manuel esteves e as perspectivas de investimentos no vale do

Transcrição

manuel esteves e as perspectivas de investimentos no vale do
MANUEL ESTEVES E AS PERSPECTIVAS DE INVESTIMENTOS NO
VALE DO PARAÍBA FLUMINENSE IMPERIAL.
Rabib Floriano Antônio e Raimundo César de Oliveira Mattos
Resumo:
Este trabalho destina-se a apresentar a trajetória econômica Manuel Antonio Esteves, imigrante
português que se viveu em Vassouras e Valença (Vale do Paraíba Fluminense) durante o século
XIX e estabeleceu uma fortuna baseada em relações de comércio, compras de terras e escravos,
investimentos em ações, títulos e empréstimos pessoais. Sua relevância para a historiografia é
apresenta-lo como inovador em investimentos utilizando os mais variados formas de acumulação de
capital.
Palavras-chaves: crédito, investimento, Vale do Paraíba Fluminense, Manuel Antonio Esteves.
Abstract:
This paper is intended to present the economic trajectory Manuel Antonio Esteves, portuguese
immigrant who lived in Vassouras and Valençaa (Fluminense Paraíba Valley) during the nineteenth
century and established a fortune based on trade relationships, purchases of land and slaves
investments in stocks, bonds and personal loans. Its relevance to the historiography is presented it
as innovative investments using the most varied forms of capital accumulation.
Keywords: credit, investment, Vale do Paraíba Fluminense, Manuel Antonio Esteves.
Este artigo se propõe a analisar a dinâmica dos investimentos de Manuel Antonio Esteves na
acepção de investidor e empreendedor ao longo do século XIX, como elemento gerado e gerador
dos avanços econômicos de sua própria época, utilizando como apoio das análises as teorias do
efeito de encadeamentos, de Albert Hirschman.
Para o desenvolvimento desse trabalho, utilizaremos fontes variadas, porém as mais
importantes recaem sobre as produzidas pelo próprio Esteves, composta por cartas e bilhetes
enviados aos filhos que estudavam na Corte e fundamentalmente as cartas comerciais. Destacamos
as cartas trocadas com Manuel de Azevedo Marques. Boa parte do acervo de cartas recai sobre
assuntos familiares, sobretudo, de “cerimônia”. Neste caso incluímos as recebidas por comissários
de café, políticos, figuras da sociedade e outros. Em quantidade menor, mas não menos significativa
devido às questões interpessoais, encontram-se cartas do próprio Manoel Esteves, enviadas aos
filhos que estudavam no Rio de Janeiro e algumas de sua esposa, Maria Francisca, também para os
filhos.
É denominada escrita de si, tratada por Ângela Gomes, a qual desperta um interesse cada
vez maior por parte dos leitores e historiadores, indicativo da capacidade documental de tal tipo de
fonte. A autora afirma que:
“As práticas de escrita de si podem evidenciar, assim, com muita clareza, como
uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que
decorre por sucessão. Também podem mostrar como o mesmo período da vida de
uma pessoa pode ser ‘decomposto’ em tempos com ritmos diversos: um tempo da
casa, um tempo do trabalho, etc. E esse indivíduo, que postula uma identidade para
si e busca registrar sua vida, não é mais apenas o ‘grande’ homem, isto é, o homem
público, o herói, a quem se autorizava deixar sua memória pela excepcionalidade
de seus feitos.” (GOMES, 2004: 13)
O acervo se compõe de quase 900 cartas que foram organizadas entre recebidas e expedidas,
além de subdivisões de compra e venda, de periodizações, etc. As cartas se encontram preservadas
na fazenda Santo Antônio do Paiol, propriedade principal do rol de bens pertencentes à Manuel
Esteves. Pelos estudos das cartas deixadas por ele, podemos identificar, analisar e compreender
alguns dos fatores que vislumbrem a inserção social e a busca pelo enriquecimento, assim como
perceber os instrumentos de investimentos que fogem à habitual compra de terras e escravos e das
formas de distribuição do patrimônio, colocando-o no patamar de um investidor sagaz, vanguarda
de seu tempo.
Muitos portugueses chegaram ao Brasil almejando enriquecer-se, embora nem todos tenham
conseguido tal proeza. Manuel Antônio Esteves tornou-se, até onde se sabe, um caso de
diferenciação perante aos demais imigrantes no Vale do Paraíba Fluminense. Com base na
documentação encontrada, em especial nas cartas1, desde 1835 que Esteves já mantinha um
próspero comércio na cidade de Vassouras, realizando negócios com cafeicultores da região à
época. Até onde se pode notar, Manoel Antônio Esteves chegou ao Brasil em uma situação mais
confortável que os demais imigrantes, com recursos iniciais que deram sustentabilidade aos seus
primeiros negócios.
O Rio de Janeiro, conforme demonstrado por Charleston Assis, Leila Duarte & Anderson
Mendes, tornou-se um “polo de grande atração para imigrantes europeus, especialmente
portugueses, durante aproximadamente cem anos, desde as primeiras décadas do século XIX até o
início do século XX.” (ASSIS, DUARTE e MENDES, 2006: 27)
A trajetória de Manoel Antônio Esteves foi marcada por uma construção das redes de
sociabilidades que o levaram a atingir a cidadania no Império.
Manoel Esteves chegou ao Brasil logo após a abdicação de Dom Pedro I. Nasceu em
setembro de 1813, na freguesia de Merufe (região do Minho), casou-se em outubro de 1850 com
Maria Francisca das Dores, filha de Francisco Martins Pimentel, na Freguesia de Nossa Senhora da
Glória de Valença. Como dote herdou a Fazenda Santo Antônio do Paiol, mandando construir nova
sede, ficando pronta em 1853. Sede esta, construída com recursos próprios oriundo dos seus ganhos
com comércio. Em geral os cafeicultores arranjavam casamentos por alianças, e a abundância de
arranjos matrimoniais demonstra o esforço de consolidações políticas econômicas. Naturalizou-se
brasileiro, por decreto datado de 10 de novembro de 1865, pois, segundo Beatriz Kushnir, “para os
imigrantes portugueses não era tarefa difícil.” (KUSHNIR, 2006: 46).
Já em 1845 ele negociava com vários ilustres cafeicultores, como os irmãos Laureano
Corrêa e Castro (Barão de Campo Belo) e Pedro Correa e Castro (Barão de Tinguá).
