a construção social de políticas ambientais

Transcrição

a construção social de políticas ambientais
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE POLÍTICAS AMBIENTAIS
Chico Mendes e o Movimento dos Seringueiros
Mary Helena Allegretti
Tese de Doutorado
Brasília-DF, 18 de Dezembro de 2002
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE POLÍTICAS AMBIENTAIS
Chico Mendes e o Movimento dos Seringueiros
Mary Helena Allegretti
Tese de Doutorado
Orientadores:
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Marcel Bursztyn
Brasília-DF, 18 de Dezembro de 2002
ii
iii
ALLEGRETTI, MARY HELENA
A Construção Social de Políticas Ambientais – Chico Mendes e o Movimento dos Seringueiros,
827p., mm, (UnB-CDS, Doutora, Desenvolvimento Sustentável – Gestão e Política Ambiental,
2002).
Tese de Doutorado – Universidade de Brasília. Centro de Desenvolvimento Sustentável.
1. Políticas Públicas e Meio Ambiente
2. Movimentos Sociais
3. Conflitos Agrários e Ambientais
4. Seringueiros e Chico Mendes
I. UnB-CDS 014d
É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta tese e emprestar
ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e científicos. A autora reserva outros
direitos de publicação e nenhuma parte desta tese de doutorado pode ser reproduzida sem a
autorização por escrito da autora.
Mary Helena Allegretti
iv
Esta Tese é dedicada a
Raimundo de Barros, Marina Silva, Júlio Barbosa,
e ao Conselho Nacional dos Seringueiros,
herdeiros do legado de Chico Mendes.
v
Agradecimentos
Realizar uma Tese de Doutorado, simultaneamente à função de Secretária de Coordenação da
Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente, durante dois anos, exigiu muita disciplina pessoal,
concentração e administração do tempo. Mas não teria sido possível sem o apoio que recebi de
algumas pessoas às quais quero agradecer.
Aos Ministros do Meio Ambiente, José Sarney Filho e José Carlos Carvalho,
pelo respeito à decisão de conciliar as responsabilidades de Secretária com as de Doutoranda.
A Vanessa Fleishfresser, por ter me ajudado a identificar o eixo central da Tese.
A Ana Lange, pela dedicação e competência na função de Secretária Adjunta, apoio indispensável
para a concretização de uma tarefa tão complexa.
A Mario Menezes, por ter dividido comigo as responsabilidade do Gabinete e partilhado a
importância de registrar a história que ajudou a construir.
A Juliano Allegretti Zanoni, Luiz Fernando Allegretti, Liliane Robacher e Fernanda Allegretti
Venzon, não somente pelos laços de família, mas também pelo apoio irrestrito e convivência
criativa.
A Graciela Pascual, pelo eficiente suporte cotidiano sem o qual seria impossível conciliar agendas
e responsabilidades. A Elcio Freire da Costa, Warlison Leandro da Silva e Katia Cristina Favilla
pelo apoio técnico e operacional e a disposição de colaborar.
À Equipe da Secretaria de Coordenação da Amazônia, como um estímulo, para que as
responsabilidades institucionais não nos afastem do esforço de reflexão sobre a realidade.
vi
RESUMO
Este estudo analisa o modo como comunidades de seringueiros, destituídas de força
econômica e de poder político, articulam redes locais, nacionais e internacionais de apoio e, ao
formular uma alternativa para a resolução de conflitos sociais, contribuem para a elaboração e
implantação de uma política inovadora de acesso e uso dos recursos naturais na Amazônia. Esta
política - de criação de áreas protegidas para o uso sustentável de populações tradicionais - foi
exitosa politicamente, porque criou um mecanismo institucional de resolução de conflitos em
torno da terra e da floresta; socialmente, porque assegurou meios de vida para as gerações atuais e
futuras; culturalmente, porque respeitou formas tradicionais de uso dos recursos naturais; e,
ambientalmente, porque impediu o avanço dos desmatamentos. Este resultado foi alcançado por
meio da combinação de fatores endógenos e exógenos ao movimento dos seringueiros, tais como
a história de luta pela incorporação do Acre ao território nacional; a relação econômica dos
seringueiros com a floresta; a busca de base social de apoio para campanhas em defesa das
florestas tropicais; a atuação no campo estratégico dos empréstimos internacionais para a
Amazônia; e a identificação do líder sindical Chico Mendes como símbolo ambiental após o seu
assassinato, no contexto que antecedeu a Conferência do Rio em 1992. O resultado foi a
transformação de um problema local em questão de Estado e em tema internacional, alcançado
por meio de uma estratégia política de construção de alianças entre grupos sociais diferenciados.
O estudo revelou que movimentos ambientais podem ser bem sucedidos quando formulam
políticas de aliança com a sociedade e movimentos sociais podem se beneficiar quando inserem a
questão ambiental em seus objetivos estratégicos. A pesquisa demonstrou, também, que a
formulação de políticas de desenvolvimento, em áreas ricas em recursos naturais, requer o
equacionamento prévio dos direitos de propriedade. Mas evidenciou que o controle sobre
territórios não é suficiente para solucionar o problema da viabilidade econômica do uso da
floresta na Amazônia, que depende de políticas de valorização dos recursos naturais que
reconheçam as comunidades tradicionais como protagonistas do desenvolvimento sustentável, na
medida em que são mantenedoras do estoque de capital natural e prestadoras de serviços
ambientais para o planeta e a humanidade.
vii
ABSTRACT
This study analyzes the way in which rubber-tapper communities, in spite of being
destitute of economic and political power, construct local, national and international support
networks and, by providing an alternative way to resolve social conflicts, contribute to the design
and implementation of an innovative policy of access to and use of the natural resources in the
Amazon region. This policy – creation of protected areas for sustainable use by traditional
populations – was politically successful, by creating an institutional mechanism for resolution of
conflicts regarding land and the forest; socially successful, by ensuring livelihoods for present and
future generations; culturally successful, because it respected traditional forms of natural resource
use; and environmentally successful, because it blocked the advance of deforestation. This result
was achieved through a combination of factors that were both endogenous and exogenous to the
rubber-tapper movement, such as the history of struggle for incorporation of Acre into the
national territory; the economic relation of rubber-tappers with the forest; the search for a social
base of support for campaigns in defense of tropical forests; and the identification of the laborunion leader Chico Mendes as an environmental symbol after his murder, in the course of events
which preceded the Rio de Janeiro Conference in 1992. The result was a transformation of a local
problem into an issue of State and an international cause, through a political strategy of building
alliances among different social groups. The study revealed that environmental movements can
be successful when they establish policies of alliances with society, while social movements can
benefit when they include environmental issues among their strategic objectives. The research
showed that the formulation of development policy in regions rich in natural resources requires
previous solution of problems of land tenure. However, it also showed that control of territory is
not sufficient to solve the problems of economic feasibility of use of forest resources in the
Amazon, which depends on policies which increase the value of natural resources and recognize
traditional communities as protagonists of sustainable development, since they maintain the stock
of natural capital and provide environmental services for the planet and mankind.
viii
ÍNDICE
PRÓLOGO ....................................................................................................................... 1
Encontro na Floresta .............................................................................................................................1
1.
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 18
2.
O CONTEXTO HISTÓRICO DOS CONFLITOS .................................. 43
2.1 A REVOLUÇÃO ACREANA...................................................................................................45
2.1.1 Expansão da Economia da Borracha ...........................................................................47
2.1.2 Ocupação do Acre: entre o Madeira e o Javari ...........................................................52
2.1.3 Controle Boliviano..........................................................................................................58
2.1.4 O Estado Independente e o Bolivian Syndicate .............................................................64
2.1.5 Plácido de Castro e a Guerra do Acre..........................................................................80
2.1.6 O Tratado de Petrópolis.................................................................................................91
2.2. POLÍTICAS PARA A BORRACHA ....................................................................................100
2.2.1 Queda da Economia da Borracha...............................................................................101
2.2.2 O Soldado da Borracha na Segunda Guerra Mundial..............................................110
2.2.3 A Política do Monopólio da Borracha .......................................................................114
2.2.4 A Operação Amazônia .................................................................................................121
3.
OS SERINGUEIROS E O AVIAMENTO.................................................134
3.1.
O EXTRATIVISMO DA BORRACHA............................................................................140
3.1.1 As Peculiaridades da Borracha ....................................................................................141
3.1.2 As Pesquisas Industriais ...............................................................................................143
3.1.3 A Devastação dos Seringais .........................................................................................146
3.1.4 A Ocupação dos Altos Rios.........................................................................................149
3.2.
RELAÇÕES SOCIAIS NA EMPRESA SERINGALISTA .........................................154
3.2.1 Abertura de um Seringal...............................................................................................161
3.2.2 O Endividamento Prévio .............................................................................................163
3.2.3 Colocação e Barracão.........................................................................................................164
3.2.4 Os Regulamentos dos Seringais ..................................................................................167
3.3.
SUBMISSÃO E REVOLTA NOS SERINGAIS ............................................................171
3.3.1 A Lei do Trabalho.........................................................................................................172
3.3.2 A Relação Patrão – Freguês ............................................................................................174
3.3.3 Questão com Patrão ...........................................................................................................178
3.3.4 A Revolta do Alagoas ...................................................................................................181
4.
CONFLITOS PELA TERRA E PELOS RECURSOS ...........................190
4.1.
SERINGUEIROS AUTÔNOMOS...................................................................................195
4.1.1 Do Cativeiro à Liberdade .................................................................................................196
4.1.2 A Venda dos Seringais..................................................................................................206
ix
4.1.3 Expulsão dos Seringueiros e Criação das CEBs .......................................................214
4.2.
SERINGUEIROS POSSEIROS .........................................................................................219
4.2.1 A Situação Fundiária do Acre......................................................................................220
4.2.2 A Organização dos Sindicatos Rurais.........................................................................228
4.2.3 Empates às Derrubadas – O Caso do Seringal Carmen...............................................235
4.3
CHICO MENDES: VEREADOR SINDICALISTA....................................................251
4.3.1 Sindicato de Xapuri e Presidência da Câmara...........................................................252
4.3.2 Assassinato de Wilson Pinheiro ..................................................................................292
4.3.3 Indiciamento na Lei de Segurança Nacional .............................................................303
5.
DEFESA DA FLORESTA..............................................................................321
5.1
SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE XAPURI............................329
5.1.1 Entrevista com Chico Mendes em 1981....................................................................330
5.1.2 O Empate do Nazaré e Conflitos com o Sindicato ...................................................338
5.1.3 Conflitos pela Terra em 1982 e 1983 e Eleição no Sindicato .................................352
5.2
PROJETO SERINGUEIRO ...............................................................................................356
5.2.1 Origens do Projeto: 1981 .............................................................................................358
5.2.2 A Primeira Escola no Nazaré: 1982 ...........................................................................367
5.2.3 Central de Produção e Consumo do Nazaré.............................................................377
5.2.4 Resultados da Experiência ...........................................................................................380
5.2.5 Conflitos pela Terra em 1983 ......................................................................................388
5.3
PRIMEIRO ENCONTRO NACIONAL DOS SERINGUEIROS .........................392
5.3.1 Conflitos pela Terra em 1984 e 1985 .........................................................................392
5.3.2 Origem do Conceito de Reserva Extrativista............................................................412
5.3.3 Encontro Nacional dos Seringueiros .........................................................................426
5.3.4 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento..............................450
5.3.5 A Repercussão Internacional da Proposta de Reserva Extrativista .......................455
5.4
A CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL DA RESERVA EXTRATIVISTA...........462
5.4.1 Bancos, Ambientalistas, BR 364 e PMACI ...............................................................464
5.4.2 CNS, Empates e Contra-Ataques:1986........................................................................484
5.4.3 Reserva Extrativista: Meio Ambiente e Reforma Agrária .......................................518
5.4.4 Projeção Internacional e Projeto de Assentamento Extrativista:1987 ..................552
5.5
GUERRA NA FLORESTA – O ASSASSINATO DE CHICO MENDES ............588
5.5.1 Suspensão dos Desembolsos e Prêmios Internacionais:1987.................................589
5.5.2 Batalhas Locais, Nacionais e Internacionais..............................................................627
5.5.3 Missão de Negociação do BID ...................................................................................668
5.5.4 O Seringal Equador e o Assassinato de Ivair Higino...............................................687
5.5.5 Reserva Extrativista do Cachoeira ..............................................................................708
5.5.6 Confronto Final.............................................................................................................726
6.
CONCLUSÕES...................................................................................................735
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................760
x
LISTA DE TABELAS
1. Volume e Valor das Exportações de Borracha por Belém e Manaus, 1890-1898.
2. Exportação de Borracha Silvestre Amazônica para o Exterior, 1901-1915.
3. Exportação de Borracha Silvestre Amazônica para o Exterior, 1871-1900.
4. Área Total, Área Desmatada e a Área Desmatar, por Propriedade, em Xapuri, Estado do
Acre, 1987.
5. Áreas Prioritárias para Projetos de Assentamento Extrativista na Amazônia, 1988.
LISTA DE FIGURAS
1. Desmatamento no Estado de Rondônia em 1982 e 1985. Mapa Utilizado pelos Seringueiros
na Peregrinação a Brasília, em janeiro de 1987.
2. Desmatamento no Estado do Acre em 1985. Mapa Utilizado pelos Seringueiros na
Peregrinação a Brasília, em janeiro de 1987.
3. Mapa Esquemático com a Localização dos Seringais Porto Rico, Equador e Cachoeira, em
Xapuri, Estado do Acre.
4. Mapa de Conflitos em Xapuri, Estado do Acre, Elaborado por Chico Mendes em 1984.
5. Mapa Esquemático do Seringal Cachoeira, Colocação Igarapé Grande, Xapuri, Estado do
Acre.
LISTA DE MAPAS
1. Localização dos Principais Eventos da Revolução Acreana e dos Tratados de Limites com a
Bolívia e o Peru.
2. Distribuição da Hevea brasiliensis e da Hevea benthamiana no Vale do Amazonas, 1924.
3. Croquis do Alto Rio Tarauacá com Destaque para os Seringais Redenção e Alagoas, no
Território do Acre, 1926.
4. Seringais Localizados na Reserva Extrativista Chico Mendes.
5. Reserva Extrativista Chico Mendes.
6. Reserva Extrativista do Alto Tarauacá
LISTA DE FOTOS
1. Coletiva de imprensa do CNS e UNI. Osmarino Amâncio mostra foto de satélite sobre
desmatamento na Amazônia, 23 de janeiro de 1987.
2. Participantes do Empate do Seringal Carmen, em Brasiléia, 2001.
3. Cícero Galdino, Participante do Empate do Seringal Carmen, em Brasiléia, 2001.
4. Cícero Galdino e Mary Allegretti, em Brasiléia, 2001.
5. Cícero Galdino, Osmarino Amâncio e Mary Allegretti, em Brasiléia, 2001.
6. Seringueiros de Xapuri se Preparando para um Empate.
7. Seringueiros de Xapuri se Preparando para um Empate.
8. O Grande Mutirão contra a Jagunçada, em outubro de 1979
9. Lula em Ato Público em Brasiléia, em julho de 1980.
10. Escola do Seringal Nazaré, Colocação Independência, junho 1981.
11. As Duas Turmas de Alunos: na Sala e na Cozinha, junho 1981.
12. As Duas Turmas de Alunos: na Sala e na Cozinha, junho 1981.
13. Encontro dos Seringueiros com Ulisses Guimarães, 17 de outubro de 1985.
14. Encontro do CNS e UNI com Rubem Ilgenfritz, Presidente do Incra, 20 janeiro de 1987.
15. Encontro do CNS e UNI com Celso Furtado, Ministro da Cultura, 23 de janeiro de 1987.
xi
16. Encontro do CNS e UNI com Celso Furtado, Ministro da Cultura, 23 de janeiro de 1987.
17. Chico Mendes Recebe Prêmio Global 500 da ONU, com o Diretor Executivo da UNEP
Mustafá Tolba, Observado por Robert Lamb, em Birmingham, UK, 06 de julho de 1987.
18. Chico Mendes no Debate da Constituinte Realizado em Curitiba, Paraná.
19. Chico Mendes e Jaime da Silva Araújo, Primeiro Presidente do CNS.
20. Chico Mendes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Acre.
21. Chico Mendes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Acre.
22. Chico Mendes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Acre.
23. Chico Mendes e Mary Allegretti, no Seringal Equador, Xapuri, Acre.
24. Enterro de Chico Mendes, Xapuri, Acre, em 23 de dezembro de 1988.
25. Chico Mendes e Mary Allegretti, Seringal Cachoeira, Xapuri, Acre, Novembro de 1988.
LISTA DE ABREVIAÇÕES
ABI
ABONG
ABRA
ADFG
AGB
APA
ARPA
ASTER-AP
BASA
BBC
BCB
BID
BIRD
BMD
CAETA
CAEX
CDDH
CEB
CEDEPLAR
CEDI
CEDOP
CESE
CGT
CIA
CIMI
CNA
CNB
CNBB
CNN
CNPT
CNS
CNUMAD
COBAL
CONAMA
Associação Brasileira de Imprensa
Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais
Associação Brasileira de Reforma Agrária
Ação Democrática Feminina Gaúcha
Associação dos Geógrafos Brasileiros
Área de Proteção Ambiental
Programa Áreas Protegidas da Amazônia
Assistência Técnica em Extensão Rural do Amapá
Banco da Amazônia S.A.
British Brodcasting Corporation
Banco de Crédito da Borracha
Banco Interamericano de Desenvolvimento
Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – Banco
Mundial
Bancos Multilaterais de Desenvolvimento
Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazônia
Cooperativa Agroextrativista de Xapuri
Centro de Defesa dos Direitos Humanos
Comunidade Eclesial de Base
Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional
Centro Ecumênico de Documentação e Informação
Centro de Documentação e Pesquisa da Amazônia
Coordenadoria Ecumênica de Serviços
Confederação Geral dos Trabalhadores
Central Intelligence Agency
Conselho Indigenista Missionário
Confederação Nacional da Agricultura
Conselho Nacional da Borracha
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
Cable News Network
Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Populações
Tradicionais
Conselho Nacional dos Seringueiros
Conferência das Nações Unidades sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Companhia Brasileira de Alimentos
Conselho Nacional de Meio Ambiente
xii
CONTAG
CPDH-MJ
CPI
CPI
CPT
CSN
CTA
CUT
CVP
DNER
DOPS
EDF
ELI
EMBRAPA
ENS
EPI
FEAC
FETACRE
FINAM
FLONA
FM
FMI
FSP
FUNAI
FUNARTE
FUNTAC
GUAPORÉ
IAG
IBAMA
IBDF
IBGE
ICM
IEA
IEF
IGP
IMAC
INCRA
INESC
INPA
IPEA
IPLAN
ITTO
IUCN
JB
JT
KfW
LSN
MA
MDB
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura
Centro de Proteção aos Direitos da Pessoa Humana do Ministério da
Justiça
Comissão Parlamentar de Inquérito
Comissão Pro-Índio do Acre
Comissão Pastoral da Terra
Conselho de Segurança Nacional
Centro dos Trabalhadores da Amazônia
Central Única dos Trabalhadores.
Cernambi Virgem Prensado
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem
Delegacia de Ordem Política e Social
Environmental Defense Fund
Environmental Law Institute
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Encontro Nacional dos Seringueiros
Environmental Policy Institute
Federação da Agricultura do Estado do Acre
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Acre
Fundo de Investimentos da Amazônia
Floresta Nacional
Francisco Mendes
Fundo Monetário Internacional
Folha de SP
Fundação Nacional do Índio
Fundação Nacional de Arte
Fundação de Tecnologia do Acre
Grupo de Ação e Pesquisa Orientada para as Regiões Extrativistas
International Advisory Group
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Imposto sobre Circulação de Mercadorias
Instituto de Estudos Amazônicos
Instituto Estadual de Florestas
Índice Geral de Preços
Instituto de Meio Ambiente do Acre
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Instituto de Estudos Sócio-Econômicos
Instituto Nacional de Pesquisa
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Instituto de Planejamento
International Tropical Timber Organization
World Conservation Union
Jornal do Brasil
Jornal da Tarde
Kreditanstalt für Wiederaufbau
Lei de Segurança Nacional
Mary Allegretti
Movimento Democrático Brasileiro
xiii
MEB
MEC
MIRAD
MMA
MT
NASA
NRDC
NWF
OAB
ONG
ONU
OPAN
PAD
PAE
PAP
PC do B
PDS
PF
PIN
PIPSA
PM
PMACI
PMDB
PND
PNRA
PNUMA
POLAMAZÔNIA
PPG7
PROBOR
PROTERRA
PRRA
PS
PT
PUC
PV
QI
RADAM
SCA
SEC-MEC
SEMA
SEMTA
SEPLAN
SNUC
STR
STRX
SUCAM
SUDAM
SUDHEVEA
TORMB
TVE
Movimento de Educação de Base
Ministério de Educação e Cultura
Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário
Ministério do Meio Ambiente
Ministério do Trabalho
National Aeronautics and Space Administration
Natural Resources Defense Council
National Wildlife Federation
Ordem dos Advogados do Brasil
Organização Não Governamental
Organização das Nações Unidas
Operação Anchieta
Plano de Ação Definitivo
Projeto de Assentamento Extrativista
Plano de Ação Provisório
Partido Comunista do Brasil
Partido Democrático Social
Polícia Federal
Programa de Integração Nacional
Programa de Intercâmbio em Pesquisa Social na Agricultura
Polícia Militar
Programa de Proteção do Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas.
Partido do Movimento Democrático Brasileiro
Plano Nacional de Desenvolvimento
Plano Nacional de Reforma Agrária
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil
Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal
Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do
Norte e Nordeste
Plano Regional de Reforma Agrária
Projeto Seringueiro
Partido dos Trabalhadores
Pontifícia Universidade Católica
Partido Verde
Quoficiente de Inteligência
Radar para a Amazônia
Secretaria de Coordenação da Amazônia
Secretaria de Educação do Ministério da Educação
Secretaria do Meio Ambiente
Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
Secretaria de Planejamento da Presidência da República
Sistema Nacional de Unidades de Conservação
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
Superintendência da Borracha
Taxa de Organização e Regulamentação do Mercado da Borracha
TV Trust for the Environment
xiv
UCLA
UDR
UFAC
UFPr
UnB
UNEP
UNI
UNICAMP
USP
WRI
WWF
ZEE
University of California – Los Angeles
União Democrática Ruralista
Universidade Federal do Acre
Universidade Federal do Paraná
Universidade de Brasília
United Nations Environment Program
União das Nações Indígenas
Universidade de Campinas
Universidade de São Paulo
World Resources Institute
World Wildlife Fund
Zoneamento Econômico Ecológico
xv
Prólogo
Encontro na Floresta
No dia 22 de dezembro de 1988, um telex enviado pela Comissão Pastoral da Terra para
entidades da sociedade civil, em todo o país, tornou pública uma lista com os nomes de 80
trabalhadores rurais assassinados no Brasil naquele ano. No dia 23, novo telex foi enviado com a
seguinte informação:
Da lista de assassinados em 1988, que enviamos ontem, faltaram os últimos dois, porque
esgotou a memória do aparelho. Aí estão os que faltavam, acrescido, nesta noite,
infelizmente, do nome de Chico Mendes, de Xapuri.
A informação, lacônica, transmitia a idéia de um fato rotineiro; e o acréscimo, ao final, de
mais um nome, a uma lista já significativa, o sentimento de desesperança. Como sempre, os casos
ficariam impunes.
Contrariando as expectativas, na mesma noite do assassinato, a notícia de um deles se
espalhou pelo mundo. No dia 24 de dezembro, véspera de Natal, o assassinato de Chico Mendes
havia virado destaque na primeira página dos principais jornais internacionais. "Brazilian Who
Fought to Protect Amazon is Killed", publicou o New York Times; "Leading Brazilian Ecologist
Murdered at Home in Amazon", o Washington Post; "Rain forest defender is slain in Brazil", o
Boston Globe, nos Estados Unidos; "Fighter for Amazon ecology murdered", o Guardian;
"Gunmen murder ecologist who fought to save Amazon forests", o Independent; "Champion of
Brazil forest is murdered by ‘ranchers’", o Daily Telegraph, na Inglaterra.
As manchetes, o espaço reservado às matérias, e as fotos, recentes, evidenciavam que
Chico Mendes era uma pessoa conhecida dos correspondentes internacionais. Os prêmios que
recebera e as ameaças à sua vida, eram de domínio público e havia uma clara percepção de sua
identidade: um seringueiro, líder sindical, à frente de uma campanha de proteção da floresta
amazônica, respeitado por ter conseguido influenciar as políticas dos organismos financeiros
multilaterais:
A Brazilian union leader who had received repeated death threats during a campaign to
protect the Amazon rain forest was shot and killed Thursday at his home in northwestern
Brazil. (The New York Times, em matéria assinada por sua correspondente no Brasil,
Marlise Simons).
1
A rural worker whose defense of the Amazon rain forest earned him international
recognition and helped encourage important changes in the policies of multilateral
lending agencies, has been murdered by unknown gunmen. (The Washington Post, em
matéria assinada por Richard House).
There was an international outcry yesterday over the assassination on Thursday of a
Brazilian union chief who has led the fight to save the Amazon rain forest. (The Daily
Telegraph, em matéria assinada por Charles Clover, correspondente ambiental).
He successfully urged the World Bank and the Inter American Bank not to finance the
highway planned to link Acre’s capital, Rio Branco, to the rest of Brazil, until serious
environmental protection measures had been taken. (The Guardian, em matéria assinada
por Jan Roche).
Alguns jornalistas demonstravam em suas matérias um conhecimento profundo da
trajetória de Chico Mendes. Jan Roche, no artigo para The Guardian, citou corretamente todos os
seus vínculos institucionais: Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, líder do
Conselho Nacional dos Seringueiros e fundador da Aliança dos Povos da Floresta. E reproduziu
o discurso feito por Chico Mendes em uma cerimônia no ano anterior, em Washington:
In Washington last year, at a prize-giving ceremony, he denounced the involvement of
large American companies like Xerox and Georgia Pacific, the Dutch company Bruynzeel
and the Japanese Toyomenka in rain forest devastation: ‘By buying expensive mahogany
furniture, you Americans are helping to finance the destruction of the last forest reserves
on the planet’, he told his audience.
Charles Clover, o correspondente do Daily Telegraph, fez referência a uma conversa que
havia tido com Chico Mendes alguns meses antes:
When I called on Senhor Mendes in July, he said he would have been dead long before
but for the interest shown by foreign environmental groups in the ‘seringueiros’ cause.
E Richard House, na matéria para o Independent, registrou o depoimento do Diretor da
entidade inglesa Christian Aid, Michael Taylor, que há poucas semanas havia se encontrado com
Chico Mendes em Xapuri:
I wish I could say I was surprise, but having met Chico only a few weeks ago, and having
seen the immense courage with which he led his people and the violent and lawless
opposition of the landowners, his fears for his life seemed only too well-founded.
2
Sobre as razões do assassinato, todas as matérias foram precisas: Chico Mendes estava
sendo ameaçado pela família Alves, que alegava ser proprietária do seringal Cachoeira, que o
Incra acabara de desapropriar para transformar em Reserva Extrativista. Tendo conseguido cópia
de uma Carta Precatória emitida pela Justiça do Paraná, ordenando a prisão de Darli Alves, por
crime de assassinato, Chico Mendes a entregou ao Superintendente da Polícia Federal no Acre,
Mauro Spósito, certo de que as ameaças contra ele teriam um fim. Isso não ocorreu. Ao
contrário, os Alves foram avisados e, antes de fugir, declararam publicamente que somente
seriam presos depois de assassinarem Chico Mendes.
Na última semana do ano de 1988 editoriais e artigos se multiplicaram. No dia 27 de
dezembro o New York Times publicou artigo assinado por Tom Wicker, "A Death in Brazil", no
qual relacionou o desmatamento na Amazônia aos problemas ambientais globais para demonstrar
que Chico Mendes lutava não somente a batalha dos seringueiros, "but the whole planet’s".
Afirmou também que a destruição das florestas não era somente resultado da visão de curto
prazo das políticas brasileiras, mas um dos problemas ambientais de alcance global que estava
preocupando todo o planeta:
Thus, the kind of fight that Mr. Mendes waged literally to his death was of concern far
beyond the Amazon – as are ozone depletion, acid rain, toxic wastes, desertification,
ocean spoilage’ diminishing resources, rising population and numerous other impending
crise.
Enquanto notícias diárias sobre os acontecimentos continuavam sendo divulgadas, em
diferentes veículos de comunicação, em todos os países do mundo, Richard House publicou um
obituário de quase meia página, no Independent, de Londres. House havia conhecido Chico no
verão daquele mesmo ano, assim como muitos outros..."Development bureaucrats,
representatives from Oxfam, Christian Aid, and European labor movements all trod the path to
his tiny rural trade-union office with offers of aid". Fez uma descrição realista das contradições
entre a precariedade de sua casa em Xapuri e as oportunidades que estavam sendo abertas para
ele no cenário internacional:
His three-room wooden shack had no indoor running water. His wardrobe did not
include the jacket and tie he needed to visit an American senator in Washington last
summer, or to appear in Miami where he helped persuade the Inter-American
Development Bank’s Directors to suspend $40m in loans to Brazil. But among the clutter
of shoguns and rubber-tapping knives were to be found the tokens of Chico’s
international prestige: a certificate praising him as one of the world’s top 500 ecology
3
workers awarded last year in London by the UN Environment Programme and a tribute
from a philanthropic foundation financed by a US television magnate that had occasioned
his visit to New York.
No dia 28 de dezembro o New York Times publicou um Editorial, "Brazil Burns the
Future", alertando o governo brasileiro para o impacto internacional produzido pelos problemas
ambientais que estavam ocorrendo no país. O editorial duvidava, também, da capacidade do
governo punir os responsáveis pelo assassinato de Chico Mendes e encerrou com uma frase que
foi repetida, muitas vezes, nos dias seguintes:
Mr. Mendes will be mourned not just by Brazilians. In a real sense, he was defending the
very air the world breathes.
Dois outros artigos, publicados nos dias que antecederam o final do ano, relacionaram o
assassinato com a guerra que estava ocorrendo na Amazônia. O New York Times, em nova matéria
de Marlise Simons, sob o título "In The Amazon Jungle, Vicious War Is Played Out", referiu-se à
turbulenta luta que se travava na Amazônia entre seringueiros tentando proteger a floresta e
especuladores e fazendeiros buscando fortuna rapidamente através do desmatamento de suas
terras. E informou que, um dia após o assassinato de Chico Mendes, o Bispo do Acre também
recebera ameaças de morte. "Em função da organização dos seringueiros, muitas pessoas estão
receosas de que vão perder poder e dinheiro", disse Dom Moacyr Grecci.
Com a mesma perspectiva, o Independent de Londres publicou outro artigo de Richard
House, sob o título "Death reveals Amazonian tragedy", onde afirmou que o assassinato de
Chico Mendes deu visibilidade ao fato de que a destruição ambiental da Amazônia era apenas
uma das consequências de uma guerra surda que estava sendo travada e que eliminava pelo
menos 250 vidas cada ano. "Ilegalidade e impunidade em relação a ricos fazendeiros como os
Alves é, ao lado dos avanços econômicos e da sofisticação da vida urbana, o legado de 22 anos de
militarismo no Brasil", escreveu. Fez referência ao último relatório da Anistia Internacional
registrando o assassinato de mais de 1.000 pessoas, entre trabalhadores e sindicalistas, desde
1980, sendo que somente 3% dos assassinos haviam sido presos. Citou também documento da
igreja católica com uma lista de 350 bispos, padres e sindicalistas ameaçados de morte por
apoiarem idéias como as de Mendes, ou por demandarem reforma agrária, face à alta
concentração fundiária do Brasil.
Comentário feito na mesma edição do jornal, por Nicholas Ashford, intitulado
"Encouraging the global village to think bright green" apontou para a relação entre a repercussão
do assassinato de Chico Mendes e a crescente preocupação ambiental que estava tomando conta
4
dos meios de comunicação, referindo-se à edição de dezembro da Revista Time, que escolhera o
ameaçado Planeta Terra como principal personagem do ano. Concluiu sugerindo aos líderes
mundiais que assumissem esses problemas com a mesma determinação que havia tido Mendes
em proteger a Amazônia:
Ultimately these problems [the future of the global environment] can only be effectively
tackled if the world’s political leaders approach them with the same degree of
determination and dedication as Mr. Mendes showed in protecting the forests of
Amazonia.
Em janeiro de 1989 a repercussão internacional continuou. Dentre outras autoridades, o
Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Henrique Iglesias, disse que Chico
Mendes não era uma pessoa desconhecida do Banco e solicitou ao governo brasileiro que
preservasse suas idéias. No dia 3 de janeiro, o Senador Republicano Robert Kasten fez um
pronunciamento no Congresso Norte-Americano em homenagem a Chico Mendes, referindo-se
a ele como um amigo pessoal e um herói mundial. Nos dias 13 e 14, uma comitiva de
parlamentares norte-americanos, incluindo o então senador Al Gore, visitou o Acre, exercendo
pressão sobre as investigações do assassinato. E no dia 25 um ato ecumênico lotou a catedral de
Washington, reunindo as maiores entidades ambientalistas norte-americanas, autoridades de
instituições multilaterais, toda a imprensa e representantes da Embaixada Brasileira, para ouvir
Raimundo de Barros, seringueiro, sindicalista e primo de Chico Mendes.
Como sintetizou Richard House, Chico Mendes era o ponto focal de duas correntes
radicalmente opostas em relação ao desenvolvimento da floresta amazônica. "Na década de 70,
acadêmicos haviam concluído que o manejo da floresta era anti-econômico e encorajaram sua
destruição. Agora o Banco Mundial mudou de idéia e 'manejo sustentável', incluindo a extração
de látex, gomas, fibras e produtos medicinais era a última palavra". E concluiu evidenciando que
a partir de Chico Mendes a questão da conservação tinha saído dos limites da esquerda urbana
para se transformar em tema central do desenvolvimento político do país por confrontar direitos
humanos e distribuição de recursos, em um país com uma das mais desiguais distribuição de
renda:
The fact that rubber-tappers are now giving up their lives to save the Amazon forest has
taken the conservation issue out of the drawing-rooms of Brazil’s urban left and made it
central to the country’s political development. It confronts questions of human rights and
the sharing out of resources in the country which has the world’s most unequal
distribution of income.
5
A repercussão internacional do assassinato de Chico Mendes e, especialmente, o destaque
que os meios de comunicação deram à sua história e às causas que defendia, nas capitais mais
importantes do mundo, teve impacto imediato no Brasil. Entrevistas inéditas que estavam
arquivadas foram desengavetadas e imagens de arquivo amplamente distribuídas. O dossiê de
notícias nacionais do seu assassinato tem 120 páginas, somente do dia 24 de dezembro. O
editorial do New York Times foi traduzido e as principais matérias escritas no exterior passaram a
ser republicadas aqui.
A partir do dia 26 de dezembro todos os principais jornais brasileiros publicaram artigos
sobre Chico Mendes assinados por pessoas que o conheciam, como Fabio Feldman, Ricardo
Arnt, Fernando Gabeira, Rodrigo Mesquita, Cândido Mendes e por outras que ele jamais
imaginou encontrar em vida, como Paulo Francis, João Paulo dos Reis Veloso, Fernando
Henrique Cardoso, Villas Boas Corrêa e Mário Amato. A primeira edição do ano de 1989, da
revista Veja, trouxe capa com Chico Mendes e uma matéria de seis páginas intitulada "A Guerra
na Selva". Na semana seguinte, a Isto É/Senhor fez uma matéria ainda mais extensa, de oito
páginas, "A Cidade e a Mata de Chico Mendes".
Da perspectiva internacional, a história de Chico Mendes vinha evidenciando que fatos
novos e positivos ocorriam no Brasil: a defesa da Amazônia estava sendo assumida pelos
brasileiros e Chico Mendes demonstrava capacidade de influenciar a opinião dos organismos
internacionais. Projetos alternativos à destruição do meio ambiente estavam sendo implantados
com apoio de fundações e entidades ambientalistas norte-americanas e européias.
Mas essa visão positiva e até heróica de Chico Mendes só foi formada no Brasil em
decorrência da repercussão de sua morte. Constrangidos por não terem conseguido captar, antes,
o que estava ocorrendo na Amazônia, os meios de comunicação descobriram Chico Mendes a
partir das reportagens internacionais.1 Os brasileiros, em geral, nunca tinham ouvido falar em seu
nome e não conheciam sua história, até ser trazida à tona pela mídia internacional.
No Acre, não somente os fazendeiros, mas toda opinião pública havia se voltado contra
Chico Mendes, no ano anterior, quando o Banco Interamericano de Desenvolvimento decidira
suspender os desembolsos de um financiamento para a BR 364 pelo não cumprimento das
exigências ambientais contidas em contrato com o Governo Brasileiro. Essa decisão fora
diretamente influenciada pelos depoimentos dados por Chico Mendes durante a reunião anual do
BID, realizada em Miami, em março de 1987. Durante todo o ano de 1988 foram muito tensas as
relações dele com as autoridades estaduais e com a imprensa, controlada pelos setores
Em conversa com o correspondente do Jornal do Brasil em Washington, Manoel Brito, na primeira semana de
janeiro de 1989, ele afirmou que nunca ouvira falar, até então, no nome de Francisco Alves Mendes Filho, e estava
surpreso não só com a facilidade que tivera de entrevistar personalidades políticas norte-americanas sobre o assunto,
como também pelo fato de que muitas dessas pessoas o conheciam pessoalmente e respeitavam suas idéias.
1
6
econômicos favoráveis à estrada. Acusavam-no de ser contra o progresso e de estar a serviço dos
grandes grupos internacionais que queriam a Amazônia intocada.
No Acre, Chico Mendes era visto mais como um agitador do que como um herói.
Embora ainda relevante para a economia local, a borracha estava perdendo espaço para a
pecuária e o poder político dos seringueiros era muito pequeno. Chico Mendes fora candidato,
pelo Partido dos Trabalhadores, a deputado estadual em 1982, a prefeito de Xapuri em 1985, e
novamente a deputado estadual em 1986, não conseguindo se eleger em nenhum dos pleitos. E
nos meses de novembro e dezembro de 1988, ele entrou em uma polêmica pública com o
Superintendente da Polícia Federal no Acre, responsabilizando-o por estar protegendo assassinos
condenados pela Justiça. Em resposta, Mauro Spósito acusou Chico Mendes de ser informante da
Polícia Federal.
Embora a repercussão dos prêmios internacionais que recebera tivesse amainado a
pressão pública contra ele, os fazendeiros e políticos não se cansavam de afirmar que era
inadmissível que um seringueiro analfabeto estivesse influenciando a política de desenvolvimento
do Acre. Pesava contra ele o fato de serem muito recentes, e pequenas, as vitórias que estava
alcançando. As conquistas ressaltadas pelas reportagens internacionais haviam acontecido no
último semestre de 1988, pouco tempo antes do assassinato. E a luta na qual estava envolvido
havia iniciado, pelo menos, quinze anos antes.
O assassinato de um líder rural em um lugar remoto da Amazônia, em um contexto
nacional de violência e impunidade em torno dos conflitos pela terra, em princípio nada traria de
novo e o normal seria ter o tratamento que foi dispensado aos demais 82 listados pela CPT, em
23 de dezembro de 1988: o esquecimento. Como explicar que o assassinato de um seringueiro
pobre, sem apoio político, que vivia no longínquo município de Xapuri, no Acre, tenha
conseguido sensibilizar tanta gente, em tantos lugares, e em tão pouco tempo?
Dez anos antes, em fevereiro de 1978, fui ao Acre pela primeira vez. Durante seis meses
tive a oportunidade de conhecer o quadro de conflitos que estava emergindo, naquela região,
como conseqüência da venda de antigos seringais para empresas agropecuárias. Entrevistei
fazendeiros, políticos, seringueiros, índios, jornalistas, antropólogos e sindicalistas. E realizei
detalhada pesquisa de campo em um seringal no rio Tarauacá e em uma empresa agropecuária no
rio Gregório, ambos no vale do Juruá. O objetivo era preparar uma dissertação de mestrado em
antropologia para ser apresentada na Universidade de Brasília.2
Ver Mary Helena Allegretti Zanoni. 1979. Os Seringueiros: estudo de caso em um seringal nativo do Acre. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
2
7
Um dos temas centrais dos pesquisadores que estavam estudando a Amazônia naquele
período, era entender o papel do Estado na promoção de um modelo de desenvolvimento, cujo
objetivo era incentivar o surgimento de novas atividades econômicas, consideradas mais
lucrativas que as extrativistas, como a agropecuária e a mineração, acompanhadas de
investimentos em infra-estrutura que viabilizassem a conexão da região com o mercado nacional
e internacional (Cardoso e Muller 1977). A questão da dinâmica das frentes de expansão e dos
conflitos sociais que gerava, nos diversos contextos regionais, também estava presente em vários
autores (Velho 1976; Ianni 1978; Oliveira 1977). O impacto das estradas, dos projetos de
colonização e da exploração mineral, sobre as populações indígenas e o meio ambiente, tanto na
Amazônia Oriental quanto na Ocidental, já vinha sendo estudado, era tema freqüente de reportagens
nacionais e estava começando a ser assimilado pelos órgãos governamentais responsáveis pela
implantação da nova política (Goodland e Irwin 1975; Pinto 1977; Davies 1978; Mahar 1978).
De maneira geral, o quadro econômico e social que antecedia a implantação do novo
modelo era de estagnação em toda a Amazônia, como resultado da crise da economia da borracha.
Segmentos da população rural, antes envolvidos naquela atividade, estavam vivendo dispersos, como
posseiros, voltados para o atendimento da própria subsistência. Os novos agentes do
desenvolvimento, estimulados a adquirir terras e a se beneficiar de incentivos fiscais, o faziam por
meio de diferentes modalidades de apropriação ilegal da terra, especialmente a grilagem3, gerando
focos de tensão social em toda a região.
Conflitos entre seringueiros e seringalistas não era um dado presente nas análises existentes
naquele momento. Entendia-se que a queda de preços da borracha nativa no mercado internacional
e sua progressiva substituição pela produção oriunda de seringais de cultivo do sudeste asiático, nos
primeiros anos da década de 1910, havia eliminado a empresa seringalista e levado a economia
extrativa da borracha à extinção. A maioria dos autores referia-se, portanto, à borracha, como parte
do passado da Amazônia. Sem exceção, todos os livros publicados naqueles anos sobre a região,
apresentavam um capítulo descrevendo a história da borracha, as relações de trabalho nos seringais,
o sistema de aviamento e o endividamento permanente dos seringueiros nos seringais – ou seja, o
passado - para então analisarem o presente - as frentes de colonização, as migrações e os grandes
projetos (Cardoso e Muller 1977; Ianni 1978; Mahar op cit).
Nesse contexto, o Acre apresentava uma peculiaridade. Em função da alta concentração de
seringueiras nativas (Hevea brasiliensis) e da produtividade que apresentavam naquela região, as
empresas seringalistas puderam se beneficiar das políticas de proteção criadas pelo governo e
permaneceram estruturadas. Contribuiu, também, para isso, o fato do Acre ter permanecido isolado
3
Denomina-se de grilagem o mecanismo de apossamento de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade.
8
do resto do país até 1960, quando foi aberta a estrada Cuiabá-Porto Velho-Rio Branco. Assim,
diferentemente dos demais estados da Amazônia, no Acre, a principal fonte de renda, na década de
80, ainda advinha da borracha.
Embora o projeto original da pesquisa que eu estava realizando seguisse a mesma orientação
dos demais estudos sobre a região, ou seja, procurava entender as transformações em curso na
relações sociais de trabalho, referindo-se aos seringais apenas como uma realidade do passado, após
os primeiros levantamentos, percebi que os seringais faziam parte do presente e que seria possível,
inclusive, pesquisá-los. Metodologicamente, concluí que seria importante, para fins de comparação,
levantar os dados primeiro em um seringal nativo e, depois, nas empresas agropecuárias.
Escolhi o Seringal Alagoas, localizado no alto rio Tarauacá, no Vale do Juruá, próximo à
fronteira com o Peru, por ser um dos mais antigos e maiores daquele rio. Em 1978, ainda estava
estruturado como antigamente, ou seja, com relações sociais rigidamente organizadas em patrões e
fregueses, fundamentadas no sistema de aviamento, um barracão abastecido de mercadorias e um
sistema de contas-correntes com detalhado registro do processo de endividamento dos seringueiros,
de forma semelhante às descrições literárias existentes sobre o passado da borracha na Amazônia
(Castro 1972; Reis 1953). Os seringueiros moravam em colocações isoladas no interior da mata; alguns
eram descendentes dos migrantes nordestinos que haviam ocupado a região 100 anos antes, no final
do século XIX, enquanto outros haviam se instalado ali durante a Segunda Guerra Mundial.
Encontrar, em 1978, um seringal estruturado de forma muito semelhante aos do início do
século, parecia não fazer sentido, uma vez que a borracha nativa perdera competitividade no
mercado. O que mais chamava atenção, no entanto, era o fato de ser possível registrar, ao vivo,
os depoimentos dos seringueiros sobre essa história e a análise que faziam do momento presente.
Continuavam achando que a borracha que produziam tinha grande importância para o país e,
como não recebiam nenhum benefício pelo esforço que realizavam, consideravam a si mesmos
como "heróis anônimos e injustiçados pela nação brasileira". O ponto de vista dos seringueiros
sobre a história da borracha na Amazônia era um tema que ainda não havia sido incluído em
nenhuma das pesquisas recentes sobre a região.
Mais do que registrar estes fatos, a constatação da injustiça histórica vivida por eles passou a
me desafiar ideologicamente. Políticas protecionistas haviam sido defendidas, pelos seringalistas, ao
longo da história, em nome dos seringueiros, com base no argumento de que era preciso evitar uma
grave crise social na região. Ao mesmo tempo, os mantinham isolados em um sistema de semiescravidão, trocando a borracha produzida por bens de consumo, ambos a preços distorcidos,
sem nenhum tipo de benefício social, nem de direitos trabalhistas, já conquistados pelos
trabalhadores rurais em outras partes do país. Analfabetos, não conseguiam ler as contas-correntes
9
que, como no início do século, continuavam registrando seus débitos e créditos. Revoltados, já
haviam organizado rebeliões, sem grandes resultados.4
Saí do Alagoas com a idéia de organizar uma escola de alfabetização de adultos e contribuir
para livrar aquelas pessoas da "servidão e da escuridão", como eles afirmavam. Principalmente pelo
fato de que eles haviam colocado um desafio: acreditavam que ninguém iria fazer um estudo tão
longe, sem que algum benefício pudesse advir, no futuro, para eles. "Eram cegos", diziam, "porque
não sabiam ler" e, em função disso, ficavam "sujeitos às leis dos patrões". Mas o Alagoas era um
seringal de patrão, no qual só se podia entrar com autorização. E o patrão, certamente, não iria facilitar
a alfabetização dos seus fregueses.
A pesquisa deixou inúmeras questões sem resposta. Como explicar a permanência das
empresas seringalistas no Acre, depois da crise da borracha? Se os preços da borracha cultivada eram
mais baratos do que os da nativa, como conseguiam as empresas sobreviver? Quem comprava a
borracha produzida nos seringais pelos seringueiros? E por que as relações de trabalho continuavam
tão injustas? O que era intrigante, em síntese, era a existência mesmo dos seringueiros na atualidade,
uma vez que toda a literatura afirmava que pertenciam ao passado.
Muitas perguntas novas e algumas respostas surgiram quando conheci Chico Mendes.
Era dia 22 de maio de 1981. Eu estava em Rio Branco, capital do Acre, e nos encontramos
no jornal Varadouro, no final da tarde. Fui procurar Chico Mendes para fazer uma entrevista. Elson
Martins da Silveira, o editor do jornal, havia me dito que se eu quisesse conhecer o que estava
acontecendo no Acre, precisava conversar com um seringueiro, líder sindical, vereador pelo PT, que
morava em Xapuri e era um colaborador permanente do jornal.
A sede do Varadouro ficava numa travessa no alto de uma colina e era um prédio mal
acabado, com tijolos à mostra, em uma rua também calçada com tijolos, como é tradicional naquela
região. Ali, um grupo de jornalistas acreanos editava, semanalmente, as estórias de conflitos e
contrastes entre índios e seringueiros, seringalistas e fazendeiros. Depois de 100 anos contínuos de
extrativismo, os acreanos estavam se confrontando, pela primeira vez, com uma mudança radical na
economia do Estado. As empresas agropecuárias, ao se instalarem, provocavam grandes
desmatamentos e expulsavam os seringueiros, que migravam para a periferia das cidades. As críticas
que sempre haviam sido feitas ao regime dos seringais ficavam até minoradas face aos problemas
trazidos pelas agropecuárias.
4 Este seringal era famoso em toda região pelo fato dos seringueiros terem organizado uma greve, em 1967, com o
objetivo de pressionar o seringalista a aumentar o preço da borracha e terem sido torturados pela Polícia Militar do
Estado, que interviu a pedido do seringalista. O episódio ficou conhecido como a Revolta do Alagoas. Ver Zanoni
(1979).
10
Conflitos entre seringueiros e fazendeiros também não estavam presentes nas análises sobre
a Amazônia existentes naquele momento. A implantação do novo modelo, no Acre, estava se dando
através da destruição simultânea do anterior. Na Amazônia Ocidental, as empresas agropecuárias
não estavam se implantando sobre espaços vazios, como os relatórios governamentais davam a
entender. A decadência da economia da borracha e a perda de importância deste produto na pauta
de exportações brasileiras, não significava que a atividade tivesse desaparecido, como eu já
constatara.
Tendo concentrado, até então, minhas pesquisas no Vale do Juruá, não conhecia a realidade
do Vale do Acre. Chico me explicou que em Xapuri e Brasiléia, diferentemente do que ocorria em
Tarauacá, os seringueiros eram libertos e denominavam os demais de cativos. Os libertos não viviam
mais subordinados aos patrões, como ainda acontecia com os cativos. Vendiam a borracha livremente
no mercado, mas enfrentavam problemas mais ameaçadores: a expulsão das posses nas quais viviam
há gerações e os desmatamentos que estavam destruindo as seringueiras e castanheiras, que eram o
seu meio de vida. Diferentemente, também, das rebeliões que eu conhecera na história do Seringal
Alagoas, no Vale do Acre os seringueiros estavam organizando uma ação defensiva peculiar - os
empates aos desmatamentos.5
Desde 1975 os sindicatos estavam sendo organizados e os conflitos com os fazendeiros já
haviam, inclusive, levado ao assassinato do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR)
de Brasiléia, Wilson Pinheiro, no ano anterior. Chico já estava sendo, ele também, ameaçado, e a
situação era de permanente tensão, principalmente quando começava o verão e os seringueiros
iniciavam os empates às derrubadas, sempre divulgados pelo Varadouro.
Ao final da entrevista Chico me convidou para participar de um grande encontro de
seringueiros que ia acontecer dentro de uma semana, em Xapuri. A estrada que ligava Rio Branco a
Xapuri, naquela época, era de terra, estreita, e com mata densa de ambos os lados. Gravei toda a
reunião e lá estão registrados os depoimentos de Raimundo de Barros, Júlio Barbosa e muitos outros
líderes que nos anos seguintes trabalharam ao lado de Chico Mendes.6 Fiz uma matéria para o jornal
Varadouro, onde salientei o espírito de luta que havia no Sindicato de Xapuri e a força da liderança
de Chico Mendes junto aos seringueiros. Essa viagem deu início a uma sincera amizade entre nós e a
um processo de cooperação permanente, somente interrompidos em 1988, pelo seu assassinato.
Empatar, na linguagem amazônica, significa impedir, dificultar, embargar, diferentemente do significado que tem a
mesma palavra em outras partes do Brasil, onde empate é o resultado de um jogo no qual não houve vencedores
nem vencidos.
6 Raimundo de Barros, seringueiro, primo de Chico Mendes, orador inflamado, trabalhava na Sucam e percorria os
seringais organizando os seringueiros; está hoje no seu terceiro mandato de vereador pelo PT, em Xapuri. Júlio
Barbosa de Aquino, seringueiro, era um jovem membro das Comunidades Eclesiais de Base, articulado e expressivo,
foi Presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros depois do assassinato de Chico Mendes e é, hoje, Prefeito de
Xapuri, também pelo PT, em seu segundo mandato.
5
11
Chico Mendes era vereador, havia sido eleito pelo MDB (Movimento Democrático
Brasileiro) e há pouco tempo se filiara ao PT (Partido dos Trabalhadores). Mas seu vínculo político
era mesmo com a luta sindical. Havia participado da criação do primeiro sindicato do Acre, o STR
de Brasiléia, e tinha sido Secretário da entidade até se eleger vereador em Xapuri. Também ajudara a
criar o STR de Xapuri e foi eleito presidente em 1983, após encerrar o seu mandato, cargo que
ocupou até o seu assassinato. Chico buscava uma alternativa para fortalecer a luta sindical; queria que
o sindicato oferecesse benefícios concretos aos seringueiros para se contrapor aos conflitos que
estavam tendo com os fazendeiros.
Resgatando meu antigo desafio, propus a ele que organizássemos uma escola de
alfabetização de adultos. Ele concordou, entusiasmado com a idéia e sugeriu que associássemos à
escola uma cooperativa para organizar a venda da borracha e melhorar as condições econômicas dos
seringueiros. Criamos, então, o "Projeto Seringueiro – Alfabetização e Cooperativismo para
Seringueiros de Xapuri" e o "Centro de Documentação e Pesquisa da Amazônia" (Cedop), para dar
suporte institucional ao projeto, uma das primeiras organizações não governamentais do Acre.7
Formamos uma equipe e, com apoio do STR de Xapuri, iniciamos o trabalho.
O Projeto Seringueiro deveria se instalar nas áreas dos empates e escolhemos o Seringal
Nazaré, que havia sido comprado pelo Grupo Bordon e era cenário de uma forte resistência dos
seringueiros contra o desmatamento que a empresa estava realizando com o objetivo de implantar
uma grande fazenda de criação de gado. Enquanto uns preparavam o material didático, outros se
instalavam no Nazaré, para construir a escola e organizar os seringueiros para a cooperativa. Com
um pequeno suporte financeiro da Oxfam, entidade inglesa de desenvolvimento comunitário,
implantamos a primeira escola e a primeira cooperativa, em 1982.
A cartilha "Poronga - Alfabetização e Iniciação à Matemática para Seringueiros"8, foi
produzida tendo como referência as entrevistas, as contas-correntes, as palavras geradoras e o
contexto histórico e cultural pesquisado no Seringal Alagoas, atualizado para a realidade dos
seringueiros de Xapuri. Estava começando a devolver aos seringueiros do Nazaré o que aprendera
com os do Alagoas.
A parceria com Chico Mendes não parou mais a partir daí. E os laços fortes que criamos
resultaram do fato de termos nos identificado em torno de um objetivo comum: acabar com as
injustiças nos seringais. Ter nascido e se criado sob a regras do aviamento e ter consciência de que
deveria buscar os meios para mudá-las, era um dos objetivos que o mobilizava e que ele sintetizava
Em 1983 foi criado o CTA – Centro dos Trabalhadores da Amazônia, que deu continuidade ao Projeto Seringueiro
e é, hoje, uma das entidades mais atuantes do Acre. O Cedop foi extinto em 1984.
8 Poronga é o nome dado à lamparina que os seringueiros utilizam para sangrar as seringueiras, de madrugada. O
material didático foi produzido e editado com apoio técnico do CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e
Informação, de São Paulo.
7
12
numa expressão forte: "Tenho ódio à injustiça!" Ter conhecido um seringal tradicional, entrevistado
seringueiros em suas colocações, andado vários dias de uma casa para outra, estudado suas contascorrentes e me inserido na trajetória de suas vidas e de suas estórias, foi o que me permitiu entender
a verdadeira dimensão dos desafios que ele colocava para si mesmo. Era como se eu tivesse
adquirido a visão de como era antes e pudesse avaliar o que Chico pretendia transformar, e como
essa vontade de mudança vinha de uma convicção interna que o mobilizava e que estava associada à
história de sua vida pessoal. Ao andar com Chico pela mata e vê-lo mobilizando as pessoas, era
como se eu conseguisse captar sua alma seringueira, igual à de tantos outros que eu havia conhecido
no Alagoas. Quando conseguia concretizar suas idéias e conquistava novos aliados, eu tinha a real
dimensão do que significava, porque sabia de onde ele tinha partido.
De 1981 a 1988, fiz um grande esforço para dar visibilidade aos conflitos que ocorriam entre
seringueiros e fazendeiros em Xapuri, especialmente aos empates aos desmatamentos, e me empenhei
em tornar conhecidas e respeitadas as propostas de Chico Mendes para a Amazônia. Além de suas
idéias serem consideradas utópicas, o fato de virem de um trabalhador rural desconhecido, criava
uma situação de descrédito em torno dele. Quando o conheci, poucas pessoas prestavam atenção ao
que ele falava ou escrevia. Os jornais de Rio Branco estavam acostumados com suas visitas e
divulgavam as denúncias sobre os desmatamentos e as ameaças que sofria; mas nem sempre as
levavam a sério.
Quando Chico Mendes começou a receber visitas de jornalistas estrangeiros, a ganhar
prêmios e ser convidado para falar em outros países, o interesse por suas idéias cresceu um pouco
no Brasil. Mas cada pequena conquista era antecedida de muitos conflitos, assassinatos e pressões
– uma verdadeira guerra na floresta, que ocorria longe do conhecimento da sociedade.
A abertura da imprensa nacional para Chico Mendes só aconteceu depois que o Partido
Verde do Rio de Janeiro percebeu a novidade de suas propostas, e quando as queimadas, no verão
de 1988, ficaram completamente fora de controle. O governo brasileiro não divulgava os dados
oficiais sobre desmatamentos desde 1983. Os jornais não informavam sobre o que acontecia na
Amazônia. Em janeiro de 1987, de posse de imagens fornecidas gratuitamente pela NASA, os
seringueiros foram em comissão a Brasília, reuniram-se com os principais órgãos governamentais
ambientais e fundiários, mostraram as fotografias e propuseram alternativas. (Figuras 1 e 2 e Foto
1). Era a primeira vez que imagens de satélite sobre as queimadas da Amazônia chegavam às
redações de jornais e revistas.
No dia 12 de agosto daquele ano, 1988, no aeroporto de Porto Velho, Jorge Viana, então
presidente da Funtac e hoje Governador do Acre, Chico Mendes e eu, estávamos ilhados,
esperando que abrisse um espaço na fumaça para decolar para Rio Branco, e que lá existisse
13
suficiente visibilidade para aterrissar. Do aeroporto mesmo resolvi ligar para Rodrigo Mesquita,
do jornal O Estado de São Paulo e insistir: "Estão queimando a Amazônia", falei "e é preciso
mostrar para o país as causas desse desastre e o impacto que tem sobre a vida dos seringueiros".
Ele concordou. No dia 25 daquele mês o Jornal da Tarde publicou uma imagem de satélite sobre
as queimadas, ocupando metade da página principal, que divulgamos na Europa e nos Estados
Unidos, para chamar a atenção mundial para o fato.
No final do mês seguinte, acompanhei o jornalista Valdir Sanches e o fotógrafo Carlos
Ruggi, da Agência Estado, em uma viagem de Rondônia ao Acre. Chegamos em Xapuri no dia 30
de setembro. A cidade estava tensa, com pistoleiros andando ostensivamente armados pelas ruas.
Uma lista de lideranças ameaçadas era encabeçada pelo nome de Chico Mendes. Almoçamos em
sua casa e as fotos mais bonitas dele com seu filho Sandino foram tiradas por Ruggi, nessa
ocasião, publicadas depois em todos os jornais. Em seguida fomos conhecer uma das áreas
desmatadas, o Seringal Equador, motivo de conflitos e processos judiciais. Saímos do Equador e
fomos ao Cachoeira, recém transformado em Reserva Extrativista. Sentado em uma escola do
Projeto Seringueiro, Chico deu uma longa entrevista que aproveitei para gravar.
Ao concluírem o trabalho, a sensação que ficou marcada, para os jornalistas, foi a
fragilidade da situação que Chico vivia diante de um quadro de tantas ameaças sem controle.
Quatro grandes matérias foram publicadas, em outubro, no Estado de São Paulo e no Jornal da
Tarde, com fotos e detalhes do que estava ocorrendo na Amazônia naquele ano. Abordavam a
luta de Chico, a vida dos seringueiros e a defesa que faziam da floresta. Foi a primeira vez que um
jornal de expressão nacional prestou atenção ao que ocorria no Acre.
Mas já era tarde. Dois meses depois, Chico foi assassinado.
O seringueiro Chico Mendes percorreu um longo caminho até se transformar em um
líder sindical e outro, ainda maior, até perceber que a defesa que ele e seus companheiros faziam
das seringueiras e castanheiras poderia atrair a atenção internacional e se transformar em uma
proposta para a Amazônia. Até o dia do seu assassinato ele havia enfrentado todo tipo de
perseguições, físicas e morais, sem conseguir concretizar quase nada dos seus sonhos. Depois de
tantos anos de luta, o seu assassinato representava o fim das esperanças dos seringueiros e das
pessoas e instituições que os apoiavam. Apesar de todos afirmarem que dariam continuidade ao
movimento pelo qual ele morrera, ninguém de fato acreditava que isso seria possível.
Foi a inesperada repercussão internacional dada ao crime, em uma véspera de Natal, e a
imediata resposta da opinião pública nacional, que mudaram o curso da história. Dias depois,
líderes até então desconhecidos, eram recebidos pelas maiores autoridades do país e do exterior,
14
defendiam propostas para a Amazônia e eram ouvidos. Um ano depois, todos os seringais em
conflito, nos quais haviam ocorrido inúmeros empates contra os desmatamentos, na região de
Xapuri e Brasiléia, haviam sido desapropriados e transformados na maior área protegida do país,
a Reserva Extrativista Chico Mendes. Mais que isso, uma política pública específica para
populações tradicionais iria permitir a multiplicação de benefícios semelhantes a inúmeras
comunidades, realizando uma verdadeira reforma agrária na Amazônia. Dois anos depois, os
assassinos haviam sido julgados e estavam presos.
Como explicar essa súbita transformação no destino de uma população que há cem anos
vivia nos seringais, sem reconhecimento, e que sequer constava da literatura recente sobre a
Amazônia? Como seringueiros, que nem sabiam que o Brasil não precisava mais da borracha que
produziam, conseguiram formular uma proposta inédita de reforma agrária e de proteção do
meio ambiente? Como um seringueiro pobre, que vivia em uma casa de madeira sem forro nem
água encanada, conseguiu organizar um movimento social em defesa da floresta? De onde vinha
essa disposição para a luta? Como explicar que comunidades de seringueiros, destituídas de poder
econômico e político, ao buscar uma alternativa para a resolução de conflitos sociais locais,
pudessem acabar contribuindo para a elaboração e implantação de uma política inovadora de
acesso e de uso dos recursos naturais na Amazônia?
A repercussão do assassinato de Chico Mendes foi o resultado de uma história
suficientemente forte em si mesma: um seringueiro pobre, premiado internacionalmente, lutando
para defender a floresta amazônica de desmatamentos produzidos por fazendeiros
inescrupulosos, é assassinado às vésperas do Natal. Mas o fato dessa repercussão ter permitido a
formulação de uma nova política pública evidencia, ao menos, dois elementos: primeiro, que
havia uma proposta estruturada, cuja concretização afetaria interesses econômicos e políticos
fortes, que procuraram barrá-la pelo assassinato do líder principal; segundo, havia um contexto
favorável a mudanças que já havia sido construído antes e que pode ser capitalizado pelo
movimento dos seringueiros e seus aliados, nos anos seguintes ao assassinato. Em síntese, o
assassinato mostrou que os seringueiros haviam chegado no limite de sua luta e a revelação
pública dos fatos permitiu o avanço que antes era impensável.
Estas e outras questões serão objeto deste estudo. Apresentado como requisito para
obtenção do título de Doutora em Desenvolvimento Sustentável, no Centro de Desenvolvimento
Sustentável da Universidade de Brasília, este estudo está baseado nas atividades que desenvolvi na
Amazônia desde 1978, dez anos antes do assassinato de Chico Mendes e que desenvolvo até
hoje, quatorze anos depois.
15
Entre 1978 e 1979 realizei Tese de Mestrado em Antropologia na UnB. Entre 1981 e
1983 implantei o Projeto Seringueiro, através do Cedop e do CTA, assessorando o STR de
Xapuri. Em 1985, com apoio do INESC, em Brasília, organizei o primeiro Encontro Nacional
dos Seringueiros, quando foi criado o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e elaborada a
proposta de Reserva Extrativista. Entre 1986 e 1994 dirigi o IEA - Instituto de Estudos
Amazônicos - organização não governamental criada para assessorar o CNS e outros
movimentos sociais no Acre, Amapá, Rondônia e Amazonas. Entre 1995 e 1997, nas funções de
Secretária de Planejamento e Secretária de Meio Ambiente do Governo do Estado do Amapá,
contribuí para a elaboração do primeiro programa de desenvolvimento sustentável, em nível
estadual, para a Amazônia. E, de 1999 a 2002, nomeada para a Secretaria de Coordenação da
Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente, tive a oportunidade de colaborar na implantação,
em escala regional, das propostas originadas duas décadas atrás.
Durante esse período acumulei um acervo de cerca de 300 horas de fitas gravadas, 40 fitas
de vídeos, 30 arquivos de aço repletos de documentos e mais de 50 cadernos de anotações. A
pesquisa acadêmica, o levantamento de documentos históricos, a gravação de entrevistas, a
seleção de matérias de jornais, a busca de dados para sustentar propostas técnicas e a assessoria a
lideranças políticas locais, deram origem a uma documentação, em parte semelhante à de
qualquer especialista em Amazônia, em parte original, porque produzida no contexto dos
acontecimentos que antecederam a projeção internacional de Chico Mendes.
