um
“dispositivo militar” no intuito de se por à frente de um
golpe de Estado, carece de qualquer fundamento. Este
homem já era acusado de golpista antes de assumir a
presidência precisamente por aqueles que pretendiam
impedir sua posse por meio de um golpe. O governo
Goulart representou, em seus momentos mais críticos, a
esperança da realização das “reformas de base”, e assim,
malgrado suas indefinições políticas, promoveu uma
ampla coalizão com as forças mais progressistas de seu
tempo. A facção militar que o apoiou, posicionou-se em
favor de bandeiras até então tabus nos meios militares,
tais como a reforma agrária, o direito de elegibilidade
para os praças, o voto para os analfabetos, ampla
liberdade de organização política e sindical e até a
legalidade para o Partido Comunista. Foi em função disto
e por nada mais que Goulart foi acusado de golpista.
Dreifuss observa que a busca de aliados militares
não era uma prática recente, mas as resistências à política
militar de Goulart foram muito mais fortes do que à de
Juscelino Kubitschek, por exemplo:
...ele [Goulart] seguiu as regras não escritas das
relações civil-militares incentivadas pelos
udenistas, pedecistas e pessedistas,
esforçando-se para estabelecer um
relacionamento semelhante com as Forças
Armadas. Ele tentou também reequilibrar a
hierarquia militar, que tendia fortemente para a
UDN e a ala direita do PSD, (...) Agindo assim,
ele procurava constituir um dispositivo militar
que desse forte apoio a sua política de
reformas. No entanto, contrariamente a
Juscelino Kubitscheck que havia feito o
mesmo anteriormente, mas com oficiais
identificados com a UDN e o PSD, João
Goulart foi severamente condenado por
imiscuir-se ilegitimamente na hierarquia do
exército. Na prática, o que aconteceu foi que
João Goulart estava rompendo com os limites
estreitos e exclusivistas das relações civilmilitares, trazendo a tona o que elas realmente
representavam, ou seja, um bonapartismo
militar sancionado constitucionalmente.37
Primeiras conclusões
As instituições militares são parte de Estado, o
Estado é político, o apoliticismo dos militares é, portanto,
um mito. Em toda a América Latina e o Brasil não é uma
exceção, as Forças Armadas se constituíram no setor mais
consolidado do Estado, e são tão mais fortes, quanto
maior é a importância de elemento força para a
reprodução da vida estatal.
O posicionamento político dos militares não está
suspenso no ar. Na medida em que são os guardiões de um
tipo de Estado, expressam o pensamento das elites
dirigentes. A sua vinculação com os grupos dirigentes via
política estatal é mais importante que sua suposta origem
de classe média, ademais, a classe média é um grupo
muito fluido, sem um posicionamento preciso. Também é
verdade que enquanto categoria específica e instituição
total também produzem bens simbólicos específicos que
modelam e reinterpretam à sua lógica o pensamento
hegemônico. Em síntese o posicionamento político
militar se forma a partir de uma dialética entre os projetos
políticos que exercem ou disputam a hegemonia e uma
visão de mundo militar. Em momentos de crise a
instituição pode até se dividir, mas mantém um habitus
comum.
Na América Latina, de forma geral, e no Brasil
em particular, setores da sociedade civil sempre apelaram
aos militares para a defesa de seus interesses. A
instabilidade foi a regra até bem avançado o século XX.
Os governos de Juscelino Kubitschek, Vargas e mesmo
Jânio tiveram também seus “dispositivos militares”, que
foram diferentes porque a conjuntura era diferente.
34
COELHO, 2000. op cit pág 144.
DINES, Alberto, Florestan Fernandes Junior e Nelma Salomão.
Histórias do poder. Vol.3, São Paulo, editora 34, 2000. pág 166.
36
MORAES & VIANA, 1982, op cit, pág 165.
35
37
Dreifuss, 1981, op cit. pag 81, 82.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (29-35) - 35
O governo de João Goulart foi marcado por uma
crise de hegemonia, dois projetos de Estado sensivelmente diferentes se defrontaram e respectivamente a eles,
as Forças Armadas também se dividiram.
A derrota do “dispositivo militar” de João
Goulart, a custa de importantes traições, foi também a
derrota de um projeto político de Estado dentro das
Forças Armadas (inclusive com o posterior expurgo de
muitos oficiais). Entender este processo, longe de
irrelevante, constitui o primeiro passo para compreender
não só a política militar, mas os mecanismos da política
em si do Brasil durante o governo de João Goulart.
36 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar
na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
1
Demian Melo2
U
m dos momentos mais visitados pela
historiografia e pela análise social nos últimos anos tem
sido a ditadura militar e seus temas correlatos: o golpe de
Estado, a censura, a luta armada, a resistência
democrática etc. As controvérsias em torno do papel da
esquerda na crise dos anos sessenta, caracterizada por
certos autores como “golpista”, levou alguns analistas a
questionar os rumos da historiografia recente.3
Esta consideração inicial é necessária, pois o
problema de nossa exposição é a pertinência de uma
hipótese muito difundida sobre a relação entre os oficiais
nacionalistas das Forças Armadas e o movimento sindical
nas greves gerais de 5 de julho e 15 de setembro de 1962,
eventos ligados às campanhas desenvolvidas pelo
presidente João Goulart pelo retorno do sistema
presidencialista.4 Presente na maior parte dos textos
memorialistas sobre o governo João Goulart (19611964), a hipótese foi sistematizada pelo brasilianista
Kenneth Paul Erickson em sua tese PhD Labor in the
Political Process in Brasil: Corporatism in a
modernizing nation, defendida em 1970 na Universidade
de Columbia.5 Segundo este autor, o sucesso destas
greves – que comentaremos ao longo do artigo – esteve
ligado ao apoio dado aos sindicalistas por parte de oficiais
militares nacionalistas.
Advertimos que nosso esboço de crítica a este
trabalho não é motivado por qualquer tipo de participação
em qualquer movimento revisionista da “nova história
política” ou consortes, e sim pela necessidade da
historiografia materialista buscar um impulso
permanente de renovação, seja através do trabalho
empírico, seja através do desenvolvimento teórico, seja,
principalmente, de pesquisa orientada por reflexão
1
Este artigo é a apresentação de alguns resultados parciais de nossa
pesquisa de doutorado sobre as greves políticas durante o governo
Jango, sob orientação do Prof. Marcelo Badaró Mattos (PPGHUFF). Agradeço aos comentários pertinentes de Felipe Demier,
ainda que apenas o autor seja o único responsável pelo próprio.
2
Doutorando em História pela UFF e bolsista da CAPES.
3
TOLEDO, Caio Navarro de. As falácias do revisionismo. Crítica
Marxista, n. 19, 2004. MATTOS, Marcelo Badaró. Os
trabalhadores e o golpe de 1964. História & Luta de Classes, nº 1,
2005, p.7-18. MELO, Demian. A miséria da historiografia.
Outubro. nº14, 2006, p.111-130.
4
Sobre o processo político, apresentamos neste artigo também
alguns resultados de nossa dissertação de mestrado. MELO,
Demian Bezerra de. O plebiscito de 1963: inflexão de forças na
crise orgânica dos anos sessenta. PPGH-UFF. Niterói: 2009.
5
Utilizamos a edição brasileira ERICKSON, K. P. Sindicalismo e
processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.
teórica consistente. Neste sentido, o avanço dos estudos
sobre o tema da participação dos militares na política6, e
também daquele relacionado às lutas da classe
trabalhadora brasileira, oferece uma boa oportunidade
para pôr à prova algumas crenças um tanto arraigadas.
Desta forma, este trabalho tomará, em primeiro
lugar, o momento histórico do início dos anos sessenta,
onde se cruzam uma série de crises de ordens e
temporalidades distintas (crise econômica, do sistema
político, do sistema sindical, da hierarquia militar, do
modelo agrário etc.)7, como base para a exposição dos
eventos ligados às duas greves gerais do ano de 1962,
para em seguida tentar problematizar a hipótese de
Erickson.
Segundo Erickson, durante as greves políticas de
1962, teria estado em vigor o dispositivo sindical-militar
que consistiria na cobertura militar dos oficiais à frente do
I, II e III Exércitos aos movimentos paredistas, evitando
que as forças públicas estaduais reprimissem o
movimento, de forma a garantir o êxito dos mesmos. O
caso mais patente seria o do general Osvino Alves,
comandante do I Exército, que teria neutralizado a ação
do governador da Guanabara Carlos Lacerda na
repressão a estas greves. Na passagem a seguir, Erickson
expõe sua hipótese:
Os militares em geral assumiam uma posição
de neutralidade benevolente ou de apoio ativo
em relação aos grevistas no período anterior a
1963, mas desse momento em diante, a maioria
dos oficiais em postos de comando declararam
sua oposição às greves. No período estudado a
seguir, os líderes da esquerda sindical
apelaram a oficiais geralmente descritos como
'nacionalistas', que compartilhavam dos
mesmos valores nacionalistas e reformistas
radicais. A esquerda sindicalista pretendeu
usar esses oficiais para proteger os
6
Refiro-me, a título de ilustração, ao conjunto de pesquisas que
vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos no Laboratório de
Estudos sobre a participação dos Militares na Política (LEMP),
coordenado pelo Prof. Renato Lemos, do Departamento de
História da UFRJ.
7
Utilizamos esta sugestão de entendimento da crise dos anos
sessenta, baseada em LEMOS, Renato. Contrarrevolução e
ditadura no Brasil: elementos para uma periodização do processo
político brasileiro pós-1964. Comunicação ao Simpósio “Forces
Armées et politique en Amérique Latine au XXe Siècle” no VI
Congreso del Consejo Europeo de Investigaciones Sociales sobre
América Latina (CEISAL), em Toulouse (França), jun. – jul. de
2010.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 37
movimentos grevistas da repressão oficial e
para obter o apoio militar às suas
reivindicações de uma radical reestruturação
da sociedade. Em meados de 1963, tornou-se
visível que o apelo aos oficiais das Forças
Armadas havia falhado, e eles passaram então
a centralizar seus esforços na obtenção de
apoio militar dos sargentos e suboficiais.8
Assim, o sucesso das greves políticas esteve
ligado ao “dispositivo militar”.9 Segundo o autor, esse
dispositivo acabou por se romper em 1963, tendo o
movimento sindical se inclinado para o apoio não mais
nos oficiais nacionalistas, mas nos subalternos militares,
sargentos e marinheiros.
A idéia de que oficiais militares nacionalistas
apoiavam movimentos grevistas pode soar algo estranho,
tendo em vista a própria ditadura militar instaurada em
1964. Trata-se é claro de entender a configuração das
divisões ideológicas na caserna, entre oficiais
nacionalistas, legalistas, e aqueles favoráveis ao capital
estrangeiro e identificados politicamente com a UDN.
Este último grupo, vitorioso em 1964, tinha entre seus
principais líderes os oficiais da Escola Superior de Guerra
(ESG), que disputavam o controle do Clube Militar10 com
a chapa Cruzada Democrática – também conhecida como
“UDN militar”.11 Certamente não foi este “partido
militar” que teve uma ação ao lado do movimento
sindical, mas sim o grupo identificado com o ideário
nacionalista varguista do qual fazia parte o general
Osvino Ferreira Alves, chamado pela esquerda de
“general do Povo”.
As greves políticas de 1962
Como é bastante conhecido, a posse de Jango em
setembro de 1961 foi resultado de um acordo com os
setores conservadores do Congresso Nacional e os
oficiais golpistas, que elaboraram às pressas uma emenda
constitucional parlamentarista. A idéia era transformar
Jango numa espécie de “Rainha da Inglaterra”: “reina,
mas não governa”. De qualquer modo configurou-se uma
contradição jurídica, em que passaram a conviver uma
emenda constitucional parlamentarista e uma
constituição presidencialista, a de 1946.
O primeiro gabinete – de conciliação nacional –
foi chefiado por Tancredo Neves, mas teve que se
dissolver em junho de 1962, já que seus membros
pretendiam participar das eleições gerais de outubro do
mesmo ano, abrindo o debate no governo sobre o nome
que deveria substituí-lo. Como as ações de Goulart
estavam voltadas para a estratégia de retornar ao sistema
presidencial, a escolha do nome deveria obedecer esta
lógica. Para sucedê-lo, Goulart inicialmente escolheu o
nome de San Tiago Dantas, que à frente do Ministério das
Relações Exteriores havia conseguido prestígio junto às
esquerdas, por defender uma posição neutra do Brasil
quando da crise dos EUA com Cuba, no âmbito da
Organização dos Estados Americanos (OEA). Pelo
mesmo motivo, Dantas era demonizado pela direita,
tendo sido a campanha contra o seu nome objeto de
intensa mobilização da direita.12 Enfim, com 111 votos a
favor, uma maioria de 172 deputados vetou o nome de
Dantas para o cargo de primeiro-ministro.
Foi justamente em meio a esta crise sucessória
que o movimento sindical brasileiro realizou a sua mais
importante greve geral do período, em 5 de julho de 1962.
Com a recusa do Congresso Nacional em aprovar o nome
de San Tiago Dantas, João Goulart decidiu, em clara
manobra para causar um impasse, indicar o nome do
Senador Auro Moura Andrade (PSD) ao cargo. Moura
Andrade era ligado aos setores mais reacionários da
política brasileira – havia ficado contra a posse do próprio
Goulart em 1961 e, não por acaso, apoiaria o golpe de
Estado que o depôs em 1964. A direita do espectro
político apoiou ostensivamente o nome do senador, mas
surgiram rumores de que Goulart exigiria de Andrade o
compromisso com a antecipação do plebiscito para 7 de
outubro. Pela imprensa, Andrade desconversou o
assunto.13 O Congresso aprovou o nome de Moura
Andrade (223 a 47), que a esta altura era apoiado por
diversos setores das classes dominantes, como o conjunto
das associações comerciais, através da declaração de seu
presidente Rui Gomes de Almeida14, também o principal
quadro do IPES-RJ. Como se ficou sabendo no período,
Goulart possuía uma carta de renúncia do senador
pessedista, e antes mesmo que Moura Andrade pudesse
apresentar seu novo ministério, o público tomou
conhecimento do conteúdo da carta.15 Em resposta à
notícia da aprovação do nome de Andrade, o movimento
sindical respondeu com uma greve geral. Os
acontecimentos se precipitaram de forma dramática, e
antes do início da greve, Moura Andrade renunciou ao
cargo, o que levou a que emissários do governo tentassem
impedir o movimento paredista. A imprensa daria
destaque às tentativas do governo em deter o movimento
paredista, como pode ser visto no trecho abaixo:
Não sendo bem sucedido nos entendimentos
que manteve, pessoalmente, com os grevistas,
o sr. Gilberto Crockatt de Sá teve sua missão
reforçada pelo presidente do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico, o sr.
8
ERICKSON, op. cit., p.141.
Idem, p.142.
10
O Clube Militar foi dos anos 1950 até o golpe de 64 um espaço
político onde as correntes militares se enfrentavam, constituindo
uma verdadeira caixa de ressonância das opiniões militares.
PEIXOTO, Antonio Carlos. “O Clube Militar e os confrontos no
seio das Forças Armadas (1945-1964).” In. ROUQUIÉ, Alain
(coord.). Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record,
s.d., p.71-113.
11
O termo é de Alain Rouquié e refere-se aos diferentes grupos
políticos organizados por oficiais das Forças Armadas. Ver
ROUQUIÉ, op. cit.
9
12
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado.
Petrópolis: Vozes, 1981, p.296.
13
O Globo, 02 e 03/07/1962.
14
O Globo, 04/07/1962. o título da reportagem foi “As classes
produtoras aplaudem a escolha do novo primeiro-ministro”.
15
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as
lutas sociais no Brasil. 7ª edição. Rio de Janeiro: Revan; Brasília:
EdUNB, 2001, p.77.
38 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
Leocádio Antunes. Este chegou a CNTI, por
volta das 17hs, mantendo conferências, a
portas fechadas, até as 18hs e 45mim. O sr.
Leocádio Antunes tentou em vão persuadir os
articuladores da greve. Travou-se, então, o
seguinte diálogo entre a autoridade e o sr.
Pelacani, coadjuvado pelo sr. Roberto Morena.
L.A.: “Não se justifica o movimento, desde que
a situação evoluiu, com a renúncia de Auro.”
P.: “A sustação da greve desmoralizara (sic) os
trabalhadores.”
M.: “A ordem da greve já está nas ruas e os
trabalhadores não poderão compactuar com
nova conciliação.”
L.: “Não haverá conciliação pois o Auro já
renunciou. Seu gesto foi conseqüência da nota
do general Osvino e, logo, após, pela
ratificação da mesma, pelo general Machado
Lopes. O Auro tem um gênio violento, mas se
curvou a realidade militar.”
P. : “ N ó s q u e r e m o s a v o l t a d o
presidencialismo e esta greve tem, como o
governo reconhece, outras finalidades”.16
A greve geral foi afinal decretada às 15:30hs do
dia 4 de julho, em reunião na sede da CNTI, decisão que
contagiou sindicatos do Brasil inteiro. Com o
desencadeamento do movimento, foram inúteis as
tentativas de Goulart, através de seus emissários, San
Tiago Dantas, Gilberto Crockatt de Sá (assessor sindical
de Goulart), Leocádio Antunes (presidente do BNDE) e o
General Osvino Ferreira Alves (comandante do I
Exército), de sustar o movimento.17 Na ocasião, o então
presidente da CNTI, Dante Pelacani, afirmou a Leocádio
Antunes que: “Nós estamos do lado do Presidente João
Goulart, mas não sob seu comando.”18 Ao sair da reunião,
irritado, o presidente do BNDE teria declarado: “O
momento não é de greve. É de ordem.”19 Também na sede
do CNTI, tentando evitar o movimento, esteve o
deputado Roland Corbisier. Durante mais de quinze
minutos, falou ao telefone com Dante Pellacani, o sr. Luis
Costa Araújo, do Gabinete Civil da Presidência da
República, também tentando impedir a eclosão do
movimento paredista. Contrariando estes apelos, o
movimento foi a maior manifestação grevista até então
realizada e, diferentemente das greves ocorridas pela
Legalidade, isoladas e setoriais, esta foi nacional e
coordenada por um comando nacional unificado: o
Comando Geral de Greve.20
16
Correio da Manhã, 05/07/1962.
“Dentro deste quadro do problema social, a perspectiva de um
golpe mobilizou as organizações populares e os sindicatos para a
resistência e para a greve que apesar dos apelos em contrário de
Jango, San Tiago e do General Osvino, não pode ser evitada
ontem.” Última Hora, 05/07/1962, p.4.
18
Jornal do Brasil, 05/07/1962.
19
O Globo, 05/07/1962, p.6.
20
Ver. TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. São Paulo:
Livraria Editora Ciências Humanas, 1981, capítulo 13, “O
movimento operário na primeira metade de 1962”, p.125-173.
17
Na Guanabara e no Estado do Rio de Janeiro a
greve foi total, tendo sido acompanha de ondas de saques
na Baixada Fluminense, especialmente Caxias e São João
de Meriti, onde o saldo foi de quarenta mortos e
setecentos feridos.21 Os ferroviários da Estação
Leopoldina foram a primeira categoria a entrar em greve:
às 19:40horas do dia 4 de julho.22 No Rio Grande do Sul a
greve foi no dia 6, parando comércio, cinemas e
transportes, sendo total em Porto Alegre, com exceção
apenas de alguns serviços essenciais. Toda a indústria
paralisou. Também neste caso houve a tentativa de
impedir a deflagração do movimento, através de apelos
do então governador Leonel Brizola dirigidos ao
Comando Sindical.23
Já em Pernambuco, onde a esquerda, incluindo o
PCB, era muito forte, a capital parou, com a suspensão
das atividades do porto (portuários, estivadores,
conferentes, arrumadores e marítimos), dos ferroviários,
bancários, motoristas e estudantes. No Ceará a greve foi
geral em Fortaleza (bancos, comércio, porto, repartição
públicas, transportes urbanos), contando com o apoio do
governador do Estado (que era do PTB), para o desagrado
das classes dominantes locais.24 No Pará, aderiram os
petroleiros. Em Santa Catarina a greve foi, tal com no Rio
Grande do Sul, no dia 6 e pararam os estivadores,
conferentes, rodoviários e trabalhadores da indústria. Na
Bahia a Petrobrás e o Porto paralisaram suas atividades
no dia 5 de julho. Nos estados de Minas e São Paulo a
paralisação foi parcial: em Minas houve greve na
Mannesman e na Cidade Industrial (Contagem), com
depredações em Além Paraíba. Já em São Paulo a
paralisação foi total em Santos (portos, fábricas, oficinas,
funcionalismo, operários da refinaria Cubatão), com a
realização de comícios, paralisação de empresas na
capital e no ABC. Segundo Fernando Teixeira da Silva25,
a greve de 5 de julho foi "coroada de êxito”, diferente do
que havia ocorrido em agosto de 1961, quando os
sindicalistas ligados à Jânio Quadros conseguiram
desorientar o movimento. 26
ERICKSON, op. cit., p.149-154. COSTA, Sérgio Amad. O CGT e
as lutas sindicais brasileiras (1960-1964). São Paulo: Grêmio
Politécnico, 1981. DELGADO, O Comando Geral dos
Trabalhadores no Brasil (1961-1964). Petrópolis: Vozes, 1986,
p.56-57 e p.187-190.
21
Jornal do Brasil, 06/07/1962; ERICKSON, op. cit., p.151.
22
O Globo, 05/07/1962.
23
Última Hora, 07/07/1962. Apud JAKOBY, Marcos André. A
organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto
Alegre no período de 1960 a 1964. Dissertação de mestrado em
História. UFF, 2008, p.146-147.
24
Novos Rumos, 20 a 26 de julho de 1962, p.8.
25
SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: os operários das
Docas de Santos: direitos e cultura da solidariedade (1937-1968).
São Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1995,
p.177.
26
Correio Paulistano, 06/07/1962, apud SILVA, op. cit., p.177.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 39
A ação do “dispositivo militar”
Para diversos analistas o êxito da greve é
atribuído à proteção dada pelas unidades militares nos
locais do movimento, neutralizando a repressão levada a
cabo pelas forças públicas estaduais. Erickson, que
sistematiza tal hipótese na sua tese do dispositivo
sindical-militar, nos diz o seguinte:
O apoio do General Osvino Ferreira Alves,
nacionalista que comandava o I Exército no
Rio, foi vital para a operação e o êxito da greve.
Os líderes sindicais atuaram com cuidado até
que as afirmações de Osvino sugeriram que
este os apoiaria. Em uma fala às tropas, dez
dias antes da greve geral, denunciou a ofensiva
da extrema direita que pretendia estabelecer
uma ditadura e comparou-a ao nazismo alemão
e ao fascismo italiano. Somente depois que
Osvino repetiu sua decidida defesa em favor de
Goulart, porém, a 4 de julho, os grevistas
deram a palavra de ordem para o dia seguinte.27
Há aqui uma curiosa contradição, pois como
vimos acima, o mesmo General Osvino figura entre os
emissários de Goulart para tentar sustar o movimento
paredista, fato, inclusive, constatado pelo próprio
Erickson. De qualquer modo, o movimento explodiu com
grande êxito, impressionando todos os atores políticos do
período. O apoio destes militares nacionalistas não pode
ser minimizado no balanço desta greve geral, afinal, estes
identificavam os mesmos opositores e conformavam uma
frente única junto aos sindicalistas e demais setores da
esquerda. No entanto, como o próprio Erickson admite, a
repressão das polícias estaduais não foi menos incisiva no
episódio da greve de 5 de julho, sendo realizadas
inúmeras prisões de manifestantes em diversos pontos do
país, em especial na Guanabara, governada pelo linhadura civil Carlos Lacerda. Tanto nesta, quanto na greve de
setembro, que logo comentaremos, os trabalhadores
continuavam mobilizados após o encerramento da
paralisação, com o fito de libertar as lideranças grevistas
presas. O apoio de setores da caserna a tais movimentos
só pode ser entendido no quadro da crise do regime
populista. Mas tanto a greve como seu êxito não podem
ser entendidos sem que se levem em conta os avanços
organizativos da esquerda no movimento sindical.
Como balanço da greve geral temos um
fortalecimento da influência do movimento sindical, que,
além do mais, criara o Comando Geral de Greve para
coordenar a greve. Tal organização seria o embrião do
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), fundando
durante o IV Encontro Sindical Nacional, entre 17 e 19 de
agosto em São Paulo. A partir deste ponto, até o golpe de
Estado, os trabalhadores passariam a contar com um
importante instrumento de unificação das lutas e de
pressão, o CGT, a mais importante organização
“paralela” do sindicalismo brasileiro.
O gabinete de Brochado da Rocha – indicado por
Jango após a queda de Moura Andrade e aprovado pelo
Congresso – teve como objetivo explícito a reversão ao
sistema presidencialista, seguindo fielmente os interesses
de João Goulart. Não só deste, pois muitos
presidenciáveis às eleições previstas para 1965, como o
então senador goiano Juscelino Kubitscheck e o
governador mineiro Magalhães Pinto, por exemplo,
queriam se livrar o mais breve possível do incômodo
sistema parlamentarista. Além destes setores, também o
oficiais militares se posicionariam em uma série de
pronunciamentos para que o Congresso aprovasse a
antecipação e realização do plebiscito em conjunto com
as eleições gerais. Ainda no início de agosto, o ministro
da Guerra Nelson de Mello emitiria uma nota sobre a
permanência da crise, fazendo a seguinte caracterização:
O motivo das crises reside no fato de se ter
mudado o sistema de governo sem que até
agora o povo fosse chamado a opinar sobre a
transformação tão radical. A continuar tal
falha, estaria em causa a própria legitimidade
do sistema de governo. É da mais alta
oportunidade de que a Nação seja convocada
para as urnas, para a realização do plebiscito.28
Por sua vez, o comandante de III Exército (Rio
Grande do Sul), general Jair Dantas Ribeiro, enviou um
telegrama ao ministro da Guerra, afirmando que não teria
condições de manter a ordem pública no estado caso o
parlamento se recusasse a aprovar a realização do
plebiscito. A 13 de setembro foi publicada a seguinte
declaração na imprensa:
Face à intransigência do Parlamento... e tendo
ainda em vista as primeiras manifestações de
desagrado que se pronunciam nos territórios
dos Estados (sic) ocupados pelo III Exército,
cumpre-me informar a V. exa., como
responsável pela garantia da lei, da ordem... e
da propriedade privada deste território, que me
encontro sem condições para assumir a
segurança e êxito a responsabilidade do
cumprimento de tais missões, se o povo se
insurgir pela circunstância de o Congresso
recusar o plebiscito para antes ou no máximo
simultaneamente com as eleições de outubro
próximo vindouro.29
Por sua vez, os generais Osvino Alves e Peri
Constant Bevilaqua, comandantes do I e II Exércitos,
respectivamente, solidarizaram-se com Dantas Ribeiro.
Apenas o general Castelo Branco, comandante do IV
Exército, recusou-se a apoiar a declaração. O ministro da
Guerra, contrariado, considerou a declaração do
comandante do III Exército uma manifestação de
insubordinação. O movimento sindical resolveu
solidarizar-se com Dantas Ribeiro e convocou uma greve
nacional para exigir a antecipação do plebiscito. Em 14
de setembro, Brochado da Rocha renunciou. A greve
geral estourou no mesmo dia e prolongou-se até o dia
seguinte, tendo uma adesão inferior àquela realizada em
julho, mas não menos radicalizada e importante.
28
27
ERICKSON, op. cit., p.152.
Diário de Notícias, 07/08/1962.
O Estado de São Paulo, 13 de setembro de 1962.
29
40 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
A greve de setembro pelo plebiscito
Entre uma greve e outra, Leonel Brizola fixou
residência no Rio de Janeiro para concorrer para a
Câmara Federal nas eleições de outubro. O prestígio
conseguido durante a Crise da Legalidade era um capital
político que o governador gaúcho queria valorizar para se
projetar como presidenciável nas eleições previstas para
1965. Brizola acreditava, tal como toda a esquerda, que o
parlamentarismo tinha sido um “golpe branco” para
transformar Jango na “Rainha da Inglaterra”. Assim,
avaliava que aquele Congresso era uma instituição
espúria. Por outro lado, a plataforma defendida pela
esquerda nacionalista, de comunistas, socialistas
cristãos, trabalhistas até reformistas sociais eram as
chamadas reformas de base. Pois Brizola impulsionou a
própria propaganda das reformas de base, tendo tido a
oportunidade de já à frente do Executivo gaúcho
enfrentar-se com o capital estrangeiro e encaminhar
diversas medidas reformistas.30 Assim, ele liderava a
formação de uma corrente nacionalista-revolucionária
naqueles anos, posto que se apresentou disposto a
enfrentar Lacerda e todos os golpistas. Munido da
experiência da campanha que liderou no ano anterior,
Brizola adquiriu a Rádio Mayrink Veiga, através da qual
propagava suas idéias e construía sua própria candidatura
de Deputado federal.31
ocupar a Rádio e impedir o seu fechamento. Homero
Pinho então protestou com o Ministro da Guerra, general
Amauri Kruel32, afirmando que a Rádio estava
divulgando notícias subversivas do Comando Geral de
Greve. O episódio foi relatado no Jornal do Brasil nos
seguintes termos:
Pinho protesta contra a ação do I Exército – O
Presidente do Tribunal Regional Eleitoral,
Desembargador Homero Pinho, protestou
ontem junto ao Ministro da Guerra Interino,
General Amauri Kruel, contra a intervenção de
tropas do I Exército, impedindo o fechamento
da Rádio Mairink Veiga pela Polícia da
Guanabara.