Porém, mesmo antes de fixar sua residência em Valença, Manuel Esteves já era responsável
pelos negócios do sogro. Segundo a carta recebida em 1853, endereçada ao visconde de Condeixa2,
“Incluso remeto aberta uma carta para seu digno sogro o Sr. Francisco Martins
Pimentel, de quem sem nenhumas ordens nem autorização fiz descontar em
bilhetes do Tesouro o saldo que o mesmo Sr. Aqui tinha em 31 do mês findo, a fim
de lhe ir vendendo algumas cousas, cumprindo assim com nosso dever, procurando
meios de dar algum interesse a quem também me ajudar.
Como pode acontecer que o Sr. Pimentel não estejas ao fato do que são bilhetes do
Tesouro, peço a V. Sa que lhe explique, asseverando-lhe que nenhum obstáculo
pode haver em sacar quando queira, porque com os mesmos bilhetes se cumprirá as
ordens com o mesmo desconto pelo tempo que faltar, e sempre fica o prêmio pelo
tempo que lhe terá decorrido.
1
A primeira data de 1845.
João Maria de Magalhães Velasques Sarmento (1806-1871), nobre e negociante de grosso trato na praça mercantil do
Rio de Janeiro, capitalista e proprietário de bens em Portugal.
2
Negociante doe-lhe o coração vendo dinheiro parado, e por isso fiz esta operação
tomando a mim a responsabilidade por não ter nenhuma”. (Carta ao visconde de
Condeixa, 1° de jun. 1853)
A rede de negócios de Manuel Esteves, consolidada por sua inserção de estrangeiro na
sociedade brasileira, se tornou vasta mantendo negócios com diversos comissários de café e
investimentos em um amplo ramo de negócios. Como administrador, Esteves também cuidou dos
negócios da marquesa de Valença, Ilídia Mafalda de Souza Queirós, em especial os da Fazenda das
Coroas.
Ao falecer, em 1879, aos 66 anos de idade, deixou um patrimônio para seus filhos composta
de terras, plantações, escravos, títulos de dívidas, ações, assim como a organização de sociedade
comercial (Manoel Antônio Esteves & Filhos).
É inegável que o café teria sido o produto mais importante da economia fluminense durante
o século XIX. É uma commoditie de boa aceitação nos mercados internacionais, mas devido a sua
baixa elasticidade, ou seja, capacidade de reagir rapidamente aos mercados, o produto demora a se
equilibrar em relação às variações de preços. Outro fator é a técnica de plantio e produção mais
lenta, gerando um prazo entre plantio e colheita de 5 anos. Logo, a resposta do café para a
sociedade cafeicultora do Vale durante o Império era lenta o que provocava constantes buscas por
crédito e empréstimos para fomentar a produção.
O café faz parte de uma importante rede econômica. E no caso brasileiro, esteio da
economia. De acordo com Pires, Harold Innis, historiador da economia canadense, teria
desenvolvido a Teoria do Produto Principal (Staple Thesis). Para Innis, existe uma conexão direta
entre as relações do produto principal e as relações sociais que perpassam uma dada sociedade.
“(...) são as determinações desta com a evolução dos fenômenos sociais,
geográficos e culturais, além das modificações que viriam a sofrer como parte da
integração das sociedades ao mercado mundial, que se colocavam como centro de
análise.” (PIRES, 2007: 07)
Innis aponta para a importância de que o processo parte de relações entre os vários fatores
produtivos, os elos, na acepção de Pires3, que conectam todo o processo produtivo e suas relações
recíprocas que se estabelecem desde as produções locais às relações de consumo final do produto. A
rede, nessa teoria, é entendida na sua totalidade. Assim, universo internacional e da produção local
se inter-relacionam. Ao mesmo tempo que era um produto principal, internamente a situação do
café e de todos os setores envolvidos na produção se ligavam a uma intrincada rede econômica
3
Op. Cit.
conhecida como “linkage” ou efeito de encadeamentos4. A partir de uma determinada unidade
produtiva (ou várias), instaladas em uma dada região, esta gera efeitos “para frente” (prospectivos)
e “para trás” (retrospectivos), assim como os efeitos fiscais e financeiros. Os efeitos retrospectivos
orientam-se na formação do mercado de matéria-prima, de mão de obra, de insumos em geral e os
prospectivos na comercialização, transporte, embalagens e situações que se tornam realidade após o
produto principal ter ficado pronto. Os efeitos fiscais recaem sobre a formação dos impostos que
vão ser pagos nas etapas da produção e os efeitos financeiros nas linhas de poupança, crédito e
financiamentos advindos das necessidades produtivas.5 Logo, tais encadeamentos geram novas
realidades econômicas que promovem novas estruturas de investimento e inversão do capital. Por
isso, a inserção da produção de café no vale abriu margem ao aparecimento de “linkages”, entre elas
as relações de crédito.
No contexto geral, o século XIX foi um século de mudanças, não só políticas, como a
necessidade da construção de um estado independente, mas também de mudanças econômicas e o
reajustamento nos mercados internacionais com a nova commoditie em expansão. Essas mudanças
levaram a novos arranjos econômicos e as novas necessidades de instituições financeiras. Com a
integração do Brasil aos mercados internacionais, ao longo do Império, a economia deixou de ser
mercantil e o capital comercial passou a se subordinar a uma acumulação capitalista mundial.
A lógica geral do sistema parecia obedecer ao ritmo dos países industrializados, onde a
economia-mundo impusera um ritmo próprio ao vale, gerando um acirramento nas práticas
escravistas e de aumento de produtividade, bem ao estilo do que foi denominada “segunda
escravidão”. Para Marquese, o século XIX alterou o panorama do Vale do Paraíba Fluminense, até
então praticamente intocado.
Em meados do século XIX, contudo, o amplo arco territorial que abrangia do
município de Guaratinguetá (SP) ao de Cantagalo (RJ) fora convertido na
zona econômica mais dinâmica do Império do Brasil; sua população escravizada,
composta majoritariamente por africanos recentemente importados pelo tráfico
negreiro transatlântico (ilegal desde 1831), tornara-se responsável pela produção de
metade da oferta mundial de café. (...)