Foram raras as vezes, em todos esses anos, nas quais não me fiz acompanhar de um
gravador. Em nenhuma ocasião deixei de anotar, em cadernos de campo, as atividades nas quais
participei. Principalmente para documentar aqueles eventos que, com duração de vários dias, iam
registrando as análises, propostas e iniciativas, inteiramente novas, elaboradas por seringueiros e
lideranças políticas locais, acadêmicos, jornalistas, escritores, no intenso trabalho desenvolvido
em torno do movimento dos seringueiros. O resultado destes anos de sistemático registro e
reflexão é esta Tese de Doutoramento, um trabalho que não pretende esgotar o tema, mas
resgatar uma dívida pessoal em relação a essa história extraordinária que muitos ajudaram a
construir. Embora amplamente documentada, traduz a minha versão dos fatos, filtrada pelos
episódios que participei ao lado de Chico Mendes e de outros líderes do movimento.
Sete anos depois da primeira entrevista solitária que gravei com Chico Mendes na sede do
Varadouro, na última, em outubro de 1988, andamos pelo Cachoeira, agora acompanhados por uma
cineasta e uma antropóloga americanas, um pesquisador japonês e um jornalista da televisão italiana.
Perguntei se estava satisfeito com a luta dos seringueiros e ele respondeu:
16
O nosso compromisso aumenta muito mais na medida em que começamos a ter as
primeiras conquistas, as primeiras vitórias. Tem que lutar prá que essas coisas dêem certo e têm
muito mais conquistas para o futuro. Que o inimigo também vai se organizar, quando começa a
ver os primeiros frutos, as primeiras vitórias dos seringueiros, os fazendeiros não vão gostar, e vão
lutar. Então a gente tem que estar mais organizado ainda.
Continuou ressaltando o ânimo que sentia em trabalhar pelos seringueiros e, pela primeira
vez, falou dos segredos da mata, contou lendas e histórias dos entes mágicos da floresta. "Muitos
nessa luta vão, né," comentou um seringueiro que nos acompanhava. "Morre, aí, matam. Mas a
gente não tem medo, não, que a vida é essa mesmo. Tanto faz viver como morrer". "Mas viver é
melhor!", disse Chico Mendes encerrando esse assunto. Na foto (Foto 25) que tiramos naquela
ocasião, numa tentativa inconsciente de proteção, coloquei a palma de minha mão em seu peito,
exatamente no lugar onde, dois meses depois, ele receberia os tiros que destruíram sua vida.
17
1.
INTRODUÇÃO
O objeto de estudo desta Tese é um movimento social liderado por trabalhadores rurais
que conquista a solução para conflitos pela posse da terra por meio de uma política pública
inovadora de acesso e de gestão de territórios e de recursos naturais.
Estes trabalhadores rurais são seringueiros que vivem da extração do látex na Amazônia e
o movimento teve como lócus espacial inicial a região do Vale do rio Acre, especialmente o
município de Xapuri, no Estado do Acre, entre 1970 e 1988. A proposta por eles formulada para
resolver os conflitos sociais foi a criação de áreas reservadas para usufruto de comunidades locais
– as Reservas Extrativistas – uma combinação peculiar de reforma agrária e proteção do meio
ambiente. A política pública conquistada foi a que instituiu as Reservas Extrativistas como parte
do Sistema Nacional de Unidades de Conservação e os moradores destas áreas como
beneficiários da Política Nacional de Reforma Agrária.9
O alcance desta proposta pode ser avaliado no fato de existirem atualmente 18 Reservas
Extrativistas na Amazônia, totalizando 4.843.000 hectares e beneficiando cerca de 40 mil pessoas;
em outros Estados, são 7 áreas, totalizando 229.191 hectares e beneficiando cerca de 15 mil
pessoas. Os resultados alcançados pelo movimento criado pelos seringueiros podem ser
considerados, assim, um exemplo bem sucedido de política de desenvolvimento sustentável.
O objetivo do trabalho é analisar o modo como comunidades de seringueiros, destituídas
de força econômica e de poder político, sob a liderança de Chico Mendes, articularam redes
locais, nacionais e internacionais de apoio e aliaram-se a movimentos ambientalistas e à
comunidade científica e, ao formular uma alternativa para a resolução de conflitos sociais,
contribuíram para a elaboração de uma proposta inovadora de acesso e de uso dos recursos
naturais na Amazônia, que influenciou políticas nacionais e internacionais de meio ambiente e de
desenvolvimento.
O ponto central do estudo são os conflitos entre seringueiros e fazendeiros, em torno de
modalidades opostas de acesso e de uso dos recursos naturais e o papel de Chico Mendes como
líder de um movimento que buscou na interlocução com outros setores da sociedade e com o
As Reservas Extrativistas foram inseridas na Política Nacional de Meio Ambiente em 1989 (Art. 9º inciso VI da Lei
No. 7.804, de 18.07.89) e oficialmente criadas pelo Decreto N. 98.987 de 30 de janeiro de 1990. Em 2000 foram
consideradas como parte do Sistema Nacional de Unidades de Conservação pela Lei N. 9.985, de 18 de julho de
2000. Os moradores das Reservas Extrativistas passaram a ser considerados beneficiários do Programa Nacional de
Reforma Agrária por meio da Portaria Inter-Ministerial N. 187, de 19 de setembro de 2002, assinada pelos Ministros
do Desenvolvimento Agrário e do Meio Ambiente.
9
18
Estado, alternativas de formulação e implementação de políticas públicas que contemplassem
tanto direitos de posse quanto de uso da floresta.
Em particular, o trabalho destaca o processo por meio do qual na busca de solução para
os conflitos foi se delineando a necessidade de conciliação entre políticas públicas que até então
atuavam em campos opostos, da reforma agrária e do meio ambiente. A síntese desse processo
está no conceito de Reserva Extrativista - áreas públicas destinadas à exploração sustentável e à
conservação dos recursos naturais, concedidas pela União para o usufruto de populações
extrativistas. Este conceito expressa, simultaneamente, uma modalidade nova de regularização da
posse – a concessão de direito real de uso, e de proteção da natureza – reservas especialmente
destinadas a populações extrativistas.
O estudo procura demonstrar que foi a combinação entre condições endógenas – como a
história de luta pela incorporação do Acre ao território nacional e as especificidades na
exploração dos recursos da floresta nos seringais nativos – e condições exógenas – como o
interesse do movimento ambientalista internacional pela proteção das florestas tropicais e a
atuação no campo estratégico dos empréstimos internacionais - que permitiu ao movimento dos
seringueiros concretizar seus objetivos. E foi o papel de Chico Mendes, ao construir alianças
entre segmentos sociais tão distintos e distantes, no contexto nacional e internacional que
antecedeu a Eco 9210, que criou as condições objetivas para que os resultados fossem alcançados.
Embora a pesquisa esteja centrada no período de 1970 a 1988, a compreensão dos fatores
que influenciaram os episódios recentes tornou necessária a reconstituição do processo histórico
de incorporação do Acre ao Brasil e a estruturação dos seringais, das últimas décadas do século
XIX até o final dos anos 1960.
Este trabalho pretende ser uma contribuição para as discussões que tratam das relações
entre sociedade e Estado na construção de políticas ambientais voltadas para a valorização dos
recursos naturais, condição necessária para um desenvolvimento que reduza as desigualdades
sócio-econômicas no país. Pretende, também, apresentar elementos empíricos que enriqueçam o
debate sobre o papel de comunidades e populações tradicionais e indígenas para a proteção dos
recursos naturais e da biodiversidade (Cunha e Almeida 2001; Schwartzman 2003).
Nesta Introdução são discutidos os temas centrais que os fatos descritos evocam: a
relação entre movimentos sociais e políticas públicas; as interfaces entre reforma agrária e meio
ambiente; os atores sociais da sustentabilidade; o protagonismo de Chico Mendes e o significado
da floresta; as hipóteses de trabalho, a metodologia e a estrutura da tese.
10
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992.
19
Movimentos Sociais e Políticas Públicas
A questão principal que motivou o estudo, está relacionada com a idéia de que a
resolução de conflitos via políticas públicas ocorre quando um segmento social utiliza o poder
econômico ou político que deriva de sua inserção na estrutura econômica ou de poder, na forma
de pressão organizada visando conquistar suas reivindicações. As chances de conquistar o que
almejam aumentam conforme estes grupos estejam inseridos em setores chaves da economia.11
Movimentos sociais de base rural, por não ter representação política organizada nem fazer parte
dos setores dinâmicos da economia, raramente conquistariam resultados relevantes para sua
própria categoria e, muito menos, para a sociedade em geral.
No caso aqui estudado, no momento em que ocorreram os conflitos, os seringueiros
eram trabalhadores destituídos de força ou peso econômico, sem inserção política, viviam
isolados e distantes dos centros de decisão, e estavam fragilmente organizados. Não tinham,
portanto, acesso ao processo de formulação das políticas governamentais. Embora tenham
exercido um papel relevante na economia regional no passado, o início do movimento coincide
com o fato de que, pela primeira vez na história do extrativismo amazônico, os preços para a
borracha não estavam mais sendo protegidos pelo governo. Assim, no momento em que se
organizaram para elaborar a proposta de Reserva Extrativista a economia da borracha estava em
decadência e a capacidade de pressão que podiam exercer era, teoricamente, muito limitada.
Movimentos sociais rurais organizados por grupos despossuídos de terra e de direitos, no
Brasil, são tão antigos quanto Canudos (1893) e caracterizaram-se, historicamente, pela
proposição de soluções messiânicas e/ou religiosas que visavam estabelecer uma nova ordem
social tendo o passado como referência.12 A partir de 1950, com o surgimento dos Sindicatos de
Trabalhadores Rurais teve início a luta pela reforma agrária, sob influência da Igreja Católica,
sendo as Ligas Camponesas no Nordeste, na década de 1960, uma das expressões claras de
confronto entre camponeses e grandes proprietários de terra. Conforme Martins (1981), até 1940
o messianismo e o cangaço foram as formas dominantes de organização e de manifestação da
11 Essa concepção está fundamentada nos princípios marxistas clássicos segundo os quais a luta de classes é o fator
político principal das mudanças na sociedade capitalista e a capacidade de pressão é tão mais efetiva quanto mais
organizada estiver a classe operária em setores importantes da economia. O exemplo clássico de conquista de
benefícios via pressão econômica, no Brasil, foi o exercido pelo movimento sindical do ABC paulista nos primeiros
anos da década de 1980 quando esteve centrado na melhoria dos salários e das condições de trabalho. O exemplo
mais recente de movimento social baseado em pressão política foi o que culminou com o impeachment de Fernando
Collor. O processo de democratização da sociedade brasileira, na década de 1980, foi um exemplo de movimento
que associou força econômica e poder político visando a mudança da estrutura de poder.
12 Conforme Scherer-Warren (1996) movimentos de libertação dos escravos surgiram no século XVII, movimentos
nativistas (Cabanagem, Farroupilha) no séculos XVIII e início do XIX; na segunda metade do século XIX e primeira
do século XX predominaram os movimentos messiânicos e o banditismo social (Canudos, Contestado).
20
rebeldia camponesa; a partir dos anos 1950 a liga e o sindicato serão as formas mais importantes
de organização e luta política dos camponeses.
No final da década de 1970, em várias partes do país, há um crescimento significativo do
número das organizações e manifestações no campo com uma ampla gama de objetivos: pela
autonomia dos sindicatos, contra os grandes projetos agrícolas, minerais e de infra-estrutura, pela
reforma agrária, contra a política agrícola, pelos direitos dos atingidos por barragens, dentre
outros.
Na Amazônia, no mesmo período, os conflitos sociais emergiram sob a égide da
intensificação da intervenção do Estado no processo de ocupação de novas terras e em
conseqüência dos elevados índices de concentração fundiária que resultaram da aplicação daquele
modelo de desenvolvimento. Caracterizaram-se pelo confronto entre diferentes modalidades de
acesso à propriedade da terra, tendo de um lado posseiros e, de outro, grandes empresas que se
apossaram destas terras por meios ilícitos, ou que as compraram de antigos proprietários sem
reconhecer direitos adquiridos dos que ali viviam. Nesse sentido, os movimentos sociais surgidos
naquele momento se aproximariam do modelo clássico de conflito de classe entre camponeses e
grandes proprietários.
A forma de organização destes movimentos não seguiu, no entanto, nem o marco
tradicional do controle clientelista por forças políticas locais nem o modelo sindical reivindicativo
moderno. Segundo Almeida, apesar da variedade de situações concretas nos quais estavam
envolvidos, as políticas públicas teriam contribuído para "uniformizar ações políticas de grupos
sociais não-homogêneos do ponto de vista econômico" (1994:521). Ou seja, as políticas
governamentais, principalmente as relacionadas com o controle sobre a propriedade da terra,
teriam colocado os diferentes movimentos sociais da Amazônia frente a um mesmo opositor: o
Estado.
Além disso, apesar de todas as diferenciações, estes movimentos "mobilizam-se pela
manutenção das condições de vida preexistentes" aos programas e projetos governamentais e
"compõem-se objetivando garantir o efetivo controle de domínios representados como
territórios fundamentais à sua identidade e, inclusive, para alguns deles, à sua afirmação étnica"
(Op.cit:522).
O caso do movimento dos seringueiros segue esse padrão: os conflitos colocaram
posseiros e proprietários em campos opostos e as ações se organizaram tanto em contraposição
direta aos novos donos da terra, quanto à política governamental que incentivava a implantação
de empresas agropecuárias; além disso, se estruturou em torno da defesa da produção extrativista
e do modo de vida tradicional dos seringais. Mas, ao assim fazer, apresentou um elemento
21
inovador: a luta contra os desmatamentos, atividade que assegurava aos fazendeiros a
propriedade da terra e que representava, para os seringueiros, a destruição da base econômica de
sobrevivência, a floresta. Este elemento será um diferenciador dos seringueiros em relação aos
demais movimentos sociais da Amazônia, principalmente por possibilitar estratégias de ação não
convencionais na defesa de seus interesses, especialmente na busca de poder de influência sobre
as políticas do Estado.
O campo conceitual dentro do qual se insere este estudo, portanto, é o da teoria dos
movimentos sociais na concepção elaborada por Gohn quando os define como "ações
sóciopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas
sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país,
criando um campo político de força social na sociedade civil" (2002:251). Pelas suas
especificidades, o movimento dos seringueiros aproxima-se, também, dos chamados Novos
Movimentos Sociais, principalmente no que se refere às análises das ações e identidades coletivas
criadas no processo de formação do campo político (Melluci 1980) .13
Embora utilizados para estudar grupos que defendem minorias (raciais, étnicas, sociais) e
movimentos modernos que se organizam para questionar o chamado capitalismo tardio, algumas
características dos Novos Movimentos Sociais ajudam a compreender o movimento dos
seringueiros: é uma forma de fazer política a partir da sociedade civil e não das instituições
oficiais estatais; a mudança resulta tanto de contradições estruturais quanto da ação dos próprios
atores; recusam a política de cooperação entre as agências estatais e os sindicatos e estão
preocupados em assegurar direitos sociais; usam a mídia e as atividades de protestos para
mobilizar a opinião pública, como forma de pressão sobre os órgãos e políticas estatais; por meio
de ações diretas, buscam promover mudanças nos projetos dominantes e alterar situações de
discriminação econômica, principalmente dentro de instituições do Estado.14
O que torna o caso dos seringueiros interessante para análise é o fato do movimento se
constituir em uma combinação nova de elementos presentes em movimentos sociais clássicos e
contemporâneos. Assim, por exemplo, embora sejam trabalhadores rurais que se organizam em
sindicatos, a identidade que assumem é a da profissão e não a de classe, distinguindo-se, assim,
dos movimentos sindicais modernos. Além disso, embora entrem em conflito com fazendeiros,
pela propriedade da terra, o que está em disputa são os recursos florestais e não a própria terra
como nos movimentos camponeses. Em decorrência, não aceitam a reforma agrária
convencional, mesmo que entendam que foi uma conquista histórica para os trabalhadores rurais.
13 A literatura sobre movimentos sociais é significativa e as escolas teóricas e os paradigmas que as orientam foram
sintetizados por Gohn (2002).
14 As características apontadas por Gohn (Op cit:125) para qualificar os Novos Movimentos Sociais foram adaptadas
para refletir sobre o caso dos seringueiros.
22
Por último, ao utilizarem táticas de contraposição aos desmatamentos, aproximam-se de
movimentos ambientalistas, mas não o fazem por uma concepção abstrata sobre a natureza, mas
porque a utilizam como fator de produção e meio de vida. Conseguem, com isso, aliar-se a
entidades ecológicas sem ser uma delas. E ao buscar uma solução para os conflitos resgatam dos
movimentos indígenas o conceito de território e de áreas reservadas.
Os elementos estruturais que deram origem ao movimento dos seringueiros expressam
uma contradição clássica entre classes sociais (proprietários de terras e posseiros), mas a forma
como o movimento se desenvolveu, aproxima-o mais dos movimentos sociais contemporâneos,
especialmente em relação aos conceitos de ação coletiva e de identidade. Ao definir, por exemplo,
sua identidade coletiva como "extrativistas", os seringueiros estavam criando um campo próprio
de referência em relação ao qual passaram a se identificar e ser identificados pelos outros. E esse
campo se referia às características da atividade profissional e não às de classe.15
Melucci utiliza o conceito de identidade coletiva para definir a ação interativa e
compartilhada, produzida por certo número de indivíduos em relação à orientação de suas ações
e ao campo de oportunidades e constrangimentos onde estas ações têm lugar (1996:70). Para
Cohen (apud Gohn Op cit:124) "nos Novos Movimentos Sociais a identidade é parte constitutiva
da formação dos movimentos, eles crescem em função da defesa dessa identidade", utilizando-a
na definição dos membros, das fronteiras e ações do grupo. Esse conceito ajuda a explicar a
dinâmica dos movimentos sociais. O movimento dos seringueiros, por exemplo, surge como uma
ação coletiva (os empates), se desdobra em um movimento social (ao criar uma entidade
representativa e um programa de ação) e se institucionaliza como política pública. É a identidade
coletiva de "extrativistas" que aglutina os membros do movimento, define as fronteiras em
relação a outros grupos sociais e orienta as ações em todas as etapas até sua institucionalização.
Outro conceito importante a ser resgatado é o de atores sociais, elaborado por Touraine
(1985) ao conferir importância aos sujeitos na história (em oposição à tradição marxista das
classes), definidos como agentes dinâmicos, produtores de reivindicações e demandas e não
simples representantes de papéis atribuídos de antemão pelo lugar que ocupariam no sistema de
produção. O aspecto transformador dos movimentos sociais é salientado por Habermas ao
afirmar que eles criam possibilidades de novas relações sociais e de formas de produção, ao
gerarem processos novos quando da busca de soluções alternativas aos problemas comuns
enfrentados por seus participantes (Gohn 2002:138).
Claus Offe (1988) salienta o aspecto político dos Novos Movimentos Sociais, afirmando
que o modo de atuar politicamente implica em articulações em torno de objetivos concretos,
Outras identidades serão construídas durante o processo de organização e de institucionalização do movimento
dos seringueiros, conforme será apresentado nos capítulos seguintes.
15
23
visando uma resposta racional a um conjunto específico de problemas. Reivindicando uma
categoria intermediária, nem pública nem privada, resultado da ação coletiva, o campo de ação
dos NMS, conforme afirma o autor, "se faz num espaço de política não institucional, cuja
existência não está prevista nas doutrinas nem na prática da democracia liberal e do Estado do
bem estar social; objetivam a interferência em políticas do Estado e em hábitos e valores da
sociedade" (Gohn 2000).
Em síntese, é nesse campo de forças contraditórias que atua o movimento dos
seringueiros. Surge como resultado de um conflito rural clássico entre posseiros e grandes
proprietários, mas se desenvolve pela ação de atores sociais que constróem identidades coletivas
singulares como forma de aglutinação de forças em um espaço político próprio. E se
institucionaliza como política pública resgatando elementos da situação anterior, combinando-os
com novos, resultantes de alianças estratégicas efetivadas visando conquistar poder político na
relação com o Estado. E o Estado, por outro lado, ao acolher a proposta se legitima
politicamente ao defender os interesses gerais da sociedade, depois de ter atuado diretamente na
defesa dos interesses privados.
É no contexto das políticas públicas, especialmente nas interfaces entre aspectos sociais e
ambientais das políticas de desenvolvimento que a especificidade do movimento dos seringueiros
e da proposta que elaboraram fica mais evidente.
Reforma Agrária e Meio Ambiente
O movimento dos seringueiros, pelas características já apontadas, estabeleceu como
campo político de sua atuação o questionamento das políticas públicas relacionadas com dois
aspectos centrais à sua identidade coletiva: a defesa dos direitos de posse e a garantia de acesso e
de uso dos recursos naturais disponíveis na floresta. Criou, assim, uma interface com duas
políticas governamentais: a da reforma agrária e a do meio ambiente, produzindo importantes
mudanças conceituais em ambas, para ajustá-las às especificidades de suas demandas. Em um
primeiro momento, a proposta dos seringueiros questionou as duas alternativas, tanto em termos
conceituais quanto institucionais e, em um segundo momento, fundiu as duas tradições em um
novo conceito, no qual a regularização da posse ficou subordinada à proteção do meio
ambiente.16
16 A criação de projetos de assentamento requer a desapropriação prévia das áreas que serão destinadas à reforma
agrária; a regularização fundiária de unidades de conservação ocorre após a criação. O caso das Reservas
Extrativistas, quando o conceito foi formulado, estabeleceu o nexo entre os dois aspectos, ou seja, as áreas são
criadas para fins de proteção dos recursos naturais e as desapropriações não são tratadas como um instrumento para
a reforma agrária, mas como um método de proteger o meio ambiente (ELI 1994).
24
Para resolver a questão fundiária o movimento encontrou uma solução inusitada – as
áreas em conflito seriam transformadas em propriedade da União administradas por
comunidades locais via concessão real de uso;17 e para assegurar a proteção dos recursos naturais
necessários à própria subsistência, também a solução foi inovadora - estas áreas seriam
denominadas de reservas18 e protegidas como unidades de conservação da natureza voltadas para
o uso sustentável de populações tradicionais.19
A criação de Reservas Extrativistas representou, assim, uma redefinição de duas tradições
teóricas que até então caminhavam paralelamente e, muitas vezes, em conflito uma com a outra, a
do desenvolvimento social e a da proteção do meio ambiente. Embora esta reconciliação fosse
teoricamente previsível, o que torna a análise deste caso interessante é o fato de ter sido proposta
por um movimento social.
A redefinição de objetivos da reforma agrária e da proteção ambiental, abriu um campo
conceitual novo que difere daquele encontrado na literatura onde a relação entre o social e o
ambiental está associada aos impactos que a pobreza causa sobre o meio ambiente, mais do que
às contribuições que populações pobres poderiam dar para protegê-lo. Conforme afirma Leonard
(1989), os desafios da redução da pobreza e da proteção ambiental são com freqüência
considerados contraditórios, pois um número cada vez maior de indivíduos pobres emigra para
novas terras em áreas remotas e ecologicamente frágeis, sendo esta uma das grandes causas da
destruição ambiental. "As pressões da exploração crescente pelos pobres correlaciona-se
diretamente com severos problemas ambientais em numerosas áreas de florestas tropicais
úmidas, encostas e terras áridas e semi-áridas" (Op.cit:36). A inversão dos dois fatos, ou seja, a
luta pela terra associada à defesa da floresta, entre segmentos sociais pobres da área rural, tornouse, assim, um fenômeno novo tanto para os estudiosos dos problemas do desenvolvimento
quanto da proteção ambiental.
Não existem referências de que, historicamente, a luta pela reforma agrária tenha levado
em consideração os aspectos ambientais, seja em termos de escolha de áreas, sistema de
produção, impactos sobre os elementos da natureza como solo, água, floresta. A reforma agrária
tem se restringido, em termos gerais, à redistribuição da propriedade da terra em benefício de
17 O conceito de concessão real de uso está na legislação que trata do direito de uso de propriedades públicas
(Decreto-Lei N. 271, de 27/02/1967). Ao realizar a concessão para a comunidade e não para os indivíduos, assegura
valores e responsabilidade partilhadas por todos e a garantia de que os recursos naturais serão extraídos de forma
sustentável. A proposição deste modelo para os seringueiros e sua formulação nos termos do Decreto 98.987 de
30.01.1990 foi uma contribuição do advogado Manoel Eduardo Camargo e Gomes ao CNS e ao IEA.
18 Conforme será detalhado no Capítulo Cinco desta Tese, os seringueiros se inspiraram nas Reservas Indígenas para
definir o conceito de Reservas Extrativistas, especialmente a idéia de terem a proteção do Estado para seus
territórios.
19 O SNUC-Sistema Nacional de Unidades de Conservação consagrou de forma definitiva esse conceito em lei,
exatamente dez anos depois de sua formulação. Unidades de Uso Sustentável têm como objetivo compartilhar a
conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais (MMA 2000).
25
pequenos agricultores e trabalhadores rurais, sendo a discussão sobre a melhor utilização dos
recursos agrícolas parte das questões de política agrária.
Na prática recente do país, a reforma agrária esteve associada à resolução de problemas
sociais por meio da destinação de lotes de terras, na região Norte, para produtores familiares
deslocados de regiões do Centro-sul do país, em função da expansão capitalista da agricultura,
sem considerar se o estoque de terras ociosas naquela região deveria estar disponível para a
reforma agrária, dadas as características ambientais e de infra-estrutura ali existentes (Graziano
Neto 1998:158).
Estes fatores conjugados têm levado à localização de projetos de assentamento em áreas
remotas, nas quais aparentemente não existem problemas fundiários. Na verdade, em grande
parte delas, vivem comunidades extrativistas, cujas posses, históricas, nunca foram reconhecidas.
E estas populações, se quiserem se credenciar como beneficiárias da reforma agrária, terão que se
transformar em agricultores, ou seja, desmatar a floresta. Levam também a conflitos e processos
judiciais morosos quando uma área objeto de assentamento para reforma agrária for objeto de
grilagem ou de uso para fins especulativos. Até o final do processo a área terá sido toda
desmatada e os potenciais agricultores assentados não encontrarão mais os meios necessários
para se desenvolver.
Do ponto de vista dos seringueiros, dois aspectos principais sintetizam as dificuldades de
internalização de conceitos ambientais no campo da reforma agrária. Primeiro, o fato de estar
orientada para o assentamento de populações humanas, o que implica que o acesso a uma área de
terra supõe o deslocamento prévio das pessoas de um lugar para o outro. Os seringueiros sempre
pleitearam o reconhecimento das posses nos locais onde tradicionalmente moram. Segundo, o
fato de estar orientada para a produção agrícola e não reconhecer, seja para fins de
desapropriação quanto de priorização dos assentamentos, os recursos florestais que as
comunidades extrativistas utilizam para sobreviver. Além disso, para uma área se transformar em
um assentamento precisa estar previamente regularizada do ponto de vista fundiário.
No campo das políticas ambientais os problemas não são menores. Todas as iniciativas
conhecidas de defesa do meio ambiente estão relacionadas como fenômenos típicos da sociedade
urbana industrial. No Brasil, os movimentos ambientalistas surgiram nas grandes cidades do sul
do país e entre segmentos de classe média, nos primeiros anos da década de 1970. Além disso, as
populações pobres sempre foram vistas, pelos conservacionistas, como as que mais sofrem as
consequências de um ambiente degradado mas também como as que mais impactam o meio
ambiente. Argumentam que pressões populacionais podem levar à destruição da base de recursos
naturais por populações residentes em áreas protegidas e que necessidades humanas podem ser
26
incompatíveis com objetivos de conservação. Em alguns casos, as sociedades locais estão mais
interessadas em obter resultados econômicos de curto prazo através do aumento da eficácia de
atividades tradicionais do que em manter o equilíbrio de frágeis ecossistemas (Redford e Robinson
1985).
Estes questionamentos expressam, de um lado, discordâncias teóricas legítimas sobre o
papel das populações humanas na proteção da biodiversidade em ambientes naturais frágeis, face
à crescente importância atribuída a comunidades locais, tradicionais e indígenas, na gestão de
áreas protegidas (Peres e Terborgh 1994). Mas revelam, também, desconhecimento sobre a
dinâmica de uso dos recursos naturais por estas comunidades e preconceitos ideológicos ao não
reconhecer que estas mesmas populações têm direitos ancestrais e/ou de posse sobre estes
mesmos territórios, que precedem, legalmente, as decisões governamentais de transformá-los em
unidades de conservação (Schwartzman, Nepstad e Moreira 2000; Corrêa 2001 e Allegretti 2001).
Estas concepções estão assentadas, principalmente, no pressuposto dominante nas políticas
ambientais de que o resultado inevitável do desenvolvimento é a destruição do meio ambiente,
salvando-se apenas aqueles espaços que puderem ser protegidos através de legislação específica. Em
decorrência, a criação de áreas protegidas foi considerada, até a década de 1980, a principal estratégia
para conservação da biodiversidade nos países tropicais. Desenvolvimento e meio ambiente eram
duas categorias opostas e em conflito, e até os anos 1990, não se pensou em objetivos sociais para
a proteção do meio ambiente.
Na discussão entre meio ambiente e desenvolvimento os dois conceitos acabaram passando
por importantes reformulações no mesmo período. Modelos de desenvolvimento baseados em
grandes projetos de infra-estrutura, financiados por Bancos Multilaterais, foram concebidos como a
melhor estratégia para aumentar a renda e inserir no mercado de consumo, populações que viviam
em economia de subsistência nas regiões tropicais. A conseqüência, porém, foi a ampliação das
desigualdades sociais e impactos sobre o meio ambiente, na medida em que a infra-estrutura
implantada levou à valorização da terra, à expulsão de comunidades tradicionais e à abertura de
novas áreas de florestas. Condicionalidades ambientais e sociais, como a exigência de relatórios de
impacto ambiental, de criação de áreas protegidas, ou de demarcação de territórios indígenas, que
surgiram naquele momento, como forma de mitigar os impactos dos projetos, anteciparam questões
que seriam retomadas, no futuro, quando tiveram início os debates sobre desenvolvimento
sustentável.
Mudanças conceituais surgiram, também, no campo conservacionista. A primeira, foi o
reconhecimento da necessidade de considerar a diversidade sócio-cultural associada à proteção
ambiental, uma vez que a maior parte das áreas estratégicas para a proteção da biodiversidade, no
27
caso da América Latina, estão habitadas por populações locais. A conseqüência foi o
reconhecimento da necessidade de ampliar a base social dos interessados na conservação através da
inclusão progressiva da sociedade, especialmente das populações locais, como parceiros no
planejamento, estabelecimento e manejo de áreas protegidas, assegurando uma distribuição mais
eqüitativa dos benefícios.
Os novos conceitos de desenvolvimento e meio ambiente se consolidaram a partir do
Relatório Bruntland (1986)20 que alertou para a necessidade de medidas que evitassem uma grave
crise ambiental no planeta que comprometeria o patrimônio natural das futuras gerações. Os novos
instrumentos conceituais e institucionais do desenvolvimento, pautados na noção central de
sustentabilidade, foram delineados e aprovados no contexto da Conferência das Nações Unidades
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro, em 1992. A
busca do bem estar econômico e social simultaneamente ao uso não destrutivo dos recursos
naturais, assegurando os meios necessários para o desenvolvimento tecnológico do futuro, pautaram
as novas instituições a partir daquela década.
A ampliação do conceito de conservação incluindo a possibilidade de relações de equilíbrio
entre populações humanas e recursos naturais provavelmente resultou do fato de, a exemplo do que
estava ocorrendo na Amazônia, as últimas duas décadas registraram uma explosão de experiências
em todo o mundo envolvendo grupos indígenas e comunidades locais na busca de soluções para o
ritmo acelerado da devastação de sua base de subsistência que coincidentemente, são também as
áreas mais ricas em biodiversidade. Ou seja, embora as áreas protegidas continuem sendo
consideradas como a principal e mais importante política de conservação da biodiversidade, medidas
de caráter social passaram a ser vistas não como ameaças mas como segurança para a manutenção da
biodiversidade.
Hoje, quando se analisa o fato de que, há pelo menos dez anos, mudanças importantes
visando a conciliação entre objetivos de desenvolvimento e de proteção do meio ambiente foram
introduzidas nas políticas públicas dos países em desenvolvimento, chama a atenção o fato do
conceito das Reservas Extrativistas – transformado em política pública e consolidado no novo
arcabouço legal do sistema de unidades de conservação do país - continuar sendo questionado,
tanto por segmentos do poder público e das instituições de financiamento, quanto por setores do
meio acadêmico.21
Our Common Future, resultado da World Commission on Environment and Development, estabelecida pela United
Nations General Assembly em 1984 e publicado em 1986.
21 Como referência recente sobre este debate nos meios de comunicação, ver artigo já citado do jornalista Sá Corrêa,
de 10/10/2001, entitulado "A Bancada Extrativista" e divulgado no site No.com e resposta da autora "O Dilema
Conservacionista" publicada no mesmo endereço, em 30/10/2001. E como ilustração da mesma questão nas
instituições multilaterais de financiamento ver o debate ocorrido entre a Secretaria de Coordenação da
Amazônia/MMA e o Banco Mundial a respeito do impacto ambiental que o Projeto ARPA, voltado para a criação
20
28
Percebe-se que a principal inovação do conceito de Reserva Extrativista, que é a singular
associação entre reforma agrária e meio ambiente, é pouco compreendida pelos órgãos
governamentais, tanto da área ambiental quanto do desenvolvimento agrário. Ao ser categorizada
como área protegida, uma Reserva Extrativista pode ser criada sem desapropriação prévia,
garantindo-se assim, de imediato, a permanência das pessoas nas áreas onde sempre viveram. Isso
significa que, por razões ambientais, faz-se a reforma agrária.
Duas implicações derivam desse fato: a primeira, de que todas as populações que habitam
tradicionalmente uma área têm o direito de vê-la transformada em Reserva Extrativista; a
segunda, de que, embora sejam áreas protegidas, não se aplicam a este caso, os critérios de
representatividade ambiental ou biológica, que são utilizados para justificar a criação das demais
modalidades de unidades de conservação. Ou seja, não se justifica o argumento utilizado em
setores do poder público de que seria necessário provar a representatividade ou a viabilidade da
Reserva Extrativista como modalidade de proteção dos recursos naturais, nas áreas já criadas,
antes de responder às demandas existentes para criação de novas.
Em síntese, comunidades de agricultores que não queiram modalidades convencionais de
reforma agrária, situação cada vez mais freqüente na Amazônia, não encontram acolhida nas
normas tradicionais dos órgãos responsáveis pela política fundiária.22 E comunidades extrativistas
que aguardam a criação de Reservas Extrativistas têm suas prioridades subordinadas a critérios de
representatividade ambiental e biológica.23
Este breve resumo do debate atual em torno do tema, no campo das políticas públicas,
revela a complexidade conceitual embutida nestas duas tradições teóricas diferentes: uma que
privilegia os aspectos sociais e outra que valoriza os aspectos de conservação da natureza.
de unidades de conservação na Amazônia poderia trazer, ao incluir unidades de uso sustentável e não somente de
proteção integral (SCA 2002).
22 Agricultores da Transamazônica, por exemplo, reivindicam junto ao INCRA, a criação de Projetos de
Desenvolvimento Sustentável, uma modalidade de assentamento que leva em consideração os aspectos ambientais e
a CONTAG, em associação com entidades não governamentais e movimentos sociais, está propondo um programa,
denominado de ProAmbiente, que visa a compensação financeira para agricultores familiares que optarem por
técnicas produtivas que não causam impacto ambiental.
23 Um mapa de conflitos em torno do acesso e do uso dos recursos naturais na Amazônia atual pode revelar a
relevância social e ambiental e a diversidade de situações nas quais as orientações dos órgãos fundiários conflitam
com as dos órgãos ambientais e destes com as populações potencialmente beneficiárias da reforma agrária e com as
populações indígenas. Em decorrência desta constatação, este tema passou a ser tratado por inúmeros pesquisadores
e constitui, atualmente, uma área específica da Antropologia.
29
Atores Sociais da Sustentabilidade
Ao fundir dois campos conceituais que até então estavam separados e, quase sempre, em
confronto, a Reserva Extrativista inaugurou um novo paradigma24 que ultrapassa, inclusive,
como será apresentado, as proposições consideradas mais avançadas do desenvolvimento,
aquelas baseadas na idéia de sustentabilidade. O instigante dessa história, foi o fato dessa
revolução paradigmática ter tido como protagonistas principais, simples seringueiros, que
podem ser considerados, por isso, atores sociais da sustentabilidade.
Conforme aponta Roberto Guimarães "...o dilema atual da sustentabilidade se resumiria...
à inexistência de um ator cuja razão de ser social fosse a dos recursos naturais, que é o
fundamento, no mínimo, da sustentabilidade ecológica e ambiental do desenvolvimento. Esta
questão torna-se ainda mais complexa ao se considerar que, no que diz respeito à relação capitaltrabalho, seus respectivos atores detêm a propriedade dos respectivos fatores, quando, pelo
menos do ponto de vista teórico, a propriedade de alguns dos recursos naturais, como também a
da maioria dos processos ecológicos, é pública" (2001:61). Em outras palavras, processos
produtivos que utilizam recursos naturais, implicam no ajuste entre dois fatores de produção que
são privados (capital e trabalho) e um que é público (recurso natural) o que atribui um papel
determinante tanto para as instituições públicas que ordenam, regulam e fiscalizam o uso dos
recursos naturais, quanto para as que formulam e executam políticas de desenvolvimento.
Em realidade, à medida em que avançou a industrialização no mundo, maior ficou a
distância entre a natureza e os meios através dos quais as pessoas obtém a sobrevivência. Em
conseqüência, poucos são os grupos sociais cuja razão de ser é a existência de recursos naturais e
cuja reprodução, atual e futura, dependa da manutenção destes recursos naturais. Em outras
palavras, grupos sociais cuja atividade produtiva implique na conservação dos recursos naturais.
Mas estes grupos sociais existem e estão, em muitos casos, localizados exatamente naqueles
lugares do mundo considerados estratégicos para o equilíbrio do planeta, como as florestas
tropicais. E antes mesmo da questão ambiental assumir a conotação que tem hoje, estes grupos já
resistiam ao processo de apropriação privada de recursos naturais de uso comum, propondo
modos alternativos de utilização da base material.
No período compreendido entre a Conferência de Estocolmo, em 1972, e a do Rio, em
1992, antes portanto da formulação do conceito de desenvolvimento sustentável, o fenômeno
original dos empates surgiu na Amazônia Ocidental. Um movimento social, de origem sindical, se
24 De acordo com T. Kuhn (1962) um novo paradigma surge na ciência toda vez que é difícil explicar novos dados
tendo como base velhas teorias. A noção de sustentabilidade inaugurou um novo paradigma na teoria do
desenvolvimento por se constituir em um conjunto explicativo novo de teorias, conceitos e categorias sobre um
processo antigo.
30
organizou em torno da ação direta contra os desmatamentos, da crítica à destruição dos recursos
naturais e da proposição de alternativas que combinassem distribuição da terra, equidade social e
valorização da floresta.
Ao mesmo tempo em que se constatava os limites ambientais para o crescimento
econômico, no âmbito da comissão da ONU, surgiram atores sociais contestando a destruição
dos recursos naturais. Eles teriam perdido a guerra e seriam mais um movimento de resistência se
não tivesse se estabelecido uma conexão entre os dois fatos: no cenário internacional, discutia-se
um novo papel para as florestas tropicais, a responsabilidade das instituições multilaterais em
relação ao impacto ambiental dos grandes projetos e a preocupação crescente com a participação
dos segmentos sociais afetados. Mas não haviam agentes sociais e econômicos legitimamente
representativos desses novos conceitos, uma vez que seus interlocutores eram cientistas e
ambientalistas. Os novos atores do desenvolvimento sustentável, contraditoriamente, passaram a
ser as populações pobres das florestas tropicais.
Os seringueiros são uma categoria específica de produtores rurais que realizam na prática
os preceitos da sustentabilidade porque sua própria reprodução depende da existência da floresta.
E fazem isso há mais de cem anos. Embora a extração de borracha nativa tenha sido substituída
pela produção cultivada, eles não desapareceram. Aos poucos a extração de borracha foi se
transformando em um dos componentes de uma economia florestal local diversificada e assim
sobreviveu até os dias atuais. Os seringueiros fazem parte, hoje, de um segmento de produtores
familiares que apresentam uma economia diversificada baseada em atividades agrícolas, florestais,
extrativas e de coleta, prestando, dessa forma, ainda que de forma involuntária, importantes
serviços ambientais.
Embora tivessem na floresta sua razão de existência e estivessem dispostos a defendê-la,
como estavam demonstrando nos empates, os seringueiros não tinham os meios necessários para
enfrentar a pressão econômica dos fazendeiros, nem jurídicos para defender seus direitos nos
tribunais, nem canais políticos para realizar a defesa pública dos seus interesses. Defendiam a
floresta onde haviam nascido e vivido e o território que seus antepassados haviam conquistado
pela luta armada.25 Mas não sabiam que a floresta que eles defendiam poderia ter algum valor para
outros segmentos sociais, a respeito dos quais nunca tinham ouvido falar, os ambientalistas.
Por uma coincidência de fatores até então inexistente, como a relevância das florestas
tropicais para a proteção do clima do planeta e o reconhecimento do papel da participação de
Como será detalhadamente apresentado no Capítulo Dois, os seringueiros participaram do movimento armado
conhecido como Revolução Acreana, que ocorreu entre 1899 e 1903, na região do Vale do Rio Acre, e que culminou
com a incorporação daquele território ao Brasil.
25
31
comunidades locais na gestão dos recursos naturais, os seringueiros e a floresta foram inseridos
no cenário dos desafios mais relevantes do final do século.
Uma aliança entre seringueiros da Amazônia e ambientalistas internacionais, mediada por
organizações não governamentais nacionais, realizada entre 1985 e 1988, trouxe elementos
inteiramente novos à discussão do desenvolvimento. E como toda aliança bem sucedida foi
construída a partir da identificação de interesse comuns entre grupos sociais estruturalmente
diferentes.
Embora influentes e apoiados pela opinião pública, os movimentos ambientalistas não
são detentores de capital nem de recursos naturais, não são proprietários de fatores de produção
como terra e trabalho, não estão envolvidos no processo produtivo, nem têm base social.26 Sua
capacidade de pressão deriva mais de argumentos científicos e de aliados políticos estratégicos do
que de pressão social ou econômica. Nenhuma entidade ambientalista brasileira ou internacional,
naquele momento, tinha trabalhadores entre seus militantes nem propunha mudanças no sistema
de distribuição de riquezas como requisito para a proteção do meio ambiente.
A emergência dos seringueiros defendendo a manutenção da floresta como meio de vida
e de trabalho, cujos membros arriscavam a própria vida em embates com forças econômicas
sustentadas pelo poder político nacional, foi um dado inteiramente novo na história dos
movimentos da sociedade civil do século vinte. Para os ambientalistas significava a existência de
uma base social e para os seringueiros a eficácia de um grupo de pressão, ambos voltados ao
mesmo objetivo, a defesa da floresta.
Um movimento social que defendia a floresta para sua própria sobrevivência, aliado a um
movimento ambiental que defendia o planeta para assegurar a sobrevivência da humanidade,
poderia ser fruto da imaginação perfeita de um visionário se não fosse o fato de que aquelas
pessoas, aquelas idéias e aquelas ações estavam juntas naquele espaço e naquele momento para
tornar realidade o que seria teoricamente improvável, até pouco tempo atrás.
O Êxito do Movimento
A discussão até aqui realizada, sobre o caráter dos movimentos sociais, as contradições
entre aspectos sociais e ambientais nas políticas públicas e os novos protagonistas do
desenvolvimento sustentável, estabelece o quadro de referências para afirmar a singularidade do
caso aqui estudado. Mas não explica as razões do êxito do movimento criado pelos seringueiros.
Para isso, alguns outros aspectos devem ser salientados como peculiares ao fenômeno estudado.
Em anos recentes grupos ambientalistas têm adquirido propriedades com o fim específico de protegê-las ou
mesmo de recuperá-las. Embora isso possa significar que são organizações que detém capital natural, não significa a
utilização dos recursos naturais como fator de produção.
26
32
Embora seja possível encontrar inúmeras situações sociais de conflito semelhantes às
estudadas aqui, não é tão freqüente o fato de um movimento social ter encontrado solução para
os confrontos nos quais estava envolvido e obter sucesso na materialização de suas propostas.
Por quê esta experiência deu certo? Como um grupo social, sem os atributos tradicionalmente
requeridos para protagonizar fatos políticos, conseguiu formular e influenciar as políticas
públicas? Qual o contexto que tornou possível a um grupo social excluído conquistar espaço para
suas reivindicações? Por quê suas propostas foram aceitas pelo poder público e se transformaram
em políticas? Em que medida estas propostas podem ser replicadas para outros contextos e
outros grupos sociais?
Duas hipóteses foram formuladas para dar conta destas questões: uma referente às
condições endógenas e outra às condições exógenas ao movimento social estudado.
Para explicar as causas endógenas, parte-se da hipótese de que a proposta de Reserva
Extrativista foi bem sucedida por ser um seringal sem patrão. Ou seja, por combinar, de forma
peculiar, elementos do antigo seringal tradicional, especialmente a estrutura e a forma de uso do
espaço natural e as peculiaridades da atividade econômica do extrativismo, com uma aspiração
histórica de justiça social e autonomia na produção, ou seja, com elementos novos relacionados à
forma de organização econômica e social, em especial a ausência da relação de produção típica do
seringal, que subordina fregueses a patrões.
Assim definido, o extrativismo é um sistema de exploração dos produtos da floresta que
se situa na fronteira entre a ecologia e a economia, cuja viabilidade ecológica tem sido
demonstrada ao longo do tempo e tem assegurado a continuidade dos ecossistemas florestais
(Conforme Lescure, Pinton e Emperaire 1996: 434 e segs). Estes autores estabelecem a distinção
entre coleta e extrativismo como atividades originárias de "dois tipos distintos de lógica
econômica, uma delas regulada pelo mercado externo e a outra pelas necessidades fundamentais
da unidade doméstica" (Op.cit:434). O extrativismo, por estar voltado para a venda de produtos
da floresta no mercado, esteve historicamente subordinado a uma modalidade de organização da
produção – o aviamento – visando a exploração econômica de um produto principal, a borracha.
Ao mudar a forma de exploração – como acontece nas Reservas Extrativistas – permanecem os
recursos extrativistas florestais, o que demonstra que não é o extrativismo que inviabiliza o
desenvolvimento da floresta (Homma 1989), mas sim a maneira como as pessoas se organizam
para explorá-lo.27
Com relação às causas exógenas do sucesso do movimento dos seringueiros, parte-se da
hipótese de que a proposta de Reserva Extrativista foi bem sucedida por ser uma área protegida
27
Estes aspectos serão detalhamente apresentados no Capítulo Três.
33
em benefício de populações pobres, habitantes de um ecossistema estratégico para o planeta. Ou
seja, ao representar uma solução para os conflitos entre pobreza e meio ambiente, a proposta dos
seringueiros inseriu a variável social no campo do debate ambiental, preenchendo, dessa forma,
uma lacuna existente no movimento ambientalista e nas políticas governamentais brasileiras, no
contexto nacional e internacional que antecedeu a Conferência do Rio, em 1992.
É preciso entender os elementos que tornaram possível a transformação de um "defeito"
– a ausência de poder político e de força econômica – em "virtude" – a defesa da floresta; ou seja,
a transformação de um obstáculo em uma oportunidade.28 Em outras palavras, é preciso
compreender de que maneira uma população pobre e sem poder político, que pleiteava como
solução para seus conflitos uma política pública não só inexistente mas que conflitava com dois
campos conceituais estabelecidos, conseguiu reverter interesses econômicos e políticos
radicalmente contrários a qualquer mudança. Tratava-se de ganhar um confronto em torno de
diferentes modalidades de uso dos recursos naturais e que era, no fundo, um confronto em torno
da propriedade da terra.
Foi na análise dos fatores exógenos ao movimento dos seringueiros, ou seja, nas
características e impasses do movimento ambientalista internacional, que foi possível encontrar
os elementos de comprovação desta hipótese. Entidades ambientalistas norte-americanas,
formadas por cientistas e cidadãos dos países desenvolvidos, estruturaram uma campanha em
defesa das florestas tropicais ameaçadas pelos desmatamentos, nos primeiros anos da década de
1980. O principal argumento que utilizaram era que a destruição estava sendo financiada pelo
dinheiro dos contribuintes dos países ricos, por meio do apoio financeiro que seus governos
davam aos bancos multilaterais de desenvolvimento, considerados agentes implementadores de
políticas que não respeitavam o meio ambiente. Alertavam tanto para o impacto ambiental destes
projetos como também para a dizimação de populações indígenas que habitavam as áreas onde
estavam sendo alocados os financiamentos.
Embora tivessem conseguido conquistar a adesão da opinião pública, de cientistas e de
políticos, especialmente nos Estados Unidos, faltava a estes movimentos inserção política no
interior dos países onde os projetos questionados estavam sendo implantados. Naquele
momento, os movimentos ambientalistas nos países em desenvolvimento, com os quais
pudessem fazer alianças, ainda eram incipientes. E as populações afetadas pelos projetos não
estavam organizadas e, em conseqüência, não tinham poder de influência sobre as políticas
públicas, especialmente porque regimes militares ainda predominavam na América Latina, onde
os projetos de desenvolvimento estavam sendo implantados.
Imagem formulada pelo antropólogo Beto Ricardo no Seminário Planejamento e Gestão do Processo de Criação
de Reservas Extrativistas na Amazônia, realizado pelo IEA em Curitiba, em outubro de 1988.
28
34
De outro lado, embora o movimento dos seringueiros também estivesse conquistando
aliados entre cientistas sociais, antropólogos, jornalistas e políticos, no Brasil, não conseguia
incluir no debate outros segmentos excluídos da população, como os trabalhadores urbanos, que
estavam naquele momento organizando lutas específicas contra o regime militar.
A viabilidade política e econômica da proposta das Reservas Extrativistas precisava de
uma conexão entre duas realidades – o seringal e os movimentos ambientalistas - e entre atores
sociais distintos que não se conheciam. A eficácia dessa articulação entre fatores internos e
externos à realidade amazônica, dependia de um elo de ligação entre ambos, que foi dado pela
liderança de Chico Mendes, o tradutor e articulador da ligação entre as duas realidades.
A Liderança de Chico Mendes e o Significado da Floresta
Parte do sucesso alcançado pelo movimento dos seringueiros deveu-se ao estilo de
liderança exercido por Chico Mendes em vida e parte decorreu da decisão que tomou de
enfrentar seus opositores e não recuar às ameaças que sofria, levando-o a um confronto final que,
ao invés de sepultar suas propostas alçou-as à consideração mundial. O objetivo que lutou para
alcançar em vida resultou, inesperadamente, da decisão de se manter na guerra que o levou à
morte.
A peculiar liderança de Chico Mendes ficou evidente depois de seu assassinato. Todos os
movimentos sociais, sindicais e ambientais reivindicaram formas de identificação com alguém que,
embora fizesse parte de suas fileiras, era desconhecido e ignorado até então. Todos os partidos
políticos de esquerda, sem exceção, disseram que Chico era um dos seus. E várias personalidades
públicas enfatizaram os laços anteriores que tinham com ele, embora não tivessem sido assim tão
explícitos no passado. De fato, estavam sendo sinceros. Com uma diferença sutil. Chico não era
parte exclusiva e excludente de nenhuma dessas organizações. Chico era, realmente, parte de todas
elas e as congregava em torno de suas próprias idéias, metas e objetivos. Com cada uma, partilhava
partes de um todo que tinha bem construído em sua mente.
Parte-se da constatação de que a história de Chico Mendes é um fenômeno político, social
e ambiental original, que só pode ser entendido resgatando quatro vertentes da realidade do país,
que deram origem à sua peculiar identidade social e política:29 a de líder seringueiro em busca do
resgate de injustiças históricas cometidas contra sua categoria profissional; a de dirigente
sindical defendendo direitos de posse e impedindo a derrubada da floresta; a de político de
esquerda intermediando conflitos entre populações locais, instituições nacionais e organismos
O conceito de identidade social e política é utilizado aqui para ressaltar, neste contexto, as características pessoais
do líder Chico Mendes e não as que foram construídas coletivamente pelo movimento social e que deram origem a
identidades coletivas, como se verá no decorrer do trabalho.
29
35
multilaterais e a de ambientalista propondo um novo modelo de desenvolvimento para a
Amazônia, baseado no valor dos seus recursos naturais.
Cada uma destas identidades sociais atribuídas a Chico Mendes, responde a um momento
da história do Acre e da Amazônia. A de líder seringueiro, está relacionada com a constituição
dos seringais tradicionais na Amazônia e a histórica luta pela mudança nas relações de trabalho,
caracterizadas por um regime de subordinação nas relações entre seringueiros e seringalistas,
conhecido como o sistema de aviamento. Será relatada a partir da reconstituição histórica das
características dos seringais tradicionais do Acre e é fundamental para entender as conexões. A de
dirigente sindical, corresponde ao período de formação dos sindicatos de trabalhadores rurais
no Acre, em 1975 e 1976, e às iniciativas dos empates visando impedir a derrubada da floresta.
Está vinculada a dois aspectos da realidade das lutas sociais no Brasil e que em algumas regiões da
Amazônia aparecem articulados: os direitos de posse e a defesa da floresta.
Como líder seringueiro, dirigente sindical e membro fundador do Partido dos
Trabalhadores no Acre, portanto um político de esquerda, Chico Mendes foi o principal
interlocutor durante as discussões em torno do impacto ambiental e social do asfaltamento da BR
364 no trecho Porto Velho – Rio Branco. Ao denunciar, nos Estados Unidos, junto ao Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a membros do Congresso, o descumprimento, pelo
Brasil, dos acordos assinados em torno da estrada, influenciou a decisão tomada pelo BID, de
suspensão do desembolso de recursos financeiros, ocorrida no ano de 1987. Sua posição o
colocou como ícone do novo ambientalismo internacional que passou a defender os direitos
dos povos da floresta de participar dos programas de desenvolvimento, política que foi
incorporada pelos organismos multilaterais de financiamento a partir de então.
Seringueiro sindicalista e político ambientalista, ou ambientalista seringueiro e sindicalista
político, são identidades sociais atribuídas a Chico Mendes, que mutuamente se complementam e
que resumem a história de uma geração de trabalhadores rurais da Amazônia que este estudo
pretende descrever e analisar. As identidades sociais são sínteses de comportamento individual e
de ação pública, que conectam as pessoas aos contextos históricos concretos em que vivem e que
permitem o exercício analítico de entendê-las.
O protagonismo30 político exercido por Chico Mendes está diretamente associado, neste
estudo, à sua identidade social, construída no decorrer das diferentes etapas de sua vida pública e
dos diferentes processos nos quais se envolveu como líder de trabalhadores rurais. Sua projeção
resultou do fato de liderar um movimento contra os desmatamentos na Amazônia e criticar os
30
Utilizo a palavra protagonismo, no lugar de protagonista, para indicar forças sociais e não indivíduos, e a influência
que exercem sobre acontecimentos políticos.
36
organismos multilaterais que financiavam a destruição da floresta. Essa identidade, em princípio,
não o diferenciaria de um ativista ambiental urbano de classe média nem seria suficiente para
projetá-lo internacionalmente. Foi o fato de Chico Mendes ser um seringueiro que o diferenciou
dos demais líderes que defendiam as mesmas idéias, no mesmo momento.
O novo estava em ser um trabalhador rural; em ser um trabalhador rural da Amazônia;
em ser um trabalhador rural amazônico criticando a destruição da floresta por razões de
sobrevivência econômica e social de sua classe. As propostas que defendia, embora pudessem ser
iguais às de um ambientalista, resultavam de sua vivência e de sua história como seringueiro, ou
seja, da relação produtiva que estes trabalhadores mantém com a floresta. Eram, portanto, antes
de tudo, econômicas e sociais. A identidade social fundamental de Chico Mendes era, assim, a de
ser seringueiro e sintetizar, de forma peculiar, em sua história de vida, a história do extrativismo
na Amazônia. E a credibilidade que conquistou, resultou do fato de ser representante de
trabalhadores rurais defendendo a Amazônia contra os desmatamentos e de terem uma proposta
para ser apresentada como alternativa aos conflitos fundiários, no contexto das críticas ao modelo
de desenvolvimento vigente na região.
Uma liderança capaz de estabelecer os elos entre aspectos internos e externos da realidade
dos seringueiros era um fator necessário mas não suficiente para que o movimento desse certo.
Além disso, era preciso haver uma relação de sentido entre a realidade dos conflitos internos e
das propostas externas. Esse significado foi sintetizado na construção do conceito de uso
sustentável da floresta por populações locais, que passou a ser defendido, como um consenso,
tanto pelos protagonistas internos quanto pelos externos.
Foi a construção de um objetivo comum entre seringueiros e ambientalistas que permitiu
a realização de uma aliança estratégica que mudou a percepção do que deveria ser o
desenvolvimento da Amazônia.
Mas a floresta que ambos defendiam, não era, inicialmente, a mesma. A defesa que o
movimento ambientalista internacional fazia das florestas tropicais não envolvia questões
sociais.31 Para eles, quanto menor a ocupação na floresta mais eficiente seria sua proteção. Por
outro lado, a defesa que o movimento dos seringueiros fazia da floresta não envolvia questões
ambientais. Para eles, a seringueira e a castanheira eram importantes porque nasceram e criaram
seus filhos vivendo da venda dos produtos destas árvores.
O objetivo comum construído – a defesa das florestas tropicais para as comunidades
tradicionais que delas dependem para sobreviver – relacionou, pela primeira vez na história, a
Em geral, o movimento ambientalista internacional continua não se envolvendo com questões sociais, embora suas
representações no Brasil tenham se identificado com o movimento dos seringueiros, dos indígenas e de agricultores
familiares, tendo uma agenda claramente socioambiental. É o caso, por exemplo, dos programas do Brasil de
organizações como Amigos da Terra, Greenpeace e WWF.
31
37
proteção do meio ambiente a mudanças no sistema de distribuição de terras e de riquezas e deu à
questão ambiental um nível de inserção social que nunca estivera antes presente em nenhum
outro país do mundo.
Esse protagonismo identificado no movimento dos seringueiros, adquiriu, inicialmente,
valor simbólico e foi apropriado no discurso; mas, na medida em que foi possível concretizar esse
valor simbólico em alianças efetivas, que mudaram as políticas de acesso aos recursos naturais,
adquiriu também poder simbólico. O símbolo estava representado na idéia de que, ao contrário do
que informavam inúmeros relatórios técnicos, os pobres não necessariamente agrediam o meio
ambiente para sobreviver. Se dependessem dele para viver, também sabiam defendê-lo. E foi a
experiência secular dos seringueiros com a natureza e com a floresta que deu veracidade à
proposta dos ambientalistas e assegurou legitimidade.
Em síntese, para superar os obstáculos era preciso buscar aliados e construir um campo
conceitual comum. Essa relação de significado que se estabeleceu entre o movimento dos
seringueiros e o movimento ambientalista internacional foi possível em função das características
peculiares da organização da produção nos seringais e do contexto favorável que resultou das
discussões sobre desenvolvimento sustentável, em preparação para a Conferência do Rio, abrindo
espaços para a participação de segmentos excluídos no debate ambiental, em nível nacional e
internacional.
Assim, a luta dos seringueiros era, em primeiro lugar, de caráter sindical, com uma
conotação muito definida de luta por justiça social. A identidade ambiental do movimento surgiu
depois, fruto das alianças externas que realizaram com segmentos do ambientalismo
internacional. Mas essa identidade somente foi possível porque já havia, anterior e
historicamente, uma vinculação orgânica com a floresta, derivada da vida e do trabalho nos
seringais. A identidade foi possível, também, em decorrência dos confrontos que desencadearam,
por iniciativa própria, contra os desmatamentos, pelo fato da derrubada de suas colocações ameaçar
direitos de posse adquiridos e transmitidos, de geração em geração, por famílias nascidas e criadas
na floresta. Eles já tinham, portanto, vínculos definidos com a natureza e lutavam para não
perdê-los, vínculos derivados da relação produtiva que estes trabalhadores mantém com a
floresta.
Ao longo deste estudo vai se comprovar que o movimento dos seringueiros preencheu
uma lacuna que faltava ao movimento ambientalista: o componente social e econômico para a
defesa das florestas tropicais. Embora não tivessem poder econômico nem força política, os
seringueiros detinham algo que estava sendo demandado no debate internacional: um argumento
social para a defesa das florestas tropicais. Ou seja, o que estava sendo demandado, mesmo que
38
os agentes desse debate não tivessem consciência antecipada disso, era um protagonismo dos
pobres no debate ambiental. De outra ótica, o apoio desse grupo internacional e a consciência
que foi se formando em torno dos problemas ambientais no Brasil, preencheram a falta de poder
econômico e de força política do movimento dos seringueiros. Foi a combinação de ambos que
permitiu que uma política pública pudesse ser socialmente construída.
Metodologia
Este estudo faz uma etnografia dos conflitos que emergiram na década de 1970 no Acre e
das diferentes etapas que os seringueiros de Xapuri percorreram, na história que construíram para
alcançar seus objetivos.
Como se verá no decorrer do trabalho, pode-se destacar seis etapas diferenciadas
percorridas pelos seringueiros até chegar na proposta de Reserva Extrativista, no período entre
1973 e 1986 e mais quatro até o reconhecimento público da proposta, entre 1987 e 1988.
A primeira ocorreu ainda no contexto dos seringais tradicionais e foi voltada para a busca
de justiça nas relações de trabalho e de autonomia no processo de comercialização de borracha; a
segunda foi uma luta essencialmente social e tinha como objetivo impedir a expulsão dos
seringueiros de suas posses assim que os seringais começaram a ser vendidos para fazendeiros; a
terceira foi uma luta sindical e surgiu quando os seringueiros descobriram que eram posseiros e
tinham direito a indenizações pelas benfeitorias que haviam realizado em suas colocações; a quarta
ocorreu quando um grupo de seringueiros de Brasiléia decidiu que não queria sair das colocações e
resolveu empatar o fator determinante das expulsões, os desmatamentos; a quinta já estava no
campo da reforma agrária, quando os seringueiros decidiram não somente evitar a expulsão, mas
se recusaram a aceitar indenizações e intensificaram os empates buscando a regularização das
colocações como expressão do direito de posse e defesa da especificidade do trabalho extrativista; a
sexta foi a descoberta de que à semelhança dos indígenas, os seringueiros também poderiam ter
áreas reservadas para o extrativismo, o que os levou à proposta da Reserva Extrativista e a uma
organização nacional orientada para defendê-la, inaugurando uma categoria nova no rol das
unidades de conservação que permitia a presença humana no rol de áreas protegidas.
A sétima etapa foi a elaboração de uma proposta, no âmbito da Política Nacional de
Reforma Agrária, que reconheceu a especificidade da posse extrativista e permitiu assentamentos
diferenciados dos demais; a oitava foi a percepção de que a concretização da proposta de Reserva
Extrativista estava ameaçada pelos projetos de infra-estrutura financiados pelos bancos
multilaterais e a busca de aliados junto a estes organismos para fazer face à oposição local e
nacional à proposta; a nona foi a busca de reconhecimento internacional para o ineditismo do
movimento dos seringueiros por meio de prêmios e filmes que projetaram Chico Mendes no
39
exterior; a décima foi a aliança com o movimento indígena e o ambientalismo internacional
associando a defesa dos meios de vida dos seringueiros à campanha internacional de proteção das
florestas tropicais.
Outra cronologia tão relevante quanto esta também pode ser reconstituída para o período
que se seguiu ao seu assassinato, até a transformação das Reservas Extrativistas em uma política
pública e sua institucionalização junto ao órgão ambiental de meio ambiente, de 1989 a 1990.
Estas etapas têm peculiar relevância para os objetivos desta Tese porque evidenciam as
inúmeras passagens – feitas de ações coletivas e de reflexões analíticas – entre um momento e
outro e a forma como os seringueiros foram se transformando em protagonistas e interlocutores
de segmentos sociais e culturais com os quais não tinham qualquer tipo de envolvimento
econômico, social ou político.
Em síntese esta política - de criação de áreas protegidas para o uso sustentável de
populações tradicionais - foi exitosa politicamente, porque criou um mecanismo institucional de
resolução de conflitos em torno da terra e da floresta; socialmente, porque assegurou meios de
vida para as gerações atuais e futuras; culturalmente, porque respeitou formas tradicionais de uso
dos recursos naturais; e, ambientalmente, porque impediu o avanço dos desmatamentos.
Este resultado foi alcançado por meio da combinação de fatores endógenos e exógenos
ao movimento dos seringueiros, tais como a história de luta pela incorporação do Acre ao
território nacional; a relação econômica dos seringueiros com a floresta; a busca de base social de
apoio para campanhas em defesa das florestas tropicais; a atuação no campo estratégico dos
empréstimos internacionais para a Amazônia; e a identificação do líder sindical Chico Mendes
como símbolo ambiental após o seu assassinato, no contexto que antecedeu a Conferência do Rio
em 1992. O resultado foi a transformação de um problema local em questão de Estado e em
tema internacional, alcançado por meio de uma estratégia política de construção de alianças entre
grupos sociais diferenciados.
Foram ações sóciopolíticas construídas por trabalhadores rurais extrativistas, enquanto
atores sociais coletivos, articuladas em cenários particulares da região amazônica e em uma
conjuntura econômica de conflitos sócioambientais, que permitiu a criação de um campo político
de força social na sociedade civil e culminou com a inserção das questões sociais nas políticas
ambientais e de desenvolvimento.
Investigar as origens da idéia de Reserva Extrativista e os fatores históricos que
permitiram que ela fosse formulada; explicitar o papel das entidades organizadas pelos
seringueiros e do protagonismo exercido por Chico Mendes; contextualizar as diferentes forças
sociais e políticas que atuaram no surgimento e no desenvolvimento dessa experiência; identificar
40
os elementos que diferenciaram este de outros movimentos sociais e os fatores que facilitaram a
aproximação com segmentos do movimento ambientalista, apontando os limites e as
possibilidades que a proposta apresenta face aos avanços recentes das ciências sociais e
ambientais, é o que me proponho a fazer neste trabalho.
Estrutura da Tese
Esta Tese está estruturada para responder às perguntas e hipóteses formuladas nesta
Introdução, e foi organizada em cinco capítulos e a Conclusão.