O Desembargador Homero Pinho disse ao
Ministro da Guerra que havia determinado o
fechamento da Rádio Mairink Veiga porque ele
mesmo verificara que a emissora estava
divulgando propaganda subversiva, inclusive
boletins do Comando Geral de Greve.
REUNIÃO
Antes de seguir para o Palácio das Laranjeiras,
o Desembargador Homero Pinho manteve uma
conferência, em seu gabinete, com o
Procurador-Geral da Justiça, Sr. Cordeiro
Guerra, e o Chefe de Polícia da Guanabara, Sr.
Newton Marques Cruz.
Pois Brizola através da rádio Mayrink Veiga não
só intervinha no debate político diário, como
disponibilizava aos movimentos sociais a possibilidade
de divulgar suas idéias e mobilizações. Foi assim que,
tendo a Rádio Mayrink Veiga se tornado porta-voz da
esquerda, acabou tornando-se alvo da sanha golpista de
Carlos Lacerda. Controlando outras superestruturas da
política local, Lacerda conseguiu que o desembargador
Homero Pinho, Presidente do Tribunal Regional
Eleitoral, determinasse o fechamento da Rádio “por estar
divulgando propaganda subversiva”. Entretanto, na
ocasião o general Osvino Alves deslocou tropas para
No Palácio das Laranjeiras, o Sr. Homero
Pinho entregou um ofício ao Ministro da
Guerra, solicitando a apuração das
responsabilidades pela intervenção das tropas
do I Exército.
Em fontes ligadas ao Ministro da Guerra,
informava-se ontem o General Amauri Kruel
prometeu ao Desembargador Homero Pinho
examinar, com o Presidente da República, a
situação criada com a intervenção do I
Exército.33
30
Todavia, aspectos erráticos de sua trajetória política, como o
apoio dado ao seu governo pelos integralistas do Partido da
Representação Popular (PRP), são geralmente esquecidos. Sobre o
PRP ver CALIL, Gilberto Grassi. Integralismo e Hegemonia
Burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (19451965). Cascavel: UNIOESTE, 2010.
31
Por outro lado, não concordamos com certas imagens que vêm
sido produzidas pela historiografia recente que querem atribuir à
Brizola um papel de “grande articulador” das esquerdas,
particularmente por seu papel na Frente de Mobilização Popular
(FMP), que congregava diversas organizações que rivalizavam
com sua liderança, a começar pelos comunistas. Só a título de
exemplo do absurdo que é considerar Brizola o grande líder das
esquerdas naquele período, com uma consulta preliminar à
imprensa pude verificar que a presença dele no Comício da Central
(13 de março de 1964) era uma dúvida até a noite anterior ao
meeting, quando reunidos em seu apartamento no Rio, Hércules
Correa e Miguel Arraes articularam os limites da fala do Deputado
para evitar um constrangimento à Goulart. Uma posição
totalmente contrária à nossa pode ser lida em FERREIRA, Jorge.
Leonel Brizola, os nacional-revolucionários e a Frente de
Mobilização Popular. In. FERREIRA, Jorge & REIS, Daniel
Aarão. As esquerdas no Brasil. Nacionalismo e reformismo
radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p.543-583.
No mesmo periódico, a greve geral é
caracterizada como um fracasso, mas o próprio jornal dá
diversos dados sobre a efetividade da paralisação, tal
como sua eficiência como forma de intervenção dos
trabalhadores na cena política. Isso fica explícito no caso
dos aeronautas e aeroviários, que fechando o espaço
aéreo comercial, impediram que os parlamentares
32
Reforçada por sua proximidade familiar com o presidente Jango,
construiu-se uma narrativa na qual o general Kruel, que em março
de 1964 estava à frente da II Região Militar sediada em São Paulo,
aderiu de última hora ao golpe. Isso está presente, por exemplo, nas
primeiras narrativas sobre o golpe, como o livro de Mário Victor
Os cinco anos que abalaram o Brasil, mas Dreifuss desmontou
esta versão ao conferir a presença do general Kruel nas
articulações da conspiração desde março de 1963. DREIFUSS, op.
cit., p.372. Na 7ª edição de seu livro, Moniz Bandeira confirma a
crítica de Dreifuss. BANDEIRA, O governo João Goulart, op. cit.,
p.104.
33
Jornal do Brasil, 16 e 17 de setembro de 1962.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 41
voltassem a seus estados, e presos em Brasília não
puderam se esquivar de negociar com o poder Executivo
e parlamentares interessados na volta do
presidencialismo. O próprio Jornal do Brasil relata como
o Comando de Greve foi capaz de paralisar o transporte
aéreo, através de uma referência a uma nota do mesmo
Comando, que às 23 horas do dia 15 determinou que os
aeronautas e aeroviários suspendessem a greve a partir
das 5 horas da manhã, para que os próprios líderes
sindicais, que haviam viajado para Brasília para negociar
e pressionar os parlamentares, pudessem voltar aos seus
Estados.34
Pois se sabe que no setor de transportes terrestres,
ferroviários e aéreos os sindicatos estavam em mãos da
esquerda sindical. Em muitas cidades o transporte
rodoviário também foi solidário à paralisação. E não é
muito difícil entender a importância para um movimento
que pretende para o país ter o controle do setor de
transportes. Mais uma vez, embora tenha o próprio
Goulart e setores próximos ficado contra a greve, o
general Osvino voltou a ter um comportamento favorável
à mobilização, embora também ele fosse contrário ao
desencadeamento da greve política. As tropas do I
Exército guarneceram as estações ferroviárias Central do
Brasil e Leopoldina, mas isso não impediu que cinco
trens interestaduais furassem o movimento. Embora os
transportes rodoviários não tivessem aderido à
paralisação no Rio de Janeiro, aquela sexta-feira dia 14 de
setembro pareceu a todos um domingo. Os bondes da
Light, por exemplo, só regularizaram seu funcionamento
na parte da tarde, e o transporte marítimo entre RioNiterói teve que ser feito com avisos da Marinha de
Guerra. Três aviões também furaram a greve na ponte
aérea, sendo que na parte da tarde, só 40% do tráfego
estava normalizado. Um verdadeiro “caos aéreo”...
Na madrugada do dia 15, fruto de um acordo em
meio à esta polarização política, foi aprovado o projeto
que antecipava o referendum para o dia 6 de janeiro de
1963.35 Também nesse caso, os assessores de Goulart
também tentaram brecar o movimento, no que foram
ignorados. E, como vimos, novamente o general Osvino,
embora contrário à greve, colocou-se ao lado dos
sindicalistas após o desencadeamento da paralisação,
tendo tido uma ação importante para soltar os dirigentes
sindicais presos na Guanabara. Quanto aos outros
comandos militares, nem sinal de alguma atitude
parecida.
legalista das Forças Armadas, o general costumava se
posicionar ao lado da ala nacionalistas nas eleições para a
diretoria do Clube Militar. Em 1962, por exemplo,
Bevilaqua foi o presidente da chapa formada por oficiais
legalistas e nacionalistas que perderam as eleições para o
general Augusto Magessi, da Cruzada Democrática.
Como já é bem consagrado no campo de estudos da
participação dos militares na política, o Clube Militar foi
um dos principais espaços de articulação das correntes
militares na República de 1946.36 No trabalho que é
marco importante desta perspectiva, Peixoto atenta para a
diferença entre as correntes nacionalista e legalista das
Forças Armada, tendo a última se formado no contexto do
movimento do contra-golpe preventivo do general Lott
(1955), e o primeira pelos oficiais ligados à campanha
pela nacionalização do petróleo e na construção das
indústrias de base, da qual fizeram parte nomes como os
generais Horta Barbosa e Newton Estillac Leal. No
entanto, acaba enquadrando Bevilacqua sob a rubrica de
nacionalista, quando, no entanto, sua posição seria muito
mais legalista. Senão, vejamos.
O general Peri Bevilacqua era um ferrenho
defensor da estrutura sindical corporativa instituída no
Estado Novo37, possuindo uma posição doutrinária de
oposição tanto às greves, quanto às entidades sindicais
paralelas. Mas quando de sua investidura ao comando do
II Exército, no calor da espiral grevista, diversos setores
das classes dominantes o olhavam com desconfiança,
especialmente por sua posição favorável à posse
constitucional de Goulart, na crise de agosto do ano
anterior. Em seu arquivo38, existe uma charge – publicada
na imprensa desta época – em que o general figurava ao
lado das iniciais do seu nome, formando a sigla P.C.B.
(Peri Constant Bevilacqua). Pelo mesmo motivo, foi
visto como aliado pela esquerda sindical. Também por
sua posição legalista, considerava o parlamentarismo
então em vigor como um atentado à Constituição, tendo,
por isto, se posicionado em apoio aos pronunciamentos
de oficiais pela antecipação do plebiscito.
No entanto, dois meses após sua posse no
comando do II Exército, Bevilacqua emitiria sua Nota de
Instrução nº 4, onde expunha seu princípio doutrinário
contrário às greves. Na ocasião, o general Décio de
Escobar, pertencente aos quadros do Instituto Brasileiro
da Ação Democrática (IBAD) – entidade ligada à
conspiração golpista e ao Departamento de Estado dos
36
O caso do general Peri Bevilacqua
O caso do general Peri Bevilacqua é
emblemático de certa dose de exagero da hipótese de
Erickson sobre estas greves políticas em 1962. Em
primeiro lugar, só no início de setembro – portanto após a
greve de 5 de julho e alguns dias antes da greve de 15 de
setembro – Bevilacqua assumiu o comando do II
Exército, sediado em São Paulo. Pertencente à ala
34
Jornal do Brasil, 16 e 17 de setembro de 1962.
Lei complementar nº 2, de 16 de setembro de 1962, ao Ato
Adicional.
35
Sobre o tema, ver os textos pioneiros em ROUQUIÉ, op. cit.
Utilizando esta démarche, existem muitos trabalhos recentes
dedicados à dinâmica militar e sua participação no processo
político brasileiro, como o de ALMEIDA, Lúcio Flávio de. A
ilusão do desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa
nos anos JK. Florianópolis: UFSC, 2006. CARDOSO, Rachel
Motta. Depois, o golpe: as eleições de 1962 no Clube Militar.
Dissertação de mestrado. PPGHIS-UFRJ, 2008.
37
Sobre esse tema, nos valemos de DEMIER, Felipe Abranches.
Soldados x operários: o General Peri Bevilaqua no comando do II
Exército. Monografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Departamento de História, 2004.
38
Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de Benjamin
Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op. cit.
42 - A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
EUA – parabenizou Bevilacqua por sua posição firme
contra as greves.39 Ao mesmo tempo, suas atitudes
provocavam decepções entre os setores esquerdistas,
como Roberto Sisson, ex-membro da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), que em correspondência ao
comandante do II Exército afirma o seguinte:
Exércitos, generais Benjamin Galhardo e Justino Alves,
cumprimentaram Bevilacqua. Estava-se no clima de
radicalização que desembocou na greve geral ocorrida
em São Paulo, em outubro de 1963.43 Em 15 de setembro
deste ano, o general Peri emitiu a seguinte Nota de
Instrução no 7. Em certo trecho, lê-se
Tenho assuntado a política corrente com
alguns amigos comuns. Em geral, se mostram
decepcionados pela sua posição nas greves, é
que a julgam parcial, a favor do patronato (...).
O prezado general não pode continuar a
comprometer seu nome numa atitude que só
recebe os parabéns de O Globo e das
Associações burguesas.40
Ajuntamentos, ilegais e espúrios, serpentários
de peçonhentos inimigos da Democracia,
traidores da consciência democrática, se
apresentam sob títulos esdrúxulos de CGT,
Pacto de Unidade e Ação, Fórum Sindical de
Debates, com a veleidade de se erigirem em um
super-poder da República. Veja-se bem, superpoder e não 4º poder. Os poderes da República
são três, harmônicos e independentes. Mas, o
pretenso “poder sindical” não atura harmonia,
não reconhece freios nem contra-pesos, não
enxerga limitações em sua nefanda tarefa
jamais desesperada de alcançar o Poder
Político (...). Prestam criminoso desserviço à
Pátria, manipulando greves ilegais, muitas
vezes amorais e desumanas, sob os mais falsos
pretextos, para satisfazerem seus apetites
desonestos de coação, exaurindo num trabalho
antipatriótico, a economia nacional, e
agravando as injustiças sociais.44
Outro alvo da oposição de Bevilacqua era
justamente as entidades “paralelas”, como o CGT e
outras intersindicais como o Pacto de Unidade e Ação, o
Fórum de Debate de Santos e a Comissão Política de
Organizações Sindicais da Guanabara (CPOS), que, de
fato, constituíam um desafio à estrutura sindical
corporativa herdada do Estado Novo. Já em março de
1963, Bevilacqua fez um discurso criticando as entidades
sindicais paralelas, no que recebeu uma repreensão do
então ministro da Guerra, Amauri Kruel. Só que em
agosto, quando o ministério era ocupado por Jair Dantas
Ribeiro, os dois fizeram críticas públicas às greves
políticas e ao “dever funcional de reprimi-las”.41 No
mesmo mês, contra a opinião do movimento sindical, o
general Osvino é posto na reserva.42 A comparação entre
as atitudes de Osvino esclarece algumas contradições. Já
em maio de 1962, Osvino havia se desentendido com o
gen. Amaury Kruel, quando aquele defendeu
publicamente a declaração do sargento Gelci Rodrigues
Correia, que em um comício contra o FMI disse: “se os
reacionários não permitem as Reformas de Base,
usaremos para realizá-la nossos instrumentos de
trabalho: o fuzil!” É por isso que Osvino era chamado
pela esquerda de “General do Povo”. Estas atitudes são
impensáveis num militar como Bevilacqua.
Quando em setembro de 1963 ocorre o levante
dos sargentos em Brasília, e as organizações de esquerda
e movimentos sociais se solidarizam com os subalternos
militares, Bevilacqua advertiria a necessidade de “estar
em guarda contra a solidariedade dos malfeitores
sindicais, CGT, PUA e Fórum Sindical de Debates”.
Frente à declaração, os comandantes dos III e IV
39
Carta de Décio Escobar a Bevilaqua, 26 de novembro de 1962.
Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de Benjamin
Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op. cit.
40
Carta de Roberto Sisson a Bevilaqua. Rio de Janeiro, 12 de
janeiro de 1963. Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa de
Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional). Apud DEMIER, op.
cit.
41
Informações do verbete “Peri Constant Bevilacqua.” ABREU,
Alzira et. alii (org.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro
Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2001, versão em CDRom.
42
Posteriormente assumiu a presidência da Petrobrás, ocupando o
cargo até o golpe.
Mas aí, já em 1963, segundo Erickson, o
dispositivo sindical-militar não estaria mais em vigor, e
assim poderia ser explicada a contrariedade de Peri
Bevilaqua para com o movimento grevista. De qualquer
modo, não se trata de uma opinião surgida no ano de
1963, mas uma firme posição doutrinária – calcada na
formação intelectual positivista de Bevilaqua45 – contra
qualquer forma de organização da classe trabalhadora
que rompesse com o círculo corporativo de seus
interesses imediatos. Bevilaqua acabou afastado do
comando do II Exército por sua indisposição com o
movimento sindical, sendo nomeado à revelia chefe do
Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e, enfim,
acabaria apoiando o golpe de Estado de 1964, sob o
argumento da defesa da legalidade.
43
Foi a “Greve dos 700 mil”, dirigida pela intersindical Pacto de
Ação Conjunta (PAC), CNTI e CGT, que conseguem arrancar um
aumento de 80% da FIESP. As tropas do II Exército, ao lado da
polícia, reprimiram e prenderam líderes grevistas em Santos. No
total de muitos espancados, em todo os estado de São Paulo 1100
foram presos. Sobre esta greve ver LEITE, Márcia de Paula &
SÓLIS, Sydney Sérgio F. “O último vendaval: a Greve dos
700.000.” Cara a Cara, Ano I, n.2, julho a dezembro de 1978.
CORRÊA, Larissa Rosa. “A “Greve dos 700 mil”: negociações e
conflitos na justiça do Trabalho – São Paulo, 1963.” História
Social, Campinas, N.14/15, p.219-236, 2008.
44
Nota de Instrução nº 7 de Peri Bevilaqua. São Paulo, 15 de
setembro de 1963. Arquivo Peri Constant Bevilaqua/Museu Casa
de Benjamin Constant (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – IPHAN 6a Coordenação regional). Apud
DEMIER, op. cit.
45
Sobre a trajetória do gen. Peri Bevilaqua ver a introdução de
LEMOS, Renato. Justiça fardada. O general Peri Bevilaqua no
Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bomtexto,
2004.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (36-43) - 43
Considerações finais
De qualquer modo, seu caso é emblemático de
como a hipótese de Erickson é uma generalização de uma
situação muito particular ao Rio de Janeiro e com base em
uma caracterização pouco precisa das posições
ideológicas dos comandantes militares.46
As principais pesquisas sobre o sindicalismo
gaúcho produzidas nos últimos tempos, e que abordam as
greves políticas no governo Jango47, não dão conta de
nenhum apoio militar às greves gerais de 6 de julho e 15
de novembro de 1962. Na cidade de São Paulo, que não
participou da greve geral de 1962, o problema certamente
não decorreu da ausência de apoio do comando do II
Exército. Pois, como apontou o historiador Murilo Leal
Pereira Neto48, a greve de 5 de julho sequer foi
mencionada no jornal dos metalúrgicos de São Paulo – o
que mostra uma grande desarticulação entre esta
importante categoria e o grupo que organizou a greve na
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria
(CNTI) no Rio de Janeiro. Dentro da estrutura oficialcorporativa, o sindicato dos metalúrgicos de São Paulo
estava ligado ao CNTI, e este foi o espaço onde se
encontrou o Comando Geral de Greve durante a
decretação da paralisação nacional. Então aqui o
problema era outro: não falta de cobertura militar, e sim
desarticulação política. No Nordeste, particularmente em
Recife e Fortaleza, onde a greve foi forte, não existia a
menor possibilidade dos movimentos serem apoiados
pelo comando militar do IV Exército, que esteve nas
mãos do general Arthur Costa e Silva de agosto de 1961
até setembro de 1962.
Por outro lado, com o avanço dos estudos no
campo da história do movimento sindical brasileiro,
algumas pesquisas têm lançado mão dos arquivos das
polícias políticas estaduais, onde podem ser encontrados
vários documentos sobre a repressão aos movimentos
grevistas nos idos dos anos sessenta.49 Nestes fundos é
possível observar que qualquer que tenha sido a cobertura
militar a estas greves, a repressão nunca deixou de bater à
porta.
46
É também um golpe de morte na hipótese defendida por
Francisco Weffort de que as entidades paralelas constituíam, em
conjunto com a estrutura corporativa, a base do “sindicalismo
populista”, uma instituição do regime burguês.
47
SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Os herdeiros de Sísifo. A
ação coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos de 1958
e 1963. Dissertação de mestrado em História, Unicamp, 2002.
JACOBY, op. cit.
48
NETO, Murilo Leal Pereira. A reinvenção do trabalhismo no
“vulcão do inferno”. Um estudo sobre metalúrgicos e têxteis de
São Paulo: a fábrica, o bairro, o sindicato e a política (1950-1964).
Tese de doutorado em História,USP, 2006, p.302.
49
Ver, por exemplo, a obra coletiva MATTOS, Marcelo Badaró
(coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca
(1945-1964). Rio de Janeiro: APERJ/FAPERJ. 2003.
44 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972)
A revista Veja e os grupos guerrilheiros
no Brasil (1968/1972)
Edina Rautenberg1
E
ste artigo está baseado nas conclusões obtidas
em pesquisa de Iniciação Científica2, na qual buscamos
caracterizar a formação discursiva realizada pela revista
semanal Veja, sobre os grupos guerrilheiros presentes no
Brasil durante o período de ditadura militar. A análise se
estendeu de 1968, quando ocorreu o lançamento da
revista e também ano em que as ações guerrilheiras já
possuíam maior destaque nas cidades, até 1972,
considerado por parte da historiografia como período de
derrocada final dos grupos guerrilheiros.
A revista Veja foi analisada como um Aparelho
Privado de Hegemonia.3 Sendo assim, entendemos que
ela atuou – e atua – de modo a formular, organizar e agir
em torno de seus interesses político-ideológicoempresariais, pregando-os como os mais adequados para
o desenvolvimento nacional como um todo. Segundo
Gramsci, o capitalismo mantém o controle não apenas
pela repressão, mas também através da coerção
ideológica, por meio de uma cultura hegemônica na qual
os valores da burguesia tentam se tornar "senso comum".
Assim, os Aparelhos Privados de Hegemonia são
instrumentos organizativos, construídos no âmbito da
Sociedade Civil, pelas diversas classes e frações de
classes, com objetivo de disputa de hegemonia.
A imprensa pode ser entendida como um Partido
Político em sentido gramsciano. Isso, dito em outras
palavras, significa que a imprensa é um amplo campo de
organização e defesa de projetos de classes de maneira
efetiva e ampla. Quando entendida em sua forma burguesa,
podemos afirmar que ela atua de maneira a manter e/ou
ampliar as formas pelas quais as classes dominantes
conseguem executar seus projetos e é também campo da
luta de classes. É, portanto, lugar onde os setores
dominantes implementam seus projetos, apresentado e
recoberto de suposta neutralidade, realizando uma
distribuição específica de poder, de hierarquia e de
influência, e fazendo com que as classes dominadas tomem
para si um projeto que não é seu, construído e destinado
para atender os interesses do capitalismo.
1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História, Poder e
Práticas Sociais da UNIOESTE. Linha de Pesquisa Estado e Poder.
Bolsista pela CAPES. Orientada pela professora Dra. Carla
Luciana Silva.
2
Veja e os movimentos de guerrilha (1968/1972), sob a orientação
da Prof ª Dr. ª Carla Luciana Souza da Silva - Bolsa institucional de
Iniciação Científica PIBIC/UNIOESTE/PRPPG, com vigência de
agosto de 2005 a julho de 2006.
3
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2. Caderno
24. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
Veja buscou criar hegemonia em torno da criação
de um senso comum relativo às guerrilhas. Nesse sentido
procuraremos mostrar a atuação de Veja na criação de
uma imagem pejorativa dos guerrilheiros, associando
estes ao banditismo e à subversão, criando um consenso
na população que fosse desfavorável aos grupos
guerrilheiros, e impedindo assim uma possível aliança
e/ou o apoio da população aos guerrilheiros.
O trabalho buscou mostrar a posição de Veja no
período de 1968 a 1972. Através da análise do papel
político-partidário da revista e da construção de seu
discurso em relação às guerrilhas, pretendemos
problematizar a importante atuação da imprensa na
dinâmica capitalista, e, como decorrência, a possibilidade
de se estimular a concepção de um pensamento crítico
quando da leitura dos meios comunicacionais,
entendidos como importantes difusores de hegemonia.
Uma maneira utilizada pela revista Veja de
caracterizar negativamente os guerrilheiros está na
maneira em que o semanário é organizado. Exemplo
disso é a titulação que a revista atribuiu às seções em que
foram abordados temas relativos aos guerrilheiros. Veja
não falou em “guerrilheiros”, mas sim em “terroristas” e,
conseqüentemente, a seção foi intitulada “Terror” ou
“Subversão”. Quando a revista não apresentou os fatos
na seção “subversão” ou “terror” realizou matérias cujos
títulos trazem especificações ou alusões ao terrorismo.
Podemos perceber que Veja adotava uma posição de
repulsa aos guerrilheiros, caracterizando-os como
bandidos e terroristas e especialmente, desnecessários
para a obtenção do processo de democratização,
almejado pela revista. Isso ficou ainda mais evidente na
constituição da matéria onde se percebe os mecanismos
discursivos utilizados por Veja para dissimular sua
ideologia.
Durante o decorrer da pesquisa pode-se perceber
que Veja procurou constantemente utilizar frases e
versões oficiais para construir suas matérias. A revista se
utilizou das falas, especialmente de militares, na tentativa
de “corroborar a realidade” à qual ela estava se referindo.
Dessa maneira, Veja pretendia dar credibilidade aos
processos que procurava construir, além de criar a
impressão de estar transmitindo o neutro e verdadeiro
relato sobre o fato.4
4
Para discutir os recursos discursivos utilizados pela imprensa para
construir suas matérias nos utilizamos de: ABRAMO, Perseu.
Padrões de Manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (44-50) - 45
Outra forma de combater o terrorismo – para o
caso de elementos agitados que sempre
precisam de uma forma de exteriorizar
ações de protesto – é tolerar as chamadas
'válvulas de escape': organizações estudantis,
manifestações, passeatas, desde que não
perturbem a segurança do País (...) A violência
da repressão, caracterizada pela proibição das
passeatas, fechamento dos órgãos de
representação estudantil, proibição do debate
político nas escolas, serve mais para
fortalecer os argumentos subversivos de que
a única saída para o estudante interessado na
solução de problemas nacionais é a luta
clandestina (Grifos meus).10
Já na primeira matéria de Veja sobre os
movimentos de guerrilhas, a revista abordou a
preocupação existente com o “inimigo interno”5 e a
importância em combater os guerrilheiros-terroristas –
que por lutarem contra a ditadura, eram considerados
como “extremistas” da ideologia comunista que tentava,
segundo a justificativa da Segurança Nacional, se infiltrar
de todas as maneiras possíveis no Brasil. “É preciso que o
povo sinta a alta periculosidade dos elementos que estão
tentando quebrar a ordem no País, e nos ajude dando
informações e evitando que esses elementos se ocultem
de nós”.6
De maneira generalizante, a revista foi
apresentando os atentados e caracterizando as ações
realizadas por determinados grupos guerrilheiros7 como
fruto de especialistas, onde os guerrilheiros agiriam com
“sangue frio, precisão, imaginação, habilidade”.8 Veja
foi atuando de maneira a criar um ambiente de medo e
pavor entre seus leitores, pois não apresentou os
verdadeiros objetivos das ações guerrilheiras. De
diferentes maneiras, Veja foi apresentando os
guerrilheiros como indivíduos perigosos, que
assassinavam as pessoas comuns: “E a figura do
terrorista já faz parte da paisagem urbana: mais de um
homem, mais de uma vez, já parou o trânsito de ruas
próximas ao centro com rajadas de metralhadoras de um
respeitável arsenal”.9
No decorrer do período analisado na
pesquisa, percebemos também a preocupação da
revista em evitar que a aliança estudantesguerrilheiros se concretizasse. Aliás, para Veja, os
estudantes e seus movimentos eram fundamentais
para evitar que os guerrilheiros continuassem suas
práticas subversivas e, principalmente, para evitar
que os guerrilheiros conseguissem atingirem e
trazerem novos estudantes para a luta armada:
5
Hélio Bicudo (1984) em Segurança Nacional ou submissão
caracteriza a Segurança Nacional como resultado de uma
ideologia e uma política que, principalmente para os EUA,
significou a preservação e expansão do poder imperial. Os países
são “convencidos” a estabelecer regimes políticos que se baseiam
no combate e aniquilamento do “inimigo externo comum” –
identificado no comunismo – o que corresponde à imposição e
sustentação de governos autoritários, como no caso da América
Latina. Segundo Bicudo qualquer pessoa que se opusesse de
alguma maneira ao governo poderia ser considerado como
“inimigo interno”, por estar dentro das fronteiras do país, mas
supostamente, atender “a objetivos externos” – o comunismo.
6
Veja. Os exércitos estão reunidos. Combate ao inimigo interno,
nova tática para as forças americanas. Ed.03 – 25/09/68. p.23-24.
7
Sobre os grupos de guerrilhas, citamos (entre outras):
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira:
das ilusões perdidas à luta armada. 2ª Ed. São Paulo: Ática, 1987;
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os
comunistas no Brasil. São Paulo; Brasília; Brasiliense; CNPq,
1990; MIR, Luís. A revolução impossível: a esquerda e a luta
armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994; RIDENTI,
Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista, 1993.
8
Veja. Mais assaltos. Roubaram 80 milhões e ficou a pergunta: são
terroristas? A técnica do assalto e as armas lembram outros grandes
roubos ocorridos em São Paulo. Ed.06 – 16/10/68. p.25.
9
Veja. Ele assalta em nome do terror. Ed.37 – 21/05/69. págs. 18-21.
Juliana Tezini demonstrou de maneira mais
aprofundada como a revista Veja buscou desmobilizar a
participação política dos estudantes universitários,
durante o ano de 1977. Como demonstrou a autora, a
revista Veja desenvolveu uma campanha sistemática para
conter a reorganização dos estudantes.11 Percebemos
assim o papel de Veja em relação aos movimentos sociais:
orientar e alertar segundo os interesses que mais estavam
de acordo com a revista. Quando as guerrilhas mostramse um problema, Veja as repugnou colocando o
movimento estudantil como forma correta de
manifestação política. Quando o movimento estudantil se
mostrava de maneira organizada, Veja indica a sua
contenção. Isto porque uma reorganização do movimento
estudantil naquele momento poderia ser uma forma de
impulsionar o movimento operário, como demonstrou
Tezini. E não era este o objetivo de Veja.
E é sem saber ao certo “quem” ou “quais” são os
objetivos dos guerrilheiros que a revista começou a
abordar os grupos de guerrilhas e suas ações. “Que tipo
de gente são os terroristas?” (Grifos meus)12. Porém,
percebe-se que mesmo não conhecendo as intenções
desses grupos, eles são mostrados como “terroristas” – e
essa “desqualificação” já ficou clara na expressão “que
tipo de gente”, utilizada pela revista, que já é
preconceituosa por definição –, e Veja já possui seu
veredicto: “Os radicais de esquerda ou de direita cedo ou
tarde perceberão que o terrorismo lhes pode parecer
necessário mas certamente não é suficiente para a
tomada do poder”.13 A revista colocava-se como se
estivesse falando aos “terroristas”, mesmo dizendo não
saber se estes pertencem a uma ala da esquerda ou direita.