O grosso da produção de café de Vassouras e Bananal, assim, era obtido em
unidades rurais que empregavam escravarias numerosas. Possivelmente o mesmo
ocorreu em outros municípios cafeeiros importantes do Vale do Paraíba, como
Barra Mansa, Piraí, Valença, Paraíba do Sul e Cantagalo, no Rio de Janeiro, ou
então Juiz de Fora, Ubá e Mar de Hespanha, em Minas Gerais. (MARQUESE,
2010:02)
4
5
Abordamos, aqui, na concepção de Albert Hirschman.
A rede de encadeamento pode ser melhor entendida nos trabalhos de Albert Hirschman.
Neste contexto, os caminhos do Vale do Paraíba começaram a se desenvolver no século
XVII, na fase final do processo de mineração nas Minas Gerais, mas vão ganhar força quando o
Vale desenvolve as lavouras de café. Para Novaes, baseando-se nos trabalhos de André João
Antonil6 a média de viagem do interior das Minas Gerais até do porto do Rio de Janeiro chegava a
30 dias. Os caminhos tortuosos do Vale do Paraíba Fluminense superavam em dificuldades os
caminhos paulistas.
As lavouras de café foram subsidiadas por uma infraestrutura preexistente no Vale, gerando
os efeitos de encadeamento. As estradas estreitas e carroçáveis abertas pelo escoamento de ouro e
produtos agrícolas para a cidade e os portos do Rio de Janeiro favoreceram a entrada de colonos,
alguns com capital da própria lavoura canavieira e mineração, que investiram no início da lavoura
cafeeira da região. No caso de Vassouras:
Famílias mineiras aí se estabeleceram e investiram capital acumulado na
mineração. Assim a lavoura de café do Vale coincide com a decadência das minas
de ouro em Minas Gerais. Os futuros fazendeiros, recebendo grandes doações de
terra da Coroa em forma de sesmarias, construíram uma ou mais fazendas.
(ALMEIDA, 2010: 04-5)
Essas características próprias deram à região uma vantagem enquanto commodities, pois o
solo, a mão de obra, a característica peculiar do café, as montanhas em “meia laranja” e as
disponibilidades creditícias, características no Vale, em pouco tempo combinar-se-iam para ganhar
os mercados internacionais, influenciar nos preços globais e complementar significativamente para
uma ampla rede de produção, negociação e distribuição do café no mundo.7
No final do século XVIII, ocorreram importantes mudanças na estrutura da Província do Rio
de Janeiro. Tambasco afirma que essas mudanças ocorreram na própria transferência da sede do
Vice Reino do Brasil que teria sido palco para o desenvolvimento de um “rápido crescimento das
transações comerciais de exportação pelo porto do Rio de Janeiro...” (TAMBASCO, 2007: 26).
Ainda para o autor, o período que cobre de 1775 a 1805 é muito favorável para a expansão da
agricultura. Nesta data o açúcar aumenta 300% no volume de exportação e 500% no valor da
exportação. A mesma realidade é observada nos grãos e a província passa a ser exportadora de arroz
(TAMBASCO, 2007: 27). Esse favorecimento teria condicionado aumento demográfico na
província e os índices de exportação e valorização dos produtos agrícolas no período estimulam a
6
ANTONIL, Cultura e Opulência do Brasil, publicado em 1711.
O termo aqui utilizado refere-se à rede de comodities desenvolvidas à partir da inserção de produtos de baixo valor
agregados mas que foram importantes pois desenvolveram redes mundiais de comércio. Para TOPIK, MARICHAL e
FRANK, “Os ensaios neste volume exploram as inúmeras conexões e mudança da América Latina com o resto do
mundo, olhando para a complexidade de comércio de mercadorias e as correntes que foram que
foram encaixotados entre produtores e consumidores ao longo de cinco séculos: algumas cadeias de commodities,
como prata, açúcar e tabaco, começaram no século XVI.”. FRANK, Z; MARICHAL, C; TOPIK, S. Op. cit. p. 02
7
colonização no interior da Capitania. Outro fator seria apontado por Stanley Stein como a
decadência da exploração aurífera das Minas Gerais, o que levaria à liberalização do processo de
colonização pela coroa portuguesa no século XVIII8. Assim, o autor demonstra que:
Os novos rumos dos acontecimentos atuaram no sentido de completar o
povoamento de Vassouras... o esgotamento das minas do norte, a expansão do
cultivo do café em direção aos terrenos elevados do Vale do Paraíba e a eliminação
de um pequeno grupo de índios coroados onde agora está situada Valença, na
margem norte do Paraíba. (STEIN, 1990: 33)
Ao que soma esta conjuntura à alguns pontos do trabalho de Fragoso. A mudança da sede
administrativa do vice-reinado do Brasil, em 1763, para o Rio de janeiro deslocou o processo de
ocupação aumentando consideravelmente as atividades sócio-econômicas na capital da província e,
em especial, no porto do Rio de Janeiro, gerando o fortalecimento da burguesia comercial e
financeira daquela área. Os “homens de grosso trato”, como eram chamados, introduziam escravos,
ajudaram na oferta de créditos na colônia e redistribuíam ou exportavam produtos do interior. Essa
dinâmica da praça comercial do Rio de Janeiro com o interior – em especial a província de Minas
Gerais - favoreceu o desenvolvimento de áreas do Vale do Paraíba Fluminense.
Com o crescimento da produção, novos níveis de investimentos e financiamentos foram
necessários. Levy defende a formação de um sistema financeiro como “pedra angular” no processo
econômico da esfera política.
Há um fluxo constante do capital produtivo reconvertido em capital financeiro,
num contínuo processo de financiamento da reprodução do sistema. O capital
financeiro passa a constituir uma parcela do capital total, funcionando de maneira
autônoma e assegurando o financiamento das operações econômicas. As
disponibilidades monetárias não são mais vendidas ou alugadas como mercadorias
e escapam às determinações de equivalência para vincularem-se à produção social,
do qual participam através da determinação das taxas de juros. (LEVY, 1977: 04)
Assim sendo, essas negociações entre os que ofertam o crédito e seus tomadores se dão de
forma direta ou indireta como, por exemplo, através de empréstimos de dinheiro, de abertura de
contas ou de hipotecas, dando suporte aos tomadores desses empréstimos ou crédito no intuito de se
manterem dentro da esfera da vida econômica. Assim, ao mesmo tempo, se constituem um mercado
formal e um informal.
