Muito Além do Jardim - Bogliolo - Universidade Federal de Minas
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Muito Além do Jardim - Bogliolo - Universidade Federal de Minas
Muito Além do Jardim (Being There) Após a morte de seu patrão, um jardineiro que nunca havia deixado a mansão onde trabalhava é obrigado a enfrentar o mundo exterior. Dirigido por Hal Ashby (Shampoo) e com Peter Sellers, Shirley MacLaine, Jack Warner e Melvyn Douglas no elenco. Vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Ficha Técnica Título Original: Being There Gênero: Drama Tempo de Duração: 130 minutos Ano de Lançamento (EUA): 1979 Distribuição: United Artists / Warner Bros. Direção: Hal Ashby Roteiro: Jerzy Kosinski Produção: Andrew Braunsberg Música: Johnny Mandel Fotografia: Caleb Deschanel Desenho de Produção: Michael D. Haller Figurino: May Routh Edição: Don Zimmerman Elenco Peter Sellers (Chance) Shirley MacLaine (Eve Rand) Melvyn Douglas (Benjamin Rand) Jack Warden (Presidente “Bobby”) Richard A. Dysart (Dr. Robert Allenby) Richard Basehart (Vladimir Skrapinov) Ruth Attaway (Louise) David Clennon (Thomas Franklin) Fran Brill (Sally Hayes) Denise DuBarry (Johanna) Oteil Burbridge (Lolo) Revenell Keller III (Abraz) Uma análise do ponto de vista do processo de comunicação e do fluxo de informação por Adriana Bogliolo Sirihal Duarte Chance nunca saiu de casa, desde criança trabalhou no jardim do “velho”. Seu único contato com o mundo exterior era através do rádio e, posteriormente, através dos televisores que lhes eram dados por seu protetor (patrão?). Não há indícios de que Chance fosse tratado como empregado da casa. Ele não possuía salário ou relações profissionais. Aliás, falando em salário, pode-se questionar inclusive se ele seria capaz de manipular dinheiro. Ao que o filme indica, Chance trabalhava como jardineiro em troca de um lar – onde dormir, o que comer, o que vestir, e televisão para assistir (lazer). Isso me faz lembrar do texto de Barreto (1994), que classifica a informação traçando um paralelo com a pirâmide de Maslow (pirâmide das necessidades humanas, em que o indivíduo movimenta-se da base para o topo, passando para um estágio seguinte quando todas as necessidades do estágio anterior estiverem satisfeitas). Barreto propõe que informação utilitária é aquela utilizada no suprimento das necessidades básicas dos indivíduos ou grupos (alimentação, habitação, vestuário, saúde, educação) de modo a lhes garantir a segurança de existir em determinado espaço, livre de medos e ameaças. A informação contextual é aquela que garante aos indivíduos a permanência nos diversos contextos em que habitam e que desejam permanecer (profissional, comunidade, etc.). Finalmente, a informação seletiva é aquela com compromissos de reflexão, criatividade e realização individual (FIG. 1). O protagonista Chance parece estar “preso” no primeiro patamar desta pirâmide e, além disso, parece não sentir qualquer necessidade de ascender aos patamares superiores. Ele não parece sentir necessidade de participação social. Seu mundo se encerra entre as paredes em que vive e aquilo lhe basta. Não sairia dali se não fosse obrigado a tal. Suas necessidades básicas estão atendidas, ele não busca informações além daquelas que lhe garantam isso. Talvez seja esse o motivo pelo qual ele “zapeia” diante da TV, sem se fixar muito tempo em um canal ou em uma programação específica. Ele flutua sobre o mundo exterior, passa superficialmente sobre a visão que a televisão lhe oferece do mundo, tirando dali apenas o que precisa para sua subsistência: imita os gestos de um “gentleman”, a forma de cumprimentar, de tirar o chapéu, os trajes a vestir, etc. FIGURA 1 – Pirâmide das necessidades e classificação da informação FONTE: Barreto, 1994. No entanto, o “velho” morre e Chance precisa sair da casa. O filme retrata exatamente essa ruptura, quando Chance tem de abandonar sua realidade e mergulhar em um diferente contexto, completamente novo para ele. Precisa, agora, ter contatos sociais e conviver em comunidade e, portanto, passa a lidar com informação contextual. É aí que aparecem inúmeras cenas interessantes, que demonstram como a produção e recepção de informação relacionam-se ao contexto cultural/situacional dos usuários. O que se pretende analisar, tomando como exemplos cenas do filme, são os processos informação (atribuição de sentido às mensagens) nos dois extremos do processo de comunicação, o extremo da produção e o da recepção. Citemos um primeiro exemplo, logo no início do filme, quando a governanta Louise vem comunicar ao jardineiro Chance o falecimento do velho. Após descrever como o encontrou frio e sem vida, e como o cobriu com um lençol, Louise desabafa: (0:04:50) - Meu Deus! Que manhã! (Oh Lord! What a morning!) E a resposta de Chance é: - É mesmo, Louise. Parece que vai nevar. Você viu o jardim, Louise? Parece mesmo que vai nevar. (Yes, Louise. It looks like is going to snow. Have you seen the garden? It feels just like its going to snow.) Observa-se que houve uma falha no processo de comunicação, uma vez que o sentido atribuído à mensagem emitida por Louise (Meu Deus! Que manhã!) diferiu do sentido atribuído por Chance ao recebê-la. E, por estarem diferentemente contextualizados, a resposta de Chance não foi apropriada do ponto de vista de Louise. Tanto, que ela reclama: - Que diabo! É só isso que você tem a dizer? O velho está lá morto e isso não faz diferença para você? Por ter convivido durante muito tempo com Chance, Louise cai em si e percebe o motivo da discrepância entre sua observação (Meu Deus! Que manhã!) e a resposta de Chance. Por esse motivo, logo em seguida, ela pede desculpas ao jardineiro por ter gritado com ele. Mas a partir do momento que Chance passa a se relacionar com pessoas com as quais jamais havia convivido, as “falhas” ocorridas no processo de comunicação não são percebidas por nenhuma das partes envolvidas. A saída de Chance da casa em que sempre viveu é tratada no filme como