Veja procurou convencer que as maneiras utilizadas pelos
“terroristas” para “protestarem” seriam totalmente
incorretas. Segundo a revista, “Se sua intenção é
derrubar o Governo, será que acham que poderão
10
Veja. As seis perguntas do terror. Ed.49 – 13/08/69. Pgs.16-21.
TEZINI, Juliana Caetano Vaccari. O movimento estudantil em
1977 e a atuação política da Revista Veja. IN: Revista Tempos
Históricos. Universidade Estadual do Oeste do Paraná. V.1, n.1.
Marechal Cândido Rondon: EDUNIOESTE, 1999. Pgs.171-205.
12
Veja. As seis perguntas do terror. Op. Cit. Pgs.16-21.
13
Veja. Terror e reação. O sangue de um capitão americano morto em
São Paulo, o de outros mortos e feridos, se mistura aos estilhaços de
bombas, como a que explodiu na Civilização Brasileira, no Rio. É o
terrorismo? Ed.07 – 23/10/1968. Pgs.15-17.
11
46 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972)
conseguir mudar o regime através de paredes que se
despedaçam sob o impacto da dinamite ou pelo sangue
que corre de mortos politicamente desconhecidos?”.14
Neste sentido, Veja indicou aos guerrilheiros que suas
ações estariam conferindo a eles o título de terroristas, e
que, portanto, deveriam rever suas atitudes:
Talvez então a palavra 'terrorista' não fosse
adequada para designar um subversivo que
assalta bancos com o único objetivo de obter
dinheiro para sustentar guerrilheiros ou uma
rede clandestina de militantes. No entanto, a
sucessão de assaltos, acompanhada de algumas
mortes, está criando um sentimento de medo
em setores da população que trabalham em
áreas visitadas pelos subversivos assaltantes.15
Percebe-se que, Veja colocava-se como se fosse
tradutora da História, educadora do próprio movimento
contestatório. Em relação aos grupos de guerrilhas, Veja
adotou a política do governo, pois os grupos guerrilheiros
quebravam a ordem existente e Veja acreditava no
“progresso dentro da ordem” e esses grupos poderiam
atrapalhar seus ideais capitalistas. Por fim, Veja definiu
esses atentados como desnecessários, pois o almejado (a
redemocratização) só seria obtido dentro da ordem: “As
reações do governo e do povo, as reações dos grupos
políticos é que, no fim, criarão uma nova situação no
Brasil – em que os próprios terroristas se convencerão ou
de que o terrorismo não é mais necessário ou de que ele é
totalmente inútil”.16
Enfim, para Veja não importava “quem” ou “o
que” são os terroristas. O importante é que eles “não são
necessários”, e por isso deveriam ser combatidos.
Percebemos a tentativa da revista de obter a
redemocratização, entretanto, esta teria que ser dada
burocraticamente, através dos mecanismos que
assegurassem a continuidade do sistema capitalista.
Os guerrilheiros tinham como prática de suas
atividades revolucionárias os assaltos. Segundo Carlos
Marighella, em seu Mini-Manual do Guerrilheiro
Urbano, “o assalto é o ataque armado com o qual
fazemos expropriações, libertamos prisioneiros,
capturamos explosivos, metralhadoras, e outras armas
típicas e munições”.17 Além disso, o principal objetivo
dos guerrilheiros em todas as suas ações era realizar a
propaganda revolucionária. Porém, os atos guerrilheiros
foram tratados pela maioria da sociedade como ações de
delinqüentes inconsequentes.
Perseu Abramo, na obra “Padrões de
Manipulação na Grande Imprensa”, demonstrou que a
manipulação da realidade pela imprensa ocorre de várias
e múltiplas formas. Segundo ele, “a gravidade do
fenômeno decorre do fato de que ele marca a essência do
14
Idem.
Veja. As seis perguntas do terror. 13/8/69, pgs.16-21.
16
Idem.
17
MARIGHELLA, Carlos. Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano.
D i s p o n í v e l
e m :
http://brasil.indymedia.org/media/2008/06//422822.pdf.
Consulta realizada em 10 de maio de 2010.
15
procedimento geral do conjunto da produção cotidiana
da imprensa”.18 Essa característica geral pode ser
observada quando se procura tipificar as formas mais
usuais de manipulação. E neste sentido, Abramo
identificou pelo menos quatro padrões de manipulação
gerais: Padrão de Ocultação, Padrão de Fragmentação;
Padrão da Inversão; Padrão de Indução. No exemplo
citado acima, percebemos que Veja se utilizou do Padrão
de Inversão e da Fragmentação, fragmentando o fato em
aspectos particulares, todos eles descontextualizados,
prosseguindo com a destruição da realidade original e a
criação artificial de outra realidade. Como
demonstramos, Veja descontextualizou as ações dos
guerrilheiros na prática de assaltos e expropriações,
demonstrando os mesmo como bandidos que
ameaçariam a vida das pessoas.
Ainda em seu manual, Marighella alertava para a
diferença existente entre um guerrilheiro urbano e os
delinquentes:
O delinqüente se beneficia pessoalmente por
suas ações, e ataca indiscriminadamente sem
distinção entre explorados e exploradores, por
isso há tantos homens e mulheres cotidianos
entre suas vítimas. O guerrilheiro urbano segue
uma meta política e somente ataca o governo,
os grandes capitalistas, os imperialistas norteamericanos.19
Porém, não é dessa maneira, fazendo distinção
entre delinqüentes e guerrilheiros, que Veja caracterizou
suas edições a respeito dos grupos de guerrilhas.
Inicialmente a revista apresentou apenas os inúmeros
assaltos e ataques (designados por ela de “terroristas”),
além das inúmeras mortes, sem esclarecer os motivos que
levaram os guerrilheiros a praticarem essas ações. Veja
procurou ser “explicativa” para assim criar determinado
consenso de estar apresentando o fato tal como ele
aconteceu. Para isso, utilizou-se do máximo de dados
possíveis, encobrindo neles a sua opinião. Nesse sentido,
a revista procurou caracterizar a identidade dos atingidos
(quando se trata de personalidades de destaque), bem
como o setor atingido nos assaltos e ataques subversivos.
Porém, essas são as únicas “informações” repassadas por
Veja. Por mais que a revista tentou mostrar-se neutra, e
dizer que dá voz aos dois lados, Veja jamais procurou
discutir o significado dessas ações para os seus
praticantes, ou seja, para os guerrilheiros. As “técnicas de
guerrilhas urbanas” propostas pela maioria dos
guerrilheiros brasileiros seguiam algumas
características, e uma delas era as expropriações como
forma de obter recursos para lançamento e sobrevivência
da guerrilha rural, bem como de “atacar” e desmoralizar
as classes dominantes e repressoras. Porém, isso jamais
foi comentado pela revista. Veja apresentou os “motivos”
que, segundo argumento de técnicos, seriam os
responsáveis pela condenação da população às guerrilhas
(assaltos, assassinatos, seqüestros, etc.). E, para reforçar
sua tese, a revista chegou a apresentar trechos de
18
19
ABRAMO, Perseu. Op. Cit. P.25.
Idem.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (44-50) - 47
documentos escritos por Lênin, Stálin e Guevara, onde
estes falam sobre as táticas a serem utilizadas nas
guerrilhas: “Che Guevara, Lênin e Stálin pensavam
realmente dessa forma?”.20 Veja parece ironizar a prática
das guerrilhas brasileiras, especialmente no que se refere
a ataques terroristas realizados pelos grupos de luta
armada, afirmando que os guerrilheiros estariam
praticando ações que contrariam as “ideologias” de seus
“ i n s t r u t o r e s ” . C o m i s s o , Ve j a p r o c u r o u ,
pedagogicamente, indicar os caminhos a serem trilhados
pelos guerrilheiros, caminhos estes contrários daqueles
normalmente seguidos por eles e que, segundo Veja,
acabam “pelo seu aspecto absolutamente negativo,
levando à repulsa da maioria da população e à reação
violenta das autoridades, preocupadas com a
manutenção do regime e da ordem”.21
Podemos perceber que a revista não apresentou
as reais intenções dos guerrilheiros, o que possibilitaria,
caso fossem apresentadas, a melhor compreensão por
parte da população em relação aos “ataques”. Além
disso, Veja utilizou-se de muitos argumentos para mostrar
aos guerrilheiros que ela queria ajudá-los, desde que estes
aceitassem os caminhos indicados pela revista.
Um exemplo claro desta construção discursiva
realizada por Veja para dirigir e indicar caminhos aos
grupos guerrilheiros é a matéria intitulada “A caçada”
onde Veja apresentou a mobilização policial pela procura
do líder guerrilheiro Carlos Marighella. “Copacabana,
agora ocupada por mais de 2 mil policiais à sua
procura”.22 Veja parece construir uma identidade amena
para Marighella, o que caracteriza a constante
ambigüidade presente na revista:
Não muitos dias depois, começava a caçada
nacional ao homem robusto de pele morena e
cabelo claro já grisalho, que diariamente
tomava três horas de banho de sol e mar, comia
cachorro-quente nas praias cariocas e
conversava com as crianças (Grifos meus)23.
Marighella foi apresentado por Veja como sendo
um “comunista exemplar”. É interessante notar a
construção da matéria e os adjetivos que Veja utilizou
para designar o guerrilheiro. A matéria é constituída de
três páginas: a primeira consiste em apresentar a
mobilização policial, a segunda, fala-se sobre as ações
realizadas pelos guerrilheiros. É neste momento que Veja
iniciou sua “sessão” de elogios a Marighella, o que gera
uma certa confusão na cabeça do leitor desprevenido.
Utilizando-se de citações de diferentes pessoas, Veja foi
descrevendo Marighella: “dirigente discreto e eficiente;
um comunista exemplar; orador; mulato louro atrevido;
muito combativo e falava bem; 195 discursos em menos
de dois anos; um dos secretários mais eficientes; Dom
Quixote...”.24 Observamos que a revista construiu uma
20
Veja. As seis perguntas do terror. Op. Cit. Pgs.16-21.
Idem.
22
Veja. A caçada. O General França comanda milhares de
policiais que em todo País estão à procura do líder comunista
Marighela. Ed.11 – 20/11/68. Pgs.15-17.
23
Idem.
24
Idem.
identidade exemplar para Marighella. Além disso, para a
revista, toda essa “caçada policial vem dar (...) o
prestígio que trinta anos de trabalho político nas fábricas
e nos campos nunca lhe deram”.25 Ou seja, Veja parece
estar falando aos militares para que estes reconheçam que
toda essa mobilização policial foi favorável ao líder
guerrilheiro, pois proporcionou um aumento na
reputação de Marighella.
Porém, é em meados da terceira página, quando
“Marighella saiu dos salões brilhantes da Câmara para
os quartos escuros das reuniões clandestinas”26, que toda
essa descrição “heróica” de Marighella modifica-se
drasticamente. A partir desse momento, a “biografia” do
guerrilheiro ganhou um novo sentido: “stalinista
brasileiro; inteiramente frio, duro, obstinado; pitoresco
na linguagem; perigoso subversivo; patriota com
métodos errados (...)”27, ou seja, para Veja, Marighella
poderia ter sido um brilhante político de esquerda, desde
que não entrasse para a clandestinidade. A partir do
momento em que Marighella tornou-se um guerrilheiro,
todos os pontos positivos do antigo deputado
desapareceram para dar lugar a uma figura fria e
inconseqüente, do líder guerrilheiro.
Podemos perceber que Veja adotou a posição de
indicar o certo e o errado, o bem e o mal. Marighella foi
transformado em herói por sua trajetória militante,
porém, por escolher “os quartos escuros das reuniões
clandestinas”, e tomar atitudes que vão de encontro com
a ordem zelada por Veja, Marighella acabou
transformando-se em bandido e, portanto, motivo de
repulsa pela revista.
O exemplo de Marighella pode ser estendido
também a outros guerrilheiros. Os guerrilheiros teriam a
opção de se adaptarem às condições impostas para se
enquadrarem no padrão “herói” de Veja, caso contrário,
continuariam a ser considerados “bandidos terroristas”,
caracterizados pela revista. A ordem é adequação, e
somente a partir desse enquadramento que os militantes
de esquerda, poderiam “merecer” os elogios de Veja.
Grande parte das ações praticadas pelos
guerrilheiros visavam a obtenção de fundos para o
levante das guerrilhas. Entretanto, como percebemos,
Veja procurou distorcer essa prática constantemente. E,
nada melhor que supor a possibilidade do dinheiro estar
sendo desviado para causas particulares, para completar
essa espetacularização.
Em diversas situações Veja ironizou a prática dos
guerrilheiros em praticar assaltos e arrecadar fundos para
a efetivação da guerrilha rural. A revista fez contestações
a essas atitudes, insinuando que o fruto dessas ações seria
em benefício de causas particulares, apresentando os
guerrilheiros como “elementos que se
profissionalizaram, ganham para fazer a revolução”28 e
não como sendo ações cujo resultado seria em prol dos
21
25
Idem.
Idem.
27
Idem.
28
Veja. Entrevista: General Meira Mattos. “O Brasil esta em
guerra”. Ed.56 – 01/10/69. Pgs.03-06.
26
48 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972)
interesses dos grupos guerrilheiros. A revista insinuou
que os líderes guerrilheiros estariam “desviando” o
dinheiro obtido nas ações revolucionárias. Para
“enriquecer” essas insinuações, Veja fez associações com
outras lideranças esquerdistas que estariam, assim como
os guerrilheiros, beneficiando-se com as “práticas
revolucionárias”: “Brizola recebeu muito dinheiro
destinado ao movimento; mas só enviou 8000 cruzeiros
novos para os guerrilheiros”.29
vez a revista procurou criar o consenso nos leitores de que
o dinheiro arrecadado nos assaltos era direcionado para
causas pessoais. Veja levantou suspeita sem apresentar
nenhuma prova. Entretanto, conseguiu criar um discurso
indutor, de maneira a acentuar a repulsa da população aos
guerrilheiros, agindo no sentido de fazer com que a
população tenha pelos grupos de guerrilhas o mesmo
sentimento dos assaltantes comuns, de repulsa e
necessidade de combate.
Na já citada reportagem de 20/11/1968, Veja
apresentou a fala de um guerrilheiro foragido (Paulo
César) alegando que o dinheiro obtido nos assaltos
poderia ser para causas não revolucionárias: “Marighella
disse que o dinheiro era para o movimento, mas não
posso garantir que ele não vá usá-lo para outras
coisas”30 (Grifos meus). O único dado apresentado pela
revista sobre o “guerrilheiro arrependido” é o de que o
mesmo era estudante. Percebemos um vazio nessa
“informação” prestada por Veja. A revista não abordou à
qual grupo o foragido pertencia, e nem apresentou provas
reais de que ele era mesmo um militante guerrilheiro.31
Além disso, para confirmar que a declaração do jovem
não fora obtida sob tortura, Veja colocou que o mesmo
havia mostrado partes do seu corpo para provar que não
havia sido torturado.
As primeiras matérias realizadas por Veja sobre
os grupos guerrilheiros demonstraram a preocupação da
revista em relação ao alegado “inimigo” que se
fortaleceria no Brasil. Ao referir-se à polícia, Veja
procurou demonstrar o que considerava acomodação da
repressão: “Até agora o Governo Federal não tem
combatido diretamente o terror, por considerar que se
trata de atos isolados, de competência dos governos
estaduais”.35 Com o fortalecimento das ações da
esquerda armada, Veja arriscou-se a afirmar que “a
ineficiência da repressão é que leva a crer na
possibilidade de aumento das ações das esquerdas
subversivas”.36 A revista foi alertando os militares para
que estes ampliem os mecanismos de coerção e repressão
aos guerrilheiros.
Em 14/04/71, quando Veja procurou caracterizar
o fim dos guerrilheiros, uma das maneiras utilizadas para
demonstrar o declínio “desesperador” pelo qual
passavam os grupos de guerrilhas, mais uma vez, foi a
associação da realização dos assaltos à manutenção das
despesas pessoais:
Os terroristas remanescentes estão de tal forma
desarticulados que suas ações devem ser
comparadas às de bandidos comuns. A única
finalidade de um assalto é repartir o
dinheiro obtido entre os membros do grupo:
o que não garante a sobrevivência de um
movimento político, mas pelo menos ajuda
nas despesas pessoais (Grifos meus).32
Como se pode perceber, a ironia de Veja está
presente na maioria das matérias realizadas pela revista.
Apesar de Veja consentir que “nem todos os assaltos
sejam políticos e que há muito ladrão comum agindo
por aí” 3 3 , a revista continua insistindo na
“profissionalização” dos revolucionários em praticar
expropriações como forma de enriquecimento pessoal:
“nem a presença de extremistas assegura que todo o
dinheiro roubado vá para a subversão” (General Sílvio
Correia de Andrade).34 Através do oficialismo, mais uma
29
Veja. O terror de rosto descoberto. Ed.48 – 06/08/69. Pgs.16-18.
Veja. A caçada. Op. Cit. Pgs.15-17.
31
Para maiores discussões sobre os “militantes arrependidos” ver o
trabalho de: GASPAROTTO. Alessandra. A síndrome da traição:
Apontamentos sobre a figura do “traidor” nas organizações de
combate à ditadura brasileira. IN: SILVA, Carla Luciana; CALIL,
Gilberto Grassi & KOLING, Paulo José (Orgs.). Estado e Poder:
abordagens e perspectivas. Cascavel: Edunioeste, 2009. p.167-190.
32
Veja. Subversão. O roubo pelo roubo. Ed.136 – 14/04/71. P. 20.
30
33
Veja. Ele assalta em nome do terror. Ed.37 – 21/05/1969. Pgs.18-21.
34
Idem.
Através da estratégia de culpar os próprios
guerrilheiros pelo aumento da repressão, Veja utilizou-se
de argumentos que justificavam as ações violentas dos
militares contra os grupos de guerrilhas. Segundo a
revista, “para enfrentar o terrorismo, é preciso um
terrorista”.37 E dessa maneira Veja relacionou a prática
policial de violência e destruição aos ideais dos
guerrilheiros, colocando a população a associar as
práticas depredatórias dos militares às práticas
revolucionárias dos guerrilheiros.
Dessa maneira Veja alertou os militares para o
combate eficaz aos guerrilheiros e abarcou justificativas
para que os policiais pudessem exercer seu “serviço” sem
preocupar-se com a “opinião pública” já que, segundo a
revista, a culpa é dos próprios grupos de luta armada: “No
Brasil o terrorismo provocou a reação policial”.38 Veja
naturalizou a repressão e reuniu elementos para
conquistar a população em favor dos militares.
O fim das guerrilhas foi um assunto
pedagogicamente retratado por Veja. Mesmo no período
em que as ações armadas atingiam seu ápice, a revista
apresentou frases de oficiais anunciando um fim
próximo. “Um combate que se aproxima do fim, segundo
os oficiais integrantes dos órgãos federais de
segurança”.39 O constante anúncio de aniquilação dos
movimentos de guerrilhas poderia deixar os demais
grupos temerosos e apreensivos em continuar a luta
armada, já que a continuidade da luta levaria, como
afirmava a revista, à autodestruição.
35
Veja. Terror e reação. Op. Cit. Pgs.15-19.
Veja. SUBVERSÃO. Mais eficiência na luta contra o terror.
Ed.24 – 19/02/1969. p. 16.
37
Veja. As seis perguntas do terror. Op. Cit. Pgs.16-21.
38
Idem.
39
Veja. O terror de rosto descoberto. Ed.48 – 06/08/1969. Pgs.16-18.
36
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (44-50) - 49
Veja procurou criar consenso, desde as primeiras
matérias realizadas sobre os grupos guerrilheiros, de que
estes jamais obteriam sucesso, que já estavam
praticamente acabados. O fim das guerrilhas foi apontado
f r e q ü e n t e m e n t e , s e n d o q u e Ve j a p r o c u r o u
constantemente trazer citações de oficiais envolvidos na
“caça” aos guerrilheiros, para que estes “relatassem” o
cerco que se fechava cada vez mais em torno dos grupos
de luta armada. Além disso, a revista apresentou apenas
dados que confirmavam esse propósito, deixando de
mencionar sobre eventuais ações que poderiam estar
sendo praticadas pelos guerrilheiros.
Em relação à morte de Marighella, a qual a
revista dedicou uma matéria de capa para trabalhar com o
tema, não nos aprofundaremos aqui. Ressaltamos apenas
que com a morte do principal líder, Veja tinha ainda mais
argumentos para comprovar que os grupos de guerrilhas
se aproximavam do fim.44
Por fim, na matéria intitulada “A política e a
subversão”, a revista deu o “tiro final” sobre os grupos
guerrilheiros. Nela Veja anunciou uma nova
caracterização da esquerda armada: uma esquerda que
“ao invés de armas, tem a pretensão de deflagrar
idéias”. Segundo Veja:
Uma característica bastante interessante é a
seqüência de manchetes de Veja, com titulações que
representam o fim das guerrilhas.
Data
22/10/1969
29/10/1969
05/11/1969
12/11/1969
04/02/1970
04/03/1970
16/12/1970
Edição
59
60
61
62
74
78
119
Título
O terror está cercado
O terror sem saídas
O terror sem fôlego
Estratégia para matar o terror
Os rachas do terror
A última batalha
O terror desafiado
Tabela - Matérias de Veja declarando o fim das guerrilhas
A revista realizou constantemente especulações a
respeito da efetivação da guerrilha rural. Isso ficou mais
presente, porém, no final de 1969. Os grupos estavam se
desmantelando, discutia-se a continuidade da luta. O
Exército recebia treinamentos para combater a guerrilha
campesina (como o GOE – Grupo de Operações
Especiais). Tentativas haviam sido desastrosas. Veja,
porém, insistiu em incitar os guerrilheiros à guerrilha
campesina. Na matéria de 20/8/69, intitulada “Um
desafio a Marighella”, a revista apresentou o desafio do
Coronel do Exército Antonio Erasmo Dias, a Marighella
– “líder de um grupo de subversivos, assaltantes e
terroristas candidatos a guerrilheiros”40 (Grifos meus)
–, para que este deflagrasse o foco guerrilheiro no campo.
Veja apresentou inúmeros insultos realizados pelo
Coronel e terminou a reportagem transmitindo sua
conclusão sobre o assunto: “No fim de semana,
continuava no Rio a caça aos subversivos. Que na
verdade não são guerrilheiros dispostos a lutar no campo
– mas assaltantes de bancos, encurralados”.41
As diminuições das atividades “terroristas” são
indícios para alguns policiais, segundo a revista, de que
“os terroristas estão realmente no fim, agonizantes,
desorganizados”42, porém, e essa pareceu ser a hipótese
de Veja, “Outros policiais, porém, pensam que a
interrupção tem uma segunda causa, igualmente
desfavorável para os terroristas. Acreditam que os
terroristas já estão no campo, preparando-se para
iniciar a fase das guerrilhas e – segundo os policiais –
serão derrotados rapidamente” (Grifos meus).43
40
Veja. TERROR. Um desafio a Marighella. Ed.50 – 20/08/1969.
Pgs.19-20.
41
Idem.
42
Veja. O terror sem saídas. Ed.60 – 29/10/1969. p. 40.
43
Idem.
Segundo uma fonte militar, embora os
atentados isolados e esparsos continuem,
espera-se que o movimento subversivo adote
uma nova estratégia. Combalido nas suas
ações terroristas, poderia voltar-se agora para
atividades clandestinas de infiltração,
aliciamento e proselitismo. A subversão,
segundo aquela fonte, ao invés de armas, tem a
pretensão de passar a deflagrar idéias.45
Para fazer essa afirmação, Veja baseou-se em um
relatório elaborado por órgãos de segurança, que se
referia a um “balanço das atividades subversivas”.46 As
autoridades afirmariam nesse relatório, tendo como base
um documento apreendido, a ocorrência de “uma
unificação política e ideológica das organizações
terroristas visando à formação de 'um partido novo,
correto e poderoso'”.47 Esse novo grupo se denominaria
Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil, e seria
oriundo da antiga Ação Popular. Apesar de, no início, a
APML ser uma organização voltada para a luta armada,
em meados de 1970, segundo Esther Kuperman, a APML
manifestava “uma nova preocupação: a necessidade de
construir um partido legalizado, que viesse a ser fator de
aglutinação das forças políticas que possuíssem o mesmo
referencial de lutas e uma identidade ideológica”.48 A
APML adotou como base de sua estratégia a formação de
um partido operário, e após muitas cisões e crises, viria a
se integrar no Partido dos Trabalhadores (PT).
Apesar de as “idéias” poderem ser também fator
de perigo e de “subversão”, Veja tinha agora uma
“alternativa” para os opositores do governo: um partido
que contestasse, mas que realizasse essa contestação de
maneira pacífica. Dessa maneira, Veja estaria tentando
garantir seu papel de “orientadora” dos grupos sociais,
adequando-os aos interesses da revista.
44
Neste sentido há um texto publicado: RAUTENBERG, Edina.
Veja e a morte de Marighella: moldando discursos em busca de
hegemonia. IN: Anais do I Simpósio de Pesquisa Estado e Poder.
Linha de Pesquisa Estado e Poder – Cascavel: EDUNIOESTE,
2007. Pgs.89-98.
45
Veja. A política e a subversão. Ed. 160 – 29/09/71. Pgs. 20-21.
46
Idem.
47
Idem.
48
KUPERMAN, Esther. Da Cruz à Estrela: A Trajetória da Ação
Popular Marxista – Leninista. Revista Espaço Acadêmico –
A n o I I I , n º 2 5 – J u n h o d e 2 0 0 3 .
http://www.espacoacademico.com.br/025/25ckuperman.htm
50 - A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972)
Enfim, com esta análise podemos verificar as
diferentes maneiras utilizadas por Veja para criar uma
imagem negativa dos grupos guerrilheiros. Através da
análise do discurso de Veja durante o período em questão,
podemos perceber as formas com que a revista realizou
seu discurso dirigido aos diferentes segmentos da
sociedade, apontando o que diz ser os “erros cometidos” e
“ensinando” caminhos a serem seguidos.
Pedagogicamente, Veja procurou educar os militares a
combaterem o “terrorismo” de forma eficaz demonstrou
aos guerrilheiros suas “falhas” e indicou-lhes medidas a
serem tomadas para obterem êxito. Além disso,
estimulou a população a perceber em suas páginas o
perigo e a inconseqüência que, segundo a revista,
representavam as guerrilhas.
Veja defendeu medidas coercitivas aos grupos
guerrilheiros. Organizou através de sua prática
pedagógica, indicando caminhos, naturalizando os
acontecimentos, justificando medidas contraditórias,
enfim, Veja pode ter contribuído para a decadência dos
grupos de guerrilhas ao naturalizar a repressão e culpar os
próprios guerrilheiros pelo seu fracasso. Colocando-se
como “portadora da verdade” e através de artifícios de
“neutralidade” Veja conseguiu impor sua visão como
sendo a informação, criando uma realidade que atendesse
às expectativas, como nos parece ter sido demonstrado.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (51-56) - 51
As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis:
controle na Tríplice Fronteira
Jussaramar da Silva1
E
ste artigo trata de um dos aspectos vistos na
documentação que elencamos em nossa pesquisa acerca
das Assessorias Especiais de Segurança e Informações
(AESI's) da Itaipu Binacional.2
As AESI's compunham no Brasil a comunidade
de informações, diretamente subordinadas ao Serviço
Nacional de Informações (SNI), mas também possuíam
vínculos com Ministérios, cada uma de acordo com o
setor a que estavam subordinadas.
Instituições públicas, universidades, empresas
públicas possuíam Assessorias. Recentes levantamentos
nos arquivos vêem demonstrando que elas compunham a
malha burocrática do Estado, encastelando-se em
instituições. Ao que temos notícias, existia uma AESI
para cada um desses órgãos, podendo haver uma regional
recebendo as informações das demais, como explica
Motta.3
No caso da Itaipu, salta aos olhos a discrepância
nessa organização. Ela possuiu mais de uma Assessoria,
pois tinha escritórios regionais, funcionando
conjuntamente com escritórios da empresa, onde estavam
os agentes de informações. Mas, além disso, ela adentrou
a malha de informações do Paraguai. Assim, havia AESI's
da Itaipu no Brasil, subordinada ao SNI e AESI's Itaipu no
Paraguai, subordinadas aos órgãos de informações desse
país, pois se tratava de um condomínio de energia elétrica
com o país vizinho. E pior, parte da documentação por
nós pesquisada demonstra que também lá havia uma
AESI em Assunção que era vinculada ao SNI no Brasil.
Nosso trabalho pretende demonstrar que a
vigilância se estendeu a todos os divergentes com as
ditaduras militares, em especial a classe trabalhadora,
1
Mestre em História pela PUCSP. Integrante do Centro de Estudos
de História da América Latina (CEHAL). E-mail:
[email protected]. Texto integrante das reflexões contidas
na dissertação: A Usina de Itaipu e a Operação Condor: o outro
lado das relações bilaterais Brasil – Paraguai (1973-1988), sob
orientação da Profª Drª Vera Lucia Vieira.