Quatro conjunto de questões orientaram a realização deste estudo. O primeiro refere-se
ao contexto histórico do processo. Por que esse movimento surgiu no Acre? Os conflitos que
ocorreram na década de 1970 foram influenciados pelas peculiaridades da história de ocupação
daquela região? Como explicar a permanência dos seringueiros se a borracha da Amazônia havia
perdido importância no mercado? O Capítulo Dois, denominado O Contexto Histórico dos
Conflitos, abrange o período de 1870 a 1970, e tem como objetivo investigar as origens e os
fatos históricos que influenciaram a emergência dos conflitos entre seringueiros e fazendeiros,
ocorrido na década de 1970, no Estado do Acre. Os fatos selecionados destacam a conquista do
território e as políticas governamentais que permitiram a manutenção da atividade econômica da
borracha, após a queda da demanda externa por essa matéria-prima.
O segundo conjunto de questões diz respeito à identidade social dos protagonistas. Por
que esse movimento surgiu entre os seringueiros? As características das lutas desenvolvidas pelos
seringueiros na década de 1970 foram influenciadas pelas peculiaridades das relações sociais
predominantes nos seringais? Se o sistema de organização da produção no extrativismo da
borracha – a relação patrão-freguês – mantinha os seringueiros em condição de subordinação, por
que lutavam para permanecer nos seringais? O Capítulo Três, Os Seringueiros e o Aviamento,
abarca o mesmo período, 1870-1970, mas tem por objetivo investigar a gênese e a estrutura de
funcionamento da empresa seringalista, explicitando as inter-relações entre os aspectos espaciais e
naturais e a organização sócio-econômica dos seringais, de modo a entender as causas
econômicas, ambientais e sociais subjacentes aos conflitos, contextualizando assim a formulação
da proposta de Reserva Extrativista.
O terceiro conjunto de questões refere-se às características dos conflitos. Contra quem os
seringueiros se confrontavam? As características dos conflitos e das reações dos seringueiros
foram influenciadas por agentes externos como organizações religiosas, sindicais e políticas? Se
os conflitos pela posse da terra se generalizaram na Amazônia na década de 70, por que só os
seringueiros do Acre inventaram os empates às derrubadas? O Capítulo Quatro, Conflitos pela
41
Terra e pelos Recursos, analisa a primeira etapa da luta dos seringueiros na qual se
confrontaram com seringalistas pela busca de autonomia na comercialização da borracha e as
etapas seguintes, nas quais resistiram às expulsões provocadas pelos fazendeiros, até se
organizarem nos empates contra as derrubadas. O período de tempo coberto pela análise é de doze
anos, de 1970, momento em que teve início a venda dos seringais, a 1982, ano em que Chico
Mendes encerrou seu mandato de Vereador e que marcou a transição para sua eleição como
Presidente do STR de Xapuri, ocorrida em maio de 1983. Foi nesse contexto que Chico Mendes
surgiu e se consolidou como líder sindical e político dos seringueiros.
O quarto conjunto de questões, diz respeito às especificidades das propostas. O que
queriam os seringueiros? O movimento dos seringueiros era uma luta por justiça social, por
reforma agrária ou pela defesa do meio ambiente? Como os seringueiros se envolveram com as
questões do desenvolvimento regional e o movimento ambientalista internacional? Se haviam
desmatamentos em toda a área de expansão das empresas agropecuárias na Amazônia, na década
de 1970, porque só os seringueiros organizaram um movimento de defesa da floresta? Se haviam
políticas governamentais para a reforma agrária – os projetos de colonização – e para o meio
ambiente – as unidades de conservação - por que os seringueiros propuseram as Reservas
Extrativistas? O Capítulo Cinco, Defesa da Floresta, analisa as etapas propositivas da luta dos
seringueiros durante as quais organizaram escolas, cooperativas, influenciaram as políticas
internacionais de financiamento, criaram uma organização nacional e uma proposta de acesso e
de uso dos recursos florestais. E evidencia como essas propostas se transformaram em política
pública depois do impacto do assassinato de Chico Mendes.
Este estudo encerra identificando, nas Conclusões, uma nova questão: a inserção do
debate sobre sustentabilidade nas políticas econômicas em geral e, em especial, para a Amazônia,
é condição essencial para que experiências como a das Reservas Extrativistas não se transformem
em ilhas protegidas cercadas de conflitos. E esta inserção deve considerar, prioritariamente, o
papel despenhado pelas populações tradicionais na manutenção dos estoques de recursos naturais
e nos serviços ambientais prestados ao planeta e à humanidade. Essa parece ser a compreensão
que têm os movimentos sociais que hoje lideram esse debate na região.
42
2.
O CONTEXTO HISTÓRICO DOS CONFLITOS
Os governos anteriores diziam que o Acre tinha terra barata, farta... O único
culpado [dos conflitos] a meu ver, é também o próprio governo que foi lá levar a
campanha, uma propaganda, que no Acre tinha terra farta, barata, mas não disse
que lá dentro tinha os trabalhadores posseiros, que habitam aquela terra, que foram
eles que realmente conquistaram essa terra para o Brasil, pode-se dizer, foram os
nordestinos, os seringueiros, que se transformaram em soldados, de uma hora para
a outra, prá defender, quer dizer, tomar, conquistar essa terra que pertencia aos
bolivianos. Eles julgam, por isso, eles se julgam donos da terra, porque foram seus
antepassados que lutaram por ela.
Entrevista de Chico Mendes
a Mary Allegretti
Maio de 1981, Rio Branco, Acre
O Acre foi o último território incorporado ao Brasil através da expansão econômica de
suas fronteiras, estabelecendo o traçado geográfico que o país tem atualmente.32 Vários fatores
distinguem esse processo na história de definição dos limites territoriais do país: a anexação do
Acre foi antecedida pela criação de um estado independente e pela eclosão de um conflito
armado entre acreanos e bolivianos, no contexto de um contrato de arrendamento do território
em disputa, assinado pela Bolívia com um consórcio anglo-americano, e foi concluída por
intermédio de uma negociação diplomática baseada na compra, pelo Brasil, da área em litígio,
além de compensações à Bolívia e ao consórcio.
Estes fatos ocorreram entre 1898 e 1904 e os protagonistas, tanto do movimento de
independência, quanto do conflito armado, se auto-denominaram "revolucionários", terminologia
que foi mantida pela historiografia oficial do Estado do Acre.33 Por esta razão, neste estudo, o
Após a independência, ficaram pendentes os limites do Brasil com os novos países sul-americanos. No início da
República, sob a coordenação do Barão do Rio Branco, foram resolvidas questões fronteiriças com a Argentina
(1895), com a França (1900), com a Bolívia (1903) e com o Peru (1909). A anexação do Acre ampliou em 152 mil
km2 o território brasileiro.
33 Motivados pelos eventos relativos ao centenário da Revolução Acreana, em 2002, historiadores acreanos ou
associados ao Acre, têm procurado contextualizar as razões que levaram à caracterização destes fenômenos como
"revolução", conceito que não poderia ser utilizado, segundo a tradição da ciência política, para classificar um
conflito localizado que não alterou a estrutura social. Segundo estes historiadores, inicialmente o termo foi utilizado
pelos protagonistas e, quando o conflito alcançou repercussão nacional, foi adotado por jornais e editorialistas. A
32
43
termo Revolução Acreana cobre todo o período, em suas diferentes fases, e não somente o conflito
armado.
A disputa pelo território do Acre somente pode ser entendida no contexto da expansão
da demanda por borracha, matéria-prima estratégica na Segunda Revolução Industrial, em um
momento em que os preços estavam em ascensão e aquele território era um dos mais produtivos
de toda a região amazônica, desencadeando uma disputa pelo controle dos altos retornos
financeiros que a atividade proporcionava.
Tendo como referência a história da Revolução Acreana e da expansão e queda da economia
da borracha, este capítulo tem como objetivo analisar duas questões relacionadas na Introdução e
que emergem desse contexto: os conflitos que ocorreram na década de 1970 foram influenciados
pelas peculiaridades da história de ocupação daquela região? Como explicar a permanência dos
seringueiros nos seringais, durante mais de cem anos, se a borracha da Amazônia perdeu
importância no mercado nas primeiras décadas do século passado? Procura-se responder a estas
questões por meio da explicitação da origem histórica dos conflitos e da relação que apresentam
com os fenômenos da conquista da fronteira no contexto da expansão da economia extrativista
da borracha. Esta Tese dedicou um capítulo à história do Acre para evidenciar aspectos
específicos à ocupação e incorporação daquela região ao Brasil que ajudam a contextualizar os
fenômenos recentes.34
O período de tempo coberto pela análise tem como referência inicial o ano de 1870 que
se caracterizou pela intensificação da migração nordestina para a Amazônia, mão-de-obra atraída
para a atividade econômica da borracha. A referência final é o ano de 1970, ou seja, um século
depois, quando surgiram as principais modificações na economia e na estrutura social originadas
no período anterior, como conseqüência de uma política governamental de incentivo a atividades
agropecuárias.
Dois elementos históricos foram destacados pela contribuição que apresentam para a
compreensão dos fenômenos contemporâneos e constituem os tópicos abordados neste capítulo.
O primeiro, refere-se ao fato de que foi no bojo da expansão da economia da borracha sobre o
território amazônico, no período entre 1870 e 1912, que ocorreu a incorporação ao Brasil do
historiografia acreana apenas manteve, sem análise crítica, a mesma denominação (Alves de Souza 2002; Neves
2002). Segundo Almeida (2002) seria mais adequado denominar os episódios de "insurreição", que foram chamados
de "revolução" num sentido local, uma vez que nunca esteve em questão a estrutura social e sim a quem os patrões
locais pagariam impostos. Por estas razões, neste estudo os termos são registrados em itálico, como outros, no
decorrer do texto, para evidenciar o significado local da expressão.
34 É importante deixar claro que esta Tese não tem a pretensão de trazer elementos novos sobre a complexa história
acreana mas, unicamente, contextualizar os fatos do presente nos nexos que apresentam com o passado. Seria
necessário realizar uma pesquisa mais aprofundada sobre o papel dos seringueiros na Revolução Acreana e a influência
daqueles fatos sobre a organização do trabalho nos seringais, nos momentos posteriores, para elucidar
completamente alguns pontos aqui levantados.
44
território que hoje forma o Estado do Acre, através da Revolução Acreana, primeiro tópico do
capítulo. Esse fato remete ao segundo, Políticas para a Borracha, que aborda as diferentes
iniciativas governamentais de proteção à borracha amazônica, surgidas a partir da segunda década
do século passado e mantidas, com especificidades, conforme as diferentes conjunturas
econômicas, por mais de cinqüenta anos, até serem modificadas estruturalmente, nos últimos
anos da década de 1960.
Este capítulo analisa, assim, um período de cem anos35, durante o qual o Acre foi
incorporado ao Brasil em conseqüência da expansão da economia da borracha, manteve e
consolidou a ocupação do seu território e, apesar das crises que afetaram a produção da borracha
nativa, políticas governamentais implantadas no decorrer do período analisado, asseguraram um
certo nível de continuidade que somente foi quebrado na década de 1970, como veremos nos
capítulos seguintes. É essa história que permite que se compreenda a existência de um
movimento organizado por seringueiros, nas últimas décadas do século passado.
2.1.
A REVOLUÇÃO ACREANA
A Revolução Acreana colocou em confronto, nos últimos anos do século XIX e primeiros
do século XX, setores econômicos, sociais, políticos e governamentais da Bolívia e do Brasil,
tendo como foco de disputa o controle sobre uma das áreas mais importantes para a expansão da
economia da borracha naquele momento. De um lado, tratados internacionais definiam aquele
território como boliviano e, embora a Bolívia não tivesse conseguido estabelecer uma estrutura
política e administrativa na área, seringalistas daquele país procuravam expandir suas atividades
em direção aos ricos seringais ali existentes; de outro, na busca por novas áreas de exploração do
látex, migrantes nordestinos foram implantando seringais nos principais afluentes do alto rio
Amazonas, o Juruá e o Purus, e em tributários como o rio Acre.
Mas a área objeto de disputa entre brasileiros e bolivianos era inteiramente ocupada por
diferentes sociedades indígenas quando esse processo teve início. Assim, os novos ocupantes
confrontaram-se não somente com um ambiente desconhecido e inóspito, mas com a reação das
populações indígenas que viviam nos espaços naturais nos quais predominava a seringueira. As
unidades de produção de borracha foram formadas a partir da dizimação dos índios e/ou da sua
inserção forçada nas atividades produtivas.36
35 Referências anteriores a esta data serão feitas quando forem consideradas relevantes para a compreensão do tema
central.
36 Como em toda a Amazônia, as sociedades indígenas que habitavam a região dos rios Juruá e Purus foram
dizimadas durante a expansão da atividade extrativista da borracha, em um confronto aberto com os seringueiros,
financiados pelos seringalistas para permitir a implantação dos seringais. Nas décadas que se seguiram à queda da
atividade na região, remanescentes dos grupos originais foram incorporados às empresas seringalistas. Nas últimas
45
O Brasil reconhecia os tratados internacionais vigentes e autorizou a Bolívia a instalar um
posto de arrecadação de impostos sobre a comercialização da borracha que ali era produzida por
brasileiros. Interessada na manutenção dos benefícios fiscais oriundos do controle comercial que
exercia sobre a região, a administração provincial do Amazonas decidiu apoiar um movimento de
autonomia liderado pelos seringalistas acreanos. Durante sete meses, o Estado Independente do
Acre, presidido por Luiz Galvez, editou leis, criou instituições e procurou organizar as atividades
econômicas e a vida social na região.
Enquanto eram realizadas missões de reconhecimento do traçado das nascentes do rio
Javari, que definiria as fronteiras entre os dois países, a Bolívia tomou a iniciativa de organizar um
sindicato anglo-americano, o Bolivian Syndicate, visando o arrendamento do território em questão,
como um meio de fortalecer sua capacidade de controle sobre a região. A decisão do governo
boliviano de ocupar militarmente o território, associada à indiferença do poder central no Brasil,
em relação ao que ocorria na região do Acre, adicionou os elementos que faltavam para deflagrar
um confronto armado.
Assim, a constituição da sociedade acreana deu-se em um contexto de conflitos pela
conquista de um território, em oposição a três forças sociais e políticas simultaneamente: as
populações indígenas, interesses econômicos bolivianos, e o governo federal. Um conflito étnico,
econômico e político.
O que se pretende, neste capítulo, é identificar nos fatos históricos aqueles elementos que
contribuem para explicar os fenômenos recentes. Nesse sentido, a análise da Revolução Acreana
está associada aos seguintes fatores: (i) o surgimento e a expansão da atividade econômica de
coleta do látex, matéria-prima existente em toda a calha do rio Amazonas e seus afluentes; (ii) a
imprecisa definição de fronteiras entre Brasil e Bolívia, exatamente no triângulo formado entre os
rios Madeira e Javari, favorecendo tanto a ocupação espontânea quanto os conflitos que dela
decorreram; (iii) os interesses econômicos em torno das rendas advindas da exploração da
borracha versus o direito sobre o território, consagrado em tratados internacionais; (iv) as
características peculiares do Estado Independente do Acre, sob a gestão do espanhol Luiz Galvez
Arias; (v) a reação regional e nacional a um contrato de arrendamento do território acreano,
firmado pela Bolívia com um sindicato anglo-americano, o Bolivian Syndicate, que desembocou na
Revolução Acreana e (vi) a determinação do presidente Rodrigues Alves e as diligências
diplomáticas do Barão de Rio Branco que levaram à incorporação daquele território ao Brasil,
pelo Tratado de Petrópolis.
décadas do século passado conseguiram reconquistar parte dos seus antigos territórios, que foram demarcados e
estão assegurados por lei. Este trabalho não analisa as relações entre as sociedades indígenas e a ocupação do
território do Acre, por entender que os estudos especializados tratam o tema de forma muito competente. Consultar
Aquino (1977) e Aquino e Iglesias (1994).
46
O mapa de atores sociais era formado, de um lado, pelos representantes da sociedade
regional envolvida com a produção e comercialização da borracha: aviadores37, comerciantes,
seringalistas e seringueiros, apoiados pelo governo do Amazonas; de outro, os governos boliviano
e brasileiro, ambos representados pelos seus Ministérios de Relações Exteriores, durante a
primeira fase e, depois, pelos presidentes da Bolívia e do Brasil, José Manoel Pando e Rodrigues
Alves. O contexto do conflito era a disputa em torno da crescente e significativa renda gerada
pela produção e exportação da borracha.
O tema foi subdividido em seis períodos: o primeiro, aborda a ocupação dos afluentes do
rio Amazonas, especialmente dos rios Juruá e Acre, no processo de expansão da atividade
extrativa da borracha, entre 1877 e 1912; o segundo, analisa a questão da disputa da fronteira
entre Bolívia e Brasil, no contexto dos tratados internacionais e dos interesses locais, regionais e
nacionais envolvidos, entre 1867 e 1895; o terceiro, descreve o controle daquele território pela
Bolívia, entre 1898 e 1899; o quarto, aborda o período no qual prevaleceu o Estado Independente
do Acre e a tentativa de arrendamento da área feita pelo Bolivian Syndicate, entre 1899 e 1900; o
quinto, trata dos conflitos armados entre os dois países, ocorridos entre 1901 e 1903; e o sexto
apresenta a negociação diplomática efetivada pelo presidente Rodrigues Alves e pelo Barão do
Rio Branco que desembocou na criação do Território do Acre em 1903 e em sua anexação ao
Brasil em 1904.
2.1.1
Expansão da Economia da Borracha
Os conflitos que desembocaram na Revolução Acreana e na incorporação daquele território
ao Brasil, devem ser entendidos no contexto da ocupação histórica da Amazônia decorrente da
expansão da economia da borracha. Duas fases devem ser distinguidas: da coleta intermitente de
especiarias à atividade organizada de extração, transformação e comercialização da borracha.38 O
primeiro momento, no contexto do Brasil Colônia, caracterizou-se pela exportação de produtos
exóticos para a Europa e pelas expedições exploratórias, voltadas para demarcar a presença
portuguesa e ampliar o conhecimento científico da região. O segundo, no período de transição
para a República, caracterizou-se pela implantação de empresas seringalistas organizadas em
torno da coleta e transformação do látex da seringueira em borracha.
37 Casas Aviadoras eram empreendimentos comerciais localizados em Manaus e Belém que supriam o aviamento, ou
seja, o crédito necessário para aquisição das mercadorias de consumo utilizadas nos seringais em adiantamento à
venda da borracha, financiando, assim, a produção e a comercialização da borracha. "Aviar, na Amazônia, significa
fornecer mercadorias a crédito" (Santos 1980:159).
38 A borracha foi comercializada, inicialmente, como mais um produto exótico dentre as demais drogas do sertão, até se
tornar exclusiva e superar todos os demais.
47
A expansão da economia da borracha está diretamente relacionada com a descoberta de
novos usos industriais para o látex e com a produção em série de novas mercadorias que
passaram a utilizar esta matéria-prima, especialmente a indústria automobilística. As qualidades
principais do látex da seringueira, a elasticidade e a impermeabilidade, transformaram sua coleta
em uma das atividades mais rentáveis no contexto de expansão da industrialização européia e
norte-americana e um componente essencial das novas e mais importantes descobertas do início
do século XX.39
As mudanças que surgiram no desenvolvimento do capitalismo mundial, entre 1890 e
1910, período denominado de Segunda Revolução Industrial, tiveram, portanto, influência
decisiva sobre a região amazônica. Inovações tecnológicas nos setores de aço, energia elétrica,
petróleo e química revolucionaram o sistema de transportes e de comunicações (motor a
combustão, pneumáticos, telégrafo, siderurgia, caminhos de ferro).
O mundo ficou dividido em dois grandes blocos: de um lado, os países altamente
capitalizados, em decorrência da fusão do capital bancário e industrial, concentrando grande
parcela da atividade industrial e da produção de equipamentos e máquinas, monopolizando a
infra-estrutura dos meios de transporte, do comércio internacional e se constituindo em grandes
importadores de matérias-primas; de outro, os países produtores e exportadores de matériasprimas minerais e agrícolas, constituindo-se no mercado importador dos manufaturados e dos
bens de consumo das regiões industrializadas. Inglaterra, França e Estados Unidos dividiram o
mundo conforme suas esferas de influência, visando controlar o acesso às matérias-primas.
A invenção do pneumático por Dunlop, em 1888, o aparecimento do automóvel, em 1895,
e a massificação do uso da bicicleta como veículo de transporte, foram os fatores responsáveis
pelo acelerado crescimento da demanda por borracha nos mercados mundiais, com consequências
diretas sobre a região amazônica. A expansão da indústria de artefatos de borracha, nos EUA,
pode ser demonstrada pelo fato de ocupar, em 1895, mais de 150 mil trabalhadores e movimentar
um volume de capital superior a 85 milhões de dólares. Só os EUA adquiriram, entre 1839 e 1900,
de 35% a 50% da borracha produzida no mundo.
Embora existisse o látex em outros países, era o da Amazônia, o originário da seringueira,
a Hevea brasiliensis, o de melhor qualidade e o mais procurado. Ao findar o século XIX, a
Amazônia controlava 65% do mercado do produto. Nova Iorque, Liverpool, Londres, Antuérpia,
Conforme Warren Dean (1989) a descoberta dos usos múltiplos da borracha colocou o automóvel em todas as ruas,
estradas e rodovias do mundo tendo o rodoviarismo sido acrescentado ao ferroviarismo, alterando de forma definitiva
o sistema de transportes. Como afirma Aziz Ab’Saber, na apresentação do livro de Warren Dean, a borracha não veio
para substituir nada, mas complementar quase tudo.
39
48
Hamburgo, Lisboa e Havre, tornaram-se importantes mercados gumíferos, adquirindo toda a
produção regional.
O crescimento constante dos preços levou ao aumento das exportações. Nos anos vinte
do século XIX já havia registro de uma pequena exportação de borracha, igual a 460 toneladas
anuais. Nos anos cinqüenta, ficou em torno de 1.900 toneladas e na década de 1870 chegou a
3.700 toneladas. Ao crescimento da demanda correspondeu o início do aumento nos preços. Na
década de 1840, o preço médio de exportação estava em 45 libras por tonelada; na década
seguinte subiu para 118 libras, nos anos sessenta para 125 libras e nos anos setenta para 182 libras
a tonelada (Furtado 1967:138).
Embora detivesse a supremacia da produção da borracha, a Amazônia tinha problemas
para sustentar esta posição devido às características primitivas da exploração, à falta de capital e à
deficiência crônica de mão-de-obra. A expansão da atividade extrativa dependia primordialmente
da existência de recursos naturais, capital e mão-de-obra, uma vez que a ampliação da produção
dava-se pela incorporação progressiva de novos territórios e não por aumentos de produtividade.
Inicialmente atendida com o trabalho indígena, o aumento da demanda foi suprido através do
recrutamento de lavradores pobres originários das grandes plantações açucareiras em decadência
no Nordeste, cuja condição de sobrevivência estava agravada em função das secas de 1877 e
1879.40
A migração nordestina para a Amazônia está, recorrentemente, associada aos anos de seca
no Nordeste, à pauperização daí decorrente e à falta de alternativas econômicas urbanas. A seca
de 1877 acelerou um processo de ocupação da região, já em andamento desde 1850, quando
começaram a entrar na Amazônia os primeiros imigrantes. Os relatórios dos Presidentes da
Província do Pará descrevem o início desse movimento, originário das regiões do baixo
Amazonas para os rios Madeira e Purus. Só no ano de 1869 entraram em Manaus 1.676 pessoas.
"Nesse tempo não se falava em seca, só se falava em borracha", afirma Benchimol (1977:182183).
Parece ser importante acrescentar a idéia de que a migração para os seringais era
identificada, também, com uma tentativa de realizar um projeto social alternativo àquele existente
no Nordeste, o de trabalhar por conta própria, acumular um excedente e ascender socialmente.
Embora esse projeto não tenha se realizado para a maioria das pessoas, concretizou-se para
No período de quarenta anos, de 1870 a 1910, a população da região norte passou de 323.000 para 1.217.000
habitantes. Esse crescimento teve reflexos na participação amazônica na população total do país, que elevou-se de
3.3% para 5.1%, no mesmo período, enquanto a do Nordeste caiu de 46.7% para 36.8% (Santos 1980:109). Existem
controvérsias sobre o total de migrantes nordestinos na Amazônia. Celso Furtado (1967) apresenta o número de 260
mil imigrantes, de 1872 a 1900, e um total de pelo menos 500 mil até 1910. Benchimol (1965) considera esse dado
elevado e estima um total de 300 mil imigrantes até o ano de 1910, assim como Tupiassu (1969).
40
49
alguns, especialmente os que migraram nos primeiros anos da década de 1870, quando as terras
não estavam todas ocupadas e existia a possibilidade de se estabelecer por conta própria,
conseguir um crédito e formar um seringal. Os altos preços da borracha e o fato de alguns terem
efetivamente realizado o projeto original, alimentou as esperanças daqueles que os seguiram.
Assim, dois tipos de migração podem ser caracterizados nesse período: aquela que
resultou da seca, da fome e da ausência de alternativas de sobrevivência no Nordeste e a que foi
motivada pela busca de enriquecimento. Na primeira modalidade o objetivo do migrante era se
estabelecer na região e ele vinha acompanhado da mulher e dos filhos; na segunda, o homem
vinha sozinho. Em 1869 o movimento da imigração para a Amazônia mostra a seguinte
composição por sexo: do total de 1.676 imigrantes, 1.348, ou seja, 80% eram homens e 96% deles
vieram sem família (Op. Cit.:191). No período entre 1877 e 1900 imigrou para a Amazônia uma
população entre 158.125 (Benchimol 1965) e 187.219 (Girão 1947), fluxos migratórios motivados
tanto pela seca quanto pelo preço ascendente da borracha.
Dados sobre o comportamento da população esclarecem a dinâmica do processo de
ocupação. Segundo Vergolino (1975), entre 1872 e 1890, a taxa de crescimento demográfico da
Amazônia foi de 1,9% ao ano, um pouco acima da nacional. "No censo de 1872, 50,92% da
população do Estado do Amazonas vivia na cidade de Manaus, enquanto que 22,52% da
população do Estado do Pará concentrava-se na cidade de Belém" (Op.Cit: 39). O censo
seguinte, de 1890, revela uma transformação significativa: houve incremento da população dos
dois Estados, mas uma diminuição na participação do setor urbano. "A cidade de Manaus, que
em 1872 congregava 50,92 da população total do Amazonas, passa, no censo de 1890, ao nível de
26,18%. Ou seja, em termos brutos aumentou a população do Estado e da cidade de Manaus.
Em termos relativos, caiu a participação da população urbana e aumentou a rural. O mesmo
ocorreu no Estado do Pará" (Op.Cit:39), onde houve um fluxo da área urbana para a rural. De
acordo com o mesmo autor, no período de 1890 a 1900 a taxa de crescimento demográfico na
região ficou na ordem de 4.0% ao ano, refletindo o grande movimento migratório para a
Amazônia.
Para movimentar a mão de obra, as mercadorias, e criar infra-estrutura de transporte e
comunicações, havia necessidade de capital, que no início era privado e inexpressivo. Com a
crescente demanda da matéria-prima nos mercados mundiais, foi o capital estrangeiro, de
empresas inglesas e norte-americanas, que se transformou na sustentação da atividade extrativa
em toda a região, tanto para o crédito às Casas Aviadoras, voltado às importações e exportações e
capital de giro, como nos serviços e em empréstimos aos governos locais. Um exemplo é o setor
de transporte fluvial, que foi controlado por duas companhias de capital inglês: The Amazon
50
Steam Navegation Co. LTD e The Amazon River Steam Navegation Co. LTD. Aos poucos,
devido aos riscos, a função de importação e do financiamento dos produtores da borracha foi
sendo transferida aos tradicionais comerciantes portugueses.
Com o desenvolvimento da exploração extrativa da borracha, a integração espacial e
econômica da Amazônia com o mercado internacional foi acelerada, mantendo-se a mesma
característica de outras regiões do país, ou seja, com os padrões remanescentes do período
colonial, dependendo de um único produto de exportação, sujeito às imprevistas flutuações do
mercado externo, a maior parte do excedente gerado internamente era carreado para fora, não se
verificando qualquer efeito multiplicador para a região, a não ser o consumo supérfluo, bem
descrito na literatura (Araújo Lima 1970; Coelho, E.M. 1982; Costa, J. C. 1974; Pearson, H. C.
1911).
A partir de 1854 a produção do alto Amazonas ficou separada em função da recém criada
Província do Amazonas cujas exportações começaram a superar as do Pará em 1887. Durante
este período novas áreas de produção foram abertas no Madeira e no Purus e a indústria da
borracha também se expandiu para o Peru e a Bolívia. Em 1882, a produção de borracha na
Amazônia atingiu mais de 8 mil toneladas. Em 1890, já estava em mais de 16 mil toneladas,
resultado direto da ocupação e exploração dos seringais dos altos rios, afluentes dos rios Purus e
Juruá, e em resposta às demandas da indústria automobilística. Outras áreas foram abertas mais
tarde, como Rondônia e Mato Grosso que começaram a produzir em 1900. Após o encerramento
dos conflitos no Acre, em 1903, aquela área começou a superar o total da produção de toda a
região. Entre 1904 e 1908 as exportações do Acre subiram de 2.249 toneladas para 11.270
toneladas. Em 1908 a exportação total da Amazônia havia crescido para 40.807 toneladas e deste
total o Brasil era responsável por 35.686 toneladas. Esse crescimento continuou, com oscilações,
até 1910, quando os preços alcançaram o ápice.
Como bem analisa Celso Furtado (1967:137), esta situação de aumento da demanda por
um produto de extrema importância na expansão da industrialização, exigia uma alternativa de
abastecimento mais estável. A solução provisória foi a que proporcionou à região amazônica uma
condição de monopólio na produção da borracha, que seria substituída logo por uma alternativa
de longo prazo, que tornou mais estável o preço e o volume de produção. A alternativa surgiu,
inicialmente, em decorrência das plantações racionais de seringueira nos países asiáticos e, a partir
da segunda guerra, pelo desenvolvimento de um similar sintético.
Até 1910 os preços continuaram ascendentes e a produção mais alta para o conjunto da
Amazônia foi registrada em 1912, com 42.000 toneladas. A partir daí, ambos decresceram
consideravelmente, em função da entrada no mercado do produto das plantações de borracha do
51
Oriente, extinguindo-se a posição de monopólio da produção que a Amazônia mantinha até
então. Mas a região do Acre já havia sido conquistada e incorporada ao território brasileiro.
2.1.2
Ocupação do Acre: entre o Madeira e o Javari
Os conflitos que desembocaram na Revolução Acreana e na incorporação daquele território
ao Brasil, devem ser entendidos tanto como parte do contexto de expansão da economia da
borracha na região como do processo de fixação das fronteiras do Brasil em relação aos demais
países sul-americanos. Até as primeiras três décadas do século XIX, tratava-se da definição dos
limites dos territórios coloniais ultramarinos pertencentes a Portugal e Espanha, no espaço da
América do Sul. No momento seguinte, após a independência, a delimitação de fronteiras
implicava em negociação de conflitos que ocorriam entre países independentes, no caso, Bolívia e
Peru.
Cinco tratados visaram equacionar os problemas fronteiriços na área da Amazônia objeto
deste estudo: durante o período colonial, o Tratado de Madrid, de 1750, o de Pardo, em 1761 e o
de Santo Ildefonso, de 1777, definiram os limites entre o domínio espanhol e português na
América do Sul, consolidando a presença dos espanhóis na bacia do Prata e dos portugueses na
Amazônia; no Segundo Reinado, o Tratado de Ayacucho (1867); e, na República, o Tratado de
Petrópolis, definindo os limites entre Brasil e Bolívia (1903) e o Tratado do Rio de Janeiro entre
Brasil e Peru (1909).
Os tratados buscaram equacionar, no campo diplomático, uma realidade de fato que
resultou do processo de expansão territorial e exploração econômica efetivado no contexto da
colonização portuguesa, por meio de entradas, bandeiras, missões e fortes, que percorreram ou se
instalaram em áreas que, segundo o Tratado de Tordesilhas, pertenceriam à Espanha.41
O Tratado de Madrid, assinado pelos reis da Espanha e de Portugal, em 13 de janeiro de
1750, estabeleceu os limites entre os territórios coloniais na América, revogando o Tratado de
Tordesilhas de 1494, delineando o atual mapa do Brasil. Foi negociado por Alexandre de
Gusmão tendo como base o Mapa das Cortes, no qual apareciam as terras já efetivamente
ocupadas pelos súditos portugueses na América do Sul. O acordo foi possível porque tanto
Espanha quanto Portugal reconheceram que dominavam territórios cuja legitimidade poderia ser
contestada e porque admitiram o princípio proposto por Alexandre de Gusmão, do uti possidetis,
41 No século XV, várias bulas papais garantiram a Portugal a missão de catequese nas áreas ultramarinas recémdescobertas (Madeira, Açores, Cabo Verde e São Tomé). Após a viagem do navegador Cristóvão Colombo, o
Tratado de Tordesilhas, em 1494, dividiu os domínios do Novo Mundo entre Portugal e Espanha. Por um meridiano
imaginário, localizado a 370 léguas a ocidente do Arquipélago de Cabo Verde, definia-se que o leste pertenceria a
Portugal e o oeste, à Espanha.
52
segundo o qual a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa, atribuindo, assim, direitos jurídicos
ao que existia de fato (Bakx 1986:37).
O Tratado definiu as fronteiras entre Portugal e Espanha no território que, mais tarde, foi
objeto de conflitos entre Bolívia e Brasil, o trecho localizado entre o rio Madeira e o rio Javari.42
O Tratado de Santo Ildefonso, firmado entre Portugal e Espanha, em 1o de outubro de 1777,
manteve o princípio do uti possidetis e recompôs os limites já definidos pelo Tratado de Madri, não
alterando em nada a definição da fronteira entre as terras de Portugal e de Espanha, na
Amazônia.
Em ambas as tentativas de delimitação do espaço de Espanha e Portugal, objeto dos dois
tratados internacionais, o território compreendido entre os rios Madeira e Javari, permaneceu
desconhecido e não explorado, até meados do século seguinte. Os dois tratados reconheceram a
soberania espanhola sobre um território definido nos mapas como tierras no descubiertas, ou seja, as
que não haviam sido penetradas nem por Portugal, pelo leste, nem pela Espanha, pelo oeste.
Assim, foram divididas igualmente por uma linha e o território do Acre atual ficou com a
Espanha (Op cit:37). Nos mapas bolivianos pós-independência, em 1825, essa área continuou
sendo assim identificada, uma vez que a instabilidade política do país não facilitou sua presença
na região.
Embora para o governo Imperial do Brasil aquela área não apresentasse nenhuma
prioridade específica, para a Bolívia representava uma possível saída fluvial para o mar, razão
primeira de seu interesse pelo território e da reabertura das discussões a respeito dos limites entre
os dois países. A Bolívia pleiteava a abertura do rio Amazonas à navegação internacional, com
apoio explícito dos Estados Unidos e promulgou um decreto, em janeiro de 1853, em que
declarou livres ao tráfego internacional, até o Atlântico, portos em rios localizados no seu
território, mas que fluíam em território brasileiro, tanto na bacia do Amazonas quanto do Prata.
O Brasil protestou, porque entendia o governo Imperial que o direito de navegação
deveria pertencer exclusivamente aos países ribeirinhos. O Amazonas acabou sendo aberto aos
navios mercantes de todas as nações, por decreto do Imperador, em 7 de dezembro de 1866, em
um momento em que a Guerra do Paraguai (1864-1870) tornava o Brasil vulnerável a novos
conflitos com países vizinhos.
O Artigo VIII do Tratado de Madri assim define esses limites: "Baixará pelo álveo destes dois rios, já unidos,
[Mamoré e Guaporé], até a paragem situada em igual distância do [...] rio Amazonas ou Maranõn, e da boca do [...]
Mamoré; e desde aquela paragem continuará por uma linha leste-oeste até encontrar com a margem oriental do Javarí
que entra no rio das Amazonas pela sua margem austral; e baixando pelo álveo do Javarí até onde desemboca no rio
das Amazonas ou Maranõn prosseguirá por este rio abaixo até a boca mais ocidental do Japurá, que deságua nele
pela margem setentrional" (Tratado de Madri 1750).
42
53
As negociações abertas então, culminaram com a assinatura, em 27 de março de 1867, do
Tratado de Ayacucho, entre o Imperador do Brasil D. Pedro II e o Presidente da República da
Bolívia, General Mariano Melgarejo, ambos reconhecendo como base para a determinação da
fronteira entre os seus territórios o uti possidetis e estabelecendo como limites entre Bolívia e Brasil
a linha, do Madeira ao Javari, cuja nascente ainda deveria ser identificada.43 Pelo Tratado, a
Bolívia abriu mão para o Brasil, de 49 mil km2 no rio Paraguai e 251 mil km2 no rio Madeira e
em outros afluentes do rio Amazonas. Essas concessões asseguraram, à Bolívia, o livre trânsito
para comércio e navegação pelos rios que correm em território brasileiro em direção ao oceano.
O acordo foi muito criticado, tanto por membros do governo, quando por opositores de
Melgarejo, exilados no Peru.44 Segundo análise de Lewis Tambs (1966), o presidente da Bolívia
teria sido realista ao avaliar o poder de briga que dispunha, uma vez que sabia que seringueiros
brasileiros já estavam subindo o Madeira, o Purus e o Juruá e penetrando em território boliviano,
e que bolivianos descendo de Santa Cruz de la Sierra já haviam encontrado resistência brasileira
(Apud Stokes 1974:18). Era com base nesses mesmos fatos que se dava a crítica boliviana ao
Tratado: os opositores argumentavam que o uti possidetis somente poderia ser utilizado para
proteger posses baseadas na boa fé e não para canonizar a usurpação (Stokes Op cit:20).
A ocupação boliviana do espaço compreendido entre os dois pontos, do Madeira ao
Javari, era dificultada não somente em função da instabilidade política da Bolívia e da carência de
mão-de-obra, como da desarticulação entre o Acre e o sistema hidrográfico da Bolívia, em função
da barrreira da Cordilheira dos Andes (Rancy 1992:29). As primeiras relações comerciais com o
Brasil tiveram início em 1865, um rudimentar comércio feito pelo rio Madeira (Corrêa 1899:21).
Mas na região de fronteira a ocupação somente foi iniciada em 1881 e o primeiro núcleo,
Riberalta, foi formado em 1890. Isso não impediu, no entanto, que comerciantes bolivianos se
instalassem no vale do Madre de Diós, que deságua no Madeira, explorando ampla e brutalmente
a mão-de-obra indígena ou de trabalhadores trazidos do sul. "A Bolívia já estava além dos Andes,
na floresta amazônica. Mas tinha escassez de mão-de-obra e dificuldades tanto para escoar a
produção do Madre de Diós, como para ter acesso ao vale do Purus" (Almeida 2002).
O artigo 2o do Tratado de Ayacucho definiu nos seguintes termos os limites entre Brasil e Bolívia: "...da
confluência do rio Beni com o Madeira para o oeste seguirá a fronteira por uma paralela, tirada da sua margem
esquerda em latitude sul 10o20’, até encontrar o rio Javary. Se o Javary tiver as suas nascentes ao norte daquela linha
leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude, por uma reta a buscar a origem principal do dito Javary"
(Tratado de Ayacucho 1867).
44 Nas observações de Mauro Almeida (2002), o Tratado de Ayacucho teve grande importância legal, já que move
para o sul a linha de fronteira, em relação à do Tratado de Santo Ildefonso. Sua assinatura foi constrangedora para a
diplomacia da Bolívia e um reflexo da superioridade militar e diplomática do Brasil em relação àquele país.
43
54
Enquanto para os bolivianos era quase impossível ocupar o território que o Tratado de
Ayacucho definira como de sua propriedade, a expansão brasileira para o Juruá e o Purus nada
mais era do que uma extensão da colonização já em curso no Amazonas e no Solimões.
A exploração do Juruá teve início nas primeiras décadas do século XIX, ainda no
contexto da economia coletora de especiarias. A primeira expedição foi oficialmente realizada em
1852; em 1854, João da Cunha Correia, Diretor dos Índios no rio Juruá, subiu o rio Tarauacá,
deste passou ao Envira e, por terra, chegou à margem esquerda do Purus (Castello Branco
1922:592). Na terceira expedição realizada àquele território, em 1861, chefiada por Manoel
Urbano da Encarnação, Diretor dos Índios no rio Purus, o rio Acre foi alcançado pela primeira
vez. Em 1864, com apoio da Royal Geographical Society, o geógrafo William Chandless levantou os
pontos astronômicos do Purus, até suas cabeceiras, e de parte do Acre.
No Purus, o primeiro povoamento ocorreu em 1852, pelo pernambucano Manoel
Nicolau de Melo e, em 1857, o imigrante cearense João Gabriel de Carvalho e Melo estabeleceuse com quarenta famílias do Maranhão e do Ceará, perto da foz do Purus. Relatório de Silva
Coutinho, publicado em 1865, descreve a existência no Purus, naquele momento, de 240 casas
cobertas de palha espalhadas numa extensão de 277,77 milhas (cerca de 173 quilômetros) que
abrigavam pessoas "estabelecidas e empregadas geralmente na extração de drogas", e também de
borracha, muitas das quais "já pediram a posse de seringais, declarando que era para cortar
contestações e, seguros de sua propriedade, desenvolverem melhor a indústria" (Tocantins
1979:145).
A partir de 1872, intensificou-se a exploração das seringueiras localizadas no vale do rio
Purus e seus tributários atraindo para a região grandes levas de população. No final dos anos de
1880, quando a Bolívia decidiu efetivar o controle de fato sobre um território assegurado por
direito, já haviam mais de 15 mil brasileiros estavam estabelecidos na região e a atividade já
representava importante fonte de renda para a Província do Amazonas.45
Dados apresentados por Serzedello Corrêa (1899) sobre o volume de exportação de
borracha e os valores movimentados nas alfândegas de Belém e Manaus, no período entre 1890 e
1898, comprovam a importância desta atividade na consolidação da ocupação da Amazônia; em
oito anos a produção passou de 16 mil toneladas para 21 mil toneladas e, em quatro anos, o valor
das exportações quase triplicou:
45
Em 1854 a Província do Pará foi subdividida dando origem à Província do Amazonas.
55
TABELA 1. Volume e Valor das Exportações de Borracha por Belém e Manaus, 1890-1898.
Ano
1890
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
Volume (kg)
16.393.821
17.789.405
18.509.182
19.130.199
19.473.688
20.769.581
21.601.874
22.536.322
21.909.007
Valor
11.487:840$08246
17.211:807$495
17.257.002$209
23.983.661$329
29.133:809$639
Fonte: Serzedello Corrêa, 1899:159.
Embora definido o prazo de seis meses, após a ratificação do Tratado de Ayacucho, para
serem indicados comissários que identificariam a nascente do Javari e iniciariam as demarcações,
nenhum dos dois países conhecia aquele espaço e os serviços, iniciados em 1870, foram
suspensos em 1878. Os entendimentos foram retomados por meio da assinatura do Protocolo
Carvalho-Medina47, em 19 de fevereiro de 1895, no qual ficou estabelecida a formação de uma
Comissão Mista (Brasil-Bolívia) que deveria concluir o reconhecimento das terras localizadas
entre o Brasil e a Bolívia, a partir dos trabalhos realizados pelas comissões anteriores. A Bolívia
designou o coronel José Manuel Pando e o Brasil o coronel Thaumaturgo de Azevedo.
Após terem navegado até o rio Javari, ido a pé até o local que parecia ser a nascente do rio
e realizado observações astronômicas, os membros da comissão chegaram a conclusões
diferentes, dando origem a duas interpretações. A primeira, defendida pelo comissão boliviana e
adotada pelo Itamaraty, propunha a delimitação da fronteira partindo da confluência do Beni e
do Mamoré, na latitude 10o20’, até a latitude 7o 1' 17", local até onde haviam conseguido chegar.
A comissão brasileira propôs extender o limite para a latitude 7o 11' 48", posição abaixo daquela
onde a comissão havia chegado, alegando que a nascente do Javari ainda não havia sido
descoberta. A diferença era equivalente a 242 léguas quadradas pelas medições brasileiras.
O Comissário brasileiro, Thaumaturgo de Azevedo, alertou o governo federal sobre o
prejuízo decorrente da adoção dos limites conforme a posição defendida pelo Itamaraty:
(...) A aceitar o marco do Peru como o último da Bolívia, devo informar-vos que o
Amazonas irá perder a melhor zona de seu território, a mais rica e a mais produtora (...)
fazendo-nos perder o Alto rio Acre, quase todo o Iaco e o Alto Purus, os principais
afluentes do Juruá e talvez os do Juthay e do próprio Javary: rios que nos dão a maior
Este número refere-se a Belém; os demais valores referem-se à soma de Belém e Manaus.
O Protocolo foi assinado pelo Chanceler brasileiro Carlos de Carvalho e pelo Ministro boliviano Federico Diez
Medina.
46
47
56
porção da borracha exportada e extraída por brasileiros (...) Toda essa zona perderemos,
aliás explorada e povoada por nacionais e onde já existem centenas de barracas,
propriedades legitimadas e demarcadas e seringais cujos donos se acham de posse há
longos anos, sem reclamação da Bolívia, muitos com títulos provisórios, esperando a
demarcação para receberem os definitivos48 (Ofício de Thaumaturgo de Azevedo ao
Ministro do Exterior, em 6 de Março de 1897, in Corrêa 1899:64-67).
Continuar a demarcação, na base do Protocolo Carvalho-Medina, acarretaria ao Brasil a
perda do território da borracha que, segundo o Coronel Thaumaturgo, representava para o
Amazonas 46% de sua produção gumífera anual, ou seja 2.610:960$000, no caso da linha de
limites não abranger os afluentes do Juruá; ou se abranger, a perda será de 69% e a renda
desfalcada será de 3.859:960$000 (Corrêa op cit:64-67).
Thaumaturgo propôs a revisão do Tratado, uma vez que em virtude das dificuldades
impostas pelo meio, a precisão dos limites deixava dúvidas e porque a região a ser demarcada
estava sendo povoada e trabalhada por brasileiros, com lotes de terras e títulos definitivos
fornecidos pelo governo do Amazonas ao sul da linha demarcatória. Com sua argumentação,
pretendia assegurar aos brasileiros ali radicados, os direitos sobre a região (Rancy 1992:30). A
proposta apresentada por Thaumaturgo recebeu apoio de Rui Barbosa e de organismos
credenciados como o Instituto Politécnico Brasileiro, a Sociedade Nacional de Geografia e o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
O Ministério do Exterior não aceitou os argumentos do coronel que, contrariado,
demitiu-se e denunciou na imprensa o grave erro da diplomacia brasileira, dando origem a uma
intensa polêmica que mobilizou a opinião pública nacional. O julgamento público a favor
daqueles que já habitavam o Acre, levou o Ministério do Exterior a determinar ao Capitão
Tenente Cunha Gomes, a revisão, no terreno, da intrincada demarcação, a partir do
reconhecimento do rio Javari e identificação de sua nascente. Em 11 de janeiro de 1898, Cunha
Gomes enviou seu relatório, informando que:
(...) a nascente do Javary não se achava na situação que lhe assinalou a comissão de 1874.
Nasce o rio Jaquirana ou alto Javary de dois olhos d’água ou vertedouros no fundo de
uma grota formada por dois altos contrafortes de uma grande serra, que suponho ser um
dos contrafortes mais orientais dos Andes (...) Assim, pois, os pontos de dúvida
suscitados pelo Sr. Coronel Thaumaturgo estavam todos resolvidos. Verificara-se: que de
facto, era o Jaquirana o prolongamento do Javary e não o Galvez; que a nascente do
Javary efetivamente não se achava na situação indicada pela comissão de 1874, aceita pelo
48
Todas as citações feitas originalmente em português antigo, foram ajustadas para a ortografia atual.
57
protocolo de 1895; que essa nascente estava mais ao sul, aos 7o11’48’’10 (Corrêa 1899:98102).
As informações de Cunha Gomes, apontando um erro na colocação do marco da
fronteira, influenciaram a vigência do protocolo de 19 de fevereiro de 1895. O Chanceler
Dionísio de Cerqueira dirigiu-se ao novo Ministro Plenipotenciário da Bolívia, D. José Paravicini,
argumentando a necessidade de serem retificados os trabalhos de demarcação realizados, pelo
fato da nascente do Javari não estar na posição que lhe fora atribuída em 1895.
Na interpretação de Stokes (1974:29 e segs), consciente da migração nordestina que
estava ocorrendo para aquela área, o Brasil postergou até 1895, 28 anos depois da assinatura do
Tratado de Ayacucho, as tentativas bolivianas de firmar um protocolo que permitisse a
delimitação da fronteira noroeste do Madeira, incluindo o vale do Acre. Durante aqueles anos,
em diferentes momentos, as relações entre os dois países ficaram tensas, especialmente pela
necessidade da Bolívia, que havia perdido as províncias marinhas na guerra com o Chile, em
1879, em exportar e importar pelos rios brasileiros (Bakx 1986). Ao mesmo tempo, a migração
brasileira levava à ocupação da região e ao crescimento das exportações e a Província do
Amazonas extendia sua jurisdição até onde os brasileiros extraíam a borracha. Embora consciente
de que os brasileiros estavam ocupando o Acre, até porque mantinha um consulado no Ceará
(Stokes Op cit:36), de onde vinha a maioria da população, a Bolívia não conseguiu manter
presença sobre o território até o final de 1898.
2.1.3
Controle Boliviano
As crescentes dificuldades encontradas pelos bolivianos para comercializar seus produtos
livremente e sem taxas, pelos portos de Belém e Manaus, conforme estabelecia o Tratado de
1867, levaram o governo da Bolívia a realizar expedições armadas ao território do Acre
simultaneamente ao pedido de instalação de um posto alfandegário, em território que fosse
incontestavelmente boliviano. A Bolívia mantinha o princípio de que o protocolo CarvalhoMedina havia reconhecido como verdadeira a posição geodésica determinada por Cunha-Gomes,
atribuindo-lhe caráter definitivo.
A primeira expedição militar organizada pela Bolívia, formada por 30 praças, chegou ao
Seringal Carmen49, por via terrestre, em 12 de setembro de 1898, indo em seguida à vila de
Xapuri, onde participou ao Sub-Prefeito de Segurança, autoridade nomeada pelo Governo do
Em 1976, 78 anos depois, o Seringal Carmen seria palco do primeiro empate contra as derrubadas realizado sob a
liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. Ver Capítulo 4 (tópico 4.2.3).
49
58
Amazonas, que a Bolívia deliberara fundar naquele rio uma Delegação Nacional para tomar posse
da parte que legitimamente lhe correspondia.
Dois meses depois o Coronel da Guarda Nacional, Manoel Felício Maciel, intimou os
militares bolivianos a desocupar imediatamente o território brasileiro, argumentando que essa era
uma região de posse mansa e pacífica, explorada e cultivada por brasileiros há mais de 30 anos,
sem oposição de natureza alguma. A resposta enviada do Seringal Carmen, em 4 de dezembro de
1898, reafirmou que a ocupação era feita por ordem do governo boliviano, que seria mantida,
mesmo que fosse necessário empregar a força, uma vez que estavam em território boliviano.
Simultaneamente, o Ministro José Paravicini reafirmou ao governo brasileiro a
necessidade de serem retificados os trabalhos de demarcação, declarando, no entanto, que
qualquer demora "...não seria motivo para impedir que o seu Governo continue a ocupação que
já empreendeu, dos rios Aquiri, Iaco e Purus, e estabeleça as repartições fiscais necessárias em
lugares absolutamente indiscutíveis, pois seria prejudicial aos seus interesses deixar por mais
tempo abandonadas essas regiões, sobre as quais estão definidos os seus direitos". Solicitou,
ainda, que as Inspetorias das Alfândegas de Manaus e do Pará recebessem os documentos
expedidos pela Alfândega do Aquiri, dando cumprimento ao Tratado de 1867 (Tocantins 1979:
192-193).
A nota que o Itamaraty concedeu ao Ministro Paravicini forneceu a base legal para o
controle boliviano do Acre durante 111 dias, de 3 de janeiro de 1899 a 23 de abril de 1899, que
acabou sendo um dos fatores que deflagrou a reação organizada pelos brasileiros no período
seguinte:
O Ministro do Estado das Relações Exteriores faz os seus cumprimentos ao Sr. Dr. D.
José Paravicini, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário da Bolívia e, como
resposta provisória ao memorando anexo à sua nota de 15 do corrente, tem a honra de
participar-lhe que hoje declara pelo telégrafo ao governador do Estado do Amazonas que
pode concordar no estabelecimento de posto aduaneiro à margem do Acre ou Aquiri, em
território incontestavelmente boliviano, isto é, acima da linha tirada do Madeira à margem
do Javari, na verdadeira latitude determinada pelo capitão-tenente Cunha Gomes.
Também participa que hoje se entende com o Sr. Ministro da Fazenda para que ele dê
pelo telégrafo as ordens necessárias, a fim de serem nas Alfândegas de Manaus e do Pará
recebidos os documentos expedidos pelo posto aduaneiro do rio Acre, como justificativa
das mercadorias em trânsito (Tocantins op cit: 193-194).
Ao mesmo tempo em que Paravicini deixava Belém em direção ao território do Acre,
começaram a circular, em Manaus, os primeiros boatos de que a Bolívia estava negociando o
arrendamento daquele território a um sindicato inglês. Nas palavras de Stokes, "antes mesmo de
59
Paravicini instalar a bandeira boliviana no Acre, a idéia de uma rebelião contra a Bolívia já estava
plantada" (1974: 51).
Em 30 de dezembro de 1898, a comitiva dos bolivianos chegou na Intendência brasileira,
localizada em Antimary, pouco acima do barracão Caquetá, lugar onde se julgava correr a linha de
fronteira Cunha-Gomes (MAPA 1). Instalado e tendo tomado posse do território em 3 de janeiro
de 1899, o Ministro Paravicini denominou o novo pueblo de Puerto Alonso, em homenagem ao
então Presidente da Bolívia, Severo Fernandez Alonso.
Em face de um golpe de Estado ocorrido na Bolívia, no qual assumiu a Presidência o
General José Manoel Pando, em 23 de abril de 1899, o Ministro Paravicini resolveu voltar ao Rio
para reassumir seu posto, por não saber se teria respaldo para continuar sua missão no Acre.
Quando partiu, deixou 44 barracas construídas, um armazém com mercadorias, uma serraria a
mão, grande quantidade de ferramentas, móveis, objetos de escritório que seriam utilizados tanto
por bolivianos quanto por brasileiros. E deixou, também, um clima de revolta entre os
seringalistas, em função da forma como administrou o território durante o curto período em que
ali permaneceu (Conf. Tocantins, op cit:195).
Representando um país ausente política e administrativamente do Acre, mas que era
possuidor de jure do território, com os seus direitos reconhecidos pelo Governo brasileiro,
Paravicini promulgou uma série de decretos com o fim de regulamentar a nova situação jurídica.
O mais polêmico de todos e que daria margem para a reação brasileira, abriu as vias fluviais dos
rios Acre, Purus e Iaco à navegação mercante de todas as nações que tinham amizade com a
Bolívia, desde o ponto onde se localizavam as alfândegas até onde fosse possível a navegação. O
mesmo decreto estipulou a obrigatoriedade de todos os navios ancorarem no porto administrado
pela Bolívia e apresentarem detalhada documentação, sob pena de serem tratados como piratas e
multados. Estabeleceu ainda o pagamento por direito de tonelagem, a obrigação de constituírem
em Puerto Alonso um agente responsável pelas operações do navio e a prestarem uma fiança
real. Este decreto foi revogado, em abril do ano seguinte, pela celeuma que causou.
Paravicini atuou também sobre a situação fundiária e a organização da produção,
assinando dois diplomas visando regulamentar a posse das propriedades e o regime de trabalho
nos seringais.
O Decreto de 10.02.1899 parte da consideração de que os acordos internacionais
declaravam provisórias as concessões de seringais nos territórios ocupados pela Delegação
Boliviana e determina o reconhecimento daquelas concessões legitimamente feitas por
autoridades brasileiras, antes da ocupação boliviana. As escrituras outorgadas passaram a ter valor
e merecer fé. Estabeleceu porém, o registro obrigatório dos títulos na Secretaria da Delegação, no
60
prazo de um ano a contar da data da publicação. Os exploradores ou descobridores de seringais,
definiu a legislação, ficavam impedidos de explorá-los antes de obterem a concessão respectiva e
os que estivessem de posse de propriedade sem qualquer título, deveriam formalizar suas petições
no prazo de seis meses, sob pena de perderem o direito.
O Decreto de 22.02.1899 tinha fim preventivo e de defesa do patrimônio florestal. As leis
bolivianas em vigor reconheciam aos industriais o direito de propriedade do solo e das árvores
gumíferas ante o prévio pagamento de um direito, com o principal objetivo de que fossem
conservadas como uma fonte perene de riqueza. Paravicini concluiu que, extrair o látex na época
em que se opera a evolução da seiva, era prejudicial às árvores que a produziam, ocasionando sua
morte e que era nocivo aprofundar demasiadamente as incisões. Sua intervenção era no intuito de
"velar pela conservação da propriedade pública e privada". Decretou a suspensão do corte nas
seringueiras no período de 1o de agosto a 1o de setembro de cada ano, além de prescrever a
maneira correta de fazer as incisões nas árvores (Tocantins 1979: 215).
O decreto sobre a regularização fundiária não ameaçava o direito dos brasileiros; ao
contrário, reforçava, perante a nova nacionalidade, os títulos provisórios e definitivos de venda,
até então expedidos pelo Governo do Amazonas e registrados naquele estado. A definição de
regras de extração do látex das seringueiras foi a primeira de várias iniciativas que surgiram no
futuro, como se verá no capítulo seguinte. Evidenciava que uma economia baseada
exclusivamente na extração de recursos disponíveis na natureza apresentava vulnerabilidades que
eram objeto de constantes preocupações das autoridades públicas.
O interesse principal do governo boliviano sobre as terras acreanas estava associado à
arrecadação de impostos. E além de a administração boliviana estar concentrando grandes somas
de dinheiro oriundas dos impostos sobre a borracha, antes arrecadadas pelo Pará e pelo
Amazonas, qualquer mudança no status quo causava temor aos habitantes dos altos rios acreanos e
era tida como nociva aos objetivos econômicos dos seringalistas e dos aviadores daqueles
estados.50
Em 1899 o político paraense Serzedello Corrêa publicou o livro "O Rio Acre (Ligeiro
estudo sobre a ocupação Paravicini no Rio Acre: limites, navegação e comércio com a Bolívia)"
defendendo o direito brasileiro sobre a região e apresentando argumentos que definiam a
A questão do Acre passou a ganhar repercussão na imprensa e nos principais jornais de Manaus que afirmavam
que o governo federal estaria cedendo à Bolívia área considerada do Estado do Amazonas [...] riquíssima zona
habitada por brasileiros que a descobriram e ainda hoje a exploram, havendo nela centenas de propriedades, a maior
parte legitimadas e demarcadas, outras só com títulos provisórios, sem que, entretanto, haja aparecido qualquer
reclamação da parte do governo boliviano sobre as concessões de terrenos ali feitas pelo Governo do Amazonas
(Jornal Commercio do Amazonas em 1899).
50
61
ocupação boliviana como um ato de força, pelo fato do Protocolo de 1895 não poder substituir o
Tratado de 1867:
(...)o protocolo de 1895 não estatui o que dispõe o tratado de 1867, a que se reporta. Em
conseqüência, esse protocolo equivale a um novo ajuste, pelo qual perde o Brasil uma
área avaliada em 5.870 léguas quadradas. E, portanto, tal protocolo não pode subsistir
sem aprovação do Congresso Nacional e, sem ela, é nulo de pleno direito. (...) ainda
quando se queira negar essa afirmativa, que é evidente, desse protocolo não resulta direito
algum à Bolívia, porquanto a demarcação que por ele se ajustou não está concluída e a
parte efetuada, longe de ter sido aprovada, foi impugnada pelo Brasil. (...)
conseguintemente, o território em que está situada a alfândega de Puerto Alonso não é, a
título algum, boliviano. (...) a Bolívia invadiu e está ocupando território brasileiro no qual
exerce jurisdição e arrecada impostos. (...)finalmente, esse ato representa insuportável
ofensa à soberania nacional. (Corrêa 1899:206-207).
O movimento comercial no rio Acre em 1899, relatado por Paravicini, era o seguinte: em
57 dias, 24 vapores pagaram direitos à alfândega; havia 89 firmas individuais e coletivas,
proprietárias de seringais no Acre e seus afluentes, Xapuri e Riozinho, que exploravam 11.871
estradas de seringa e mantinham 3.123 homens no trabalho extrativista. A população era de 9.476
habitantes que, reunidos aos 6.000 presumíveis do vale do Purus e do Iaco, alcançariam os 15.000
alegados pelos brasileiros quando tentavam provar a ocupação da região. Paravicini estabeleceu a
alfândega no rio mais povoado e maior produtor de borracha e, durante sua permanência em
Puerto Alonso, a borracha que circulou naquele porto rendeu um valor total de 13.877:421$405.
A receita líquida, equivalente ao que o Amazonas deixou de ganhar, foi de cerca de três mil
contos de réis. Segundo Stokes, não menos que 55 mil libras esterlinas em taxas de exportação
foram coletadas durante o período de Paravicini (1975: 320).
A importância econômica dessa região, para o Estado do Amazonas, pode ser constatada
nas estatísticas utilizadas pelo Governador Ramalho Júnior em correspondência encaminhada ao
Presidente Campos Salles, em 1899: a receita do Estado passou de 19:000$465 em 1852, para
93:347$803 dez anos depois, em 1862; para 2.002:425$754 vinte anos depois, em 1882; chegando
a 14.836:407$504 no ano de 1896-97 (Tocantins 1979:234).
Mas não somente o governo do Amazonas tinha interesse em ocupar o território acreano
e consolidar as atividades da borracha naquela área. Também para os seringalistas, em busca de
novas áreas mais produtivas e para os seringueiros, que naquele momento, em muitos casos,
conseguiam se apossar de territórios ainda não explorados, a questão do Acre representava a
ampliação e a consolidação de uma atividade que apresentava lucros crescentes. Além disso, as
62
casas aviadoras, na ausência de um sistema bancário, financiavam todo o processo de expansão e,
em última instância, tinham interesse direto no retorno do investimento que faziam. Para os
brasileiros que ali estavam não havia uma noção clara sobre os dispositivos jurídicos que
delimitavam a fronteira. Os seringalistas entendiam que o território brasileiro ia até onde eles
pudessem chegar, na atividade de abrir novos seringais.
Manifestações públicas contra a presença da Bolívia no Acre levaram o Governador do
Amazonas, Ramalho Júnior, a enviar um memorando ao Presidente Campos Salles, o primeiro
pronunciamento público da parte de uma autoridade a respeito do Acre, no qual fez referências a
um movimento armado que poderia eclodir de um momento para o outro.
A revolta começou a tomar corpo entre seringalistas e seringueiros brasileiros que não se
conformavam em ter que obedecer a autoridades estrangeiras. Enquanto isso, multiplicavam-se as
denúncias de violências cometidas contra brasileiros que se sentiam cada vez mais ameaçados em
seus direitos. Com a partida do ministro boliviano para Belém, depois dos chamados "Cem dias
de Paravicini", os acreanos decidiram se unir para lutar contra a dominação boliviana.
Em 24 de fevereiro de 1899, os principais proprietários de seringais organizaram a Junta
Revolucionária do Acre, sob a presidência de Joaquim Domingos Carneiro, que se destinava a
congregar elementos e mobilizar consciências, a fim de impedir, a todo custo, a permanência dos
bolivianos no Acre. Em 1o de maio a Junta Revolucionária, reunida no Seringal Bom Destino, de
propriedade de Joaquim Victor, sob a liderança do jornalista José Carvalho, decidiu que era
chegada a hora de expulsar o delegado boliviano Moisés Santivañez, que havia substituído
Paravicini no comando de Puerto Alonso. As autoridades bolivianas, em evidente inferioridade
numérica e militar, não resistiram à pressão dos brasileiros e partiram para Manaus. Mesmo sem o
disparo de um tiro, estava iniciada oficialmente a insurreição acreana com a assinatura de um
manifesto por mais de 60 proprietários de seringais e outros profissionais que atuavam nesta
região, datado de Caquetá, em 1o de maio de 1899.
Um dos elementos interessantes desse período, com consequências para o futuro da
região, foi o não reconhecimento, pelo Ministério da Relações Exteriores, da ocupação brasileira
de fato existente no território, reafirmando os direitos da Bolívia de ali se estabelecer, com base
em tratados diplomáticos que não mais expressavam a realidade e evidenciando que aquela região
não tinha importância para o Brasil, naquele contexto. O fato de, naquele período, as taxas de
exportação serem exclusivamente arrecadadas e aplicadas nos estados, constituindo uma fonte de
receita quase independente do governo federal, pode ser uma das explicações para a indiferença
em relação ao conflito no Acre.
63
Mais do que uma disputa territorial, o que estava em questão no Acre era o controle sobre
o comércio da borracha e o receio de que, com a ocupação boliviana, as firmas americanas e
inglesas passassem a comercializar diretamente com o Acre, com efeitos desastrosos sobre o
comércio de Belém e Manaus, maiores beneficiários das taxas de exportação. Foi esta razão que
levou o governo do Amazonas a financiar as primeiras rebeliões dos seringalistas e colocar Luiz
Galvez à frente do movimento, menos de três meses depois.
2.1.4
O Estado Independente e o Bolivian Syndicate
O espanhol Luiz Galvez Rodriguez de Arias desempenhou papel central nos episódios
que ocorreram no Acre na passagem do século XIX para o XX. Criou o Estado Independente do
Acre em 14 de julho de 1899 e governou como seu presidente até 28 de dezembro de 1899,
quando foi deposto. Novamente conduzido ao cargo em 30 de janeiro, nele permaneceu até 15
de março de 1900, totalizando um período de cerca de sete meses no poder.