uma odisséia – haja vista a trilha musical escolhida para tal, tomada emprestada do notável 2001 – Uma Odisséia no Espaço. (0:19:15) A cena (silenciosa, talvez para ressaltar a solidão da personagem) em que Chance chega à porta da casa, em seguida titubeia, vai e volta, toma coragem e abre a porta (até então só o que vemos é o clarão produzido pela luz exterior1 ) também não deixa de ser uma alusão àquele filme. Chance sai de casa de costas para a rua, e mira demoradamente a casa em que sempre viveu (mas que jamais havia conhecido daquele ângulo, de fora para dentro), antes de virar-se para encarar o novo (imediatamente imaginei um astronauta saindo de sua nave em pleno espaço sideral, mirando aquilo que foi seu restrito habitat durante tão longo tempo – sua nave - antes de encarar a amplidão do espaço ainda inexplorado). Finalmente Chance resolve virar-se para o mundo e é aí que o silêncio se converte na trilha sonora que mencionei e, em seguida, pouco a pouco, à medida que Chance toma contato com o novo, surgem os barulhos da rua. Sua primeira interação comunicacional com alguém do mundo de fora é mais um exemplo de um “processo de comunicação truncado”. Chance se dirige a um grupo de jovens para procurar por um jardim em que possa trabalhar. (0:23:00) Enquanto ele se preocupa com o fato de ser inverno, momento em que as plantas devem ser cuidadas para que floresçam saudáveis e belas na primavera, os rapazes se preocupam com sua própria realidade e a situação de que alguém de nome Rafael estaria lhes cobrando ou exigindo algo: - Quem mandou você aqui? Foi aquele cocô do Rafael, cara? - Não. O sr. Franklin me pôs para fora da casa do velho. Ele morreu. - Morreu uma ova! Notem que enquanto Chance narrava a morte de seu velho patrão, o líder da gangue achava que ele continuava falando de Rafael e dizendo que fora Rafael que havia morrido. - Morreu uma ova! Diz pro babaca, se quiser alguma coisa, que arraste o traseiro até aqui. Saca só! O rapaz mostra, então, sua arma – um canivete – com a qual ele é capaz de enfrentar até o pior dos inimigos (nesse caso o Rafael). A interação2 agora é perfeita! Em resposta a essa atitude Chance retruca mostrando a arma com a qual ele próprio é capaz de enfrentar todo o desconhecido que se lhe escrutina – o controle remoto de sua TV! O que nosso protagonista não é ainda capaz de perceber (ele apenas vislumbra) é que, se o controle remoto o colocava em situação de poder absoluto em seu universo (a sua realidade era o televisor, que ele comandava via controle remoto), não terá qualquer valia no novo mundo que ele começa a descobrir naquele instante, pois não vai lhe permitir ter o controle de nada. E, é claro, os rapazes da gangue sacam que a “arma” de Chance não tem propósito e, por isso, saem fazendo chacota. Chance só começa a ter a percepção da inoperância de seu controle remoto após um dia inteiro percorrendo as ruas de Washington. Ao cair da noite ele passa em frente a uma loja de eletrodomésticos e vê sua imagem refletida em uma televisão (naquela época – o filme foi produzido em 1979 – as filmadoras provavelmente eram o topo de linha dos artefatos tecnológicos). A cena é bela: Chance pára, faz movimentos lentos e acompanha-os no monitor da TV, ergue e abaixa o braço, empunhando seu guarda-chuvas e, finalmente, tenta “mudar o canal”. Mas o controle não age sobre aquela cena, e ele recua assustado. Sem perceber, desce o degrau da calçada e se coloca entre dois carros estacionados. O expectador atento vai notar que, mais uma vez, a música do 2001 – Uma Odisséia no Espaço faz pano-de-fundo à cena. Claro, uma nova odisséia vai começar. Essa cena, além de retratar o relacionamento entre nosso protagonista e seu controle remoto, marca a passagem da personagem para um terceiro universo. Sua primeira odisséia foi sair da casa do velho e ir para a rua. O incidente que está para acontecer – Chance vai ser atropelado por um dos dois automóveis - marca sua saída do mundo da rua e sua entrada num terceiro universo, que ele vai habitar daqui por diante, a casa de um outro velho, o sr. Benajmin Rand, empresário poderoso e influente. (0:25:45) 1 Trata-se de uma cena que se repete duas vezes no filme, a da porta apresentando um perfil em sombra através de um clarão. A primeira vez, quando os advogados chegam do “mundo de fora” e entram na casa do velho (0:10:55) e a segunda quando Chance sai da casa do velho para “o mundo de fora” (0:19:15). A cena retrata a porta como uma passagem entre dois mundos. 2 Remetendo-nos ao texto de Blumer (1980, p. 125): “A interação não-simbólica ocorre quando se reage diretamente à ação de outra pessoa sem interpretá-la; a interação simbólica refere-se à interpretação do ato”, observamos claramente que a interação não-simbólica entre Chance e o grupo com que conversa realiza-se completamente, ao passo que a interação simbólica falha, uma vez que os processos de interpretação realizados por cada parte são distintos, devido ao fato de seu contexto situacional e suas experiências pregressas serem diferentes. Gostaria de me demorar um pouco nessa cena: Chance é atropelado; o motorista e, em seguida, a dona do automóvel vêm ao seu encontro; avaliam a gravidade da situação e decidem levá-lo a um hospital. Convidam-no, portanto, para entrar no carro. Pela segunda vez Chance informa: “Eu nunca andei num automóvel”. Aqui há duas coisas a serem observadas. A primeira é o fato de que a repetição de situações é uma constante no filme. Duas vezes Chance avisa nunca ter entrado em um carro (a primeira foi quando os advogados estiveram na casa do velho e Chance mostrou-lhes seu carro), duas vezes a porta da casa do velho é enfocada, ressaltando a passagem entre dois mundos, duas vezes a trilha sonora da odisséia repete-se, e assim por diante. Parece que a repetição é um recurso adotado para chamar atenção aos pequenos detalhes, que poderiam passar despercebidos, mas que são importantes na composição do enredo. Alie-se ao recurso da repetição a