2
Nossa pesquisa teve como centro as Assessorias Especiais de
Segurança e Informações da Itaipu Binacional. Sua ação
perpassou não apenas a vinculação com a comunidade de
informações do Brasil, mas também Paraguai, e em menor volume
de documentos com a Argentina e o Chile. Para essa pesquisa,
lançamos mão do acervo DOPS Paraná, fundo Assessoria Especial
de Segurança e Informações da Itaipu, Arquivo do Horror, Arquivo
Nacional e documentos gentilmente cedidos e/ou encaminhados
por Aluizio Palmar, Martín Almada e Rodrigo Patto Sá Motta
3
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Incômoda Memória: os arquivos das
ASI Universitárias”. Acervo: Revista do Arquivo Nacional. Rio de
Janeiro, 2008, p. 43-65.
mas nesse artigo em particular, trataremos da vigilância e
controle de civis, efetuadas pelas AESI's em conjunto
com os demais órgãos de informações da região e que se
estenderam ao período da “abertura” no caso brasileiro.
Nesses documentos, percebemos os meandros da
circulação de informações em torno de civis ou entidades
da sociedade civil, que passaram pelo crivo da
observação das AESI's de Itaipu, e estas se incumbiram
de espionar e emitir relatórios, informes etc., o que
ultrapassou inclusive o período do fim da Ditadura
Brasileira.
Trata-se da evidência da continuidade do
controle sobre a sociedade civil, nos mesmos moldes
vigentes no período ditatorial brasileiro e que encontrava
respaldo, como seria lógico acontecer, no
prosseguimento da ditadura paraguaia. O simples fato de
se organizar, discutir problemas que pudessem afligir um
grupo de pessoas ou uma nação como um todo, era
motivo de relatórios constantes, trocas de informações e
organizações de processos que poderiam servir de base
para algum procedimento judicial. Assim, as eleições
para prefeito em cidades da fronteira, a luta pela
revogação da Lei de Segurança Nacional, os civis de
maneira geral, que fossem considerados “subversivos”,
jornais e jornalistas, e mesmo parlamentares,
compunham o rol de acompanhamentos sistemáticos das
AESI's.4
As famílias de perseguidos políticos pelas
ditaduras também não estiveram isentas da observação.
Ressalta-se que as famílias vigiadas foram aquelas que
possuíam algum membro entrando na justiça exigindo
reparações por perseguições, desaparecimentos
forçados, aprisionamentos, ou torturas, infringidas contra
algum familiar ou a ele mesmo. Como no Paraguai não
havia ainda a abertura política, tal desígnio é relativo
apenas ao Brasil, mas não exclusivamente a brasileiros.
Aqui, a abertura dera-se, naqueles idos de 1985, apenas
no cenário político estrito senso, ou seja, apenas pela
reabertura do Congresso, pela re-implementação do
sistema eleitoral que se abria à participação política mais
4
Pelo teor dos documentos, podemos concretamente afirmar que a
trama interna de espionagem e informações no Brasil foi
devastadora. Obviamente não nos propusemos a desnudá-la, e
seria uma tarefa um tanto pretensiosa, mas nesse caso em
particular, nossas reflexões trazem alguns elementos para
pensarmos como é necessário desenvolver mais pesquisas nesse
sentido. Ao que parece, nada passou despercebido. E ao mesmo
tempo, o número de agentes da repressão era muito maior do que se
supunha, ao levar em consideração os demais órgãos já estudados
da Ditadura brasileira.
52 - As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira
ampla da sociedade civil e a retomada da autonomia do
judiciário. Um judiciário, que sofrera vários expurgos dos
não alinhados com a ditadura, iniciados já em 1965 e que
continuaram pelos 20 anos seguintes. Na estrutura
governamental o arcabouço repressivo continuaria a
funcionar até a sua extinção em 1990 e manterá intactas
as suas funções, seus agentes, sua lógica de
funcionamento.
Neste contexto, o fato de entrar na justiça contra a
violência e arbitrariedades cometidas nos anos anteriores
pelo Estado, já os caracterizava como oposicionistas –
das ditaduras – e, portanto, suspeitos de subversão.
Naquele momento de transição, sabedores da
continuidade do funcionamento do sistema repressivo, os
perseguidos e os familiares atingidos, direta ou
indiretamente, em busca de reparações ou mesmo de
pessoas desaparecidas, optaram por ações conjuntas, pois
isto lhes dava maior força argumentativa perante a justiça
e também lhes permitia a construção de uma espécie de
rede de proteção. Eram em tais reuniões que se
encontravam agentes infiltrados, ou simples delatores,
por vezes, conforme se deduz, conhecidos dos familiares
ou amigos das vítimas. Foi o aconteceu, por exemplo,
com o encontro ocorrido em Foz do Iguaçu.5 O agente
infiltrado registrou a discussão entre amigos. Consta,
segundo o relato do informante, que vários casais, ao que
parece, bem próximos devido à sua situação de
perseguidos da ditadura Stroessner, se encontraram na
casa de um deles. Neste registro, a divergência entre os
integrantes do grupo apareceu, pois o documento não
relatou o motivo da discussão, quando um dos
convidados chamou o outro de stronista.6 Embora não
haja detalhamento de toda a reunião familiar, como o
próprio documento a considera, chamou a atenção do
infiltrado, o fato de que um deles ofendeu o outro. O
destaque aparece no documento.
Se tal acontecia do lado brasileiro, o que não
dizer do lado paraguaio, onde a ditadura teve
continuidade até 1989? O que não seria “normal” é o lado
brasileiro continuar a dar informações para a repressão
paraguaia. Tal relação continuou incluindo civis dos mais
diferentes matizes, o que deu margem para que os agentes
fizessem associações cuja lógica interna fica, muitas
vezes difícil de objetivar. Assim, por exemplo, tomemos
o caso da relação que tais personagens fizeram entre um
ex-militar paraguaio e seu amigo brasileiro, plantador de
grande porte.
Conforme o documento relata, este militar havia
sido combatente, ao lado de Stroessner, na Guerra do
Chaco contra a Bolívia, ocorrida entre 1932 e 1935. Essa
guerra teve como um de seus heróis o próprio Alfredo
Stroessner, que ganhou como prêmio, pela sua “bravura”,
a possibilidade de fazer cursos no Brasil. Anos depois,
quando o golpe stronista já havia sido desferido, um
5
Informe nº 002/75. Acervo Arquivo do Horror, 28/04/1975.
Origem: AESI Itaipu Paraguai (documento em espanhol). Difusão:
Comando em Chefe.
6
Stronista, no jargão usado pelos divergentes da época seriam os
afeitos à política desempenhada pela Ditadura de Alfredo
Stroessner no Paraguai.
opositor que integrava as forças armadas paraguaias,
ocupando o cargo de tenente, foi para a reserva,
transformando-se, segundo os agentes do governo, em
ex-combatente. Nesta condição passou a ser vigiado e foi
classificado como um “liberal de esquerda”7, de grande
periculosidade porque era “conhecido como homem de
ação”, capaz de realizar treinamentos de guerrilheiros.8 O
risco que este homem representava era de que continuava
freqüentando o Country Club de Foz do Iguaçu, ter
amigos influentes e como proprietário de terras,
empregar várias pessoas.9 Tal fato mereceu ser destacado
pelo informante, o que leva o leitor a algumas
especulações no sentido de entender a lógica de tal
destaque: seria o risco do contato com trabalhadores e a
suspeição de treinamento de guerrilheiros na propriedade
do fazendeiro? Há aqui uma evidência de que nem
mesmo o liberalismo era permitido nessa relação de
desenvolvimento hiper-tardio do capitalismo no
Paraguai, como também ocorrera no Brasil. Tal lógica
nos remete às reflexões de Chasin sobre os países que não
tiveram o processo de desenvolvimento clássico. Diz ele,
A nossa burguesia, para quem o liberalismo
econômico (a livre troca para sustentar e
ampliar sua própria natureza exploradora,
através da associação crescente com a
exploração hegemônica e universalizante do
capital externo) foi sempre apropriado e
conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia
ter aspirado a ser democrática, tem no
politicismo sua forma natural de
procedimento. Politicista e politicizante, a
burguesia brasileira, de extração pela via
colonial, tem na forma da sua irrealização
econômica (ela não se efetiva, de fato, por
inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas
de classe) a determinante de seu politicismo. E
este integra, pelo nível do político, sua
incompletude geral de classe. Incompletude
histórica de classe que a afasta, ao mesmo
tempo, de uma solução orgânica e autônoma
para a sua acumulação capitalista, e das
equações democrático-institucionais, que lhe
são genericamente estranhas e estruturalmente
insuportáveis, na forma de um regime
minimamente coerente e estável.10
Por fim, o documento não traz, conforme se
observa em outros do mesmo tipo, dados que
“comprovassem” as acusações de associação do excombatente com a guerrilha. É possível que fosse uma
informação conseguida de forma aleatória, não havendo
comprovação empírica, já que cada documento que
tivesse qualquer informação sobre o caso, a
complementava, destinava a muitos órgãos e tomava
7
Não nos é possível saber a que exatamente se refere à associação
feita pelo agente entre liberal com esquerda.
8
Informe nº 002/78. Acervo Arquivo do Horror, 31/01/1978.
Origem: AESI Itaipu Paraguai. Difusão: Diretor Geral Adjunto e
Ministro do Interior.
9
Idem, ibidem.
10
CHASIN, José. A miséria brasileira: 1964-1994 – do golpe
militar à crise social. Santo André: Ad Hominen, 2000, p. 124.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (51-56) - 53
providências, o que não ocorre nessa situação.
A delação era comum no Paraguai, e permeava a
sociedade, que em seu processo de exclusão social, faziaa em troca de obter determinados benefícios: passagens
gratuitas nos ônibus, entradas em estádios de futebol etc.11
Numa sociedade em que o Estado suplantava as
garantias, sobravam as migalhas da “mesa” da burguesia
que orbitava em torno de Stroessner. No processo de
desenvolvimento hiper-tardio do capitalismo que se
configurou em toda a América Latina, não é difícil
conceber que aos trabalhadores no Paraguai, não
restavam muitas alternativas de sobrevivência. Até
porque, iniciado o governo Stroessner, muitos privilégios
foram dados à burguesia que se formava em seu entorno,
constituída inclusive de brasileiros que adquiriram terras
no Paraguai. Obviamente, trata-se daqueles que
conseguiram grandes porções de terras, e não dos
pequenos agricultores principalmente do Sul do Brasil,
que em más condições de sobrevivência aqui, acabaram
migrando para lá.
Todavia, nesse processo de privilégio que
solapava as riquezas da nação guarani com a extração da
madeira, ou mesmo com a plantação de soja, aos
segmentos da população excluídos do acesso à produção
social e impossibilitados de se manifestar, vêm na
delação algumas vantagens: tornam-se assim sóplons, ou
mais popularmente, pyragüés.12
O Jornal Nosso Tempo e seus editores
Numa rápida pesquisa às pastas do Acervo DOPS
Paraná, percebemos que os órgãos de informações,
especialmente o próprio DOPS acompanhava todo o
noticiário, recortava suas matérias e assim, tudo o que
saia na imprensa da época e que fosse de interesse dos
agentes de informações foi arquivado.13
No caso do Jornal Nosso Tempo, que
costumeiramente tecia críticas aos projetos da ditadura,
privilegiando nesse caso a Binacional, visto que o mesmo
também era de Foz do Iguaçu, enquadrava-se dentre os
jornais que sofriam perseguição. Embora o jornal não
tenha sofrido censura, pois fora criado em 1980, sofreu
toda a sorte de perseguições possíveis. Assim,
Notamos nesse caso, que a censura em relação ao
Jornal, se deu em forma de perseguição. Assim, as AESI's
cumpriram a função de recolher informações acerca dos
principais noticiários, reunindo provas que subsidiaram a
organização de processos judiciais contra os donos dos
vespertinos, acusados de desrespeitarem a citada Lei e as
encaminharem, não apenas aos tribunais de justiça da
região, como também ao SNI. Conforme entrevista do
advogado e procurador geral da justiça de Foz de Iguaçu,
Antônio Vanderli Moreira,
Corria o ano de 1981 e Foz do Iguaçu, área de
segurança nacional, ainda vivia o clima tenso
do terror da ditadura. Alguns profissionais de
imprensa ousavam agir com independência,
mas sofriam de imediato a perseguição
política. Antes alguns pequenos jornais
independentes surgiram, mas aguentaram
pouco tempo.15
O jornalista Aluizio Palmar foi um de seus
dirigentes, juntamente com Juvêncio Mazzarollo, e João
Adelino de Souza. Palmar, ao buscar documentação
referente a si próprio nos órgãos de informações,
deparou-se com um acompanhamento sistemático do
Jornal que dirigia. Neste sentido encontrou os informes
das AESI's que subsidiaram as denúncias acolhidas pelo
Ministério Público Militar que os processou por
desrespeito à Lei de Segurança Nacional.16 Tal processo
se originou de um inquérito policial na Polícia Federal
apurando “responsabilidade quanto à veiculação de
artigos considerados ofensivos às Forças Armadas e
autoridades constituídas, figurando como indiciados os
pseudo jornalistas acima referidos”.17 Note-se a alegação
de que os artigos foram ofensivos e que os três eram
pseudo jornalistas, numa completa desqualificação do
trabalho dos profissionais, dadas as críticas que fizeram
às Forças Armadas à época. O clima de perseguição que
reinava naquele período envolvia toda a sociedade,
conforme atesta o citado advogado na mesma entrevista.
Referindo aos procedimentos repressivos que se
abateram sobre o tablóide, rememora que, logo nas
primeiras edições do jornal, conforme citação acima.
Como o hebdomadário continuava em
atividade, apertaram o cerco. A Delegacia
Regional do Trabalho, por ordem do General
Massa, instaurou procedimento e o Delegado
de Polícia Federal De Faveri baixou a portaria
nº 202/81/DPF/FI, dando início a Inquérito
Policial contra as pessoas que centralizavam as
ações do jornal "Nosso Tempo". Eram elas o
Juvêncio Mazzarollo, o João Adelino de
O peso do coturno do coronel interventor já se
fez sentir. O prefeito e seu grupo procuravam
de todas as maneiras sufocar o jornal para que
parasse de funcionar. Os comerciantes que
anunciavam eram ameaçados. Ao surgirem as
pressões, alguns retiram-se da sociedade.14
11
SANTOS, Márcia Guena dos. Operação Condor : Uma conexão
entre as polícias políticas do Cone Sul da América Latina, em
particular Brasil e Paraguai, durante a década de 70. São Paulo:
dissertação PROLAM/USP, 1998 – VOLUME I e II.
12
Sóplons e pyragüés são as expressões usadas na nação guarani
para designar o delator. A segunda expressão é em guarani, e a
primeira em espanhol, mas ambas possuem o mesmo significado.
Cf. SANTOS, op. cit.,.
13
Destacamos tal informação, pela riqueza de detalhes sobre as
circunstâncias da época, na região, que se encontra neste acervo e
que podem subsidiar muitas outras pesquisas.
14
Entrevista intitulada Percalços de nosso tempo. Revista Cabeza,
edição nº 12, julho de 2003. Site:
http://www.h2foz.com.br/modules/conteudo/conteudo.php?
conteudo=179. Acesso em: 20 nov. 2009.
15
Idem.
16
Informação nº E/AESI.G/IB/BR/056/(ilegível)81. Acervo
Aluizio Palmar. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI.
O documento explica ainda que fora enviado ao SNI mais dois
informes e uma informação entre abril e julho de 1981.
17
Idem, ibidem.
54 - As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira
Souza, o Aluízio e o Jessé. A acusação era de
exercício irregular da profissão, por não
possuírem registro de jornalista. Foram
incursos no artigo 47 da Lei de Contravenções
Penais. No dia 30 de setembro de 1981, às
14h30, os acusados e seu defensor
compareceram à então Divisão de Polícia
Federal para interrogatório. Lá ficaram durante
horas esperando pelo delegado, que não os
atendeu.18
Na seqüência de sua entrevista, o advogado relata
que o início do processo se deu sob a alegação de que eles
“foram dados como ausentes” porque não haviam
comparecido à Delegacia Regional do Trabalho, sendo os
autos encaminhados à Justiça Estadual porque o juiz
federal considerou "imprestável o procedimento
administrativo da DRT” que julgava os procedimentos do
município. Apesar da evidente nulidade do processo,
tanto pela
[...] revelia inexistente que importava em
cerceamento defesa, pela falta de apresentação
de réu preso (Juvêncio já estava preso por
ordem da Justiça Militar), verificando-se ainda
a prescrição [”], a juíza sentenciante, que pelo
menos em um outro processo já aceitara
intromissão dos donos do poder, condenou
Juvêncio, Aluízio, Adelino e Jessé a pagarem
multa por infração ao artigo 47 da Lei de
Contravenções Penais”. [...] Juvêncio ainda
respondeu processo sob acusação de infração à
Lei de Segurança Nacional, devido a um artigo
onde sugeria: "Tirado o poder dos ladrões,
corruptos, vendilhões da pátria e opressores, o
passo seguinte é implantar um sistema
institucional que garanta a construção de um
novo modelo social, político, econômico e
cultural”.19
Paralelamente os amigos e familiares de
Mazzarollo, em campanha por sua libertação, criaram um
comitê, também objeto de vigilância das AESI's.20 É pelo
registro dos agentes que se infiltraram na reunião que
temos notícias da organização, por exemplo, de ações de
mobilização que amigos e familiares dos acusados
empreenderam, como um ciclo de debates com o objetivo
de discutir a Lei de Segurança Nacional.
A discussão sobre a necessidade de se acabar com
a legislação repressiva toma corpo desde o final dos anos
de 1970, compondo as temáticas sobre o fim da ditadura,
no bojo do ressurgimento do movimento operário.21
18
Entrevista intitulada “Percalços de nosso tempo”. Revista
Cabeza, edição nº 12, julho de 2003. Site:
http://www.h2foz.com.br/modules/conteudo/conteudo.php?
conteudo=179. Acesso em: 20 nov. 2009.
19
Idem, ibidem.
20
Informe nº E/AESI.G/IB/BR/020/3237/83. Acervo Arquivo
Nacional, fundo SNI. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI.
Documento gentilmente enviado por Rodrigo Patto Sá Motta.
21
Sobre a função social de mobilização da sociedade que o
recrudescimento operário cumpre ver CHASIN, José. As máquinas
param, germina a democracia. São Paulo: Ed. Escrita, 1979.
Além da volta de exilados, o recrudescimento dos
movimentos populares começava a impor o fim do
processo ditatorial. Longe de ser uma benesse oferecida
pelos o militares, embora a transição tenha sido
negociada com as oposições22, o fato é que o fim da
ditadura era necessário, para inclusive não acontecer o
que ocorrerá alguns anos depois no Paraguai; um golpe
para destituir o ditador. Nesse processo de reorganização,
foram unificadas as lutas pelas liberdades.
A crescente mobilização social que se alastrava
pelo país, capitaneada pelo ressurgimento do movimento
operário23 na região onde se construía a Itaipu, o caso dos
jornalistas acima referido teve enorme repercussão,
particularmente a prisão de Juvencio Mazzarolo, o que
foi, como não poderia deixar de ser, devidamente
acompanhado pelos agentes das AESI's, como atesta, por
exemplo, o documento que traz a lista dos nomes de
pessoas envolvidas na mobilização, no interior da qual se
observa os destaques nos nomes de palestrantes. Reza
assim o referido relatório policial,
[...] o evento realizado em TOLEDO/PR
enquadra-se na campanha movida por setores
radicais oposicionistas, pela revogação da
LSN, confirmando-se, portanto, o ponto de
vista expresso no INFE da referência, de que a
repercussão em torno da condenação de
JUVENCIO MAZZAROLLO, materializada
em movimento em sua defesa, acima de tudo,
visa a servir de pretexto aos objetivos da
campanha contra a LSN. (maiúsculas do
original).24
Uma série de anexos contendo matérias que
saíram em outros jornais, inclusive com declarações dos
agentes de informações, atesta a repercussão que tal caso
teve na região. Na lógica repressiva, tratava-se de
“setores radicais oposicionistas”, o que demonstra haver
grande confusão entre o pessoal que colhia as
informações e as distribuía e as organizações da época.
Todavia, não devemos nos enganar em relação à
produção da documentação. Num dos documentos que
mais à frente analisaremos em relação às eleições,
veremos que os órgãos repressivos possuíam pessoas
altamente qualificadas para tratar as informações que
julgassem pertinentes.
Interessante é que a certeza de que agiam em
benefício da nação faz com que tais informantes não se
eximam, pelo menos na região, de falar publicamente de
suas ações, como se observa, ainda, no caso dos
jornalistas do Nosso Tempo. Em abril de 1983, foi
publicada uma nota no Jornal O Paraná, em que
Mazzarollo foi considerado um pseudo-mártir25, o que
também consta da documentação que compõe seu dossiê.
22
Cf. em: FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil:
ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 2006.
23
PRADES, M.; Rago, M. A. P. O arrocho treme nas bases do ABC.
Escrita Ensaio, ano IV, nº 7. São Paulo: Ed. Escrita.s/d.
24
Informe nº E/AESI.G/IB/BR/020/3237/83. Acervo Arquivo
Nacional, fundo SNI. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI.
25
Idem, ibidem
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (51-56) - 55
Mesmo já no momento de abertura, de
reorganização dos trabalhadores, de constituição de
comitês populares lutando pela Anistia, fim da carestia,
por melhores condições de vida e de salários, a presença
marcante dos agentes de informações, das ações de
controle do Estado brasileiro e paraguaio ainda poderia
ser sentida.
As eleições municipais e estaduais de 1982
na região de Foz, segundo as AESI's
As eleições que ocorreriam no ano de 1982 eram
importantes nos cálculos políticos do Estado ainda sob a
égide da espada. Eram dessas eleições que se mostrariam
ainda o poder da Ditadura, amparada pela votação do
Partido da Democracia Social (PDS) e qual era ainda o
seu nível de sustentação. Tais eleições se colocavam
como uma prévia do que os eleitores pensavam e as
tendências eleitorais para os pleitos subseqüentes, que
garantiram a permanência dos senadores biônicos
formadores do colégio eleitoral das eleições para a
Presidência da República. Para tanto,
Prosseguiram durante o ano de 1981 as
negociações da política de liberalização.
Eleições gerais seriam realizadas em 15 de
novembro de 1982. Todos os partidos
legalmente reconhecidos participariam com
candidatos a vereadores, prefeitos (exceto nas
capitais de estados e nos Municípios
considerados de interesse da segurança
nacional, onde as eleições permaneciam
indiretas), deputados estaduais, deputados
federais, senadores e governadores. As
eleições seriam livres, por sufrágio universal
direto e secreto. Eram consideradas as eleições
mais importantes na história brasileira recente,
com 55 milhões de eleitores escolhendo nas
urnas cerca de 400 mil candidatos a todos os
cargos.26
Embora Foz do Iguaçu e os municípios de
fronteira do Brasil estivessem ainda sob o dispositivo das
eleições indiretas, o processo eleitoral da localidade foi
observado sistematicamente. Como apontou Alves, não
se tratava de qualquer eleição, mas de um momento
crítico de sobrevivência da ditadura brasileira e sua
transição para a “democracia”, ou melhor, sua transição
transada, nas palavras de Fernandes, uma vez que o
processo se deu negociado pelas cúpulas, alijando os
setores sociais da discussão. Foz do Iguaçu e diversas
cidades nas proximidades de Itaipu passavam pelo
problema constante de haver prefeitos nomeados
envolvidos em corrupção, ao contrário do que é tão
propalado pelo senso comum de que no período da
ditadura militar não havia corrupção.
A situação eleitoral de 1982 na região da
fronteira, conforme ocorreu em todo o país foi
acompanhada cotidianamente pelos agentes do Estado e a
26
ALVES, M. H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984).
Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 332.
particularidade que tal documentação apresenta é a
profundidade das análises que diferem em muito dos
outros relatórios que muitas vezes são apenas dados sobre
as situações vigiadas, com destaques ticados e um ou
outro comentário acusativo carregado de jargões
policialescos. Segundo a avaliação constante em um
destes documentos analíticos produzidos por tais
agentes27, “as eleições em Foz seguiam o panorama
nacional com a presença das agremiações partidárias
nacionais, afora o fato de ainda haver nessa
microrregião a nomeação de prefeitos”.28 Pondera que tal
condição era motivo de controvérsias na “opinião
publica”, inclusive havendo indisposição de vereadores
com a administração local. Embora, provavelmente,
houvesse vereadores ligados aos militares ou a seu
partido de sustentação, reflete o autor, a nomeação
incomodava aos vereadores locais, como reflexos da
opinião pública. A preocupação, explicita ele, era com a
mobilização e a repercussão nacional deste
descontentamento, conforme já se enunciara na segunda
reunião do Simpósio Nacional dos Municípios e que
reunira os representantes de municípios caracterizados
pela Lei de Segurança Nacional como de segurança,
demonstrando que já começava a se organizar a
resistência ante a existência de municípios sem eleições
pela caracterização da Lei.
O panorama da Tríplice Fronteira ante ao
problema da nomeação dos prefeitos, demonstra haver
um acirramento de ânimos, pois a Itaipu, na pessoa de
Costa Cavalcanti, o seu então presidente, também
interferia diretamente na relação da escolha dos prefeitos
locais.29 Além de todo poderio como hidrelétrica, também
seus diretores e o presidente gozavam de grande
prestígio.
Cabe destacar que na possível sucessão de
Figueiredo por um militar, o nome que se cogitava era o
de Costa Cavalcanti. Uma vez que ele assumira um dos
principais projetos dos militares – além de ser um –
tornou-se um nome de confiança de setores da caserna.
Assim, “o Costa Cavalcanti, companheiro de turma de
Figueiredo, homem de notáveis virtudes, equilibrado,
tranqüilo e de passado brilhante em todos os governos
militares”30, nas palavras de Otávio Costa, foi um dos
homens que teve seu nome discutido por homens da
caserna, podendo ser indicado inclusive para a sucessão
presidencial e fazer valer sua vontade em relação às
nomeações.
Outrossim, o documento ora consultado revela
que o tema já vinha ganhando proporções consideradas
indesejáveis pela AESI, e que já há algum tempo
acompanhava o problema.
27
Informação Nº E/AESI.G/IB/BR/056/ ilegível/81. Acervo
Aluizio Palmar. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI.
28
Idem, ibidem.
2 9
C f . PA L M A R . D i s p o n í v e l e m :
<http://www.h2foz.com.br/modules /conteudo/conteudo.php?
conteudo=229>. Acesso em: 28 mar. 2010
30
D'ARAUJO, M. C; CASTRO, C; SOARES, G. A. D. A volta aos
quartéis. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, p. 123.
56 - As AESI's de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira
Assim, parte para uma análise do cenário
eleitoral e considera a entrada dos novos partidos nas
eleições, demonstrando haver um analista da Assessoria
com profundo conhecimento de balanços eleitorais, visto
a linguagem usada documento segue estabelecendo um
panorama das eleições no Estado do Paraná:31
O panorama político de FOZ DO IGUAÇU
não foge ao ambiente eleitoral do restante do
País, caracterizando-se, principalmente, pela
acomodação das correntes internas e
consolidação das novas agremiações
partidárias, tendo em vista as eleições previstas
para 82. (maiúsculas no original).32
Não se trata de um documento corriqueiro da
comunidade de informações, mas de um trabalho
bastante rebuscado, de quem sabia como o panorama
nacional se configurava, demonstrando que, ou haveria
homens dentro das AESI's com esse tipo de capacitação,
ou era encomendado a intelectuais que o fizessem. Em
qualquer caso, muito acostumados com um tipo de
linguagem policialesca da comunidade de informações, o
leitor pode se espantar com o rebuscamento, comumente
não encontrado nesta documentação. Que havia agentes
de informações com formação acadêmica é inconteste,
até porque integram a carreira de funcionários públicos,
militares ou não, para cujos cargos ou funções muitas
vezes se exige titulação universitária. Assim, por
exemplo, não causa espanto serem capazes de produzir
um livro como o intitulado ORVIL33, redigido por um
agente de informações que possuía graduação em
filosofia. Este apenas assumiu a responsabilidade da
redação por seus superiores reconhecerem sua
capacidade de análise das informações que compõem o
livro.34
Mas voltando ao balanço eleitoral, segundo
deduz o informante, no último trimestre as criticas à
Itaipu haviam diminuído. Segundo seu relato, isso se
relacionava com uma bem sucedida campanha
implementada pela “Assessoria de Relações Publicas da
entidade”.
Por fim, o atencioso informante acrescentou que
parlamentares de oposição teciam críticas ao projeto
Itaipu ou à direção da entidade com o objetivo de
“projeção de seus nomes através dos meios de
comunicação e obter dividendos políticos tendo em vista
futuros pleitos eleitorais”. Essa última frase apenas
corrobora o que anteriormente suspeitamos,
aprofundando nossas dúvidas e inserindo um ponto de
interrogação no papel cumprido pelo setor de Relações
Públicas de Itaipu. Muito além de cuidar da imagem
institucional, sua ação perpassava também uma
31
Informação Nº E/AESI.G/IB/BR/056/ ilegível/81. Acervo
Aluizio Palmar. Origem: AESI/IB/BR. Difusão: AC/SNI.
32
Idem, ibidem.
33
O projeto ORVIL (livro, ao contrário) surgiu em 1986, com o
objetivo de denunciar supostos crimes da esquerda brasileira.
Seria uma resposta ao Projeto Brasil Nunca Mais, levado adiante
pela Arquidiocese de São Paulo. Cf. SILVA, 2009, p. 158 e
seguintes.