Nesse mundo de transformação entre o velho e o novo, entre formas tradicionais de
economia e acumulação e novas formas de investimentos viveu Manoel Esteves.
8
STEIN, J. S. Op. cit, 1990. p. 31-2.
Ao compararmos Manoel Antônio Esteves a outros fazendeiros do Vale do Paraíba,
podemos ter uma noção de seu patrimônio visto que possui uma média de 600 escravos9, pouco
menos que o comendador Manoel de Aguiar Vallim que em suas 4 fazendas possui 650 escravos.
Enquanto homem de negócios, sua atuação articulava-se em vários campos e era muito variado seus
investimentos que se distribuíam entre ações, negócios de escravos, setores administrativos e
negócios do café. Ele, ao mesmo tempo que investia em ações, guardava seu dinheiro em bancos
como por exemplo no Banco Commercial e Agrícola do Rio de Janeiro, e não se limitava a
comercializar café, conforme Gráfico 01.
Gráfico 01: diversificação dos negócios de Manoel Esteves em 1864
Fonte: Cartas Comerciais de Netto dos Reis à Manoel Esteves. Acervo da Fazenda Santo Antonio do Paiol
Também tinha um armazém na sede de sua fazenda, Santo Antônio do Paiol onde se vendia
vários artigos sob encomenda, ele aproveitava que seus comissários iriam vender suas sacas de
café na Praça Mercantil do Rio de Janeiro e lá mesmo compravam suas mercadorias e enviavam
de volta, criando uma rede de negociação.
Sobre o Banco Commercial e Agrícola do Rio de Janeiro, este foi um banco emissor e
comercial do período do Império. Segundo Guimarães, o banco foi formado por homens de
negócios, entre os quais, importantes figuras do partido conservador como o Barão de Vassouras.
Com as reformas expansionistas da década de 1850, devido à escassez do lastro ouro, Souza
Franco realizou uma reforma bancária que pluralizou a emissão de crédito diminuindo o
monopólio estabelecido pelo Banco do Brasil.
A implementação dessa nova política, na prática significou não só uma maior
liberação do crédito, com a taxa de desconto caindo de 11% para 8%, como
também a institucionalização do regime de emissão regional, que antecedeu o
monopólio dado ao Banco do Brasil em 1853, com a diferença de que os
novos bancos “colocariam em circulação obrigações de pagamento ao portador, à
vista, em espécie e sem juros, sob a gestão do Estado. (GUIMARÃES, 2013: 05)
9
Para Iorio “...Fazendas havia em Valença, como por exemplo a de Manoel Antônio Esteves, com 1.100 escravos.”
Essa reforma deu ao Banco Commercial e Agrícola o “status” de banco emissor, de
depósitos e descontos. Essa realidade movimenta setores da economia como o vale e amplia a opção
de investimentos dos vários agentes da economia.10
Em 1864 ocorreu uma das mais importantes crises do século XIX, a crise de 1864 ou a Crise
do Souto. A crise se deu principalmente pela Casa Souto, uma das maiores casas bancárias do Rio
de Janeiro ter investido mais de 8.000:000$000 e teria como dívida junto ao Banco do Brasil mais
de 20.000:000$000.
Gráfico 02: Evolução do crédito da Casa Souto junto ao Banco do Brasil
Fonte: Adaptado de SAEZ, 2013.
Assim, da mesma forma que o aumento de transações comerciais havia lhe
proporcionado a expansão da rede apoio e o aumento de contatos nas atividades
que desempenhara durante sua ascensão, os registros indicam que, em seu
momento de revés o Visconde do Souto também perdeu parte dos seus espaços
de atuação e, provavelmente, também foi alijado de parte do suporte de que antes
gozava. Sua quebra ocorreu de forma abrupta na manhã do dia 10 de setembro de
1864. (SAEZ, 2013:14)
A crise do Souto abalou a economia brasileira na década de 1860 inclusive na variação dos
preços do café. As cartas de Manoel Esteves à Netto dos Reis nos mostra mês a mês de 64 o
crescimento para preço das sacas de café, enquanto no segundo semestre do ano de 1864, quando o
preço é derrubado por completo.
10
Cf. GUIMARÃES, Carlos Gabriel, 2013.
Gráfico 03: Cotação do café em 1864 – arroba por mil-reis segundo as cartas comerciais de Manoel Esteves
Venda de café (1864) - valor em mil-reis
35,000
30,000
25,000
20,000
15,000
10,000
5,000
24 de set
7 de mai
29 de abr
13 de abr
30 de mar
7 de mar
23 de fev
0,000
Fonte: Cartas Comerciais de Netto dos Reis à Manoel Esteves. Acervo da Fazenda Santo Antonio do Paiol
Manoel Antônio Esteves, buscava outras modalidades de investimentos, como no exemplo
de caso, teve um ganho de 29:199$000 em venda de escravos e comércio em geral. Talvez essa
tenha sido a salvação na crise de 1864 que solapou muitos investidores e fazendeiros de café. Para
confirmar tais afirmações vejamos abaixo uma de suas correspondências do ano de 64.
confirmo a nossa (...) do seu favor de 10 do corrt abaixo nottamos os gêneros de
seu pedido que ontem seguiram na imp de 396$100 que ficam em seu debito,
chegou ontem a sua remessa de 68arr com café que fica em corrt, com muita estima
notamos 74 arr de açúcar, 12 caixas de sabão, 6 arr de salitre, 3/n enxofre, 3
caixões...
Essa carta confirma a compra que Antônio Ferreira dos Santos fez para Manoel Antônio
Esteves, de gêneros alimentícios e de utilidade para revender em seu armazém, e também uma
remessa de café vendida por ele através de seus comissários.
O quadro 01 nos mostra uma atuação múltipla não só do ponto de vista dos negócios como
geograficamente, já que Esteves mantinha empreendimentos em Vassouras e em Valença –RJ
durante algum período de tempo. Acreditamos ser um momento na transição tanto dos
investimentos como das questões de cunho social e político.