Galvez era espanhol de Cádiz, filho de almirante, descendente de nobres e formado em
ciências jurídicas na Europa. Foi membro do corpo diplomático da Espanha, servindo nas
embaixadas de Roma e Buenos Aires. As informações não são precisas a respeito das razões pelas
quais abandonou a capital Argentina e dirigiu-se ao Rio de Janeiro (Rancy 1992; Tocantins 1976;
Costa 1974).
Em 1897, portando uma carta de apresentação do Ministro da Espanha no Brasil,
apresentou-se em Manaus ao Vice-Cônsul Manoel Rodrigues Lira e passou a trabalhar como
jornalista no "Comércio do Amazonas". Em 1899 foi para Belém onde trabalhou na Embaixada
da Bolívia e, como repórter, no jornal "A Província do Pará". Neste contexto, descobriu e
denunciou, ao Governador do Amazonas, publicando em seguida na imprensa, em 3 de junho de
1899, a existência de uma proposta de acordo secreto entre diplomatas da Bolívia e dos Estados
Unidos, sendo negociada por José Paravicini, formalizando uma aliança entre os dois países que
assegurava o auxílio dos Estados Unidos para a Bolívia conservar sua soberania nos territórios do
Acre, Purus e Iaco, mediante concessões aduaneiras e territoriais. Tratava-se de uma proposta de
arrendamento do Acre aos norte-americanos.
Segundo Stokes, a experiência de Paravicini no Acre havia evidenciado a impossibilidade
da Bolívia assegurar sua soberania sobre um território ocupado por brasileiros, sem o forte apoio
de um país europeu ou dos Estados Unidos (1974:74). A revelação desse acordo preliminar
chocou a opinião pública brasileira, apesar das autoridades bolivianas e norte-americanas negarem
as denúncias veiculadas pelos jornais.
64
O clima criado por Galvez, ao tornar públicas as negociações até então secretas,
contribuiu para aprofundar seu envolvimento com a questão do Acre. Em Manaus, a Junta
Revolucionária delegou a ele a função de representá-la nos Estados do Pará e Amazonas. Após
intensas negociações e com o patrocínio do governador do Amazonas, Ramalho Júnior, em 4 de
junho de 1899 Galvez viajou a Puerto Alonso com a missão de impedir a volta dos bolivianos.
Embora levasse homens e armas, a viagem foi camuflada como uma expedição de exploração dos
seringais, uma vez que o governo do Amazonas não queria entrar em conflito com o governo
federal.
Em reunião realizada no Seringal São Jerônimo, às margens do rio Acre, próximo a
Puerto Alonso, com donos de seringais e comerciantes que se opunham ao domínio da Bolívia, a
Junta Revolucionária decidiu declarar o Acre independente da Bolívia e formar uma república
(Tocantis 1976:272). Esta dicisão foi, certamente, influenciada por Galvez e pelas notícias das
ameaças do território vir a ser controlado por outros países. Além disso, tanto a Junta quanto
Galvez estavam respaldados pelo apoio direto do governo do Amazonas que, por 15 anos,
recebia uma renda segura das taxas de exportação sobre a borracha do Acre e não queria perder o
controle econômico daquela área.
Mas a decisão era, também, a expressão política de uma situação de fato vivenciada pelos
brasileiros na região: não queriam ser bolivianos, embora estivessem sendo colocados sob o
domínio daquele país em decorrência da posição defendida pelo governo brasileiro de que aquele
território pertencia à Bolívia. A frase - "já que não podemos ser brasileiros, resolvemos não ser
bolivianos" - pronunciada pelos membros da Junta, resume a posição dos revolucionários e continua
sendo repetida, até hoje, como a síntese das razões que deram origem à sociedade acreana.
Em 14 de julho de 189951 foi criado o Estado Independente do Acre, com capital na
Cidade do Acre, como passou a ser chamada Puerto Alonso. A independência foi aprovada pelo
voto de 6.742 cidadãos, dado à Junta Revolucionária, e Luis Galvez, escolhido por aclamação
presidente do novo país, assumiu a função com o seguinte discurso:
Altivos e nobres cidadãos brasileiros, respeitadores sempre das leis e dos governos
encarregados de interpretá-las, obedecíamos cegamente à invasão destes territórios por
uma intitulada delegação nacional da Bolívia, que desde o dia de sua chegada constituiu-se
em governo, decretando leis draconianas, criando impostos proibitivos, e, para completar
tamanha audácia, nos declaram cidadãos bolivianos sem prévia consulta de nossa
vontade. Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecíamos passivamente todos
os julgamentos praticados pela alta e baixa justiça do Delegado Nacional da Bolívia, na
Data escolhida propositalmente por se tratar do aniversário da Queda da Bastilha, evento que marcou o início da
Revolução Francesa.
51
65
esperança de que nossa idolatrada Pátria, a gloriosa e humanitária Nação Brasileira,
acudisse em nosso socorro e atendesse nossos justíssimos pedidos. O governo do Brasil
não respondeu aos nossos patrióticos alarmes ([...) sabemos da situação em que ficamos
depois do abandono em que nos deixaram as autoridades brasileiras [e isso vem
demonstrar que os habitantes do Acre] não pertencem à livre e grande Pátria Brasileira. É
justo, pois, que cidadãos livres não se conformem com o estigma de párias criado pelo
governo de sua Pátria – nem podem de forma alguma continuar sendo escravos de uma
outra nação: a Bolívia! Impõem-se a independência destes territórios, que elejam seu
Governo entre os cidadãos que trabalharam o seu solo e exploraram suas riquezas: é,
pois, chegado o momento de proclamar nossos indiscutíveis direitos de cidadãos livres.
Cidadãos – escutai a proclama que ao povo dos territórios do Acre, Purus e Iaco dirige a
Junta Revolucionária, manifestai vossa livre opinião a que sempre respeitamos; se não
aceitais a independência continuaremos a sofrer as humilhações que nos impõe uma
nação estrangeira; se, pelo contrário, aceitardes a independência, constituiremos o Estado
Independente do Acre, valoroso, forte e digno, pelo patriotismo de seus filhos, poderoso
pelas suas riquezas inesgotáveis que ousados estrangeiros nos querem usurpar. (Ata da 22ª
sessão da Junta Revolucionária do Acre, celebrada a 14.07.1899, Tocantins op cit: 274275).
Inúmeras correspondências foram expedidas por Galvez a diversos países da Europa e da
América, a fim de obter o reconhecimento internacional. O comunicado oficial ao Presidente
Campo Salles sobre o novo país, justificava a atitude dos acreanos no fato de que estavam
esquecidos e sozinhos para suportar o drama da mudança de nacionalidade e pedia que o ato
fosse considerado "...não como uma rebeldia hostil à Pátria Brasileira, mas como o produto do
desespero que nesta região lavra, devido à ocupação boliviana, de que a fundação da aduana de
Puerto Alonso foi a prova" (Tocantins Op.Cit.:285).
O movimento de Galvez diferenciou-se de outros contemporâneos, como Canudos, ao
reafirmar ideais republicanos. O objetivo era proporcionar uma estrutura de governo, um poder
legal constituído, que credenciasse a República do Acre ao reconhecimento das outras nações. A
legislação que elaborou organizava a existência do novo país em seus diversos aspectos e a
máquina administrativa era formada por diferentes órgãos: Diretoria de Estatística, Polícia do
Estado, Instrução Pública, Junta de Higiene e Força Pública Nacional. Um plano urbanístico da
Cidade do Acre foi elaborado, contratando abertura de ruas e praças e edificação de vários
prédios destinados a servir de sede às repartições governamentais. Galvez sancionou 27 decretos
durante a vigência da República, dentre eles o que estabeleceu instrução gratuita dividida em
primária, secundária, profissional e técnica.
66
Os principais atos administrativos de Galvez, conforme Tocantins (Op. Cit.: 276-287),
evidenciam a pretensão de construir uma sociedade moderna: as justiças cívil e comercial ficaram
sujeitas às disposições de códigos, leis, decretos em vigor na República do Brasil, até que o
Congresso Nacional, na sua primeira reunião, aprovasse novas leis e codificasse os processos
judiciais; a arrecadação de impostos sobre a borracha seria feita pela Recebedoria de Renda do
Amazonas, em conta especial à disposição do Governo do Estado Independente do Acre; foi
adotada a língua portuguesa e, em caráter provisório, a moeda brasileira, os regulamentos do
Estado do Amazonas e a Consolidação das Leis Alfandegárias.
O governo de Galvez estabeleceu vantagens para quem desejasse cultivar o solo,
definindo que os centros agrícolas deveriam ter 25 ha e dispor da casa de moradia, aparelhos
agrícolas e sementes de plantas alimentícias, forraginosas, industriais e, particularmente, culturas
como a da vinha, café, fumo, cana de açúcar, cacau, animais reprodutores da melhor raça. O
governo pretendia trazer para o Acre 2500 famílias de colonos. Decretou concessão exclusiva,
durante 50 anos, sob a garantia de juros de 7% por parte do Governo, pelo espaço de 10 anos
sobre o capital empregado, para serviços de abastecimento de água, esgotos, águas servidas e
pluviais, iluminação pública, viação urbana e comunicação telefônica. E ofereceu privilégio
exclusivo de exploração econômica à companhia que construísse o cais do porto, armazéns,
depósitos, rampas, docas, flutuantes.
O Acre produziu, naquele ano, 12 mil toneladas de borracha e estava habitado por 15 mil
pessoas, principalmente seringueiros, vinculados a grandes seringalistas, cada vez mais fortes
economicamente em função dos altos preços da borracha. Difícil considerar, nesse contexto, que
os atos de Galvez estivessem pautados em uma mera aventura. Conforme afirma Craveiro Costa,
deve-se a ele a "...outorga à região de fundamentos de uma organização político-administrativa de
fato e autônoma, respeitando grande cópia de direitos assegurados pela Constituição Brasileira,
em contraposição à jurisdição que a Bolívia procurava exercer. Além disso, Galvez chamou para
o Acre a atenção nacional" (Costa 1974:46).
Algumas destas leis, bastante avançadas para a época, prejudicavam os interesses dos
seringalistas e, principalmente, de aviadores e exportadores de Manaus e Belém. Em Xapuri, donos
de seringais decidiram formar uma Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros, posicionandose contra o Estado Independente e a favor do governo brasileiro. No Seringal Empresa, o
seringalista Neutel Maia declarou sua preferência pela administração boliviana e no Seringal
Humaitá, o seringalista Leite Barbosa fazia oposição a Galvez (Alves de Souza 2002:153). Em
Belém, os jornais criticavam e os deputados debatiam, questionando a presença de um
estrangeiro em território do Amazonas, querendo retirar um pedaço do Brasil. Para controlar a
67
situação, Galvez instituiu estado de sítio em todo o território, em 8 de dezembro de 1899, e
ordenou a prisão dos seringalistas que lhe faziam oposição.
Ao mesmo tempo em que crescia a crítica a Galvez, circulou a informação de que uma
expedição boliviana estava se preparando para voltar, gerando um novo ponto de conflito, pela
necessidade de mobilizar seringueiros para defender o território retirando-os da produção, o que
afetava os interesses econômicos dos seringalistas.
A situação ficou crítica quando as casas comerciais de Manaus e Belém chegaram a um
acordo no sentido de não reconhecer os atos fiscais do Governo Independente e suspenderam o
aviamento para o Acre. Em um ato radical, Galvez resolveu proibir a exportação de borracha e a
navegação de navios brasileiros nos rios Acre, Xapuri e seus afluentes, enquanto durasse o estado
revolucionário. Embora tivesse contado com apoio inicial dos seringalistas, essa medida não só
feriu os interesses das praças aviadoras, como arriscava provocar o colapso econômico da
sociedade e da República.
A impossibilidade de comercializar a borracha e a idéia, cada vez mais disseminada, de
que um brasileiro deveria presidir a República do Acre, aglutinou os seringalistas e levou à
deposição de Galvez, em 28 de dezembro de 1899, sendo substituído pelo proprietário dos dois
maiores seringais da região, o Benfica e o Riozinho, Antônio de Souza Braga, que assumiu a
presidência do Acre. Em dois decretos, o novo presidente determinou a expulsão de Galvez do
Acre e autorizou a exportação da borracha para Manaus e Belém, declarando livre aos navios
brasileiros, a navegação nos rios acreanos (Alves de Souza, Op.Cit.:154).
A principal disputa entre Galvez e Braga referia-se às prioridades com relação ao
comércio da borracha. Enquanto Galvez pretendia centralizar a venda da borracha e, com isso
obter melhores preços e recursos para financiar as necessidades do governo e das forças armadas,
Braga preferia manter como estavam as relações com as casas comerciais de Manaus e Belém,
principalmente pelo alto endividamento da maioria dos seringalistas (Stokes 1974:152-153). Em
seus pronunciamentos, Galvez se opunha ao controle que as casas comerciais de Belém e Manaus
exerciam sobre o Acre, como se pode perceber da seguinte afirmação publicada no jornal Folha
do Norte, de Belém, em 30 de janeiro de 1900, citada por Stokes: "Eu defendo o bem estar da
humanidade e a independência do Acre. Não estou aqui para sacrificar milhares de vidas por uma
firma comercial" (Op.cit: 155).
As informações sobre a expedição boliviana se confirmaram. Saindo de Beni, três divisões
bolivianas chegaram em Cidade do Acre na segunda semana de janeiro de 1900, tomaram conta
dos órgãos públicos e embarcaram todas as mercadorias e provisões, proibindo qualquer
movimento de navios pelo rio. Souza Braga chegou à capital do Acre em 12 de janeiro à frente de
68
uma força de 400 homens armados. Os bolivianos já haviam percebido a hostilidade da
população local e sua lealdade a Braga e Galvez e, sabendo que uma força armada de acreanos
estava para chegar, abandonaram a área.
Souza Braga não estava preparado para equilibrar a situação acreana e renunciou, diante
da crescente pressão, vinda de diferentes partes do Acre, para que Galvez voltasse a assumir o
governo. Galvez foi outra vez aclamado presidente, reassumindo em 30 de janeiro de 1900.
Durante todo este período, porém, a imprensa regional e nacional criticou-o duramente, e ao
governo federal, por não interferir no conflito do Acre deixando a região nas mãos de um
estrangeiro.
Ao reassumir, Galvez afirmou que seu governo continuaria prezando o patriotismo, a
justiça e a honestidade, que haviam constituído a base da sua primeira administração e que
estavam sendo reconhecidos pelo povo do Acre, que o levava novamente à direção dos assuntos
públicos na luta pelo definitivo triunfo da Independência (Stokes Op.Cit.:167).
Galvez acreditava que, em função da vitória alcançada em 12 de janeiro, os bolivianos
iriam reconhecer a independência do Acre. As forças bolivianas, estacionadas em Riberalta, não
avançaram, seja porque estavam com dificuldades financeiras, ou porque acreditavam nos
esforços diplomáticos que estavam sendo feitos junto ao governo brasileiro visando tirar Galvez
do governo do Acre.
Ao mesmo tempo, a imprensa regional começou a mudar sua avaliação em relação a
Galvez, à medida em que notícias surgiam de que não havia pirataria no Acre, que os direitos das
pessoas e das propriedades estavam sendo respeitados e que o governo revolucionário parecia ser
zeloso e honesto. Pedidos começaram a surgir de que o governo federal ajudasse o Acre
independente e não sacrificasse os interesses brasileiros na área. O General Serzedello Corrêa
afirmou, após um longo elogio aos revolucionários: "Os bandidos do Acre são, portanto, bons,
honestos e patrióticos brasileiros" (Stokes Op. cit.:173).
Galvez continuava conquistando o respeito da população do Acre. Mas o principal
problema era a necessidade de recursos para pagar as despesas e comprar armas. Desde o início o
Estado Independente do Acre havia taxado as exportações de borracha somente em 10%,
percentual menor se comparado às taxas de exportação brasileiras, de 25%, e às bolivianas, de
16.5%. Mas grande parte da borracha acreana continuava sendo contrabandeada devido à
dificuldade de controlar os rios navegáveis no território.
Para garantir recursos à manutenção da milícia, compra de armamentos e navios de
guerra, em 20 de fevereiro o presidente Galvez fez um apelo aos cidadãos e criou a Taxa
Patriótica de Subscrição, um imposto per capita não diferente daquele que os bolivianos haviam
69
tentado coletar no Acre, cobrado sobre proprietários e arrendatários de seringais que fossem
aviados das praças de Belém e Manaus ou que recebessem fornecimentos de casas estabelecidas no
Estado do Acre, e sobre os seringueiros extratores. E por não conseguir que a Recebedoria de
Rendas do Amazonas entregasse as importâncias originárias dos impostos sobre a borracha,
expediu outro decreto, estabelecendo que o imposto de 10% seria cobrado diretamente pela
alfândega da Cidade do Acre.
Simultaneamente, Galvez escreveu um detalhado código e um calendário para eleições
congressuais e presidenciais previstas para o mês de maio. Ficou estabelecido que o Congresso do
Estado Independente criaria novas leis, substituindo as do Brasil, que vinham sendo usadas pelo
governo provisório. Os dois candidatos a presidente eram Antonio de Souza Braga e Rodrigo de
Carvalho, que estavam em Manaus e Belém tentando criar relações mais harmoniosas com o
Brasil.
No entanto, ao mesmo tempo em que Galvez conquistava reconhecimento, o Brasil
começava a alterar sua política para o Acre no sentido de ajudar a Bolívia a reestabelecer seu
posto alfandegário e firmar um novo protocolo, cuja discussão havia sido iniciada em 1897,
visando a assinatura de um Tratado de Amizade, Navegação e Comércio com o Brasil. Em
função da enorme polêmica nacional que havia se tornado a questão acreana, o governo federal
decidiu enviar uma força tarefa da marinha brasileira para destituir Galvez e devolver o Acre ao
domínio boliviano.
Em 26 de fevereiro as forças armadas brasileiras, com 100 homens e 12 oficiais, sob o
comando de um major, saíram de Manaus em direção ao Acre, chegando a Cidade do Acre em 15
de março de 1900. O comandante do navio vinha em nome do governo federal do Brasil para
instalar um consulado e garantir os direitos dos brasileiros ali residentes. Além disso, trazia
orientações específicas para Galvez: ele deveria obedecer a ordem de livre navegação no Acre e
não poderia continuar em estado de guerra porque estava lidando com um território em litígio.
Galvez decidiu obedecer e o comandante assegurou seus direitos e de todos os brasileiros contra
qualquer confronto de parte dos bolivianos. Ele e seus auxiliares concordaram com a capitulação,
todas as armas dos homens que estavam sob suas ordens foram confiscadas, foram reembolsados
pelo Governo do Amazonas e o ex-presidente do Estado Independente do Acre embarcou
imediatamente para a Europa.
Conforme Stokes, por mais de oito meses a atenção dos brasileiros ficou focada nos
esforços de seus compatriotas de impedir a dominação boliviana no Acre. Pela primeira vez, o
Acre começou a ser visto como parte do patrimônio brasileiro. E conclui: porque ele galvanizou
70
os acreanos em tomar os passos decisivos de declarar e manter sua independência, Luis Galvez
deve ser creditado pelo seu justo papel em assegurar a anexação do Acre ao Brasil (1974: 192).
Decorreu seis meses entre 15 de março de 1900, com a saída de Galvez, e 22 de setembro
do mesmo ano, quando os bolivianos ocuparam o Acre pela segunda vez.
Em março de 1900 o Coronel Braga renunciou e Rodrigo de Carvalho assumiu a
presidência do Estado Independente. Carvalho continuou o governo como Galvez o havia
organizado, mas não manteve mobilizadas as forças armadas, que totalizavam entre 8 e 9 mil
homens. Diferentemente de Galvez, ele não tinha habilidade para organizar resistência militar à
ocupação boliviana e também não gerava entusiasmo pela revolução. Era empresário e estava
mais interessado na produção. Por isso foi tão fácil para a Bolívia ocupar o Acre.
O presidente Pando nomeou Andrés Muñoz como Delegado Nacional para a zona
revolucionária e para comandar as tropas em Riberalta, enquanto Salinas Vega fazia pressões para
o Brasil retirar os revolucionários do Acre, tendo conseguido, de Olynto Magalhães, aprovação
tácita da reocupação do Acre pela Bolívia.
Em abril foi organizada a primeira expedição contra o Acre, com 500 homens bem
armados. Mas embora as tropas e as armas viessem de La Paz, o abastecimento dependia de
Belém. Salinas Vega comunicou oficialmente ao Brasil que, para controlar os rebeldes do Acre,
enviaria uma expedição de Belém e solicitou autorização para trânsito de forças de guerra nos rios
brasileiros no alto Amazonas. Em função das repercussões no Congresso, a resposta do governo
brasileiro reafirmou a soberania boliviana mas não permitiu o trânsito de forças militares
estrangeiras em territórios ou águas brasileiros. Acabou, nesse momento, a neutralidade e a apatia
do Brasil em relação ao Acre e foi iniciada a articulação de uma proposta de comprar a área e
compensar a Bolívia oferecendo outro território e um porto; em troca, os brasileiros ficariam
onde estavam.
Muñoz avançou para Puerto Alonso em 22 de setembro e ocupou o Acre pela segunda
vez. Em La Paz a Campanha do Acre significava a defesa da integridade territorial da Bolívia uma
vez que aquele país perdera a saída para o Pacífico na guerra com o Chile e uma parte de seu
território para o Brasil na Guerra do Paraguai e não podia, portanto, perder o Acre.
Apesar da crescente importância econômica da borracha na pauta das exportações
brasileiras, os fatos que ocorriam no Acre continuavam não repercutindo no governo federal. O
Presidente Campo Salles inúmeras vezes dirigiu-se ao governador do Amazonas dizendo que não
se envolvesse com esses assuntos, que o Acre era realmente da Bolívia e que a própria Bolívia
resolveria os seus problemas na região. Às reclamações da Bolívia sobre as ações de Galvez,
71
Campo Salles respondeu afirmando que o Brasil respeitava a soberania boliviana no Acre e não
atuaria com as forças armadas brasileiras em seus territórios.
Político paulista apoiado pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, o presidente
Campo Salles estava mais preocupado com o impacto econômico de uma situação de deflação,
que vinha dos primeiros tempos da República e que havia chegado ao limite no final do século
XIX. A queda dos preços do café, a necessidade de contenção dos gastos internos e de assegurar
a expansão do crédito internacional, eram a prioridade do governo federal.
Embora fosse pequeno o interesse do governo federal em relação ao Acre, o mesmo não
pode ser dito em relação aos estados do Pará e Amazonas. Em dezembro de 1900 o governador
do Amazonas Silvério Nery sancionou uma lei que "estabelecia que toda a borracha produzida no
Amazonas devia ser inspecionada, acondicionada e exportada diretamente de Manaus"
(Weinstein 1993:228). Esta medida teve grandes repercussões sobre o comércio de Belém que já
vinha perdendo espaço em relação a Manaus. De acordo com Weinstein, naquele ano, as casas
comerciais de Belém negociaram 17.871 toneladas de borracha, das quais apenas 9.730 toneladas
vinham de dentro do estado. As exportações do território do Acre respondiam por cerca de 25%
da diferença (Op. cit:228). Havia, portanto, um grande interesse em relação ao destino do Acre
para os comerciantes de Belém e os jornais tratavam Luiz Galvez como um aventureiro e
"bandido", porque, segundo Weinstein, "não se podia esperar que os comerciantes aprovassem
um movimento que atraía os seringueiros para fora de suas estradas, detinha embarcações
comerciais e perturbava, de maneira generalizada, o fluxo das exportações de borracha"
(Op.Cit:233). Ao contrário, para o Amazonas era essencial que o Acre fosse brasileiro, razão pela
qual teve uma participação ativa no conflito. Em função disso, o Pará tomou posição mais crítica
em relação aos amazonenses do que à questão com a Bolívia.
Entre 1900 e 1901, enquanto as informações sobre os planos e, finalmente, a consumação
da ocupação militar boliviana do Acre chamou a atenção do governo brasileiro, da imprensa e do
povo, ocorreu uma metamorfose da atitude do Brasil em relação ao Acre, que teria profundas
consequências. A tese de Stokes é que a reação pública no Brasil, catalizada pelas autoridades do
governo do Amazonas, pela imprensa em Manaus e Belém, e por certos representantes chaves da
Amazônia no Congresso brasileiro, cuja voz foi reproduzida e ampliada por todo o Brasil, foi de
crucial importância para o curso dos eventos, e contribuiu para selar o destino das ambições da
Bolívia, muito antes que a revolução entrasse em sua fase de luta (Op. Cit.:243).
Serzedelo Corrêa, por exemplo, argumentou que só o Brasil podia controlar a área até que
os limites fossem resolvidos. Segundo ele haviam 18 mil habitantes produzindo 4.000.000 kg de
borracha a um valor de 5 milhões de contos de réis. Um levantamento mostrou que havia
72
seringais com 9.413 homens armados. Metade da borracha exportada vinha dessa área: 4.500.000
a 6.000.000 kg de borracha. A Bolívia e o Brasil reconheciam que quem controlasse o Acre seria o
maior exportador de borracha do mundo.
Nesse contexto, mais uma vez o governo do Amazonas decidiu financiar uma expedição
para expulsar os bolivianos do Acre. A Expedição Floriano Peixoto, conhecida como Expedição
dos Poetas, por ser formada por professores, poetas, advogados, médicos e engenheiros e alguns
soldados (Alves de Souza 2002:154), foi programada para atacar Puerto Alonso no dia de Natal.
No dia 24 de dezembro de 1900, o barco Solimões ancorou no rio Acre em frente a
Puerto Alonso e atacou. As forças acreanas contavam com 300 homens dos quais 150 haviam
sido contratados em Manaus, incluindo espanhóis e italianos. Embora predominasse a fome no
acampamento boliviano, Andrés Muñoz havia construído trincheiras de defesa e conseguiu
comandar os bolivianos. A batalha durou 1:45 minutos. Os membros da expedição Floriano
Peixoto abandonaram o combate deixando seus canhões para os bolivianos e se refugiaram no
seringal Caquetá. Segundo Stokes, diferentemente dos registros brasileiros, os documentos
bolivianos informam que, após a batalha, os revolucionários reconheceram a soberania boliviana
em troca de salvo conduto para voltar ao Brasil (Op. Cit.:243).
Em 1900 o Acre consumiu 12.000 toneladas de mercadorias que pagavam impostos ao
Brasil e exportou 6 milhões kg de borracha pagando taxa de exportação em Manaus e Belém. O
Brasil estava interessado na produção e o Acre não era mais uma questão acadêmica. Por outro
lado, a boa administração de Andrés Muñoz no território, conseguiu aumentar a coleta de
impostos que passou a responder por 12.5% do total do orçamento boliviano. Esta lucrativa
alfândega e a vitória sobre os brasileiros, foram fatores que fizeram os bolivianos acreditar na
possibilidade de transformar a área em uma base permanente para sua economia. Era também a
principal motivação para a preferência do presidente Pando por um arrendamento a um sindicato
estrangeiro no lugar de uma troca de territórios, como havia proposto o governo brasileiro. Além
do rio Acre haviam mais cinco rios com igual potencial e os bolivianos queriam dominar todo
este território com ajuda estrangeira.
Segundo a análise de Stokes, autores brasileiros como Tocantins e Araújo, afirmaram que
não havia presença comercial nem propriedades bolivianas no Acre, reproduzindo os
pronunciamentos dos revolucionários na imprensa sobre o assunto. Ele contesta essa afirmação
evidenciando que os caminhos entre tributários do norte do rio Beni e o alto Acre estavam em
uso por muitos anos antes das tropas bolivianas chegarem. No médio Acre, por exemplo, Nicolás
Suárez era proprietário do Seringal Amélia, que fazia fronteira com propriedades brasileiras em
Xapuri e ao norte com os seringais Rio Branco e Capatará. Além disso, havia laços comerciais
73
entre os seringalistas bolivianos e brasileiros como pode ser constatado pelo fato de Rodrigo de
Carvalho, presidente da República do Acre, ter sido o administrador do Amélia antes da
reocupação boliviana (Op cit: 323).
Ainda segundo este autor, o primeiro erro tático da Bolívia na disputa foi tentar coletar
grandes valores de taxas de exportação antes de ter uma força grande o suficiente para manter a
ordem. Uma vez que a manutenção da paz parecia impossível, o segundo erro foi resistir à oferta
do governo brasileiro para uma troca de territórios, optando pelo arrendamento.
Para os brasileiros, por outro lado, a Expedição dos Poetas mostrou que euforia patriótica
não era suficiente para expulsar os bolivianos; era preciso um militar para liderar a revolução,
planos maiores e armas mais eficientes, tarefa que foi designada ao militar gaúcho Plácido de
Castro.
OBolivian Syndicate
A idéia de propor para sindicatos dos Estados Unidos que adquirissem terras e empresas
no Acre foi apresentada a Paravicini pelo cônsul norte-americano em Belém. O presidente
boliviano, José Manuel Pando, adotou a proposta como uma forma de assegurar o controle sobre
o Acre e as altas taxas de exportação sobre a borracha. Em março de 1900, Felix Avelino
Aramayo, embaixador da Bolívia na Inglaterra, recebeu instruções detalhadas para a organização
de uma companhia que ficaria responsável pela exploração, administração e colonização das
regiões ao nordeste da Bolívia, entre o Javari e o Madeira.
A primeira parte das instruções autorizava Aramayo a promover e assegurar a organização
de uma corporação com 300,000 libras esterlinas ou mais, no Reino Unido, Bélgica, França ou
Alemanha. O governo boliviano faria uma subscrição de 50,000 libras. A segunda seção das
instruções definia os principais objetivos da companhia:
(1) To take title to all the rubber properties of the zone, which the Bolivian Government
promised to grant a título gratuito.
(2) To acquire by purchase with the aid of the Government of Bolivia the adjudications,
barracas, and other rubber properties privately owned priori to the formation of the new
company.
(3) To colonize the zone from abroad or from the interior of Bolivia.
(4) To operate steamships, directly or by contract with other firms, to provide regular
navigation of the Acre, Purús, Yuruá, and other rivers in the territories covered by the
concession.
74
(5) To exploit the zone either directly by ownership and operation of the rubber
properties, or by buying the produce exploited by private individuals and other
enterprises.
(6) To administer the Customs Houses and to collect Bolivian taxes.
(7) To promote the construction of railways and opening of highways for the prosperity
and better service of those territories (Stokes Op.Cit:312)
A terceira seção definia os limites geográficos da concessão e a quarta estabelecia que uma
parte do estoque de capital deveria ser oferecida aos principais comerciantes em Belém e Manaus,
aos empresários e investidores bolivianos e a outras empresas estrangeiras que operavam na
Bolívia. A quinta seção assegurava que o governo boliviano daria toda assistência, promulgando
as regulações e nomeando autoridades para fazer as leis serem cumpridas. A sexta parte
estabelecia que a Bolívia aceitaria qualquer condição que a companhia tivesse interesse em
propor, desde que fosse do interesse da própria companhia ou visasse o progresso do território.
A autorização e as condições foram assinadas pelo Presidente José Manuel Pando, Eliodore
Villazon, Samuel Oropeza, Ismael Montes, Carlos V. Romero e Demetrio Calbimonte, membros
do governo e altos oficiais do governo boliviano.52
A oferta inicial de arrendamento foi feita por Aramayo à Inglaterra, conforme carta do
ministro americano George H. Bridgman ao Secretário de Estado John Hay, em 23 de julho de
1900: "The land is certainly of immense value, in rubber production alone, of very large area, has
no flaw of title, and will be granted as "Freehold" property in perpetuity". Mas foi o entusiasmo
em relação ao projeto, do ministro americano em La Paz, que levou os capitalistas americanos a
se interessar no projeto e a assumir papel dominante na organização do sindicato.
Não existe registro nos arquivos americanos que indique que a oferta foi considerada
seriamente pelo Departamento de Estado, mas facilitou contratos privados com investidores
americanos. Nenhuma palavra sobre esse convite chegou à imprensa brasileira até a assinatura
oficial da concessão, quase dois anos depois. Em resposta a uma consulta do governo brasileiro,
em novembro de 1900, as autoridades bolivianas afirmaram que não havia veracidade nas
informações e que rejeitariam qualquer tipo de arrendamento.
Não somente os detalhes dos termos do arrendamento colocavam uma ameaça aos
brasileiros residentes no Acre e aos investimentos brasileiros na área, mas revelavam que a
soberania boliviana estaria comprometida se uma nação forte aceitasse a oferta, porque o
52 Os detalhes da discussão do arrendamento estão em Felix Avelino Aramayo, "La cuestión del Acre y la legación de
Bolivia em Londres" (London 1903) e nas correspondências de George H. Bridgman, Ministro Americano na
Bolívia, para John Hay, Secretário de Estado em Washington, em 31 de julho de 1900, citados por Stokes (Op.Cit.:
312).
75
governo boliviano ofereceu o território, sem exigências, ao governo americano (Stokes op cit:
317).
A percepção de que a Bolívia conseguiria manter o controle sobre o território levou o
Embaixador da Bolívia na Inglaterra, Félix Aramayo, a retomar, em 1901, a idéia de criação de
um sindicato internacional para controlar o Acre. Justificava a iniciativa afirmando que, desde que
não havia condições de a Bolívia realizar a exploração e ocupação total da região, seria
conveniente formar um grupo de acionistas para esse fim, semelhante às companhias inglesas que
atuavam na África.53
A notícia se espalhou de Londres aos capitalistas do velho mundo, formando-se um
grupo liderado por norte-americanos e ingleses, que ficou conhecido como The Bolivian Syndicate of
New York, formado com capital de 500.000 libras. Faziam parte do Sindicado: os Vanderbilt,
representados pelo seu advogado Willingfor Whitridge e os acionistas britânicos representados
pelo geógrafo Sir Martin Conway. A fim de garantir o apoio oficial do governo Americano, a
presidência do Sindicato foi entregue a um filho do presidente dos EUA, Theodoro Roosevelt.
O sindicato buscou associados na Alemanha, mas não obteve êxito, em função de
comunicado publicado na imprensa, pelo Barão do Rio Branco, representante do Brasil naquele
país "...fazendo advertência aos possíveis interessados, de que o território do Acre era reclamado
pelo Brasil, Bolívia e Peru, e que os capitais lá investidos não teriam garantia alguma" (Cabral
1986:47).
Finalmente, depois de boatos e denúncias, e tendo como base o acordo tentado
anteriormente, o projeto de arrendamento do Acre se concretizou no Contracto Aramayo, assinado
em Londres em 11 de julho de 1901, mais de seis meses antes que a notícia se tornasse pública,
com as seguintes características:
1o – O Sindicato, com sede em Nova Iorque, ficava com a administração do território do
Acre, podendo assim cobrar toda a espécie de impostos, direitos alfandegários, usufruir de terras,
de conformidade com as leis bolivianas.
2o – O Sindicato possuía a faculdade de exercer e assegurar até pela força de todos
aqueles direitos e privilégios.
3o – O capital inicial seria na base de 500.000 libras esterlinas, cabendo 60% dos lucros ao
governo boliviano e 40% à sociedade.
53 Conforme Michael Stanfield (1998:121 e 122), iniciativas semelhantes foram tomadas, neste período, por
seringalitas e governos de países envolvidos com a produção de borracha. Na Colômbia, os irmãos Calderón
tentaram vender uma área para uma companhia francesa; no Peru, o seringalista Araña buscou parceiros estrangeiros
para assegurar seu território no rio Putumayo; o governo peruano cedeu terras do Napo para uma companhia
inglesa.
76
4o – O Sindicato ficava investido do direito de adquirir por compra toda ou qualquer
parte das terras compreendidas no território do Acre. Aos posseiros ou ocupantes das mesmas,
seria assegurada a posse.
5o – O Sindicato tinha direito de navegar livre e tranqüilamente por todos os rios do
território acreano, e podia, a seu critério exclusivo, outorgar concessões para navegação nos ditos
rios, respeitados os tratados internacionais do gênero.
6o – O Governo boliviano concedia ao Sindicato todos os direitos de exploração de minas
na área submetida à sua administração fiscal.
7o – Ao Sindicato competia construir, manter, usar, explorar ou arrendar diques, molhes,
portos, ferrovias, telégrafos, centrais elétricas, telefones, instalações hidráulicas, fábricas de gás e
outras obras de qualquer natureza que achasse útil e convenientes.
8o – O Governo boliviano conferia ao Sindicato, pelo período de trinta anos computados
depois de expirar doze meses de confirmação ou ratificação do contrato pelo Congresso, o
direito e autoridade exclusiva para arrecadar e exigir o pagamento de toda e qualquer espécie de
impostos ou rendas.
9o – O Governo boliviano e o Sindicato nomeariam e manteriam, todo o tempo, cada um
representante ou Delegado residente no território do Acre, por meio dos quais se fariam todas as
comunicações entre as duas partes.
10o – O Sindicato respeitaria todos os contratos existentes entre o Governo Boliviano e
os atuais e legítimos possuidores de terras, exigindo, porém, que os mesmos registrassem seus
títulos, de acordo com a legislação vigente no país.
11o – O Sindicato obriga-se, depois de um ano, a partir do dia em que entrasse na plena
administração fiscal do território, a estudar os meios de unir o rio Acre, por estrada de ferro ou
canal, com os rios Orton e Madre de Dios.
12o – Em caso de necessidade, a juízo do Governo boliviano, o Sindicato podia equipar e
manter uma força armada de navios de guerra, para a defesa dos rios ou conservação da ordem
interna, ou outros objetivos, em adição à força de polícia. (Lima s/d:77-78).
Em 20 de dezembro de 1901 o contrato de arrendamento foi aprovado pelo Congresso
Nacional da Bolívia e promulgado pelo Presidente José Manuel Pando no dia seguinte. Foi "a
primeira tentativa de introdução no nosso continente do sistema africano e asiático das Chartered
Companies", assinalou, em 1903, o Barão do Rio Branco, na sua Exposição de Motivos sobre o
Acre, ao Governo Federal.
A Bolívia decidiu enviar Lino Romero como delegado ao Acre, em substituição a Andrés
Muñoz, autoridade com plenos poderes para se antecipar ao Bolivian Syndicate, que estava previsto
77
para ser instalado em 02 de abril de 1902. O controle boliviano sobre o Acre foi enfraquecido a
partir daí. Romero confiscou mercadorias e gado dos acreanos pagando com notas promissórias
que ninguém conseguia descontar. Seu objetivo era conseguir o máximo de lucros pessoais antes
da chegada do sindicato. Suas ações estavam concentradas na desapropriação de terras e, para
isso, baixou decretos definindo o prazo de seis meses para serem demarcados e registrados todos
os seringais sob pena de perda dos direitos de exploração. Esta decisão mudou o clima pacífico e
levou os acreanos a uma nova onda de sentimentos revolucionários. Conforme Meira Bastos, o
que se pretendia era:
(...) tornar ilegais as ocupações vinterinárias e trintenárias, retirando das mãos de seus
legítimos donos todos aqueles seringais, para entregá-los a bolivianos ou amigos e
apaniguados ávidos de lucros. Simultaneamente, homens de negócios bolivianos
percorriam os seringais à procura de terras para comprar, aproveitando-se do pânico que
quase sempre provocam tais medidas governamentais (Lima s/d:80).
O contrato com o Bolivian Syndicate foi amplamento divulgado no Brasil no dia 10 de abril
de 1902, quando a Gazeta de Notícias no Rio publicou o texto quase na íntegra, afirmando que a
população da região teria que abdicar de sua soberania e que o governo boliviano tinha sido
impotente para resolver a situação financeira, política e econômica do território acreano.
No dia seguinte, o ministro das Relações Exteriores, Olyntho de Magalhães, anunciou em
uma nota diplomática enviada ao governo boliviano que o Brasil não somente desaprovava o
arrendamento mas reforçava vigorosamente o respeito aos direitos que o Brasil tinha na questão
e aos interesses de todos os brasileiros que viviam na região. Afirmou que Campos Salles iria
proibir a navegação e o trânsito pelos rios e passagem por terra no solo brasileiro de todas as
embarcações e pessoas do Sindicato. Reações contrárias também surgiram nos outros países da
América do Sul.
Ao mesmo tempo, Campos Salles enviou mensagem ao Congresso retirando o projeto
relacionado com o tratado comercial entre Brasil e Bolívia. A pressão diplomática sobre a Bolívia
era baseada na percepção de que se fosse permitido a um sindicato tomar conta do Acre,
dificuldades e pressões viriam dos EUA.
Conforme assinala Lima, as vantagens, para a Bolívia, eram inúmeras, porque traria aporte
de capital para controlar a região e dinamizaria sua economia. Para o Brasil, representava a perda
de grandes lucros que sustentavam o desenvolvimento dos estados do Amazonas e do Pará e
prejuízos na exportação da borracha que estava projetando o país no contexto internacional
(Lima s/d:79).
78
As concessões que mais irritaram o Brasil eram as que implicavam em abdicação da
soberania nacional e dos poderes de governo e sua transferência para uma companhia angloamericana: itens como definir e coletar taxas, operar forças armadas nos rios, ter sua própria
força policial, foram vistas como transferência de soberania da Bolívia para o sindicato.
As denúncias produziram um recuo dos Estados Unidos, preocupado em não prejudicar
suas relações com o Brasil. E, face à reação contrária do Brasil, também a Bolívia foi forçada a
recuar. Mas antes, o ministro boliviano nos EUA, Fernando Guachalla decidiu pedir a
intervenção dos Estados Unidos na questão. A resposta americana era importante porque
determinaria se a Bolívia permaneceria com força junto ao Sindicato, ou seria obrigada a rescindir
o contrato e aceitar as imposições brasileiras. Os Estados Unidos afirmaram que os investidores
americanos tinham obtido concessões da Bolívia em boa fé, sem intervenção oficial e sem o
conhecimento das autoridades do país e esperava que estes direitos fossem respeitados.
Em 29 de julho o governo norte-americano comunicou a posição do governo brasileiro
ao Sindicato, considerando o contrato uma violação da boa moral e um ato de hostilidade ao país.
Exatamente neste momento o Brasil começou a preparar um ataque militar contra a Bolívia no
território do Acre.
A notícia de arrendamento do Acre ganhou grande repercussão nos meios políticos e na
imprensa nacional e internacional. O Bolivian Syndicate representava, pela primeira vez, uma
ameaça concreta e grave à soberania brasileira sobre a Amazônia. O governo brasileiro decidiu
definir a região do Acre como litigiosa e iniciar negociações diplomáticas com a Bolívia. Os
jornais internacionais, no entanto, fizeram campanha contra o Brasil, ressaltando que a Bolívia,
sendo um país pobre, "havia contratado uma forte companhia capaz de desenvolver aquelas
terras tão ricas e ainda incultas..." (Lima:81).
A possibilidade de controle, por uma companhia estrangeira, de um território já ocupado
por brasileiros, teve dois efeitos, nos períodos seguintes: serviu de motivo desencadeador da
reação armada contra a presença boliviana, unindo os brasileiros pelo "temor real ou
artificialmente induzido que surgiu com o Bolivian Syndicate" (Oliveira 1992:128) e contribuiu para
mudar a posição do governo federal em relação ao que estava ocorrendo no Acre.
Stokes (1974) procura justificar o ponto de vista boliviano. Tendo como referência o fato
daquele país ter um título válido sobre um território que produzia muitos milhões de dólares de
borracha crua anualmente, e apresentava um potencial tão grande quanto, o autor questiona:
como poderia a Bolívia manter e reforçar sua soberania contra seu vizinho poderoso, o Brasil?
Teria a Bolívia outras opções que permitiriam ao país reter os lucros obtidos no Acre sem a
contínua drenagem dos recursos financeiros e humanos de uma pequena nação? O autor conclui
79
que o apoio de um poder político arrendando o Acre a uma nação externa poderosa, era, talvez,
uma decisão lógica dadas a situação geopolítica da área e os antecedentes dos líderes bolivianos –
um governo de empreendedores da classe superior com um ponto de vista positivista
influenciado pelo grande progresso material que vinha sendo feito pelos países ricos na América
Latina (Op Cit: 312).
2.1.5
Plácido de Castro e a Guerra do Acre
A última etapa da Revolução Acreana foi o confronto armado que encerrou esta série de
conflitos econômicos, diplomáticos e políticos entre brasileiros e bolivianos, motivados pelos
crescentes resultados financeiros obtidos com a atividade extrativista da borracha e pelo conjunto
de interesses locais e internacionais em torno deste comércio. O ano de 1901 e metade do ano de
1902 foram caracterizados pelo controle ininterrupto da Bolívia sobre o Acre. De agosto de 1902
a janeiro de 1903 ocorreram cinco batalhas e o exército de Plácido de Castro conseguiu derrotar
o exército boliviano. A guerra foi substituída por um modus vivendi que criou as condições para a
negociação da paz, formalizada no Tratado de Petrópolis.
Três fatores foram decisivos na eclosão do movimento armado e contribuíram para
catalizar os interesses dos proprietários de seringais em um novo confronto com a Bolívia: (i) as
medidas autocráticas do delegado Lino Romero; (ii) as notícias do Bolivian Syndicate e (iii) a
ausência de posicionamento do governo brasileiro sobre a questão.
O decreto que determinava que todos os títulos de terras tinham que ser reconhecidos
pela Delegação Boliviana em Porto Acre revoltou os seringalista. Muitos deles tinham títulos
duvidosos e os que tinham títulos corretos não haviam ainda realizado os levantamentos em suas
terras, uma vez que os seis meses definidos não eram suficientes. Ao lado disso, as notícias do
Bolivian Syndicate eram alarmantes e levaram muitos seringalistas a acreditar que os concessionários
teriam o controle sobre as terras. Estas atitudes acirraram o ânimo do governo do Amazonas e
ascenderam os sentimentos revolucionários do Acre. Por último, também teve influência na
eclosão do conflito a ausência de um posicionamento mais claro por parte do governo federal.
Conforme afirma Lima, se naquele momento o poder central tivesse estabelecido negociações
diplomáticas baseadas no princípio do uti possidetis, de acordo com o artigo 2o do Tratado de
Ayacucho, poderia ter conseguido o reconhecimento formal da ocupação e exploração da região,
por brasileiros, há mais de meio século (Lima s/d:83).
Esgotadas as tentativas de expulsão direta da Bolívia, sem contar com apoio do governo
federal, insatisfeitos com a dominação boliviana e temerosos das consequências do Bolivian
Syndicate, os seringalistas, únicos capazes de financiar uma reação armada, articularam uma nova
80
revolta. Outra vez buscaram apoio do governo do Amazonas, mas resolveram convocar um
profissional para assumir o comando da revolução, um homem com experiência militar.
Plácido de Castro, gaúcho de São Gabriel, neto e filho de soldados, estudou na Escola
Militar de Porto Alegre, em 1892, onde obteve o posto de sargento. Em setembro de 1893,
deixou a Escola Militar e se alistou como revolucionário na Revolução Federalista, contra o
Marechal Floriano Peixoto e a favor da monarquia. Conquistou o posto de major por atos de
bravura e adquiriu experiência militar. Quando a revolta foi controlada ele recusou a anistia e
decidiu deixar o Exército. Em 1898 foi trabalhar na Companhia Docas de Santos, como ajudante
de fiel de armazém, esperando a oportunidade de viajar para o Amazonas onde queria alcançar
fortuna nos negócios da borracha (Pinto Cabral 1986:52). Acumulou dinheiro suficiente para ir a
Manaus onde foi apresentado a Rodrigo de Carvalho e outros revolucionários.
Foi a decisão boliviana de demarcar e registrar todos os seringais, como forma de
preparar a região para o Contracto Aramayo, que criou-lhe uma oportunidade de trabalho como
agrimensor comissionado, para fazer medições em seringais. Além de experiência militar, Plácido
de Castro tinha um real entusiasmo por geografia e o trabalho de agrimensor lhe proporcionava
um conhecimento de primeira mão sobre as características geográficas, políticas e sociais do
Acre. Antes mesmo de se envolver com o movimento já expressara sua opinião favorável à
autonomia do Acre, baseado no fato de que os acreanos formavam uma comunidade em termos
de idioma e de aspirações.
O Amazonas era, naquele momento, o maior prejudicado pela instabilidade no Acre, em
função da queda de arrecadação da borracha em favor da instalação da alfândega boliviana. Por
isso, decidiu instalar um Posto Fiscal do Estado do Amazonas em Caquetá, exatamente na linha
divisória do Estado com o Acre, administrado por Rodrigo de Carvalho, que começou a
funcionar em 11 de novembro de 1901.
Rodrigo de Carvalho e Joaquim Victor da Silva, dono do Seringal Bom Destino, que fora
Ministro na República Independente do Acre e Vice-presidente quando Souza Braga derrubara
Galvez, foram os protagonistas das articulações preliminares. A primeira iniciativa foi buscar
apoio do Presidente Campos Salles, para a questão acreana. A única promessa obtida foi de que
os brasileiros rebelados não seriam massacrados pelo exército boliviano, o que seria assegurado
através da retomada das negociações diplomáticas. Em face da fragilidade desse acordo,
decidiram voltar a buscar apoio do Governador do Amazonas, Silvério Nery.
Em fevereiro de 1902, Plácido de Castro foi procurado por Rodrigo de Carvalho que lhe
propôs assumir o comando da revolução. Plácido pediu três dias para pensar e só depois de se
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informar, por várias fontes, de que o povo do Acre iria se revoltar e que sua aspiração maior era
expulsar os bolivianos, ele consentiu em ir e apresentou suas condições:
1o Tudo se fará à margem de qualquer interferência do Sr. Silvério Nery.
2o Será estabelecida uma Junta Revolucionária, mas esta, uma vez desencadeada a
Revolução, será dissolvida automaticamente, ficando todos os poderes atribuídos ao
chefe militar, que os senhores propõem que seja eu. A mim, pois, caberá o direito de
exercer uma autonomia absoluta durante a revolução.
3o Deve ficar assentado que, firmadas as condições, quem faltar aos compromissos, será
sumariamente passado pelas armas (Araújo Lima 1960:81).
As condições foram aceitas, embora a primeira tivesse encontrado ressalvas, uma vez que
consideravam fundamental a contribuição do governador do Amazonas para assegurar meios
financeiros à revolução. Conforme Pinto Cabral (1986) a recusa de Plácido de Castro a receber
apoio do Amazonas derivava de dívidas não pagas a seus amigos, responsáveis pela expedição
anterior.54
Plácido de Castro iniciou seu trabalho fazendo o reconhecimento da capacidade instalada
pelos bolivianos e dos meios existentes, nos seringais, para formar um exército que pudesse
enfrentar as forças bolivianas. No Seringal Vitória, de propriedade de José Galdino, seringalista
de grande influência na região e o primeiro a armar seus homens, Plácido de Castro continuava
seu trabalho de agrimensor, quando recebeu a informação do arrendamento do território. Em
suas anotações, publicadas como "Apontamentos sobre a Revolução Acreana", Plácido de Castro
relata esse momento:
Em 23 de junho, chegaram-me às mãos alguns jornais que noticiavam como definitivo o
arrendamento do território acreano e estampavam o teor do contrato, então assinado
entre a Bolívia e o Bolivian Syndicate of New York. Era uma completa espoliação feita
aos acreanos. Veio-me à mente a idéia cruel de que a Pátria brasileira se ia desmembrar,
pois que a meu ver, aquilo não era mais que o caminho que os Estados Unidos abriam
para futuros planos, forçando-nos desde então a lhes franquear à navegação os nossos
rios, inclusive o Acre. Qualquer resistência por parte do Brasil ensejaria aos poderosos
Estados Unidos o emprego da força, e a nossa desgraça em pouco estaria consumada.
Simultaneamente ao início da retomada do Acre pelos brasileiros, ocorreu uma ofensiva de seringalistas peruanos
sobre a região de Madre de Diós, em maio de 1902, em território inquestionavelmente boliviano, onde estabeleceram
um forte e uma cidade, Puerto Maldonado. Ao relatar este fato Stokes conclui que houve acordo entre o Brasil e o
Peru pela invasão simultânea da Bolívia pelos dois países. Não pode ser por acaso, escreveu, que precisamente no
momento em que os brasileiros estavam preparando a ofensiva de Plácido de Castro, os peruanos se dirigiram para
Madre de Diós em territórios previamente governados, sem questionamentos, pela Bolívia (1974: 368 ).
54
82
Guardei apressadamente a bússola de Casella, de que estava me servindo, abandonei as
balisas e demais utensílios, e saí no mesmo dia para a margem do Acre (Castro 1911:7).
Conforme relato de Pinto Cabral (Op.Cit.:59), na noite de 25 de junho, Plácido de Castro
saiu do Seringal Vitória com destino a Caquetá, cuidando para passar em silêncio por Xapuri para
não chamar a atenção dos bolivianos e foi "...parando em todos os seringais e barracas para
animar os seringueiros, explorar os ódios latentes de todos e de cada um, estimular a repulsa à
permanência boliviana na região", enfim, fazendo todo o possível para preparar as pessoas para
os acontecimentos que se aproximavam.55
Chegou em Bom Destino em 30 de junho e, acompanhado de Joaquim Victor, seguiu
para Caquetá, onde realizaram uma reunião, no dia 1o de julho de 1902, com os principais líderes
da insurreição: Domingos Carneiro, ex-vice Cônsul do Brasil em Porto Acre, Domingos Leitão,
Rodrigo de Carvalho e o Tenente Antonio de Carvalho. Ajustaram as decisões, inclusive a de
criação do Estado Independente do Acre, que resultaria da revolução, com absoluta autonomia, a
fim de não envolver o Brasil na questão, o que poderia forçar o país a entrar em guerra com a
Bolívia.
Plácido de Castro propôs a concretização do que havia sido acertado em Manaus: a Junta
Revolucionária seria automaticamente dissolvida com o início das operações militares, o chefe
militar passaria a ser a única autoridade e suas decisões seriam incontestadas. Foi marcada a data
de 6 de agosto para o início do movimento.
A proposta de Castro de que a revolução iniciasse com a tomada da sede da Delegação
Nacional Boliviana em Porto Acre, não foi aceita, ficando decidido que começaria em Xapuri, no
Alto Acre. Xapuri, denominado então de Mariscal Sucre, era o povoado mais antigo do alto Acre,
elevado à categoria de Vila, em pleno território controlado pela Bolívia. Ali, o representante
boliviano havia estabelecido uma política de harmonia com a população, através de um hábil
arranjo institucional. Criara um Conselho Municipal integrado apenas por brasileiros e cujas
55
Stokes (1974) tem uma versão diferente da que foi escrita pelo biógrafo de Plácido de Castro (Castro 1911) sobre a
entrada dele na revolução. O autor afirma que a autobiografia de Plácido de Castro é falsa e que ele assegurou
previamente o apoio do governo do Amazonas para a revolução, antes de deixar Manaus para o Acre. Vários
elementos são apresentados como comprovação desta afirmação: Plácido distribuiu circulares impressas em Manaus
enquanto andava pelas barracas dos seringueiros; os acreanos tinham abundante munição desde o início da guerra,
assim como uma unidade militar do Governo do Amazonas; inúmeros artigos de jornais publicados em Belém e
Manaus circularam predizendo o fato bem antes de começar. Em contraste, afirma o autor, as notícias na Bolívia,
antes da revolta de Castro eram de confiança de que o país estava sendo bem sucedido em administrar o Acre.
Stokes conclui sua análise comparando Galvez, que era um político e defendia a democracia, com Plácido de Castro
que, segundo ele, era um líder militar com pouca paciência para assuntos legais e administrativos e tinha poder total
sobre a vida e a morte dos acreanos (Op Cit: 361-363).
83
deliberações sempre acatava (Pinto Cabral Op.Cit.:57). Seu objetivo era ganhar tempo até que o
Sindicato chegasse à região para tomar conta das atividades econômicas. Em função desse
arranjo, os proprietários de seringais de Xapuri não estavam propensos a participar de um
confronto armado. Somente mudaram de posição mediante a divulgação, feita por Castro, do
contrato de arrendamento com o Sindicato estrangeiro, quando pediram demissão coletiva do
Conselho.
Embora fosse um pequeno povoado, para ali afluía toda a produção de borracha, uma vez
que, de acordo com a política de boa vizinhança, a Bolívia havia decidido franquear a saída do
produto. Em Xapuri, encontrava-se também a maioria dos poucos acreanos que sinceramente
partilhavam a opinião de que a soberania boliviana devia ser mantida.
Em 4 de agosto de 1902, Plácido de Castro passou por Xapuri em direção ao Seringal
Vitória, onde chegou no dia 5 e reuniu um grupo de 33 homens. Na madrugada do dia 6, quando
chegaram à vila, ainda estavam todos dormindo, uma vez que na véspera a comunidade havia
festejado a data nacional boliviana. Entrando na Intendência, apoderou-se das poucas armas e
munições existentes e prendeu o intendente. Em dois dias tomou a cidade de Xapuri, aprisionou
as autoridades bolivianas e proclamou o Estado Independente do Acre.
Todos os seringalistas foram chamados para uma reunião no dia 7 de agosto para que
Plácido de Castro explanasse seus planos para a revolução. Ele explicou que o objetivo maior não
era contra a Bolívia, mas contra os aventureiros anglo-americanos que haviam arrendado o Acre,
aproveitando-se da incapacidade boliviana para desenvolvê-lo. Foi declarada a independência do
Acre da Bolívia com 41 assinaturas. A mesma bandeira que já havia sido hasteada por Galvez,
uma estrela vermelha sobre um fundo verde-amarelo, foi novamente colocada como símbolo da
revolução. Foi lavrada a Ata da Independência, cujas cópias foram enviadas rio abaixo, inclusive ao
Delegado Nacional da Bolívia.
Após a tomada de Xapuri, como afirma Leandro Tocantins (1979) "...Plácido vai adestrar
os bisonhos seringueiros de seu futuro exército e fazer o engajamento do maior número possível
de homens".56 Assim também se refere Alves de Souza (2002:156) ao afirmar que Plácido de
Castro comandou um exército de seringueiros que tiveram suas dívidas perdoadas pelos patrões
para lutarem ao lado dele. De acordo com Almeida (2002), na memória de sua família, originária
de Xapuri, Plácido de Castro passava pelos seringais recrutando à força e muitos seringueiros se
escondiam na mata para não serem obrigados a ir para a guerra. Stokes também faz referência ao
Uma das adesões, a de Alexandrino José da Silva, conhecido pelos crimes cometidos no Nordeste e pela violência
que implantou no seu seringal, seria responsável, no futuro, pelo assassinato, em emboscada, de Plácido de Castro
(Pinto Cabral 1986:86).
56
84
fato de que em todo lugar os donos dos seringais eram pressionados a contribuir com homens e
suprimentos.
O recrutamento de seringueiros para combater na guerra se expandiu além do vale do
Acre, como relata Alfredo Lustosa Cabral (1984), em memória que escreveu sobre os dez anos
que passou no Acre, entre 1897 e 1907, na qual faz referências a este momento. Trabalhando em
um seringal do rio Tarauacá, descreveu a expansão da ocupação naquele rio e as notícias da
guerra dos seringueiros com a Bolívia:
O cearense atrevido assenhoreou-se até as cabeceiras. Alguns deixaram a vida naqueles
confins de mundo em troca de umas quinze ou vinte curvas do rio já transformado em
igarapé. Pouco importava que morressem, outros lhes iriam suceder. Era preciso
engradecer, dilatar a superfície da Pátria e assim evitar que o peruano surgisse pela divisão
das águas no Urubamba e se apossasse primeiro. Por isso morria um e chegavam cinco
para o substituir.
Para aumento de revezes estourara no rio Acre a luta do seringueiro com a Bolívia,
encabeçada por Plácido de Castro. O governo cruzou os braços sem o menor auxílio, sem
enviar pelo menos um paneiro de farinha e uma saca de açúcar para a chibé daquela
gente. As praças de Manaus e Belém, que tinham seus capitais espalhados naquele rio,
viram-se forçadas a socorrer e ajudar, clandestinamente, com munição de boca e guerra o
seringueiro que, num ímpeto de rebeldia cívica, insurgira-se não consentindo o
estrangeiro tomar pé em suas terras...
Plácido de Castro vendo as coisas um pouco turvas, enviou ao Tarauacá um emissário
com poderes de requisitar forças dando patente de capitão para os donos de seringal que
conduzissem pelo menos vinte homens. Todo o rio acelerou-se, todo mundo queria ir...
outros proprietários trataram de organizar elementos combatentes para seguirem à linha
de frente. Íamos sair quando chegou um outro emissário para comunicar que as
hostilidades haviam cessado com a rendição incondicional dos bolivianos (Op.Cit:53).
O exército oficial da Bolívia, conhecido como Coluna Defensores do Acre, sob o
comando de Rosendo Rojas, era formado pelos índios aymara, bem treinados em operações
militares. Os acreanos tiveram sobre o opositor a vantagem do conhecimento do território e da
familiaridade com o clima, obstáculos de difícil superação para quem vinha do altiplano andino.
Plácido deixou Xapuri em direção a Caquetá com 80 homens armados chegando lá em 31
de agosto. Subiu o rio Acre e começou a mover as tropas para o lugar onde os reforços
bolivianos deveriam chegar, em Volta da Empresa. Desconhecendo o novo movimento
85
revolucionário em Xapuri, Rosendo Rojas estava marchando para o Acre para substituir as tropas
doentes em Porto Acre. Quando chegou em Morada Nova, uma barraca brasileira perto do Acre,
Rojas foi informado da revolução e das tropas acreanas, localizadas não longe dali. Rojas decidiu
supreender os acreanos e não esperar que eles tomassem a ofensiva. Ordenou uma arriscada
marcha noturna a Volta da Empresa e, na manhã de 18 de setembro, as forças de Rojas chegaram
no acampamento de Plácido de Castro e os pegaram de surpresa. Depois de 3 horas de dura luta,
os brasileiros recuaram de suas posições.
Plácido se retirou para o Seringal Bagaço, onde reorganizou as tropas e arregimentou
novos voluntários. Rojas não conseguiu perseguir os acreanos que se dispersaram na floresta,
porque seus homens não conheciam o ambiente e temiam um ataque dos revolucionários que
estavam em número maior. Esta decisão foi um grave erro tático porque o tempo estava do lado
dos acreanos e a oportunidade de logo atacar Porto Alonso desapareceu, conforme Stokes (op cit
354 e segs).
Sem saber a situação em Puerto Alonso, Rojas enviou um emissário falar com um
comerciante simpático aos bolivianos, Leo Hirsch, que confirmou que havia um estado
convulsivo no Acre devido aos abusos do Delegado Romero e ao contrato de arrendamento.
Disse que as forças iriam se aglutinar em torno de Castro e que a marcha por terra a Porto Acre
poderia ser desastrosa porque seria em território dominado pelos inimigos. Rojas considerou esse
conselho e, ao invés de ir ao alcance das tropas de Lino Romero, decidiu ficar em Volta da
Empresa e fortificar sua posição.
Castro começou a mover suas tropas na zona em torno de Volta da Empresa e, em 5 de
outubro, tinha toda a área sob controle. Nesta data, aniversário de Castro, o ataque foi iniciado.
As forças acreanas eram 4 ou 5 vezes maiores que os 90 soldados de Rojas. Mas a rápida vitória
planejada pelos acreanos não ocorreu. Foram 10 dias de luta. Castro enviou vários mensageiros
sugerindo a rendição e foi ampliando o cerco até ficar a 6 metros das trincheiras bolivianas. Em
14 de outubro Castro enviou outra nota. Esperando por reforço da Bolívia ou de Porto Alonso,
Rojas pediu um dia para responder. No 11º dia da batalha, 15 de outubro, Rojas enviou os
termos para capitulação. A derrota em Volta da Empresa deixou a Bolívia com tropas armadas
somente em Porto Acre, com Lino Romero, a única no baixo Acre.
No alto Acre, de Xapuri até os limites navegáveis na fronteira com o Peru, a situação era
mais complexa. Os bolivianos eram proprietários de muitos seringais e mantinham comunicação
por meio de um varadouro com o rio Tahuamanu, em rota direta com Riberalta, ligando os rios
navegáveis da Bolívia com o Acre. Esta via poderia representar uma ameaça aos acreanos, se
fosse utilizada para trazer reforços aos bolivianos.
86
Depois de ganhar a batalha de Volta da Empresa o próximo passo de Plácido de Castro
seria descer o rio e atacar Porto Acre, a capital do território. Ele decidiu não fazer isso e
mobilizou suas forças para o alto Acre para invadir território inquestionavelmente boliviano,
deixando apenas uma pequena força em Porto Acre para manter o bloqueio sobre as tropas de
Lino Romero.
Em junho de 1902, o Capitão Federico Román, dono de um pequeno seringal em Xapuri,
organizou uma unidade de bolivianos voluntários, denominada de Coluna Porvir. Diante do
avanço das tropas acreanas, essa força boliviana se dispersou para a Bolívia e se localizou no
Seringal Porvir57, no Tahuamanu, onde ficou vivendo dos recursos da floresta até receber
reforços de Suárez.58
Nicolás Suárez abastecia essa unidade e acreditava que não seria atacado porque confiava
em sua amizade com Rodrigo de Carvalho, que havia sido seu empregado. No entanto, o
barracão de sua propriedade, no Seringal Bahia, foi ocupado por soldados acreanos armados,
mostrando a Suárez que a revolução estava chegando. Ele decidiu dar toda colaboração para
reforçar as forças bolivianas.
Reunindo mais soldados, em 7 de outubro as tropas começaram a marchar para o Seringal
Bahia e em 10 de outubro ficaram a 10 km da base dos acreanos. Planejaram atacar de
madrugada. Uma forte chuva obrigou os acreanos a ficar dentro de casa enquanto os bolivianos
avançavam até chegar a 30 ou 40 metros do barracão do Bahia. Quando a chuva parou e os
acreanos saíram, foram surpreendidos pelo ataque boliviano. Trocas de tiros ocorreram durante
toda a noite sem que um lado vencesse o outro. Finalmente os bolivianos conseguiram atingir o
barracão com fogo arremetido por flexas, muitos acreanos foram queimados vivos e a munição
estocada explodiu.
Plácido de Castro recebeu a notícia da batalha do Seringal Bahia ao mesmo tempo em que
ficou sabendo que uma unidade militar boliviana, a 24 de setembro, estava sendo organizada em
Riberalta, para reforçar Rosendo Rojas no rio Acre. Era formada por 25 voluntários e mais 70
peões armados por Suárez.