lentidão das cenas, tentando por um lado passar uma imagem de tempo real, por outro, permitir que o expectador assimile cada pequeno detalhe. E por falar nesses detalhes, um deles é a segunda coisa que eu queria observar. Trata-se da resposta dada a Chance quando ele avisa que nunca havia andado de carro: “Eu asseguro, senhor, que David é um ótimo motorista”. Ao que Chance retruca: “Compreendo” (“I understand”). Essa é uma expressão utilizada por Chance não apenas duas, mas diversas vezes ao longo da narrativa. O que me intrigou, nessas ocasiões, é que embora fossem situações em que ele afirmava ter compreendido algo, em nenhuma delas sua fisionomia correspondia a um estado de compreensão. Mesmo considerando-se que Chance é uma pessoa comedida em gestos e palavras, nem mesmo seu olhar, ao dizer “compreendo”, demonstrava ter passado de um estado de ignorância para um de entendimento. É como se o seu “compreendo” tivesse um significado que eu não estava conseguindo captar. Oras: o que realmente há para ser compreendido acerca de um homem ser um bom motorista? Poderíamos dizer que Chance estava sendo irônico? Que ele queria dizer algo como “Claro, eu entendo, ele é um excelente motorista, tanto que me atropelou!”? Não parece também este ter sido o caso. Se não havia em sua expressão indicação de entendimento, tão pouco havia de ironia. Voltaremos ao “I understand” mais tarde. Por ora, vamos continuar avaliando essa cena. O carro (e que carro!) entra em movimento e Chance observa: “isso (andar de carro e ver o mundo pela janela) é como na TV, só que se pode ver mais longe”. Chance está aqui fazendo a analogia entre o novo universo que está descobrindo e o universo a que ele pertencia. E mesmo notando que há uma vantagem nesse novo modo de ver o mundo (pode se ver mais longe), não é assim que ele se sente comodamente à vontade. Tanto que, na primeira oportunidade, vai escolher assistir à televisão a observar a paisagem pela janela. Se a janela tem a vantagem de permitir ver mais longe, a tv, por seu lado, tem a vantagem de permitir (relativamente) o controle do que ver: se algo não agrada basta mudar de canal. Daí a profunda decepção de Chance ao perceber que havia perdido seu controle remoto, pois era esse o instrumento que o permitia estar no controle (mudar de canal). Não podemos deixar de mencionar, um pouco antes disso, a situação em que Eve oferece um drinque para Chance. Ao aceitar respondendo “Sim, estou com muita sede”, Chance já oferece indícios ao expectador de que houve mais uma falha no processo de comunicação, e que ele não compreendeu o significado atribuído por Eve ao termo “drinque”. Eve lhe ofereceu uma bebida alcoólica, mas ele aceitou algo que lhe matasse a sede, sem sequer desconfiar do teor alcoólico da bebida. Tanto que sorve um grande gole e engasga em seguida. Sua crise de tosse foi o recurso encontrado pelo autor para permitir o maior de todos os enganos na interação comunicacional – a atribuição do nome Gardener a Chance. Infelizmente, essa é uma situação em que a tradução faz com que se perca muito. Ao responder qual o seu nome, Chance, em meio ao acesso de tosse, diz: “Chance, I’m a Gardener”. A crise de tosse faz com que o “I’m” passe despercebido e Eve compreenda “Chance Gardener” e recontextualize “Chauncey Gardener” (Chance seria uma forma carinhosa, um apelido para Chauncey e Gardener era uma família rica e poderosa com a qual Eve e seu marido mantinham relações sociais amigáveis) 3 . A confusão está feita e, devido ao seu modo comedido e polido de agir, Chance não se importa de ser chamado daí por diante de Gardener (enquanto quem o chama está crendo utilizar de formalidade ao chamá-lo pelo 3 A cena em que o advogado Thomas Franklin assiste a Chance Gardener na TV é uma entre as tantas que fazem uso da ambigüidade do termo Gardener e vale a pena ser revista tendo em mente a versão original não traduzida. (1:20:30) - Is that gardener. - Yes. Chauncey Gardener. - No, he is a real gardener. - He does talk like one. But I think he is brilliant. sobrenome , ele acha que está sendo chamado pela sua função de jardineiro), e nem mesmo de Chauncey (quem o chama assim acredita estar sendo ma is íntimo ao chamá -lo por seu primeiro nome, Chance interpreta como uma forma rebuscada). No entanto, quando, no final do filme (na cena em que Ben – Benjamin Rand – falece), o médico o chama de Chance, seu olhar e um discreto sorriso exprimem satisfação em ser chamado pelo nome correto. E quando o presidente dos Estados Unidos visita Bem e com ele mantém uma conversa de que Chance também participa, temos a pitoresca situação em que o presidente diz algo como “eu tive a chance de...” e Chance interpreta como se estivesse sendo chamado e responde ao chamamento. Chance, também no inglês, significa oportunidade (“I had chance to do ....”) ou acaso (“if, by any chance...”). Voltando à seqüência da cena do carro, Eve fala que sabe que é importante estar a par dos acontecimentos, mas que “é tanta coisa que chega a nos confundir”. Chance muda de canal. Para Eve, parece uma espécie de gentileza, tirar do noticiário e por num canal de entretenimento. Para chance seu gesto nada mais é que mero hábito (lembremo-nos de que ele zapeia o tempo todo). E o fato de Chance ter se demorado um pouco mais no novo canal, provavelmente foi porque a mensagem ali transmitida tinha significado para ele – era seu próprio anseio, seu próprio grito de socorro (e também o de Eve!): “preciso de ajuda, amigos, preciso de alguém ao meu lado alguém que me proteja em meu arremesso” Gomes (2000, p. 64) diz que: (...) a distância que pode estar estabelecida em termos de espaço e tempo entre o emissor e seus receptores pode representar um obstáculo à compreensão, erguido a partir de uma série de fatores culturais. (...) Quando a informação (conhecimento comunicado) chega ao receptor, também não será absorvida automaticamente pelo mesmo. Este tem suas competências, um saber acumulado, experiências vividas, que