Quadro 01 – Manoel Antônio Esteves segundo o Almanak Laemmert
Ano
Valença
Vassouras
1848
-x-
Negociante; Oficinas
1849
-x-
Proprietário
1850
-x-
Proprietário; negociante de
Diversas
padaria
1851 a 1853
-x-
Proprietário; Negociante
1854, 1855
Fazendeiro
Proprietário; Negociante
1856 a 1866
Fazendeiro
Proprietário
1867
Fazendeiro com engenho
-x-
1868
Membro da companhia que
-x-
se propunha a construir a
linha férrea D. Pedro II na
região
1869
Membro Diretor da Cia
-x-
União Valenciana e
Fazendeiro
1870
Membro Diretor da Cia
-x-
União Valenciana e
Fazendeiro
1871
Membro Diretor da Cia
União Valenciana e
Fazendeiro
1872 a 1874
-x-
-x-
1873
-x-
-x-
1874
-x-
-x-
1875
Presidente da Diretoria da
Cia União Valenciana,
Proprietário Rural, Urbano
e negociante
1876
Presidente da Diretoria da
Cia União Valenciana,
Proprietário Rural, Urbano
e negociante
1877
Presidente da Diretoria da
Cia União Valenciana,
Proprietário Rural, Urbano,
negociante
1878
Presidente da Diretoria da
Cia União Valenciana,
Proprietário Rural, Urbano
e negociante, Protetor da
Devoção de São Sebastião
1879
Presidente da Diretoria da
Cia União Valenciana,
Proprietário Rural, Urbano
e negociante, Provedor da
Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia
Seu vínculo com a ferrovia e sua execução também fez a “linkage” econômica atingir e
desenvolver o comércio em Valença. Além do comércio, percebemos nas correspondências de um
de seus comissários, Netto dos Reis, o relato da compra efetuada de 40 ações liquidadas do Banco
Agrícola que se caracteriza como uma modalidade avançada de riqueza.
A realocação da riqueza entre os diversos ativos ocorreu, em São Paulo, ao longo
da segunda metade do século XIX . Os movimentos por nós detectados - o declínio
dos escravos vis-á vis o aumento dos imóveis, o aparecimento de formas avançadas
de riqueza, especificamente as ações e secundariamente as contas e letras bancárias
(...). (MARCONDES, 2002)
As ações bancárias de Esteves dividiam-se num portfólio restrito compondo-se de 56 ações
do Banco do Brasil e 120 ações do Banco Comercial e Agrícola, contabilizando mais de 1 conto de
reis.
Os empréstimos a juros também eram parte da atividade financeira. Eram poucos seus
devedores, mas variados, que constam pessoas físicas, como Antônio rocha Pereira, à pessoas
jurídicas, como A Cia União Valenciana. O valor das dívidas totais no inventário de Manoel
Esteves, todos resgatados pela esposa, somavam-se a 482.712$607, montante superior aos
tradicionais lucros do café e venda de escravos de Esteves, assunto que abordaremos um pouco
mais adiante.
Formas tradicionais de investimento conviveram com outras menos ortodoxas na vida de
Esteves. Terras e casas eram também investimentos presentes. Interessante foi que grande parte do
seu patrimônio territorial surgiu a partir da Lei de Terras de 1850. Tal lei inviabilizou a aquisição de
terras para muitos brasileiros pois vinculou a aquisição da propriedade ao mercado, garantindo o
preço da terra. Com sua situação financeira equilibrada e bem acima de outros imigrantes de sua
época, Manuel Esteves conseguiu adquirir um patrimônio nesse sentido e mesmo nos períodos de
crise do país. Suas propriedades rurais distribuem-se da seguinte forma:
Quadro 02 - Propriedades rurais de Manoel Esteves
Ano da
aquisição
1852
1856
1856
1860
1860
Sem data
Propriedade
Origem
Valor
Santa Catarina
São Francisco
Arrematação Pública
Suposta herança do
sogro
Desconhecida
Compra
Compra
Desconhecida
12:490$253
Desconhecido
Ribeirão
Boa Vista I
Boa Vista II
Anexo à Santo Antonio do
Paiol
Fonte: Cartório do Segundo Ofício de Valença
Desconhecido
Desconhecido
Desconhecido
Desconhecido
Além do investimento em terras, havia investimentos em propriedades urbanas. Seu
inventário registra os aluguéis pagos na Rua Uruguaiana, em Valença. Consta que a arrecadação de
um deles entre abril de 1879 até 1880 foi de 1:500$000; de outra ocupada por um certo Dr. Santos
Machado referente aos anos de 1878 a 1880 no valor de 1:350$000. E das casas da Estação Esteves
ocupadas por Maia & Alves, no valor de 1:800$000 entre 1879 e 1880.
A partir da expansão das terras, Esteves se firmava também como cafeicultor na lógica dos
mercados internacionais. Com larga experiência como comerciante, Esteves adquiriu conhecimento
sobre a rede de negociantes de café da qual se integrava. Segundo os documentos da Santo Antonio
do Paiol, em 1859 ele teria negociado mais de 14:200$000 em sacas de café. Pela correspondência
podemos perceber a valorização da saca de café naquele ano.
Quadro 03 – Remessas de Café de Manoel Esteves em 1859
Data
Comissário
Remessa
Sacas
17/02
09/06
Davi dos Santos
Antonio Ferreira
dos Santos
Antonio Ferreira
dos Santos
Antonio Ferreira
dos Santos
Antonio Ferreira
dos Santos
Antonio Ferreira
dos Santos
Antonio Ferreira
dos Santos
9
19
22/06
01/10
26/10
14/11
21/12
TOTAL
Valor pago
152
136
Valor
estimado da
saca
16$037,75
20$577,60
20
71
23$630,60
1.677$741
10
77
24$907,66
1.917$890
11
56
33$516,80
1.876$941
12
73
24$427,35
1.783$196
13
70
24$880,80
1.741$656
635
Fonte: Acervo da Fazenda Santo Antonio do Paiol
14.233$717
2.437$739
2.798$554
Quadro 04 – Remessas de café de Manoel Esteves em 1862/1863
Data
Comissário
13/02/1862
12/03/1862
16/04/1862
07/05/1862
09/09/1862
21/04/1863
01/05/1863
TOTAL
Remessa
Sacas
Valor
estimado da
saca
27$005,95
24$898,37
23$818,80
18$985,15
24$078,30
24$088,65
15$093,60
Netto dos Reys
22
90
Netto dos Reys
24
100
Netto dos Reys
26
91
Netto dos Reys
28
101
Netto dos Reys
7
108
Netto dos Reys
18 e 19
178
Netto dos Reys
20
99
Netto dos Reys
20
767
Fonte: Acervo da Fazenda Santo Antonio do Paiol
Valor pago
2.437$739
2.489$837
2.167$511
1.917$499
2.600$456
4.287$781
1.494$267
17.387$886
Tabela 01- Variações de venda de sacas e valores pagos entre 1859 e 1863.