34
Idem.
imbricada trama de espionagem, relacionando-se
diretamente com as AESI's, e quiçá com demais órgãos de
informações. Além disso, a documentação comprova que
essas AESI's perpassavam a trama de espionagem do
Brasil e do Paraguai, havendo indícios de que
participavam de atividades da Operação Condor.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 57
Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados
e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75)
Raquel Varela1
Q
“
uando os de cima já não podem…
No dia 25 de Abril de 1974 um golpe levado a
cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) põe
fim à ditadura portuguesa. De imediato, e contra o apelo
dos militares que dirigiram o golpe – que insistiam pela
rádio para as pessoas ficarem em casa –, milhares de
pessoas saíram de suas casas, e foi com as pessoas à porta,
a gritar “morte ao fascismo”, que no Quartel do Carmo,
em Lisboa, o Governo foi cercado; as portas das prisões
de Caxias e Peniche se abriram para saírem todos os
presos políticos; a PIDE, a polícia política, foi
desmantelada, atacada a sede do jornal do regime
A Época e a censura abolida.
A revolução foi a tradução na metrópole da
derrota da guerra colonial. A vitoriosa luta dos
movimentos de libertação das colónias portuguesas,
apoiados nas massas camponesas e populares desses
países, levou a que na Guiné o PAIGC (Partido Africano
para a Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado
por Amílcar Cabral, conseguisse declarar unilateralmente, ainda em 1973, a independência. Em
Moçambique e Angola o exército colonial português
sofria importantes derrotas. O arrastamento da guerra ao
longo de treze anos, sem vislumbre de qualquer solução
política no quadro do regime de Marcelo Caetano e a
iminência de derrota abriram a crise nas forças armadas,
coluna vertebral do Estado.2
Mas este factor de imediato coincide com a
espontânea entrada na cena política de milhões de
trabalhadores que viveram sob o jugo da ditadura mais
longa da Europa, 48 anos. A velha metáfora tão usada por
historiadores da revolução portuguesa aplica-se de facto:
os oficiais destaparam uma panela de pressão. Tais
acontecimentos tornar-se-ão, no entanto, ainda mais
explosivos quando combinados, por um lado, com uma
prolongada crise nacional que se reflectia não só na
impossibilidade de ganhar militarmente a guerra mas no
congelamento da mobilidade social (mais de 1 milhão e
meio de trabalhadores partem para trabalhar na Europa
Ocidental na década de 60), e por outro com o início da
crise cíclica de 1973, a maior crise de acumulação depois
do fim da II Guerra Mundial. Em 1974 a produção nos
Estados Unidos, economia reguladora do sistema
mundial, tinha caído 10,4% e o desemprego situava-se
1
Investigadora/Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa.
2
ROSAS, Fernando. Pensamento e Acção Política. Portugal
Século XX (1890-1976. Lisboa: Editorial Notícias, 2004, p. 136.
em 9%.3 Em Portugal, a taxa de variação do Produto
Interno Bruto passa de 11,2% em 1973 para 1,1% em
1974 e -4,3% em 1975.
A estes fatores objectivos, que são parte de um
processo de decadência nacional, junta-se o
protagonismo do movimento operário. A maioria dos
conflitos sociais da revolução portuguesa é
protagonizada pelo operariado (19% da conflitualidade
laboral dá-se na indústria têxtil, 15% na maquinaria e
fabricação de produtos metálicos, 9% na construção e
obras públicas, 7% na indústria química e alimentação),
em particular o operariado das grandes cinturas
industriais (Porto, Lisboa e Setúbal), com particular
destaque para Lisboa, distrito no qual ocorrem 43% dos
conflitos laborais.4 Portanto, trata-se de conflitos que
ocorrem maioritariamente no sector que produz valor
directamente, de uma classe operária relativamente
jovem (a grande migração do campo para a cidade dá-se a
partir do início dos anos de 1960) e concentrada
geograficamente em torno da grande Lisboa, capital
macrocéfala do País.
Uma semana depois do 25 de Abril de 1974, a
manifestação do 1.º de Maio – que passa a ser feriado
nacional, o Dia do Trabalhador – reúne cerca de meio
milhão de pessoas em Lisboa. Medeiros Ferreira cita
estudos que apontam para uma centena de manifestações,
em que participaram cerca de 1 milhão de portugueses
para ouvirem 200 oradores em todo o País.5 As ocupações
de casas sucedem-se. Nos primeiros quinze dias de Maio
há greves, paralisações e nalguns casos ocupações em
dezenas de fábricas e empresas.
A segunda quinzena de Maio foi marcada pela
radicalização dos conflitos sociais. A formação do I
Governo Provisório, um governo frente-populista com a
participação de comunistas, socialistas e liberais, no dia
16 de Maio de 1974, e os sucessivos apelos do Partido
Comunista Português para que a classe trabalhadora
apoiasse este Governo em nada acalmaram os conflitos
sociais. A decisão do Governo, no dia 24 de Maio, de
aprovar um salário mínimo de 3300 escudos, muito
3
COGGIOLA, Osvaldo, MARTINS, José. Dinâmicas da
Globalização (Mercado Mundial e Ciclos Econômicos. 19702005), São Paulo: Instituto Rosa Luxemburgo, 2006, p. 61.
4
MUÑOZ, Duran. Contención y Transgresión. Las
Movilizaciones Sociales y el Estado en las Transiciones Española
y Portuguesa. Madrid: CPPC, 2000, p. 142.
5
FERREIRA, António Medeiros. Portugal em Transe (19741985). In MATTOSO, José (dir). História de Portugal. Lisboa:
Círculo de Leitores, 1993, p. 35.
58 - Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75)
aquém do exigido pelos trabalhadores (4000 ou mesmo
6000 escudos)6, só radicalizou ainda mais o surto de
greves e ocupações de fábricas e empresas. Nos últimos
dias de Maio tornou-se evidente que já não se estava
apenas perante um golpe militar que tinha aberto as portas
à mudança de regime, mas face um poderoso movimento
social que questionava a propriedade privada dos meios
de produção. No dia 27 de Maio de 1974 os trabalhadores
da panificação – contrariando o sindicato – entram em
greve. Rebenta também nesta fase a greve da Carris,
autocarros de Lisboa, porque os trabalhadores exigiam
paridade com o Metro, mesmo contra um parecer
desfavorável por parte do sindicato. Os trabalhadores dos
CTT (correios) entram em greve. Lisboa não tinha
autocarros, eléctricos, correio e pão.
A burguesia portuguesa não estava preparada
para vários factores: primeiro, que o MFA,
independentemente da débil experiência política dos seus
membros, era de facto contra a guerra – era isso que tinha
motivado a oficialidade intermédia a fazer o golpe;
segundo, que a seguir ao golpe de estado se iniciou um
processo revolucionário; finalmente, que os movimentos
de libertação, apoiados massivamente pelas populações
locais, resistiriam e lutariam pela independência. Por
estes factores, a brecha que se abriu no seio da classe
dominante não é solucionada pelo golpe de estado. Pelo
contrário, a crise abre a porta à revolução; a revolução
agrava a crise; a revolução acelera a independência das
colónias; a luta pela independência das colónias influi no
MFA e na revolução metropolitana.
O que mais impressiona do ponto de vista dos
movimentos sociais na revolução portuguesa não é,
porém, o seu número, relevante claro, mas a sua
dinâmica. As greves que se registam são
maioritariamente “selvagens”, decididas em assembleias
democráticas de trabalhadores e dirigidas, na maior parte
dos casos, pelas comissões de trabalhadores. São
convocadas à margem do Partido Comunista e do Partido
Socialista – ambos faziam parte do Governo – e dos
sindicatos, que estavam agora a formar-se na maioria dos
casos.
É neste quadro que o MFA, em acordo com o
Partido Comunista, começa a surgir como uma das peças
fundamentais de estabilização do regime e contenção da
revolução. Este apoio dos trabalhadores ao MFA é dado
não só pelo prestígio do Movimento que derrubara a
ditadura mas pelo próprio Partido Comunista, que
começa a ver no MFA o parceiro da sua estratégia
frentista. A 30 de Abril de 1974, Álvaro Cunhal regressa
do exílio e dá uma conferência de imprensa onde afirma,
perante centenas de apoiantes, que “o nosso povo, em
aliança com os militares do 25 de Abril conduzirão o
nosso país pelo caminho da liberdade, da democracia e
da paz”.11 A 17 de Julho de 1974, a direcção do PCP
afirma que :
A percepção do papel dos militares na revolução
portuguesa é indispensável para compreender o conjunto
dos acontecimentos. As hipóteses analíticas devem partir,
cremos, de duas ideias chave: a relação dos militares com
o Estado, por um lado, e com os trabalhadores por outro.
O MFA faz o golpe de Estado a 25 de Abril de
1974. Os seus membros – capitães, oficialidade
intermédia – eram, na sua maioria, oriundos da pequena
burguesia, pouco politizados e limitados ao objectivo de
pôr fim à guerra. Decidem entregar a direcção do País,
através da Junta de Salvação Nacional, a um sector da
burguesia portuguesa representado pelo general António
de Spínola, que defende o fim da guerra mas quer uma
solução neocolonial de tipo federalista para as colónias
portuguesas.7 Fiel à sua classe, António de Spínola afirma
na primeira comunicação da Junta de Salvação Nacional
(JSN) ao País que a primeira tarefa política da JSN era
“garantir a sobrevivência da Nação como Pátria
soberana no seu todo pluricontinental”.8 No dia seguinte,
o Programa do MFA afirma que a “política ultramarina
do Governo Provisório começava por reconhecer que a
solução das guerras no ultramar é política e não
militar”.9 Em menos de 24 horas o País ficava a conhecer
que havia divergências sobre a questão que esteve na
origem do golpe: a forma de pôr fim à guerra e a solução
para as colónias.10
6
SANTOS, Maria de Lurdes, LIMA, Marinús Pires de,
FERREIRA, Vítor Matias. O 25 de Abril e as Lutas Sociais nas
Empresas. Porto: Afrontamento, 1976, 3 volumes.
7
MAXWELL, Kenneth. A Construção da Democracia em
Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1999.
8
In: 25 de Abril. Documento. Lisboa: Casa Viva Editora, 2ª edição,
s/d, p. 180.
9
Idem
10
FERREIRA, Op. Cit. pp. 21-33.
Quem combate sistematicamente o Governo
Provisório e o Movimento das Forças Armadas
serve os interesses da reacção e do fascismo
(…). O PCP defende naturalmente o direito dos
cidadãos de discordarem de medidas
governativas (…) Mas insiste em que (…) o
prosseguimento da política de democratização
exige das forças democráticas e das massas
populares um apoio activo, constante e criador
ao novo Governo Provisório e ao Movimento
das Forças Armadas.12
Entre Julho de 1974 e Agosto de 1975, o papel do
MFA, em acordo maioritário com o Partido Comunista e
o Partido Socialista, é o de, por um lado, isolar os sectores
de direita directamente ligados ao regime de Salazar e,
por outro, conter as reivindicações, greves e processo de
luta dos trabalhadores, ajudando a enquadrar o
movimento operário nos sindicatos, maioritariamente
dirigidos pelo PCP. A partir de Julho de 1974 os Governos
Provisórios que se sucedem têm sempre na sua
composição membros do PCP, do PS e do MFA, que
procuram fazer uma política clássica de frente popular,
promulgando leis como a da greve, a da requisição civil
ou a da unicidade sindical, que visavam controlar o
movimento operário.
Regresso do exílio de Álvaro Cunhal. http://www.cmodivelas.pt/Extras/MFA/cronologia.asp?canal=7 Consultado a 29
de Janeiro de 2008.
12
Comunicado da Comissão Política do CC do PCP de 17 de Julho
de 1974.
11
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 59
É assim que os golpes de estado de direita de 28
de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975 são
massivamente derrotados pelo MFA e pelos
trabalhadores, que ocupam fábricas, sindicatos, se
barricam nas ruas do País contra o sector da burguesia
representado por Spínola, em defesa da democracia. E é
assim também que caberá ao MFA – o ministro do
Trabalho é um homem do MFA próximo do Partido
Comunista, capitão Costa Martins, e o secretário de
Estado do Trabalho é Carlos Carvalhas, membro do PCP13
– liderar a repressão armada contra os trabalhadores
quando os seus objectivos ou métodos objectivamente
colocam no horizonte a luta pelo socialismo.
trabalhadores e 3 militares da Junta de Salvação Nacional
– presidida pelo coronel Moura Pinto. No dia 25 de Julho
os Comités Operários de Base (COB) lançam um
comunicado onde questionam a autogestão da empresa –
numa empresa capitalista não há conciliação possível de
interesses de classe antagónicos, argumentam – e
elaboram um documento que aponta para a greve em
Agosto, para que se façam os saneamentos, para que
prossiga a negociação do ACT (Acordo Colectivo de
Trabalho) e a proibição dos despedimentos sem justa
causa:
Não nos deixaremos intimidar por manobras
que tentem levar-nos a desistir da nossa luta,
nomeadamente por aqueles que agitam o
espantalho do caos económico. O caos
económico foi o que sempre existiu e continua
a existir. O caos económico é a produção não
estar orientada para a satisfação das
necessidades da maioria e estar orientada para
o lucro máximo de uma minoria. Isso é que é o
caos económico e esse caos só acabará quando
a nossa luta atingir a vitória final, o capitalismo
for derrubado e passemos a estar nós
trabalhadores a controlar toda a sociedade no
sentido de atingir uma sociedade sem classes,
sem exploradores nem explorados.19
…e os de baixo já não querem”
Às zero horas do dia 17 de Junho de 1974
entraram em greve 35 000 trabalhadores dos CTT (menos
as telecomunicações), a nível nacional, mesmo depois de
o Governo, no dia 16, ter emitido uma nota onde apelava à
consciência dos trabalhadores para a grave atitude de uma
greve geral num sector chave.14 No dia 18, uma reunião
junta a comissão pró-sindicato, o MFA e o Ministério do
Trabalho, mas não chega a nenhum acordo. No dia
seguinte, o Governo afirma que se recusa a ultrapassar os
limites salariais da contraproposta. A Intersindical e o
PCP declaram-se contra a greve nesse dia 19 de Junho.15
Mas sectores da extrema-esquerda tomam a posição
contrária. O MES (Movimento de Esquerda Socialista)
afirma em comunicado o “apoio à luta dos trabalhadores
dos CTT, porque as reivindicações e as formas de luta
para as conquistar foram decididas pelos próprios
trabalhadores”.16 O MRPP (Movimento Reorganizativo
do Partido do Proletariado), maoísta, defende “a grande e
justa greve nacional dos trabalhadores dos CTT!”.17 A
greve termina, porém, no dia 20, não devido a um acordo
entre o Governo e a comissão pró-sindicato, mas pela
ameaça de intervenção militar: “a pedido do Governo, as
Forças Armadas estavam preparadas para intervir a fim
de assegurarem o funcionamento dos serviços”.18
A greve da TAP (Transportes Aéreos
Portugueses) é emblemática. É uma luta operária, num
sector chave da economia, e que vai ser reprimida, com
armas, pelo Governo onde estavam o MFA, o PS e o PCP.
No dia 2 de Maio de 1974 a comissão sindical da TAP
apresentou um documento à Junta de Salvação Nacional
onde fazia uma série de reivindicações salariais,
saneamentos e de organização da empresa que
apontavam para a autogestão e a readmissão de todos os
despedidos sem justa causa. Na tentativa de conciliar os
interesses das partes em conflito, cria-se uma Comissão
Administrativa (CA) – composta por 3 representantes dos
13
Carlos Carvalhas será secretário-geral do PCP entre 1992 e 2004.
In: SANTOS, Op. Cit. p.19.
15
«Greve dos CTT», 19 de Junho de 1974. In: Centro
Documentação 25 de Abril, Fundo de Comunicados e
Panfletos/PCP.
16
SANTOS, Op. Cit. p.21.
17
In Luta Popular, 20 de Junho de 1974, p. 7.
18
SANTOS, Op. Cit. p.11.
14
No dia 26 de Agosto, data limite que os
trabalhadores tinham dado à empresa para atender as
reivindicações, os trabalhadores da Divisão de
Manutenção e Engenharia (ME) entram em greve. O
Governo responde enviando a tropa para reprimir a greve
e, no dia 28, os trabalhadores são enquadrados no
Regulamento de Disciplina Militar.
No dia 22 de Agosto de 1974 os trabalhadores do
Jornal do Comércio, três centenas, entram em greve e
ocupam as instalações da empresa exigindo a demissão
de Carlos Machado e a equiparação salarial com os
trabalhadores do Diário Popular. Exigem liberdade de
imprensa e acusam o jornal de ter uma linha política de
extrema-direita e de obrigar os trabalhadores a seguir essa
linha. Perante a recusa da administração em negociar, os
trabalhadores mantêm a greve e decidem publicar um
jornal de greve. O Governo responde novamente com
armas. Na noite de 26 para 27 de Agosto, a Polícia de
Segurança Pública (PSP) e uma bateria do RAL 1
(Regimento de Artilharia Ligeira 1) cercam as instalações
e, no dia 28, desocupam-nas e selam-nas para impedir a
continuação da saída do jornal de greve.
O caso vai gerar uma onda de solidariedade de
toda a imprensa: no dia 29 o Sindicato dos Jornalistas
solidariza-se com o protesto; a 3 de Setembro uma
assembleia convocada pelo SJ e pelos sindicatos de artes
gráficas, revisores de imprensa e vendedores de jornais e
lotaria convoca uma greve nacional de 24 horas. No dia 4
só dois jornais se vendem, O Século e o Diário de Lisboa.
A greve do Jornal do Comércio, que durou 46 dias,
prosseguiu. A 28 de Setembro, Carlos Machado é preso
por ter participado no falhado golpe spinolista.
19
In SANTOS, Op. Cit. 3.º volume, p. 125.
60 - Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75)
No meio desta intensa conflitualidade social, o
Governo Provisório faz aprovar a Lei da Greve, que entra
em vigor a 27 de Agosto de 1974, uma lei logo
considerada pelos sectores mais à esquerda de “antioperária”. A lei prevê que: 1) Os contratos colectivos não
podem ser renegociados antes do fim do prazo, o que
significava, num quadro de inflação de dois dígitos, que
os salários eram rapidamente engolidos por esta; 2)
Proíbe a greve às forças militares e militarizadas, aos
bombeiros, às forças policiais e aos magistrados
judiciais; 3) Proíbe a “cessação isolada de trabalho por
parte do pessoal colocado em sectores estratégicos da
empresa, com o fim de desorganizar o processo
produtivo” e proíbe a ocupação dos locais de trabalho
durante a greve; 4) No seu artigo 6.º proíbe a greve
política e de solidariedade “que não interesse à mesma
profissão”; 5) Prevê, numa altura em que a maioria dos
conflitos laborais eram dirigidos pelas comissões de
trabalhadores, que a greve é decidida pelas comissões
sindicais e, quando não existem, pode ser decidida pelas
assembleias de trabalhadores desde que as decisões das
assembleias de trabalhadores sejam submetidas a um
escrutínio, tenham mais de 50% dos votos e no escrutínio
esteja presente um representante do Ministério do
Trabalho; 6) Assegura à entidade patronal o direito de
lock-out.
É uma lei que surge devido à falta de controlo dos
componentes do Governo Provisório, incluindo o PCP e o
MFA, sobre a classe trabalhadora. Como afirma Miguel
Pérez, a lei da greve tinha “alvos claros: não são
permitidas as greves de solidariedade nem as ocupações,
e qualquer paralisação deve ser precedida por um
período de negociações de 30 dias, estabelecendo-se que
são os sindicatos os órgãos competentes para a
desencadear”.20 Philippe Schmitter fala de uma “séria
restrição do direito à greve”.21
A luta dos operários da Lisnave, a maior
concentração operária do País, com cerca de 8000
operários, transforma-se num combate contra a lei da
greve. Tal como a TAP, os estaleiros navais da Lisnave
são economicamente estratégicos para o País. Mas são
também uma empresa de indústria pesada, situada na
Margem Sul do Tejo, bastião operário.
No dia 7 de Setembro um plenário com 2000
trabalhadores ratifica a decisão de convocar uma
manifestação que levava os metalúrgicos da Lisnave para
o centro da cidade de Lisboa, até ao Ministério do
Trabalho, na Praça de Londres. Os trabalhadores da
Lisnave exigem o saneamento da administração e
recusam a lei da greve, que chamam nos comunicados de
“lei anti-greve”.22
20
PÉREZ, Miguel, Contra a Exploração Capitalista: Comissões
de Trabalhadores e Luta Operária na Revolução Portuguesa (197475), Dissertação de Mestrado em História dos Séculos XIX e XX,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa, Agosto de 2008, p. 104.
21
SCHMITTER, Philip. Portugal: Do Autoritarismo à
Democracia. Lisboa: ICS, 1999, p. 218.
22
In SANTOS, Op. Cit. p. 110-112.
O Governo, através do Ministério da
Administração Interna, ilegaliza a manifestação nesse
mesmo dia 11, temendo o alastramento da luta a outras
empresas. Pela manhã de dia 12 uma delegação do MFA
vai à Lisnave tentar convencer os operários a adiarem a
manifestação para um sábado. Em vão. No dia 12, os
operários, reunidos no interior do estaleiro, ratificam a
manifestação, com apenas 25 votos contra. Lá fora, as
forças do COPCON (Comando Operacional do
Continente), as forças de repressão do MFA, cercam, com
grande aparato militar, o estaleiro. Mas os fuzileiros, num
dos momentos mais emblemáticos da revolução
portuguesa, recusam-se a reprimir a manifestação, que
avança. Sete mil operários, fardados de azul, atravessam
a pé a ponte sobre o Tejo e percorrem as principais
avenidas de Lisboa por 6 horas. Param à frente do
Ministério do Trabalho onde lêem o seguinte
comunicado:
(…) Que não estamos com o Governo, quando
promulga leis anti-operárias, restritivas à luta
dos trabalhadores contra a exploração
capitalista. Que lutaremos activamente conta a
'lei da greve' porque é um golpe profundo nas
liberdades dos trabalhadores. Que repudiamos
o direito que os patrões têm de colocar na
miséria milhares de trabalhadores porque a lei
do lock-out é uma lei contra os operários e de
protecção aos capitalistas.23
A dualidade de poderes
A consulta à documentação do Foreign Office
britânico revela que as chancelarias ocidentais, logo em
Maio de 1974, acreditam que a radicalização da
revolução pode dar-se em duas vertentes: em primeiro
lugar, os efeitos da crise económica na radicalização
social e, em segundo, os efeitos que o derrube do regime
pela oficialidade intermédia podia ter nos soldados.24 Os
seus temores revelar-se-ão realistas.
Os operários da Lisnave tinham à sua passagem
feito os fuzileiros recuar. No dia 7 de Fevereiro de 1975
outro momento de quebra da disciplina militar ficará para
a história. A realização de manobras militares da NATO
nos arredores de Lisboa, vista como uma provocação, é o
momento escolhido pela coordenadora das comissões de
trabalhadores, sob proposta da fábrica Efacec, para fazer
uma manifestação. O Governo decreta a proibição de
manifestações entre 7 e 12 de Fevereiro de 1975. O PCP
lança no dia 4 de Fevereiro um comunicado do Comité
Central em que critica o perigo de manobras da NATO no
meio de uma grande tensão social, mas mantém a defesa
da participação de Portugal nesta aliança militar, nas
“actuais condições”, e denuncia a manifestação como
23
In SANTOS, Op. Cit. p. 110-112.
Foreign Office, Central Department and Foreign and
Commonwealth Office, Southern European Department:
Registered Files (C and WS Series) FCO 9/2072 Visit by Dr Mario
Soares, Portuguese Minister of Foreign Affairs to London and
other European capitals, 1-6 May 1974 . Foreign Office,Date:
1974.Source: The Catalogue of The National Archives.
24
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 61
provocatória.25 No Governo, junto com o PS, vota a favor
da proibição da manifestação. Mas a comissão interempresas reúne força social para avançar e a
manifestação realiza-se, com 80 000 pessoas.
Na manifestação há discursos inflamados contra
as políticas defendidas pelo Governo e pelo PCP: a
batalha pela produção nacional, a Intersindical, acusada
de “amarela” e “reformista”.26 Mas o facto mais
importante da manifestação dá-se quando o cordão
militar adere às palavras de ordem da manifestação contra
a NATO, sob o aplauso entusiástico dos manifestantes.
A manifestação mostra, da mesma forma que
tinha sido claro na militarização da TAP, que há um
campo de divisão no seio das forças armadas e que o
“Povo não está com o MFA” ou, para sermos precisos, que
uma parte dos trabalhadores – entre eles o seu sector mais
combativo – em determinados momentos, não estava
com o MFA. E que sectores dos soldados, da base das
forças armadas, estavam também com estes
trabalhadores.
No dia 11 de Março de 1975, um golpe de direita
tenta pôr fim à revolução. É derrotado. A história da
revolução portuguesa depois de 11 de Março de 1975
demonstrou que a etapa democrática da revolução tinha
sido, em menos de um ano, ultrapassada pelos principais
protagonistas do processo revolucionário – as classes
trabalhadoras e parte dos sectores intermédios da
sociedade portuguesa – que lutaram nas fábricas, nos
bairros, nos locais de trabalho, com métodos de luta e
reivindicações que faziam da etapa democrática um dado
adquirido e do socialismo uma possibilidade.
A seguir ao 11 de Março a situação social é a mais
radicalizada desde o início da revolução. Há greves,
ameaças de greve, conflitos laborais entre Maio e Junho
de 1975 nos metalúrgicos, nos químicos, na hotelaria, nos
têxteis, nas câmaras municipais, na construção civil, nas
minas, electricistas, padeiros, gráficos, TAP.27 As
ocupações alastram pelo Ribatejo e Alentejo. As
nacionalizações são levadas a cabo em dezenas de
grandes empresas. E surgem as ocupações de casas, que
avançam a nível nacional num ritmo extraordinário, logo
a partir de meados do mês de Fevereiro de 1975, em
Lisboa, Porto e Setúbal, sobretudo. As comissões de
moradores passam a ser, em muitos casos, a base
organizativa do movimento social urbano, e
transformam-se, na análise de Dows, num “verdadeiro
duplo poder ao nível da cidade”.28 Também Valério
Arcary considera que a derrota da direita no 11 de Março
abre caminho à radicalização da revolução e à dualidade
de poderes.29
25
In Avante!, Série VII, 6 de Fevereiro de 1974, p. 3.
PÉREZ, Op.Cit. p. 139.
27
Diário de Lisboa, 5 de Maio de 1975, p. 1; Diário de Lisboa, 6 de
Maio de 1975, p. 1
28
DOWS, Chip. Os Moradores à Conquista da Cidade. Lisboa:
Armazém das Letras, 1978, p. 59.
Muitas destas lutas tiveram sucessos
extraordinários, educando militantes, convencendo
activistas, organizando cada vez mais gente. Como refere
Chip Dows, as reivindicações dos trabalhadores e das
camadas populares não são intrinsecamente
revolucionárias,
Mas é com a experiência de luta pela satisfação
da reivindicação e pelo direito ao controle
directo sobre a sua resolução que esse
significado político se vai acentuar e evoluir.
(…) É a consciência de revolta que se apodera
das pessoas; o sentimento de que têm algo a
dizer e a propor em relação ao quotidiano que
lhes pretendem impor, embora na maioria das
vezes não o consigam exprimir claramente.30
A radicalização da revolução implicou a
transformação, depois de 11 de Março de 1975, de uma
crise de regime numa crise geral do Estado, traduzindo-se
na maior crise governativa da revolução. PS e liberais
abandonam o Governo deixando o PCP formar, já no
Verão de 1975, contra a sua vontade, um governo, o V
Governo Provisório, construído por militares
profundamente divididos.
Uma grande parte do MFA, reunida no agora
baptizado Grupo dos Nove, alia-se ao Partido Socialista,
à direita e à Igreja e irá encabeçar o golpe contrarevolucionário de 25 de Novembro de 1975; uma ala,
encabeçada por Vasco Gonçalves, mantém-se fiel à
estratégia do Partido Comunista de conservar a revolução
nos marcos de um regime democrático, no quadro da
NATO, com uma economia capitalista regulada; e uma
outra ala parece estar disposta a levar a cabo uma via
putschista de tomada do poder, tentando concretizar em
Portugal um projecto a la Nasser como no Egipto ou
como Alvarado no Peru. Finalmente, desta crise do MFA
brota a revolução nos quartéis, com os soldados a
avançarem para a constituição de comissões de soldados.
“Sovietização” das Forças Armadas?
É consensual entre a historiografia portuguesa
que Portugal estava, durante o VI Governo, a viver uma
crise político-militar e que o desfecho da revolução se
aproximava.31 A teorização dos processos
revolucionários aponta para a definição de um momento
da revolução em que o seu desfecho, independentemente
do resultado, é inevitável, ou seja, para um momento em
que ou se dá um deslocamento do Estado, via
insurreccional, feito pelos trabalhadores/camponeses (e
dirigido por um partido, ou um conselho – revolução
russa – ou um partido-exército – revolução chinesa), ou
um golpe contra-revolucionário inicia a estabilização do
Estado sob direcção da burguesia e seus aliados. Este
seria o momento definido por crise revolucionária.
26
29
ARCARY, Valério. “Quando o Futuro era Agora. Trinta Anos da
Revolução Portuguesa”. Outubro, São Paulo: Xamã, nº 11, 2004, pp.: 78.
30
DOWS, Op. Cit. p. 61-62.
REZOLA, Op. Cit; MAXWELL, Op. Cit. p. 129; FERREIRA,
Op. Cit. pp. 21-33.