dialogarão com o texto recebido, mediando a interpretação e compreensão. Isso representa uma cadeia de enquadramentos que interferem na construção do conhecimento, na qual a interpretação é uma ação de composição e, ao mesmo tempo, de exclusão de conexões que ocorrem em função do momento e do espaço em que se encontra o sujeito que interpreta. Partindo desse pressuposto, podemos compreender a seqüência de mal-entendidos que se estabelece ao longo de todo o filme, incluindo mesmo a atribuição do nome Chauncey Gardener à personagem central. Houve aí tanto um processo de exclusão de conexões (impossível atribuir a um homem tão distinto e polido a profissão de jardineiro) quanto outro de recontextualização (passível aceitar que tal homem distinto e polido pertença à também distinta família Gardener). A seqüência de cenas no elevador da mansão dos Rand ilustra de modo divertido outras situações de recepção em que ocorrem a interpretação e a ressignificação em contexto diverso ao da enunciação. Na primeira delas, quando Chance entra no elevador levado pelo serviç al Wilson: (0:34:15) Chance: Nunca estive num destes. Wilson: É do sr. Rand, desde que ele está doente. Chance: Certo. E tem TV? Wilson: Não. Mas o sr. Rand possui uma com motor elétrico, para que possa andar sozinho. Chance: Quanto tempo ficaremos aqui? Wilson: Não sei, depende do que o médico disser. Aqui, Chance refere-se, o tempo todo, ao elevador. Mas Wilson interpreta, num primeiro momento, que ele está se referindo à cadeira de rodas e, num segundo momento, à sua estadia na mansão 4 . O segundo diálogo que merece atenção ocorre quando Wilson acompanha Chance para fazer a radiografia, no instante em que estão saindo do elevador: (0:39:35) Chance: Este é um quarto muito pequeno. Wilson: Sim senhor. Eu acredito que isso seja verdade. O menor quarto da casa. Nessa situação Wilson compreendeu que Chance agora falava do elevador. No entanto ele acredita que o protagonista esteja fazendo uma piada, ao passo que Chance falava com toda sua autenticidade. Isso fica mais evidenciado quando chegamos à terceira cena do elevador, em que Wilson escolta Chance aos seus aposentos, após o jantar e a degustação de charuto com Ben. Assim que se vêem sozinhos no elevador, Wilson olha para Chance e não consegue reprimir uma risada. Em seguida desculpa-se: (0:48:26) Wilson: Desculpe, senhor. Pensei que soltaria outra piada sobre o elevador. Desculpe. Chance: O elevador? Wilson: Sim, senhor. O elevador. É apenas nesse momento que Chance atribui um nome (signo) ao “menor quarto da casa”: o elevador. Outra cena em que cada um dos indivíduos participantes do processo comunicacional estabelece sua própria ressignificação ao que está sendo dito é a cena do jantar, de que participam Chance, Bem, Eve e o dr. Allenby. (0:42:43) Eve: Podemos avisar alguém sobre o senhor? Chance: Não. O velho morreu, e Louise se foi. Eve: Sinto muito. Espero que isso não atrapalhe o seu trabalho, sr. Gardener6 . Ben: Você precisa de uma secretária? Chance: Não, obrigado. Minha casa foi fechada. Ben: Quer dizer, seu negócio foi fechado? Chance: Sim, fechado por advogados. Ben: Estão vendo? É o que sempre digo. O homem de negócios atual fica à mercê dos advogados. Dr. É assim em todo setor. Do jeito que as Allenby: coisas vão, provavelmente acabarão com a 4 A palavra “isso” é aqui uma expressão indicial (vide Coulon, 1985, p. 32-33)5 significando, para Eve, o acidente sofrido por Chance e os transtornos conseqüentes, e para Chance o fato de o velho ter falecido e Louise ter ido embora. Note-se que, mais de uma vez, a tradução faz com que se perca um pouco da essência do filme. Nesta cena, no original em inglês, ao se referir tanto ao elevador quanto à cadeira de rodas, utiliza-se o pronome it, que não sofre alteração de gênero, não causando a discrepância entre feminino e masculino que, nessa situação particular, evitaria a confusão ocorrida na interpretação. 5 “As expressões indiciais são expressões, como por exemplo “isto”, “eu”, “você”, etc., que tiram o seu sentido do próprio contexto. Constituíram já há muito tempo o objeto da preocupação dos lógicos e dos lingüistas. Podem-se definir como indicialidade todas as determinações que se ligam a uma palavra, a uma situação. Indicialidade é um termo técnico, adaptado da lingüística. Isto significa que, embora uma palavra tenha uma significação transsituacional, tem igualmente um significado distinto em toda situação particular em que é usada. Sua compreensão profunda passa por “características indicativas” e exige dos indivíduos que “vão além da informação que lhes é dada”. Isto designa, portanto, a incompletude natural das palavras, que só ganham o seu sentido “completo” no seu contexto de produção, quando são “indexadas” a uma situação de intercâmbio lingüístico. E ainda: a indexação não esgota a integralidade do seu sentido potencial. A significação de uma palavra ou de uma expressão provém de fatores contextuais como a biografia do locutor, sua intenção imediata, a relação única que mantém com seu ouvinte, suas conversações passadas”. (Coulon, 1985, p. 32-33). 