Data
1859
1862/3
1870
1872
Sacas totais
635
Variação
Valor pago total
Ano base para a
14.233$717
análise de 1862/3
765
+ 20%
17.387$886
1587
Ano base para a
38.454$705
análise de 1872
1509
- 5%
45.768$191
Fonte: Acervo da fazenda Santo Antonio do Paiol
Variação
Ano base para a
análise de 1862/3
+ 22%
Ano base para a
análise de 1872
+19%
Notamos que houve aumento em sacas e arrecadação de 20 e 22 por cento entre 1859 e
1863 e queda de 5% e aumento de 19% de 1872 em relação ao ano de 1870.
Mesmo com o período de degradação da cultura de café em Valença, as vendas de Esteves
continuavam e as remessas permaneciam, em média, as mesmas da década anterior.
Mesmo em uma conjuntura de agravo da crise advinda da “Quebra do Souto” e da Guerra
do Paraguai, as remessas de café das fazendas de Esteves permaneceram crescentes.
Outro bem analisado neste trabalho foram os escravos que Manoel Antônio Esteves
comercializava ou mantinha. Entre os escravos de venda (para comercializar) sempre havia os
conhecidos pretos de ofícios. Em uma das correspondências, mais precisamente a data de 24 de
Agosto de 1864, lemos que ele comprava um escravo que tinha o oficio de carpinteiro e também
comprou a esposa do escravo, essa poderia ser uma forma usada por ele para agradar o escravo e
torna-lo fiel a seu amo. Manoel Antônio Esteves em outra correspondência em 6 de Dezembro de
1859 ele faz uma compra de um escravo com a oficio de pedreiro , chamado Marcos de Nação
Mina, para elucidar tal afirmação eis um trecho da carta em que ele faz a compra do escravo
acima citado.
Manoel Antonio Esteves, Valença Rio de Janeiro 6 de Dezembro de 1859.
(...) Confirmo a minha ultima de 24 do passado, servindo o presente de lhe
participar que hoje tenho remettido de sua conta (...) de Soares H Melos (...) um
preto com olficio de pedreiro, pois mande Marcos de nação Mina, que de sua conta
e ordem comprei por 2.040.000 (...) Desejo-lhe completa saúde e toda a sua
Família sempre ao seu dispor...
Já os utilizados na lida do café eram evidentemente reconhecidos como investimentos por
Esteves. As crises de importação (em especial a lei Eusébio de Queirós) e o encarecimento da mão
de obra escrava devido ao comércio interprovincial, foi, sem dúvida, um dos motivos que fez com
que ele construísse uma enfermaria para tratamento de escravos na Santo Antonio do Paiol para que
as moléstias e acidentes não levassem seus investimentos e lucros. Seus investimentos em
escravaria costumava ser alto, em 1864 ele investiu pouco mais de 24:700$000 em 25 escravos. Se
cruzarmos os dados do aumento das remessas de café de suas fazendas com a aquisição de escravos
em suas cartas notamos que o lucro advindo do café justificava a aquisição constante dos escravos.
Como prática de garantia, foram encontrados no acervo e nas notas do inventário os recibos
de pagamento da Associação de Seguro Mutuo sobre Vida de Escravos, documento que garantia a
indenização de proprietários de escravos em caso de morte ou liberdade judicial. Segundo ao
documento referente à terceira prestação do contrato 3193/3221, foram segurados 29 escravos no
valor de 676$000. Também conta um recibo no valor de 1.440$000, da Associação de Interesses
Mútuos para a liquidação do capital empregado no Elemento Sevil, contrato feito em 12 de
novembro de 1875, pela quinta anuidade paga em dezembro de 1879. Observamos que Esteves era
cuidadoso em relação ao capital empregado, diminuindo ao máximo as grandes perdas, nesse caso
as que ocorriam com a morte ou libertação dos escravos.
As ações bancárias possuídas por ele faziam parte de um ativo importante. Seu portfólio de
ações bancárias se dividia em dividendos do Banco Commercial e Agrícola e do Banco do Brasil.
Constam em seu inventário 45 ações do Banco do Brasil, sendo 30 delas no valor de 270$000. Seus
investimentos foram além quando parte de seu capital foi investido na Companhia União
Valenciana, estrada de ferro que dinamizava a economia da cidade. Além do mais mantinha um
sistema de empréstimos à juros, crédito e letras.
Quadro 05 – Valores emprestados e investidos por Esteves e recebidos por sua esposa.
Data da
Transação ou
Vencimento
17/09/1875 –
03/10/1876
(venc.)
29/04/1876
02/09/1878
27/03/1879
08/04/1879
Não consta
TOTAL
Favorecido
Natureza
Juros
Antonio Pereira
da Rocha
Dois créditos
17.286$554
(valor recebido)
Manoel Sabino
da Silveira
Crédito
Já calculado sob
o montante
Cia União
Valenciana
Visconde de
Pimentel
José Martins do
Valle
Antonio correia
e Castro
Empréstimo
715$516
Duas letras
Já calculado sob
o montante
Já calculado sob
o montante
Não consta
Letra
Letra
Valor do
repasse ou
pagamento.
4$000 e 7$700
29.816$922
(crédito de
32$000)
50$000
109.068$922
39.204$977
14.787$460
236.627$784
Alguns empréstimos eram altos. Em 06 de julho de 1877 foi emprestado a Manoel Joaquim
Alves Machado 150 contos a 9% a.a. Manoel Esteves receberia 13.500$000 de juros. Com uma face
capitalista conservadora em relação aos empréstimos, ele tentava minimizar os riscos do capita,
como vemos na carta a seguir, procurando entender a capacidade de pagamento antes de emprestar:
enquanto o senhor Lemos de Miranda não acho bom ter negócios com esse senhor,
porque depois que o pai faleceu, tem feito muitas dívidas. Ele mandou pedir-me já
tempo 12 contos. Eu lhe disse o (ilegível) ele que não podia arranjar essa cifra. Ele
é uma pessoa que não convém isso... (Carta de Manuel Esteves a seu filho
Francisco, 1876.)