O receio de Plácido de Castro era que as forças bolivianas se unissem: a que havia ganho
no Bahia com as tropas do Abunã, formando um exército superior ao dos acreanos. Ele
ponderou que seria mais difícil vencer os bolivianos do que se tivesse que combatê-los
Foi no Seringal Porvir que nasceu Chico Mendes, como será apresentado no Capítulo 4, item 4.1.1.
Stokes afirma que os historiadores brasileiros omitem esta parte da Guerra do Acre que ocorreu no alto Acre nos
últimos meses do ano de 1902. Segundo ele, Castro teve que enfrentar bolivianos acostumados com a floresta e,
apesar de estarem em número menor, demonstraram que podiam ser superiores aos acreanos no campo de batalha.
Foi uma espécie de guerrilha, os bolivianos vivendo na floresta abastecidos por Suárez e os acreanos abastecidos
pelos seringalistas, recebendo navios e navios de suprimentos do governo do Amazonas (Op cit: 382).
57
58
87
separadamente; por esta razão, redirecionou as tropas que estavam indo para Porto Acre em
direção ao rio Abunã.
Três dias antes da chegada de Plácido no Abunã, Suárez ordenou que 70 dos seus
empregados voltassem às estradas de seringa, deixando apenas 45 soldados para defender as
fortificações construídas com borracha. Em 17 de novembro Castro atacou as fortificações
bolivianas; os bolivianos lutaram por quatro horas mas, percebendo a força superior de Castro,
recuaram para a floresta. Os acreanos saquearam o barracão e atearam fogo, indo a seguir para
Costa Rica, a grande propriedade no Tahuamanu, onde, por intermédio de espiões, Castro
soubera que estava parte da Coluna Porvir. Castro foi surpreendido no caminho pelos bolivianos
e as colunas da frente do seu exército foram atacadas. Rapidamente, ele ordenou que as colunas
de trás se colocassem em volta da estrada e fez um cerco de fogo em torno dos bolivianos.
No barracão do Seringal Costa Rica, Plácido encontrou correspondências indicando que
uma grande força boliviana estava perto do rio Orton e outro contingente cruzando o Madre de
Diós e que representantes do Sindicato estavam chegando em Porto Acre com o consentimento
do governo brasileiro.
E era o que estava ocorrendo. Em 4 de novembro, chegou em Belém uma expedição do
Sindicato, a Pierpont Morgan Acre Syndicate Expedition, comandada por J.W.J. Lee e H.H. Horn, com
um botânico, um cirurgião e um especialista em borracha. Conseguiram embarcar em 15 de
dezembro somente até Antimary no baixo Acre. Lá souberam que Plácido de Castro e outros
revolucionários estavam em Caquetá impedindo a subida de qualquer navio para o Acre. Os
membros do sindicato foram ameaçados de morte por oficiais do governo brasileiro se
decidissem prosseguir até Porto Acre. Eles levantaram copiosas provas do papel do governo do
Amazonas no movimento e retornaram a Manaus. Só um conseguiu chegar em Porto Acre.
Receoso de ser surpreendido pela força boliviana que estava no Bahia, Castro ordenou
marcha forçada a Porto Acre sem atacar as forças em Porvir. Neste momento não havia um
boliviano em todo o Acre a não ser as forças de Lino Romero, que estavam sem abastecimento,
devido ao bloqueio acreano.
A marcha de Castro para Porto Acre demorou um longo tempo e os acreanos não
ficaram em condições de atacar, a não ser no final de dezembro. Uma das razões da demora em
chegar em Porto Acre, era a grande quantidade de borracha apreendida dos bolivianos, cerca de
60 toneladas só do Tahuamanu, que precisava ser transportada para os compradores brasileiros.
Em 15 de janeiro de 1903, em Porto Acre, onde estavam as maiores tropas bolivianas, o
exército de Plácido de Castro cercou a praça de guerra, a circulação de navios foi interrompida e
às oito e meia da manhã a bandeira acreana foi colocada no outro lado do rio. Às 8 horas dois
88
tiros vindos da floresta foram respondidos pelos 1000 rifles acreanos e a última batalha havia
começado. Foi usada a mesma estratégia de Volta da Empresa: desde 8 de janeiro a cidade foi
sendo cercada.
O episódio principal ocorreu em Porto Acre, local onde o rio estava sendo guardado por
uma grossa corrente, impedindo a passagem de navios. Castro capturou o navio boliviano rio
Afuá, transformou-o no Independência e o encheu de borracha. Era fundamental conseguir
cruzar essa barreira e permitir que o vapor a ultrapassasse, uma vez que da venda da borracha
dependia o sustento das tropas e a compra de munição. Encarregou os soldados de limar a
corrente, enquanto se preparava para passar a barreira, tendo o navio sob seu comando direto.59
Em 23 de janeiro de 2003, Romero enviou Santivañez com uma bandeira branca pedindo
cessar fogo a Plácido, que recusou, e o tiroteio recomeçou. Em 24 de janeiro, como as tropas
bolivianas estavam exaustas e sem suprimento, Romero capitulou. Os bolivianos abandonaram as
armas e os prédios públicos e Castro prometeu garantia de vida e liberdade, providenciando
transporte para Manaus. Mais uma vez foi declarado o Estado Independente do Acre, embora o
objetivo final dos acreanos continuasse sendo obter a anexação do Acre ao Brasil. Castro voltou
sua atenção para a administração do Estado Independente do Acre; os navios esperando em
Caquetá foram liberados após pagamento da alfândega e, pela última vez, os bolivianos deixaram
o Acre.
Imediatamente depois destes acontecimentos, o general José Manoel Pando, Presidente
da Bolívia, colocou-se em marcha à frente de um corpo de 1800 homens do exército para
expulsar Plácido de Castro, colocando em prática um anúncio que fizera muitos meses antes.
Segundo Stokes (1974:354 e segs), nesse momento Pando cometeu dois erros: falhou em
não prestar atenção às objeções brasileiras em relação ao arrendamento, acreditando que os EUA
iriam intervir para defender os interesses dos investidores. E ameaçou o Brasil com uma força
expedicionária sobre seu comando muito antes das unidades militares estarem prontas para a
marcha. Foram estes anúncios que tiraram o Brasil da letargia e o levaram a promover uma
reação agressiva contra a Bolívia.
Em 28 de novembro os bolivianos anunciaram a partida de 3 batalhões de infantaria e
artilharia para o Acre. Em dezembro Pando declarou lei marcial em todo o território das colônias,
incluindo o Acre, como um prelúdio da expedição militar anunciada por ele. Em 23 de dezembro
Esse foi o episódio que ficou mais conhecido da Revolução Acreana e virou o símbolo do heroísmo dos acreanos,
principalmente na versão de que os seringueiros iam se oferecendo para limar a corrente e iam sendo fuzilados, um a
um, pelos bolivianos localizados na margem oposta, até conseguirem retirar o obstáculo do caminho do Afuá. Sobre
esse tema ver Aguiar 2002.
59
89
Rodrigues Alves ordenou Rio Branco a alertar o governo boliviano que o Brasil não queria ver
nenhum residente brasileiro no Acre subordinado a uma lei marcial.
Em janeiro o exército ainda não tinha partido e Pando anunciou que comandaria
pessoalmente a expedição. O presidente Rodrigues Alves decidiu, então, fazer uma ofensiva
militar em resposta ao anúncio de Pando sobre a expedição e, em 19 de janeiro, tornou público o
envio de 1.800 soldados ao Acre. Mas antes de enviar as tropas ele insistiu em ter uma posição de
neutralidade dos Estados Unidos na questão do Acre. O Secretário de Estado John Hay declarou
que o território do Acre não oferecia grande interesse aos EUA e que qualquer investimento em
capital deveria ser visto como perdido, uma vez que o clima na área excluía a possibilidade de
norte-americanos lá se estabelecer.
Quando o Brasil decidiu por ações armadas, em 21 de janeiro Pando enviou o ministro da
guerra, Coronel Ismael Montes para o Acre e, em 26 de janeiro, o seguiu como chefe do Batalhão
Campero. Antes de Pando deixar La Paz, Rodrigues Alves decidiu assumir o controle da situação,
e, a fim de garantir logo a vida dos brasileiros, fez seguir para Manaus uma divisão naval, sob o
comando do contra-almirante Alexandrino de Alencar e, para o Acre, vários batalhões do
exército às ordens do general Olympio da Silveira, herói da guerra de Canudos. Ao mesmo
tempo, outro grande efetivo do exército foi concentrado na fronteira com a Bolívia, em Mato
Grosso, e, para o Madeira, no Amazonas, foi deslocado um contingente da polícia amazonense
(Reis 1936:22). Pando saiu só depois que as intenções militares do Brasil ficaram públicas.
Em 3 de fevereiro Rio Branco enviou uma carta ao governo boliviano dizendo que a
intenção de Pando de submeter os acreanos à força das armas era inaceitável ao Brasil. Declarou
que o território era litigioso, pretendido por Bolívia, Peru e Brasil, e que o Brasil estava mais
preparado para controlar a situação devido ao fato da maioria da população ser brasileira.
Mandou o ministro brasileiro em La Paz avisar o governo boliviano que Pando não deveria
ultrapassar o paralelo 10º 20' e que o Brasil pretendia ocupar militarmente o Acre enquanto as
discussões de paz fossem feitas. Esta ameaça, e o envio de uma força armada ao Acre, indicaram
a determinação de Alves de assegurar o Acre para o Brasil.
As forças de Pando chegaram em Porto Rico em abril. Plácido levou suas forças à Bolívia
depois que ficou seguro de que as tropas federais estavam ocupando o baixo Acre. Os bolivianos
foram impedidos pelo fogo acreano de cruzar o rio. Plácido de Castro avançou suas tropas para
Porto Rico em 18 de abril e o ataque boliviano o obrigou a se retirar. Na tarde de 21 de abril o
ataque foi retomado e os acreanos ocuparam o lado esquerdo de Tahuamanu e o Manuripe.
Pando recebeu cópia da proposta de modus vivendi acordado entre a Bolívia e o Brasil e enviou um
comandante a Porto Rico informar que a guerra acabara.
90
Ao receber do general Olympio da Silveira a comunicação do entendimento, Plácido de
Castro já tinha o general Pando quase prisioneiro em Porto Rico. Por não concordar com os
métodos utilizados pelo general, Castro afastou-se do processo. Posteriormente, por decisão
presidencial, Olympio da Silveira foi afastado e Plácido foi reconduzido à liderança dos assuntos
do Acre, tendo sido nomeado Governador do Acre Meridional.
Em 1904, Plácido de Castro decidiu retomar seu objetivo original e adquiriu o Seringal
Capatará, que havia sido levado a leilão público por dívidas não liquidadas e que estava localizado
próximo a Volta da Empresa. Nos anos seguintes adquiriu novos seringais e fazendas na Bolívia e
transformou-se em um próspero comerciante. Em 8 de agosto de 1908 Plácido de Castro sofreu
uma emboscada e foi assassinado por Alexandrino José da Silva.
2.1.6
O Tratado de Petrópolis
A mudança na presidência brasileira foi marcada por uma nova postura do governo
brasileiro em relação ao Acre. Enquanto Campos Salles (1898-1902) não quis envolver a
problemática república na questão acreana, o novo Presidente, Rodrigues Alves (1902-1906)
estabeleceu uma política oposta. Pela primeira vez a questão do Acre assumiu alta prioridade no
governo. A mudança de posição, segundo Stokes, deve ser diretamente atribuída ao novo
presidente que, pelo seu pragmatismo, tornou possível ordenar massivas divisões do Exército
brasileiro nos territórios que seu antecessor via como inquestionávelmente boliviano. Alves era
prático e livre de retrições legalistas ou doutrinárias em suas ações. Enquanto Salles ficou inibido
de usar a força contra a Bolívia, em função do tratado de 1867, Alves não considerou esses
limites. Afinal, a área amazônica produtora de borracha, largamente dependente do Acre,
constituía 20% das exportações totais do Brasil, ao lado do café de São Paulo (Op cit:400 e segs).
Seabra, ministro do interior, rapidamente estabeleceu inteligência e cooperação com o
governo do Amazonas e o Barão do Rio Branco, nomeado ministro das Relações Exteriores,
iniciou novas negociações com a Bolívia, em um contexto complexo e delicado, mas favorável ao
Brasil, em função da vitória dos acreanos no conflito armado. Logo que assumiu, Rio Branco
decidiu que a política do Brasil seria reconhecer os direitos da Bolívia na questão do Sindicato.
Mas em seguida mudou de posição; pediu a rescisão do contrato e propôs a compra pelo Brasil
de todo o território coberto pela concessão. Pando decidiu que se não fosse possível modificar a
posição do Brasil, o contrato seria anulado. O principal fator para essa decisão era a aparente
indiferença de muitos governos com relação aos direitos de seus cidadãos em relação à
concessão, e a incapacidade financeira da Bolívia em manter uma força armada permanente no
Acre.
91
Vários elementos precisavam ser administrados simultaneamente pelo novo governo: a
ameaça do Sindicato internacional que se preparava para assumir o território acreano; o avanço
de um novo contingente militar chefiado pelo próprio presidente da Bolívia; denúncias da Bolívia
contra o governo do Amazonas, acusado de financiar a revolta acreana; a polêmica em torno da
aplicação do artigo 2o do Tratado de Ayacucho; e, por último, investidas de caucheiros peruanos
nos afluentes do rio Juruá.
As negociações tiveram como resultado a assinatura de um modus vivendi, pelo qual o Brasil
ocupava o Acre militarmente, ao mesmo tempo em que eram iniciadas as conversações para um
novo tratado de limites entre as duas nações. O passo seguinte foi o envio, pelo Barão de Rio
Branco, em 9 de fevereiro de 1903, de um ultimatum à Bolívia, que sintetizava as ações efetivadas
até aquele momento: (i) definia o território localizado entre o paralelo 10o20’ sul e a linha Madre
de Diós-Javary como litigioso, de acordo com o Tratado de Ayacucho; (ii) determinava a
ocupação militar e o controle sobre a administração do território, em função de estar habitado
por brasileiros, até decisão sobre o litígio; (iii) reafirmava que os brasileiros estavam defendendo o
território face à ameaça de dominação estrangeira e que seriam amparados no caso de avanço
militar da Bolívia; (iv) afirmava que não permitiria o avanço da expedição militar ao norte do
paralelo 10o20’ e (v) determinava a retirada da aduana de Porto Acre para o sul do mesmo
paralelo.
O governo brasileiro, no entanto, não podia desconsiderar a sólida posição legal da
concessão. Esforços foram iniciados por Rio Branco, em fevereiro, para tentar comprar o
sindicato. Havia um contrato assinado e ratificado pelo Congresso e a expedição do sindicato
havia demonstrado que foi em função do apoio brasileiro a Castro que o sindicato não conseguira
iniciar suas operações. Para conduzir as negociações com o sindicato o governo brasileiro
escolheu seu agente financeiro em Londres, N.M. Rothschild & Son. Isso demonstra que embora o
comércio com os EUA fosse mais importante do que com a Inglaterra, e o sindicato estivesse
baseado em Nova York, o Brasil lidava principalmente com os banqueiros ingleses em assuntos
financeiros internacionais, conforme Stokes (1974:400 e segs).
Em 26 de fevereiro de 1902, Frederick Whitridge, agente do sindicato, assinou um acordo
com o Brasil pela indenização de 114,000 libras como recompensa por acordarem em se retirar
do acordo com a Bolívia. A compensação foi paga em 25 de março de 1903 e o sindicato
concordou em renunciar ao contrato, a indenizações e prejuízos. A influência norte-americana e
inglesa foi removida da questão do Acre, deixando a Bolívia sozinha no confronto.
O modus vivendi que finalmente interrompeu as lutas, em abril, foi o documento que
tornou possível, para ambos os lados, barganhar com tranquilidade e chegar a uma solução
92
definitiva. Assinado em La Paz em 21 de março de 1903, determinava que o Brasil iria ocupar e
administrar a parte do território considerada litigiosa localizada ao oeste do rio Iaco e limitada ao
norte pela linha geodésica do rio Madeira à foz do Javary e ao sul pelo paralelo 10º 20' da marca
referida até o Iaco. O governo brasileiro reconhecia que o território ao sul daquele paralelo era
boliviano em virtude do artigo 2º do tratado. Se em quatro meses da assinatura um acordo
permanente não fosse alcançado, o Brasil concordava em remover suas tropas e estabelecer uma
arbitragem. O acordo foi prorrogado até 21 de outubro de 1903.
Tendo o conflito sob controle, Rio Branco estabeleceu como base do acordo um
procedimento inovador: a compra do Acre. A Bolívia, por considerar essa proposta de difícil
execução, informou ao Brasil que a situação de litígio poderia ser considerada superada, uma vez
que o contrato com o Bolivian Syndicate não havia se concretizado. O chanceler brasileiro
reafirmou a proposta, declarando que, se não fosse aceita, a área permaneceria em situação
litigiosa e todos os títulos e protocolos que permitiam o trânsito da Bolívia pelos rios brasileiros
seriam anulados. Pela primeira vez o governo brasileiro questionou a soberania boliviana sobre o
Acre, habitada naquele momento por mais de 20 mil pessoas.
Finalmente as negociações foram abertas tendo como ponto de partida a permuta
territorial. A Bolívia pediu a margem direita do rio Madeira e o litoral do rio Paraguai, com a
exclusão das populações brasileiras. Essa proposta não foi aceita pelo Brasil, que ofereceu a troca
de territórios localizados à esquerda do Madeira, em proporção bem menor àqueles que seriam
cedidos pela Bolívia. A diferença seria feita através de indenização financeira.
O Tratado de Petrópolis foi assinado em 17 de novembro de 1903, como um acordo de
permuta de territórios e de compensações entre o Brasil e a Bolívia. Foi ratificado em 24 de
dezembro pelo Congresso Boliviano e em 12 de fevereiro de 1904 pelo Congresso Brasileiro.
Como compensação pela perda do Acre, o Brasil deu à Bolívia pequenas áreas de terras
desabitadas, uma indenização de dois milhões de libras esterlinas, que a República da Bolívia
aceitou com o propósito de aplicar principalmente na construção da estrada de ferro MadeiraMamoré ou em outras obras tendentes a melhorar as comunicações e desenvolver o comércio
entre os dois países. Garantiu à Bolívia completa liberdade de comércio por terra e água em todo
território brasileiro como direito perpétuo e a autorização para alfândegas bolivianas em Belém,
Manaus e Santo Antônio assegurando liberdade de exportação e importação. Ao Bolivian Syndicate
o Brasil pagou uma indenização de 110 mil libras esterlinas, equivalente a 550 mil dólares no
câmbio da época.
Para a Bolívia, o resultado das negociações não foi favorável, tendo sido criticado tanto
interna quanto externamente. Afinal, a área do Acre era a mais produtiva floresta de borracha de
93
toda bacia amazônica. A única vantagem foi a possibilidade de um caminho para o Atlântico,
através do Madeira, concretizando, de certa forma, a expectativa histórica daquele país de ter uma
saída para o mar. Para o Brasil, além da ampliação do território do país em 152 mil km2, foi um
ganho econômico, uma vez que, em cinco anos, em função da arrecadação oriunda da
comercialização da borracha, o Brasil foi ressarcido do valor pago à Bolívia.
Com esse acordo, o Acre passou a fazer parte do Brasil, restando ainda o problema de
limites com o Peru, que só foi definitivamente resolvido em 8 de setembro de 1909, com a
assinatura do Tratado do Rio de Janeiro. 60
Embora os líderes da insurreição pleiteassem a emancipação e constituição de uma
unidade a mais na federação, em 25 de fevereiro de 1904, pelo Decreto 1181, o Congresso
Nacional votou a definição administrativa do Acre como Território da União. Assim, a vitória da
revolução pareceu uma derrota, causando grande frustração tanto aos acreanos que haviam
organizado e lutado por ela, quanto ao governo do Amazonas que a financiara.
Este fato deu origem a um novo conflito, agora com o Estado do Amazonas. Entendia o
Amazonas que seu governo havia contribuído com a Revolução Acreana e o fato de arrecadar os
impostos sobre a exportação dos produtos regionais, era um elemento que atestava e legitimava a
pretensão sobre o Acre.61 Ocorre que a decisão do Amazonas de arrecadar os impostos de
exportação sobre toda a borracha acreana, criara forte reação contrária dos comerciantes e
políticos de Belém, tendo sido necessária a intervenção direta do ministro da Fazenda, Leopoldo
Bulhões, proibindo expressamente a ação do governo do Amazonas, para reestabelecer o
equilíbrio entre os dois estados (Weinstein 1993:234). Certamente a disputa comercial entre o
Amazonas e o Pará, em torno da borracha do Acre, influenciou a decisão de transformá-lo em
Território da União.
Em 31 de julho de 1933, Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório, recebeu a
proposta de nomeação de uma Comissão Arbitral tendo por fim avaliar os direitos inerentes ao
Amazonas em função da perda do Acre, como resultado do Tratado de Petrópolis. O Amazonas
obrigava-se, em compensação, à desistência da ação sub-judice no Supremo. A desistência foi aceita
em troca do endosso da União a um empréstimo a ser tentado na Europa ou nos Estados
60 Os conflitos de fronteira com o Peru foram resolvidos pelo Tratado do Rio de Janeiro, negociação diplomática
realizada pelo Barão do Rio Branco, em 1909. Conforme Almeida (2002), o conflito com o Peru não era um 'conflito
de fronteira' e sim um litígio sobre território, já que o Peru contestava o direito da Bolívia sobre o território cedido
por ela ao Brasil desde o Tratado de Ayacucho. A habilidade de Rio Branco consistiu em ignorar o Peru na primeira
fase de negociações, tratando apenas com a Bolívia e utilizando em seguida a Bolívia como aliada, ao tratar com o
Peru por meio de arbitragem. Ao mesmo tempo o governo federal criou um fato consumado no Alto Juruá com a
implantação, em 1904, da administração federal em Cruzeiro do Sul e a atuação de Thaumaturgo nos conflitos em
torno do rio Amônia, que era habitado por peruanos e não por brasileiros.
61 O Amazonas abriu uma ação contra a União, em 4 de dezembro de 1904 e recorreu ao Supremo Tribunal Federal.
A defesa, feita por Ruy Barbosa, está apresentada em "O Direito do Amazonas ao Acre Septentrional" (1910), onde
são elencados argumentos históricos, cartográficos, diplomáticos, inclusive o uti possidetis.
94
Unidos, por intermédio do Banco do Brasil. No Rio de Janeiro, em 30 de agosto de 1936, no
Ministério da Justiça, foi constituída a comissão que arbitrou a indenização.
Novamente, o cerne da questão, era o direito, da União ou do Amazonas, sobre o valor
das exportações advindas da exploração da borracha, que não paravam de crescer: entre 1903 e
1909 alcançaram o total de 514.263:776$000, colocando o Acre em terceiro lugar na exportação
geral da República, sendo superado apenas por São Paulo e Minas Gerais, apesar da diferença, em
termos de infra-estrutura e administrativa, ser muito grande entre aquelas regiões.
Os anos seguintes tornaram evidentes as fragilidades de uma economia baseada
exclusivamente no extrativismo, na medida em que o crescimento da demanda por borracha
passou a ser atendido pelos seringais de cultivo implantados pela Inglaterra no sudeste asiático,
tendo como origem as sementes de seringueiras roubadas do Vale do Tapajós, no primeiro caso
reconhecido de biopirataria na Amazônia.
A análise dos episódios históricos relacionados com a Revolução Acreana permite a revisão
de uma posição típica da historiografia nacional, que omite o papel de Plácido de Castro e dos
seringueiros na incorporação do Acre ao Brasil, e da historiografia acreana, que reduz a
importância do Governo do Amazonas e, especialmente de Rio Branco, na administração
diplomática do conflito.
De todos os fatos relatados, talvez o mais marcante na formação da identidade acreana,
tenha sido a experiência de constituir e manter, durante mais de sete meses, o Estado
Independente do Acre, sob a liderança de Luiz Galvez.62 A escassa literatura analítica sobre esse
período, associada ao folhetim de Márcio Souza amplamente conhecido sobre o tema (Souza
2001), acabaram por descaracterizar a história verdadeira.63 A independência do Acre passou a ser
vista como uma aventura de conquista territorial liderada por um romântico espanhol às custas da
ingenuidade dos caboclos cearenses, interpretação que não se sustenta quando são analisados os
atos oficiais do período, conforme afirma o historiador acreano Marcos Vinicius Neves:
Ao contrário do que foi popularizado pelo romance 'Galvez o Imperador do Acre', de
Márcio Souza, os revolucionários acreanos não pretenderam restaurar uma monarquia já
morta, e muito menos tornar Galvez um Imperador com poderes especiais. Ao se inspirar
no movimento Jacobino francês, os brasileiros do Acre deixavam claro que queriam ir
Outro movimento de independência ocorreu no território entre o Oiapoque e o Araguari, no atual Estado do
Amapá, área contestada pelo Brasil e pela França, e disputada em função da presença de ouro, na qual surgiu a
República do Cunani, ou o État Libre du Counani, entre 1894 e 1895, que tinha selo, bandeira e leis. A pouca
importância dada ao fato é contestada por José Sarney (1998) que escreveu: "Era uma inteligente e sábia ação
diplomática e política, para criar uma região independente, sob a proteção da França". Ver também Meira (1989).
63 A historiografia acreana está a merecer uma pesquisa mais profunda sobre Galvez. Para isso seria necessário
recorrer aos arquivos do Instituto Arqueológico de Pernambuco, onde estão os documentos do Estado
Independente do Acre, pesquisa que não foi realizada por extrapolar os objetivos imediatos deste trabalho.
62
95
muito mais longe do que a própria república oligárquica brasileira já havia conseguido ir.
A intenção dos fundadores do Estado Independente do Acre era estabelecer um governo
republicano, democrático e libertário. Este governo tinha como base os ideais populares
de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que haviam guiado o importante movimento
revolucionário francês (Governo do Acre 1999:12).
Embora contemporânea de outras manifestações de conflito com o poder central, como a
Guerra de Canudos, a Revolução Acreana não se fundamentou na volta à monarquia nem em
manifestações religiosas ou messiânicas. Certamente por isso teve origem nesse momento uma
identidade regionalista e nacionalista presente ainda hoje no Acre, cujo valor político sempre foi
ressaltado pelas elites tradicionais do Acre.
Os seringueiros que participaram da revolução como soldados de Plácido de Castro foram
denominados de veteranos do Acre, e afirmavam, há duas décadas atrás, com conotação heróica, que
foram eles que tornaram o Acre brasileiro.64 A memória oral dos seringueiros do vale do Purus,
também associa a conquista do território pelo Brasil à presença dos seringueiros naquela área e o
direito a melhores condições de vida na atualidade, à conquista heróica do território, no passado,
idéia ratificada pelo escritor da carta como se pode perceber nesse relato inserido em
correspondência enviada pelo Padre Heitor Turini ao Presidente Geisel, em 1976, para justificar o
pedido de melhorias urgentes para os seringueiros do Acre:65
O seringueiro, sentinela do país, soldado humilde da preciosa borracha, é o nordestino
que abandonou sua terra natal para vir ao Acre, para 'riscar o pau', para muitos poderem
andar de carro, ele que nunca viu um carro, a não ser os mais próximos das cidades. O
Acre era Bolívia por uma extensão de uns 400 km. Ficou sendo Brasil pela presença do
seringueiro. Outra parte do Acre era Peru, pela mesma presença do seringueiro, ficou
sendo Brasil.
'Eu era criança de uns 10 anos', me contava o velho Santana, 'quando aqui, que era Peru,
chegou um Capitão do Brasil e perguntou: - Vocês são brasileiros? - Somos. - O que
vocês mais desejam ou precisam? - Que esta terra seja Brasil, todos responderam. - E por
que? continuou o Capitão. - Porque nós vivemos da borracha e aqui tudo é difícil para
comerciar com o Peru, não há comunicação. Queremos que esta terra desbravada por nós
seja Brasil. - Até onde tem seringueiras? perguntou o Capitão. - Subimos, todo o povo e
O livro de Araújo Lima (1973) apresenta correspondências de Plácido de Castro, onde chama a atenção o caráter
anti-imperialista por ele conferido à luta.
65 Carta de Padre Heitor Turini, da Ordem dos Servos de Maria,Vicariato Provincial do Acre e Amazonas ao General
Ernesto Geisel, Presidente da República Federativa do Brasil. Rio Branco, Acre, 30 de junho de 1976. O seringueiro
citado deveria estar com 84 anos à data da entrevista.
64
96
as crianças, com o Capitão, até o lugar onde terminam as seringueiras e as árvores do
caucho. - Muito bem, disse o Capitão. Marquem bem, até aqui chegará o Brasil'.
Poucos anos depois, com os acordos novos com o Peru e com a Bolívia, o Brasil chegou
até lá, até o Sombuiaco, no limite com Santa Rosa. O Acre tornou-se Brasil pela mão dos
seringueiros. (Carta do Padre Heitor Turini ao General Ernesto Geisel, Rio Branco, Acre,
30 de junho de 1976).
Outra referência sobre a participação dos seringueiros na Revolução Acreana encontra-se em
entrevista de Agnaldo Moreno, neto de Joaquim Moreno, soldado de Plácido de Castro,
concedida ao historiador Marcos Vinicius Neves e publicada em 'Galvez e a República do Acre'
(Governo do Acre 1999:26-29):
P: O que motivava esses homens a se incorporarem nas batalhas?
R: Havia a promessa de que eles iam brigar para ser os donos do Acre, as terras iam ser
divididas entre os seringueiros. Essa era a coisa mais lógica, pois ninguém ia brigar só
porque queria brigar. Naquela fase da guerra, também não eram debitados, por
exemplo, os bens de consumo, que eles recebiam dos seringalistas. Esses bens eram a
forma encontrada pelos seringalistas para ajudar na guerra.
P: Há registros de que o Plácido de Castro teve maior participação na questão da
constituição da sociedade acreana do que simplesmente na Revolução...
R: Olha, a guerra dos acreanos não foi do Brasil, o Brasil não esteve em guerra com a
Bolívia. Quem fez a guerra com a Bolívia foram brasileiros que eventualmente estavam
aqui. E ninguém foi brigar no exército de Plácido de Castro à força. Para arregimentar
o povo era natural que eles garantissem aos seringueiros que estes seriam os donos das
terras que ocupavam. Isso foi conversado, foi dito, não era só aquele auxílio alimentar
que eles deram para as pessoas... Plácido sabia que se não cumprissem o prometido
seria uma situação insustentável para todos, pois se os seringueiros se sentissem traídos
ia ter um movimento de ódio contra eles, da massa popular... O Plácido viu que não
seria também só dizer está aqui a tua terra, vai te virar, não ia funcionar, porque por
outros meios o seringalista massacraria o trabalhador, que ia fugir, ia embora, porque
não tinha como viver. ... Então Plácido pensou num regime cooperativo.
P: E o que aconteceu em seguida?
R: O Plácido investiu tudo que ele tinha de capital na compra de mercadorias prá
fornecer pro pessoal. Criou o processo da conta de venda da borracha marcada, a
borracha tinha a marca do seringalista e do seringueiro. O seringalista passou a liquidar
a borracha do seringueiro mediante a conta de venda, que vinha lá da firma de Manaus
e Belém...fiscalizada pela Receita Federal, que recebia tributos. Então isso contrariou os
97
interesses dos seringalistas e Plácido de Castro passou a ser odiado pelos próprios excolegas da história.
P: Mas a reforma agrária efetivamente não aconteceu. O próprio Plácido de Castro
também não deu propriedade das estradas de seringa pros seringueiros...
R: Porque não teve tempo... ele não teve tempo nem prá dar um impulso àquelas
idéias.
Em 1948, quase cinqüenta anos depois, os veteranos da Revolução Acreana foram
beneficiados com pensão especial, aprovada pela Lei No. 380 de 10 de setembro e, através da Lei
N. 3.951, de 2 de setembro de 1961, esse benefício passou a ser transferível à viúva e filhas
solteiras, desde que comprovada a continuidade desse estado civil, invalidez, incapacidade, ou
falta de meios de subsistência.
Durante a Segunda Guerra Mundial, como vimos, os seringueiros foram novamente
convocados, agora para a Batalha da Borracha, também com promessas e expectativas em relação
ao futuro, naquele caso, em recompensa pela contribuição que haviam dado ao Brasil e às forças
aliadas.
Foram essas motivações que acabaram mobilizando os descendentes dos veteranos do Acre
e os Soldados da Borracha e seus filhos, a tentar conquistar novamente o reconhecimento pelos
serviços prestados ao país, na luta pela defesa da terra e da floresta onde viviam, 70 anos depois.
Sob a liderança de Chico Mendes o significado da Revolução Acreana foi reinterpretado pelos
seringueiros, ao estabelecer um nexo entre os conflitos do passado e do presente. Esses episódios
passaram a fazer parte da identidade social do seringueiro e influenciaram os movimentos sociais
que ocorreram nas últimas décadas do século passado, como demonstram entrevistas de Chico
Mendes e análises de historiadores.66
E uma síntese recente desta história ocorreu no centenário da Revolução Acreana, em 2002.
Sob a gestão política de um partido de esquerda, o Partido dos Trabalhadores, ficou em evidência
o alto valor simbólico que têm os episódios históricos na consciência da elite política do Acre. Os
eventos associaram os heróis do passado, os soldados seringueiros, aos do presente, Wilson
Pinheiro, Chico Mendes e outros seringueiros assassinados, conseguindo, dessa forma,
reestabelecer os marcos de construção da identidade acreana.
Para isso acontecer, os símbolos principais que lembram os episódios da Revolução Acreana
(bandeira, hino e obelisco aos heróis) foram recolocados em cena. A bandeira do Acre, que é a
mesma criada por Galvez, tornada oficial em 1921 e que em muito se aproxima da do PT (uma
Em 1981, quando iniciei meu trabalho em Xapuri, conversei com velhos seringueiros, os veteranos, que reafirmaram
essa correlação entre ter participado da Revolução Acreana e continuar lutando pela terra. As entrevistas de Chico
Mendes fazem essa relação claramente, como se verá no decorrer no texto.
66
98
estrela vermelha em um fundo verde-amarelo), estabeleceu a conexão entre o momento atual e o
do Governo Independente. O hino oficial do Estado, que exalta os feitos heróicos e o sangue
derramado pelos líderes do passado, passou a lembrar, também, o assassinato dos heróis do
presente. E o obelisco, construído em 1937 no lugar onde estavam enterrados os soldados
seringueiros de Plácido de Castro e cercado por pedaços da corrente limada no rio Acre,
demolido na administração de Wanderley Dantas, durante a ditadura militar, foi reconstruído e
reinaugurado, exatamente no mesmo local do anterior.
A frase que estabelece essa relação de sentido é a de que "o Acre foi o único estado do
Brasil que escolheu ser brasileiro", numa alusão àquela que teria sintetizado o espírito da Junta
Revolucionária em 1899: "já que não podemos ser brasileiros, resolvemos não ser bolivianos".
Essa frase sintetiza a história da formação da sociedade acreana evidenciando que, de um lado, os
que fizeram a Revolução Acreana não queriam ser bolivianos, que seria o caminho natural se não
tivesse havido uma insurreição; de outro, que não queriam que eles fossem brasileiros, na medida
em que o poder central não lutou por isso, durante a maior parte do conflito. Se de um lado havia
uma identidade nacional bem definida, no caso dos bolivianos, o mesmo não ocorria do outro. A
ausência do poder central, no caso do Brasil, deixou espaço para ambiguidades em relação à
identidade nacional dos que lutavam do outro lado, que se consideravam mais acreanos do que
brasileiros.
Assim, os que decidiram que queriam ser brasileiros foram aqueles que haviam migrado
para o Acre e que lá viviam; e, para fazerem dessa decisão uma realidade, tiveram que assumir o
controle sobre seu próprio destino, criando um governo independente, organizando um exército
e forçando o governo federal a reconhecê-los como parte essencial da história do país.
Talvez o símbolo mais perfeito dessa conexão entre passado e presente, entre a história
da independência do Acre e os objetivos do presente esteja na restauração do Palácio Rio Branco
e nos quadros, painéis e exposições que hoje ocupam o andar térreo. Ali, a história do Acre vai
dos migrantes nordestinos a Galvez, de Plácido de Castro aos soldados seringueiros, de Chico
Mendes aos empates em defesa da floresta. Evidencia que a sociedade acreana de hoje se
reconhece nos fatos do passado e que não é mais possível entender o que ocorre hoje, sem
recorrer aos símbolos do que ocorreu no passado.
Nesse sentido, a Revolução Acreana pode ser interpretada como uma espécie de mito de
origem dos acreanos, na medida em que buscam nos fatos associados à conquista do território,
um sentido a mais para a realidade presente.
99
2.2.
POLÍTICAS PARA A BORRACHA
A memória oral dos seringueiros, resumida na citação de Chico Mendes no início deste
capítulo, não só relaciona os conflitos da década de 1970 à luta de seus antepassados pela
conquista daquele território como evidencia, também, um fato que não encontra eco na literatura
clássica sobre a história econômica da borracha: o de gerações seguidas de seringueiros terem
continuado produzindo nos seringais, mesmo depois da borracha nativa ter sido substituída pela
de cultivo, produzida nos seringais asiáticos, a partir de 1912. Os principais estudiosos da história
econômica do Brasil concentraram suas análises no período de 1877 a 1912, caracterizando a
ascensão e queda da indústria extrativa da borracha na Amazônia. O ano de 1877 sinaliza o
momento da maior migração para a região e o de 1912, quando a borracha de cultivo começou a
superar, em volume de produção, a borracha nativa (Furtado 1967; Santos 1980; Prado Júnior
1956; Simonsen 1957; Fausto 1975; Vianna Moog 1975; Cardoso e Muller 1977).
Pesquisas realizadas na década de 1970, nos seringais do Acre, corroboram essa
afirmação. Em um seringal, por exemplo, foi encontrada documentação contábil que cobria o
período de 1915 a 1978 e registros de vínculos comerciais com casas aviadoras durante longos
períodos. Entrevistas com seringalistas permitem reconstituir a forma como enfrentaram a crise
nos seringais. Gravações realizadas em seringais do Acre e de Rondônia, na década de 1980, com
Soldados da Borracha, atestam o mesmo fenômeno. Durante a Segunda Guerra surgiu entre os
seringueiros a identidade contrastiva de manso e brabo. Eram denominados de brabos os que
estavam chegando nos seringais e não tinham familiaridade com o trabalho na seringa; os mansos
eram os que já estavam acostumados com a floresta e com o trabalho de extração da borracha.
Em outras palavras, os mansos já viviam na região, eram descendentes daqueles que haviam
migrado para a Amazônia nas décadas anteriores e que haviam permanecido nos seringais.67
A comparação entre a pesquisa de campo nos seringais e a literatura sobre o tema permite o
levantamento de algumas questões que serão analisadas neste tópico: como explicar a permanência
das empresas seringalistas no Acre, depois da crise da borracha? Se os preços da borracha cultivada
eram mais baratos do que os da nativa, como conseguiam as empresas sobreviver? Quem comprava
a borracha produzida nos seringais pelos seringueiros? Em outras palavras, a questão central é
entender a existência mesmo dos seringueiros na atualidade, uma vez que a literatura sobre a região
tende a considerá-los um fato do passado.
A primeira resposta a estas perguntas poderia resultar da dedução de que, se os seringueiros
viviam como "escravos" nos seringais, em função da dívida que mantinham com os patrões, não
Entrevistas que serão apresentadas nos capítulos seguintes revelam o encontro dos novos migrantes com os
seringueiros que continuavam residindo nos seringais há gerações.
67
100
podiam deixar os seringais porque não eram trabalhadores livres. Esta tese estaria fundamentada na
literatura clássica sobre as condições de trabalho dos seringueiros e que se refere ao período de
expansão da economia da borracha (Cunha 1976; Castro 1972; Benchimol 1977; Reis 1953) ou
naquela, já citada, que restringe a história da borracha àquele período. Não é este o argumento
adotado nesta Tese.
Os fatores que explicam a permanência do extrativismo da borracha na Amazônia até a
década de 1970, e que serão analisados neste estudo, podem ser assim resumidos: (i) a produção
de borracha deixou de ser uma atividade de toda a região para ficar concentrada nas áreas onde
os seringais nativos apresentavam maior produtividade, como Acre e Rondônia; (ii) a demanda
por borracha continuou crescente durante todo o período, mesmo que a atividade não
apresentasse a mesma lucratividade da época em que a Amazônia tinha o monopólio da
produção; (iii) a transformação do seringueiro, de trabalhador especializado na produção de
borracha, em um "camponês da floresta", com laços reduzidos com o mercado (Almeida 2002);
(iv) a campanha organizada durante a Segunda Guerra Mundial, visando abastecer de borracha os
aliados, que reativou a produção dos seringais; e (v) diferentes políticas governamentais de
subsídio ao preço da borracha da Amazônia, asseguraram a continuidade da produção entre 1947
e 1970.
Diferentemente, porém, do que ocorreu com outras atividades como o café, no sul do
Brasil, na Amazônia a manutenção do extrativismo não foi acompanhada de investimentos
públicos, não gerou um setor industrial nem uma burguesia local e não alterou estruturalmente as
relações de trabalho. Ao contrário, foram ajustes internos na organização dos seringais,
diminuindo a dependência da importação de bens de consumo e repassando custos de produção
aos seringueiros, que permitiram a sobrevivência das empresas seringalistas. Ou seja, a
manutenção do extrativismo foi assegurada a partir da substituição dos vínculos com o mercado,
que existiam anteriormente, por uma economia mais voltada para a subsistência; em alguns casos
com maior liberdade nas relações entre seringalistas e seringueiros, em outros com a
reorganização das relações de trabalho de acordo com o novo momento.
2.2.1
Queda da Economia da Borracha
As estatísticas sobre expansão e queda da produção de borracha na Amazônia, dos
últimos anos do século dezenove aos primeiros anos do século vinte, aparentemente evidenciam
o padrão clássico de economias cíclicas baseadas em um único produto e dependentes da
demanda externa, que entram em decadência quando um novo produto apresenta melhores
condições de suprir o mercado (Furtado 1967; Cardoso e Faletto 1969).
101
As condições extraordinárias do mercado estimularam a expansão do crédito para toda a
indústria da borracha mas uma mudança certamente viria em função da inflação dos preços. Esta
crise veio com a introdução no mercado da borracha cultivada, levando a uma abrupta queda nos
preços que resultou na ruína das mais importantes casas aviadoras de Manaus e Belém assim como
dos diferentes produtores que haviam expandido seus créditos na crença de que o exagerado
preço da borracha iria continuar indefinidamente.
A história da "migração das héveas", como passou a ser conhecida, teve início em 1874,
quando a quantidade de 70.000 sementes de seringueiras foi levada para a Inglaterra, através de
um embarque clandestino no porto de Belém. Em 1881, os jardins de Singapura, possessão
inglesa, deram as primeiras mudas. Em 1890 a produção do Oriente já estava em 4 toneladas, em
1906 passou para 500 toneladas, em 1910 a produção chegou a 8500 toneladas e, em 1914, a
71.400 toneladas.68
O crescimento das plantações na Ásia já ameaçava a supremacia brasileira em 1910,
apesar dos altos preços da borracha nativa darem a impressão do contrário. Em 1913 a produção
das plantações superou a oferta dos seringais e, dois anos depois, em 1915, já estava bastante
distante, refletindo-se na queda dos preços. O quadro abaixo mostra o crescimento dos preços
entre 1901 e 1910 (de 323.4 para 444.4 a libra por tonelada) e o início da queda da produção que
correspondeu à queda dos preços em 1915:
TABELA 2. Exportação de Borracha Silvestre Amazônica para o Exterior, 1901-1915.
Período
1901-1905
1906-1910
1911-1915
Quantidade em ton.
(média no qüinqüênio)
31.569,80
37.446,00
36.752,20
Valor Total em Libras
(média no qüinqüênio)
10.342.200
16.727.800
11.097.000
Libra/Tonelada
(média no qüinqüênio)
323.4
444.4
296.6
Fonte: Adaptado de Benchimol (1977:252)
Os dados agregados por quinqüênio evidenciam a tendência principal, que era de
crescimento dos preços até a entrada no mercado da produção cultivada, quando tiveram uma
queda acentuada. Isso não significa que o comportamento dos preços tenha sido padrão em
todos os anos. Em 1904, por exemplo, embora a produção tenha ficado praticamente igual, o
preço por tonelada/libra subiu de 308 para 350, elevando o valor das exportações de 9.772
milhões de libras para 11.170 milhões de libras. Embora tenha ocorrido oscilações para baixo nos
preços em 1906 e 1907, em 1910 chegou ao mais alto de toda a história da borracha, igual a 655
libras por tonelada. A queda foi significativa, portanto, chegando a 200 libras por tonelada em
68
Consultar Dean (1989), Reis (1953), Santos (1980), Tocantins (1979) Weinstein (1993).
102
1915 e não se recuperando mais no futuro. A produção mais alta de borracha nativa da Amazônia
ocorreu em 1912, igual a 42.286 toneladas caindo progressivamente a partir daí para 35.165 em
1915.
Segundo Macedo Soares (1928) as mudanças já eram definitivas na década de 20, quando
estava consolidada a inversão da importância da borracha nativa versus a cultivada, como pode ser
visualizado no quadro abaixo; enquanto a primeira representava mais de 88% da produção
mundial em 1910, a segunda predominava em mais de 91% do mercado treze anos depois:
BORRACHA SILVESTRE
1910 88.2% da produção mundial
1923 8.4% da produção mundial
BORRACHA PLANTADA
1910 11.8% da produção mundial
1923 91.6% da produção mundial
A crise da economia da borracha teve diferentes consequências para as populações
envolvidas na produção. Uma parcela dos migrantes, especialmente os que haviam conseguido
acumular algum capital, voltaram para suas regiões de origem, no Nordeste. Outro contingente
migrou para as cidades principais, Manaus e Belém. E houve um terceiro caminho, menos visível,
que foi o dos que permaneceram vivendo nos seringais.
Conforme já foi afirmado, os dados demográficos apontaram um crescimento de 4.0% ao
ano da população na Amazônia, no período de 1890 a 1900, época de expansão da atividade da
borracha (Vergolino 1975). Como não foi realizado o Censo Demográfico em 1910, não é
possível apresentar os dados da década seguinte. Mas observando o período de 20 anos, ou seja,
de 1900 a 1920, houve uma reversão do fenômeno anterior: as taxas de crescimento demográfico
foram insignificantes, em torno de 0,1% e 0.2% ao ano, resultado da crise da economia da
borracha. A população do Pará descreveu (-0,01% ao ano), a do Amazonas cresceu à taxa de
0,1% ao ano e a população do Acre decresceu à taxa de 8.08% ao ano (Op cit:40). Embora o
fenômeno não possa ser identificado pelas estatísticas, os relatos dos governadores do Pará e
Amazonas, apontam para a saída de trabalhadores dos seringais para os dois principais centros
urbanos. O mesmo comportamento ocorreu nas décadas seguintes, até 1940, período em que a
taxa de crescimento demográfico ficou em torno de 0,05% ao ano.
Diante da crise, os produtores de borracha da Amazônia decidiram buscar uma solução
junto ao governo. A proposta, já adotada no caso do café, era a valorização da borracha. Mas as
circunstâncias eram inteiramente diferentes nos dois casos, uma vez que a borracha nunca havia
103
tido uma posição dominante no mercado como tinha o café de São Paulo.69 O Banco do Brasil
foi incumbido, em 1911, da função de valorizar a borracha, acreditando que retirando do
mercado um volume grande de produção e formando estoques, poderia manter o preço do
produto. Esse expediente postergou a crise e levou o Banco a arcar com um enorme prejuízo.
A primeira política de proteção à borracha nativa da Amazônia e que visava enfrentar a
crise gerada pela queda dos preços, foi o Plano de Defesa da Borracha, anunciado por um
decreto de 5 de janeiro de 1912 e regulamentado em outro decreto, de 17 de abril do mesmo ano
(Schurz et allii 1925). As principais deliberações foram:
1. Isenção de taxas de importação de instrumentos e materiais utilizados pela indústria
da borracha.
2. Prêmios pelo cultivo de borracha, incluindo não somente a seringueira mas o caucho,
a maniçoba e a mangabeira; prêmios adicionais para o cultivo de alimentos e plantas
com usos industriais entre as estradas de seringueiras.
3. Estabelecimento de uma estação experimental para o estudo da cultura da Hévea no
Território do Acre e nos Estados do MT, AM, PA, MA, PI e BH.
4. Prêmios para o estabelecimento de indústrias de refinamento e padronização da
borracha para exportação e para manufatura de produtos.
5. Abertura de hotéis de imigrantes e hospitais em vários pontos da região.
6. Construção de ferrovias ao longo dos rios em vários locais da região e abertura para
navegação para navios de menor calado em várias áreas inacessíveis para facilitar o
transporte e redução de custos no Vale Amazônico.
7. Isenção de alfândega e outras taxas para todos os navios destinados à navegação na
região coberta pelas medidas.
8. Facilidades para o estabelecimento de estações de queima de carvão em vários pontos
no rio Amazonas.
9. Produção de alimentos através de arrendamento de terras e colonização; prêmios para
aqueles que se localizarem no Acre, Amazonas e Pará e isenção de taxas de
importação e outros favores para implantação de indústria de pescado.
10. Verificação da legalidade dos títulos de terras do Território do Acre.
11. Realização de uma exposição da indústria da borracha a cada três anos no Rio de
Janeiro.
No período de 1906 a 1914 um interessante debate ocorreu no Congresso em torno dessa questão, criando-se uma
polarização entre as demandas da bancada amazônica pelo apoio governamental à borracha e da paulista pelo apoio ao
café. Ver Câmara dos Deputados (1915).
69
104
12. Acordo entre o Governo Federal, os Estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso e o
Território do Acre para redução das taxas de exportação sobre a borracha.
Por ser muito ambicioso e não existir estrutura governamental implantada na região, o
Plano não chegou a ser implementado. Mesmo com créditos aprovados para sua execução, os
valores eram insuficientes e faltava experiência administrativa para sua execução. Em decorrência,
no ano seguinte, muitas das iniciativas que havia começado a ser executadas pararam de operar.
Com exceção de algumas leis estaduais criadas para proteger o negócio da borracha nativa, a
indústria foi abandonada. Isso mudou inteiramente a posição da borracha nativa no mercado
internacional.
A crise levou à falência muitos empreendimentos envolvidos com a borracha e ao
abandono de consideráveis áreas de seringueiras na região. Um dos resultados positivos da crise,
no entanto, foi a diversificação do interesse para outras indústrias como a castanha e a ampliação
do cultivo de alimentos para consumo local, em contraste com o sistema anterior de comprar
tudo de Manaus e Belém, produtos que eram, por sua vez, importados de outras regiões.
A mudança na economia da borracha não foi assimilada imediatamente pelos
comerciantes e governos locais. Durante os anos seguintes a 1912, artigos e debates nos jornais
procuravam apontar as causas da crise seja na tecnologia utilizada para sangria das árvores, seja na
ausência de apoio do governo ou no comportamento atípico dos mercados. Em geral, acreditavase que seria uma crise passageira porque, acreditavam os comerciantes, nenhuma outra borracha
poderia ter as qualidades da amazônica.
Artigo publicado em abril de 1913, no jornal do Departamento do Alto Purus, no Acre,
intitulado "A Defeza da Borracha" apresenta a opinião de um especialista na cultura da borracha
que trabalhava nos seringais orientais e que pretendia ir à Amazônia ensinar os processos de
extração do látex praticados naquela região. Segundo ele, com a utilização da nova técnica a
Amazônia, em dois anos, teria recuperada sua posição no mercado mundial, através de um
barateamento nos custos e aumento da produção. O Governo do Pará contestou essa maneira
simplista de buscar solução para a crise:
O problema de defesa da borracha é extremamente complexo e não pode ser enfeixado
nesta fórmula tão simples que se alvitra como meio de salvação. O que é preciso fazer-se
é o aperfeiçoamento do nosso produto, o barateamento da vida nos seringais e como a
indústria da borracha, com a concorrência do Oriente, mesmo vitoriosa, nunca mais será
para nós a fonte de riqueza que já foi, trata-se urgentemente do aparelhamento
econômico do Estado. Só assim, abrindo-se novas fontes de progresso e de riqueza, pode
o estado prosperar. (Jornal Alto Purús, 9 de abril de 1913).
105
Ainda no mesmo mês, o jornal publicou um telegrama enviado por comerciantes e
produtores de borracha ao Presidente da República solicitando a diminuição dos impostos
cobrados sobre a exportação da borracha "...a fim de minorar a situação angustiosa da Amazônia,
indefesa perante os caprichos do mercado mundial da borracha."
Em junho de 1913, o mesmo jornal publicou um artigo transcrito da revista Times, onde o
autor mostrava otimismo a respeito do futuro da goma elástica, após constatar que a borracha da
Amazônia era preferida à do Oriente, pelos industriais ingleses. Afirmou que apesar da produção
continuar crescendo no Oriente, as indústrias reunidas iriam fixar os preços e a borracha
amazônica teria condições de manter sua exportação.
Uma circular publicada no jornal em 11 de julho de 1913, convocava todos os
proprietários do Departamento do Alto Purus a se reunirem com o objetivo de estabelecer
medidas de defesa diante da crise que estavam passando:
Faz-se preciso, pois, uma reação no sentido de conjurar em combate imediato e decisivo
os agentes intermediários que oneram e parasitam o trabalho, reunindo a produção de
que dispõem os diversos proprietários, a fim de por meios diretos, beneficiá-la mais
eficazmente, baratear as suas despesas e melhorar o preço do artefatos e gêneros
alimentícios empregados na sua extração.
Sugerem, então, "a exemplo dos povos adiantados", a criação de uma grande cooperativa
no Departamento, que represente a união dos proprietários produtores, para com seus próprios
recursos "obterem tudo que for necessário à manutenção do trabalho fecundo nos seus
seringais".
Mas apesar das tímidas reações dos produtores amazônicos, a situação dos mercados
exportadores, em 1923, já estava completamente alterada se comparada com a existente no início
do século. Singapura concentrava a produção das possessões inglesas no arquipélago asiático e
parte da produção de Bornéu, Java e Sumatra. Colombo exportava a borracha do Ceilão e da
Índia e Batavia, parte da produção de Java. Belém e Manaus eram, agora, pequenos portos de
exportação da borracha vegetal nativa, extremamente desvalorizada no mercado.
O período que cobre essa primeira crise para a borracha nativa teve como cenário
principal as disputas entre grandes produtores de borracha cultivada e o principal consumidor no
momento, os Estados Unidos. Acordos e políticas de valorização do produto tentaram atender as
necessidades de produção e consumo desses países.
De 1910 a 1920, em função da extensão da área ocupada com seringais de cultivo (em
torno de 1.258.000 ha) houve uma super produção de borracha, o que determinou uma queda
106
nos preços. A Inglaterra, principal interessada na elevação do preço do produto, elaborou uma
política de proteção, conhecida como Plano Stevenson, que visava controlar a exportação de
borracha conforme estivessem as cotações de mercado para o produto. Permitiu aos plantadores
disporem livremente de 65% de suas safras e, para exportar o restante, teriam que pagar um
imposto proporcionalmente mais alto quanto maior fosse o volume exportado. A conseqüência
desse controle foi a alta dos preços em 1925. No Brasil, as cotações da borracha de melhor
qualidade passaram de 2$800, em julho de 1924, para 12$300 em junho de 1925.
O Plano Stevenson encontrou forte oposição nos Estados Unidos, principal importador
de borracha, devido à grande expansão de sua indústria automobilística. Na luta contra os
ingleses, esse país fez um entendimento entre os grandes consumidores para compra de uma
enorme reserva de borracha, que seria lançada no mercado todas as vezes que uma falta fosse
anunciada. A conseqüência foi que, em 1927, os preços baixaram rapidamente.
Não somente a existência de estoques nos países consumidores provocou essa baixa.
Outros fatores também influíram. Os Estados Unidos passaram a fazer o reaproveitamento da
matéria-prima existente nos objetos fora de uso, dando origem à borracha remanufaturada.
Quanto maior estava o preço da exportação da borracha bruta, maior o uso que era feito da
remanufaturada, chegando a 45% do total da borracha consumida em 1926. Além disso, nesse
mesmo período, houve um decréscimo na produção de automóveis e, conseqüentemente, uma
diminuição da importação de borracha pelos Estados Unidos.
A implantação de cultivo de seringueiras na Amazônia sempre foi um desafio para os
países consumidores, considerando que a melhor borracha vinha daquela região. Inúmeras
tentativas foram feitas e várias pesquisas sobre as potencialidades e a viabilidade de um tipo de
empreendimento como este podem ser encontradas na literatura. Um destes estudos foi
patrocinado pelo Departamento de Comércio dos EUA, interessado em obter acesso a fontes de
produção que garantissem seu próprio consumo (Schurz et allii 1925) estabelecendo as bases para
a realização das primeiras tentativas de plantio de seringueiras na Amazônia.
Os levantamentos realizados deram origem ao empreendimento da Companhia Ford
Industrial do Brasil que se instalou na Amazônia em 1928, com o objetivo de formar uma
plantação de borracha, como resposta aos avanços do Oriente. A Ford procurou o vale do
Tapajós, a mesma área de onde haviam saído as sementes que deram origem às plantações
inglesas.
Quando toda estrutura de produção estava montada na Fordlândia, as seringueiras foram
atacadas pelo fungo dothidella ulei, que provoca a queda das folhas e se espalha rapidamente,
levando a plantação à inutilidade. O local foi abandonado e trocado, num acordo com o governo
107
brasileiro, por outro, Belterra, onde repetiu-se o investimento. Novamente a doença atacou as
folhas das seringueiras, mas, apesar do controle que estava sendo conseguido por técnicos
americanos, a Ford resolveu sair da região. A empresa norte-americana decidiu abandonar a
fabricação de pneus, peças e acessórios automobilísticos e concentrar-se apenas na montagem de
veículos. E o suprimento de borracha do Oriente já estava, nessa altura, regularizado.
O fato do mercado para a borracha continuar crescendo, mesmo a preços mais baixos,
permitiu a continuidade dessa atividade em várias regiões da Amazônia. E, em função disso,
muitos seringueiros permaneceram vivendo nos seringais. Segundo Girão (1974), de 1869 até o
final do século, emigraram do Ceará, principal estado exportador de mão de obra para os
seringais, mais de 300 mil pessoas, sendo 255 mil para a Amazônia e 45 mil para o sul do país.
Daquele total, regressaram 113 mil, permanecendo fora do Estado 187 mil pessoas (Girão 1947).
Entrevistas feitas com alguns antigos seringalistas, no Acre, mostram como foi enfrentada
a crise da borracha em seus seringais. Uma das alternativas foi a exportação da madeira e de peles,
atividades que eram paralelas à extrativista que, apesar da crise, não desapareceu completamente,
nos maiores seringais. A introdução da agricultura parece ter sido, também, uma das maneiras de
diminuir os custos da produção. Por outro lado, a retração do mercado deixou o seringueiro mais
independente da produção exclusiva de borracha para se dedicar à agricultura e a outras
atividades econômicas associadas à floresta como a pesca e a caça.
Em alguns dos maiores seringais do Acre é possível reconstituir toda cadeia de
proprietários desde o início do século, indicando que, apesar da crise, os seringais continuaram
em atividade. Este é o caso, por exemplo, do Seringal Canadá, localizado rio Envira, município
de Feijó, onde foi possível encontrar no barracão, documentação contábil que remontava ao ano
de 1915.70
O seringalista entrevistado afirmou que a casa aviadora de Nicolau da Costa e Cia., de
Belém, abasteceu aquele seringal de 1912 a 1940 e referiu-se ao fato de que a pior crise dos
seringais não foi de 1914 a 1918, mas de 1933 a 1938, quando passaram a vender madeira no
lugar da borracha. Mas segundo o entrevistado, mesmo nos momentos de crise da borrracha,
aquele seringal nunca deixou de ter seringueiros, embora não houvesse o mesmo nível de
abastecimento com mercadorias importadas que havia no passado:71
Segundo pesquisadores da Universidade Federal do Acre, outros seringais dispõem do mesmo tipo de
documentação.
71 A entrevista foi realizada com Mistério França, no Seringal Canadá, localizado no rio Envira, Estado do Acre, no
dia 12 de julho de 1978 e o seringal era administrado pelos herdeiros de Francisco Carneiro França. Esta pesquisa foi
realizada em conjunto com a equipe do Cedeplar, em julho de 1978 (Cedeplar 1979).
70
108
Em 1915 a borracha começava a dar prá trás. Ele [o pai] enfrentou a maior barreira da
vida... ficou com a borracha aí uns cinco anos presa todinha. Tirava um pouco e
embarcava na conta dele. Um pouquinho de mercadoria prá vir pro seringal. Eram
poucos fregueses. Os poucos que tinha ele nunca deixou de mandar o comboio todo mês
lá ... Ele fazia o açúcar aqui mesmo. ... E quem ia falar em comprar açúcar, quem é que
podia comprar açúcar por aí?! Café, plantou café em toda parte aí, colhia café daqui
mesmo, vendia pros seringueiros, aí. Naquela época a firma tinha 12 seringais e na época
da crise ele comprou mais 5 seringais. Esse período de uns vinte anos mais ou menos, foi
muito ruim prá borracha. Mas foi em 1940 ... Tava todo mundo já prá arribá prá ir
embora, muita gente fazendo canoa ou barco prá baixar, né. Aí a borracha tava toda aí, na
frente desse barracão, aí. Aqui debaixo, tudo cheio. Borracha de 5 anos, 136 toneladas de
borracha. Borracha de cinco anos atrasada aí. Aí embarcou a borracha, foi prá Belém. A
borracha custava 500 réis o quilo. Quando chegou lá em Belém, chegou em maio, quando
foi em agosto a borracha deu 5.500. Aí ele vendeu na hora. Aí pronto. Subiu, pagou tudo
o que devia e começou daí pegar mais ganho com o negócio. Quando foi... aí, quando
espocou a guerra, veio a guerra, Segunda Guerra Mundial, aí o americano começou a
meter gente prá cá. Em 42.
Em síntese, embora a crise de demanda externa por borracha não tenha desestruturado
completamente a economia extrativista na Amazônia, sua continuidade não foi o resultado de
mudanças no sistema de produção que pudessem ter dado origem a uma economia regional
dinâmica como ocorreu em outras regiões do país. Weinstein (1993), analisando a economia da
Amazônia entre 1850 a 1920, afirma que a borracha é anômala uma vez que esse não foi o padrão
das economias de exportação latino-americanas, principalmente se for considerado o processo
ocorrido com o café, que teve um crescimento prolongado e gerou um dos centros industriais
mais importantes do terceiro mundo.
Para a autora, a decadência não estaria somente relacionada à perda de interesse do capital
externo e à integração periférica no sistema capitalista mundial, conforme o modelo clássico da
teoria da dependência (Cardoso e Faletto 1969) mas "ao fracasso da comunidade mercantil
amazônica em arrebatar das mãos das companhias estrangeiras o controle do setor de
exportação" (Weinstein 1993:17), dificultando a acumulação local de capital. Comparando com a
economia cafeeira, a autora afirma que "a intervenção dos governos provincial e federal, para
subsidiar a mão-de-obra imigrante e garantir os preços em períodos de superprodução, foi
essencial para a sobrevivência da economia cafeeira em São Paulo" (op.cit:17).
Embora a expansão da borracha tivesse se transformado em um fenômeno de amplitude
regional gerando a ocupação de toda a bacia amazônica, principalmente em decorrência da
109
capilaridade do sistema fluvial, essa mesma dispersão não somente dificultou a inovação técnica e
a racionalização da produção como gerou uma atitude peculiar da população em relação à
exploração dos recursos naturais. Em síntese, de acordo com Weinstein, "a prosperidade gerada
pelo negócio da borracha foi efêmera e superficial e o sistema de produção e a rede de trocas
pouco diferiam das estruturas sócio-econômicas características do período colonial" (op.cit:16).
A transformação da produção da borracha em bases capitalistas, segundo Weinstein,
encontrava resistência interna tanto dos seringueiros quanto dos intermediários e o fato da
borracha ter recebido pequena assistência ou interferência do Estado, explicariam os resultados
adversos. "A inação do Estado em face do negócio da borracha reduziu o potencial de
transformação da economia amazônica" (op.cit:18).
Um balanço das três décadas que se seguiram à primeira crise do extrativismo da borracha
nativa mostra que o centro dinâmico da produção foi deslocado para os países asiáticos, controlados
pelos principais países consumidores, Estados Unidos e Inglaterra, e que o reordenamento que
ocorreu na Amazônia foi concentrado em algumas regiões, como Acre e Rondônia. As empresas
seringalistas não foram inteiramente desativadas e adotaram estratégias de sobrevivência que lhes
permitiu aguardar mudanças no mercado, que ocorreram na década de 1940.
Segundo Almeida (1992), a principal explicação para a permanência dos seringais durante
este período foi o fato da borracha constituir apenas um outro produto em uma economia
agroextrativista diversificada. Os seringueiros se transformaram em coletores, pescadores, caçadores,
produtores de farinha e pequenos fazendeiros (Op cit:39). Assim, o que permitiu ao seringal
sobreviver foi uma certa retração ou independência frente ao mercado, com a transformação do
seringueiro especializado em camponês da floresta, numa economia permeada por regatões,
patrões locais enfraquecidos e novos mercados, para pele, madeira, ou produtos agrícolas. E as
propriedades verticalmente integradas do período anterior, se transformaram em empresas voltadas
tanto para a produção da subsistência quanto para atividades de mercado (Idem, ibidem:42).
2.2.2
O Soldado da Borracha na Segunda Guerra Mundial
Durante a segunda guerra mundial a borracha da Amazônia voltou a adquirir importância
no contexto internacional. Em decorrência da ocupação, pelos japoneses, dos seringais de cultivo
localizados no sudeste asiático, o abastecimento dos países aliados ficou ameaçado. A mão-deobra nordestina foi novamente mobilizada, agora mediante contratos de trabalho que foram
oficialmente reconhecidos como uma alternativa ao engajamento na guerra e interpretados, pelos
seringueiros, como uma prestação de serviço à Nação.