6 Sr. Jardineiro seria a tradução ao pé da letra, e não sr. Jardim. Daí o original em inglês estar muito mais carregado de ambigüidade que a tradução proposta para o português. No original, a mesma palavra expressa a profissão e o sobrenome de família famosa. Chance: Ben: Chance: Ben: Chance: Eve: Ben: Chance: Eve: Ben: Chance: Ben: Chance: Ben: profissão de médico com uma lei. Sim, acabarão. É uma vergonha. Que planos tem, Sr. Gardener? Ou o chamo de Chauncey? Chauncey é bom. Então, quais são os seus planos, Chauncey? Gostaria de trabalhar no seu jardim. Ben, sei exatamente o que ele quer. Não é fantástico? Ficar entre árvores e flores assim? Eu mesmo nunca fui disso. Eu sou um ótimo jardineiro. É um belo modo de se esquecer dos problemas. E todo empresário não é isso? Um jardineiro? Mexe em solo árido para torná-lo produtivo com as próprias mãos. E o rega com o suor da própria face. Faz coisas de valor para sua família e pela comunidade. Realmente, Chauncey, um empresário produtivo é um trabalhador do jardim. Entendo exatamente o que você quer dizer, Ben. O jardim que deixei era esse tipo de lugar. Mas não o tenho mais. Só tenho o quarto lá em cima. Um momento, Chauncey. Você tem sua saúde. Não se deixe abater, homem. Precisa resistir. Não quero ouvir mais de você essa conversa sobre “o quarto lá em cima”. É para onde eu irei. Muito logo. É um lugar agradável, Ben. Estou certo disso. É o que dizem, afinal. Nem assim a confusão do sobrenome se desfaz. Se para Chance “o jardim que deixei” realmente designa um jardim, para Ben representa uma empresa ou um negócio que foi fechado. Do mesmo modo, para Chance “o quarto lá em cima” refere-se ao aposento que ele está ocupando no andar superior da mansão. Para Ben, por sua vez, significa o Paraíso, ou o lugar para onde vamos depois de mortos. Pode-se inferir, pelo olhar que o Dr. Allenby dirige a Chance ao final dessa cena, que talvez ele seja o único a pressentir a duplicidade dos sentidos atribuídos por cada um dos participantes da conversa. Talvez pelo fato de estar de fora, não pertencer nem ao contexto de Chance, nem ao do casal Rand. Nesse momento gostaria de referenciar alguns trechos de minha tese de doutoramento que, acredito, auxiliarão a compreensão do que vem a ser o processo comunicacional, do qual faz parte a informação enquanto processo de atribuiç ão de sentido, para que entendamos melhor as “falhas” que o filme repetidamente retrata na interação simbólica entre seus personagens. Charaudeau parte do pressuposto de que o estudo da linguagem não deva resguardar-se da dimensão psicossocial, ao definir o ato de linguagem como a interação entre dois espaços: um externo, o circuito do fazer psicossocial e situacional; outro interno, a organização do dizer. Charaudeau considera que o ato de linguagem não é totalmente consciente e é subsumido por um certo número de rituais sócio-linguageiros. A encenação linguageira engloba a realização de gêneros e estratégias que dependem do aspecto situacional e das circunstâncias de produção. Portanto, são três os lugares de pertinência do discurso: o lugar da produção, o do produto e o da recepção. No lugar da produção situa-se o chamado sujeito comunicante, um sujeito empírico que pode ser chamado de ator ou parceiro. Segundo Ghiglione é aqui que se realiza a operação de pré -figuração, quando o sujeito comunicante, condicionado pela sua experiência prática e pela sua percepção do mundo, busca dar significado àquilo que deseja comunicar. No extremo oposto, no lugar da recepção, um sujeito interpretante, outro parceiro também empírico, constrói sua interpretação, muda ou expressa, em função dos componentes comunicacional, psicossocial e intencional e da sua percepção do ritual simbólico ou linguageiro. Aqui se realizam as atividades de reconhecimento e re-figuração do sentido, que irão levar ao processo de compreensão. Entre os dois extremos, que compõem o espaço do fazer situacional, encontra-se o lugar do produto, ocupando o espaço do dizer. Neste, os protagonistas são os seres de fala, que são virtuais (sujeito enunciador – aquele que enuncia a comunicação; e receptor – aquele que a recebe) e assumem diferentes faces de acordo com os papéis que lhes são atribuídos. A subdivisão, proposta por Charaudeau, do emissor em dois sujeitos, um real, empírico, de carne e osso, responsável pela pré -figuração da mensagem, outro virtual, responsável por sua emissão, e a respectiva subdivisão do receptor em sujeito destinatário, que recebe a mensagem, e sujeito interpretante, que a re-figura, atribuindo-lhe significado, é bastante enriquecedora e se adequa bastante bem ao processo de comunicação, quer seja ele direto e presencial (os dois sujeitos frente a frente, em contato, se comunicando), quer seja indireto e não-presencial. (Sirihal Duarte, 2005, p. 32-33). Circuito Externo: Fazer Operação de Configuração Sujeito Comunicante Informação: Pré-figuração Sujeito Mensagem Enunciador Sujeito Destinatário Informação: Re-figuração Sujeito Interpretante Circuito Interno: Dizer Produção Produto Recepção FIGURA 2 - Circuitos interno e externo no processo de comunicação FONTE: SIRIHAL DUARTE, 2005, p. 34. Assim, no processo de comunicação, o chamado sujeito comunicante, imerso numa realidade social particular, ao elaborar uma mensagem (conjunto de dados, quer seja manuscritos, quer através de imagens, ícones, sons, gestos, etc.) tem, como ponto de partida, seu próprio contexto social, sua gama de conhecimentos individuais e coletivos. Não é apenas a partir dessa vivência que ele elabora seu discurso, portador de sua mensagem. Leva em consideração, ainda, o receptor (sujeito interpretante) que deseja atingir: qual é a sua realidade psico-socio -cultural, quais são os seus conhecimentos prévios, de que modo ele provavelmente irá re -figurar a mensagem recebida. O objetivo do sujeito comunicante é que a mensagem produza a informação desejada no sujeito interpretante a quem ela se destina. Portanto, a mensagem deve gerar um processo de informação capaz de alterar o estado de conhecimento do receptor. (Sirihal Duarte, 2005, p. 38). No entanto, nos processos de comunicação que ocorrem no filme Muito Além do Jardim, não há, por parte do sujeito comunicante, a preocupação em como a mensagem será refigurada pelo sujeito interpretante. Ele considera apenas o seu próprio contexto ao elaborar e, posteriormente, enunciar sua fala. E é exatamente pelo fato de o contexto e experiências do sujeito comunicante ser totalmente diferente daqueles que compõem o repertório do sujeito interpretante que as ambigüidades de sentido acontecem com tanta freqüência no filme. A grande crítica que o filme faz é ao fato de que estamos todos tão centrados em nós mesmos que não conseguimos enxergar muito além da nossa realidade e daquilo que nos interessa. E que não são apenas os idiotas – como