Segundo C. Muldrew, a confiança, como vínculo social, é um fator necessário para as
interrelações comerciais que são formadas pela boa reputação, a honestidade e a confiabilidade.
Assim com a complexidade das relações de crédito e o não cumprimento de obrigações, tornou-se
também comum os tratados que garantissem as “honestidades”. Isso tornava a reputação uma
garantia, uma forma, uma diretriz de acesso aos empréstimos e créditos. O autor remete às relações
culturais ligadas a formação da questão moral11, mas, ao mesmo tempo, alerta para uma
transformação quando as relações pessoais passaram a ser vistas como elementos dentro de uma
sociedade que se apresentava cada vez mais inserida no conceito de competição de mercados e
disputas econômicas. Essas mudanças levaram a milhares de relações interpessoais que garantiriam
a manutenção das trocas e renegociações. Os estudos de Muldrew sobre a Inglaterra nos séculos
XVI e XVII o levaram a concluir que havia uma construção própria dessas relações baseada na
cultura florescente nesses séculos.
Havia um comprometimento de fatores morais e religiosos entre o credor e o devedor na
sociedade estudada por Muldrew. A tônica forte entre o credor e o devedor muitas vezes era
perpassada por conceitos do mundo cristão fortemente difundido em toda Idade Média. A existência
terrena do cristão era encarada como uma relação de crédito, uma cessão de Deus e o pagamento se
concretizaria na morte de uma vida reta segundo os preceitos religiosos.
Mas com a ascensão das ideais protestantes e do humanismo, começou a se produzir escritos
que garantissem alguma reflexão sobre a sociabilidade do comércio. Richard Baxter12, em seus
textos editados em 1578, começa uma aproximação das ideias de relações comerciais com as novas
propostas de seu tempo. Para Baxter o estado da humanidade não poderia ser uma realidade sem
contratos, portanto não poderia ser um pecado negociar ou ter riquezas. Caso contrário o Evangelho
teria destruído as ligações de pleno direito da sociedade humana. Nesse ponto o humanismo de
Baxter quase remete a livre negociação como direito natural do homem.
Enfim, ainda referindo-se ao ideal cristão a caridade passa ser quase que um elemento
intrínseco ao fiel e o empréstimo, ou crédito, quase uma imposição, uma obrigação de ceder à quem
pede – market of obligation, para usar o termo de Muldrew. Era inaceitável que, tendo condições
para tal, negar uma ajuda, um empréstimo ao próximo. Porém, não se pode deixar de observar que,
ao remeter esse pensamento, durante a primeira metade do XIX no Vale do Paraíba Fluminense, a
questão da reputação não se restringia somente ao indivíduo, mas se estendia à família ou até aos
membros do clã. Dessa forma o crédito tem se tornado sinônimo de reputação. Nesses tipos de
sociedades desvalidas e estabelecidas em bases de uma economia moral, as considerações ganham
um patamar mais elevado dentro do debate aqui traçado já que a segurança material, ou seja, os
bens são uma preocupação constante porque nunca poderiam ser tomados como garantias, pois
eram difíceis de acumular. Sendo assim supria-se a essa situação outras formas de garantias sociais
como a exposição pública dos acordos.13
11
Em especial a influência do cristianismo.
BAXTER apud MULDREW, Op. cit. p. 143.
13
Cf. Muldrew, Op. cit.
12
Agora faremos um balanço geral da vida econômica de Manuel Antonio Esteves segundo o
informe de sua esposa no seu inventário.
Quadro 06 – Balancete de bens móveis deixados por Manoel Esteves
Discriminação
Valor
% sob o subtotal
Devedores
482.712$607
68%
Venda de café 1879-80
193.921$297
27%
Café avaliado
14.793$877
2%
Café vendido em julho
4.365$492
1%
Aluguel de escravos
7.731$381
1%
Aluguel de casas
4.650$000
1%
Dividendo e juros de bancos
4.455$021
1%
Cal vendida
440$000
0%
Subtotal
713.069$667
Despesas
275.490$238
TOTAL
437.490$487
Fonte: Inventário de Manoel Esteves – Museu de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Se compararmos o total de Esteves com o do Visconde do Rio Preto, maior fortuna da
região, veremos que há pouca diferença. A do visconde soma 556.111$400. O que impressiona é o
montante de empréstimos que chega a 68% de seus ativos superando a produção de café.
Por último, Manuel Esteves era um acionista. Um capitalista. Detentor de parte das ações da
Companhia União Valenciana.
A solução de transporte encontrada para a penetração do café para o interior durante a
segunda metade do século XIX foi a ferrovia.
A construção do ramal da linha férrea de Valença foi um dos grandes projetos dos
fazendeiros locais. A Cia de Ferro União Valenciana foi fundada em 1865 ligando-se à Pedro II.
Iniciada pelo Visconde do Rio Preto, mas com sua morte repentina em 1868, o empreendimento
via-se a risco de fracasso. Logo, depois de um curto período de instabilidade, o empreendimento
ficou a cargo de Manoel Esteves que, no ano da morte do Visconde de Rio Preto, teria se tornado
membro da referida companhia. Em 11 de outubro o jornal O Alagôas se referiu a ele como “que
tornará a peito tornar efetiva a sua realização”.14 O fundo do empreendimento chegou a
600.000$000. Durante o processo o vice-presidente da Província do Rio de Janeiro, Diogo Teixeira
de Macedo, Barão de São Diogo, decretou auxilio provincial à companhia de 200.000$000. Em
1869, Esteves, já era um dos diretores principais diretores15 e no ano de sua morte, em 1879, a
empresa já estava em funcionamento. A mulher de Esteves noticiava a seu filho “...no dia 18 é a
inauguração da estrada de ferro em Valença; vem o imperador, muita gente, tem uma festa muito
14
15
O Alagôas, edição de 11 de outubro de 1868.
Ver Quadro 01
grande...” (carta de 09/054/1871). Esta foi a primeira estrada de ferro de bitola estreita construída
no Brasil e manteve o crescimento de Valença até o século XX.