110
Diversas foram as estratégias do governo americano para buscar outras fontes da matériaprima e fazer frente à escassez de borracha que se seguiu ao ataque de Pearl Harbour e à
inacessibilidade às fontes produtoras do Oriente. O estoque de borracha dos Estados Unidos era
reduzido e as alternativas encontradas, internamente, foram o uso intensivo de borracha
regenerada, o desenvolvimento acelerado da produção sintética, a mistura de uma com a outra
naqueles artefatos onde isso era possível e medidas restritivas ao consumo de pneumáticos e
artigos feitos de borracha de modo geral. A industrialização de produtos considerados supérfluos
foi praticamente suspensa.
Externamente, os Estados Unidos realizaram acordos de cooperação com diferentes
países, entre eles o Brasil, englobando diversos produtos escassos. Destes, quatorze referem-se à
borracha, conhecidos como os Acordos de Washington, assinados em 1943, concretizando os
rumos da política externa brasileira ao determinar a venda de matérias-primas aos Estados
Unidos em troca de apoio técnico norte-americano em diversas áreas, principalmente militar.
Durante a primeira fase da expansão da produção de borracha natural, todo o sistema de
comercialização do produto e de abastecimento dos seringais, de bens de consumo e de bens de
produção, era feito pelas casas aviadoras. Durante o período da Segunda Guerra, houve uma
grande transformação nesse sistema: uma companhia americana fazia o abastecimento de bens de
consumo, outra fazia o recrutamento da mão-de-obra, que eram isentas de direitos e demais taxas
aduaneiras para as mercadorias importadas e destinadas aos trabalhadores empregados na
extração de borracha, no Vale Amazônico. O financiamento ficou a cargo do Banco de Crédito
da Borracha, especialmente criado para essa situação em 1942, com recursos do Tesouro
Nacional e da Rubber Reserve Company, dos EUA.
Como resultados dos Acordos foi organizada uma estrutura de comunicação, transportes,
abastecimento de gêneros alimentícios e contratação de mão-de-obra para ser levada aos
seringais, coordenada pelo SEMTA - Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia,
e de financiamento da produção, pelo Banco de Crédito da Borracha, entidades responsáveis por
garantir o crescimento rápido da produção da borracha.
Esse movimento de reocupação dos seringais ficou conhecido como a Campanha ou a
Batalha da Borracha e os Soldados da Borracha foram direcionados para seringais do Amazonas,
do Acre, de Rondônia e de Mato Grosso e permaneceram na região mesmo depois de encerrada
a guerra, em 1945. O total de pessoas recrutadas foi de 24.300 e seu trabalho era considerado um
serviço em defesa do Brasil e dos países aliados, conforme o Decreto-Lei 5.225 de 01/02/1943.72
Este Decreto define que a produção da borracha era essencial ao esforço de guerra e à defesa militar do país e
estabelece que os trabalhadores nacionais encaminhados ao Vale Amazônico para a extração e exploração da
72
111
Todo o recrutamento era realizado pela CAETA - Comissão Administrativa do Encaminhamento
de Trabalhadores para a Amazônia, criada especialmente para este fim.
Foi definido, também, um modelo de organização da produção e de distribuição dos
resultados obtidos com a comercialização da borracha e de outros produtos, composto de quatro
itens: (i) do valor líquido apurado após a venda da borracha, 60% caberia ao seringueiro, 33% ao
seringalista e 7% ao proprietário; (ii) ao seringueiro era facultado o direito de cultivar a terra, até
um hectare, em volta de sua barraca; (iii) assegurava-se ao seringueiro a meação das castanhas que
colhesse e a propriedade das peles dos animais que abatesse; (iv) as relações entre seringalistas e
seringueiros seriam regidas por um contrato padrão aprovado pelo Banco de Crédito da Borracha
(Decreto-Lei 4.481, de 17 de outubro de 1942). Nenhum item, no entanto, demonstrava
preocupação com o destino dos seringueiros após o término do conflito.
A primeira conseqüência dos Acordos foi a elevação do preço da borracha. Em 1914 o
preço médio estava em 22.11 cents a libra-peso; em 1942, esse preço básico foi aumentado para
39 cents a libra-peso, sendo novamente aumentado, em outubro de 1943, para 45 cents a libra.
Em fevereiro de 1944, por intermédio de uma bonificação sobre o preço anterior, elevou-se a 60
cents a libra-peso.
Data dessa época a formação das primeiras colônias agrícolas, no Acre, próximas à capital
do Estado. Os trabalhadores que para lá se dirigiam podiam escolher entre trabalhar na
agricultura ou nos seringais. Alguns produtos alimentícios, que anteriormente eram importados
de Belém, como a farinha de mandioca, principal item da alimentação dos seringueiros, passou a
ser produzida nessas colônias.
É possível encontrar muitos seringueiros que foram para o Acre na Batalha da Borracha e
permanecem até hoje trabalhando nos seringais. Parte dessa população, no entanto, dirigiu-se
para a capital do estado, quando terminou o esforço de guerra, dando origem aos primeiros
bairros periféricos da cidade, conhecidos como bairros de ex-seringueiros Soldados da Borracha.
Entrevistas feitas por Samuel Benchimol em Belém do Pará, com migrantes nordestinos
que se dirigiam para o Acre, mostram que a maior parte deles tinha como objetivo trabalhar
alguns anos na borracha e voltar rico para o Nordeste, como parentes seus tinham procurado
fazer em momento anterior (Benchimol 1977).
Ao promoverem a migração para a Amazônia, no contexto dos Acordos de Washington e
da Batalha da Borracha, as autoridades governamentais do Estado Novo elaboraram um discurso
em que acenavam com um futuro promissor. Tal discurso, que orientava a propaganda política da
borracha e os que já ali estiverem trabalhando, devidamente contratados, nessas atividades, eram considerados de
incorporação adiada até a terminação do contrato de trabalho, ou enquanto se dedicarem àquelas atividades.
112
região, colocava em segundo plano os problemas decorrentes da crise econômica da região, para
orientar os esforços de todos em uma única direção: integrar a Amazônia ao corpo da Nação. Foi
esse conteúdo, expresso no Discurso do Rio Amazonas, do Presidente Getúlio Vargas, proferido
em Manaus em 10 de outubro de 1940, que motivou os seringueiros e alimentou a interpretação
de que estavam sendo convocados para cumprir um papel decisivo na defesa da pátria e na
construção do futuro da Amazônia:
(...) O que a natureza oferece é uma dádiva magnífica a exigir o trato e o cultivo da mão
do homem. Da colonização esparsa, ao sabor de interesses eventuais, consumidora de
energia com escasso aproveitamento, devemos passar à concentração e fixação do
potencial humano.
A coragem empreendedora e a resistência do homem brasileiro já se revelaram
admiravelmente, nas "entradas e bandeiras do ouro negro e da castanha", que
consumiram tantas vidas preciosas. Com elementos de tamanha valia, não mais perdidos
na floresta mas concentrados e metodicamente localizados, será possível, por certo,
retomar a cruzada desbravadora e vencer, pouco a pouco, o grande inimigo do progresso
amazonense, que é o espaço imenso e despovoado.
É tempo de cuidarmos, com sentido permanente, do povoamento amazônico. Nos
aspectos atuais o seu quadro ainda é o da dispersão.
O nordestino, com o seu instinto de pioneiro, embrenhou-se pela floresta, abrindo trilhas
de penetração e talhando a seringueira silvestre para deslocar-se logo, segundo as
exigências da própria atividade nômade. E ao seu lado, em contacto apenas superficial
com esse gênero de vida, permaneceram os naturais à margem dos rios, com a sua
atividade limitada à caça, à pesca e à lavoura de vazante para consumo doméstico. Já não
podem constituir por si sós esses homens de resistência indobrável e de indomável
coragem, como nos tempos heróicos da nossa integração territorial, sob o comando de
Plácido de Castro e a proteção diplomática de Rio Branco, os elementos capitais do
progresso da terra, numa hora em que o esforço humano, para ser socialmente útil,
precisa concentrar-se técnica e disciplinadamente. O nomadismo do seringueiro e a
instabilidade econômica dos povoadores ribeirinhos devem dar lugar a núcleos de cultura
agrária, onde o colono nacional, recebendo gratuitamente a terra desbravada, saneada e
loteada, se fixe e estabeleça a família com saúde e conforto.
(...) Ao homem moderno está interdita a contemplação, o esforço sem finalidade. E a nós,
povo jovem, impõe-se a enorme responsabilidade de civilizar e povoar milhões de
quilômetros quadrados. Aqui, na extremidade setentrional do território pátrio, sentindo
113
essa riqueza potencial que atrai cobiças e desperta apetites de absorvição, cresce a
impressão dessa responsabilidade, a que não é possível fugir, nem iludir. Sois brasileiros e
aos brasileiros cumpre ter consciência dos seus deveres, nesta hora que vai definir os
nossos destinos de Nação. E, por isso, concíto-vos a ter fé e a trabalhar confiantes e
resolutos pelo engrandecimento da Pátria. (Excertos do Discurso do Rio Amazonas, 10
de outubro de 1940, Teatro Amazonas, Manaus).
Durante o período da guerra a produção de borracha na Amazônia chegou a 30 mil
toneladas por ano, que era inteiramente comprada pelos Estados Unidos, em decorrência dos
Acordos de Washington, que deveriam vigorar até 1945. Quando terminou a guerra havia um
excesso de produção e, em função disso, os Acordos foram prorrogados até 1947. Parte do
"exército da borracha" emigrou para as regiões de origem ou para as cidades e, como ocorreu no
período anterior, uma parcela destes trabalhadores continuou vivendo nos seringais.
2.2.3
A Política do Monopólio da Borracha
Após a Segunda Guerra Mundial, e por um período de vinte anos, entre 1947 e 1967, a
política para a borracha pouco se modificou e foi caracterizada pelo monopólio sobre a compra do
produto, antes pelos Estados Unidos, depois pelo governo. A partir daí, e por mais trinta anos, a
atuação do governo foi pautada nas Leis 5.227 de 18.01.67 e 5.459 de 21.06.68, que instituíram a
Política Econômica da Borracha. Enquanto na etapa anterior, os protagonistas eram a indústria
de pneumáticos, localizada nos países desenvolvidos, o setor de cultivo de borracha, localizado na
Ásia e sob controle inglês, e o setor extrativista amazônico, controlado pelos seringalistas e pelas
casas aviadoras, nessa etapa surge um novo segmento, com grande capacidade de influência, a
indústria nacional de artefatos de borracha.73 E a característica principal desse novo período foi o
estabelecimento de um vínculo de dependência direta entre o extrativismo e a intervenção
governamental (Pinto 1984:102).
Conforme foi apontando anteriormente, os Acordos que viabilizaram a produção de
borracha durante a Segunda Guerra foram prorrogados até 1947 e a perspectiva de crise após esta
data estava muito presente no setor extrativista amazônico. Inúmeras iniciativas surgiram visando
equacionar o problema, que sempre esteve claramente definido: os preços da borracha nativa
eram duas vezes mais altos do que os da borracha oriunda dos seringais de cultivo.
Em 1946 foi organizada a primeira Conferência Nacional da Borracha, que propôs a
manutenção de um preço de garantia que permitisse a sobrevivência da borracha amazônica após
A indústria de artefatos de borracha é predominantemente de produtores de pneumáticos, setor controlado por
quatro grandes empresas multinacionais (Fireston, Pirelli, Goodyear e Michelin) que instalaram suas unidades de
produção no Brasil e em outros países da América Latina a partir da década de 1950.
73
114
o encerramento dos Acordos. No mesmo ano, a Assembléia Constituinte aprovou o artigo 199
da Constituição que determinou a destinação de 3% da receita federal a um Plano de Valorização
Econômica da Amazônia que deveria substituir o esquema organizado durante a guerra.
Conforme dados de Nelson Pinto (Op cit), o setor industrial instalado no Brasil já absorvia, nesse
período, 60% da produção gomífera nacional e já era possível prever que o consumo, a partir da
década de 1950, seria maior do que a oferta de borracha da Amazônia. Apesar disso, não havia
interesse do setor produtivo amazônico em se envolver com o cultivo da borracha.
Teve origem neste momento um campo de conflitos em torno do preço da matériaprima, entre o setor gomífero da Amazônia e o setor industrial de pneumáticos do sul do país,
que perdurou até anos recentes. De um lado, os produtores amazônicos demandavam a
continuidade da proteção aos preços e, de outro, a indústria nacional argumentava que não
poderia arcar com os custos mais altos da borracha nacional em comparação ao que pagava pela
importada.
Finalmente, depois de muitos debates entre os industriais e o governo, em 8 de setembro
de 1947 foi aprovada a Lei No 86 que determinou o seguinte: (i) ficava prorrogado até 31 de
dezembro de 1950, o monopólio estatal das operações de compra e venda de borracha,
estabelecendo-se um preço base de Cr$18,00 por quilo do produto (tipo acre-fina especial) a ser
pago com recursos do Fundo de Valorização Econômica da Amazônia; (ii) foi reafirmada a
continuidade de exploração dos seringais financiados pelo Banco de Crédito da Borracha,
determinado-se que a repartição deveria seguir os mesmos critérios definidos durante a guerra,
entre seringueiros, seringalistas e proprietários;74 (iii) foi criada a Comissão Executiva de Defesa
da Borracha, responsável por manter estoques de borracha, controlar a importação, fixar preços
de compra e venda da borracha sintética, regulamentar a instalação de novas fábricas, fiscalizar o
emprego de sucedâneos de borracha nos produtos finais, dentre outras atribuições (Pinto 1984).
Ao final deste período, em 1950, a situação da produção de borracha encontrava-se no
mesmo impasse registrado desde o início do século: a produção amazônica seria extinta se não
houvesse proteção estatal aos preços. Além disso, o crescimento do consumo de borracha e os
problemas de abastecimento dos seringais amazônicos, implicariam em dispêndio de mais divisas
com importação. Surgiu então, da conjugação destes fatores, um argumento que seria utilizado
durante décadas seguidas, pelos seringalistas, de que a ausência de uma política protecionista
As regras de organização da produção nos seringais, durante a Segunda Guerra, conforme apresentadas no ítem
anterior, eram compostas de quatro elementos: (i) do valor líquido apurado após a venda da borracha, 60% caberia
ao seringueiro, 33% ao seringalista e 7% ao proprietário; (ii) ao seringueiro era facultado o direito de cultivar a terra,
até um hectare, em volta de sua barraca; (iii) assegurava-se ao seringueiro a meação das castanhas que colhesse e a
propriedade das peles dos animais que abatesse; (iv) as relações entre seringalistas e seringueiros seriam regidas por
um contrato padrão aprovado pelo Banco de Crédito da Borracha (Decreto-Lei 4.481, de 17 de outubro de 1942).
74
115
criaria uma grave crise social na região, com o desemprego de muitas pessoas envolvidas no
setor, especialmente os 'pobres' seringueiros.75
Face a estes argumentos manteve-se a política do monopólio estatal de comercialização
da borracha, tanto a vegetal quanto a sintética, de procedência nacional ou estrangeira. Ao
mesmo tempo o Banco de Crédito da Borracha foi transformado em banco de fomento, o Banco
de Crédito da Amazônia S.A., sendo a ele destinado 10% do Fundo de Valorização da Amazônia
para aplicação, preferencialmente, no incentivo e aperfeiçoamento da produção de borracha.
Conforme observou Pinto, da mesma maneira como ocorrera em 1942 e em 1947, "assegurava-se
a continuidade da exploração dos seringais em débito com o Banco de Crédito da Amazônia,
repetindo-se a inócua determinação quanto às relações comerciais entre proprietários,
seringalistas e seringueiros" definidas durante a guerra (1984:112).
Com o contínuo crescimento da demanda por borracha, que passou de 24 mil toneladas
em 1950 para 45, 2 mil toneladas em 1959, o Brasil começou a importar volumes consideráveis a
partir de 1951. Apesar da crítica do setor extrativista amazônico, também teve início, nesse
momento, uma política de fomento à heveicultura, com assistência técnica e linha de
financiamento do Banco de Crédito da Amazônia.76 Pelos mesmos motivos, na década de 60,
expandiu-se a produção de borracha sintética, também em detrimento da produção de borracha
vegetal.
Em 1952, começou uma nova discussão: a necessidade das indústrias de artefatos de
borracha se liberarem do produto vegetal da Amazônia através da produção de borracha sintética.
O Conselho Consultivo do Banco de Crédito da Amazônia começou a esboçar uma proposta
para fazer frente à elevação dos preços da borracha natural, pleiteada e conseguida pelos
seringalistas da Amazônia. As indústrias químicas ficariam localizadas próximas aos centros de
consumo, desonerando assim o sul dos entraves da produção amazônica e da incerteza dos
suprimentos em função dos processos próprios aos seringais nativos.
Outro fato, também, fez crescer a pressão a favor da indústria sintética: estava em curso,
na época, no Congresso Nacional, uma lei para desonerar o Banco de Crédito da Amazônia da
obrigação de manter estoques no sul do país, o que viria modificar sensivelmente o sistema de
oferta e de procura do produto, forçando os fabricantes à inversão de grandes capitais na compra
da borracha diretamente na Amazônia.
75 Várias Comissões Parlamentares de Inquérito foram abertas para averiguar a situação da borracha nativa no Brasil:
em 1954, em 1968 e em 1995. Em todas elas existem fartos depoimentos de seringalistas sobre a crise social nos
seringais.
76 Explicar a história das inúmeras políticas voltadas para implantação da heveicultura no Brasil, dos fracassos e
sucessos obtidos, é o objetivo principal do livro de Warren Dean (1989).
116
De acordo com Mendonça (1952), membro daquele Conselho, durante 40 anos a
produção amazônica representou 1% a 2% do consumo mundial mas foi valorizada após a
guerra, e a manutenção dos preços no pós-guerra permitiu o fortalecimento das indústrias
consumidoras de borracha "...de cuja vantagem os industriais do sul souberam tirar partido para o
fortalecimento e ampliação de seu parque manufatureiro". Com a perspectiva de alteração nas
regras de proteção aos preços, "vão procurar no plástico sintético a efetivação do velho sonho de
conquista dos mercados nacionais e da América Latina" (Op cit:10).
A questão se colocava para os industriais, nos seguintes termos: diante da expansão da
produção de artefatos de borracha, ou teriam que importar a sintética dos Estados Unidos ou a
cultivada da Ásia. Para livrarem-se de ambas, reuniram-se num truste e instalaram a indústria
doméstica de borracha artificial. Em 1952 foi instalada uma fábrica para produção de borracha
sintética com base na transformação do álcool, em Campos. Nos anos seguintes, foram
implantadas mais duas unidades: uma pertencente à Petrobrás, anexa à Refinaria de Caxias, criada
em 1955, por sugestão do Conselho Nacional de Economia e outra em Pernambuco, em 1959.
Apesar das preocupações do setor extrativista, não havia riscos para a produção nacional,
que em 1959 estava em torno de 21,7 mil toneladas, em função do controle exercido pela
Comissão Executiva de Defesa da Borracha. Por pressão da região amazônica, o governo
concedeu um aumento substancial dos preços para a borracha vegetal nacional, que teve um
reajuste de mais de 150% em 1963, em contraposição a uma inflação anual de 81,3%. Em
conseqüência, a borracha importada (sintética e vegetal), que tinha seu preço regulado pelo
mercado internacional, tornava-se cada vez mais atraente para a indústria de transformação aqui
instalada (Pinto 1984).
A partir do golpe militar de 1964 e da prioridade estabelecida para a construção de
estradas e para o transporte rodoviário, a indústria automobilística e de pneumáticos teve um
enorme crescimento, assim como a demanda por borracha. Em 1966 o consumo total de
borracha foi de 94,6 mil toneladas, dos quais 29,3 mil toneladas ou 31%, correspondiam à
borracha vegetal (28,2 mil toneladas nacionais e 1,1 mil toneladas importadas); 49,9 mil toneladas,
ou 53% à borracha sintética (41, 0 mil toneladas nacionais e 8 mil toneladas importadas) e 12,3
mil toneladas, ou 13% à matéria-prima regenerada; as restantes 3.1 mil toneladas, ou 3% do
mercado, eram supridas por látices vegetais e sintéticos. Apesar do crescimento da demanda e
dos limites já conhecidos do extrativismo, a heveicultura continuava relegada a segundo plano
(Pinto 1984).
Foi nesse contexto que surgiu uma nova política para a borracha visando suprir essa
demanda crescente, a Lei 5.227, de 18 de janeiro de 1967. Esta lei extinguiu o monopólio de
117
comercialização de borracha e instituiu um preço de garantia para a borracha vegetal nacional;
determinou a formação de estoques de reserva e a equiparação dos preços das borrachas vegetais
e sintéticas de produção nacional aos vigentes no mercado internacional. A Comissão Executiva
de Defesa da Borracha e sua secretaria executiva foram transformadas no Conselho Nacional da
Borracha e na Superintendência da Borracha – SUDHEVEA.77
A redação final da Lei acabou sendo influenciada pelo setor extrativista que conseguiu
estabelecer que os ajustamentos de preços previstos para a borracha nativa somente seriam
efetuados na medida em que se cumprisse um programa de diversificação das atividades
econômicas na produção extrativista de borracha.78
Assim, o Artigo 12 da Lei estabeleceu: "A partir da safra de borrachas vegetais
correspondente ao período de 1o de julho de 1968 a 30 de junho de 1969, os preços básicos
dessas matérias-primas para o mercado interno ou externo serão gradualmente ajustados pelo
Conselho Nacional da Borracha, com o fim de criar, para as borrachas nacionais, até 1o de janeiro
de 1972, condições de concorrência no mercado internacional". E o parágrafo primeiro fazia a
ressalva de que os preços somente seriam ajustados "na medida em que se cumprir um programa
de diversificação das atividades econômicas das áreas de produção extrativista de borracha e de
aumento da produtividade dos seus seringais..."
Essa nova legislação atendia as principais reivindicações do oligopólio internacional dos
fabricantes de pneumáticos, porque determinava que fossem supridos os insumos necessários
(elastômeros vegetais e sintéticos) aos preços vigentes no mercado internacional. Determinava a
extinção das distorções provocada pela política de garantia de preços aos produtores de borracha
vegetal e a redução de custos dos sintéticos, para as indústrias consumidoras.
Se tivesse sido aplicada tal qual definida pela Lei 5.227, a política da borracha teria tido
como resultado a extinção do extrativismo e da produção nacional de borracha vegetal. Seguindo
a política de equiparação dos preços da produção nacional à importada, o preço de garantia pago
pela borracha amazônica não foi reajustado em 1965, enquanto o Índice Geral de Preços subiu
em 34,5%; foi elevado em apenas 6,1% em 1966 (contra elevação de 38,3% do IGP); e, em 1967,
teve uma alta de 16,1% (para 25% do IGP).79 O resultado era previsível: ao mesmo tempo em
que crescia o consumo, reduzia a produção de borracha vegetal no país.
Com a criação do IBAMA, por meio da Lei 7.735, de 22.02.89, a SUDHEVEA foi extinta e suas atribuições foram
assumidas pelo órgão de meio ambiente.
78 O mesmo argumento foi utilizado, em 1997, para assegurar um subsídio ao preço da borracha, como será visto no
Capítulo Cinco.
79 Este desequilíbrio entre os preços da borracha e o aumento do custo de vida foi o contexto que deflagrou a
Revolta do Alagoas, que será descrita no Capítulo Três.
77
118
Foi nesse contexto de ameaça ao extrativismo amazônico simultaneamente à nova política
de abertura da economia regional com a construção de estradas e de incentivos fiscais, que os
interesses regionais voltaram a se manifestar. Em 21 de junho de 1968 foi aprovada a Lei 5.459
que não apenas supriu os recursos necessários à proteção do extrativismo como provocou uma
mudança na essência da Lei 5.227. Pela nova lei, as borrachas que fossem importadas com o
objetivo de suplementar a produção interna (e que possuíssem similar nacional) teriam seus
preços equiparados aos vigentes para a matéria-prima nacional. O produto dessa equiparação
reverteria em favor da SUDHEVEA, sob a forma da Taxa de Organização e Regulamentação do
Mercado da Borracha (TORMB). Assim, o nivelamento dos preços pagos pela borracha
consumida no país passava a ser feito de acordo com os custos locais e não segundo os padrões
internacionais, como definia a lei anterior. Para dirimir qualquer dúvida, o governo reajustou, em
1968, o preço de garantia para a borracha vegetal em cerca de 36%, contra uma elevação de
25,5% do IGP.
O Art. 2o da Lei 5.459, de 1968, ficou assim: "As importações de borrachas e látices
vegetais e químicos que tenham similares nacionais serão feitas pelos interessados com a
interveniência da Superintendência da Borracha, que cobrará a Taxa de Organização e
Regulamentação do Mercado da Borracha (TORMB), atribuindo-lhe um valor que assegure o
nivelamento dos preços previsto no §1o do Art. 22 da Lei 5.227, de 18 de janeiro de 1967,
conforme a redação mandada adotar por esta Lei".
No período compreendido entre 1968 e 1972 houve a consolidação de uma reorientação
favorável aos interesses extrativistas da Amazônia, no âmbito da administração federal da
borracha, tanto no Conselho Nacional da Borracha, quanto na SUDHEVEA. Em 1968 a
diferença de preços entre a borracha nacional e a importada era de 2,60 cruzeiros por quilo, o que
representava um fundo de 31 a 36 milhões de cruzeiros (8,1 a 9,4 milhões de dólares) por ano,
para a SUDHEVEA (Dean 1989:186). O volume de recursos que a SUDHEVEA passou a
administrar era crescente e deu origem ao Programa de Incentivo à Produção de Borracha
Vegetal - PROBOR I, em 1972, e ao PROBOR II, em outubro de 1977. Previsto inicialmente
para fomento exclusivo de seringais de cultivo, foi reorientado para incluir, também, recursos
para reabertura de colocações em seringais nativos, fortalecendo, mais uma vez, o antigo sistema do
barracão e do aviamento.80
O Jornal Varadouro, em matéria denominada ‘Escravidão da Dívida’ continua (Governo ajuda), aponta que o sistema
organizado pela SUDHEVEA para reativar os seringais nativos incluiu um modelo de abastecimento de mercadorias
feito pela COBAL que acabou se transformando, na prática, numa reativação das regras do barracão, uma vez que o
seringalista comprava mais barato na COBAL mas continuava repassando a preços aviltantes aos seringueiros. A
matéria se fundamenta em carta do Presidente do STR de Tarauacá ao Presidente da República com denúncias sobre
preços das mercadorias e precariedade no atendimento médico e educacional (Varadouro N.17, dezembro de 1979).
80
119
O balanço dessa política, em 1975, mostrava que havia sido contratada, até aquele data, a
reabertura de 4.762 colocações, no valor de Cr$19,6 milhões, das quais 2.749 estavam reabertas, 335
em fase de reabertura e 1.678 não reabertas. Das reabertas, existiam 2.418 em atividade e 331
inativas (CNB 1975). O índice de inadimplência estava próximo de 50%, indicando que,
provavelmente, boa parte dos recursos recebidos pelos mutuários daquele programa tinha sido
utilizado em outros empreendimentos.
Em síntese, o Estado expandiu a base industrial e em particular a produção de
automóveis e de pneumáticos no pós-guerra e na década de 1950 (siderúrgica, estradas, fábricas
de automóveis e de pneus), gerando, assim, uma rápida expansão da demanda por borracha no
mercado interno. No curto prazo, essa borracha podia ser obtida com importações no mercado
internacional; no médio prazo, as importações poderiam ser substituídas por meio de plantações
na Bahia, Mato Grosso e São Paulo (em parte integradas às indústrias de pneus com experiência
no ramo). Essas seriam soluções que favoreceriam indústria. Em vez disso, o Estado fez o
seguinte: (1) protegeu a insuficiente e estagnada produção extrativa amazônica em regime de
monopólio e preços protegidos, depois substituído por regime de quotas de importação e preços
administrados, além de privilégios financeiros; (2) estimulou a produção de borracha sintética
reduzindo a dependência de importação do produto ao custo de aumentar a importação de
petróleo e criando um perfil de pneus com 70% de borracha sintética, contra o perfil indiano de
30% de borracha sintética (Almeida 2002).
A razão para isso deve estar na estrutura política do estado federativo com blocos
regionais (Nordeste, Amazônia). A bancada amazônica aumentou seu poder com a criação de
novos estados (Acre, Rondônia, Amapá) e sempre bloqueou estímulos a seringais de cultivo na
Bahia, São Paulo, Mato Grosso, já em andamento desde os anos 1960 por iniciativa particular e
sem subsídios, mas estimulados pela política de preços altos mantida pelo governo.
Assim, a valorização da borracha natural foi um dos móveis da mudança de orientação da
política econômica para a Amazônia naquele momento. O outro vetor de mudança, que
expressava os objetivos do segmento hegemônico no poder, os militares, ia em direção contrária,
ao facilitar a aquisição de terras por grandes grupos econômicos do sul do Brasil, como parte da
estratégia definida pela Operação Amazônia.
O Monopólio da Borracha, primeira política de proteção ao extrativismo amazônico,
persistiu até 1967. Durante os vinte anos de vigência desta política, os seringalistas ou patrões se
constituíram em uma das classes econômicas com maior poder de influência na sociedade
regional como explica Chico Mendes:
120
Naquela época os patrões tinham um poder muito grande, porque o que acontecia é
que eles eram financiados pelo Banco da Borracha. Eles tiravam financiamento. Por exemplo,
esse patrão aqui da Cachoeira, aqui no seringal, vamos dizer, tinha 80 seringueiros cortando, ele
ia no Banco e dizia: "Olha, eu tenho 160 seringueiros, juntos eles fazem tantos mil quilos de
borracha. Eu quero essa importância". Aí o Banco dava. O Banco não mandava fiscal, não
fiscalizava nada. Aí o que que ele fazia. Pegava aquele dinheiro, ia comprar apartamento em
Fortaleza, às vezes, comprar em Belém e gastava com farra, com jogo, e os filhos iam estudar,
também, em Belém, Manaus ou em Fortaleza, sempre era comum. E aí, no final do ano, o
seringueiro tinha que cobrir aquela produção. Aqueles 80 tinham de produzir pelos 160. Aí prá
enganar o pessoal, ele fazia o seguinte: 'Vamos botar um prêmio esse ano. Quem fizer mais
borracha, quem tirar em primeiro lugar ganha uma novilha, o segundo ganha uma espingarda, o
terceiro ganha um terno bom de linho'. Naquele tempo se usava, um seringueiro prá vestir um
terno de linho, era preciso ele se rebolar um ano todo, num fábrico. Naquele tempo a gente
usava o brim, era um listradinho, de algodão. Com aquilo a gente tava bem vestido. Aí então,
todo mundo se rebolava prá ganhar o prêmio. Com isso, nessa correria toda, no final do ano, ele
dobrava a produção. (Entrevista ao Jornal da Tarde, setembro de 1988, colocação Fazendinha,
Seringal Cachoeira).
Os seringais que haviam sido reativados durante a guerra mantiveram-se organizados
como empresas e os seringueiros que haviam imigrado naquele período, assim como os
descendentes da migração anterior que haviam permanecido nos seringais, continuaram
envolvidos com a extração de borracha, e seus descendentes permaneceram no antigo sistema de
produção, baseado no aviamento. Foram muito reduzidos os investimentos do Estado na região,
especialmente na oferta de serviços públicos e a população que morava nos seringais não tinha
acesso à educação, à saúde e aos direitos trabalhistas que, naquele momento, já vigoravam para
alguns segmentos dos trabalhadores brasileiros.
2.2.4
A Operação Amazônia
Assim que os militares tomaram o poder, em 1964, esse conjunto de medidas de proteção
ao extrativismo amazônico começou a passar por uma revisão crítica e foi creditado ao regime de
mercado controlado a responsabilidade pela estagnação da produção da borracha. O tabelamento
dos preços e a aceleração do processo inflacionário contribuíam para agravar as condições de vida
do seringueiro e os processos de produção continuavam rudimentares como no passado.
Relatório realizado pelo Banco da Amazônia sobre a situação da economia regional na
região em 1966, e que fundamentou mudanças que seriam realizadas no ano seguinte, concluiu
que os resultados daquela política eram negativos:
121
A produção dos seringais silvestres permaneceu estacionária; o desenvolvimento da
heveicultura na Bahia é fruto do esforço particular e, pode-se dizer, que se expandiu apesar
da política oficial de proteção à borracha e, afinal, aumentaram as importações desse
produto, até o início da fabricação das borrachas sintéticas. O único beneficiado com o
tabelamento do preço e com o monopólio estatal foi o aviador que teve assegurado o
financiamento para as suas atividades comerciais, o que o mantém livre das forças do
mercado (BASA 1967:204-205).
Um novo modelo de desenvolvimento passou a ser formulado para a Amazônia a partir
de 1967. Estava fundamentado na idéia de que tratava-se de uma região escassamente povoada,
com uma economia frágil, estratégica em função das suas riquezas naturais, especialmente
minerais, mas vulnerável em decorrência das fronteiras com outros países e de potenciais
ameaças externas à sua soberania. O programa elaborado pelo governo militar, denominado
Operação Amazônia, visava eliminar a política do Monopólio da Borracha e liberar o Banco de
Crédito da Amazônia dos encargos de financiar a produção e a manutenção do esquema de
comercialização e formação de estoques do produto.
A Operação Amazônia foi responsável pela criação de um conjunto de mecanismos de
atração de investimentos, como os incentivos fiscais, e pela transformação de antigas instituições
públicas em novos organismos orientados a mudar a economia regional, como a
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e o Banco da Amazônia (Basa). O
objetivo principal das novas medidas era dar condições para que a Amazônia não ficasse mais na
dependência de um único produto, responsável pelo emprego e ocupação da região. Foi, enfim,
um plano com o objetivo de diversificar as atividades produtivas regionais e viabilizar a inserção
da região na dinâmica econômica predominante no sul do país.
Os reflexos sobre a produção da borracha foram imediatos, principalmente em função da
decisão de não promover aumentos nos preços do produto, situação que não ocorria desde a
Segunda Guerra. Em 1964 o preço da borracha teve um pequeno aumento, mas todo o ano de
1965 e o primeiro semestre de 1966 permaneceram sem alterações. Nos seringais instalou-se
imediatamente uma crise, principalmente pelo fato dos preços das mercadorias consumidas pelos
seringueiros continuarem subindo enquanto o da borracha mantinha-se congelado.
A situação que antecedeu esse conjunto de políticas é vista por seringueiros e seringalistas
regionais como a verdadeira crise que viveu o extrativismo. Data dessa época, inclusive, a eclosão
de uma rebelião entre os seringueiros do Seringal Alagoas, em Tarauacá, que se recusaram a
122
entregar a borracha ao seringalista sem um reajuste dos preços, iniciativa que foi reprimida com
violência.81
Enquanto a época do Monopólio pode ser vista como um momento de expansão do
extrativismo, a crise da década de 1960 implicou, inclusive, no abandono dos seringais, como
mostra o relato de um seringalista:
Isso aqui em 50, isso era uma maravilha! O que tinha de mercadoria aí, não tinha quem
vencesse. Mesmo dinheiro, tudo que você queria tinha. Era bom. Começava desde aqui, o
passadio aqui, era uma maravilha. Isso era animado, bom. A borracha, o seringueiro, era
só no que falava... a década de 50 todinha. A década de 60 já começou, não foi muito
bom mais não... Teve muito aumento na mercadoria... aí a gente já notava, a gente via que
o seringal já não estava, não tinha mais aquela base certa. ..Alguma coisa podia subir, mas
a borracha não tinha aumento. Isso, o negócio aqui foi de ver a gente correr mesmo e
abandonar... Em 66, por aí, começou a tristeza do Acre. Começou a fechar os seringais
todos. Todo mundo indo embora. Teve também muita fome... O Banco reduziu os
financiamentos. O que primeiro entrou foi as casas aviadoras, primeiro que os
seringalistas ...
O abandono dos seringais foi objeto de intenso debate, em 1968, quando foi instalada na
Câmara dos Deputados, uma Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de verificar as
razões do desestímulo à produção da borracha. Com base em depoimentos de diferentes pessoas
ligadas às atividades extrativas na Amazônia, a CPI procurou avaliar as reais consequências da
política adotada no período compreendido entre o final da Segunda Guerra e 1967. O relatório da
CPI (Câmara dos Deputados 1970) traz a seguinte afirmação:
No setor extrativo, existem cerca de 100 mil homens espalhados da fronteira ocidental do
Brasil até a foz do Amazonas, vivendo da seringueira silvestre e constituindo, com as suas
famílias, uma massa humana de 400 mil almas, ou seja, 15% da população total da área.
..Toda a estrutura existente até a primeira metade desta década funcionou para manter
esta população onde está e nas precárias condições em que vive... (Op Cit: 9)
De acordo com a CPI, a Política do Monopólio em nada alterou as condições de
sobrevivência do extrator da borracha uma vez que também não viabilizou a substituição dos
seringais nativos por cultivados. Continua o relatório:
81
A análise dessa rebelião será feita no Capítulo seguinte.
123
No Brasil, para manter não totalmente despovoada grande área nacional, continua-se a
extrair borracha da selva. Nestes quarenta anos tem-se buscado, exclusivamente, com o
preço do produto, propiciar a sobrevivência na região, de criaturas cuja produtividade
marginal é nula (Op. Cit:10).
O relatório concluiu pela necessidade de substituir a produção extrativa pelo cultivo da
seringueira como forma de abastecer o mercado interno e não gerar uma crise social na região.
Essa política foi desenvolvida pela SUDHEVEA nos primeiros anos da década de 1970 que
visavam, como já foi citado, criar condições para que a Amazônia não dependesse de um único
produto para gerar emprego e renda na região.
Um dos aspectos desta política que teve influência direta sobre o objeto de análise desta
Tese foi o que se refere à transferência da propriedade da terra. A avaliação feita pelo governo
militar indicava que a economia da borracha era de baixa rentabilidade, tinha alta dependência do
Estado e não produzia os efeitos de ocupação necessários à integração da Amazônia à economia
do país. Em decorrência, era necessário atrair para a região empresários do sul do Brasil que,
motivados pelos incentivos fiscais, transformassem os seringais em empresas agropecuárias.
As empresas seringalistas eram, de fato, pouco rentáveis, adotavam sistemas arcaicos de
organização do trabalho, controlavam o poder político local e haviam acumulado dívidas com o
então Banco de Crédito da Amazônia, renovadas todos os anos para fazer funcionar o sistema de
aviamento. A transformação daquela instituição de financiamento da borracha no Banco da
Amazônia S.A., alterou estruturalmente o modelo de operação de crédito. O BASA passou a
exigir o retorno dos investimentos feitos e a cobrar as dívidas dos seringalistas. Muitos deles
entregaram os seringais ao Banco, uma vez que não conseguiram liquidar seus débitos.
Percebendo que receber seringais falidos não asseguraria o retorno dos recursos
emprestados, o BASA decidiu alterar sua estratégia. Passou a renegociar as dívidas dos
seringalistas e intermediar a venda dos seringais endividados para empresários do sul do país,
fórmula mais segura de ver o retorno do capital investido.
Essa estratégia estimulou o Governador do Acre, Wanderley Dantas (1971-1974), nos
primeiros anos da década de 1970, a iniciar uma campanha de divulgação da "fertilidade das
terras acreanas" aos empresários do sul do país. Muitos seringalistas venderam seus seringais a
esses empresários e conseguiram dessa forma saldar suas dívidas com o Banco. Com o apoio dos
incentivos fiscais os novos proprietários dos seringais, conhecidos localmente como paulistas,
iniciaram os desmatamentos para a implantação de projetos agropecuários nas terras adquiridas,
como relata Chico Mendes:
124
Aí, quando em 70, em 64, com o golpe militar, o Castelo Branco acaba com o monopólio
estatal da borracha e o Banco fecha as suas portas. O monopólio, quer dizer, era o monopólio que
garantia todo o domínio dos patrões, dos seringalistas. Só podia vender pro Banco. O patrão era
submetido, nós éramos escravos dos patrões, submetidos a ele, e eles eram submetidos às ordens
do Banco. Então ele tinha que fazer aquilo que o Banco mandava. Acontece que quando o
Castelo Branco acaba com o monopólio da borracha e fecha o Banco da Borracha, aí esses caras
entraram em falência, bancaram a falência. E aí, até aí os seringueiros ainda pagavam renda.
Aproveitando-se desse momento, existem vários movimentos para não pagamento de renda. Mas
muito fracos. Aí o que que eles fazem. Aí então que começa a mudança radical, a estrutura
violenta, porque aí o governo... em 69, em 70, o governo do Acre vai no sul do país, e faz aquele
alarme, propaganda, o Acre tem terra farta e barata e os acreanos são malandros, nós precisamos
do progresso. E aí vem a correria dos fazendeiros do sul e com apoio dos incentivos fiscais da
SUDAM, de 70 até 75, compraram 6 milhões de hectares de terra aqui nessa região, no Estado do
Acre. (Entrevista para o Jornal da Tarde, setembro de 1988, colocação Fazendinha, Seringal
Cachoeira)
De acordo com Almeida (2002) e olhando o período como um todo, o fim do monopólio
não gerou uma crise; representou, na verdade, apenas uma crise passageira do nível dos preços,
logo seguida de políticas extremamente favoráveis, financeiramente, para os seringalistas. Apesar
deste favorecimento, muitos seringalistas não conseguiram saldar suas dívidas, facilitando assim a
transferência de títulos, intermediada pelo BASA, e também, pelo Banco do Brasil.
O que ocorreu, de fato, no período compreendido pela Segunda Guerra até a década de
1970 foi uma forte proteção do Estado aos seringalistas acreanos, de várias maneiras: (1)
permitindo a apropriação de terras públicas, posteriormente regularizadas em regime de exceção,
após acirrada disputa política e jurídica, e espoliando posseiros, de maneira a transferir para
patrões, seja os que faliram ou os que não faliram, grandes ganhos com a venda de terras que não
lhes pertenciam legalmente, ou seja, ganhos de "renda territorial"; (2) transferindo renda da
indústria para os mesmos patrões em atividade, sob o regime de preços administrados, com ou
sem monopólio, mas com quotas após o fim do monopólio, onerando o preço de pneus e
artefatos; (3) fornecendo crédito com juros negativos sob o PROBOR aos mesmos patrões, em
condições bancárias altamente favoráveis, para financiar a borracha que era produzida por
seringueiros que não eram empregados dos seus patrões, mas sim vendiam o seu produto a eles,
como garantia dos empréstimos feitos pelos bancos aos seringalistas; isso porque, como será
analisado posteriormente, a maior parte dos seringalistas não possuía títulos de propriedade para
fornecer como garantia de tais empréstimos.
125
Os seringais foram vendidos, os seringalistas saldaram seus compromissos e os conflitos
começaram. Porque ninguém informou aos novos proprietários - ou estes, sabedores da
realidade, não consideraram que fosse um obstáculo aos seus objetivos - que aqueles seringais
que haviam sido vendidos estavam ocupados, há muitas gerações, pelos seringueiros e por suas
famílias. Estavam estabelecidas as condições estruturais para os conflitos que eclodiram alguns
anos depois.
Observações Finais
Estabelecer uma conexão entre os fatos do presente e os do passado é um princípio
metodológico central nas Ciências Sociais e justificaria, por si só, a inclusão de um capítulo sobre
a história do Acre nesta Tese. Mas não sendo este um estudo histórico, é preciso considerar
outros aspectos na análise dos fatos do passado. Um, é saber se os nexos identificados entre
passado e presente estabelecem relações de causalidade entre eles; outro, é analisar,
independentemente da causalidade, o significado e a interpretação dada, por atores sociais, em
contextos específicos, no presente, sobre os fatos ocorridos no passado.
Tendo como referência a história da Revolução Acreana e da expansão, queda e
reestruturação da economia da borracha, entre 1870 e 1970, dois objetivos foram definidos para
este capítulo: identificar os fenômenos relacionados com a origem da sociedade acreana e a
contribuição que apresentam para a compreensão dos conflitos sociais ocorridos no presente; e
explicar a permanência dos seringueiros nos seringais, durante mais de cem anos,
simultaneamente à perda de importância da borracha da Amazônia no mercado nas primeiras
décadas do século passado.
A resposta a estas perguntas somente ficará completa ao final da Tese, quando os
conflitos recentes tiverem sido explicitados. No entanto, alguns dos elementos fundamentais para
uma compreensão progressiva dos fatos foram apresentados, como a explicitação da origem
histórica dos conflitos e da relação que apresentam com os fenômenos da conquista da fronteira,
no contexto da expansão da economia extrativista da borracha.
Assim, como ficou demonstrado, diferentemente da idéia que se tem deste momento da
história da Amazônia, como de simples ascensão e queda da economia da borracha, durante o
qual o Brasil ampliou suas fronteiras, foi possível perceber o complexo processo de mudança
ocorrido no período de cem anos, que iniciou com a conquista de um território e terminou com a
ameaça de perdê-lo.
Os migrantes nordestinos foram para o Acre, nas últimas décadas do século XIX,
transformaram-se em seringueiros e em soldados da Revolução Acreana e, cinquenta anos depois,
126
foram reconhecidos como veteranos da guerra do Acre. Durante a Segunda Guerra, novos
migrantes somaram-se aos que ali haviam permanecido e todos foram inseridos em um novo
contexto político e econômico, como soldados da borracha. Em decorrência de políticas
governamentais que viabilizaram a economia da borracha, mesmo em níveis precários de
lucratividade, seus descendentes continuaram nos seringais durante mais 20 anos, até a década de
1970 quando as terras conquistadas à Bolívia, 70 anos antes, foram vendidas para fazendeiros, e
os seringueiros, descendentes dos que haviam lutado por ela, foram ameaçados de expulsão. Ao
final, entre a migração nordestina para o Acre e a venda dos seringais, foram mais de 100 anos
durante os quais a sociedade e a economia da borracha foram se modificando e se adaptando às
novas circunstâncias, sem nunca desaparecer.
É a associação entre os processos do passado, a Revolução Acreana e a permanência do
extrativismo, e o significado a eles atribuído no presente, que se pretende analisar nesta
conclusão.
A Revolução Acreana ocorreu na passagem do século XIX para o XX, no momento em que
os preços da borracha estavam altos, quando a demanda pela matéria-prima era crescente e a
oferta era exclusiva da região amazônica, e o aspecto que poderia alterar a correlação de forças
entre as instituições políticas envolvidas era o controle de territórios nos quais a produção
poderia ser expandida, ampliando, em consequência, a arrecadação fiscal.
O Acre apresentava essa possibilidade em função da grande concentração de seringais, de
alta produtividade, e do fato destas terras estarem disponíveis à apropriação privada, à medida em
que os indígenas iam sendo eliminados e/ou controlados. Foi o interesse do Amazonas em
manter o Acre como parte do seu território e assegurar, dessa forma, o controle sobre os
impostos da borracha, que o levou a se envolver na disputa com a Bolívia e a financiar as
insurreições e o governo independente.
Do ponto de vista da Bolívia, tratava-se de exercer de fato a soberania sobre um território
que lhe pertencia de direito, embora não dispusesse dos meios efetivos de explorá-lo
economicamente. A percepção de que a renda da borracha produzida no Acre poderia ser
decisiva para a economia boliviana foi o fator determinante na mobilização do país para não
perder o controle sobre aquela área. E a opção pelo arrendamento do território a outros países,
foi uma tentativa de buscar aliados que pudessem equilibrar as forças econômicas a seu favor.
A solução do conflito foi possível, a partir do momento em que o governo brasileiro,
percebendo a importância econômica do Acre, concentrou tanto os esforços políticos para
mediar os interesses das partes envolvidas, quanto os meios econômicos para compensar as
perdas da Bolívia. E, para neutralizar a correlação das forças econômicas e políticas regionais e
127
compensar os gastos envolvidos na pacificação, definiu o Acre como um território subordinado
diretamente à administração central e não como mais uma unidade autônoma da federação, para
frustração dos líderes do movimento.
A história da borracha na Amazônia também apresenta peculiaridades. A atividade
extrativista não seguiu o modelo clássico das economias de enclave que, cessada a demanda
externa tendem ao desaparecimento, nem aproximou-se do processo seguido por outras
atividades econômicas que, tendo enfrentado obstáculos semelhantes, como a queda de preços
no mercado internacional, conseguiram reorganizar processos produtivos, beneficiar-se de
políticas de proteção aos preços e financiar atividades industriais, como ocorreu com a economia
cafeeira em São Paulo, por exemplo.
Na fase de expansão da economia da borracha, os lucros foram reinvestidos quase
integralmente fora da região ou então desfrutados em consumo supérfluo. Os investimentos
urbanos realizados na época, resultantes da arrecadação dos impostos sobre a exportação,
concentraram-se nas cidades de Manaus e Belém, embora a produção tenha se disseminado em
toda a região. Durante o período de crise, de 1912 até 1940, os seringais continuaram produzindo
em pequena escala e as atividades de subsistência foram intensificadas. Mas de 1947 a 1967, ou
seja, por mais vinte anos, durante os quais os preços foram protegidos e o mercado assegurado
pelo monopólio estatal, os seringalistas da Amazônia não realizaram investimentos produtivos
nem sociais, não alterando as tradicionais condições de vida existentes nos seringais. Conforme já
foi salientado, essa política acabou viabilizando a reprodução da empresa seringalista tradicional e
de seu sistema de controle sobre os seringueiros, tendo como justificativa um discurso de defesa
do interesse nacional e de proteção ao seringueiro.
Assim, a manutenção do extrativismo e dos seringueiros nos seringais foi resultado de
uma política governamental que privilegiou os interesses dos seringalistas permitindo que
controlassem, também, em conseqüência, as estruturas locais de poder. O seringal era um mundo
fechado em suas próprias tradições e raros foram os seringueiros que conseguiram construir um
futuro diferente.
Chico Mendes foi um dos poucos que pode refletir sobre sua origem e seu destino e,
consciente dessa história, procurou mudá-la. A citação adotada como epígrafe deste capítulo,
deixa claro que Chico Mendes estabelecia um nexo causal entre a luta pelo reconhecimento do
direito à propriedade da terra, no presente, e a conquista daquele território aos bolivianos, no
passado. Além disso, atribuia aos seringueiros, por terem lutado como soldados, o protagonismo
principal dos fatos, reafirmando que seus descendentes haviam adquirido direitos sobre aquela
terra pelo fato dela ter sido conquistada pela luta dos seus antepassados.
128
Seguindo a abordagem metodológica explicitada no início, existem duas maneiras, pelo
menos, de analisar estas afirmações: a primeira, seria buscar evidências empíricas sobre o fato; a
segunda, seria compreender o sentido dos conceitos, no contexto no qual aquele discurso foi
proferido.
Empiricamente falando, a incorporação dos seringueiros como soldados, nas tropas
comandadas por Plácido de Castro e nas batalhas ocorridas entre agosto de 1902 e janeiro de
1903, é um fato documentado por historiadores e memorialistas: Ferreira Reis (1936), Craveiro
Costa (1974), Charles E. Stokes (1974), Leandro Tocantins (1979), Alfredo Lustosa Cabral (1984)
Marcos Vinicius Neves (1999), Alves de Souza (2002). Stokes afirma o mesmo no caso das tropas
bolivianas que, no início, também eram formadas por seringueiros endividados que ficavam livres
de suas dívidas desde que se alistassem no exército (1974:224). Além disso, a enaltação do papel
dos seringueiros na conquista do Acre, sempre fez parte das comemorações oficiais da Revolução
Acreana, especialmente em Xapuri, para contrastar com a perda de importância do Acre após a
queda da economia da borracha.
Não existem registros, no entanto, que comprovem que houve promessa de terras àqueles
seringueiros que se envolvessem com a Revolução. Para a comprovação empírica seria necessário
identificar documentos históricos sobre o fato e/ou arrolar o testemunho oral de seringueiros
que participaram da revolução como soldados, os chamados veteranos do Acre. Não existe
referência bibliográfica conhecida sobre nenhuma das duas possibilidades, embora existam
registros, tanto de seringueiros que lembram de fatos ocorridos quando eram crianças, quanto da
memória de descendentes diretos dos seringueiros-soldados.82
Algumas outras hipóteses, no entanto, devem ser consideradas. A idéia de que os
seringueiros que se envolvessem com a guerra seriam recompensados com a distribuição de
terras, depois da vitória, poderia se sustentar no fato de que a maioria dos que estavam
conseguindo enriquecer por meio da borracha, eram migrantes nordestinos que haviam se
apossado de territórios depois de terem deles expulsados os índios. Assim, a possibilidade de um
migrante se tornar dono de um seringal era factível, como será apresentado no Capítulo seguinte
(Cabral 1984). No entanto, no momento em que a economia da borracha estava em expansão, a
terra, em si, não apresentava valor. O que valia, de fato, era o controle sobre os recursos ou seja,
sobre as estradas de seringa e o controle sobre o capital comercial do qual dependia o aviamento. Se
alguém tivesse a "propriedade" das estradas poderia arrendá-las; mas para isso seria preciso que
82 Quando iniciei minhas pesquisas no Acre, em 1978, os veteranos teriam mais de 75 anos de idade, mas não tive a
oportunidade de entrevistar nenhum deles. Quando comecei a trabalhar em Xapuri, em 1981, eles estariam com
cerca 79 anos e, embora não tenha realizado nenhuma entrevista, tenho registros em meus diários de campo de
seringueiros que diziam ser descendentes diretos de soldados que haviam participado na guerra com Plácido de
Castro.
129
tivesse crédito, ou seja, fosse aviado de uma empresa exportadora. Assim, o controle sobre as
árvores requeria mais do que o domínio de um espaço territorial; implicava em ter acesso ao
crédito, no sistema de aviamento que então predominava, o que não era uma possibilidade
generalizada. Na época em que ocorreram as insurreições, a fase de acesso mais livre a esse
sistema já tinha ocorrido, embora pudesse continuar sendo uma espécie de promessa para o
futuro.
Outro aspecto a ser considerado na idéia de compensação pela participação na revolução,
seria a conquista da liberdade, ou seja, do direito de trabalhar por conta própria, alterando, dessa
forma, a condição do seringueiro como sendo a de um trabalhador "escravo", preso ao
seringalista pelas dívidas, visão corrente na literatura produzida na época do apogeu da borracha
(Cunha 1976 [1905]). Os registros da literatura, citados nas páginas anteriores, não indicam isso.
Apenas apontam para o fato de que os seringueiros foram recrutados com a promessa de terem
seus débitos liquidados, ou seja, perdoados. Na prática, isso deve ter significado que, terminado o
conflito, os seringueiros voltaram a trabalhar nos seringais sem a herança da dívida, mas nada
mais além disso.
Se não existe comprovação empírica disponível83 de que os seringueiros se transformaram
em soldados e foram para a guerra com Plácido de Castro na expectativa de se transformarem em
donos da terra e, como essa promessa não se cumpriu, seus descendentes estariam lutando pelo
mesmo direito, setenta anos depois, seria falsa a afirmação de Chico Mendes?
A questão parece não estar na comprovação da existência de nexo causal entre o
envolvimento dos seringueiros na Revolução Acreana e a luta pela terra que realizaram na década de
1970, mas no significado que foi sendo elaborado, por eles, a respeito das relações existentes
entre o presente e o passado. Assim, mais importante do que buscar nos fatos históricos a
veracidade da relação de causa e efeito estabelecida no discurso de Chico Mendes, seria
compreender o sentido por ele atribuído àqueles fatos, no contexto no qual proferiu suas
palavras.
A participação dos seringueiros de Xapuri na luta armada que culminou com a
independência do Acre e sua anexação ao Brasil, no começo do século passado, e a transmissão
dessa história para as gerações seguintes, formatou um elemento essencial da identidade social
dos trabalhadores extrativistas daquela região – a valorização da luta pela conquista da liberdade,
da autonomia, da independência.
A mobilização de seringueiros durante a Segunda Guerra Mundial trouxe novos
elementos simbólicos àquela identidade social já elaborada nas primeiras décadas do século. Os
A inexistência de comprovação empírica disponível no momento não significa que novas pesquisas não possam
apresentar dados objetivos sobre as teses aqui aventadas.
83
130
Soldados da Borracha vieram para a Amazônia embuidos do sentimento nacionalista de estarem
prestando um serviço à Pátria, contribuindo para a derrota dos nazistas e a vitória dos aliados. Os
que decidiram permanecer nos seringais continuaram durante as décadas seguintes acreditando
que produziam borracha para a Nação, como veremos.
Nos seringais do Acre, as duas identidades sociais – a de Veterano da Revolução e a de
Soldado da Borracha – se mesclaram e influenciaram as gerações seguintes, principalmente pelo
fato dos seringueiros que ali nasciam, ali mesmo continuavam vivendo, sem conseguir comparar
suas trajetórias pessoais com a de outros trabalhadores em outros lugares do país.
Entrevista feita por Benchimol (1977), com um seringueiro que havia participado da
Revolução Acreana e voltava ao Acre como Soldado da Borracha sintetiza, brilhantemente, essa
idéia:
Eu estava no Acre desde 1897. Trabalhava no seringal Bagaço, de Plácido de
Castro, quando arrebentou a revolta. Fui logo me alistando, lutei um ano e três
meses sob as ordens do chefe. Eu tenho honra em ser veterano do Acre. Lutei
com Plácido de Castro. Infelizmente ele morreu. Nós sofremos muito e não vimos
nada. As terras ficaram para os patrões e nós não tivemos nada e morremos. Se ele
vivesse, a coisa seria diferente. Todas as noites eu imagino o meu Acre. Aquilo é
uma terra santa. Eu conheço tudo aquilo como a palma da minha mão. Conheci
Empresa quando aquilo era um goiabal. Assisti o episódio de Porto Acre, quando
os brasileiros com uma lima serraram a corrente que atravessava o rio. Vou para
lutar novamente se houver necessidade. Nós conquistamos o Acre. O Acre
portanto deveria ser nosso. Se o nosso chefe não fosse assassinado as coisas seriam
outras. Volto contente para o Acre. Lá é que é a minha terra, pois a defendi com o
meu sangue. (Sérgio Bernardo Pinto, cearense, entrevistado por Samuel Benchimol
(1977) em 1942).
A partir de sua experiência como vereador, nos primeiros anos da década de 1980
(Capítulo 4, tópico 4.3), Chico Mendes passou a se referir ao heroísmo dos seringueiros, como
faziam todos os políticos, em Xapuri, nas comemorações do aniversário da Revolução. Aos poucos,
porém, começou a atribuir um novo significado a estes fatos, conectando diretamente os
conflitos que estavam ocorrendo naquela região, a partir da década de 1970, com os episódios
históricos de conquista do território à Bolívia. Nos discursos de Chico Mendes, desde 1981,
aparece de forma recorrente como justificativa para a decisão dos seringueiros de defender os
seringais, o direito que teriam às áreas nas quais moravam há gerações, pelo fato de seus
antepassados a terem conquistado, como soldados, durante a Revolução Acreana. No decorrer do
131
tempo, outras lideranças e seringueiros envolvidos com os movimentos sociais, foram associando
a conquista histórica do território ao direito de nele permanecer, idéia que passou a fazer parte da
identidade social dos trabalhadores extrativistas acreanos.
Para os seringueiros, depois de cem anos de inserção subjugada no sistema dos seringais,
estabelecer um nexo causal entre a luta pela terra e pela floresta, que realizvam no presente, com
os fatos heróicos de seus antepassados tem um significado geral, semelhante ao já referido para a
sociedade acreana como um todo, de orgulho pela conquista do território. Mas apresenta outro,
mais específico, que vale a pena detalhar.
Trata-se do enorme esforço que os seringueiros fizeram, sob a liderança de Chico
Mendes, para revelar e tornar conhecida dos brasileiros, a história por eles vivida nos seringais da
Amazônia. Quando os seringueiros começaram a falar sobre si mesmos, a partir da década de
1980, era como se fossem personagens saindo das páginas da história do Brasil, tal o
desconhecimento que existia, no país, a esse respeito. E quando procuraram ser reconhecidos
como produtores de borracha e interlocutores do governo em relação às políticas elaboradas para
esse setor econômico, também produziram alterações profundas nas regras do jogo, na medida
em que sempre haviam sido representados por outros, principalmente pelos seus patrões, em
todos os episódios nos quais se definia o destino deles como classe. Vários exemplos serão dados
a esse respeito, nesta Tese.
Assim, a busca de uma relação direta, feita por Chico Mendes, entre a Revolução Acreana e
os empates, tendo mais de 70 anos de distância entre um fato e o outro, foi uma estratégia política
encontrada por ele para estabelecer um elo de ligação que não pudesse ser contestado pelos seus
opositores, a elite acreana tradicional, formada de antigos seringalistas. Ninguém nunca contestou
o valor histórico dos seringueiros na luta pela conquista do Acre. Ao contrário, esse valor era
sempre lembrado nos discursos oficiais dos dias festivos que comemoravam a Revolução,
principalmente em Xapuri. Mas eram lembrados como heróis do passado, assim como ocorreu
durante e depois da segunda guerra, quando os seringueiros eram lembrados pelo papel que
haviam desempenhado produzindo borracha para os aliados. O que Chico Mendes fez, em
diferentes momentos de sua luta, como será apresentado, foi estabelecer um significado novo no
presente para um atributo que era incontestável, do passado. E ele buscava, com isso, passar aos
seringueiros que liderava, a idéia de que eles haviam sido heróis no passado e poderiam sê-lo
novamente no presente, seguindo uma tradição que já havia sido vivenciada pelos seus pais e
avós.
Não se trata, no entanto, de relacionar a idéia de conquista, ao direito individual ou
familiar à terra, como se tivesse havido a promessa de uma reforma agrária para os seringueiros.
132
No discurso de Chico Mendes, tratava-se da conquista de um território pertencente a um outro
país e isso justificaria, no presente, a mesma associação: novamente este território conquistado
estava ameaçado.
Além da forte associação simbólica entre dois momentos da história acreana, realizada
por Chico Mendes e outros líderes seringueiros, a complexa estrutura fundiária resultante desse
processo, também influenciou a forma como os conflitos foram solucionados nos anos recentes,
conforme será apresentada no Capítulo 4 (tópico 4.2.1). Como afirma Bakx (1986), em um
período relativamente curto de tempo, de 1898, quando a Bolívia mandou, pela primeira vez, suas
tropas ao Acre, até sua anexação ao Brasil, em 1904, o controle sobre o Acre mudou sete vezes.
A confusão que esta situação gerou na ratificação dos títulos de terras acabou sendo um fator
crucial na luta pela terra que ocorreu na década de 1970 (Op cit: 44).
A associação entre um século de injustiças vividas pelos seringueiros com o sentimento de
autonomia alimentado pela história dos veteranos do Acre e dos soldados da borracha, vai resultar
em profundos conflitos nas décadas seguintes, liderados por Chico Mendes. Mas antes de
abordar este tema, é preciso entender melhor como estava organizado o sistema de produção no
interior dos seringais acreanos e qual a relação que estes trabalhadores tinham com a natureza,
objetivos do Capítulo Três.
133
3.
OS SERINGUEIROS E O AVIAMENTO
Os grandes seringalistas conhecidos nesta região, eles pegavam o seringueiro,
amarravam o produto, a borracha, nas suas costas, com corrente, e tocavam fogo. Ele
morria queimado. Ou então fuzilavam. Esse era o dono do Seringal Capatará, de
perto de Rio Branco. Ele fez muito isso. Um dos patrões que ficou conhecido em
todo o Acre, até hoje tem história dele, era o Benedito Batista, de Vila Assis Brasil, na
fronteira do Peru. Esse cara era acostumado a libertar. Ele, quando sabia que tinha
um seringueiro preso, prá ser morto, na sede de outro barracão, ele ia lá, ele era
respeitado pelos outros patrões, ele ia lá, ele era contra matar seringueiro, matar
qualquer pessoa. Então ele ia lá, soltava, pagava alguma fiança, se era porque o
seringueiro tava devendo ao patrão, muito, e ia morrer, então ele pagava a fiança,
trazia o seringueiro pro seu seringal e aquela pessoa morria trabalhando o resto da
vida gratuitamente, trabalhando práquele patrão, porque ele salvou sua vida. Em
troca da vida, da liberdade. Ele era um cara mais inteligente, então, com isso, ele
liderava e conseguia produzir mais. Nós, todos nós, tínhamos muito aquela idéia...
depois, nessa época mais moderna acabou-se esse massacre... mas sempre houve essa
história: a gente vai práquele patrão, porque fulano de tal é bom...
Entrevista de Chico Mendes
a Mary Allegretti
Setembro de 1988, Xapuri, Acre
Os seringueiros surgiram como uma categoria social específica de trabalhador nas últimas
décadas do século XIX, percorreram todo o século XX e entraram no século XXI. Emergiram
com a segunda revolução industrial, produziram durante as duas guerras mundiais e seguiram
trabalhando ao longo de todas as demais fases da história recente da Amazônia. Mesmo tendo se
tornado irrelevante para a economia mundial o sistema do seringal permaneceu em operação,
segundo Almeida (1992), por duas razões: o apoio do Estado por meio de políticas protecionistas
que asseguraram aos seringalistas preços e mercado e, em conseqüência, o controle sobre os
seringais e a adaptação da população local a uma economia agroflorestal capaz de se manter com
baixa vinculação ao mercado. A primeira razão foi abordada no capítulo anterior, a segunda, será
neste.
134
Poderia-se supor que, simultaneamente às mudanças que ocorreram no mesmo período
na economia da borracha (novos usos industriais, substitutos químicos, expansão do cultivo,
novas tecnologias de transformação) também tivessem acontecido alterações profundas nas
relações sociais de produção nos seringais nativos. Não foi isso que ocorreu, no entanto. As
mudanças que ocorreram após o período de auge da borracha e até 1970, apenas reorganizaram
os padrões tradicionais da empresa seringalista, tornando-os mais flexíveis, sem contudo eliminar
as tensões que sempre caracterizaram as relações entre seringueiros e seringalistas.
O modelo de seringal tido como clássico pela literatura é aquele que surgiu no período do
auge da produção de borracha na Amazônia. Em função dos altos preços, predominavam regras
voltadas para viabilizar o aumento constante da produção a custos sempre mais baixos, como o
endividamento prévio, a preferência por trabalhadores solteiros, a proibição de roçados, o
incentivo ao consumo de supérfluos. Para controlar os meios de comercialização, era proibida a
presença de regatões84 e exigida exclusividade dos seringueiros em relação ao patrão que os aviava,
tanto na compra de bens de consumo quanto na venda da borracha. O descumprimento destas
regras implicava em punições severas aos seringueiros.