Chance – que têm a visão tão estreita. Ao contrário, aqueles que pensam ser os dominadores é que são os mais auto-centrados. Tanto, que não percebem o óbvio. Preferem utilizar-se de metáforas absurdas que lhes permitam receber a informação que lhes é conveniente. Diante da necessidade de materializar o significado do termo informação, ainda que procurando manter-se coerente com a função do processo de informar, que é a de alterar o estado de conhecimento prévio do indivíduo, Barreto (1994) conceitua informação como um conjunto de estruturas significantes que podem ou não ter sido geradas intencionalmente por um sujeito emissor: “Assim, como agente mediador na produção do conhecimento, a informação qualifica-se, em forma e substância, como estruturas significantes com a competência de gerar conhecimento para o indivíduo e seu grupo”. Nessa conceituação que materializa o significado do termo, a informação é a raiz do processo do conhecer e, portanto, instituinte da cultura. Nesse sentido, considera-se que: 1. quando se instaura um processo de comunicação, informação é algo que um indivíduo gera ativamente e que outro indivíduo pode decidir internalizar; 2. cada indivíduo recebe e interpreta informação (conjunto de estruturas significantes) à sua própria maneira, dando-lhe significado pessoal; 3. a percepção da informação é mediada pelo estado de conhecimento do receptor e pelo contexto psico -socio-cultural em que ele se encontra inserido; 4. quando a informação é percebida e/ou recebida, ela afeta e transforma o estado de conhecimento do receptor (Sirihal Duarte, 2005, p. 43). Vejamos mais um exemplo de cena em que cada personagem interpreta a informação à sua própria maneira, dando-lhe significado pessoal. Trata-se da cômica cena em que ele é abordado por um homossexual na recepção do embaixador russo. (1:43:12) - Nunca conheci ninguém na capital como você. - Passei toda a vida aqui. - Verdade? Onde você andou toda a minha vida? Diga- me, sr. Gardener, já fez sexo com outro homem? - Não. Acho que não. - Podemos ir lá em cima já. - Tem TV lá em cima? - (risada) - Eu gosto de assistir. - Gosta de... assistir? 7 - Sim. - Espere bem aqui. Vou buscar outro. Nesse mesmo jantar, logo que chegam, Chance e Eve são bombardeados pela imprensa. Nesse momento, Chance assume em público o fato de não ler jornal e sim ver TV. Ao invés de ser considerado o “vidiota” que é, ele é taxado como corajoso, por assumir preferir a TV. (1:36:00) Logo em seguida, (1:41:20) trava um diálogo com Ronald, editor interessado em publicar a sua biografia. Mais uma vez, Chance assume não ser capaz de escrever ou ler. E mais uma vez, não é levado a sério: - Olá, Ronald. Como vai? - Vou bem. - Que bom. Eu vou bem também. 7 Essa é outra situação que se repete duas vezes no filme. Quando Chance e Eve estão a sós no quarto e ele interrompe sua cena de amor porque a cena que ele imita na TV acaba, ele também diz a Eve que gosta de assistir e também ela não percebe que ele referia-se à televisão. - Bom, bom. - Sim bom. Estamos bem. - Estamos bem. Sr. Gardener, meus editores e eu queremos saber se o sr. consideraria escrever um livro para nós. Algo com sua filosofia política. O que acha? - Eu não escrevo. - Claro que não. E quem escreve nos dias de hoje? Eu mal consigo escrever um cartão postal para os meus filhos. Veja, o sr. teria um substancial adiantamento. E redatores, revisores... - Eu não leio. - Claro que não. Ninguém tem tempo pra isso. Nós olhamos as coisas. Nós assistimos à televisão. - Eu gosto de assistir à TV. - Claro que gosta. Ninguém lê. Chance não sabe ver as horas (preocupa-se em como saberá que são dez horas, hora em que o presidente chegará à mansão dos Rand), nunca falou num telefone (sua primeira experiência é quando precisa atender ao telefonema de um repórter, na casa dos Rand, e ele só fala algo em resposta ao seu interlocutor), não sabe assinar seu próprio nome (além de afirmar isso para o advogado Franklin, Louise também conta isso aos seus familiares), não sabe escrever ou ler. No entanto, já esteve na TV. Ou pensa que esteve quando se refere ao fato de ter aparecido no monitor da loja de eletrodomésticos. E finalmente aparece, sim, na televisão. Em cadeia nacional e com elevado índice de audiência. Temos, nesse instante do filme, mais uma crítica aos meios de comunicação em massa. Basta aparecer na TV para sair do anonimato – agora ele existe! Antes, ao contrário, não existia. Não possuía qualquer tipo de registro (identidade, cartão de crédito, carteira de motorista, contrato trabalhista, registro médico ou odontológico), isto é, não estava formalmente inserido na sociedade da informação e do conhecimento. Mas ao aparecer na televisão, tudo muda! Se o mundo inteiro o assiste, é claro que ele existe. E a não ocorrência de registros anteriores passa a ser interpretada da forma mais emaranhada possível: a CIA ou o FBI teriam apagado seus registros por algum motivo escuso. Mas é bom não ter passado registrado. Pelo menos é isso que concluem os polític os, amigos de Ben, quando, levando o corpo do companheiro para a sepultura, sugerem o nome de Chance como candidato à eleição presidencial dos Estados Unidos. Já que trata-se de alguém sem passado, pelo menos não existe qualquer registro que ateste contra ele. Enquanto se trava o diálogo que sugere o nome de Chance para a sucessão presidencial, numa cena apoteótica, Chance anda sobre as águas. Flutua sobre elas como flutua sobre tudo na vida. Mede a profundidade com seu guarda-chuvas, e continua andando sem afundar. Um final pra fazer qualquer um pensar... Antes de encerrar esse breve estudo sobre o filme, voltemos a uma última cena, e ao tema que deixei em suspenso, do significado do “I understand” (expressão indicial?) tantas vezes proferido por Chance. Trata-se da cena em que Benjamin Rand falece. O moribundo solicita a presença de Chance em seu leito de morte: (1:57:00) Ben: Chance: Ben: Chance: Ben: Dr. Allenby: Chance: (Chance coloca Chance: Dr. Allenby: Chance: Chauncey. Sim, Ben. Você vai morrer agora? Acho que eu vou me render. A trombeta da fartura pela trombeta de Gabriel. Dê- me sua mão. Deixe- me sentir sua força. Chauncey, eu espero que você permaneça aqui. Com Eve. Tome conta dela. Ela gosta de você. Cuide bem dela. Ela é uma flor delicada. Uma flor. Sim, Ben. Ainda há... há muitas coisas por fazer. Falei com os meus sócios... estão muito ansiosos em conhecer você. Diga a Eve... Ele se foi, Chauncey. Sim, eu sei, Robert. Já vi isso antes. Acontece com os velhos. sua mão sobre a fronte de Ben.) Agora você vai embora, Robert? Sim, em um ou dois dias. Eve ficará. Ela disse que não vai fechar a casa. Dr. Allenby: Você se tornou amigo íntimo dela, não foi, Chance? (Chance sorri, não se sabe se em reconhecimento por ter sido chama do pelo nome correto ou se pelo fato de ter tido sua intimidade desvelada. Eu aposto na primeira opção.) Chance: Sim. Eu amo muito Eve, Robert. Dr. Allenby: E você é realmente um jardineiro, não é? Chance: Eu sou... jardineiro. Bem, eu vou falar com Eve a respeito de Ben. (Chance sai de cena) ??????? Dr. Allenby: Eu compreendo. Eu compreendo? O que realmente quer significar a expressão “Eu compreendo” tantas vezes utilizada por Chance (que, conforme se percebe ao longo do filme, pouco compreende e muito mais aceita passivamente uma realidade quando enuncia tal fala) e uma única vez utilizada por outra personagem? Retomando as palavras de Coulon (1985, p. 33), “sua (da palavra, termo ou expressão) compreensão profunda passa por ‘características indicativas’ e exige dos indivíduos que ‘vão além da informação que lhes é dada’”. Portanto, interpretar o significado de “Eu compreendo” para Chance e para Ben é uma tarefa que cabe a cada um de nós, de acordo com o nosso repertório de conhecimentos prévios, percepções, experiências, etc. No meu ponto de vista, o “Eu compreendo” carrega junto consigo “Entendi, mas pouco importa”. De que importa (lá no início do filme) o fato de David ser um bom motorista? O importante, aqui, é que Chance nunca havia entrado em um carro e agora estava prestes a andar em um. De que importa que Chance seja realmente um jardineiro? O que importa é que ele esteja sempre presente para quem dele necessite (Eve, os sócios de Ben, os políticos que desejam permanecer no poder, etc.). Afinal, este é o título do filme no original em inglês: Being there (Estar lá). E de que importa que a água sobre a qual Chance anda na última cena do filme seja profunda? O ato de medi-la com o guarda-chuvas não corresponde exatamente ao “Eu compreendo”? Chance percebe que a água é funda, mas de que importa? Mesmo tendo consciência do fato, ele em nada alterará seu modo de ser e agir. Ele continuará flutuando sobre ela (andando sobre a superfície) como sempre fez em relação a tudo em sua vida – foi superf icial, esteve acima de tudo, flutuou. Referências BARRETO, Aldo Albuquerque. A questão da informação. Revista São Paulo em Perspectiva, Fundação Seade, v. 8, n. 4, 1994. Disponível em <http://aldoibct.bighost.com.br/quest/ quest.htm>. Acesso em 12/jun/2006. BLUMER, Herbert. 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Muito Além do Jardim Uma fábula moderna: As parábolas do jardineiro Disponível em <http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=278> Acesso em 20/jul/2006 Um dos últimos filmes de Peter Sellers, considerado por vários especialistas como um dos maiores comediantes de todos os tempos, é um filme que nos faz rir, mas que fundamentalmente nos emociona e nos leva a pensar. Baseado na obra literária “O Videota”, de Jerzy Kozinski, o filme nos mostra a vida de um jardineiro que durante praticamente toda a sua existência viveu num único lugar, a casa de seu patrão. Sua experiência de vida restringia-se ao jardim dessa residência, ao contato com as poucas pessoas que por ali transitavam (como seus patrões e os demais funcionários) e as informações que conseguia pela televisão. É justamente nesse ponto (seu universo restrito) que a existência de Chance Gardener (Peter Sellers) se torna digna de uma reflexão profunda. Numa época como a nossa marcada pela necessidade de ampliarmos nossos horizontes e de termos informações a respeito de tudo e de todos, existiria ainda espaço para as pessoas que como Chance vivem dentro de um mundo pequeno, de perspectivas reduzidas? Ou será que essas pessoas possuem uma sabedoria desprovida de orgulho ou empáfia e poderiam nos indicar caminhos alternativos, onde as prioridades fossem menos ambiciosas, mais realistas? O contato freqüente com as plantas faz com que o protagonista de “Muito Além do Jardim” entenda que o crescimento se faz a partir de um processo lento, regado por compreensão, paciência e muito, muito carinho e atenção. Ao expor seu entendimento das coisas que o cercam, Chance Gardener expressa suas idéias com base em seu universo aparentemente restrito, entretanto, sem que as pessoas saibam de sua origem, passa a ser interpretado como um sábio, que se expressa a partir de parábolas ou metáforas. Protegido pelos limites da casa onde vivia, Chance preserva uma candura e uma inocência dignas das crianças. Não tem a malícia das ruas a macular sua auto-imagem e a consideração e estima que apresenta pelas outras pessoas. Nesse momento, podem surgir novas dúvidas entre os espectadores, especialmente pensando-se na possibilidade de sobrevivência num mundo tão hostil, de tanta agressividade e de muita maldade. Se pudéssemos optar entre as alternativas que nos são oferecidas pelo mundo e por aqueles caminhos diferenciados do personagem de Peter Sellers, o que escolheríamos? Iríamos pensar de forma prática e adotar uma postura mais distante, tensa e pretensamente esperta em relação às pessoas e ao mundo em que vivemos ou escolheríamos a paz de espírito, a calma e a ingenuidade de Chance Gardener? E lembrem-se que não há chance de escolher uma terceira opção, híbrida... O Filme O patrão de Chance (Peter Sellers) acabou de morrer. Para