31
62 - Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75)
No fim de Agosto de 1975, depois de aceitar a
substituição do V Governo e participar no VI Governo,
liderado por Pinheiro de Azevedo, o PCP está no seu
momento de maior fragilidade desde o início da
revolução, porque o desmembramento do MFA arrasta
consigo a “aliança Povo-MFA”, deixando os
trabalhadores “órfãos” da direção que o próprio PCP
tinha construído. Mesmo autores que não coincidem com
a tese que aqui defendemos partilham a análise da
fragilidade do PCP neste momento, devido ao
desmoronamento do MFA.32
Mas não é só o PCP que entra em crise. O pilar de
sustentação do Estado na revolução, o MFA, cai,
arrastando consigo a estabilidade – que com crises tinha
sido apesar de tudo mantida – das Forças Armadas,
abrindo espaço à intensificação da dualidade de poderes
dentro destas. A revolução entra definitivamente nos
quartéis, com a progressiva organização dos soldados nas
comissões de soldados, pela mão dos SUV, da Polícia
Militar, das Assembleias Populares.
No dia 5 de Setembro de 1975, o Grupo dos Nove
consegue afastar Vasco Gonçalves e isolar a esquerda
militar na Assembleia do MFA (conhecida como
assembleia de Tancos) e no Conselho da Revolução,
invertendo nessas estruturas – mas não nos quartéis – a
correlação de forças a favor do Grupo dos Nove. Na
Assembleia determina-se a reestruturação do Conselho
da Revolução: os gonçalvistas, até aí maioritários, ficam
com 3 elementos; o Grupo dos Nove, com 7. Fazem parte
ainda Pinheiro de Azevedo e Morais da Silva, cada vez
mais do lado do Grupo dos Nove,33 e Otelo e Costa
Gomes, o primeiro com uma posição titubeante e o
segundo um árbitro das várias fracções que politicamente
acabará tomando posição ao lado dos Nove também. É o
início de um processo de recomposição da hierarquia das
Forças Armadas.
A 7 de Setembro, apenas dois dias depois, um
grupo de soldado embuçados (que se mantinham
clandestinos) dão uma conferência de imprensa onde
anunciam a criação dos SUV (Soldado Unidos
Vencerão), uma organização de soldados que propõe a
generalização da criação de comissões de soldados no
Exército e que se afirma contra o MFA e pela “destruição
do Exército burguês”.34 Nesse mesmo dia, a Companhia
8246 do Regimento de Polícia Militar (RPM) recusa-se a
embarcar para Angola.
No dia 9 de Setembro, reagindo ao “minar da
disciplina e obediência militar”, o Conselho da
Revolução faz publicar a Lei 11/75 em que proíbe aos
órgãos de comunicação social “a divulgação de relatos e
notícias, etc., sobre acontecimentos ou tomadas de
posição nas unidades militares”.35 Conhecida como “Lei
32
CUNHA, Carlos A. The Portuguese Communist Party´s Strategy
for Power 1921-1986. Garland Publishing: Inc. New York &
London, 1992, p. 259.
33
REZOLA, Op. Cit. p. 399.
34
Os SUV em Luta. Lisboa, 1975.
3 5
Cronologia Pulsar da Revolução. In
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=PulsarSetembro75.
Consultado a 16 de Fevereiro de 1975.
da Censura Militar”, nunca foi posta em prática, porque
os jornais, a rádio e a televisão se recusaram a cumpri-la.
Quinze dias depois é revogada.
No dia 21 de Setembro, 1500 soldados fardados,
sob direcção dos SUV, junto a 10 mil civis, desfilam
numa manifestação no Porto contra o Governo e os
generais Fabião e Charais, que acusam de tentarem pôr
fim à revolução. Nesse dia também rebentam engenhos
explosivos na messe do Estado-maior da Armada, onde
dormia Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro. Nessa
noite, de 21 para 22, os deficientes das Forças Armadas,
que não viam as suas reivindicações satisfeitas, ocupam a
Ponte 25 de Abril, a ponte que une as duas margens do
Tejo na grande Lisboa, e no dia 25 os mesmos ocupam os
estúdios da Emissora Nacional. Nesse dia 25, em Lisboa,
uma manifestação dos SUV é considerada a maior
manifestação de soldados desde sempre realizada em
Portugal.
No dia 24 de Setembro o Estado-Maior do
Exército reúne-se para enfrentar a crise: “as questões
disciplinares em geral e em particular os SUV e ainda a
falta de pessoal de enquadramento com suficiente
competência para neutralizar os grupúsculos que se têm
vindo a formar no interior das FA”.36 Nessa reunião
decide-se a revitalização dos órgãos do MFA ao nível da
unidade e regiões militares para evitar a “criação de
organizações paralelas dentro dos quartéis”.37
No dia 27 dá-se o assalto e destruição, por
manifestantes de extrema-esquerda, da embaixada e
consulados de Espanha, contra o regime franquista, em
repúdio pela condenação à morte de 6 nacionalistas
bascos. As ordens dadas pelo COPCON para proteger as
instalações diplomáticas de Espanha não são acatadas.
Os SUV são de particular importância nesta crise
porque defendem a criação de comissões de soldados.
Mário Soares, líder do Partido Socialista, dirá mais tarde
a Maria João Avilez que:
É exacto, nessa época o poder estava em plena
desagregação e era influenciado pelas
manifestação de rua (…) Os SUV foram mais
um degrau na escalada revolucionária, uma
óbvia tentativa de sovietização do Exército, que
precederia naturalmente a destruição da
instituição militar, para sobre ela edificar um
outro poder.38
Perante a conflitualidade dentro das Forças
Armadas o Conselho da Revolução conclui por uma série
de medidas repressivas, que passavam sobretudo por
saneamentos de militares afectos aos vários sectores de
esquerda, numa tentativa de reconstruir a hierarquia
militar. Decide-se atender parte das reivindicações dos
deficientes das Forças Armadas, dissolver o Regimento
de Polícia Militar, e a criação de um Agrupamento Militar
de Intervenção (AMI), que seria uma força disciplinada
composta por forças operacionais dos três ramos das
36
REZOLA, Op. Cit. p. 418.
Idem, p. 418.
38
Idem, p. 483.
37
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (57-63) - 63
Forças Armadas, capaz de responder àquilo que
consideravam ser uma ameaça à “tranquilidade
nacional”.
A 30 de Setembro, o primeiro-ministro Pinheiro
de Azevedo ordena a ocupação dos emissores de televisão
e rádio, argumentando que “era para evitar declarar o
estado de sítio”, que, na sua opinião, era o que a situação
de facto exigia”.39 Mas nem assim o conflito vai ser
controlado. No dia 1 de Outubro oficiais do Exército
selam os emissores da Buraca, em Lisboa, e a PSP fica a
vigiar o local. Seguem-se protestos contra a decisão do
Governo e a 21 uma manifestação, seguida de
acampamento em frente dos emissores, organizada por
comissões de soldados, moradores e trabalhadores,
consegue a desselagem das instalações. A 7 de Novembro
o Governo assume a sua falta de autoridade quando
manda destruir à bomba os emissores. Como refere Paula
Borges Santos, o caso Rádio Renascença é um espelho da
falta de autoridade dos sucessivos governos que não
conseguiram controlar o conflito nem com a criação de
comissões administrativas, nem com os planos de
nacionalização, nem com a ocupação militar da
Emissora.40 No fim, um único método: a destruição física,
à bomba.
Quando decide suspender o Governo de funções,
a 20 de Novembro de 1975 – depois de 100 mil operários
da construção civil terem sequestrado a Assembleia
Constituinte por quase 3 dias –, Pinheiro de Azevedo,
primeiro-ministro, no seu estilo frontal e indiscreto,
responde a uma jornalista que o tinha questionado sobre a
situação militar: “A situação, tanto quanto eu sei,
continua na mesma: primeiro fazem-se plenários e
depois é que se cumprem as ordens!”.41
para o socialismo seria igualmente pacífica, sem
sofrimento, sem guerra civil, e poderia ser conduzida
pelos mesmos actores, o MFA. Em pleno cerco da
Assembleia Constituinte pelos operários da construção
civil, o PCP publica no seu jornal um artigo de celebração
da revolução russa, onde se pode ler:
Tudo faremos para tornar possível o caminho
pacífico para o socialismo. (…) Outubro
significa mais que insurreição. (…) Outubro
significa o golpe de finados do capitalismo e
embora sem pressas, sem precipitações, sem a
impaciência de queimar etapas, sabendo
avançar e sabendo recuar, tudo faremos para
que esse dobre de finados soe o mais
prontamente possível na nossa Pátria.42
No dia 25 de Novembro de 1975 um golpe,
levado a cabo pelo maioria do MFA, reunida em torno do
Grupo dos Nove, o PS, a Igreja, a direita afecta ao regime
de Salazar e com a recusa do PCP (que impediu as suas
unidades militares de avançarem e a Intersindical de
43
resistir) em resistir, iniciou a contra-revolução ao fazer
retornar aos quartéis a disciplina e ao repor a hierarquia
das Forças Armadas. A política da “revolução
democrática” dos comunistas, que teve um respaldo
extraordinário na oficialidade intermédia do regime,
aponta para uma transição sem limite definido que
mantém a continuação da dominação burguesa, dentro do
quadro da democracia representativa, e no respeito pela
propriedade privada, combinada com outras formas de
propriedade. Nesse sentido não foi uma revolução, mas
uma forma de regime, que se opôs a outras forças que se
moveram no curso da revolução portuguesa e cujos
objectivos e métodos apontavam para uma revolução
social.
Uma utopia pequeno-burguesa?
No biénio 1974-75 em Portugal a burguesia
portuguesa governou e garantiu a sua vitória no processo
revolucionário através de governos de frente popular (ao
todo 6 governos em 19 meses) que tinham no Movimento
das Forças Armadas um dos seus principais pilares. Uma
das suas vitórias esteve certamente na capacidade de
garantir a confiança dos trabalhadores no MFA. Este
projecto, que para a burguesia portuguesa foi táctico –
uma tábua de salvação quando as suas próprias forças não
garantiam a estabilidade do Estado –, só foi possível de
concretizar porque ele correspondia, no que diz respeito
ao sistema de alianças, ao projecto estratégico da
principal direcção do movimento operário português, o
Partido Comunista, que desde os primeiros dias a seguir
ao 25 de Abril acarinhou, na célebre política de “aliança
Povo-MFA”, a ideia de que a transição da ditadura para a
democracia teria sido indolor (olvidando o papel das
revoluções anticoloniais) e que a transição da democracia
39
Idem, p. 423.
SANTOS, Paula Borges. «O Caso da Rádio Renascença».
História, n.º 27, Julho/Agosto 2000, p. 57.
4 1
A r q u i v o
d a
R T P.
h t t p : / / w w w. y o u t u b e . c o m / w a t c h ? v = 6 D B 4 2 Q U J Y S M .
Consultado a 19 de Janeiro de 1975.
40
42
In Avante!, 13 de Novembro de 1975, p. 9.
CUNHAL, Álvaro. Do 25 de Novembro às Eleições para a
Assembleia Constituinte. Discursos Políticos 6. Lisboa: Edições
Avante!, 1976. CUNHAL, Álvaro. A Verdade e a Mentira na
Revolução de Abril. Lisboa: Edições Avante!, 1999.
43
64 - Brizola, os Sargentos e a Luta Armada
Brizola, os Sargentos e a Luta Armada
Araken Vaz Galvão1
L
eonel de Moura Brizola foi, sem nenhuma
dúvida, um dos mais importantes – talvez o mais
importante – líderes da esquerda não-ideológica do Brasil
a partir de meados de século XX até o início deste século.
Compreendendo-se por tal – já que uso uma denominação
um tanto esdrúxula – aquele ramo da esquerda que não se
movia conforme os ditames do marxismo ou mesmo do
chamado socialismo revolucionário, sincero ou
hipócrita; cristão ou social democrata. Brizola era de
esquerda simplesmente porque, frente aos políticos da
oligarquia, “Os Donos do Poder” – dos quais falava
Raimundo Faoro – e da imprensa em geral, qualquer
preocupação com justiça social, melhor distribuição de
renda e outras medidas que, na Europa, foram adotadas
no século XIX, eram e são consideradas subversivas ou
mesmo comunistas.
Junto com Miguel Arraes, Francisco Julião e
outros, como Gabriel Passos, Djalma Maranhão, Jarbas
Vasconcelos (quando mais jovem, porque hoje ele é um
digno representante da direita), Sérgio Magalhães, Seixas
Dória, Neiva Moreira, Dagoberto Salles, Almino Afonso,
Aurélio Viana, entre tantos, que marcaram a vida política
do Brasil daquele período da nossa conturbada vida
política, Brizola foi uma estrela de primeira grandeza.
Como homem de grande liderança popular – por
ser bom orador e muito carismático – Leonel Brizola,
beneficiado por um inesperado fato histórico – a renúncia
de Jânio Quadros – destacou-se mais do que todos os
outros líderes citados. Brizola possuía muito do estilo
clássico do caudilho, fato, aliás, que caracterizou alguns
políticos da sua região – o Rio Grande do Sul –, tanto da
direita como daqueles que se situavam mais à esquerda.
Era muito intuitivo e dotado de um grande poder de
comunicação. E, justiça se lhe faça, nunca abandonou o
linguajar carregado do gaúcho da campanha, o que devia
lhe dar, aos olhos da massa, certo carisma de
autenticidade.
Brizola era ligado à defesa dos interesses
nacionais, sim, Brizola era; preocupado com as penúrias a
que viviam nosso povo, sim, Brizola era; ligado com as
raízes da nossa cultura, sim, Brizola era. Mas também,
como todos nós, tinha suas contradições e não era
infalível.
O Rio de Janeiro, sempre foi cantado em prosa e
verso, como se diz, como um estado politizado, caso o
fosse, carecia de ideologia ou consciência política, pois,
1
Condensação do capítulo, com o mesmo título, do livro inédito,
Os Sargentos na História do Brasil.
ao que parece essa “politização” manifestava-se mais em
“ser do contra”, isso é, em demonstrar insatisfação contra
às elites em uma espécie de birra inconseqüente. Anos
antes, quando Brizola sonhava lançar-se a disputa da
presidência de República, nas eleições de 62, o candidato
a governador das oposições e dos nacionalistas era Sérgio
Magalhães contra Carlos Lacerda, apoiado pela
oligarquia e, acintosamente, pela embaixada dos Estados
Unidos. No meio dessa disputa e não desassociada a ela –
talvez até como parte de uma estratégia para torná-la
vitoriosa –, surgiu o nome de Tenório Cavalcanti, um
misto de gângster suburbano e político populista, o
“politizado” povo do Rio de Janeiro dividiu-se entre ele e
o candidato da esquerda, ensejando não só uma votação
expressiva àquele pistoleiro de arrabalde, como
contribuiu fundamentalmente para a eleição de Lacerda,
peça fundamental no golpe de 64.
Mas, outra vez, estou adiantando-me aos fatos.
Desejo referir-me a época em que Brizola ainda era
governador do Rio Grande de Sul, e gozava de grande
popularidade, porque a inteligência obtusa da direita civil
e militar, com a renúncia do presidente Jânio Quadros,
tirou Brizola – ao tentar impedir a posse do seu substituto
legal – de entre um dos nomes da esquerda nacionalista –
como se dizia na época – e o colocou em primeiríssima
posição entre essa mesma esquerda, dando-lhe, inclusive,
maior destaque político nacional e até certa projeção
internacional.
Como governador do Rio Grande, Brizola que já
vinha resistindo à espoliação das elites, com sua
Campanha pela Legalidade conquista os corações de
parcelas expressivas do povo, para desespero da
oligarquia. Nos quartéis há uma clara divisão: a grande
maioria de oficiais de um lado e do outro o grosso da tropa
ouvindo os inflamados chamamentos à resistência –
cívica e até armada – que Brizola fazia de Porto Alegre
por rádio. Empossado o vice-presidente João Goulart,
mediante vergonhosa negociação – da qual Tancredo
Neves foi o grande artífice –, começa, então, o desgaste
de Jango como um dos líderes da esquerda trabalhista.
Toda a herança política de Vargas, a mais consequente,
pelo menos – aquela que via, com toda razão, os cordéis
que movimentavam “os donos do poder” (que fomentara
anos de exploração das riquezas nacionais) desejando
impedir a posse do Vice-Presidente, sendo articulados em
Washington –, deslocou-se quase que totalmente para a
órbita de Brizola.
Naquela época, porém, a sua penetração no meio
militar era praticamente nula, salvo entre alguns oficiais
ligados ou influenciados pelo Partidão e, naturalmente,
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (64-68) - 65
entre os sargentos. É da ligação com essa última categoria
de militares que está o embrião do nascimento do
Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR – como
órgão pugnaz ou fomentador pioneiro da luta armada,
como forma de resistência democrática. Há quem diga,
porém, embora essa assertiva careça de maiores
importâncias, que a sigla desejada pelo próprio Brizola,
sempre obcecado com fórmulas que ele julgava ligadas
ao povo – ou ao inconsciente coletivo popular –, era a de
Movimento Revolucionário Nacionalista, cuja sigla seria
brasileiramente2 MORENA3, com o possível subliminar
detalhe subsidiário de que essa forma, no feminino,
poderia muito bem fazer um apelo popular mais forte aos
sentimentos dos homens...
Bem, veio golpe, as forças militares que diziam
apoiar o Presidente – e apoiavam de alguma forma – eram
fracas, sem direção firme, sem entrosamento e ligação
entre elas, com pouca capacidade de operação. Os
sargentos – dos quais muito se falava serem vitais como
sustentação do governo –, careciam de lideranças,
militares audazes – considerando como tal o comando de
oficiais nacionalistas e patriotas, porque é muito difícil se
quebrar a cadeia de comando. E se eram poucos os
oficiais generais que apoiavam o governo, pode-se dizer
que no patamar de oficiais superiores (coronéis, tenentescoronéis e majores), capitães e oficiais subalternos, esse
apoio era praticamente inexistente.
A verdade, porém, é que muitos generais –
aqueles que diziam defender o governo democrático –
pararam, como hipnotizados, quais batráquios em face do
bote da serpente, na crença popular, frente ao golpe. A
resposta/advertência do marechal Osvino Ferreira Alves
ao grupo de sargentos que o procuram no dia 1º de abril
(Preparem o lombo que a paulada vem forte, citada em
outro capítulo de meu livro “O Sargento da História do
Brasil”), bem expressa aquele estado de espírito. É, pois,
um pequeno exemplo de como os poucos oficiais
generais legalistas estavam paralisados frente ao golpe.
Isso quando não tomaram posições que beiravam a
pusilanimidade. Se somarmos a isso que a maioria
absoluta dos oficiais estavam contra o governo, não será
difícil saber porque o golpe venceu com tanta facilidade.
Não seria, pois, em um clima desses que os sargentos
iriam virar a balança a favor do governo. As lideranças
mais responsáveis dos sargentos – e refiro-me às
lideranças políticas, que tinham várias e de muito bom
nível – sabiam que, ao longo da História, somente dois
fatos levaram os sargentos a fazer o prato de a balança
pesar a favor da legalidade, inibindo ou paralisando os
golpistas. Isso só se deu em caso de crise aguda das
2
Sua ligação com as coisas do Brasil, com nossa língua, fê-lo trazer
para o português, em substituição ao termo inglês blackout e ao seu
aportuguesamento blecaute, diretamente do espanhol a palavra
apagón. Apagão, como está hoje popularizada.
3
Há um detalhe curioso no uso pioneiro dessa palavra como sigla.
Mais tarde, quando da organização do seu partido político, o PDT
(Partido Democrático Trabalhista), Brizola afirmou que a linha
ideológica da nova agremiação seria uma espécie de “socialismo
moreno”. Na época não houve nenhum associação, nem mesmo
fizeram nenhuma ligação como o “mulato inzoneiro”, de Ari
Barroso, um óbvio precedente.
instituições, estabelecendo-se um completo vazio de
poder e na cadeia de comando – como ocorreu em 1917,
na Rússia –, ou configurando-se na existência de um
partido revolucionário, no velho estilo, ou de uma
organização armada, como ocorreu em Cuba em 1959. A
outra situação seria um grande movimento de massas
entre os sargentos – como ocorreu em Portugal no início
do século XX – que inibisse os oficiais com pretensões
golpistas de se movimentarem por temer um
fraturamento das tropas. Era essa última opção que
algumas das lideranças dos Sargentos de antes 64
sonharam. Por isso iniciaram uma grande campanha de
mobilização. A eleição do sargento Antônio Garcia Filho
para o Congresso Nacional – fato sem precedentes (ou
com pouquíssimos exemplos) na história –, que tinha
ensejado um grande movimento de massa entre todos os
sargentos das Forças Armadas brasileiras – com naturais
radicalizações aqui e ali, como é previsível –, mas que
não teve tempo de chegar ao ponto de ruptura devido
justamente ao advento do golpe. Por outro lado, diga-se
de passagem, que o pouco de mobilização que se havia
conseguido entre os sargentos, com a atitude
imponderada do Sargento António Prestes de Paula, em
Brasília – desencadeando aquele levante insensato de 12
de setembro de 1962 – contribuiu para desbarata a pouca
mobilização existente.
Consumado o golpe, muitas pessoas
esperançosas se deslocaram para o Rio Grande, onde
Brizola e o então prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise,
tentaram uma resistência desesperada – mesmo frente à
crua realidade de o presidente João Goulart já ter
desistido e ido para o Uruguai –, o que levou a alguns
irônicos a dizer que naquele caso “a esperança não fora a
última a morrer, morrera antes...” –, mesmo tendo
contado com o apoio destemido do general Ladário Telles
Pereira, um bravo chefe que já tinha demonstrado seu
valor ao lado de Lott em 1955. Tudo em vão.
A paulada (sobre o lombo dos sargentos) viria,
como veio, e seria mesmo forte...
Foi depois de ter sido, de certa forma,
surpreendido pelo golpe, que Brizola pensou seriamente
em resistência. E, por carecer de simpatia de expressão no
seio dos oficiais, ele não teve outra alternativa do que
recorrer aos sargentos. E isso, levou a que surgissem
algumas contradições entre os interesses políticos de
Brizola e os objetivos políticos dos sargentos depois de
64, consubstanciadas entre luta armada prolongada
(guerra revolucionária) ou insurreição. Não desejamos
omitir que, ao tentar substituir “a um partido
revolucionário”, já que tal não existia no Brasil, nós, os
sargentos, no mínimo, fomos ingênuos...
A grande contradição posterior à resistência
armada ao golpe militar deu-se naquela opção, a qual eu
pessoalmente acreditava – já que fui uma das peças
principais na busca daquele caminho –, pois penso que
Brizola não abraçou aquela opção com suficiente
sinceridade. E como ele nunca desejou falar sobre aquela
experiência, cujo ponto mais ousado foi a tentativa de
guerrilha do Caparaó4 – da qual fui sub-comandante –
nunca saberemos e, tampouco poderemos analisar, tendo
por base suas palavras.
66 - Brizola, os Sargentos e a Luta Armada
Se o chamado esquema de sustentação do
governo Jango era frágil, já que a maioria dos oficiais viao como desejoso de instalar uma risível e hipotética
“república sindicalista”, imagina-se o “perigo” que
aquelas cabeças ocas da maioria dos oficiais, e bem
manobradas pelas teorias da Escola da Américas, não via
na posição de Brizola... Não é absurdo supor que ele, que
não dispunha de nenhuma penetração entre os oficiais, só
pudesse buscar apoio entre os sargentos, onde as
simpatias para com suas posições eram mais que
evidentes.
Assim sendo, o que poderiam fazer os sargentos?
Os sargentos são treinados apenas para comandar
um pelotão – 25 homens – podendo, excepcionalmente,
comandar até uma companhia – 200 homens. Então não é
viável esperar que alguns deles possam comandar uma
divisão ou um exército. Em um processo de guerra
revolucionária – que é fundamentalmente uma guerra
política –, porém, os talentos surgem e grandes chefes
militares vindos de baixo podem ser revelados.
Napoleão, que foi capitão, teve entre seus futuros
generais muitos que vieram de sargentos, como foram os
casos de Joachim Murat (1767-1815), André Masséna
(1758-1817), Andoche Junot (1771-1813), por exemplo.
4
Se do ponto de vista político, a eleição de um sargento da ativa,
Antônio Garcia Filho, para a Câmara, como deputado federal, em
1962 – com quase 20 mil votos, sendo o quarto mais votado da sua
legenda (o Partido Trabalhista Brasileiro, PTB), pelo então Estado
da Guanabara – significou o ponto mais alto da prática política do
Movimento dos Sargentos; a tentativa de guerrilha do Caparaó –
quando um reduzido número de jovens, em sua maioria exsargentos, manteve-se em constante treinamento por mais de sete
meses, mal alimentados, em condições climáticas adversas (chuvas
constantes por mais de 60 dias, isso só em uma ocasião), quase sem
material de proteção e abrigos adequados –, em uma região cuja
altitude média estava na casa dos mil metros (chegando a quase três
mil), significou o ponto mais alto a que uma parte daqueles
sargentos “mais politizados” (dos quais sempre estou a falar),
chegaram. Há quem diga que Caparaó foi o “18 do Forte” dos
sargentos. Não concordo. Como o segundo homem na escala
hierárquica de comando daquele grupo – que nunca ultrapassou o
número de 14 pessoas e que foram presos no final apenas oito
famélicos e doentes sobreviventes –, não concordo de nenhuma
forma. Primeiro porque a maioria daqueles jovens tenentes, que
protagonizou aquela epopéia de 1922, morrerem. Os que
sobreviveram – com a exceção de Luís Carlos Prestes, que não
estava lá – todos renegaram aqueles nobres ideais da juventude,
muitos os traíram e se fizeram lacaios (como se dizia naqueles
tempos de sonhos e utopias) dos interesses dos Estados Unidos,
alguns acabaram sendo torturadores dos próprios companheiros de
farda e da parcela da juventude civil brasileira que se rebelou
depois de Caparaó. Quanto aos sargentos sobreviventes do Caparaó
– permitam-me a imodéstia – não renegaram o ideal que os levou a
fazer aquele gigantesco (quase absurdo) sacrifício, pelo menos não
o negaram até agora. Muitos daqueles sargentos – hoje velhos –
depois de anos nas prisões e no exílio, por seguir a pacata trilha da
vida de aposentados – o famoso refugio do guerreiro –, para isso
ensarilharam as armas, mas nunca negaram as razões de tê-las
empunhado. Sobre eles poder-se-ia dizer aqueles versos de Castro
Alves: “Se resvalaram foi no chão da História/ Se tropeçaram foi na
eternidade/ se naufragaram foi no mar de glória”... Eram quatorze
apenas, sete sargentos, dois subtenentes, dois marinheiros e dois
civis. O Sargento Manuel Raimundo Soares, o 14º companheiro,
tinha sido barbaramente assassinado um ano antes, afogado no Rio
Guaíba, em Porto Alegre.
Retomando ao tem central o golpe foi dado e
Brizola não mais podia sonhar em galgar o poder por
meio do voto popular, então lhe restava aquilo com o qual
ele nunca pensara, sequer especulara, a luta armada. Ele
optou pelo levante, o golpe de mão, por julgar mais
rápido.
Sobre as relações de Brizola com os sargentos,
lembro-me um episódio, que fui involuntariamente
partícipe. Estávamos na casa do deputado da esquerda
uruguaia, Enrique Erro, aguerrido parlamentar da velha
escola espanhola de cavaleiros – quando lá chegamos
exilados, ele tinha acabado de participar em um duelo,
instituição que ainda existia no Uruguai – (creio que com
florete), quando, não sei por qual razão, o termo sargento
surgiu e Brizola, entre bem humorado e magnânimo,
disse: “Não. Todos estão promovidos a tenente.” Amadeu
Felipe, que se encontrava lá comigo, olhou-me e sorriu.
Ali estava – muito bem oculto (talvez nem
tanto...) – o chamado preconceito de classe. O que se
podia questionar era como um líder popular (ou
populista) podia ter preconceito com uma categoria
militar mais baixa, ou seja, popular? Isso, porém, não
seria motivo – como não foi – para que nós nos
sentíssemos ofendidos.
O golpe de mão era, podia ou tinha que ser, o
caminho mais curto. Brizola gozava de grande
popularidade no meio da população do Rio Grande – e em
um grau menor, em todo o Brasil – contavam com
bastante apoio na Brigada Militar, os sargentos em grande
maioria, em todo o país, eram-lhe simpáticos, por que não
tentar um golpe de mão?
Os pragmáticos, não sem uma boa dose de bom
humor, dizem que não se tendo cão, mais seguro mesmo é
caçar com cachorro... Foi aí que entraram algumas
lideranças dos sargentos, as mais politizadas, as mais
ideológicas e mais realistas5. E se tomou a decisão: Nós,
sargentos ajudávamos Brizola a organizar o levante
armado, enquanto ele ia-nos ajudando, com meios
financeiros, a montar o foco guerrilheiro, se não desse
certo o levante, poderia haver uma posterior decisão de
continuar nos apoiando de alguma forma ou se separar de
nós. Esse acordo, na realidade, não chegou a ser feito por
escrito, no papel, como se diz. Amadeu Felipe, que era
nosso líder, sempre deixou claro que aquela opção estava
implícita. E ela nascia de uma necessidade prática real.
5
Amadeu Felipe, que hoje não faz segredo de ter pertencido ao
Partido Comunista Brasileiro – o Partidão – e ainda pertencer aos
heróicos remanescentes dele, devia ter vivido, naquele tempo um
terrível drama de consciência, por mais que ele fosse pragmático
(o sargento Soares, entre sério e brincalhão, dizia que ele era “frio e
calculista”), entre optar pela linha pacifista do Partido e a luta
armada que ele, inteligente e bravo, acreditava sinceramente.