Foi com base neste modelo que a imagem do seringal ficou associada a atrocidades e
violências cometidas por seringalistas contra seringueiros e à caracterização do seringal como
uma modalidade de organização da produção na qual predominava uma espécie de trabalho
escravo. As afirmações de Euclides da Cunha (1976) de que os seringueiros trabalhavam para
reproduzir a própria escravidão, ou de Castelo Branco (1922) de que o seringueiro era um
verdadeiro escravo sujeito a punições, inclusive o açoite, são reafirmadas por Chico Mendes na
entrevista epígrafe deste capítulo.
No período que se seguiu à queda dos preços da borracha no mercado internacional, ao
mesmo tempo em que houve o esvaziamento dos seringais, surgiu uma reorganização do modelo
de produção e da vida social que, com variações conforme o local e o momento, predominou até
1970, principalmente no Acre. Neste modelo ficaram melhor explicitados os dois componentes
principais do seringal: a unidade produtiva, formada pelas colocações, e a unidade de
comercialização, formada pelo barracão, assim como as relações sociais centrais entre seringalistas,
ou patrões, que fornecem os bens necessários à produção e à subsistência e que exercem o
monopólio sobre o acesso aos recursos e ao mercado, e os seringueiros ou fregueses, que
produzem a borracha e também os meios de vida necessários à subsistência.
Existem variações, neste modelo, que permitem um maior nível de autonomia dos
seringueiros em suas colocações, especialmente quando os patrões não controlam a comercialização,
84
Regatões são comerciantes ambulantes que circulam pelos rios da Amazônia.
135
que passa a ser feita, principalmente, por regatões, ou seja, por intermediários, ou situações que
implicam em um maior controle sobre os seringueiros, principalmente nos seringais que
continuaram priorizando a produção da borracha e que se organizaram como empresas
seringalistas.
Em ambos os casos, o que passou a ser peculiar ao seringal, é a forma como se reproduz
uma modalidade de organização das relações sociais que se fundamenta no sistema do aviamento
que implica em gerir elementos contraditórios: o pagamento obrigatório de renda pelo uso das
estradas de seringa (expressando o monopólio do patrão sobre o acesso à floresta) e a
obrigatoriedade de compra e venda de mercadorias no barracão (expressando o monopólio do
patrão em relação à comercialização da borracha e de bens de consumo) versus a autonomia na
produção da borracha e dos meios de vida nas colocações.
A socialização dos seringueiros, no decorrer dos anos, deu-se em torno destes elementos
contraditórios e influenciou a identidade social destes trabalhadores, que foi sendo construída e
transmitida, de geração em geração, dentro dos seringais, em coerência com os objetivos que
orientavam as diferentes ondas migratórias.
Assim, quando a borracha nativa da Amazônia passou a ter utilidade industrial e a região
foi ocupada, na segunda metade do século passado, por nordestinos, haviam razões muito claras
que levavam aqueles homens para lá: de um lado, as precárias condições de sobrevivência na
região de origem; de outro, a perspectiva de enriquecer rapidamente e voltar, viável diante dos
altos preços da borracha naquele momento.
Após a primeira grande crise da produção extrativa resultante do plantio racional da
seringueira feito pela Inglaterra, os seringalistas foram à falência, seringais foram abandonados,
uma parcela dos nordestinos voltou aos estados de origem, outra migrou para as pequenas
cidades da Amazônia e outros permaneceram morando nos seringais. Durante a Segunda Guerra
Mundial novamente foi incentivada a produção de borracha e houve uma segunda migração de
nordestinos, muitos deles para o Acre. Também aqui os motivos da migração eram claros:
produzir borracha era prestar um serviço à pátria. Quando acabou a Batalha da Borracha, a cena
repetiu-se: um segmento voltou para o Nordeste, outro migrou para as cidades e áreas rurais
próximas e muitos permaneceram nos seringais.
Assim, nos locais da Amazônia onde a empresa extrativa não foi inteiramente
desagregada, o migrante nordestino passou a ser um morador permanente da floresta, preferindo
esse modo de vida ao retorno ao Nordeste ou à vida na periferia das cidades. Em consequência, a
população que mora atualmente nos seringais do Acre é descendente dos migrantes do final do
136
século XIX, daqueles que foram para lá na primeira década do século XX, dos que vieram na
década de 1940 e daqueles que, com suas famílias, foram chegando nos anos seguintes.
Os que vieram de fora traziam uma referência que lhes permitia a comparação entre um
passado e um presente. Para seus descendentes, que nasceram e cresceram na floresta, em torno
da borracha, o mundo começava e terminava num seringal. Como expressa Chico Mendes na
citação utilizada acima, durante muito tempo os seringueiros organizaram sua vida para fugir das
regras de coerção dos seringalistas e o universo de comparação se restringia à existência dos
"maus e dos bons patrões". Por outro lado, o enfraquecimento da empresa seringalista após o
período de expansão, permitiu a emergência de uma espécie de campesinato da floresta (Almeida
1992) que se caracterizou pela diversidade das fontes de sobrevivência e de renda, associando
agricultura, caça, pesca e coleta, à produção da borracha.
A identidade social dos seringueiros, expressa em um modo próprio de ver o mundo e em
um processo singular de socialização, foi sendo construída e transmitida, de geração em geração,
dentro dos seringais. Essa socialização se deu em torno daqueles elementos contraditórios: a
floresta e a liberdade, o patrão e a subordinação; a produção independente na colocação e o controle
do barracão, sintetizados ora em sentimentos de injustiça e impotência, ora de revolta e
contestação.
É este o tema deste capítulo – o da identidade social dos protagonistas dos conflitos
surgidos na década de 1970 no Acre - no qual procura-se responder algumas questões centrais:
quem são os seringueiros, ou melhor, o que significa 'ser seringueiro'? Em que medida as
características das lutas desenvolvidas por estes trabalhadores, na década de 1970, foram
influenciadas pelas peculiaridades das relações sociais predominantes nos seringais? Se o sistema
de organização da produção no extrativismo da borracha – a relação patrão-freguês – mantinha os
seringueiros em condição de subordinação aos seringalistas, por que lutavam para permanecer
nos seringais?
A análise realizada neste capítulo é fundamental em dois aspectos: primeiro, porque
apresenta e contextualiza os fatores ambientais, econômicos, sociais e culturais que caracterizam a
peculiaridade do seringal enquanto sistema de produção e os seringueiros enquanto
trabalhadores. Segundo, porque estes elementos são essenciais para se compreender a proposta
que os seringueiros formularam como solução para os conflitos sociais - a de territórios
reservados para o extrativismo. Pretende-se apresentar os argumentos para a comprovação da
hipótese de que esta proposta foi bem sucedida porque combinou, de forma singular, elementos
do antigo seringal tradicional - especialmente a estrutura e a forma de uso do espaço natural com elementos novos de organização econômica e social - a ausência da relação social de
137
produção que subordina fregueses a patrões, o aviamento. O êxito da proposta dos seringueiros, por
outro lado, evidencia que as condições necessárias às mudanças que realizaram na década de
1990, em relação a um novo modelo de gestão dos seringais, já estavam presentes no modelo
anterior.
O período de tempo coberto pela análise é o mesmo do capítulo anterior, 1870 a 1970,
uma vez que o seringal é produto do processo de expansão da economia da borracha e os
elementos selecionados para análise, embora de caráter diferente dos anteriores, têm origem no
mesmo processo.
Três fatores foram identificados como essenciais para a compreensão do seringal
enquanto um espaço natural e enquanto um espaço econômico e social, base para a construção
da identidade social dos seringueiros e das relações sociais típicas do extrativismo. O primeiro,
abordado no tópico O Extrativismo da Borracha, evidencia as qualidades peculiares do látex da
seringueira, espécie concentrada em espaços naturais específicos, e as pesquisas tecnológicas
necessárias para tornar possível sua utilização industrial, fatores que influenciam a forma como as
relações sociais são organizadas. Aborda também a primeira fase de exploração da seringueira,
caracterizada como predatória e nômade, até que a expansão para a bacia dos rios Purus e Juruá,
nos últimos anos do século XIX, tornou a atividade mais organizada e permanente.
O segundo tópico abordado refere-se às Relações Sociais na Empresa Seringalista e
mostra a forma como um espaço natural de concentração de seringueiras se estrutura em um
sistema econômico e social de organização do trabalho para a produção da borracha. Os
seguintes elementos da empresa seringalista são evidenciados: (i) o endividamento prévio dos
seringueiros; (ii) a produção realizada com autonomia na floresta e o controle exercido pelo
seringalista no processo de comercialização; (iii) o endividamento permanente como forma de
controlar a produção; e (iv) os regulamentos firmados entre os seringalistas, como exercício do
monopólio em relação ao acesso à floresta e ao mercado.
O terceiro tópico aborda os aspectos culturais e políticos associados ao seringal, ou seja,
os elementos que dão significado à forma como as atividades econômicas e sociais estão
estruturadas. Denominado de Submissão e Revolta nos Seringais, resgata os elementos que
dão sentido tanto às relações de subordinação quanto de contestação, típicas dos seringais
tradicionais, e que constituem fenômenos fundamentais para a compreensão dos movimentos
sociais organizados que vão surgir, na década de setenta, na mesma região.
É preciso esclarecer previamente que a análise apresentada neste capítulo, tem como
modelo de referência a empresa seringalista da forma como se estruturou em uma região do Acre,
o alto Tarauacá. Está baseada na pesquisa realizada pela autora, em 1978, no Seringal Alagoas,
138
considerado o maior e mais estruturado seringal daquela região até o final da década de 1980
(Iglesias 1998). As características principais daquele seringal, apresentadas na Tese de Mestrado
(Zanoni 1979), foram reafirmadas pelas pesquisas realizadas entre 1996 e 1998 orientadas para a
criação da Reserva Extrativista do Alto Tarauacá (Iglesias op cit).
Diferentemente de outras regiões do Acre nas quais a ausência da empresa seringalista
permitiu a emergência de um campesinato florestal, objeto de estudo do antropólogo Mauro
Almeida (1992) no Juruá, entre 1982 e 1992, o Seringal Alagoas permaneceu estruturado como
empresa durante cerca de 90 anos.85 No caso do Alagoas, somente a partir da década de 1990 os
seringueiros passaram a trabalhar sem patrão, enquanto no rio Tejo, principal área de pesquisa de
Almeida, durante oito anos, de 1974 a 1982, aquele foi um rio sem patrão. A tentativa de retomar
o controle sobre o processo de produção e comercialização da borracha, pelos patrões, a partir de
1982 (Almeida op cit:73 e segs), coincidiu com o início do processo de organização política dos
seringueiros que levou à criação, naquela área, da primeira Reserva Extrativista, em 1990.
Outra diferença substancial nas relações entre seringueiros e patrões, nos dois casos, foi a
presença do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e das novas regras de organização do trabalho
por ele introduzidas em todo o Acre. Em Tarauacá, o STR foi criado em 1976 e tinha pouca
influência sobre os seringueiros do Alagoas, em 1978; no Juruá, em 1982, o STR já apresentava
uma forte atuação no sentido de mudar as regras de produção e comercialização. Assim, por
exemplo, enquanto todos os seringueiros pagavam renda, em 1978, no Alagoas e não conheciam
as novas orientações do Sindicato a esse respeito, em 1982 a desestruturação da empresa
seringalista e o não pagamento de renda já era uma realidade tanto no Juruá quanto no vale do
Acre, como veremos.
Em síntese, a pesquisa realizada em 1978, no Seringal Alagoas, pode ter sido uma
oportunidade ímpar de conhecer um modelo de empresa seringalista surgido após o apogeu da
borracha, funcionando aos moldes daquelas descritas e tidas como clássicas na literatura sobre o
tema (Ferreira Reis 1953; Benchimol 1977; Castro 1972), uma vez que as mudanças se
aceleraram, em toda a Amazônia ocidental, a partir da década de 1980.
Esse esclarecimento é relevante no sentido de contextualizar os elementos que serão aqui
salientados como sendo constitutivos à identidade social dos seringueiros, uma vez que trata-se,
principalmente, de seringueiros que mantiveram-se vinculados a uma empresa que funcionou
como tal, ou seja, com as seguintes características: regulamentos sobre as obrigações dos fregueses;
sistema controlado de abastecimento de mercadorias nas colocações; registro organizado, por
85 No início do século XX, Castelo Branco refere-se a João Batista Nascimento como o primeiro dono do Seringal
Alagoas; em 1914 foi adquirido por Nicolaus e Cia., casa aviadora de Belém; em 1939 foi comprado por Avelino Leal
e, em 1977, foi herdado por Altevir Leal. De 1950 a 1989 o Alagoas foi arrendado seis vezes, permanecendo,
portanto, em funcionamento até o início da década de 1990 (Iglesias 1998).
139
seringueiro, em contas-correntes, de toda movimentação comercial; estrutura de serviços
associada ao barracão; e alta produção de borracha por seringueiro. Embora os seringueiros
também realizassem pequena agricultura, a borracha sempre foi o principal produto
comercializado pelo Alagoas, mesmo nas épocas de crise.
O fato relevante é que foi no Seringal Alagoas que ocorreu uma das mais importantes
contestações às regras do seringal, que ficou conhecida em todo o Acre como a Revolta do
Alagoas, tema abordado neste capítulo. Foi uma rebelião organizada em 1967 pelos seringueiros,
em protesto contra o congelamento dos preços da borracha, um reflexo direto das mudanças
desencadeadas pelo fim da política do Monopólio da Borracha. Além de ter sido uma empresa
seringalista típica, o Alagoas é, também, uma referência importante para esta Tese, uma vez que
os descendentes dos que organizaram a rebelião conseguiram, em 2000, transformar o Seringal
Alagoas na Reserva Extrativista do Alto Tarauacá.
3.1.
O EXTRATIVISMO DA BORRACHA
Os seringueiros produzem uma matéria-prima de uso industrial a partir de uma árvore
nativa da floresta tropical, a Hevea brasiliensis86, que apresenta duas características peculiares, a
elasticidade e a impermeabilidade, e cuja existência depende da manutenção da própria floresta.
Não tem utilidade como bem de consumo para quem a produz, o que significa que a existência
do seringueiro está diretamente relacionada à demanda industrial por matéria-prima. O seringal é,
assim, o espaço natural de ocorrência da espécie e o locus econômico em torno do qual se
organiza um sistema de produção e de relações sócio-culturais singular.
Outra peculiaridade do extrativismo é a dependência direta que a atividade econômica
tem do ambiente no qual ocorre a espécie objeto da exploração. Assim, a continuidade das
atividades extrativistas da borracha, assim como de outros tipos de extrativismo (como a pesca, a
coleta de castanha, de açaí, de coco babaçu, de erva-mate) depende, essencialmente, do
conhecimento acumulado sobre as peculiaridades naturais da espécie e da existência de regras de
uso partilhadas e acatadas pelos usuários, estabelecendo o que pode e o que não pode ser feito
para permitir que o ambiente natural continue oferecendo condições de produção.
Para compreender as especificidades do seringal, enquanto espaço natural, o tema foi
subdividido em quatro tópicos: (i) as peculiaridades da borracha; (ii) as pesquisas industriais que
permitiram a transformação do látex em matéria-prima; (iii) o processo inicial de exploração das
86
Descrição detalhada da história dos estudos taxonômicos do gênero Hevea e da espécie Brasiliensis pode ser
encontrada no trabalho de Richard Evans Schultes, "The History of Taxonomic Studies in Hevea", publicado pela
International Association for Plant Taxonomy, em 1970.
140
seringueiras baseado na devastação dos seringais; e (iv) a ocupação dos seringais nativos
localizados nos altos rios que permitiu uma nova organização da produção.
3.1.1
As Peculiaridades da Borracha
As pesquisas botânicas sobre a Hevea brasiliensis a definem como uma árvore da floresta
tropical que cresce até a cúpula da floresta, a uma altura entre trinta e cinqüenta metros. A
princípio era mais explorada ao longo dos cursos d'água, onde há maior facilidade de encontrá-la,
já que suas sementes bóiam. Mas os maiores espécimes localizam-se em terras mais altas e em
solos bem drenados. A árvore não é encontrada em concentração uniforme; ao contrário, um
indivíduo aparece bastante separado do outro, podendo haver dois ou três espécimes exploráveis
em um hectare. A Hevea brasiliensis cresce somente na margem direita do rio Amazonas, num
vasto semicírculo com centro a oeste de Manaus, alcançando ao sul o Mato Grosso, o Acre, o
norte da Bolívia e o leste do Peru, até uma altitude de cerca de oitocentos metros, dentro daquela
porção da bacia que recebe pelo menos 1.800 milímetros de bem distribuída precipitação pluvial
anual (Dean 1989:33) (MAPA 2). 87
A experimentação com plantas e a descoberta das propriedades úteis que apresentam para
a vida humana, pode ser considerada uma das atividades mais antigas da humanidade. Está na
origem da agricultura e da medicina e é responsável pelos avanços mais significativos da ciência
moderna. Ao longo do tempo, a coleta de plantas com utilidade alimentar ou curativa
comprovada foi sendo transformada pelo cultivo, pela industrialização e pelo processamento
sintético, afastando-se cada vez mais da origem natural. 88
Conforme afirma Warren Dean, "As viagens de Colombo marcaram o início de uma
transferência deliberada e generalizada de plantas domesticadas, de grande importância para o
constante crescimento da população humana, a ampliação do comércio mundial e a expansão do
imperialismo europeu" (1989:21). Por volta do século XIX, a busca de plantas selvagens passíveis
de domesticação e a transferência de plantas exóticas eram atividades que se tornaram
racionalizadas, organizadas e postas a serviço do capitalismo industrial. A Europa mandava
coletores aos mais distantes rincões da Terra à procura de espécies desconhecidas que pudessem
servir como matéria-prima, remédio ou ornamento. De todos os grandes feitos daquela época de
Ver MAPA 2 sobre a ocorrência natural da seringueira no território amazônico, em 1924.
O livro de Hobhouse, Seeds of Change (1985), traz um estudo comparativo interessante entre diferentes plantas. À
semelhança da borracha, o uso do quinino era feito pelos índios da região andina e as cascas da árvore, a quina
(Cinchona ledgeriana), foram exportadas em larga escala e utilizadas para curar a malária até serem descobertas suas
propriedades químicas e ter início a fabricação sintética. Stanfield (1998) em Red Rubber, Bleeding Trees, faz a mesma
correlação. Outros autores abordam o processo de domesticação de plantas tropicais: Wilson 1988; Miller e Tangley
1991; Myers 1984; Peritore e Galve-Peritore 1995. O mais completo estudo sobre a história da domesticação da
borracha é de Warren Dean (1989), A Luta pela Borracha no Brasil. Um estudo de história ecológica.
87
88
141
descobertas botânicas, nenhum foi mais grandioso do que a domesticação das árvores produtoras
de borracha (Dean 1989:24).
O descobrimento de novas plantas está associado, de início, à observação do uso que é
feito delas pelas populações nativas. As primeiras referências ao uso do leite de uma árvore com
o qual eram fabricadas bolas elásticas, foram feitas por Cristóvam Colombo, referindo-se à sua
utilização por índios do Haiti; posteriormente o mesmo material foi identificado entre os
indígenas do México (1525 e 1615) e da Guiana (em 1723).89 Na Amazônia, os índios Cambebas
ou Omáguas, que ocupavam vasta área do Solimões utilizavam a goma, chamada vulgarmente de
leite de siringa, para fabricar seringas, botas, sapatos, chapéus, vestidos, todos impenetráveis à
água.90
Das primeiras referências à borracha, até o início das expedições científicas, dois séculos
se passaram. As viagens científicas ao rio Amazonas iniciaram com Charles Marie de la
Condamine em 1736. Ele desceu o Amazonas em direção ao Atlântico, comissionado pela
Academia de Ciências de Paris para a medição do arco do meridiano, no Equador. Descreveu a
forma como era coletado o látex e os objetos que eram feitos com ele, tanto em nota que enviou
à Academia de Paris, quanto em seu relato de viagem:
Com uma só incisão escorre dela uma resina branca como leite, que é aparada no pé da
árvore sobre folhas aí estendidas especialmente para isso. Exposta em seguida ao sol, ela
endurece, tornando-se escura, primeiro externa, depois interiormente. São feitas tochas de
uma polegada e meia ou duas de diâmetro, sobre mais ou menos dois pés de
comprimento; sua luz é muito viva, e a metade de um facho preparado como descrevi
dura cerca de doze horas. Os índios Maias a chamam de cautchuc, enchem de resina
moldes de terra na forma de uma garrafa, destroem o molde quando a resina está
endurecida e as garrafas assim preparadas são mais leves do que as de vidro, e não estão
sujeitas em absoluto à fragmentação... A resina chamada cautchu nas terras da Província
de Quito, vizinha do mar, é tão resistente quanto as das margens do Marañon e serve para
os mesmos usos. Quando está fresca toma a forma que se quiser. É impenetrável à chuva,
porém o que a torna mais assinalável é sua grande elasticidade. (Charles Marie de La
Em 1525, Pierre Martyr D'Anghiera, primeiro europeu a descrever a utilização da borracha, referiu-se a bolas
elásticas preparadas pelos naturais do México com leite de uma planta. Sahagum, em 1529, na sua História Geral das
Coisas de Nova Espanha, faz referência ao leite extraído de uma árvore chamada pelos regionais de ulequahuitl, e às
bolas de brinquedo que dele se faziam. Gonçalo Fernandes Oviedo, em 1536, falou dos naturais do Haiti e de seu
divertimento favorito, um jogo de mão no qual empregavam bolas elásticas feitas com gumana. Torquemada, na
obra Monarquia Indiana, publicada em 1615, assinalou a existência, no México, da árvore lactífera conhecida pelo
nome de ulequahuitl. P. de Neuville descreveu os diferentes objetos de utilidade fabricados com a borracha da Guiana,
em 1723. (Dean 1989; Pinto 1984; Reis 1953; Tocantins 1986).
90 Ver Ferreira, Alexandre Rodrigues. “Memória sôbre os Gentios Cambebas que antigamente habitavão nas margens e nas Ilhas
da Parte Superior do rio Solimoens”. Manuscrito. Biblioteca Nacional.
89
142
Condamine, Nota enviada à Academia de Paris, 1736. In Relato Abreviado de uma
Viagem no Interior da América Meridional, 1743).
Quando regressava à França vindo do Pará, em 1744, La Condamine encontrou François
Fresnau, em Caiena, e ampliou seus conhecimentos sobre a hévea. Fresnau havia realizado um
verdadeiro inquérito entre os índios Nouragues obtendo informações exatas a respeito de práticas
ligadas ao leite da seringueira:
Quando esta matéria se encontra em estado líquido pode ser aplicada sobre tudo o que se
queira, sem que nem a água nem o sol possam alterá-la. Poder-se-á, então, endurecer os
tetos e arreios das carroças para conservá-los em bom estado, sem constantes reparos e
com a mesma flexibilidade. Poder-se-á, também, fazer os canos dos navios e as bombas
de incêndio com pano em lugar de couro, o que os tornaria mais leves. Far-se-iam,
igualmente, lonas bem flexíveis, toldos de escalares, roupas de mergulhadores e outras
mais flexíveis, guarda-chuvas, toda sorte de equipamento de guerra para conservar as
munições, tendas, mantos, estojos de várias espécies e botas, as quais não seria preciso
senão lavar para limpá-las, e jamais a umidade se faria sentir nas pernas ou nos pés, etc.
O processamento então utilizado para permitir maior durabilidade aos objetos produzidos
com a borracha, a defumação, passou a ser adotado de forma generalizada, no século seguinte,
quando se intensificou a utilização do látex. Para que a seiva, reduzida a camadas finas, secasse
mais depressa e não apodrecesse, as formas revestidas do látex eram penduradas por cima de uma
fumaça produzida pela queima lenta de cocos da palmeira babaçu. A fumaça dava à borracha,
primitivamente de cor branca-suja, o tom pardo-escuro e maior espessura.
As pesquisas botânicas voltadas para o estudo da seringueira, iniciadas em 1736,
prosseguiram por mais cento e quarenta anos e foram úteis no futuro, quando teve início a
domesticação da espécie. Mas não foi nessa área que surgiram os resultados que tornaram a
borracha uma matéria-prima estratégica do final do século XIX e sim das investigações realizadas,
paralelamente, no campo da pesquisa aplicada a processos industriais.
3.1.2
As Pesquisas Industriais
Conforme analisa Nelson Pinto (1983) existe uma defasagem importante entre o processo
histórico de identificação da borracha utilizada pelos indígenas e o que deu origem à sua
utilização industrial. O intervalo de tempo que transcorreu entre a primeira notícia européia da
existência e utilização da borracha (início do século XVI) e o estabelecimento das primeiras
143
unidades fabris de artefatos deste produto no final do século XVIII, correspondeu às profundas
transformações sócio-econômicas ocorridas na Europa desse período (Op.Cit:10).
Um dos elementos essenciais foi o avanço e a intensificação da pesquisa científica. O
mesmo movimento econômico e científico que levou La Condamine ao Peru foi responsável
pelos trabalhos de Lavoisier, em 1789 (Traité de Chimie Élémentaire), Berthollet e John Dalton
(Teoria dos Átomos) de 1803, e outros cientistas que lançaram as bases da química moderna e de
toda a revolução científica pós-newtoniana (Pinto 1984:11). O látex que havia interessado,
inicialmente, aos botânicos, passou a ser objeto principal de investigação para a química e a física,
de onde surgiram as mais revolucionárias inovações.
O problema principal para o desenvolvimento da borracha como matéria-prima não era o
mercado, mas a manutenção de suas qualidades específicas, a elasticidade e impermeabilidade,
depois do látex ser coagulado, processo essencial para retirá-lo das regiões produtoras e
transportá-lo às unidades industriais. O desafio era, assim, mais técnico-científico do que
econômico e físicos e químicos dedicaram anos de pesquisa visando descobrir composições,
fórmulas e propriedades que tornassem a borracha adequada para o uso industrial.
Chama a atenção o fato das primeiras pesquisas terem sido feitas ainda no final do século
XVIII, ou seja, a partir de amostras enviadas pelos cientistas que viajaram pela Amazônia e tendo
como referência as características por eles descritas, conforme pode ser verificado no quadro
síntese apresentado a seguir:
Pesquisas para utilização industrial da borracha
Data
País
Responsável
1770
Inglaterra
Joseph Pristley
1772
1791
França
Inglaterra
Magellan
Samuel Peal
1813
1820
1823
EUA
Londres
Glascow
Jacob Hummel
Thomas Hancock
Charles Macintosh
1826
Inglaterra
Alemanha
Michael Faraday
Linderrsdorff
1828
Holanda
EUA
Viena
Van Guens
Hayward
Johann Reithoffer
1829
1832
Alemanha
EUA
1833
EUA - Roxbury
Resultado
India Rubber: substância utilizada para apagar
traços de lápis
Cubos de apagar
Capas impermeáveis: solução de látex e terebintina
- patenteado
Patente para fabricação dos mesmos artigos
Primeiro estabelecimento fabril
Fábrica de materiais impermeabilizados por
solução de látex e benzina
Determinou a composição química da borracha
A borracha misturada com terebintina e aquecida
numa solução de enxofre perdia parte da
viscosidade
Chegaram aos mesmos resultados
Primeira fábrica que utilizou matéria-prima vinda
de Belém
François Fourbert
Indústria semelhante
Chaffee
Indústria nacional para substituir a importação de
sapatos da Amazônia
Chaffee, Haskins e Baldwin Roxbury India Rubber Factory – produção de
artefatos de borracha
144
A principal conquista tecnológica, que alterou de forma definitiva o uso da borracha pela
indústria, foi o processo de vulcanização: através de um composto de borracha e enxofre, em
quantidade própria e temperatura adequada, o produto deixava de ser quebradiço quando
exposto a uma temperatura baixa e não se tornava viscoso a um calor elevado (Hancock 1920). A
partir daí, o desenvolvimento industrial da borracha foi assegurado e a inversão de capitais em
novos estabelecimentos fabris assegurou, cada vez mais, a demanda crescente por matéria-prima.
Descoberta do processo de vulcanização e expansão das indústrias de artefatos de borracha
Data
País
Responsável
1839
EUA
Charles Goodyear
1839
Inglaterra
Thomas Hancock
1844
EUA
1849
Alemanha
1851
Londres
1854
1855
Londres
Inglaterra
Thomas Hancock
Resultado
Descobriu o processo de vulcanização
Adquiriu a patente em 15 junho
Descobriu o processo de vulcanização
Adquiriu a patente em 30 de maio
A Roxbury faliu e se transformou na The
Goodyear Manufacturing
Terceiro mercado para borracha, prosperou
indústria de calçados e outros objetos
First General World’s Fair – Crystal Palace
Goodyear’s Vulcanite Court
Publicou livro descrevendo suas pesquisas
North British Rubber Company Ltd.
Liverpool Rubber Company
Ao mesmo tempo em que a industrialização do látex estava em condições de ser iniciada,
em 1839, a Amazônia estava exportando sapatos de borracha produzidos de forma artesanal. O
processo de vulcanização, descoberto nos Estados Unidos, tornou tão valiosa a matéria-prima
que, em pouco tempo, a possibilidade de expansão industrial acelerou a demanda por matériaprima invertendo a tendência e fazendo crescer, a partir daí, a exportação do produto bruto. Ou
seja, a borracha foi, primeiro, exportada na forma de bem manufaturado e, depois, na de matériaprima.91
Em Londres, em 1851, na First General World’s Fair, no Crystal Palace, uma exposição
internacional dos avanços industriais, Goodyear e Hancock mostraram a sua descoberta aplicada
a inúmeros novos produtos: sapatos, tapetes, cadeiras, paredes, forros, cornijas, porta-retratos,
pontões, botes, capotes, travesseiros, salva-vidas, balões de gás, a mais completa mostra de
objetos produzidos pelo látex.
Foram a invenção do pneumático por Dunlop, em 1888, o aparecimento do automóvel,
em 1895, e a massificação do uso da bicicleta como veículo de transporte, os responsáveis pelo
91
Consultar a esse respeito Stokes (1974), Pearson (1911) e Tocantins (1986).
145
verdadeiro surto da borracha nos mercados mundiais, assumindo o papel de matéria-prima cada
vez mais importante cuja procura, pela indústria, teve a mais rápida expansão. Para atender essa
demanda foram ocupados os territórios que abrigavam as principais fontes supridoras de
borracha crua e iniciada a sistemática exploração de suas respectivas populações.
3.1.3
A Devastação dos Seringais
A exploração da borracha ficou restrita ao redor de Belém e ilhas próximas, especialmente
Gurupá, pelo menos até 1850, apesar do processo de vulcanização já ter sido descoberto (1839) e
de estarem sendo implantadas as primeiras indústrias utilizando a matéria-prima, tanto nos
Estados Unidos quanto na Inglaterra (1820 e 1833).
Herndon (2000 [1854])92 descreve que à medida em que ia se aproximando do estuário do
Amazonas, a coleta de especiarias estava associada ao cultivo de cacau, à fabricação de manteiga
obtida de ovos de tartaruga e à extração da borracha. Denominou a região das ilhas de Gurupá,
da ilha de Marajó e do rio Pará, como o país da borracha, "the India-rubber country". A borracha
era coletada no rio Xingu e afluentes menores, utilizada para a fabricação de sapatos e
comercializada através de intermediários.93
Kelly (1984:297-349), com base em pesquisa utilizando fontes primárias sobre o vale do
Baixo Xingu e Gurupá, no período entre 1623 e 1889, afirma que o comércio em Gurupá era
dominado pela borracha obtida ao longo do rio Xingu e das ilhas menores vizinhas tendo aquele
município crescido muito a partir do surgimento da navegação a vapor. A extração da borracha
estava absorvendo quase toda a força de trabalho disponível em detrimento de outras atividades,
fazendo com que produtos cultivados como café e açúcar e coletados, como urucu e baunilha,
desaparecem do mercado. O mesmo foi afirmado pelo Barão de Santa-Anna Nery: "A agricultura
propriamente dita é objeto de indiferença da parte dos habitantes, devido aos lucros fabulosos e
imediatos que encontram na extração dos produtos florestais" (1979:121 [1889]).
O crescimento acelerado dos preços durante 1853-54 foi o principal fator responsável
pela atração das pessoas para a borracha; embora fosse considerada uma atividade de risco para a
vida e a saúde, trazia bom retorno material. Fascinados pelos altos preços oferecidos pela
borracha, a população regional abandonou suas atividades habituais para se dedicar
exclusivamente à extração da borracha, que era mais fácil e barata, uma vez que o único
equipamento necessário era uma faca para sangrar a árvore e tijelas para coletá-la.
92 O livro de Herndon (2000 [1854]), Exploration of the Valley of the Amazon, 1851-1852, apesar de preconceituoso em
relação à população indígena e regional, é um dos poucos relatos diretos das atividades sociais e econômicas
existentes nas pequenas vilas e cidades ao longo do rio Amazonas, naquele período.
93 Conforme Stokes (1974) foram exportados 116 mil pares de sapatos de borracha entre 1840 e 1841.
146
Esse momento caracterizou-se, enquanto processo de trabalho, pela extração predatória
da borracha, o chamado "sistema de arrocho", como descrevem Santa-Anna Nery (1979:132
[1889]) e Ferreira Reis:
... na sofreguidão de maior rendimento, os seringueiros empregaram um processo
grosseiro que chamavam de arrocho e consistia em apertar com um cipó a árvore, quase
ao rés-do-chão, de modo que se forme uma orla capaz de dar assento a uma goteira
circular de barro, feita ali mesmo pela mão do seringueiro. Debaixo desta goteira colocam
uma panela ou outra qualquer vasilha, que possa receber bastante líquido; feito isto
golpeam toda a árvore e por todos os lados, de modo que ela se esgota em um dia; e se
não morre, só se restabelece no prazo de muitos anos (Reis 1953:57).
Pimenta Bueno (1882) refere-se à devastação dos seringais como um dos principais
problemas que caracterizavam a exploração da borracha no momento em que estava sendo
aumentada a demanda pela matéria-prima94. O sistema de arrocho, então predominante na
exploração dos seringais, havia sido proibido pela Lei N. 601, de 18 de setembro de 1850 que
"vedou o bárbaro método de extração", mas não tivera efeito prático95. Nas ilhas e igapós do
Baixo Amazonas (Pará), afirma, já se vai sentindo a falta de seringais, e é a razão de ter afluído
tanta gente para o Madeira:
As árvores estragadas, enfraquecidas, não podem dar leite bastante para saciar a avidez
dos fabricantes. Milhões de exemplares têm desaparecido das florestas do Madeira, do
Juruá, do Xingu, do Purus e de outros afluentes do Amazonas, sem que hajam sido
substituídos senão pela ação própria da natureza, que não caminha proporcionalmente à
destruição. Já hoje ricos seringais estão extintos e muitos outros abandonados pela
debilidade das árvores, prematura e excessivamente utilizadas. Os resultados têm sido
obtidos à custa de imenso desperdício das forças produtoras. Meio século de devastação
tem produzido os seus naturais resultados (Bueno 1882).
O artigo de Pimenta Bueno (1882), Industria Extractiva. A Borracha. Considerações, publicado no Jornal do
Commércio do Rio de Janeiro apresenta o mais completo diagnóstico da situação da produção da borracha no
período. É antecedido por um editorial que salienta que o autor, além de ter coligido dados estatísticos, que só
poderiam ser encontrados, até então, de forma esparsa, e que, abrangendo o largo período de quarenta anos, (18421882), patenteiavam o valor da indústria por excelência daquelas regiões, indicando os perigos que a ameaçavam, os
vícios da organização do trabalho que a sustentava e os funestos resultados advindos para o bem estar econômico da
população.
95 A Lei N. 601, de 18 de setembro de 1850 estabeleceu no Art. 2o: "Os que se apossarem de terras devolutas ou
alheias, e nelas derrubarem matos, ou lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitorias e,
demais, sofrerão a pena de dois a seis meses de prisão, e multa de cem mil réis, além de satisfação do dano causado.
Esta pena porém não terá lugar nos atos possessórios entre heréos confinantes. Parágrafo Único: Os Juízes de
Direito nas correições que fizerem na forma das Leis e Regulamentos, investigarão se as Autoridades a quem
compete o conhecimento destes delitos põem todo o cuidado em processá-los e puni-los, e farão efetiva a sua
responsabilidade, impondo no caso de simples negligência a multa de cincoenta a duzentos mil réis".
94
147
Pimenta Bueno cita relatório elaborado por Silva Coutinho, no qual este afirma que a lei
de 18 de setembro de 1850, que proibiu expressamente a devastação das matas devolutas, não
tratou do modo nem do tempo; apenas proibiu o resultado. Chama a atenção para a urgente
necessidade de regularizar a extração das drogas no país: os processos verdadeiramente selvagens
que ainda se empregam acabam em pouco tempo com as plantas, que desaparecerão de todo,
visto que se não trata de substituí-los, afirma. Continua seu relatório chamando a atenção para o
fato de até aquele momento, no Amazonas, os seringais terem produzido o mesmo efeito, ou
pior ainda, que as minas de ouro em países incultos:
É uma horda nômade que pousa ora aqui, ora acolá, tirando das seringueiras a máxima
quantidade de leite que é possível, matando as plantas e deixando após si a devastação.
Logo que o seringal não deixa lucros fabulosos, que não fornece em um dia produto cujo
valor equivale ao que pode ganhar um trabalhador em seis dias, levanta-se o
acampamento, e novo seringal é infestado, mutilado e destruído. No fim de 60 anos os
seringais estarão mortos, a salsa deve ter desaparecido, assim como as copaibeiras, dos
lugares mais favoráveis e onde o trabalho é vantajoso. É preciso depois ir buscar essas
drogas no alto Iapurá e nas cabeceiras de outros rios ainda hoje desconhecidos.
Pimenta Bueno também faz referência a relatório do Conselheiro Araújo Brusque,
divulgado em 1862, que relaciona o sistema de arrocho ao fato da borracha estar sendo explorada
em terras devolutas e sem um sistema estável de produção:
Situados os mais abundantes seringais em terras devolutas e nacionais, conviria fazê-las
passar ao domínio particular, começando as suas distribuições pelas que estivessem mais
próximas dos grandes mercados da província. Então, velariam os proprietários na
conservação das seringueiras que vão mirrando pelo emprego do chamado arrocho, com
que esgotam toda a seiva da árvore e seria mais fácil então fundarem-se estabelecimentos
regulares, onde o trabalho seria moralizado, e o trabalhador encontraria os necessários
recursos, que lhe faltam nessas passageiras feitorias, que hoje se levantam e que no fim da
safra desaparecem, deixando como vestígio de sua existência a cruz, que indica a morada
dos mortos!
O caráter predatório dos primeiros anos de exploração das seringueiras estava
expressando a idéia de que, a exemplo das outras especiarias que eram coletadas desde o início da
ocupação da região, a borracha deveria ter um ciclo curto de existência e era preciso retirar o
máximo de proveito possível enquanto os preços estivessem em alta. À medida, no entanto, que
os preços continuaram a subir acompanhando o crescimento da demanda, era preciso que esse
148
sistema de exploração fosse alterado e a ocupação se estabilizasse. Isso foi possível depois de
terem sido localizados seringais de alta produtividade, especialmente os da região dos vales do
Purus e Juruá.
3.1.4
A Ocupação dos Altos Rios
Diferentes fatores foram relevantes no impulso dado à exploração da borracha e sua
expansão aos afluentes do rio Amazonas, Purus e Juruá, na segunda metade do século XIX: a
navegação a vapor em 1851, no Amazonas e Pará, para correios, transportes e rebocagem, e a
abertura do rio Amazonas à navegação internacional, em 1866. Também importante foi o
desmembramento, ocorrido no mesmo ano, da Província do Grão Pará (que englobava toda a
região) em duas, com a criação da Província do Alto Amazonas, cuja capital passou a ser Barra
(atual Manaus), um vilarejo com pouco mais de 500 casas. Isso permitiu a formação, na
Amazônia, de uma elite regional comercial poderosa, baseada em Belém e Manaus, voltada tanto
para a exportação da matéria-prima como para a importação de produtos industriais e para lá
passaram a se dirigir as frotas mercantes dos países interessados em operações comerciais. Essas
mudanças já eram resultado da descoberta do processo de vulcanização da borracha.
O estímulo às atividades comerciais era, também, uma estratégia do poder central para
controlar uma região escassamente povoada e objeto de interesse crescente principalmente por
parte dos Estados Unidos, que faziam intensa campanha pela abertura do rio Amazonas à
navegação internacional (Herndon 2000 [1854]).96
Inicialmente não houve interesse pela exploração comercial do transporte fluvial. Navegar
o Amazonas com regularidade exigia a montagem de uma estrutura até então inexistente; era
preciso construir os portos de abastecimento dos navios em plena selva, manter os barcos,
construir atracadouros – e não havia carga à vista para pagar a empreitada (Caldeira 1999: 239).
Diante dessa contingência, o governo propôs ao empresário Irineu Evangelista de Souza,
Visconde do Mauá, que construísse uma empresa de navegação para a região norte. Mauá exigiu
o monopólio de navegação do rio por trinta anos e um subsídio anual para colocar em
funcionamento linhas de transporte num lugar onde não havia carga para transportar. O governo
aceitou as condições, mas também exigiu sua contrapartida: a primeira linha deveria entrar em
operação no primeiro dia de 1853, quando foi criada a Companhia Nacional de Navegação e
Comércio do Amazonas.
96 Belém, a maior cidade da região, tinha pouco mais de 15 mil habitantes. E em todo o percurso do rio até os países
fronteiriços existiam pequenas vilas precariamente instaladas. "A renda total da província do Amazonas, em 1851,
chegava a 29 contos de réis, menor que o valor do plantel de escravos de uma única fazenda média de café no Rio de
Janeiro" (Caldeira 1999:238).
149
A primeira linha ligava Belém a Manaus, com escalas em Breves, Gurupá, Prainha,
Santarém, Óbidos, Parintins e Itacoatiara. A partir de 1866, outras companhias começaram a
colocar novos vapores e criar novos itinerários. Paralelamente ao monopólio exercido pela
Companhia de Navegação e Comércio e, depois, pela sua sucessora Amazon Steam Navigation
Company, os proprietários de seringais e de casas aviadores começaram a adquirir seus próprios
navios, evitando dessa forma a dependência dos transportes fluviais regulares.
A navegação a vapor, encurtando as distâncias e proporcionando transporte rápido,
seguro e econômico, levou a atividade da borracha às áreas nas quais a seringueira era abundante
e onde a indústria não havia ainda penetrado. Em 1882 o Pará já ocupava o quinto lugar na escala
do comércio marítimo de longo curso do Brasil, apenas cedendo a primazia ao Rio de Janeiro, a
Pernambuco, Bahia e São Paulo.
Com o crescimento da procura pela borracha, os primeiros exploradores começaram a
subir os afluentes do Solimões e iniciaram a ocupação dos rios Juruá e Purus.97
A ocupação do Purus, iniciada por cearenses e maranhenses, entre 1852 e 1857, cresceu
rapidamente ano a ano. A fama da riqueza de héveas no Purus começou a atrair os pioneiros
"não mais com o espírito de aventura ou curiosidade, que caracterizou o desbravamento inicial,
porém com objetivo econômico definido" (Tocantins 1979:145). Em 1864, quando o geógrafo
inglês William Chandless (1876) fez sua viagem de observação científica no Purus e, em 1866 no
Juruá, registrou a existência de moradores de beira de barranco, tripulantes de canoas, guias,
comerciantes de drogas do sertão, pescadores, ocupando o rio Acre, afluente do Purus. Segundo
Tocantins, já se encerrara, neste ano, o primeiro ciclo geográfico, do devassamento do Purus, do
Acre e do Juruá. (Tocantins 1979:144-145).
A ocupação deste período teve um papel pioneiro (Santos 1980) e foi feita por grupos de
parentes e amigos que embarcavam, principalmente do Ceará, em busca do enriquecimento nos
seringais ainda sem donos. A história clássica dessa modalidade de migração foi a de João Gabriel
de Carvalho e Melo (Melo 1977) que, após ter estado na área desde a década de 1860, adentrou
pelo Purus até a boca do rio Acre, em 1878, sendo assim um dos pioneiros no futuro território
(Oliveira 1982:17).
Conforme relata Castelo Branco (1922:595), as primeiras ocupações foram antecedidas de sertanistas, como João
da Cunha Corrêa, nomeado Diretor dos Índios do Juruá, entre 1855 e 1877, o primeiro a transitar as terras do Juruá
Federal. No mesmo período, Manuel Urbano da Encarnação foi nomeado para a mesma função no rio Purus,
antecedendo a ocupação do Acre, que se deu no período seguinte. Euclides da Cunha ressalta o papel destes
primeiros indigenistas na mediação entre os que chegavam e as tribos que lhe ocupavam as margens (1905:256).
97
150
Cronologia da Ocupação: Juruá
Data
Localização
1852
Primeira expedição oficial
1855
Expedição do Juruá ao
Tarauacá e Envira e por terra
ao Purus
Origem
Nome
Enviada pelo Presidente da Romão José de Oliveira
Província do Amazonas
Diretor dos Índios
João da Cunha Corrêa
Cronologia da Ocupação do rio Purus
Data
Localização
Origem
1857
Foz do Purus: Itapá
Ceará e Maranhão
1861
Do Purus até o Acre
1862
Alto Purus: Tauariá
1869
Codajás e Purus
Nome
João Gabriel de Carvalho e
Melo: 40 família
Enviado pelo Presidente da Manoel Urbano da
Província do Amazonas
Encarnação
Idem
João Gabriel abre seringal
no Alto Purus
Diversos pontos de origem
José Manuel da Rocha
Thury: 600 pessoas
Nas palavras de Euclides da Cunha (1976 [1905]) logo após a inauguração da navegação a
vapor, a ocupação espraiou-se pelo Purus a fora, "progredindo em avançamento ininterrupto,
uma poderosa vaga povoadora que ainda hoje não parou, pertinaz e intorcível, firmando-se no
domínio estável das terras sobre que vai passando e animada de um ritmo que a impelirá às
últimas cabeceiras". E refere-se ao caso de Antônio Labre como exemplar:
Teve início com o maranhense Antônio Pereira Labre que, em 1871, prosseguiu Purus
acima, passando Huitanaã, local onde terminava a navegação incipiente e foi estacar nas
vizinhanças da confluência do Ituxi. Naquele ponto derrubou um lanço de floresta e
levantou um papiri de folhas de palmeiras. Estabeleceu uma feitoria no local que viria a se
chamar Lábrea, com numeroso pessoal, que ficou implantando o núcleo enquanto ele foi
explorar a região guiado por Manuel Urbano da Conceição (Cunha 1905:258).
Em 1873, B. Brown e W. Lidstone, viajando pelo Purus, notaram a toda hora, filtrando-se
nas folhagens da mata marginal, os rolos de fumo revelando as barracas em que se defumava o
látex das seringueiras; e em Mabidiri e Sepatini, distante mais de 1.300 quilômetros da foz, se
depararam com opulentos seringais exportando 18.000 e 30.000 quilos de borracha (Cunha
1905:258). Assim foi se dando a ocupação do Purus:
Cronologia da Ocupação: Purus
Data
Localização
1871-73-74
Lábrea
1877
Purus: Boca do Aquiri Anajaz
Origem
Maranhão
Ceará:
Uruburetama
Nome
Antonio Pereira Labre:
5.000 pessoas
João Gabriel de Carvalho e Melo
151
1880
1880
1880
1886
1888
Alto Purus: Seringais Silêncio e Ceará
Desterro
Rio Iaco
Ceará
Rio Acre: Seringal Empresa
Ceará
Rio Acre: Seringal Iracema
Ceará
Aquiri e Alto Purus
Ceará
Alexandre Oliveira Lima
Caetano Monteiro da Silva
Hermínio Rodrigues Pessoa
Neutel Maia
Raimundo Sargento
Carvalho e Melo
e
Na viagem que fez em 1877, Labre saiu de Manaus, passou por Santo Antônio (rio
Madeira), Beni e Madre de Dios, na Bolívia, e chegou por terra ao Acre. O relatório que produziu
mostrou o panorama social do Acre em 1877, ocupado por uma população originária do Ceará,
Paraíba, Alagoas, Piauí, Sergipe, Pará e Amazonas:
Este rio é um dos afluentes mais populosos do Purus, exporta hoje em goma elástica 500
mil kg. Em pouco tempo aumentará sua produção. A sua população é de 10 mil almas,
sem incluir os aborígines que sobem ao duplo. O seu comércio é feito por mais de 15
grandes vapores que, durante a cheia, fazem a navegação do rio, levando anualmente
novos trabalhadores e mercadorias (Labre 1887).
Entre 1877 e 1878 o rio Acre e o alto Purus foram ocupados, em caráter econômico e
permanente, por João Gabriel de Carvalho e Mello, símbolo padrão do imigrante nordestino,
aviado do português Visconde de Santo Elias. Em 1870 a população amazônica era de 323 mil
pessoas, na década seguinte aumentou em 20%, chegando a 390 mil e, na década seguinte, a
476.370, um crescimento de 153.370 pessoas, ou seja, de 22%. A ocupação, nestas décadas,
alcançou também o Vale do rio Juruá que tinha entre 300 e 400 seringais funcionando.
Cronologia da Ocupação: Juruá
Data
Localização
1870
Riozinho da Liberdade
1877
Tarauacá
1884
1884
1891
Origem
Ceará
Estirão dos Nauas até Juruá- Ceará
Mirim
Baixo Juruá – Seringal New Itália
York. Do Seringal 13 de Maio
ao Paraná dos Mouras
Alto Juruá: Breu, Boca do
Dourado, no Peru
Nome
Francisco de Carvalho
Antonio Petrolino Albuquerque,
Miguel Fernandes, João Busson
Antonio Marques de Menezes
Ismael Galdino da Paixão
Henrique Cani
João Dourado
Os dados econômicos apresentados por Pimenta Bueno, em 1882, dão uma dimensão
clara da grande mudança que estava ocorrendo na região. A indústria da borracha já ocupava o
terceiro lugar no quadro geral de exportações do Império, sendo superada somente pelo café e
pelo açúcar. "Nos últimos quarenta anos (1842-1882), 115 mil toneladas de borracha,
152
representando o valor oficial de 166,000:000$, foram extraídos dos seringais do Pará e do
Amazonas. O produto paga no Pará e no Amazonas o imposto geral de 9%, o provincial de 13%
e o municipal de 2%, totalizando 24% sobre o quilo da borracha, representando importante fonte
de arrecadação para os governos provinciais. Em 1825 valia 300 réis o quilograma da borracha de
primeira qualidade, que em 1882 vale 3$200", observa Pimenta Bueno.
Isso explicava, segundo ele, o fato das províncias do Pará e do Amazonas importarem
açúcar, café, milho, feijão, arroz e até farinha de mandioca. O aumento da exportação e, em
conseqüência, das rendas gerais e provinciais, provinha unicamente da indústria extrativa, ou,
para melhor dizer, provinha exclusivamente de um ramo desta indústria, o da borracha,
porquanto a média anual do valor da castanha, da salsaparrilha, do óleo de copaíba, do de cumarú
e de outros similares não excedia de 1,800:000$000.
Para Pimenta Bueno, apesar da importância que havia adquirido a indústria da borracha
para a região, nos últimos vinte anos, pouco mudara a forma como se dava a exploração. "A
única diferença, e essa mesma prevista, é que, em conseqüência da devastação dos seringais do
Pará, é constante a emigração para o Amazonas, havendo tocado as raias das repúblicas
confinantes, já em alguns pontos transpostas".
Em decorrência dessa expansão, uma disputa financeira começou a existir entre as duas
províncias, do Pará e do Amazonas. O aumento da produção da borracha no Amazonas induziuo a contratar navegação direta de vapor para a Europa e os Estados Unidos, com o objetivo de
aumentar a renda e libertar-se da dependência que o ligava ao Pará. Sendo a borracha a principal
fonte de renda de ambas as províncias e começando o Pará a perder os seus seringais, o resultado
era evidente, afirma Bueno. "A população nômade emigrará, mais cedo ou mais tarde, para as
repúblicas limítrofes, levando para os seus vales, a atividade do comércio; e a crise financeira e
social das duas províncias será o corolário dos fenômenos que estamos presenciando com uma
imprevidência e cega confiança no futuro, que nada justifica. O rico patrimônio dos seringais não
está sendo aproveitado, mas sim dissipado", ressaltou.
O quadro apresentado abaixo sintetiza os dados referentes ao aumento da produção de
borracha, no período de vinte e nove anos, de 1871 a 1900, que corresponde à ocupação das
regiões mais produtivas e que estabelece a base para a expansão que vai ocorrer na década
seguinte. Foi elaborado tendo como referência o preço, em libras, da tonelada de borracha, a
partir de quadro organizado por Benchimol:
153
TABELA 3. Exportação de Borracha Silvestre Amazônica para o Exterior, 1871-1900.
Período
Quantidade
Valor Total em Libras
Libra/Tonelada
1871-1880
60.225
11.050.076
183
1881-1890
110.048
16.740.974
152
1891-1900
213.755
44.712.660
209
Fonte: Adaptado de Benchimol (1977:252)
O primeiro grande aumento de preço da borracha ocorreu entre a década de 1850 e 1860,
quando o valor da tonelada passou de 45 libras para 116 libras. Na década seguinte, o preço
médio manteve-se igual a 116 libras a tonelada. E, como mostra a tabela acima, aumentou na
década seguinte, caiu moderadamente e voltou a subir permanecendo em alta até 1912 (Ver
TABELA 2), quando começou a cair em função da entrada no mercado da produção de cultivo.
Com o estímulo dos preços, a produção cresceu, mais que triplicando em três décadas.98
O fato de não existirem relatos sobre a forma de organização da produção da borracha
para as fases iniciais, ocorrida nas áreas de seringais dos baixos rios e das ilhas, e de ter
apresentado as características predatórias e itinerantes referidas, parece revelar que o acesso era
mais livre e, talvez, mais aberto em termos de novas oportunidades de vida para os migrantes
nordestinos. Eram espaços naturais caracterizados pela disponibilidade de árvores das quais se
poderia obter, a custos baixos, um produto de procura crescente e preços atrativos. Não estava
organizado, ainda, um sistema de propriedade destas áreas, que ordenasse o acesso daqueles que
buscavam se estabelecer.
A fase seguinte correspondeu à busca de áreas não exploradas localizadas em rios mais
distantes, a meses de viagem de Manaus e Belém, e se caracterizou por uma ocupação mais
efetiva e permanente dos seringais, por meio de uma nova modalidade de organização da
produção da borracha, a empresa seringalista. Por outro lado, como veremos, também implicou
em um sistema mais rígido de controle sobre os seringais disponíveis e, principalmente, sobre os
trabalhadores seringueiros.
3.2.
RELAÇÕES SOCIAIS NA EMPRESA SERINGALISTA
Uma área de concentração natural de seringueiras, um seringal, transforma-se em uma
empresa seringalista através da organização de um sistema de produção voltado para a coleta do
látex produzido pelas seringueiras e sua transformação em matéria-prima de uso industrial, por
98
Uma análise completa das oscilações dos preços pode ser encontrada em Santos (1980) e Weinstein (1993).
154
meio da alocação de trabalhadores que se distribuem em torno das seringueiras, em vastas
extensões de florestas.
Os elementos constitutivos de uma empresa seringalista, tendo como referências o
modelo clássico e o encontrado no Seringal Alagoas, são: (i) a ocupação ou aquisição de grandes
áreas de concentração natural de seringueiras por um seringalista e a abertura do seringal; (ii) o
recrutamento de mão de obra; (iii) a organização da produção (coleta e transformação do látex)
em unidades autônomas denominadas de colocação, formadas pela casa de moradia do seringueiro,
pelas estradas de seringa, pela barraca de defumação99e, após a época de expansão, pela área de roçado,
caça e pesca; (iv) uma estrutura comercial, o barracão, voltado para a venda de instrumentos de
trabalho e bens de consumo aos seringueiros e pela compra da borracha; (v) um sistema de
contabilidade comercial, de responsabilidade do guarda-livros, organizado individualmente para
cada seringueiro, registrando a venda de mercadorias e o crédito da borracha produzida por
fábrico, isto é, a safra de borracha; (vi) um sistema de transporte de mercadorias entre o barracão e
as colocações, formado por tropas de animais; e (vii) a contratação de trabalhos especializados
(mateiro, caçador, ferreiro) e de trabalhadores assalariados responsáveis por serviços de apoio
(transporte, alimentação e agricultura em anos mais recentes).
A relação social central da empresa seringalista é a que ocorre entre o seringalista, dono
ou arrendatário do seringal, denominado de patrão e o seringueiro, produtor de borracha,
responsável pela colocação e denominado de freguês. Esta relação é organizada, primeiro, em função
das relações de propriedade dos recursos e, depois, dos termos em que se dá a comercialização.
O seringueiro paga uma renda, em espécie, pelo uso das estradas de seringa nas quais trabalha. E a
relação comercial é organizada através do aviamento, ou seja, o fornecimento, como crédito, de
bens de produção e de consumo, denominados em geral de estiva, necessários à sobrevivência do
seringueiro durante o período de produção, e que serão pagos com a borracha produzida.100
São poucos os relatos e as descrições de primeira mão sobre a estrutura e o
funcionamento da empresa seringalista no período de expansão da indústria da borracha,
especialmente nos anos iniciais, entre 1870 e 1900101. Não existem referências sobre pesquisas
A defumação predominou até os anos 1980. Surgiram posteriormente novas tecnologias como as mini-usinas, o
processo de coagulação e formação de pranchas de borracha.
100 O aviamento foi estudado, dentre outros, pelos seguintes autores: Ferreira Reis (1953); Robert Murphy (1955);
Miyazaki e Ono (1958); Roberto Santos (1968, 1974 e 1980); Otávio Guilherme Velho (1972); David Funnel (1972);
Euclides da Cunha (1976); João Pacheco de Oliveira Filho (1977 e 1979); Terri Valle de Aquino (1978); Octávio
Ianni (1978); Mary H.A. Zanoni (1979); Adélia Engrácia de Oliveira (1979); Carlos Teixeira (1980); João Antônio de
Paula (1980); Mauro W.B.Almeida (1992).
101 Apesar de ter realizado uma extensa pesquisa bibliográfica, este não é um trabalho sobre a história da Amazônia.
Por isso, não foram consultados os arquivos públicos dos Estados do Pará e Amazonas, o Arquivo Nacional ou o
Arquivo Histórico do Itamaraty. Uma pesquisa sobre as empresas seringalistas, no período de expansão da indústria
da borracha, e entre as duas guerras, com base em fontes primárias, ainda está para ser feito e seria de grande valia
para a compreensão da Amazônia contemporânea.
99
155
científicas realizadas no período, que descrevam e analisem o seringal e sua forma de
funcionamento. As expedições científicas faziam levantamentos botânicos e seus autores
descreviam o modo de vida regional. Mas não realizavam levantamentos sistemáticos sobre a
organização social da produção. E apesar da empresa seringalista ter perdurado por décadas,
também não é possível encontrar literatura científica sobre os seringais do período entre as duas
guerras mundiais.
A partir dos primeiros anos do século XX e até a década de 1950, as fontes de referência
sobre o seringal nativo são mais ricas, em função do interesse internacional que a questão da
Amazônia e da borracha despertaram. Estudos técnicos sobre o desenvolvimento da indústria da
borracha são muito úteis para compreender a história (Pearson 1911; Akers 1913; Schurz 1925;
Lawrence 1931; Wolf 1936; Schidrowitz e Dawson 1952; Woodruff 1958;), assim como relatos de
estilo literário com informação precisa (Castro 1972; Collier 1968; Stewart 1973), sem fazer
referência aqui aos trabalhos acadêmicos surgidos após a década de 1950 e que serão
referenciados no momento adequado.
A organização das relações sociais na empresa seringalista, em anos mais recentes, também
foi pouco pesquisada. A referência principal é de antropólogos que, ao estudar sociedades
indígenas na Amazônia, em áreas próximas a seringais, fizeram referências à vida econômica e
social dos seringueiros e seringalistas; ou, ao reconstituirem as frentes de ocupação da região
estudada, descrevem o funcionamento do extrativismo da borracha naquelas áreas específicas.102
A pesquisa de campo que realizei, em 1978, em uma empresa seringalista do alto Tarauacá,
o Seringal Alagoas, é um dos poucos trabalhos que tem como objeto as relações sociais em um
seringal e foi realizada em um momento em que os seringais ainda estavam estruturados no Acre,
permitindo, em função disso, comparações com os dados históricos.103 Mais recentemente
pesquisadores como Mauro Almeida e Carlos Teixeira também realizaram investigações
específicas sobre seringais, o primeiro na região do Juruá, no Acre, e o segundo no Amazonas.104
Para compensar os limites da falta de pesquisas empíricas, foram selecionados dois relatos
originais escritos por pessoas que viveram nos seringais, naquele período: Alfredo Lustosa Cabral,
Pesquisas sobre as relações das sociedades indígenas com a economia da borracha: Terri. V. de Aquino, 1977.
Kaxinawá: de seringueiro ‘caboclo’ a peão ‘acreano’. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Brasília, UnB, Terri Aquino
e Marcelo Iglesias, 1994. Kaxinawá do Rio Jordão – História, Território, Economia e Desenvolvimento Sustentado. Rio Branco,
CPI, João Pacheco de Oliveira Filho, 1979. O caboclo e o brabo – Notas sobre duas modalidades de força de
trabalho da fronteira amazônica do século XX. Encontros com a Civilização Brasileira N. 11. R.J, dentre outras. Os
autores citados que estudaram o aviamento também são importante fonte de referência.
103 Mary Helena Allegretti Zanoni. 1979. Os Seringueiros: estudo de caso em um seringal nativo do Acre. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
104 Na mesma linha de investigação ver pesquisas recentes de antropólogos sobre os seringais: Carlos Corrêa
Teixeira, 1980. O Aviamento e o Barracão na Sociedade do Seringal. Estudo Sobre a Produção Extrativa de Borracha na Amazônia.
Dissertação apresentada à USP e Mauro W.B. de Almeida, 1992. Rubber tappers of the upper Juruá river, Brazil. The making
of a forest peasant economy. PhD Thesis, University of Cambridge.
102
156
nordestino da Paraíba, escreveu uma memória sobre a década em que ele e seu irmão trabalharam
nos seringais do Tejo e do Tarauacá, no Alto Juruá (1897-1907) e John Yungjohann, norteamericano, escreveu sobre os dez anos que trabalhou no Seringal Boca do rio Xapuri, na
confluência com o rio Acre (1906-1916).105
Estas informações originais foram complementadas com os relatórios escritos por
Thaumaturgo de Azevedo, Prefeito da Comarca do Alto Juruá, em 1905 e 1906, especialmente em
relação às propostas que apresentou de regulamentação das relações de produção nos seringais e
com os artigos de Euclides da Cunha (1905), do padre francês Tastevin (1920) e de Castello
Branco (1922).106
Silvino e Alfredo Cabral e John Yungjohann
As histórias selecionadas como referência, de Silvino e Alfredo Cabral e de John
Yungjohann, ocorridas quase no mesmo período, em rios diferentes, relatam trajetos bem
sucedidos de seringueiros que regressaram para os locais de onde haviam partido em melhores
condições do que estavam anteriormente. As regras de coerção citadas pela literatura107 devem
expressar exatamente os riscos, para os seringalistas, de histórias como as aqui relatadas, que
certamente eram exceções, se constituírem em padrão. Seringais pouco explorados permitiam
altos níveis de produtividade, o alto preço pago pela borracha e o controle, pelos seringueiros,
sobre os bens de consumo oferecidos pelo barracão, permitiram um alto nível de mobilidade aos
protagonistas dos exemplos aqui citados que, certamente, não poderia ser uma opção para todos.
Em ambos os casos apresentados, os seringueiros iniciaram devendo e um conjunto bem
específico de fatores contribuiu para que conseguissem pagar as dívidas, acumular saldo e deixar
o seringal em boas condições financeiras.
Silvino Cabral imigrou para a Amazônia em 1892, com 19 anos, bem antes da seca se
constituir em fator determinante no recrutamento de mão de obra (1897). Estava há cinco anos
105 Alfredo Lustosa Cabral, 1949. Dez Anos no Amazonas (1897-1907). Escola Industrial de João Pessoa, Paraíba. John
C. Yungjohann, 1989. White Gold. The diary of a rubber cutter in the Amazon 1906-1916. Synergetic Press, Oracle, Arizona.
O mapa em anexo, do rio Tarauacá, elaborado em 1926 pelo Padre Tastevin (Le Haut Tarauaca. La Géographie, XLV,
Janeiro-Fevereiro) identifica tanto o Seringal Alagoas quanto o Seringal Redenção, seringais de referência no texto.
(MAPA 3).
106 Thaumaturgo de Azevedo, 1905. Primeiro Relatório Semestral (1904). Prefeitura do Alto Juruá. Imprensa Nacional. Rio
de Janeiro. 1906. Relatório do Primeiro Semestre de 1906. Prefeitura do Alto Juruá. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro.
Euclides da Cunha, 1976 [1906]. Entre os Seringais e Terra sem História, In Um Paraíso Perdido. Reunião dos Ensaios
Amazônicos. Ed. Vozes, Petrópolis. C. Tastevin, 1920. Le Fleuve Juruá. La Géographie, XXXIII, N. 1. José Moreira
Brandão Castello Branco Sobrinho, 1922. O Juruá Federal (Território do Acre). In Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Volume IX. Imprensa Oficial, Rio de Janeiro, 1930. Outro relato da época foi feito por J.B.
Parissier, 1898. Six Mois ao Pays du Caouthouc. Manuscript, Manaus, July 1898. Archives de la Congrégation du St.
Esprit, Box 139-IV, pesquisados em primeira mão por Manuela Carneiro da Cunha.
107 A literatura sobre os seringais é plena de exemplos sobre as injustiças cometidas por seringalistas contra
seringueiros em todo esse período da história (Castro 1972; Collier 1968; Stewart 1973).