onde ir? O que fazer? Sem nunca ter saído da casa onde sempre viveu e trabalhou o jardineiro não sabe ao certo que rumo deve dar a sua vida. Para começo de conversa, ele nem ao menos sabia que teria que sair da casa, requisitada pelos advogados, por motivos de disputa judicial. Ao ser informado pelos outros funcionários que teria que ir embora, Chance não sabe a quem recorrer ou que caminhos seguir, afinal de contas toda a sua vida tinha sido ali, em contato com as plantas daquele simpático e bem cuidado jardim. O destino é, muitas vezes, caprichoso, e fez com que em virtude de um pequeno acidente pelas ruas da cidade grande, Chance tivesse a oportunidade de conhecer Eve Rand (Shirley MacLaine), esposa de um grande e influente empresário, Benjamin Rand (Melvyn Douglas). Levado para a casa do magnata, Chance conquista seus anfitriões com sua simplicidade e simpatia. Sua conversa tranqüila, com pensamentos expostos como parábolas, fazendo analogias entre o que acontecia a seu redor com os conhecimentos que possuía como jardineiro encantam todos ao seu redor e criam para os demais a aura de sábio para o humilde Chance. Chance é então apresentado ao presidente dos Estados Unidos, que ciente da capacidade do hóspede de seu rico amigo Benjamin Rand, passa a buscar conselhos e orientações para a política nacional... Uma fábula moderna, essa talvez seja a melhor caracterização para esse charmoso e interessante filme do diretor Hal Ashby. João Luís Almeida Machado Mestre em Educação, Arte e História da Cultura (Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo); Professor universitário atuando na Faculdade Senac em Campos do Jordão; Professor de Ensino Médio e Fundamental em Caçapava, SP; Editor do Portal Planeta Educação Muito Além do Jardim: sátira de momentos perfeitos Matéria publicada no Jornal da Tarde de 14-8-1981. Lauro Machado Coelho Múltiplas possibilidades de sátira abriam-se a Jerzy Kozinski na história de Chance, um pobre de espírito cinqüentão, que passou toda a sua vida isolado do mundo e, ao ser forçado a sair de seu casulo, é transformado em celebridade nacional por uma série de circunstâncias fortuitas (não é à toa que o nome da personagem significa “acaso”). Sátira de toda uma geração de “vidiotas” – assim se chamou a tradução brasileira do livro de Kosinski – cuja sensibilidade e espírito crítico se embotaram, e que recebe aparvalhadamente, através da televisão, todas as idéias que se quer que ela assimile (a degradação da vontade e do poder de livre escolha é o grande tema imanente a essa fábula, aparentemente inofensiva, sobre um jardineiro debilóide convertido, da noite para o dia, em assessor do presidente dos Estados Unidos. Sátira também de uma intelectualidade saturada de conceitos, e habituada a julgar as pessoas por sua aparência, e que procura metáforas profundas, e significados ocultos, nos cândidos aforismas sobre jardinagem proferidos por Chance. Numa espécie de variante da história da roupa nova do rei, nenhum deles é capaz de perceber que, nada mais há do que inócuos comentários sobre as únicas coisas que Chance sabe fazer: cuidar do jardim e ver televisão. Ou nem isso, pois ele se limita a olhar para a tela, sem ter muita noção do que está acontecendo; e a manejar mecanicamente o controle remoto – como fazem muitas pessoas, substituindo o ato de ver pelo de fazer passar as imagens rapidamente. Sátira, finalmente, e das mais cáusticas, à forma como os donos do poder vêem, nesse homem surgido do nada – sem passado, sem antecedentes de sucesso ou de fracasso e, conseqüentemente, sem compromisso com coisa nenhuma – o instrumento ideal para a continuidade da sua dominação. Para a América inteira, Chance torna-se aquilo que parece ser, com suas roupas impecáveis, herdadas do ex-patrão, seu sorriso manso, suas frases sibilinas. E é perfeitamente possível fazê-lo parecer tudo aquilo que se quer que ele represente. Chance limita-se a estar lá (Being There é o título original do livro e é o título do filme) e a deixar que, na página branca de sua personagem, cada um inscreva seus próprios desejos e esperanças, seus próprios sonhos de beleza, sabedoria ou sucesso pessoal. Trabalhando a partir de um roteiro solidamente delineado pelo próprio Kosinski, o diretor Hal Ashby consegue a proeza de desenvolver uma narrativa cujo ritmo é extremamente compassado – a lentidão da própria vida morna e sem horizontes da personagem – mas nem por um instante deixa desviar-se a atenção do espectador. E não só as excepcionais interpretações de Peter Sellers (Chance) e Melvyn Douglas (Ben Randy, o financista decrépito, eminência parda do poder, que o acolhe em sua casa) garantem que se mantenha aceso o interesse. A inteligência da direção de Ashby, que dosa com sobriedade seus efeitos cômicos, é admirável. O filme tem momentos perfeitos. O primeiro passeio de Chance fora da casa de seu patrão, por exemplo, em que ele se vê atordoado com aquele mundo que nunca tinha visto ao vivo: ele assusta uma mulher, a quem pára, na rua, para pedir comida; ou intriga os transeuntes, que se espantam com aquele homem, de aspecto tão distinto, e que brinca como uma criança com um aparelho de vídeo-tape exposto na vitrine de uma loja. Ou a cena hilariante em que ele repete, com Eve (Shirley MacLaine), a mulher de Ben, os gestos amorosos de um casal que viu na TV. Mas, depois, não sabe continuar, pois isso a televisão não lhe mostrou. Ou ainda a magistral seqüência do coquetel para o embaixador russo (Richard Basehart, numa composição muito engraçada), onde cada pequenino detalhe é uma jóia de humor – a começar pelo longínqüo e persistente acompanhamento musical da cena, que é a caric atura de um determinado tipo de música russa. Mencionenos também, para a criação da atmosfera geral do filme, a excelência do tratamento da cor na fotografia de Caled Deschanel. E o clima melancólico estabelecido pelo acompanhamento musical de Johnny Mandel, com um tema ao piano que lembra as melodias de Erik Satie.