Talvez Amadeu Felipe sonhasse em provar na prática àqueles
velhos carcomidos pelo stalinismo (e alguns jovens oportunistas –
sua banda podre – que hoje dominam a antiga sigla daquilo que foi
uma gloriosa agremiação um dia), esperando que se desse, de
forma invertida, a pugna entre a maioria (bolchevique) e minoria
(mechevique). No caso não havia pugna, mas inatividade e
oportunismo de uma maioria e o destemor e perseverança de uma
minoria, no caso, representada por ele. Apenas ele. Ou seja, a
História se repetindo em forma de farsa.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (64-68) - 67
Porque havia um problema, esses sargentos, por serem
politizados, desejavam a guerra revolucionária, mas não
podiam levá-la adiante só com o grupo reduzido de que
dispunham. Existia mais outro fator, esse favorável a
Brizola, que nos tolhia de partir para essa posição
isoladamente, não só porque precisávamos de um nome
que tivesse repercussão internacional, como
precisávamos de dinheiro para nos transformar em
revolucionários profissionais, além de proporcionar
segurança a nossas famílias. Na falta de um partido
revolucionário, que tradicionalmente cumpre esse papel,
restava-nos a busca de um aliado. Brizola era o único
político importante que poderia cumprir esse papel.
Havia ainda, entre o meio dos sargentos, a crença
ingênua de que Brizola pessoalmente possuísse esses
recursos – um grande número de sargentos acreditava que
sim, que ele os tinha. As lideranças sabiam que isso era
uma quimera, a História nunca registrou a existência de
um “bom burguês” que usasse seu capital para financiar a
derrocada de sua classe social. Isso, porém, não podia ser
dito dessa forma. Por isso, surgiram mais tarde, os
pragmáticos ou aqueles que não crendo que nenhum
proprietário fosse investir o seu dinheiro, onde estaria a
segurança dos seus filhos (e o seu próprio, em caso de
fracasso), em uma aventura, então, se fez necessário
aceitar a possibilidade daquele dinheiro vir de fora, de
alguns países aliados.
Os contatos internacionais feitos por Neiva
Moreira, que esteve em Cuba, e Paulo Schilling6, que
esteve na China, mostraram que teoria e auxílio em
adestramento técnico de jovens, por exemplo, eram-nos
oferecidos, mas recurso mesmo não veio nenhum. O
famoso “ouro de Moscou”, tão falado pelos grandes
órgãos da imprensa, não passava de conversa mole para
boi dormir. Enquanto o boi dormia, o dinheiro de
Washington corria solto, alimentando a democracia de
poucos e a famosa “liberdade dos donos dos grandes
órgãos da imprensa livre”.
Há quem diga que esse dinheiro teria vindo de
Cuba. Brizola nunca esclareceu esse ponto. Algum
dinheiro deve ter vindo, como de fato parece que veio,
mas o autor dessas linhas não crê que um país com a
economia frágil como a de Cuba pudesse financiar a
revolução brasileira. Dar uma ajuda, sim, podia.
Financiá-la, nunca.
Bem, de onde teria vindo o dinheiro, se é que veio
algum, não nos interessa. O que nos interessa é como
Brizola segurou, pelo menos inicialmente, o ímpeto
daqueles jovens sargentos politizados (perdoem as
repetições), levando-os inicialmente a adiarem o projeto
de guerra revolucionária e concordarem em participar de
um golpe de mão.
Foi o sargento Amadeu Felipe da Luz Ferreira o
homem que negociou com ele e chegou a esse
denominador comum. Disse-me apenas Amadeu Felipe
6
Creio que o coronel Dagoberto Rodrigues esteve em Argel, onde
teria tido contato com Miguel Arraes. Caso tenha ido, não houve
nenhum resultado prático, tampouco Arrais teria demonstrado
desejo de participar de “uma aventura” armada.
que ele concordava com Brizola em participar e ajudar a
preparar o golpe de mão e, em troca, Brizola iria
ajudando-nos a reunir material para preparar um foco
guerrilheiro, como já fora dito. O mais, que é aventado
aqui, é especulação saída de minha cabeça...
Lembro-me de uma conversa que mantive com
Brizola no balneário de Atlântida – estando somente eu e
ele (mas que me foi, mais tarde, confirmada por Paulo
Schilling), quando aventado que seríamos vitoriosos em
um levante só nos primeiros momentos, já que os
golpistas tinham condições de nos esmagar, devido à
disparidade de forças, ou seja, nos derrotar em uma
guerra convencional, pois eles tinham muito mais meios
do que nós. A solução – palavras de Brizola – seria criar
um grande problema internacional, recuar um grande
número de combatentes com suas famílias e forçar um
internamento no Uruguai. Com isso, com a criação de um
problema internacional, envolvendo o Alto Comissariado
da ONU para Refugiados, a situação complicar-se-ia,
podendo até se gerar problemas de governo no exílio.
Irrelevante ou não esse ponto, o certo, porém, é
que ele nunca fez uma clara opção pela luta armada
prolongada, aquilo que a direita chama de guerra
revolucionária. Aquele era um projeto dos sargentos mais
politizados, tendo como núcleo dirigente, os sargentos
Amadeu Felipe da Luz Ferreira, Manuel Raimundo
Soares, Araken Vaz Galvão (autor dessas linhas), o
subtenente Jelcy Rodrigues Correa, o sargento Daltro
Jacques D'Ornelas e outros.
Foram esses também que, capitaneados pelo
sargento Amadeu Felipe, ajudaram no processo de
rebelião. Várias tentativas foram feitas, tendo por base
uma parcela da Brigada Militar – oficiais e sargentos –,
alguns poucos sargentos da ativa, do Exército, em Porto
Alegre, operários da Companhia de Carris (bondes) e um
pequeno núcleo de ferroviários e trabalhadores do
pequeno porto de Porto Alegre, que eram onde se
concentrava os esforços de rebelião.
Sobre esses núcleos civis, que os sargentos
deveriam comandar como improvisada milícia, Amadeu
Felipe – que era nosso principal articulador, até mesmo
por questões de segurança – considerava de pouca valia,
uma vez que não tinham nenhum adestramento no uso de
armas, ainda que alguns fossem de inegável valor como
ativistas do sindicato. Ademais, Amadeu Felipe era
pessimista em relação as conspiradores da Brigada.
O certo é que todas as iniciativas – que não
passaram da fase de preparação – fracassaram. Vários
fatores contribuíram para esse fracasso, eu mesmo, por
razões meramente pessoais (e bastante irresponsáveis,
por imaturidade), fui atingido por um tiro de revólver
propositalmente dado por uma mulher que morava
comigo. Esse lamentável episódio quase me custou a
vida, além de ter desmantelado um aparelho, onde eu
morava no bairro de Ipanema, em Porto Alegre – com
todas as conseqüências que se possa imaginar. Sem falar
que fiquei quase um ano na prisão, no Presídio da Ilha das
Pedras Brancas, com saúde abalada. Com essa prisão,
fiquei completamente distanciado da conspiração, soube,
porém, mais tarde, que várias outras tentativas
68 - Brizola, os Sargentos e a Luta Armada
fracassaram. Em uma delas, devido a uma súbita diarréia
nervosa de um dos chefes.
Em uma tentativa, antes da minha prisão,
chegamos a deslocar um grande número de sargentos do
Rio de Janeiro, creio que uns 60, com todo o trabalho de
logística que isso implicava – e que também mostrava a
Brizola a nossa capacidade de mobilização –, resultando
em fracasso. Não se pode manter 60 homens hospedados
em diferentes pontos de uma cidade sem que isso gerem
problemas, principalmente de ordem humana, como um
simples telefonema para casa na busca de dar e receber
notícias da família.
À medida que o esquema de rebelião de Brizola
fracassava – e fracassava sempre –, pressionado por seu
Estado Maior – Neiva Moreira, Dagoberto Rodrigues e
Paulo Schilling –, a opção do foco começou a receber
maior apoio.
Embora tivesse ligações com vários políticos,
Brizola tinha nesses três homens o núcleo que esteve no
centro de todas as preparações que se fez no Brasil e no
exterior para derrubar a ditadura, fossem elas no campo
das rebeliões ou das tentativas de guerrilha.
Nesse ínterim, com o fracasso das sucessivas
tentativas de levante militar no Rio Grande, foi criado o
Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR – o qual
se propunha a instalar alguns focos de guerrilha rural em
alguns estados brasileiros. O primeiro deles seria no sul,
no estado de Santa Catarina – terra natal de Amadeu
Felipe – onde existia, segundo este, um bom potencial
revolucionário entre os mineiros de carvão da região de
Criciúma. Essa tentativa fracassou devido a uma
casualidade.
Fizeram várias. Em Mato Grosso, região de
Corumbá; no Brasil Central, em Goiás, na qual esteve
envolvido Flávio Tavares. Além da tentativa da região de
Criciúma, em Santa Catarina, a qual uma infelicidade a
fez abortar e, com os remanescentes desta, a mais séria,
mais longa e mais bem organizada tentativa de guerrilha
rural, aquela que entrou para História como a Guerrilha
do Caparaó. Para coordenar esses núcleos guerrilheiros
foi proposta a criação de uma organização. Por essa via
chegou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário,
ampla organização sem um padrão ideológico muito
definido, justamente para poder abrigar o maior número
possível de opositores à ditadura.
Ao realçar a oposição inicial de Brizola e Neiva à
guerra de guerrilha, quero apenas fazer-lhes justiça.
Ambos desejavam tão-somente romper com a ilegalidade
do golpe militar com uma rebelião que trouxesse o país
para o quadro de legalidade que se vivia antes de abril de
64. Isso implicaria em eleições livre, nas quais Brizola
tinha grandes possibilidades de vencer a disputa para a
presidência. Com isso quero dizer que tanto ele como o
Neiva não eram revolucionários no sentido marxista do
termo, eram reformistas e foram os fatos políticos – entre
eles a falta de opções dentro do quadro democrático; e por
pressão nossa, inclusive, entre outros fatores – que os
empurraram para uma posição mais radical.
Bem, sobre o papel de Brizola em relação àquela
tentativa de guerrilha, o livro de José Caldas, “Caparaó, a
primeira guerrilha contra a ditadura militar” e o filme de
Flávio Frederico “Caparaó” já documentaram o assunto
com objetividade e não voltarei a falar no assunto.
Aqueles, porém, que são, pela vida afora, mais
realistas que o rei, dizem que Leonel Brizola teria traído
Caparaó. Contudo, não se trai aquilo que não se apóia,
aquilo que não se fez parte de coração, aquilo que apenas
se sentiu uma longínqua simpatia, simpatia essa que o
levou a até prestar alguma ajuda.
Por outro lado, nós, aquele grupo de sargentos
mais politizados – entre eles, Manuel Raimundo Soares,
Amadeu Felipe da Luz Ferreira e o autor dessas linhas,
Araken Vaz Galvão – sempre pensaram que Brizola era
tão-somente um companheiro de percurso, o que a
esquerda chamava de aliado, companheiro de apenas uma
parte do caminho. Aceitávamos sua liderança, não só
porque ele era o líder inconteste de uma importante
parcela do povo brasileiro, e porque tinha projeção
internacional, e, também, porque precisávamos dele,
talvez mais do que ele de nós, para darmos os primeiros
passos na luta. Aliamo-nos a ele sabendo que poderia
ocorrer, pelo menos, duas coisas: Ele se separar de nós em
uma parte do caminho; ele se entusiasmar e seguir até o
final, na esperança de controlar nosso possível
radicalismo; enquanto nós não excluíamos a hipótese de
que ele evoluísse no processo. O que nunca passou por
nossa cabeça era que nós, se chegássemos ao poder,
passássemos a pensar e agir como ele. Nós éramos
revolucionários; ele, não.
Afinal, há belo verso do Vinícius que, depois de
falar de um “fato extraordinário”, diz: “O operário faz a
coisa/ e a coisa faz o operário...”
Brizola poderia muito bem se incluir nesse caso...
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (69-74) - 69
Crise do sistema partidário na Argentina,
algumas reflexões1
Paula Schaller2
Pensar o regime partidário impõe uma análise
retrospectiva para vislumbrar tendências que, surgidas na
crise de 2001, ainda incidem sobre o ciclo político. Se
este tem sido um ponto de inflexão para os estudos
políticos dirigidos à análise das transformações da
representação política, seus resultados são geralmente
enfocados a partir de explicações que não dão conta de
sua profundidade, primando por uma análise de tipo
endógeno, onde as transformações da representação
política são vistas como produto da metamorfose das
pautas dessa representação, ao invés de uma perspectiva
centrada na dinâmica da relação entre as classes e as
frações de classe, no suposto denominador comum da
ciência política atual, de que estas relações já não seriam
mais o fundamento da ação política. Entendendo que a
política continua sendo o âmbito da veiculação de
interesses sociais anteriores a esta esfera, preexistentes à
sua constituição política, vamos refletir sobre o estado
atual do sistema de partidos na Argentina, polemizando
com noções que Inés Pousadela formula ao analisar a
representação política. Não faremos uma análise
exaustiva nem acabada sobre o tema, mas aportes
introdutórios a uma reflexão que merece ser
complementada com estudos específicos.
origem e nem a dinâmica subsequente das ações de
massas, sendo necessário considerar o destino das
instituições políticas e os partidos, a deslegitimação
(perda de hegemonia) das frações dominantes, etc.
Em 2001 emergiu um amplo bloco social –
desempregados, pobres urbanos, juventude plebéia e
classes médias arruinadas – que, mediante a ação direta
nas ruas, quebrou a institucionalidade e a
governabilidade vigente.4 Assistimos, assim, a uma
ruptura das classes que se colocaram em movimento com
as figuras políticas que declaravam representá-las, dando
lugar ao que, recorrendo a Gramsci, denominamos de
crise orgânica:
Em certo momento de sua vida histórica, os
grupos sociais se separam de seus partidos
tradicionais. Isto significa que os partidos
tradicionais, com a forma de organização que
apresentam, com os homens determinados que
os constituem, representam e dirigem, já não
são reconhecidos como expressão própria de
sua classe ou de uma fração dela. Quando estas
crises se manifestam, a situação imediata se
torna delicada e perigosa, porque o terreno é
propício para soluções de força, para a
atividade de potências obscuras, representadas
por homens providenciais ou carismáticos.
(…) (resultando uma) crise de hegemonia da
classe dirigente, produzida ou porque a classe
dirigente falhou em algum grande
empreendimento político em que requereu ou
impôs pela força o consenso das grandes
massas (como no caso de uma guerra) ou
porque vastas massas (…) passaram
subitamente da passividade política a uma
certa atividade e expõem reivindicações que
em seu inorgânico conjunto constituem uma
revolução. Fala-se de 'crise de autoridade' e
nisto consiste precisamente a crise de
hegemonia, ou a crise do Estado em seu
conjunto.5
Crise orgânica e abertura de um ciclo político
O fim do governo do Fernando de la Rúa
representou na Argentina a primeira queda de um
governo constitucional por ação direta das massas e não
de um golpe militar. Na crise que lhe deu lugar foi
determinante não só a recessão econômica – com o
conseqüente aumento do desemprego e empobrecimento
de setores populares e setores da classe média – como
também a grande divisão existente entre as distintas
frações da classe dominante3 combinada com um grande
desprestígio do regime político.
Se a crise econômica e a consequente
pauperização social foram componentes necessários para
a explosão de 2001, no entanto não são suficientes para
explicar os fenômenos político-sociais aos quais deram
1
Tradução do espanhol de Angélica Lovatto, professora da UNESPMarília, e de Paulo Douglas Barsotti, professor da FGV-SP.
2
Licenciada en Historia, Facultad de Filosofía y Humanidades,
Universidad Nacional de Córdoba. Becaria de CONICET, Centro
de Estudios Avanzados-Universidad Nacional de Córdoba.
3
Ver BASUALDO, Eduardo. Sistema Político y Modo de
Acumulación en la Argentina. UNQ-FLACSO-IDEP, Buenos
Aires, 2001.
4
Ver WERNER, Ruth e AGUIRRE, Facundo, “¿Qué fue el 19 y 20
de diciembre de 2001?”. In: La Verdad Obrera, n°217, 14 de
diciembre de 2006, Buenos Aires.
5
GRAMSCI, Antonio. La política y el Estado Moderno. Editorial
Planeta Agostini, Colección Obras Maestras del Pensamiento
Contemporáneo, n° 39. Espanha, 1985, p.124.
70 - Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões
A conjugação da crise econômica, política e
social resultou numa ruptura da hegemonia pela divisão
inter-burguesa em torno do modelo econômico projetado6
e pela falta de legitimidade das frações políticas
tradicionais. Surgiram tendências à ação direta de massas
que ultrapassaram os limites da democracia burguesa
(ação política canalizada através dos representantes
parlamentares e o voto como único exercício da
soberania), abrindo espaço para o desdobramento de
ações independentes e espontâneas como a multiplicação
dos piquetes de desempregados, ocupação de fábricas e
convocação de assembléias populares.
A esse respeito, discordamos da análise de Waldo
Ansaldi para quem estas assembléias, onde “milhares de
vizinhos se reuniam espontaneamente para construir
novas formas de instituir o público-político, superando a
institucionalidade estatal existente e a mediação
partidária”7 teriam fracassado centralmente pela
estratégia de cooptação da esquerda, que ocasionou a
deserção de vizinhos e seu posterior desaparecimento. Se
estas assembléias expressaram uma demanda legítima de
democracia direta diante do descontentamento com os
partidos do regime e os mecanismos políticos
tradicionais, padeciam do limite dado por sua
composição social e por estarem constituídas
centralmente por estratos de classe média, onde os
trabalhadores atuavam diluídos como vizinhos ou
cidadãos e não como classe organizada. As assembléias,
que Ansaldi refere, foram reconhecidas como soviets por
setores do establishment (Jornal La Nación) e pela
esquerda partidária, mas estavam longe de sê-lo por não
terem surgido de uma ligação orgânica com as fábricas e
setores de serviços que centralizam milhões de
assalariados que operam a economia.8 Sem superar esta
condição, foram incapazes de articular uma alternativa de
poder que solapasse as bases sociais do regime político,
incapazes de levar a cabo o programa expresso em suas
próprias resoluções:
6
“Os principais grupos capitalistas se agruparam em torno de duas
saídas frente à crise da convertibilidade, esquematicamente os
'dolarizadotes' e os 'devaluadotes'. Os primeiros, (…) agrupavam
aqueles que foram os principais “ganhadores” dos anos 1990, as
empresas privatizadas e os bancos. (…) Com a imposição de
dezembro de 2001 da saída desvalorizadora, mudaram as 'regras
do jogo' para os negócios capitalistas. Algumas medidas, como a
pesificação das dívidas em dólares e a brutal queda salarial,
beneficiaram igualmente a quase todos os setores capitalistas.
Mas o novo esquema alterou as capacidades de obter rendas
extraordinárias. Os primeiros beneficiados foram os grandes
exportadores de commodities, que aproveitaram a vantagem
combinada da diminuição de custos locais e a subida de preços no
mercado internacional. Os exportadores de produtos agrícolas, de
petróleo e grupos industriais que exportam grande parte de sua
produção e têm dimensão internacional, foram os principais
favorecidos pela nova situação.”. Ver CASTILLO, Christian. Una
nueva etapa en el gobierno de Kirchner. Realineamientos de clases
y debates de estrategias. In: Revista Lucha de Clases, nº 2/3,
Buenos Aires, abril de 2004, p.23.
7
ANSALDI, Waldo. Tanto andar a los mandobles para terminar a
los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos
argentinos. In: Revista Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 23, nº
38, dezembro de 2007, p.438-459.
8
Os soviets, cuja gênese histórica data da primeira revolução russa
de 1905, constituíam uma verdadeira frente única das massas em
As assembléias podiam votar que os
trabalhadores desempregados viajassem grátis
de trem, metrô ou coletivos, mas se os
ferroviários, os trabalhadores do metrô ou das
empresas de coletivos não interviessem
ativamente, uma medida deste tipo não poderia
ser executada.9
Em nosso entendimento, este é um dos motivos
centrais da posterior recomposição do regime político, já
que tanto os organismos de democracia radical criados
pela classe média, como as ações dos desempregados,
foram incapazes, por si mesmos, de projetar uma
alternativa ao regime burguês sem consolidar uma
aliança estratégica com a classe operária empregada.
Assim como Gramsci, entendemos que se uma crise
orgânica não se traduz em desagregação estatal e
capacidade das classes exploradas de assumir um papel
dirigente – vale dizer, projetar sua própria hegemonia –
são compreensíveis os fatores que possibilitaram a
reestabilização capitalista e do regime político.
Se hoje é evidente que a crise orgânica não
permanece aberta – como se impôs a fração
desvalorizadora que recompôs a institucionalidade
através de um crescimento da economia,10 uma mudança
de discurso governamental e uma política de
relegitimação de instituições como a Corte Suprema, as
Forças Armadas e o Congresso – acreditamos que 2001
inaugurou um ciclo político de crise do bipartidarismo em
que estamos imersos.
Sistema partidário: tendão de Aquiles do
regime político
Ansaldi considera que um dos aspectos do estado
quase insurrecional que possibilitou o acesso de Duhalde
à presidência em 2002 foi a solidez do justicialismo
portenho, com uma “notável persistência de sua
capacidade de penetração nos setores sociais mais
pobres e um nível de organização capaz de controlar o
conflito social, em boa medida através de redes
clientelistas, eficazmente utilizadas na distribuição de
cerca de dois milhões de planos sociais”, oferecendo-se
“diante da ruptura institucional, como última garantia
dos restos do sistema político”.11 Efetivamente, o PJ –
Partido Justicialista – atuou diante da crise de hegemonia
como “partido de contenção” do regime burguês,
impondo um “governo de transição para evitar a
'anarquia'”, como autodefiniu Duhalde, determinante ao
estabelecer as bases para a normalização política e uma
luta, onde a representação das mesmas partia de critérios de classe
e não de generalizações universais, o que levou o marxismo russo a
definí-los como “embriões do futuro poder proletário”. Ver
TROTSKY, León. Historia de la Revolución Rusa. Tomo I,
editorial Antídoto, Buenos Aires.
9
“Y sin embargo, ay, mira lo que quedó…”, en Miradas del Sur,
Buenos Aires, 23 de diciembre de 2003.
10
Baseado na desvalorização monetária que deprimiu o poder de
compra dos assalariados e que aumentou o lucro dos setores
ligados à exportação, acompanhado por um ciclo de altos preços
internacionais das commodities.
11
ANSALDI, op.cit.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (69-74) - 71
transição de poder conforme os canais políticos habituais.
Mas a descrição deste papel não explica, por si mesmo,
por que o peronismo pôde desempenhá-lo, mas sim à sua
suposta imagem de força.
O PJ pôde sustentar-se e atuar como “partido de
contenção”, menos por sua própria força, e mais como
produto do handcap que representou a não intervenção da
classe operária – sua base social histórica – o que por sua
vez permitiu a sobrevivência de um dos pilares do
aparelho peronista – as direções sindicais burocratizadas
– e o conjunto do regime burguês. E embora Ansaldi
analise a fragmentação do peronismo – que se apresentou
dividido em três candidaturas às eleições presidenciais de
2003 – o autor nem sequer menciona a falta de
intervenção da classe operária, tirando conclusões fora da
dinâmica do processo, ao propor a possibilidade de uma
“revolução política”, cujo sujeito e programa não define
em momento algum.
Em nossa opinião a ausência da classe operária
organizada como sujeito de luta na crise orgânica explica
em grande parte a recomposição do regime político
operada em 2003, mas por outro lado não podemos
subestimar as fraturas produzidas nos últimos tempos na
relação desta com o peronismo.
Crise do bipartidarismo e fragmentação do
regime político
Considerado o conjunto do regime político atual,
vemos que uma de suas falhas consiste na dificuldade da
classe dominante de recompor partidos orgânicos com
base de massas. O kirchnerismo emergiu em 2003 com
um discurso renovador e antineoliberal, o que ampliou
suas bases em setores das classes médias. Ampliou
também suas bases junto aos assalariados por meio de
uma recomposição econômica, que redundou na criação
de aproximadamente 3 milhões e meio de postos de
trabalho, na institucionalização das paritárias, no
aumento do salário mínimo, etc. Apesar disso, não
conseguiu consolidar uma força política organizada que
fizesse desta uma base estável, muito menos militante.
Sua intenção inicial de reconstruir o bipartidarismo
através do estabelecimento de duas coalizões amplas –
uma de centro-esquerda e outra de centro-direita12 –
fracassou, mudando a “transversalidade” da primeira
hora Kirchner em um modelo de construção apoiado
sobre a velha estrutura peronista. Um peronismo que já
não é, como antigamente, uma força política com apoio
12
Projeto que Julio Godio resume dizendo: “O Presidente Néstor
Kirchner pensa – apoiado naquilo que no velho Partido
Justicialista (PJ) deixou faz muitos anos de funcionar como uma
só organização partidária (no máximo agora é uma instável
'confederação' de tendências), e no fato de que a União Cívica
Radical (UCR) dividiu-se e está em processo de decomposição –
que no futuro deveria criar-se um cenário com duas grandes
coalizões político-partidárias. Uma coalizão de partidos seria de
centro-esquerda, com apoio no peronismo e liderada pelo
kirchnerismo; a outra coalizão agruparia os partidos de centrodireita. Existiriam partidos 'bisagra', menores entre ambas as
coalizões”. Ver GODIO, Julio. “Acerca del nuevo partido político
de Kirchner”.
operário de massas militante, mas sim uma espécie de
federação de caudilhos locais, apoiados em aparelhos
clientelistas e uma estrutura sindical burocratizada e
desprestigiada – que é pressionada tanto por cima, com as
leis contra o monopólio da representação sindical ditadas
pela Corte Suprema, como por baixo, com um processo
antiburocrático que percorre amplos setores do
movimento operário e que os meios de comunicação
denominaram sindicalismo de base – cujas expressões
paradigmáticas são a Comissão Interna da Kraft, o Corpo
de Delegados dos trabalhadores da e Metrô e o Sindicato
Ceramista de Neuquén, setores que se reivindicam
classistas.
Este aparato apoiado no tripé, governadores do
interior / intendentes da Grande Buenos Aires /
burocracia sindical, não conseguiu despertar um
entusiasmo que nos permita falar de sobrevivência de
uma “identidade peronista” da classe operária e camadas
pobres, questão que tem relação genética com a estrutura
econômico-social que favoreceu o peronismo ao longo de
décadas.
Como diz o sociólogo Christian Castillo, se no
final dos anos 1970, Portantiero afirmava que
historicamente havia sobrado sindicatos e faltado
burguesia nacional ao peronismo (aludindo que a força
social do movimento operário era mais significativa em
relação a do capitalismo nativo, dificultando a política
peronista de conciliação de classes), depois do
menemismo – quando o peronismo no governo favoreceu
o aumento da dominação do capital imperialista sobre a
economia nacional, com grande parte da burguesia local
transformando-se diretamente em financeira,
transferindo dólares aos paraísos fiscais – a tentativa
kirchnerista de reconstruir uma burguesia nacional do
Estado mostrou grandes limites. Das principais 500
grandes empresas que operam hoje no país, dois terços
estão em poder do capital estrangeiro – a mesma
percentagem que no final dos anos 1990 –, enquanto que
só no ano de 2009 mais de 60 das 100 companhias
vendidas nos ramos de siderúrgica, indumentária,
mantimentos e bebidas, ficaram em mãos de
capitais estrangeiros.13 Em que pese a retórica
neodesenvolvimentista, o modelo Kirchner só chegou ao
fortalecimento de setores da burguesia local através do
que muitos analistas denominam o capitalismo de
amigos, mediante a distribuição de subsídios e diversas
formas de ajuda estatal, enquanto, paradoxalmente,
terminou num enfrentamento com grande parte da
burguesia nacional “realmente existente”,14 como a
burguesia agrária, o grupo Techint15 e o grupo Clarim.16
13
MAIELLO, Matías e ROMANO, Manolo. El fin del ciclo
kirchnerista. In: Revista Estrategia Internacional, n°26, marzo de
2010, Buenos Aires, p.105.
14
Ver CASTILLO, Christian. La decadencia y corrupción de la
política burguesa. In: La Verdad Obrera, Buenos Aires, 5 de
noviembre de 2009.
15
Grupo empresário de capitais argentinos centralmente dedicado
ao ramo da construção. Possui mais de 100 empresas operando em
diversas partes do mundo e conta com 60 mil empregados.
16
A maior empresa de multimídia da Argentina, que concentra o
Diário Clarín, a empresa ARTEAR (que produz e comercializa
72 - Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões
Este último é um fator que conduziu a crise
política às alturas, dadas as disputas entre estas frações
que não conseguem consolidar-se em expressões
políticas sólidas que condensem um programa definido.
Nos últimos tempos, esta crise girou em torno do
pagamento da dívida externa que o governo tenta fazer
frente com reservas do Banco Central, promovendo o
pagamento com recursos do orçamento nacional, questão
que a oposição parlamentar não aceita. Se na questão de
fundo, o pagamento da dívida, as diversas frações
econômicas e políticas coincidem, a crise desnuda a
tentativa da oposição de pôr um limite à política do
governo de utilizar os recursos públicos para subsidiar
setores afins do empresariado, cooptar governadores e
intendentes – e promover uma leve transferência de
ganhos aos setores mais pobres com a atribuição
universal por filho17 – esquema de poder desenhado pelo
kirchnerismo para governar no marco da fragmentação
do regime político e a impossibilidade de rearmar um
sistema estável de partidos.