A negociação de ações que a companhia gerava impulsionava os negócios transformando os
capitais excedentes e às vezes imobilizados em perspectivas de retorno de dividendos. Vemos na
seguinte correspondência:
Ontem falei ao meu sobrinho, o doutor [Francisco Esteves] para lhe dizer que o
capitão Luiz Ribeiro de Souza Resende tem 70 ações da Companhia União
Valencia e as quer vender, e dá cada uma por uns 122$500. Eu disse-lhe que só o
amigo é que as poderia comprar. Ora, por esse preço ficam-lhe as 70 ações por
8:575$000. Descontando o rateio que tem de haver agora pelo menos de 8 por
cento, são uns 1:120$000, ficam-lhe as 70 ações por 7.475$000, pouco mais de
metade como o amigo as tem comprado e tira já, o amigo nos 8:575$000 que
despende, em juros de 13 a 14 por cento, creio que esse negócio lhe convém, dê
suas ordens para a Casa Comercial Esteves. (Carta de Manoel Esteves ao Visconde
de Pimentel, janeiro de 1876)
Foi Manoel Esteves que colheu os frutos da ferrovia e de seus ramais que iam à regiões
mineiras, ligando a estrada a sua própria fazenda e de seu cunhado. Assim, Esteves voltou a
condição de comerciante, negociando agora produtos através da ferrovia como também negócios de
ações.
Considerações finais.
Podemos concluir que as cartas nos mostraram as relações a qual o comerciante, comissário
e negociante e capitalista português Manoel Esteves estava submetido. As informações qualitativas
e quantitativas nos permitem estabelecer um mercado em formação com variações de preços pela
concorrência, investimentos em mercado de ações, negociações de mercadorias, encadeamentos de
empréstimos e por fenômenos tipicamente capitalistas, mostrando uma relação de capital além da
plantation escravocrata e da ordem aristocrática. Seu tino capitalista ampliava os negócios não só
em interesse à “boa sociedade” mas em próprio benefício, atribuindo-lhe o “egoísmo econômico” e
a capacidade de barganha, como dizia Adam Smith sobre os “homens de negócios”.
No cenário ambíguo e contraditório da sociedade imperial, em uma linha tênue entre as
condições de passado colonial e as novas perspectivas econômicas surge uma geração que viveu e
formou seu próprio tempo, entre ele, o imigrante português Manuel Esteves.
Referências
Fontes Primárias:
Acervo da fazenda Santo Antonio do Paiol
Acervo do Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas e sites.
ALMEIDA, A. M. L. Famílias de Elite: Parentela, Riqueza e Poder no Século XIX. Artigo
Científico, Vassouras: Universidade Severino Sombra. 2010.
ASSIS, Charleston José de Souza; DUARTE, Leila Menezes; MENDES, Anderson Fabrício
Moreira. Fontes para o estudo da imigração portuguesa no Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro. In: MARTINS, Ismênia de Lima; SOUZA, Fernando (Orgs). Portugueses no Brasil:
migrantes em dois atos. Rio de Janeiro: Muiraquitã, 2006.
Cf. LEVY, Maria Bárbara. História da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
ABMEC, 1977.
FLORENTINO E FRAGOSO . Homens de Grossa Aventura. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1998.
FRAGOSO, J. Arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de Si. Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
GUIMARÃES. Carlos Gabriel. O império e o crédito hipotecário: o estudo de caso do Banco
Commercial e Agrícola 1858-1861. Trabalho apresentado no I SEMINÁRIO INTERNO DO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO.
UFMA,
2013.
<https://ppgdse.ufma.br/uploads/files/O%20imp%C3%A9rio%20e%20o%20cr%C3%A9dito%20hi
potec%C3%A1rio%20%20o%20estudo%20de%20caso%20do%20Banco%20Commercial%20e%2
0Agr%C3%ADcola%201858%201861.pdf>
HIRSCHMAN, Albert. Desenvolvimento por Efeitos em Cadeia: Uma Abordagem Generalizada.
In: SORJ, Bernardo; CARDOSO, Fernando Henrique; FONT, Maurício. Economia e Movimentos
Sociais na América Latina. São Paulo:Brasiliense, 1985.
IORIO, F. Valença de Ontem e de Hoje. Valença, Editora Valença, 2013.
KUSHNIR, Beatriz. Traços lusos nos acervos do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. In:
MARTINS, Ismênia de Lima; SOUZA, Fernando (Orgs). Portugueses no Brasil: migrantes em
dois atos. Rio de Janeiro: Muiraquitã, 2006.
MARCONDES, R. L. O financiamento hipotecário da cafeicultura no Vale do Paraíba Paulista
(1865-67). Revista Brasileira de Economia, vol. 56, n° 1, rio de Janeiro, mar de 2002.
HTTP://dx.doi.org/10.1590/s0034-71402002000100006> acessado em 30/09/2011.
MARQUESES, Rafael Bivar. O Vale do Paraíba cafeeiro e o regime visual da segunda
escravidão: o caso da fazenda Resgate. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.18. n.1. p.
83-128. jan.- jul. 2010.
MATTOS, R. C. O. M. Imigrantes e sociabilidades no oitocentos – o caso de um comerciante
português no Vale do Paraíba Fluminense. Anais do XX Encontro Regional de História.
ANPUH. São Paulo, 2010.
MULDREW, C. The Economy of Obligation: the culture of credit and social and relations in
Early Modern England. Hempshire, Palgrave.
NOVAES,
A.
Os
Caminhos
Antigos
do
Território
Fluminense.
<http://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wpcontent/uploads/2008/06/oscaminhosantigos.pdf> acessado em 06 de mar. 2012
PIRES, Anderson. Minas Gerais e a Cadeia Global da “commodity” cafeeira – 1850/1930. Revista
Eletrônica de História do Brasil. UFJF, Juiz de Fora, jan- jul 2007, vol. 09, num. 01.
SÁEZ, H.E.L. O 11 de setembro de 1864 da praça carioca: a crise do Souto e a transformação
da economia brasileira. <http://www.iseg.utl.pt/aphes30/docs/progdocs/HERNAN%20SAEZ.pdf>
acessado em 01/03/2013
STEIN, S. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1990.
TAMBASCO, J. C. V. A Vila de Vassouras e o Vale Médio do Paraíba. Vassouras: Edição do
Autor, 2007.
TOPIK, Steven. MARICHAL, Carlos. ZEPHYR, Frank (ORG.).From Silver to Cocaine: Latin
American Commodity Chains and the Building of the World Economy, 1500–2000. Durham,
NC and London: Duke University Press, 2006.