Portanto, a UCR – União Cívica Radical – saiu de
2001 muito debilitada como expressão política das
classes médias, reduzida a um partido marginal do ponto
de vista nacional, permeada de fragmentações e rupturas,
questão que responde tanto à crise em que terminaram
seus governos, como à própria polarização social da
classe média, sua base eleitoral histórica.18 Assim, como
partido nacional tradicional, o radicalismo pós-2001 se
viu reduzido a sua mínima expressão histórica, e é
incapaz de se localizar como a variante alternativa ao
peronismo.
O que sobressaiu no cenário político de 2001,
mais que os partidos orgânicos e enraizados, foram
coalizões muito instáveis, acordos conjunturais entre
frações das forças políticas e figuras midiáticas,
expressas em cada eleição de maneira diversa, e que não
se sustentavam sobre uma base social duradoura.
A derrota kirchnerista na província de Buenos
Aires, para o empresário colombiano De Narváez nas
eleições legislativas de 28 de junho, expressa esta
volatilidade, que projeta uma grande crise do peronismo
no seu bastião sócio-territorial histórico. Mas o triunfo
De Narváez, como cabeça de lista da instável aliança
Union-PRO, não se traduziu na emergência de uma força
com capacidade de projetar sua hegemonia política sobre
o conjunto da oposição. Assim, enquanto o oficialismo
passou de 46% de Cristina Kirchner nas eleições
presidenciais, a um magro 31%, isto não lhe impediu de
mais de 5 canais abertos e TV a cabo), e dezenas de editoras,
emissoras de rádio, televisão, produtoras de televisão, internet,
telecomunicações, empresas gráficas, correio tradicional e
serviços de terceirização.
17
Que equivale a 0,58% do PBI do país, enquanto os 40 milhões de
pesos que o governo reconhece com a troca da dívida no default,
equivalem a 2 orçamentos anuais de educação, 4 orçamentos de
saúde ou 8 vezes o montante destinado por ano à habitação. Ver
ROMANO, Manolo. El engaño del discurso oficial. In: La Verdad
Obrera, n°368, jueves, 1 de abril de 2010.
18
Ver ANSALDI, Waldo. “El faro del fin del mundo. La crisis de
2001 o cómo navegar entre el riesgo y la inseguridad”, in:
http://catedras.fsoc.uba.ar.
converter-se na primeira minoria parlamentar, já que sua
perda de votos não foi capitalizada por nenhum setor da
oposição. De fato,
Das três alianças nacionais que concorreram
em 28 de junho último, só a Frente para la
Victoria permanece como tal, já que tanto o
Acuerdo Cívico Social, com a deserção da
Coalición Cívica e as internas intermináveis no
radicalismo, como Union-PRO e o peronismo
dissidente, com sua falta de liderança e seus
problemas para disputar o peronismo com
Néstor Kirchner, entraram em crise.19
Em nossa ótica, esta debilidade do regime
político argentino, altamente fragmentado e carente de
partidos estáveis que se colocam como canais de
aspirações dos setores de massas, é o fundamento da Lei
de Reforma Política impulsionada recentemente por
Cristina Kirchner. Esta lei pretende superar a atomização
com uma engenharia eleitoral que rearme o regime de
partidos, buscando que as diversas linhas em que se
desmembraram a UCR e o PJ se apresentem
unificadamente no interior da estrutura partidária,
limitando a emergência de forças políticas menores ao
impor uma série de restrições para o funcionamento e a
obtenção da legalidade dos partidos. Condições que
limitam, quando não inibem, diretamente as
possibilidades legais de muitas formações políticas, que
tendem deste modo a bloquear a emergência e
desenvolvimento de expressões políticas de esquerda,
que no contexto internacional de crise econômica e diante
do ressurgimento da classe trabalhadora na cena política
– com a significativa luta da Kraft-Terrabusi, cuja
comissão interna se localiza como a referência mais
visível de um setor mais amplo do movimento operário
que não responde às direções sindicais tradicionais –
derive em um giro à esquerda de setores dos
trabalhadores e da juventude.
Esta questão não é menor, já que ao conduzir as
direções sindicais como pilares do PJ em sua relação com
a classe trabalhadora, o surgimento e extensão de
expressões de um novo sindicalismo de base abre a
possibilidade de gerar fissuras maiores nessa relação que
derivem em um giro à esquerda de setores da classe
trabalhadora. Neste sentido, Julián De Diego, um dos
principais assessores do empresariado local, alertou
sobre as leis ditadas pela Corte Suprema contra o
monopólio da representação sindical que
Os questionamentos ao modelo sindical não
sabem ao certo onde querem chegar. E mais do
que isso, não têm nem contam com um modelo
alternativo, e podem correr o risco, e de fato já
estão correndo, de girar o pêndulo ao extremo
oposto atual, destruindo (…) uma realidade
sindical que foi clara protagonista na hora de
confrontar com modelos extremos da esquerda
19
LEONE, Néstor, La barrera de los cuarenta. Néstor Kirchner y las
posibilidades reales de un triunfo en primera vuelta en las
presidenciales de 2011. In: Revista Debate, 16 de abril de 2010,
Buenos Aires.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (69-74) - 73
trotskista, maoísta, ou comunista que tentaram
monopolizar as organizações sindicais (…)
para as converter nos meios instrumentais para
combater e destruir o capital (…). Da escolha
do caminho mais eficiente depende que a
realidade trabalhista e sindical se represe ou
que dramaticamente se encaminhe para a
rebelião e o caos social (…).20
por sobre o debate programático; por outro,
fenômenos tais como a percepção da
incapacidade ou a corrupção da chamada
classe política, indiferenciada em sua
composição e com interesses corporativos
mais poderosos que os de seus representados, e
a desconfiança nas instituições
representativas. Este último, em apoio à
suspeita de que existe algo inerente ao
mecanismo de representação, que se volta para
os representantes desleais, em relação com
seus representados, no momento preciso em
que se convertem em seus representantes.
Enquanto que este segundo conjunto de
imagens remete, efetivamente, ao fenômeno de
crise de representação, o primeiro
corresponde, por outro lado, ao processo que
denominaremos metamorfose da
representação.22
Se este é um cenário hoje inexistente, não se pode
descartar para um futuro próximo o desenvolvimento de
certas tendências, possibilidade que tanto o governo
como o empresariado tentam evitar.
Metamorfose da representação: uma política
“para além” das classes?
Pousadela analisa a situação dos partidos
políticos na Argentina como um processo de alcance
geral denominado de metamorfose da representação, que
remete à substituição de um formato de representação por
outro, com o trânsito da velha democracia de partidos à
chamada democracia de audiências. Assim, expõe que as
últimas décadas se caracterizam por uma elevada
volatilidade eleitoral – uma oferta eleitoral cada vez mais
personalizada, a crescente importância dos meios de
comunicação na instalação dos candidatos, a
desvalorização dos programas partidários, etc.21 – que
teria resultado no desaparecimento, em escala global, dos
partidos tal como se consolidaram historicamente com a
chamada democracia de partidos de fins do século XIX e
começos do XX. Os partidos já não se caracterizariam por
uma estrutura organizativa sólida, de forte implantação
territorial, com uma orientação ideológica definida
traduzida em programa, características que o politicólogo
Maurice Duverger englobou sob a definição de partidos
de massas, profundamente enraizados na realidade
social. Embora Pousadela faça a distinção entre vários
tipos de partidos presentes tanto na democracia de
partidos (que se caracterizou por formações políticas
diferentes na Europa e Estados Unidos) como na
democracia de audiências (em que coexistem partidos
tradicionais reformados com novas formações políticas
com traços específicos), formulando como hipótese a
coexistência na Argentina de traços pós-modernos,
modernos e pré-modernos, queremos assinalar que a
autora define a metamorfose da representação política
como uma característica de época. Em seu livro Que se
vayan todos. Enigmas de la representación política,
Pousadela analisa a crise de 2001 como convergência de
dois processos de alcances diferenciáveis:
Por um lado, fenômenos relacionados com o
declínio da importância dos programas
partidários, a personalização das lideranças e a
instrumentalização dos partidos políticos por
parte de seus líderes, o império dos meios de
comunicação e a preponderância da imagem
20
DE DIEGO, Julián. Grave controversia en el sindicalismo para
preservar el unicato gremial. In: El Cronista, 21 de enero de 2010.
21
Ibidem, p.110.
A metamorfose da representação política é para
Pousadela – de acordo com Bernard Manin – um processo
de longo alcance que envolve o conjunto das democracias
contemporâneas e supõe profundas mudanças nas formas
de constituição das identidades políticas. A crise de
hegemonia ocorrida na conjuntura de 2001 teria se dado
como uma fase episódica de um processo de alcance de
uma época, onde a própria representação política
experimentou variações.
Dessa forma, os partidos, produto de uma
metamorfose representacional que parecia explicar-se
por referência a si mesmo – tentando enganosamente
compreender “a política pela política”, diria Atilio
Borón23 – já não expressam fundamentos sociais de
classe, mas sim constróem sua legitimidade nos espaços
midiáticos de massas, com o império da cidadania
transformada em audiência. Esta explicação, baseada no
suposto de uma política “acima das classes”, é incapaz de
dar conta dos processos políticos, já que faz abstração das
próprias condições sociais que se localizaram nos
partidos hegemônicos argentinos na situação de crise em
que se encontram.
A esse respeito, Marx chegou muito cedo à
conclusão da impossibilidade de compreender os
fundamentos da política à margem de uma concepção
totalizadora da vida social, onde se conjugam e
interdeterminam economia, sociedade, cultura, ideologia
e política. Levou a análise hegeliana da conexão existente
entre atividade política e Estado com a sociedade civil,
como império da propriedade privada, das relações
econômicas, a suas máximas conseqüências lógicas, ao
expor o engano de qualquer empreendimento teórico que
tente dar conta da atividade política e estatal sem atender
aos fundamentos econômicos da ordem social. Porque
22
POUSADELA, Inés. Que se vayan todos. Enigmas de la
representación política. Capital Intelectual, Buenos Aires, 2006,
p.9-10.
23
BORÓN, Atilio, Filosofía política y crítica de la sociedad
burguesa: el legado teórico de Karl Marx. In: Borón, Atilio Com.,
La filosofía política moderna. De Hobbes a Marx, CLACSO,
Buenos Aires, 2003, p.323.
74 - Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões
em sua profundidade a dimensão da política na sociedade
capitalista – assim como o Estado e suas instituições –
longe de ser um território neutro e asséptico de atividade
humana, não é mais que a esfera da alienação, quer dizer,
da ilusão e do engano, um tipo de véu cuja ilusória função
integradora – que consagra os cidadãos abstratos com
direitos formalmente igualitários – não é mais que a
cobertura que preserva o corpo social apoiado em
relações estruturalmente desiguais, “uma nociva ficção
de uma pseudo-igualdade que inocenta a desigualdade
real. Daí seu caráter alienado.”24
Seguindo a análise de Atilio Borón sobre a
filosofia política de Marx, digamos que deste caráter se
desprende uma das tarefas estratégicas do Estado na
sociedade burguesa: a invocação manipuladora ao
“povo”, em sua inócua abstração, aos efeitos de legitimar
a ditadura de classe da burguesia. Entendendo,
logicamente, que estamos falando aqui da política
hegemônica, posto que a possibilidade de negação e
superação desta condição alienada da política está dada,
precisamente, pelo desenvolvimento de uma política
consciente dos explorados e, portanto, não alienada, não
ilusória.
Pretendemos expressar assim a futilidade de uma
perspectiva teórica que concebe a política como atividade
divorciada dos fundamentos da estrutura social em que
tem lugar e sentido.
Deste modo, mais que metamorfose da política
em geral, é mais pertinente falar na Argentina de crise da
política burguesa, de seus partidos como canais dessa
atividade, fenômeno que não se explica, a não ser
referindo-se aos interesses e políticas assegurados ao
longo de décadas. A imposição de uma estrutura
econômico-social regressiva fez com que ao longo dos
anos a burguesia fosse “sacrificando” seus principais
partidos frente as massas: tanto o peronismo – que com
Menem levou a cabo um ataque generalizado à classe
trabalhadora, mediante as demissões maciças, produto
das privatizações, a imposição da flexibilização
trabalhista e a debilitação das organizações do
movimento operário – como a UCR – que logo depois da
crise em que terminou o governo de Raúl Alfonsín em
1989, tinha obtido uma renovação a partir da confluência
com a centro-esquerda do FREPASO e terminou como
continuadora do neoliberalismo, arremetendo contra sua
própria base social, a classe média, através de políticas de
cortes ao orçamento universitário, a confisco dos
poupadores, etc. – eclipsaram notoriamente sua
influência diante das massas, com o qual o bipartidarismo
característico do regime político argentino do retorno
democrático se desmembrou.25
Sem levar em consideração estes processos é
impossível dar conta das transformações ocorridas na
relação dos partidos hegemônicos com as massas, que
sofreu uma evidente fratura. A impossibilidade de
reconvertê-los em forças políticas que expressem as
aspirações de amplos setores da sociedade, faz com que
24
BORÓN, Op. Cit, p.321.
MAIELLO & ROMANO, Op. Cit., p.102.
25
as distintas opções se ordenem em função de figuras
midiáticas de enraizamento eleitoral volátil, o que
expressa um grande problema para a classe dominante, já
que se encontram muito debilitados os canais de
contenção e institucionalização de sua relação com as
massas.
Por sua vez, como a política já não seria
expressão dos interesses sociais insiste-se na inexistência
de partidos de classe ao estilo da social-democracia
alemã, que “expressava a identidade e os interesses do
movimento operário”. Novamente isto, por si só, não
explica nada, já que metodologicamente o resultado não
pode se dar como explicação da causa. Teria que se
analisar a situação de grande retrocesso estrutural e
subjetivo – político – que a última ditadura impôs à classe
trabalhadora, a derrota que para esta implicaram as
privatizações e políticas de flexibilização trabalhista
dos anos 1990, que ocasionaram sua crescente
26
fragmentação – que em parte explicam a ausência do
movimento operário como sujeito de 2001 – e, em termos
de longo alcance, a incidência do peronismo como
movimento nacionalista-burguês que inibe o
desenvolvimento de um partido operário classista, como
poderia ter sido o trabalhismo dos anos 1940, se tivesse
adotado um caminho independente. Isto, e mais, teria que
ser analisado para entender a atual atomização política da
classe trabalhadora e sua incapacidade, por décadas, de
dar nascimento a um partido de classe. Possibilidade que
não está obstruída para o futuro, e dependerá da dinâmica
de relação entre as classes. De fato, foi uma constante
histórica que em momentos de aguda luta de classes, as
tendências políticas radicalizadas (tanto a direita como a
esquerda) tendessem a adquirir peso de massas. Porque,
sob o risco de cair em explicações simplistas – em que a
política parece erigir-se como uma esfera autonomizada
dos interesses sociais, produto artificial da TV – continua
sendo necessário recorrer à análise dos processos sociais e
estruturais, seus reais fundamentos, para compreendê-la.
26
Com uma classe trabalhadora segmentada entre uma camada de
desempregados, um setor de trabalhadores “de segunda”
(contratados, terceirizados, em informalidade, subcontratados,
etc.), e um setor minoritário sindicalizado e registrado. Ver
MAIELLO, Matías e ROMANO, Manolo. El fin del ciclo
kirchnerista. In: Revista Estrategia Internacional, n° 26, año
XVII, marzo, 2010, Buenos Aires, p.117.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (75-77) - 75
Los Argentinos Somos Derechos y Humanos
1
Resenha do Livro
NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. La dictadura militar 1976/1983 – del golpe de Estado a la restauración
democrática. Buenos Aires: Editora Paidós, 2006, 567 p.
Waldir José Rampinelli2
A
ditadura militar argentina fundamentou-se,
ideologicamente, na doutrina de segurança nacional, no
integralismo católico e no anticomunismo, utilizando-se
da estratégia do terror de Estado e de uma série de
políticas públicas para desmantelar as estruturas formais
e informais de proteção estatal que haviam sido criadas
no país na década de 1930 e, principalmente, durante o
primeiro governo peronista. Para tanto, teve as devidas
bênçãos e recomendações da Conferencia Episcopal
Argentina (CEA), cuja cúpula hierárquica foi ouvida na
véspera do golpe. Não se pode esquecer também o grande
apoio dado pela população à primeira Junta Militar
golpista (Jorge Rafael Videla, pelo Exército; Emílio
Eduardo Massera, pela Marinha; e Ramón Agosti, pela
Força Aérea), defendendo-a como a salvadora da Pátria,
da ordem e da paz.
Duas estratégias implementou a ditadura: a
guerra antissubversiva e o estabelecimento de um plano
econômico em favor da classe dominante. A primeira
consistiu na eliminação física de todas as organizações
guerrilheiras, dos grupos de esquerda revolucionária, das
comissões e dos delegados sindicais combativos, das
agrupações estudantis e dos simpatizantes do populismo
peronista, recorrendo a ditadura, para tal, a métodos de
regimes totalitários. Esta complexa máquina de torturar e
matar chegou a dispor, em 1977, de 340 centros
clandestinos em toda a Argentina (p. 118). Inventou
novas formas de desaparecimento: em voos noturnos,
lançou ao mar, com vida, os opositores detidos na Escola
da Mecânica da Armada; apropriou-se dos bens móveis e
imóveis dos presos, vendendo-os em lojas estabelecidas
ou nas subastas públicas; sequestrou bebês nascidos nos
centros de tortura para entregá-los a pais adotivos
apoiadores dos militares e explorou o trabalho escravo
das pessoas encarceradas, evitando assim contratar mão
de obra para certas tarefas a serem realizadas no quartel.
Muitos capelães das Forças Armadas amainavam as
consciências dos carrascos e dos ladrões com a
justificativa cristã de que era preciso separar o joio do
trigo. Um deles, Christian Von Wernich, foi condenado à
prisão perpétua, em outubro de 2007, por participar da
privação ilegal da liberdade de 34 pessoas, como também
por ser coautor da aplicação de tormentos agravados a 31
cidadãos. O relatório Nunca más chegou à cifra de 30.000
desaparecidos, um verdadeiro genocídio da população
1
Consigna criada pela ditadura militar para se opor às denúncias
sobre violações dos direitos humanos no país.
2
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
presidente do Instituto de Estudos Latino- Americanos (IELA).
organizada argentina e o Diário del Juicio, vendido nas
bancas, contava em detalhes os horrores dos porões do
regime, o verdadeiro inferno de Dante. Tamanho foi o
desprestígio das Forças Armadas após tais relatos, que,
inclusive, os militares evitavam sair fardados pelas ruas.
O cinismo do ditador Videla o levou a dar uma
explicação para os desaparecidos, apresentando cinco
causas: a) que estas pessoas tenham passado para a
clandestinidade; b) que tenham sido eliminadas pelas
próprias organizações, por falta de lealdade; c) que
tenham se ocultado para viver na marginalidade; d) que
tenham se desesperado e cometido suicídio; e e) por
último, que tenham sido assassinadas por conta de
excessos cometidos pelas Forças Armadas.3
Enquanto a hierarquia católica tratara de ignorar a
questão, quando não referindo-se a ela em termos de
pacificação, de reconciliação e de esquecimento, Henry
Kissinger, na reunião da Organização dos Estados
Americanos (OEA), em Santiago do Chile, em 1976,
aconselhara a ditadura militar a avançar na “solução” final
do problema subversivo antes que o Congresso dos EUA
reiniciasse suas sessões e antes, também, que Jimmy Carter
assumisse a presidência, em janeiro de 1977.
A segunda estratégia da ditadura consistiu em
limpar os caminhos para a implantação de um programa
econômico com um composto de receitas neoliberais,
conservadoras e desenvolvimentistas, cujo ponto de
convergência básico seria redefinir o comportamento dos
atores por meio de uma fórmula composta pelo
disciplinamento dos mercados e pela intervenção do
Estado (p. 42). Os beneficiados seriam apenas as classes
dominantes, que em troca davam todo o apoio ao
Processo de Reorganização Nacional.
O ditador Videla costumava realizar, entre abril e
setembro de 1976, almoços mensais com figuras
representativas para consolidar o consenso. Participaram
destes encontros empresários dos meios de comunicação,
representantes do agronegócio, líderes religiosos,
presidentes de entidades científicas, ex-ministros de
Relações Exteriores e escritores, entre os quais Jorge Luis
Borges, Ernesto Sábato, Horácio Ratti e o padre
Leonardo Castellani. Sábato chegou a dizer que Videla o
havia impressionado “como um homem justo, modesto e
inteligente”; Borges estava “agradecido [a Videla] pelo
golpe de 24 de março que salvou o país da ignomínia” e
ao mesmo tempo “surpreendido por sua enorme, infinita
3
VIDELA, Jorge Rafael. Entrevista. La Razón, Buenos Aires, 13
maio 1977.
76 - Los Argentinos Somos Derechos y Humanos
paciência”; Castellani o considerava “um homem sensato,
sereno, humilde e preocupado seriamente por conhecer a
realidade argentina em sua totalidade” (p. 182).
O Partido Comunista Argentino também apoiou
o golpe, chegando ao ponto de propor a assinatura de um
“convênio nacional democrático que servisse de
fundamento a um governo cívico-militar de ampla
coalizão democrática”, na perspectiva de evitar o avanço
da ala dos duros do exército. Tais equívocos históricos
não apenas ajudaram a dar respaldo à Junta Militar, como
também abriram caminho para o avanço do terrorismo de
Estado.
Novaro e Palermo mostram como a ditadura
argentina, dentro de uma estratégia global anticomunista
comandada por Washington, exportou o terror estatal
para a Bolívia e os países da América Central. O envio de
assessores e o ensino de métodos de interrogatório, de
tortura e de roubo de crianças foram algumas das
experiências passadas aos ditadores destas regiões dentro
da Operação Condor, que consistia na continentalização
da criminalidade política por meio de ações terroristas. O
resultado foi, juntamente com outros governos
autoritários, a morte de mais de 400 mil pessoas em toda a
América Latina, das quais 50 mil apenas no Cone Sul.4
“Planícies alisadas pela morte e o silêncio”, segundo
palavras de Julio Cortázar.
O terror praticado por Estados, diz Chomsky, é
funcional, já que melhora o clima de investimentos no
curto prazo. Segundo ele, a ajuda de Washington aos
governos inclinados ao terrorismo está em “relação
direta com o terror e a melhoria do clima de
investimentos e em relação inversa com os direitos
humanos”. Sendo os Estados Unidos um centro de poder,
cujas opções políticas e estratégias calculadas produzem
um sistema de clientes que praticam sistematicamente a
tortura e o assassinato em escala assustadora, pode-se
afirmar que Washington se tornou a capital mundial da
tortura e do assassinato político. É o terror benigno,
permitido aos Estados clientes que lutam contra o
comunismo internacional, fazendo par ao terror
construtivo, destinado também aos Estados clientes que
buscam manter e ampliar as áreas globais de
investimentos estadunidenses.5
Para João Corradi, a conquista do campeonato
mundial de futebol (1978) e a invasão das Ilhas Malvinas
(1982) apresentam características muito próximas do
fascismo, já que a Junta não apenas é apoiada
entusiasticamente pela população, como também o
Estado nacional católico mobiliza multidões em torno da
argentinidade.
As duas últimas ditaduras militares – a da
Revolução Argentina (1966-1973) e a do Processo de
Reorganização Nacional (1976-1983) – tiveram, no
momento de sua implantação golpista, segundo Luis
Rubio, os benefícios de uma passividade expectante por
parte da sociedade civil e as vantagens de uma
neutralidade alarmada da população. Ambos os golpes
foram contra governos constitucionais desprestigiados,
tendo a Revolução Argentina caído a partir do Cordobazo
(1969), enquanto a ditadura do Processo de
Reorganização Nacional perdeu todo seu apoio com a
derrota das Malvinas (1982).6 Lógicamente que os
movimentos internos de resistência, assim como as
pugnas intracastrenses, tiveram sua influência no fim
deste último regime. As Mães da Praça de Maio, que a
partir 30 de abril de 1977 começaram a reunir-se
periodicamente em frente à Casa Rosada exigindo uma
solução para o desaparecimento de seus filhos,
denunciam à Argentina e ao mundo os horrores da
ditadura militar. Quando a imensa maioria da sociedade
apoiava a guerra contra a Inglaterra por conta das Ilhas, as
Mães afirmavam categoricamente que As Malvinas são
argentinas, os desaparecidos também. Foi a organização
que mais capitaneou a luta contra o governo do terror.
A primeira ditadura militar de segurança
nacional da América Latina, cujos líderes sentaram no
banco dos réus, foi a argentina. Apesar das leis de Ponto
Final e de Obediência Devida, de Raúl Alfonsín, e do
indulto, de Carlos Ménem, que nada mais foram que
tentativas de tornar impunes os crimes de lesahumanidade, o Congresso Nacional do país revogou tais
decisões e os grupos de defesa dos direitos humanos
continuaram lutando para julgar seus torturadores. O
resultado apresentado pelo presidente do máximo
tribunal, Ricardo Lorenzetti, elenca 26 julgamentos
concluídos, 13 em curso e 5 em preparação. Concluiu o
seu informe dizendo que os juízos dos crimes da ditadura
já fazem parte “dos princípios que nos unem, hoje, a
todos os argentinos: ou seja, que não queremos nunca
mais que nossos filhos e nossos netos sejam perseguidos
pelo próprio Estado – que os deveria proteger –, por
terem ideias distintas. O ensinamento mais importante
que nós podemos resgatar a esta altura do processo é que
não haja marcha atrás”.7
O livro La dictadura militar 1976/1983 faz parte
da coleção História Argentina, sendo este o de número 9.
Ele é um grande trabalho, tornando-se, às vezes,
demasiado descritivo. As fotos apresentadas poderiam ter
uma qualidade melhor. É um livro muito importante para
entender este período.
Por fim, vale ressaltar, que todo o complexo da
Escola de Mecânica da Armada, que ocupa uma quadra
ao norte de Buenos Aires, quase foi destruído por Ménen
para que no local se construísse uma praça da
solidariedade. Na verdade, o objetivo era um parque que
valorizasse os apartamentos da classe alta que estão em
frente. No entanto, os grupos de direitos humanos se
mobilizaram e impediram que se aplicasse a lei do
“olvido” a este quartel da Armada. Parte dele que serviu
de local de tortura – o clube dos oficiais – foi
6
4
CALLONI, Stella. Los años del lobbo: operación condor. Buenos
Aires: Peña Lillo, 1999, p. 12 e 16.
5
CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Washington y el
fascismo en el tercer mundo. México: Século XXI, 1981, p. 160.
RUBIO, Luis. Argentina: la promesa incumplida. In: CUEVA,
Agustin (Org.). Tiempos conservadores: América Latina en la
derechización de Occidente. Quito: Editora El Conejo, 1987, p. 159.
7
LORENZETTI, Ricardo. No hay marcha atrás con los juicios.
Página 12, Buenos Aires, 12 ago. 2010.
História & Luta de Classes, Nº 10 - Novembro de 2010 (75-77) - 77
transformado em museu, em 24 de março de 2004,
constituindo uma experiência fundamental de política
pública sustentada nos pilares da memória, da verdade e
da justiça, historicamente sustentados pelo movimento
de direitos humanos. As visitas são guiadas por jovens
estudantes das universidades públicas de Buenos Aires
que contam a história com muito conhecimento e detalhe.
É muito importante conhecê-lo, bastando para tal agendar
por telefone (4704-5525) ou pelos serviços dos correios
eletrônicos ([email protected]
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1. A revista História & Luta de Classes [[email protected]] nasce em tempos de domínio
social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da
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6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.
7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto),
obedecendo à seguinte formatação:
7.1. Livros: Nome Sobrenome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.:
CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.
7.2. Capítulo de livros: Sobrenome, nome. Título do capítulo. In: Sobrenome, nome (org.). Título do livro em
itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a contenção
da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo:
Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.
7.3. Artigo de periódico: Sobrenome, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n.
(número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo;
SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.
8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência
bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé.
Próximos Dossiês:
Número 11 – Violência e Criminalização. Prazo para encaminhamento de contribuições: encerrado;
Número 12 – Revolução e Contra-Revolução. Prazo para encaminhamento de contribuições: 30.03.2011.
Número 13 – Educação e Ensino de História. Prazo para encaminhamento de constribuições até 30.09.2011.
Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida
para cada dossiê.
ISSN 1808-091X
Militares e
Luta de Classes
NESTA EDIÇÃO
DOSSIÊ MILITARES E LUTA DE CLASSES
Vida, Luta e Morte do Sargento Revolucionário Manoel Raimundo Soares
Mário Maestri e Helen Ortiz
Formação militar: aspectos da liderança de Benjamin Constant no âmbito do Exército
Claudia Alves
O “rendez-vous da soldadesca”: Favela e Militares de baixa patente na Primeira República
Romulo Costa Mattos
Defesa e contra-ataque! Uma breve reflexão sobre o “dispositivo militar” de João Goulart
Fabiano Godinho Faria
A controvérsia sobre o dispositivo sindical-militar na crise dos anos sessenta: notas de pesquisa
Demian Melo
A revista Veja e os grupos guerrilheiros no Brasil (1968/1972)
Edina Rautenberg
As AESI’s de Itaipu e a suspeição aos civis: controle na Tríplice Fronteira
Jussaramar da Silva
Quando os soldados não obedecem… Oficiais, Soldados e Trabalhadores na Revolução dos Cravos (1974-75)
Raquel Varela
DEPOIMENTO
Brizola, os Sargentos e a Luta Armada
Araken Vaz Galvão
ARTIGO
Crise do sistema partidário na Argentina, algumas reflexões
Paula Schaller
RESENHA
Los Argentinos Somos Derechos y Humanos
Waldir José Rampinelli
9 771808 091002