157
trabalhando no Seringal Boa Esperança, no rio Juruá, três deles como gerente e guarda-livros de
um seringal, cujo dono não sabia ler nem escrever, quando voltou ao Nordeste; de lá retornou
trazendo seu irmão, Alfredo, o autor das memórias. Tendo dinheiro disponível, comprou
mercadorias baratas, foi à foz do Tejo e as vendeu, aos seringueiros, com lucro, recebendo o
pagamento em borracha. Cabral afirma que nos altos rios, como as vidas não tinham garantias,
em função dos conflitos com os índios, o seringueiro era livre, tinha direito a tirar a borracha por
conta. Os proprietários arrendavam duas estradas por 66 quilos de borracha e o seringueiro
comprava mercadorias ao patrão ou a qualquer outro fornecedor. Um homem disposto arranjava
6,8 até 12 quilos de borracha diariamente, cortando apenas de 80 a 120 seringueiras. Mas além de
viver sobressaltado com os índios, estava sujeito à malária e a arranjar o carimbo da ferida braba.
Descobriu que havia rios bons de leite e pouco ocupados, encerrou sua conta com o
patrão, aviou um pequeno grupo de seringueiros (homens livres, definidos como sem
compromisso com o patrão, porque nada lhe deviam) e foi procurar um seringal no bruto para se
estabelecer.108 A região na qual se localizou foi atacada por índios Katuquina, o que levou os
seringalistas a organizarem várias correrias.109
Em uma dessas expedições, descobriu um rio grande, desabitado, somente com rastros de
índios. A notícia se espalhou, todos querendo ser dono de seu próprio seringal e uma expedição
foi organizada para reconhecer o local. Estavam no rio Tarauacá, próximos à sua cabeceira e o rio
já havia sido ocupado antes, mas muitos o haviam abandonado em função da presença de grande
população indígena. Em 1900, Silvino decidiu descer o Juruá, entrar no Tarauacá e comprar um
seringal. Subiu nesse rio 35 dias em canoa e adquiriu o Seringal Redenção, no alto Tarauacá, bom
de leite, porém com muitos índios. As propriedades ali eram de pouco valor por ser região
doentia, habitada pelas tribos Kaxinauá e Katuquina, em número considerável. Dois anos depois
mandou chamar o irmão, Alfredo, que ficara trabalhando como seringueiro e auxiliar de guardalivros, no rio Juruá. No Redenção, Alfredo ajudou o irmão a administrar o seringal, especialmente
porque decidiram implantar um grande roçado para superar dificuldades de abastecimento.
Ao final de dez anos nos seringais, em 1907, Alfredo Lustosa decidiu voltar para o
Nordeste. Em Manaus, o movimento em torno da borracha estava no auge. Vendeu a borracha
que levara e faturou mais de oito mil contos de réis, com os quais comprou roupas caras,
desfrutou das festas da cidade, adquiriu passagem de primeira classe e voltou, com suas
economias, para a terra natal.
108 Era comum um gerente ser aviado por um seringalista e tomar conta de um seringal, ganhando um percentual
sobre a venda da borracha e das mercadorias.
109 Eram chamadas de correrias as expedições organizadas por seringalistas visando "limpar" os índios de uma área na
qual se pretendia implantar um seringal. Eles eram dizimados, ou escravizados ou se refugiavam em locais mais
distantes (Aquino 1977).
158
Explorar rios abundantes em seringueiras e de alta produtividade, expulsar os indígenas e
manter-se preparado para possíveis confrontos, ser alfabetizado e ter alguma experiência em
contabilidade, ter boas condições físicas, contar com crédito dos patrões locais, comercializar a
borracha produzida enquanto os preços estavam altos e deixar o seringal enquanto havia um
capital acumulado, foram os fatores que influenciaram o percurso seguido por Alfredo Lustosa
Cabral. A liberdade de movimentação estava diretamente associada ao fato de seu irmão ter tido
crédito e se tornado um seringalista.
Já a experiência de John Yungjohann, relatada em suas memórias, mostra uma estratégia
consciente de evitar o mecanismo por meio do qual os seringueiros ficavam presos no seringal –
a dívida gerada pelo aviamento. Ele conta com detalhes as soluções que adotou para se tornar
independente do barracão e acumular um saldo que o diferenciou dos demais seringueiros, apesar
de não ter conseguido desfrutar do dinheiro, como veremos.
Yungjohann trabalhou durante dez anos em um seringal na boca do rio Xapuri, no Acre.
No primeiro fábrico, não conseguiu pagar a dívida inicial que havia contraído. No segundo, iniciou
tarde a produção porque levou 4 meses e meio para transportar até Xapuri a borracha produzida
no ano anterior. Assim, continuou devendo. No inverno antes do terceiro fábrico, decidiu coletar
caucho, conseguiu 5 mil réis e pagou a dívida. Aí, então, decidiu cortar o aviamento regular em um
terço, deixando de comprar café, açúcar, farinha, substituindo-os por frutos da floresta. O valor
do aviamento ficou em 1 mil réis e não em 5 mil como seria de praxe.
Já aclimatado, Yungjohann decidiu que coletaria o látex à noite, porque as árvores eram
mais produtivas e, ao final do segundo ano, fez 2 mil quilos de borracha. No terceiro ano,
construiu duas canoas para vender e ficar mais independente do patrão, vendeu-as e, mais a
borracha, conseguiu faturar 7 mil réis. No quarto ano fez 4 mil quilos, a um preço de 7 mil réis o
quilo, mais o saldo do ano anterior, ficou com 35 mil réis. Havia decidido ir embora, mas foi
convencido a ficar e dobrar o saldo que havia conseguido. Concluindo que não teria outra
oportunidade igual a esta, ficou. Foi aí que as coisas começaram a dar errado.
Consciente de que sua estratégia era de evitar o aviamento, no quinto ano, o gerente lhe
vendeu farinha estragada. Yungjohann transformou a farinha em uma péla, defumando a
borracha sobre ela. No inverno, foi coletar copaíba, juntou quatro galões e foi vender ao capitão
de um navio, que prometera pagar um bom preço a quem a coletasse. O capitão ofereceu duas
camisas baratas como pagamento pela copaíba. Yungjohann se revoltou e agrediu o capitão,
colocando também o gerente contra si, em função da péla de farinha. Resolveu não vender a
borracha, fez um pequeno aviamento, e voltou para sua colocação.
159
Ele havia descoberto um local onde as seringueiras ficavam mais próximas, ali construiu
sua barraca, e apesar das febres que teve durante todo o ano, fez uma grande produção. Decidiu
construiu uma grande canoa, comprou algumas mercadorias de alguns seringueiros e ficou todo o
sexto ano sem se abastecer em Xapuri. No sétimo ano desceu o rio com sua enorme canoa,
levando somente a quantidade de borracha necessária para seu abastecimento. Vendeu a canoa
por 7 mil réis, a borracha por 3 mil réis, decidiu adiantar mercadoria para alguns seringueiros em
troca de borracha futura e voltou. No ano seguinte fez 2 mil quilos de borracha e recolheu mais 4
mil quilos dos seringueiros que havia abastecido. Levou toda essa borracha para sua colocação.110
No nono ano no seringal, Yungjohann ficou doente com beribéri, por ter perdido suas
energias transportando toda a borracha rio acima. Ficou meses inconsciente até que os
seringueiros foram ver o que estava acontecendo, uma vez que ele não descera para se abastecer
em Xapuri, já pelo segundo ano. Eles o transportaram em uma rede, o colocaram em um navio
que se dirigia para Barbados, onde levou 11 meses para se recuperar e nunca mais teve condições
de voltar a Xapuri para recuperar a borracha que escondera e poder desfrutar do dinheiro
acumulado.
Além dos fatores citados, outros dois foram importantes para explicar a capacidade de
acumular: mudou inúmeras vezes de lugar, sempre escolhendo os melhores em termos de
alimentação e de produção; e, mais decisivo, talvez, que todos, conseguiu estabelecer amizade
com os índios que habitavam aquele rio. Em função dessa amizade, recebeu proteção nos casos
de conflitos entre grupos rivais, aprendeu a conhecer plantas e medicamentos, teve atenção dos
índios quando ficou doente e pediu a eles que escondessem sua borracha quando teve que ir
embora do seringal.
Yungjohann faz uma observação interessante: somente conseguia saldo quem mantinha
acesa a idéia de ganhar algum dinheiro para ir embora do seringal. A maioria acabava desistindo
desse objetivo e permanecia produzindo somente o suficiente para pagar o aviamento,
transformando, assim, a produção de borracha em um meio de vida. Certamente, para quem
vinha do Nordeste, sem alternativas, ficar nos seringais poderia ser mais vantajoso. Além disso, é
evidente, pelo seu relato, que desfrutava de excepcionais condições físicas, que o permitiram
superar inúmeras febres e continuar trabalhando, o que não era a regra, nem entre outros
estrangeiros que começaram trabalhando com ele e morreram e, muito menos, entre os
nordestinos, como ele mesmo relata em seu livro.
Em seu relato Yungjohann afirma que decidiu esconder a borracha por problemas de segurança, uma vez que o
Brasil entrara em guerra com a Bolívia e toda borracha estava sendo sequestrada. Pelas datas de sua chegada a
Xapuri, o ano em referência seria 1914 e não 1901 quando aconteceu este conflito.
110
160
Face à inexistência de relatos de seringueiros sobre a forma como estavam organizadas as
relações sociais na economia da borracha no começo do século XX, as memórias de duas pessoas
de origens distintas, o nordestino Alfredo Cabral e o norte-americano John Yungjohann,
constituem depoimentos interessantes para entender melhor o momento em que a borracha
estava em expansão. Os objetivos de cada um eram diferentes: Silvino Cabral queria ser
seringalista e tinha autonomia para isso porque havia acumulado capital; Yungjohann queria
acumular capital e voltar para seu país. Ambos conseguiram atingir seus objetivos controlando o
elemento central na lógica do seringal, o endividamento. Era pelo endividamento permanente que
os patrões mantinham os seringueiros nos seringais por anos seguidos, ou pela vida inteira. Era o
monopólio sobre os bens de consumo, por parte do seringalista, que obrigava o seringueiro a
entregar toda sua produção para pagar a conta no barracão.
Em outras palavras, os seringais eram, num certo sentido "livres", os seringueiros podiam
buscar áreas inexploradas e se estabelecer por conta própria, acumular algum capital em função
dos altos preços da borracha e abandonar a atividade. Esse processo contraditório entre a oferta
abundante de recursos naturais, de um lado, e a escassez de mão-de-obra, de outro, passou a ser
um elemento central na organização da produção da borracha nos seringais dos altos rios, nas
décadas seguintes, como será detalhadamente apresentado a seguir.
3.2.1
Abertura de Um Seringal
A abertura de um seringal é o primeiro passo para a implantação de uma empresa
seringalista e a forma como se processa já está determinada pelas características de uma atividade
extrativista.
No passado, o reconhecimento prévio era feito por mateiros, trabalhadores com
conhecimento da mata, de áreas nas quais existia densidade de seringueiras, orientando a
aquisição ou a ocupação de um seringal por um seringalista. Os descobridores do Juruá, por
exemplo, à medida em que iam subindo, reservavam uma certa quantidade de praias para cada
um, assinalando as extremas de um e outro lado da exploração com um pequeno roçado e
deixavam uma tabuleta com os nomes dos respectivos donos.
Tendo segurança de que a área estava sob seu domínio, e que os indígenas haviam sido
eliminados, o seringalista contratava os mateiros para abrir o seringal, buscava crédito junto às
casas aviadoras, recrutava111 um grupo de trabalhadores e os deixava à beira do rio, na área a ser
As casas aviadoras enviavam agentes, regularmente, para as principais capitais do Nordeste, visando recrutar
trabalhadores que haviam migrado para as cidades em função da seca. Havia também os que iam buscar, por conta
própria, colocação em um seringal e que se apresentavam aos agentes em Belém ou Manaus.
111
161
transformada em seringal.112 A primeira coisa a fazer era abrir uma pequena clareira, na beira do
rio, construir uma barraca coberta de folha de palmeira para se abrigar e colocar em segurança as
mercadorias para a sobrevivência dos próximos meses. Em seguida, o mateiro ia abrir o seringal, o
que significava localizar onde estavam as seringueiras, no meio da floresta e abrir as estradas de
seringa. Se a área era ocupada por índios, montava-se um arsenal de guerra, todos os homens
armados de rifles e municiados regularmente, como se refere Lustosa.113 Esse processo é relatado
por Chico Mendes:
Desde aquela época em que ninguém era dono da terra na Amazônia, o seringalista que
sabia que existia uma determinada região habitada por índios, preparava os seringueiros e atacava
a região, destruíam as malocas e implantavam a sede do barracão. Dali desbravavam uma área de
30 a 40.000 hectares dentro da mata, abrindo picadas e estabelecendo as colocações dos
seringueiros. Estes dividiam as colocações, que não são lotes, entre 100 a 200 famílias e cada um
deles explorava aproximadamente 300 a 500 hectares, em vários blocos de seringueiras, o que
denominamos estradas de seringa. (Entrevista de Chico Mendes à CUT-Central Única dos
Trabalhadores. Setembro de 1988, Belo Horizonte, MG).
Dar uma ordem à natureza de tal forma que fosse possível tornar racional e ordenado o
trabalho de extração do látex, era o objetivo da abertura das estradas, uma medida agrária original,
dado que o valor da terra era relegado face ao valor exclusivo da árvore, como escreveu Euclides
da Cunha.114 O mateiro avaliava a topografia, a localização dos igarapés, onde deveriam ficar as
barracas dos seringueiros, identificava a primeira seringueira mais próxima e ali era a boca da estrada;
ao localizar a segunda seringueira, gritava para o toqueiro que ia alcançá-lo, seguido do piqueiro que
ia abrindo uma picada entre as duas árvores. Assim iam seguindo até a volta da estrada, quando o
mesmo processo era feito de volta, em direção à barraca, de tal forma que a estrada assumia uma
forma circular e tinha entre 100 e 120 madeiras. O mesmo processo era feito em todo o seringal,
ficando as estradas empicadas.
Cada estrada tinha, em média, 100 hectares. Cada seringueiro trabalhava em até três
estradas. Assim, um seringal com 300 estradas terá cerca de 30.000 hectares e ocupará 100
112 Em geral as viagens levavam meses: John Yungjohann, por exemplo, levou 37 dias para chegar a Xapuri saindo de
Belém, em navio a vapor, e mais 45 dias, em canoa, para chegar à área na qual iria abrir sua colocação; Silvino Lustosa
Cabral (irmão de Alfredo Lustosa Cabral) levou 45 dias, em canoa, da foz do Tarauacá até a área onde comprou o
Seringal Redenção.
113 O Seringal Redenção foi adquirido por Silvino Cabral, que havia sido gerente em um seringal no Tejo e
conseguira fazer economias. Comprou mais barato porque era uma região desvalorizada e considerada perigosa, por
ser habitada pelos índios Kaxinauá.
114 Os registros de propriedade dos seringais eram feitos em número de estradas de seringa e essa medida se manteve
na Amazônia até a década de 1970, tendo sido um dos elementos que facilitaram a fraude de títulos de propriedade,
como veremos.
162
seringueiros. É a isso que se referiu Euclides da Cunha quando escreveu que "...a disposição das
estradas é o diagrama da sociedade nos seringais, caracterizando-lhe um dos mais funestos
atributos, o da dispersão obrigatória. O homem é um solitário".
As colocações dos seringueiros ficavam localizadas próximas à boca das estradas e ao lado de
um igarapé. Eram constituídas de uma ou mais barracas, dependendo do número de estradas, e do
defumador, local onde o látex era transformado em borracha. No caso de John Yungjohann,
estavam com ele sete brabos, como eram denominados os que ainda não conheciam o trabalho na
seringa e foram abertas 14 estradas de seringa. Concluído este trabalho, o mateiro os ensinou a
coletar a borracha e a defumar o leite para formar a goma elástica.
O trabalho de abrir seringais que estão no bruto era uma atividade constante em uma
empresa seringalista e o mateiro, um empregado permanente que também exerce outras funções,
como a de fiscal do corte, evitando que sejam feitas agressões às seringueiras. Do ponto de vista dos
seringueiros, um bom mateiro é aquele que constrói uma estrada evitando as terras altas, alagadas e
colocando as seringueiras, o mais possível, próximas umas das outras (conforme Zanoni 1979).
À medida em que a crise da borracha se estabeleceu de forma permanente, as colocações dos
seringueiros passaram a ter mais autonomia uma vez que as atividades de subsistência foram
assumindo um papel equivalente às de mercado. Roçado para produção da farinha, cultivo de
árvores frutíferas, caça, pesca, coleta, e criação de animais, passaram a ser atividades encontradas
em todas as colocações, em maior ou menor extensão, dependendo do ciclo de desenvolvimento da
família.
3.2.2
O Endividamento Prévio
Do ponto de vista sociológico, o fato mais importante relacionado à abertura e à
colocação de um seringueiro no seringal, era a dívida formada previamente ao início do processo
de produção, porque vai determinar as possibilidades de obter lucro ou de ficar devendo ao final
do processo.
Euclides da Cunha apresentou a conta típica de um seringueiro antes de chegar ao
seringal (1976:109-112 [1905]).115 Ela era formada pelos seguintes itens: a passagem do Ceará ao
Pará, o transporte ao seringal, dinheiro adiantado durante a viagem, os utensílios necessários para
o trabalho e um aviamento de mercadorias de consumo para três meses, totalizando 2:090$000. No
primeiro ano, pelo fato de ser inexperiente, o seringueiro fez somente 250 quilos de borracha (ao
preço de 5$000 o quilo) e 100 quilos de sernamby (a 2$500 o quilo), totalizando uma receita de
Embora a moeda esteja em mil réis, isso não afeta a compreensão, uma vez que o que se pretende é mostrar a
relação entre o valor do consumo e o valor da produção.
115
163
2:000$000. Ou seja, ficou devendo ao final do primeiro ano. No ano seguinte, mais experiente,
ele produziu 700 quilos de borracha, mas em compensação, como só pode produzir durante o
período seco, passou mais de sete meses só consumindo, o que tornou sua conta no barracão tão
alta que, mesmo aumentando a produção não conseguiu pagá-la. E esse raciocínio excluiu
qualquer doença ou imprevisto, ou mesmo a necessidade de repor algum instrumento de
trabalho. A conclusão era que o seringueiro ia permanecer preso ao seringal pela dívida.
John Yungjohann também referiu-se ao mesmo mecanismo. Tendo acumulado dinheiro
antes de ir para Belém procurar uma colocação em um seringal, ele não dependia de um agente que
lhe pagasse as contas até iniciar a viagem. No entanto, depois de ter acertado a contratação e
antes de iniciar a viagem, o agente insistiu em pagar todas as despesas, inclusive hotel e passagem,
além de o orientar a não comprar nada (armas, roupas ou medicamentos) porque pagaria muito
mais barato no seringal, uma vez que compravam em estoque. Ao chegar no seringal, além de
adquirir o necessário para produzir e sobreviver, foi induzido a comprar bens que não
necessitava, a preços altíssimos. Sua conta, ao final, estava em 4:780$000, antes de começar a
trabalhar. Ao final do primeiro ano, apesar de ter ficado com a borracha produzida pelos seus
companheiros, que morreram todos naquele ano, ficou endividado.
A dívida inicial, feita quando um seringueiro se coloca no seringal, era um mecanismo
fundamental para o seringalista. Quanto maior fosse a dívida, mais tempo ele teria controle sobre
a produção da borracha. Por outro lado, no passado, a dívida também era uma expressão da
capacidade de produção do seringueiro.
Esse procedimento pouco se alterou em anos recentes. Na pesquisa realizada no Seringal
Alagoas, em 1978, um importante item dessa dívida inicial era a compra de farinha no barracão,
uma vez que o seringueiro, recém-chegado, não tinha tempo de fazer seu próprio roçado. Além
disso, era comum emprestar algum dinheiro para saldar uma conta pendente e poder mudar de
seringal. Ou então, quando o próprio patrão pagava a dívida do seringueiro com o seu patrão
anterior, este era o primeiro lançamento que fazia em sua conta-corrente.
Como estes, existem outros fatores que regulavam as relações econômicas nos seringais e
que expressavam as contradições apontadas inicialmente, entre a autonomia do seringueiro na
produção e o monopólio, do seringalista, sobre a comercialização, como será apresentado a
seguir.
3.2.3
Colocação e Barracão
A produção de borracha, o fábrico, como era denominada a safra, era feita durante o verão
amazônico, nos meses de maio a outubro. Durante o inverno, onde não existiam outras opções,
164
como a coleta da castanha, os seringueiros ficavam parados. Para fazer a produção, todos os dias
o seringueiro percorria duas vezes uma estrada de seringa: na primeira volta, fazia as incisões na
seringueira e, na segunda, coletava o látex acumulado nas tijelinhas. Em seguida, defumava o látex
colhido naquele dia, até produzir, no período de um mês, uma bola, denominada de péla, com
cerca de 50 quilos. A média anual de produção variava em função da produtividade das
seringueiras, que diminui na proporção do tempo em que vêm sendo sangradas. Um seringueiro
produzia bastante borracha quando alcançava 1000 quilos em um fábrico, mas a média era de 500
a 700 quilos por fábrico.
O acesso às estradas de seringa e aos demais recursos naturais de uma colocação sempre foi
condicionado ao pagamento de uma renda em borracha, igual a 35 quilos por estrada. O
pagamento de renda significava o reconhecimento de que o seringal tinha um dono e o fato de
ser em borracha estabelecia uma regra: a de que o seringueiro deveria produzir primeiro borracha
e, depois, outras atividades para complementar a subsistência. No passado, havia uma correlação
clara entre o pagamento de renda pelo seringueiro e a obrigação do seringalista de entregar a
colocação em condições de produção, ou seja, as estradas abertas, roçadas, os caminhos limpos para
facilitar o trabalho e o defumador preparado. Esse modelo parece ter funcionado enquanto
perduraram os preços altos, interessando ao seringalista que o seringueiro se dedicasse
exclusivamente à produção da borracha, não sendo permitida a agricultura.
Com a crise da borracha, o quadro mudou. A renda continuou a ser cobrada mas os
trabalhos de manutenção do seringal foram repassados para os seringueiros. Nos casos nos quais
um seringueiro abria uma colocação que há muito tempo não estava em uso, era dispensado do
pagamento da renda pelo seringalista, reafirmando o sentido original deste pagamento. Em
compensação, passou a ser estimulada a produção de subsistência, uma vez que o preço alto dos
transportes e baixo da borracha, não compensava trazer de fora todos os alimentos necessários à
manutenção dos seringueiros.
A principal característica da produção de borracha era o fato de que, na colocação, havia
autonomia e controle, pelo seringueiro, sobre o processo de trabalho116. Primeiro, porque não
havia divisão de trabalho, ou seja, o processo completo, da coleta à transformação do látex,
sempre foi realizado por uma única pessoa. Segundo, porquê em decorrência da dispersão das
seringueiras, uma colocação ficava afastada da outra, fazendo com que o seringueiro vivesse isolado.
Mesmo que vários seringueiros morassem na mesma colocação, o trabalho de cada um era feito nas
suas estradas, com pouco contato com os demais durante o processo de extração e coleta do
Mauro Almeida (1990 e 1992) descreve detalhadamente o processo de trabalho nas colocações dos seringueiros do
rio Tejo e as define como a unidade principal de uso dos recursos na floresta, base conceitual que foi incorporada ao
modelo da Reserva Extrativista.
116
165
látex. Por último, não havia como exercer fiscalização sobre a atividade em si mesma, dada a
extensão dos seringais, a não ser esporadicamente, quando da visita de um fiscal ou da chegada
do comboio com mercadorias, nos seringais organizados como empresa. Portanto, na medida em
que o seringueiro passou a produzir para seu próprio consumo, passou a depender do seringalista
exclusivamente para colocar sua borracha no mercado.
A ausência de controle direto sobre a produção, no seringal, faiaz com que fosse essencial
o monopólio do seringalista sobre todos os produtos comercializados, tanto da borracha como
dos bens de consumo, e de forma integrada entre ambos. O objetivo do seringalista sempre foi
conseguir uma equivalência: fazer com que toda borracha produzida pelo seringueiro fosse
utilizada para pagar sua conta de consumo no barracão. A borracha que sobrasse, seria o saldo,
sobre o qual o seringueiro teria todo o controle. Para diminuir o saldo, ou para controlá-lo, uma
série de mecanismos foram aos poucos sendo institucionalidados.
Em primeiro lugar, os preços das mercadorias vendidas aos seringueiros sempre foram
muito alterados e o preço da borracha era determinado pelo seringalista. Em segundo lugar, um
seringueiro só podia vender a borracha para aquele seringalista que o aviou e os comerciantes
ambulantes eram proibidos nos seringais, ao menos durante a época do auge. Por último,
existiam inúmeros outros custos cobrados aos seringueiros: o transporte da borracha até os
centros comerciais, os juros sobre dinheiro adiantado, despesas com tratamentos de saúde, assim
como descontos feitos no peso da borracha, além de manipulações nas balanças e,
principalmente, nos registros das contas-correntes.
Na pesquisa realizada no Seringal Alagoas, em 1978, foi possível perceber uma
modalidade nova de controle sobre a produção e consumo, o chamado sistema da metade: Cada
seringueiro só podia consumir a metade do valor da produção que fazia e havia um registro
detalhado na conta-corrente de cada um. Diferentemente do passado, quando o consumo era
estimulado e compensado, em função dos altos preços, no presente a estratégia mais segura era
evitar grandes débitos, uma vez que a chance de serem pagos era muito pequena. A venda das
mercadorias na metade, na observação de Almeida (2002), confirma que a orientação do barracão
era não a de aumentar dívidas para que não pudessem ser pagas, e sim a de ajustar o
adiantamento (e portanto a dívida) à capacidade de pagamento para manter toda a borracha como
"borracha de conta" e assim garantir o monopólio do barracão, evitando a "borracha de saldo",
com lucros mais altos.
Todo seringueiro tinha uma conta com o barracão na qual eram registrados os débitos e
os créditos. Sendo a maioria analfabeta, esses controles nunca foram dominados pelos
166
seringueiros, permitindo diferentes níveis de fraude117. Era essa a situação que levava um
seringueiro, ao final do fábrico, a fazer seu próprio cálculo e ter a expectativa de saldo, e não
conseguir provar que o débito registrado estava incorreto.
Esse sistema, aqui descrito no âmbito da empresa seringalista se reproduzia em toda a
cadeia do aviamento, conectando os seringalistas com os aviadores, de quem recebiam as
mercadorias a crédito e destes com os exportadores, que financiavam toda a produção. Na época
de expansão da atividade econômica da borracha, essa cadeia conectava o industrial que adquiria
a matéria-prima, financiava o exportador que, por sua vez, comprava a borracha de um grande
comerciante, o aviador, que aviava o seringalista e este o seringueiro. De um lado se dava o fluxo
de bens de consumo e de produção e, de outro, o do produto, a borracha, sem circulação
monetária, apenas através de registros contábeis.
Conseguiam saldo aqueles seringueiros que moravam há muitos anos na mesma colocação,
que tinham filhos homens adultos que contribuíam com a produção da família e que gozavam de
boa saúde. Mesmo nestes casos, porém, nenhum benefício visível demonstrava que o padrão de
vida era diferente daquele existente no início do século: moradias improvisadas e sem conforto.
Os seringueiros não tinham qualquer expectativa de conseguir acumular algum excedente e a
idéia de voltar para o Nordeste ainda era um sonho inalcançável. O que não significa que
estivessem acomodados com essa situação, como veremos logo a seguir.
3.2.4
Os Regulamentos dos Seringais
Todo esse sistema de produção e de comercialização estava consolidado em um conjunto
de regras e de procedimentos, os Regulamentos dos Seringais. Alguns, de caráter interno, visavam
padronizar procedimentos para os seringueiros; outros, partilhados entre os seringalistas, tinham o
objetivo de evitar prejuízos entre eles.
O regulamento mais importante e que mais tempo permaneceu vigente, era o que proibia
um seringueiro de deixar o seringal se estivesse devendo e impedia que um patrão recebesse em
seu seringal um seringueiro endividado com outro patrão; nas palavras de Euclides da Cunha,
"Qualquer freguês ou aviado não poderá retirar-se sem que liquide todas as suas transações
comerciais". E não adiantava fugir porque havia um acordo entre os patrões de não aceitar
seringueiro com dívidas com outro patrão. Em anos recentes essa regra poderia ser rompida se o
seringueiro conseguisse um novo patrão que se responsabilizasse pelo seu débito, o que costumava
acontecer, especialmente com base em relações de compadrio, comuns entre seringueiros e patrões.
117
Ver em Zanoni (1979) uma descrição detalhada de todas as formas existentes de manipulação das contascorrentes dos seringueiros, no Seringal Alagoas, no Acre.
167
O segundo regulamento mais importante e, também, o mais questionado, era o que
estipulava a obrigatoriedade do seringueiro adquirir todos os bens de consumo no barracão do
patrão. O rompimento desta regra implicava em pesadas multas, registradas nas contas-correntes
ou na expulsão do seringal, como relatou Chico Mendes: 118
Quando o nordestino chegava na Amazônia, não tinha mais como voltar, estava preso
pelo rio, caminhavam horas nas matas, havia índios que resistiam e que matavam, tudo isso além
da malária e outras doenças. Os que conseguiam sobreviver, quando conseguiam um saldo que
concretizaria o seu sonho de voltar à terra natal, não eram reembolsados. Como eram vários
grupos de seringalistas, cada um detinha o domínio sobre uma determinada área. E um não podia
entrar na área do outro. Se acontecesse de um seringueiro ir ao barracão de um seringalista
diferente daquele ao qual ele pertencia e esse seringalista descobrisse, mandava a polícia ao
barracão, tomava a borracha do seringueiro e tacava fogo nele. Muita gente morreu assim. De
1930 para cá isso foi se acabando pois o governo andou prendendo vários seringalistas. Mas,
ainda hoje, em algumas regiões da Amazônia, prevalece o sistema de seringueiro escravo.
(Entrevista de Chico Mendes à CUT-Central Única dos Trabalhadores. Setembro de 1988, Belo
Horizonte, MG).
Outro artigo dos regulamentos que explica a precariedade na qual sempre viveu o
seringueiro, em sua colocação, definia que as benfeitorias por ele realizadas não seriam pagas se ele
decidisse se retirar do seringal. "Daí o quadro doloroso que patenteiam, de ordinário, as pequenas
barracas. O viajante procura-as e mal descobre, entre as sororocas, a estreitíssima trilha que conduz
à vivenda, meio afogada no mato. É que o morador não despende o mais ligeiro esforço em
melhorar o sítio de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito à reclamação mais breve",
relatou Euclides da Cunha.
As regras internas ficavam mais ao arbítrio de cada patrão e davam consistência a uma
classificação básica, existente entre os seringueiros, a dos patrões bons e dos patrões ruins, conforme
considerassem justas ou injustas as regras por eles estipuladas.
O mais detalhado registro sobre os Regulamentos foi publicado por Benchimol (1977) e
era adotado nos seringais de Octávio Reis em 1934, localizados no Acre e em Rondônia. Define
os deveres de todos os trabalhadores do seringal: dos encarregados dos depósitos119, do guardalivros, dos empregados de balcão, dos comboeiros, dos fiscais, dos empregados de campo e
diaristas e do extrato, além de um regulamento geral para todos.
Ambas as regras estavam vigentes em 1978 e eram objeto de intensa discussão por parte dos seringueiros. Foi o
rompimento do segundo regulamento que deu início às mudanças na estrutura do seringal, no vale do rio Acre, tema
que será abordado no Capítulo 4.
119 Os depósitos são barracões menores existentes dentro de grandes seringais, com o objetivo de dividir a
administração. Os gerentes dos depósitos são empregados e subordinados ao gerente geral do seringal.
118
168
Uma síntese destas regras apresentava as seguintes características: o seringal era cedido
gratuitamente com a condição de que o extrator obedecesse os regulamentos de corte, mantendo
sua casa limpa e limpas as estradas em que trabalha. Os utensílios eram alugados ao depósito e o
seringueiro deveria entregá-los na mesma quantidade que recebeu. O freguês deveria ser assistido
gratuitamente quando ia se colocar, tanto no preparo da casa quanto na limpeza das estradas, para
que não começasse com atraso o fábrico e pudesse pagar as despesas com brevidade. As
mercadorias eram entregues em sua casa em dias marcados e os saldos pagos pontualmente
quando o freguês desejasse se retirar. O preço da borracha era pago no valor de 70% do preço de
Manaus e era cobrada uma tara de 10%. O seringueiro era assistido em caso de doença, mesmo
que não tivesse saldo. Eram permitidas a colheita da castanha e a agricultura de subsistência.
O mais interessante do regulamento era o que explicitava que o seringueiro "...deve ter em
consideração que quando vem para os seringais e se coloca como extrator, é para produzir
borracha". E que todos os benefícios feitos pelo seringalista deveriam ser retribuídos com a
entrega da borracha produzida para que não houvesse prejuízo nos compromissos por este
assumido nas praças comerciais. O Regulamento estipulava ainda, que o seringueiro deveria
trabalhar em borracha, cortando e colhendo as suas estradas 4 dias na semana "...notando que este
trabalho lhe proporcionaria o seu bem estar e agradaria à casa, que era estabelecida para produzir
borracha".
O seringueiro deveria manter suas estradas limpas e trabalhar de forma metódica e regular.
"O bom extrator não é aquele que tira muito leite e sim aquele que tem o seu trabalho metodizado
em condições de ir vê-lo sempre, para o que precisa de saúde e vontade". Por isso, não deveria
trabalhar além de sua capacidade física. Deveria pagar fielmente suas dívidas e não poderia fazer
negócio com a sua colocação sem prévio consentimento do depósito onde trabalhava.
Todos os seringais tinham normas a respeito dos cuidados que deveriam ser adotados em
relação às seringueiras. Euclides da Cunha referiu-se, por exemplo, a pesadas multas impostas
àqueles que cometessem os seguintes "crimes": fazer na árvore um corte inferior ao gume do
machado; levantar o tampo da madeira na ocasião de ser cortada; sangrar com machadinhas de
cabo maior de quatro palmos. No caso de Octávio Reis as recomendações referiam-se à adoção
do novo sistema de corte com faca e não mais machadinha e aos deveres dos fiscais que podiam
suspender o produtor de seus trabalhos em caso de descumprimento das regras três vezes seguida,
quando então os prejuízos seriam cobrados pela casa.
Em 1978, no Seringal Alagoas, os regulamentos eram mais simples e estavam escritos para
serem cumpridos pelos gerentes, sempre com a definição de que poderiam ser alterados se
169
houvesse conveniência, o que permitia ao gerente administrar pequenas exceções. Estipulavam o
seguinte:
1o As mercadorias serão vendidas dentro da metade, para seringueiros, empregados e
diaristas. 2o Se o freguês estiver devendo suas ordens (pedidos de compras ou serviços) não serão
atendidas. 3o A renda não será dispensada de ninguém, a não ser daqueles que abram a colocação por
conta própria. 4o Não é permitido comprar colocação, roça, utensílios, a não ser pelo preço mínimo;
se for para pagar em dinheiro, será descontada comissão por dentro; mas só no caso de interessar
e quando o utensílio for vendido no primeiro ano, será pago 50% do valor e no terceiro ano, 75%
do valor dos mesmos. 5o Se os utensílios ou a agricultura foram indenizados por valor maior que o
estipulado, será debitado na conta do gerente. 6o Não é permitido emprestar móveis, utensílios,
semoventes e mercadorias sem conveniência comprovada. 7o Mercadorias vendidas na matriz só
serão aceitas com ordem do gerente; e medicamentos e artigos de necessidade, somente se houver
exceção desta ordem e caso exceder da ordem, o valor será debitado ao responsável. 8o Não será
permitido ao gerente criar porcos e aves, em particular, salvo se for debitado o milho ao mesmo.
9o Não é permitido aceitar ordens para regatãos, salvo se houver conveniência. 10o. Fica de direito
ao gerente da sede fiscalizar as contas-correntes de todos fregueses, seringueiros, diaristas e
empregados, para seu conhecimento comercial.
É na análise da contabilidade que se percebe, de fato, como funcionavam os regulamentos.
Assim, no caso do Alagoas, por exemplo, outras regras existiam, além das já citadas: o valor do
quilo da borracha paga ao saldo, ou seja, aquela que o seringueiro deveria receber em dinheiro,
depois de descontados todos os débitos, era menor do que o valor da borracha creditada na conta.
Todas as transações internas, como o conserto da arma de um seringueiro, feito pelo ferreiro, era
contabilizado; se o seringueiro estivesse devendo, era cobrada uma comissão de 30%. Na medida
em que os itens de subsistência passaram a ser produzidos no próprio seringal, o barracão passou
a vender produtos de perfumaria, supérfluos, sempre com preços alterados em até 200% sobre o
valor de mercado. Por último, como os seringueiros não sabem ler, embora façam cálculos
relativos ao volume de produção e de consumo, versus o preço da borracha, existe a permanente
desconfiança em relação ao patrão e as contas-correntes são guardadas, anos a fio, como se um dia
pudessem vir a comprovar as fraudes vividas mas não provadas.120
Na pesquisa que realizei no Seringal Alagoas estudei e copiei diversas contas-correntes dos seringueiros que
entrevistava. Para isso, levava os livros de contabilidade para meu quarto e ficava com eles durante dias seguidos.
Esse fato despertou enorme interesse dos seringueiros, uma vez que atribuíam à minha presença no seringal o papel
de fiscal do governo, algo que nunca ocorrera naquela região. No decorrer dos dias, seringueiros de todos os
seringais vizinhos começaram a formar filas à frente do meu quarto querendo que suas contas fossem conferidas,
para poder comprovar um fato incontestável, de que trabalhavam anos seguidos, produziam muita borracha,
consumiam só o indispensável no barracão, e estavam sempre devendo.
120
170
Se, por um lado, os regulamentos estipulavam tudo aquilo que um seringueiro devia fazer
ou cumprir, por outro lado, revelavam o contrário, ou seja, os conflitos e disputas e,
especialmente, a resistência dos seringueiros em se submeter aos seringalistas. Além disso,
evidenciavam a tentativa dos seringalistas de exercer um poder absoluto sobre a vida dos
seringueiros, na ausência de instituições públicas que pudessem mediar as relações entre eles.
Desde Euclides da Cunha surgiram denúncias sobre esse sistema de sujeição no qual
viviam os seringueiros nos seringais e propostas visando corrigi-las: "uma lei do trabalho que
nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e uma forma
qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra", escreveu Euclides. Em 1905 o
Prefeito do Alto Juruá, Thaumaturgo de Azevedo decretou uma Lei do Trabalho estabelecendo
novas regras nas relações entre patrões e fregueses, mas que não devem ter tido aplicabilidade, uma
vez que o sistema persistiu até anos bem recentes.
3.3.
SUBMISSÃO E REVOLTA NOS SERINGAIS
Apesar da literatura pouco se referir a isso, várias foram as reações contrárias às regras
vigentes nas relações de trabalho nas empresas seringalistas. Surgiram tanto na forma de leis,
quanto de iniciativas organizadas pelos seringueiros.
No entanto, a vigência dos Regulamentos dos Seringais foi duradoura. Em 1968, quando
teve início a organização dos seringueiros em Xapuri, liderada por Chico Mendes, as regras
questionadas foram aquelas que haviam sido estabelecidas no começo do século, e que estavam
diretamente referidas na relação peculiar que se estabeleceu, na empresa seringalista, entre patrões e
fregueses, seringalistas e seringueiros.
As relações entre patrões e fregueses eram, em essência, conflitivas e se resolviam na
ambigüidade entre a submissão e a revolta, de forma coerente com a própria organização do
seringal, marcada pela autonomia na produção e pela subordinação na comercialização. O
seringueiro produzia a borracha em sua colocação, isolado na floresta, sem interferência direta do
patrão; mas dependia dele para conseguir acesso ao mercado, vender a borracha e concluir o ciclo
de produção no qual estava envolvido. O patrão, por outro lado, precisava da borracha do
seringueiro e, por não conseguir estar presente no processo de produção, concentrava seu
controle sobre a esfera na qual exercia seu domínio, a comercialização, o acesso ao mercado. O
resultado buscado pelo seringueiro, o maior saldo possível podia representar a anulação do
seringalista, o que levava o seringalista a procurar atingir seu próprio objetivo, fazer com que o
seringueiro tivesse o menor saldo possível e permanecesse produzindo no seringal, o maior tempo
possível.
171
São categorias estruturais conflitivas as que organizaram as relações sociais nos seringais.
Do ponto de vista do seringueiro, autonomia na produção e subordinação na comercialização; do
ponto de vista do seringalista, autonomia na comercialização e subordinação na produção. A
convivência entre estes extremos requeria regras, uma vez que, para atingir o objetivo principal,
que era o lucro e o saldo, um tentaria anular o outro. O exagero registrado historicamente, nas
regras que regulavam estas relações de trabalho, apontam para um fato objetivo: se tivesse acesso
ao mercado, o seringueiro poderia viver sem o patrão, o contrário não sendo verdadeiro.
Esse objetivo acabará sendo alcançado, nas últimas décadas do século. Mas ele não
aconteceu de um dia para o outro. O registro dos conflitos entre seringueiros e seringalistas
permite que se tenha uma dimensão mais clara daqueles que, no futuro, irão acontecer entre
seringueiros e fazendeiros, objetivo principal desta Tese.
3.3.1
A Lei do Trabalho
Em 1905 surgiu a primeira proposta de mudança nas regras e regulamentos vigentes nos
seringais. São decretos expedidos por Gregório Thaumaturgo de Azevedo, Prefeito do Alto
Juruá, que regulamentam o trabalho, a propriedade e a circulação de comerciantes ambulantes e
determinam a aplicação dos impostos em educação, atendimento à saúde e segurança para a
população. Almeida (1992:24 e segs) refere-se ao possível impacto que tiveram ao relatar reação
contrária, em 1910, de parte de um advogado que defendeu a legitimidade da coerção pelo fato
dos patrões investirem capital nos seringueiros. Estes mesmos direitos serão reativados, em 1985,
razão pela qual é importante que sejam registrados.121
O prefeito fez um diagnóstico da situação dos seringais, referindo-se ao fato de que os
seringalistas exerciam sua autoridade como verdadeiros senhores feudais: "O 'tronco' era uma
instituição. Extinguira-se em 1888 o cativeiro dos negros, mas imperava ainda escandalosamente
a escravatura branca, no regime do trabalho e dos castigos. Os índios eram perseguidos,
massacrados, escravizados e vendidos... fiz prender alguns dos mais poderosos e temidos desses
acusados, para mostrar aos demais que a ação da justiça começava pelos ricos e não pelos
deserdados da sorte" (Thaumaturgo de Azevedo 1905).
A Lei do Trabalho (Decreto N. 15 de 15 de dezembro de 1904) definiu diferentes
modalidades de contrato de trabalho (empreitada, parceria, renda) e estabeleceu o prazo de um
ano a partir do qual os patrões somente poderiam admitir trabalhadores mediante contratos
Ver Thaumaturgo de Azevedo. 1905. Primeiro Relatório Semestral (1904). Prefeitura do Alto Juruá. Imprensa Nacional.
Rio de Janeiro e 1906. Relatório do Primeiro Semestre de 1906. Prefeitura do Alto Juruá. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro.
Estes relatórios apresentam informações detalhadas sobre o funcionamento dos seringais e os novos regulamentos
são muito avançados para a época.
121
172
escritos. Não eliminou um dos regulamentos anteriores, que requeria o consentimento do patrão
para que um seringueiro deixasse o seringal, embora estabelecesse exceções: impontualidade do
patrão, maus tratos ou violências físicas do patrão, falta de cumprimento recíproco das cláusulas do
contrato, desobediência do contratado às ordens relativas aos fins do contrato; atos repetidos de
turbulência ou desacato por parte do contratado e vício contumaz.
Todos os demais regulamentos então predominantes foram modificados por este Decreto:
o patrão terá sempre preferência, em igualdade de condições e de preço, sobre a compra dos
produtos; nenhum privilégio assiste ao patrão para o reembolso de adiantamentos pecuniários ou
de outra espécie, se não tiver feito contrato expresso do penhor; as contas-correntes devem ser
individuais, mensais e constituem prova nas liquidações judiciais; o patrão será obrigado a pagar as
benfeitorias quando terminar o contrato e o trabalhador a retirar-se da propriedade; o aviado ou
freguês que abrir, por iniciativa própria, novas estradas de seringueira ou de caucho, fora das terras
de propriedade do patrão, terá direito a elas e não pagará renda, sendo, porém obrigado a entregarlhe a borracha que preparar, para ser levada a seu crédito; a renda devida ao patrão pelas estradas já
abertas, não poderá ser maior de 10% sobre o produto do leite colhido em cada uma e, a título de
compensação, não será cobrada percentagem alguma no primeiro ano da abertura das mesmas em
terras de propriedade do patrão; os patrões são obrigados, no fim de cada ano, a entregar em
dinheiro ou em mercadorias o saldo dos seus aviados e, caso não o façam, a pagar-lhes um juro
igual à renda das estradas; durante o tempo em que os aviados ou fregueses estiverem no
desembolso de seu saldo não pagarão as rendas das estradas equivalente ao referido saldo; o
sernambi é propriedade do freguês, que o venderá ao aviado ou ao patrão em igualdade de condições
e de preço, a dinheiro à vista; os aviados que por sua vez fornecerem os seus fregueses não deverão
cobrar percentagens sobre o preço das mercadorias recebidas dos patrões, visto ser já descontada
nos fornecimentos feitos àqueles uma cota em favor deles.
As regras já vigentes de proteção às seringueiras foram estendidas ao caucho e a diferentes
palmeiras e multas foram estipuladas para o caso de o seringueiro danificar a árvore com a
penetração da machadinha além da entrecasca. Por último obrigava cada seringueiro, sob pena de
multa, a plantar, anualmente, nos arredores da sua barraca ou colocação, pelo menos 1.000 covas de
mandioca e o feijão e milho que o terreno comportar.
O Decreto 16, de 24 de dezembro de 1904, regulava o livre trânsito e o direito da pesca e
da caça nas águas e terras de domínio público. Estabelecia que ninguém poderia impedir, nas
águas de domínio público, o livre trânsito dos comerciantes ambulantes, os regatões.
173
Outra observação interessante do relatório refere-se à necessidade de o governo assumir o
serviço de imigração impedindo a formação das dívidas iniciais geradas pelos custos de
transportes, que faziam com que os seringueiros dependessem dos patrões durante anos.
Se todas estas regras tivessem sido implementadas a partir do momento em que foram
promulgadas, a história das relações sociais nos seringais do Acre poderia ter sido diferente.
3.3.2
A Relação Patrão - Freguês
A pesquisa realizada em 1978 no Seringal Alagoas, no rio Tarauacá, Estado do Acre,
mostrou uma empresa seringalista estruturada e as relações sociais consolidadas em torno de um
sistema de produção e comercialização baseado nas regras descritas até aqui, nas quais as relações
entre patrões e fregueses constituem o núcleo em torno do qual todo o seringal se estrutura. É com
base nessa compreensão da realidade dos seringais, vividas pelos seringueiros que ali nasceram e
se criaram, que vão ser organizadas as primeiras reações, em 1967, e aquelas lideradas por Chico
Mendes, na década de 1970, como veremos no próximo capítulo.
As relações sociais nos seringais foram se consolidando ao longo das décadas,
estabilizando um padrão de relacionamento entre patrões e fregueses. O termo patrão era aplicado
tanto ao proprietário, quanto ao arrendatário ou gerente de um seringal. Seu significado estava
referido ao exercício do poder e da autoridade. Patrão era aquele que estabelecia as leis, fazia com
que fossem cumpridas e tinha poder sobre a vida de seus fregueses. Freguês, por outro lado, indicava
uma posição social específica, a do trabalhador que vendia um produto, não sua força de
trabalho, como o assalariado, não estando, portanto, sujeito ao controle direto sobre sua
atividade.
Patrão era, também, um conceito revestido de ideologia. Assim, o patrão representava a si
mesmo como aquele que abastecia o seringal com mercadorias, socorria o seringueiro em casos
de doença, cuidava para que não faltasse nada e ele se dedicasse exclusivamente à produção,
vendia a borracha que os seringueiros produziam, mantinha um comboio para transporte de
mercadorias facilitando a vida do seringueiro. A mesma ideologia se aplica ao freguês que
representava a si mesmo como o produtor humilde, submisso, que reconhecia o esforço e o valor
do patrão, não desviava a produção e, como reconhecimento de sua autoridade, o convidava para
ser o padrinho dos seus filhos.
A relação do patrão com seus fregueses, no entanto, não era somente baseada em hierarquia
e autoridade, mas muitas vezes, em lealdades pessoais: quando ele convidava um seringueiro para
trabalhar em seu seringal e pagava a dívida ao outro patrão, obtinha o reconhecimento dele para
174
sempre.122 Era, também, uma relação personalizada, na medida em que as relações de produção
eram feitas por caminhos unívocos: de cada colocação com o barracão, ou seja, de cada freguês com o
seu patrão, resultado direto da ausência de divisão de trabalho na produção.
Essas relações personalizadas eram reproduzidas através da distribuição aleatória,
"segundo a conveniência", de favores. E isso criava, entre os fregueses, a necessidade de ser um dos
protegidos do patrão. Estava dentro dessa lógica estimular conflitos e desigualdades entre os
fregueses para depois conquistar a lealdade fazendo exceções. Assim, uma classificação
fundamental dentro do seringal era estabelecida entre os que deviam e os que não deviam. Para os
primeiros, eram estabelecidas várias punições dando a entender que estavam deixando de cumprir
um dever, o de pagar suas contas. Uma das punições, por exemplo, era a nota cortada: O
seringueiro pedia mercadorias além do valor de sua produção e recebia sua conta reduzida ao
valor estipulado pelo patrão, sendo motivo de grande humilhação. E para aqueles considerados
bons seringueiros, ele fazia descontos anuais nas compras no barracão.
Para quem nasceu e se criou dentro de um seringal, os termos disponíveis de comparação
eram muito restritos. Em função disso, todo seringueiro estava sempre em busca de um bom
patrão e suas aspirações se realizavam quando considerava que o havia encontrado. Mudava
muitas vezes de seringal visando atingir esse objetivo, até que se acomodava e desistia, ao
perceber que as diferenças entre eles não compensava tanto esforço. O bom patrão era aquele que
não deixava faltar mercadoria no barracão, transportava a borracha até a margem e as mercadorias
até a colocação, entregava a conta-corrente no final do fábrico, atendia em caso de doença e não
roubava o saldo do freguês.
Um exemplo claro dessa maneira de ver o mundo está na entrevista que realizei em 1978
com a mulher de um seringueiro no rio Tarauacá, Maria Ferreira. Ela nasceu, se criou e sempre
viveu nas "cabeceiras do rio". Sua família estava endividada em um seringal no rio Jordão,
localizado àcima do Alagoas, conseguiu que o patrão do Alagoas pagasse a dívida e foram para lá.
Dois anos depois de chegarem, em 1978, continuavam devendo, a produção que fizeram havia
sido registrada errada, o marido havia sido mordido de cobra e ficado nove dias sem assistência
no barracão, e mesmo assim ela avaliava positivamente o novo seringal e achava que as condições
de vida deles haviam melhorado:
Aqui é melhor do que lá no Jordão, dez mil vezes. Tudo lá é mais caro do que aqui. Não
tem nem comparação. E aqui os fregueses podem beber um café, comer com óleo... E lá
122 Conforme vimos na citação utilizada na abertura deste capítulo, quando Chico Mendes relata o caso de um patrão
que saía em socorro dos seringueiros, quando ouvia falar que estavam no tronco ou ameaçados de morte. Ia lá,
pagava a dívida e levava o seringueiro com ele. Estes seringueiros, libertados, trabalhavam o resto da vida de graça
para aquele patrão, em troca do reconhecimento por ter-lhes poupado a vida.
175
quem que vê um freguês comer... Só mesmo o patrão. A gente passa de mês lavando
roupa com casca de pau, com limão. Eu que sei contar. Os fregueses lá não têm punição,
não. Punição é... o que tem é eles mesmos. Se o freguês disser ao menos assim: 'Você tá
roubando o peso da minha borracha', ele bota prá pau; ele não é besta prá falar, que faz é
apanhar ... Agora vem um e diz: 'Ah, esse povo vive bem...' Vive não. O povo daqui
mesmo, aqui mesmo das Alagoas vive. Mas lá prá cima, vão ver a situação prá você ver
como é lá prá cima. Eu digo porque nasci e me criei nas cabeceiras do rio. Sei de todas as
situações de lá. Agora prá cá, aqui não. Aqui, há mais tempo que nós tivesse vindo prá cá!
Se nós tivesse vindo há mais tempo, eles não estavam nessa conta monstro, de jeito
nenhum. Tenho certeza que eles não estavam. Se fosse lá em cima, ele ainda tava no
centro, com a perna desse jeito. Ia apodrecer a perna... Acho melhor do que lá, dez mil
vezes. Não tem nem comparação. Aqui, quando a gente manda buscar mercadoria na casa
do patrão, vem. Lá não era assim não.
Relações que são, em essência, conflitivas revestiam-se de ambigüidade, e mudavam
inteiramente conforme o contexto. Quando os seringueiros estavam no barracão, mal abriam a
boca para falar, adotavam uma postura submissa e humilde. Quando estavam em suas colocações, o
tema preferido era o que denominam a ruindade dos patrões. O discurso sobre o patrão era incisivo,
feito em altos brados, inclusive adotando uma postura discursiva:
Eles usurpam nosso suor - nós vive como escravo - ninguém pune (faz justiça) pelo
seringueiro - eles roubam e nós somos inocentes, cegos, que não vê - seringueiro vive
amedrontado pelo patrão como se fosse no cativeiro - isso aqui é o carrancismo - nós
vive coagido - nós somos desvalorizados - ele bota nós no arrocho - o cara vive coagido
demais - a lei quem faz é eles - o povo aqui vive sujeito - essa é a vida do triste, selvagem
seringueiro (Zanoni 1979).
Os regulamentos dos seringais tinha a função principal de tentar harmonizar relações de
conflito, estabelecendo as obrigações entre as partes. Eram especialmente importantes porque
procuravam disciplinar, indiretamente, o comportamento do seringueiro, apelando para um
código de ética a respeito de oposições que eram, muitas vezes, inconciliáveis. Discussões sobre o
que era justo e injusto, segundo as diferentes circunstâncias, eram as que mais mobilizam os
seringueiros. Os regulamentos se legitimavam dessa forma, através do significado, por eles
interiorizado, de que dependiam de um patrão para existir e de que suas leis eram justas.
A regra que proibia a venda de borracha para outro patrão, é um exemplo. Em princípio,
os seringueiros concordavam com ela e utilizavam, para isso, os mesmos argumentos
apresentados pelo patrão, como se depreende da entrevista realizada no Seringal Alagoas:
176
P – O seringueiro pode vender a borracha para outro patrão?
R – Sendo o seu Ribamar sendo o patrão dele, e ele produz a borracha aqui dentro do
seringal do seu Ribamar e vai vender fora, né? Não. Isso aí eu já vou dar uma tacada por
nós. Isso é fora de lei. Nós fazer isso. Nós trabalhamos no seringal de qualquer um
patrão, o nosso dever é nós entregar a ele. Agora então, se nós tirar o saldo com ele e ele
não pagar, nós tem direito de pagar nossa borracha e vende onde quiser. Que ele não
pagou o nosso saldo e a produção foi nós que fizemos né. Mas o cara compra, o patrão, e
se achar endividado e produzir nas estradas alheia pra ir vender fora, isso aí é fora de lei.
Isso aí é fora da lei. O cara comprar fiado, às vezes ficar endividado e vai fazer aquele
bolão de borracha, com a mercadoria pouca do patrão, e ainda vai vender fora, lá pro
outro! Isto aí é fora de lei. Só se for saldo. Sendo saldo do freguês ele pode passar com a
borracha debaixo de casa, passar de 2,3 verão, dum verão pro outro, pode passar debaixo
de casa... Mas sendo, ele comprando, tando comprando, é entregar todo tempo pro
patrão, pra viver em dia, não viver com a conduta suja, com o patrão. Não viver fazendo
papel feio, né? Devendo o patrão, e produzindo a borracha nas estradas do patrão, que é
o chefe, e vendendo fora, e devendo a conta ao patrão. Aí é que ele tá fazendo papel de
cabra muleque. Mas tem poucos, que faiz assim, poucos que faiz assim. Tem um bocado
deles, mas não é todos, tem deles que são honestos, até demais (Zanoni 1979).
A maior parte dos seringueiros que vive hoje nos seringais do Acre, nasceu ali e nunca
saiu da mata, mesmo depois de adultos. Embora questionassem os regulamentos dos seringais,
como veremos, raramente colocavam em dúvida a existência do patrão enquanto tal. Ter um
patrão não era um fato ocasional, mas natural, fazia parte da ordem do mundo, sempre havia sido
assim e sempre seria. É nesse sentido que o aviamento, mais que uma forma de organização das
relações sociais no seringal era, também, uma maneira de pensar, de ver e de interpretar o
mundo.
Por outro lado, se os seringueiros temiam os patrões, o inverso também era verdadeiro. Os
seringueiros andavam sempre armados e tinha um código de honra que, se desrespeitado, podia
levar ao confronto. São muitos os casos de seringalistas assassinados por seringueiros em função
de disputas por saldos não pagos ou expulsão do seringal que seja considerada injusta, como
veremos.
Assim, a contestação ao aviamento e à dominação, existia. Conforme afirmou Clodovis
Boff "...os seringueiros nunca aceitaram pacificamente a exploração. Sempre reagiram contra ela.
E desenvolveram toda espécie de táticas para fazer frente à dominação do sistema que os
escravizava: é a borracha que não é vendida ao barracão, mas a outros; é a fuga do seringal
deixando para trás uma grande dívida; é o ataque, na tocaia, para liquidar o gerente ou o patrão..."
177
(Varadouro 1979: 8). Mas, como veremos, durante muito tempo, a contestação foi caracterizada
com os mesmos significados que organizavam a submissão, como se os sinais fossem trocados.
3.3.3
Questão com Patrão
Uma da formas que assumiu o conflito entre patrões e fregueses nos seringais ocorria quando
um seringueiro desrespeitava um regulamento e considerava legítima a infração que havia
cometido. Era quando se estabelecia uma questão com patrão. O patrão ameaçava expulsá-lo ou
chamar a polícia, mas ele não recuava. Nem todos os seringueiros sentiam-se à vontade relatando
suas questões com os patrões. Isso porque ficavam ambíguos na avaliação que dela era feita. De um
lado, consideravam-se desprovidos do direito de reivindicar porque estavam endividados. De
outro, sentiam-se injustiçados.
Uma situação típica era a venda de borracha ao regatão, estando endividado mas tendo
alguém doente na família. Ele combinava com antecipação um local mais afastado da beira do rio
para encontrar o regatão e saía de noite, escondido, com uma péla pequena nas costas.123
Normalmente, no entanto, o seringueiro fazia, antes do confronto, várias tentativas de
comprar no barracão do patrão. Ou não tinha remédio e o patrão negava uma ordem para comprar
em outro barracão, ou o fato de estar endividado não o autorizava a um consumo além de certo
limite estipulado pelo guarda-livros. Assim, a única alternativa que restava era vender escondido.
E a questão significava exatamente isso: contrapor-se a uma arbitrariedade e resolver enfrentar o
patrão.
O caso de Rubem Rebouças de Oliveira é exemplar.124 Quando foi entrevistado, em 1978,
tinha 54 anos e morava no Seringal Alagoas. Era famoso por suas questões com os patrões. Fez
denúncias ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Tarauacá, ao Promotor de Justiça, contestou
o patrão publicamente, vendeu borracha para o regatão e foi expulso do seringal. No entanto,
recusou-se a sair e exigiu do seringalista que assinasse sua carteira de trabalho, que havia tirado
quando foi a Tarauacá pedir assistência ao Sindicato.
Essa talvez era a forma mais incisiva de contestar um patrão individualmente. Depois de
um certo ponto o conflito se transformava em uma questão de honra e era resolvido
drasticamente: ou o seringueiro era obrigado a se retirar do seringal, ou fugia para outro rio, bem
distante dali.
Chico Mendes começou a organizar os seringueiros em Xapuri adotando exatamente esta tática de confronto.
A história de Rubem Rebouças de Oliveira está descrita em Zanoni (1979) Em 1978, quando fiz pesquisas nesse
seringal, ele solicitou que fosse feita uma gravação para ser encaminhada ao Presidente da República na qual relata
sua questão, faz um análise da vida nos seringais do Acre e pede providências. A carta foi entregue à Casa Civil e um
resumo desse documento foi publicado no Jornal Varadouro, de Rio Branco, em março de 1979.
123
124
178
Outra forma de se contrapor aos regulamentos, mais rotineira e pouco eficiente, era a
contestação da dívida ou dos registros feitos na conta-corrente, junto ao guarda-livros ou ao
gerente. Essa situação ocorria quando, depois de trabalhar muitos anos na mesma colocação,
produzindo bastante borracha e consumindo pouco, o seringueiro percebia que sua conta não
diminuía. Aí procurava meios para demonstrar que estava havendo roubo e que sabia que ele
existia: pedia o testemunho de outros seringueiros, pedia a alguém que sabia ler para conferir as
suas contas e se recusava a vender a borracha enquanto não chegasse a uma solução favorável.
Em outros casos, o patrão estipulava logo uma nova regra para evitar o conflito. Foi assim
com o seringueiro Francisco Pereira, do Seringal Alagoas, no relato feito por sua mulher:
Eles não contaram certo mesmo a borracha, não. O menino ferrou (colocou a marca do
seringueiro) dez pélas e saiu na conta só nove... Mas a culpa é do gerente. Esse gerente
que fez isso, ele já foi embora prá Rio Branco... Aqui o Chico não falou nada, não, que
eles disseram que nem falasse com Ribamar (o patrão) que não era atendido, que só era
atendida a reclamação enquanto o gerente tava aí. Disseram que a reclamação tem
atendimento no depósito (local onde moram).
Alterar a qualidade da borracha era uma forma consciente de se contrapor às regras do
barracão. Afirmavam que sabiam que um bom seringueiro não fazia isso, mas justificavam o ato
em função da ruindade dos patrões. Colocavam objetos para alterar o peso ou usavam borracha
coagulada, de qualidade inferior, quando estavam começando a fazer a péla.
Em alguns seringais, especialmente naqueles onde não existia fiscalização por parte do
barracão, o seringueiro costumava colocar bateria nas madeiras, para retirar mais rapidamente uma
quantidade maior de látex. Dependendo da largura do tronco da seringueira, só era possível
colocar um tijelinha, ou seja, fazer só uma incisão por árvore. Colocar bateria significava encher a
árvore de tijelas, independentemente da capacidade de produção da seringueira. Essa prática
permitia uma quantidade maior de látex mas com a continuidade podia matar a árvore.
A fuga do seringal sem pagar a conta era, sem dúvida, a principal estratégia de defesa do
seringueiro e sempre foi motivo para os conflitos mais violentos desde o final do século até
recentemente. São muitos os relatos apresentados na literatura sobre tentativas de fuga de
seringueiros e sobre os castigos a que eram submetidos quando, depois de intensas buscas feitas
pelo seringalista, o fugitivo era encontrado. A maior parte das descrições procura caracterizar, de
um lado, a ausência de leis que regulassem as relações entre patrões e fregueses, levando o
seringalista a assumir atitudes arbitrárias; e, de outro, acusando o seringueiro de não respeitar as
179
dificuldades que se impunham aos seringalistas para conseguir implantar uma empresa do tipo do
seringal.125
Em junho de 1978 entrevistei um seringueiro, Carlos Cabral, com 82 anos, morador do
rio Gregório, afluente do Tarauacá, no Acre, desde sua vinda do Ceará, em 1915. Relatou a vida
dos seringueiros que vieram como brabos - aqueles que não conheciam o trabalho na seringa.
Perguntei a ele se os seringueiros costumavam fugir quando estavam devendo e ele respondeu:
Fugir? Ah... se fugisse ele pedia a Deus prá nunca mais ser pego, porque se o dia que ele
voltasse, o causo ia correr perigo! Agora, metia-se na peia, faziam um pranchão como
daqui acolá, tinha uns buraco naquele pranchão, prá cinco pessoas. Aí ele ia prá ali, tirava
a camisa, pegava uma surra boa, pium chega esfumaçava, botava os pés no pranchão e
passava o cadeado aí, passava o dia todinho amarrado no meio do sol. Eles faziam era
assim.
Mas tinha uns que merecia. O Passarinho, era um seringueiro, tava amarrado lá, um dia,
perto de uma mangueira. Aí teve uma festa, seringueiro tava tudo radiando, brincando, e
ele amarrado lá. Amarrado gritando. Aí um falou: 'Vai soltar aquele pobre, tá gritando, se
ralando'. O empregado falou: 'Eu não vou soltar aquela desgraça'. Aí ele disse: 'Pois eu
vou'. Foi até lá e soltou. Ele saiu, todo enlameado, foi tomar banho e caiu na festa.
Primeiro viva que ele deu, quando saiu de lá de onde tava todo amarrado, foi dar viva ao
patrão que tinha amarrado ele. 'Viva os Carioca! Viva os Carioca!' Se fosse eu, tinha
amarrado ele de novo prá não ser safado.
Essas formas de contestação eram individualizadas e respondiam a uma lógica muito
semelhante à da submissão. O mesmo patrão era visto, em um momento, como protetor e, em
outro, como injusto. As leis que eram respeitadas em um momento, deixavam de sê-lo no
seguinte. O que explica essa transformação? Subordinação e contestação estão sempre presentes,
simultaneamente, na prática das relações entre seringueiros e seringalistas. O comportamento
submisso é potencialmente contestador. O regulamento que é considerado legítimo, pode deixar
de sê-lo. O que diferencia uma situação da outra é o contexto onde o comportamento é
explicitado. Diante do patrão, não há como não ser submisso. Nas colocações, não há nada que
impeça a manifestação do ódio e da revolta.
125 Nas pesquisas que realizei, em 1978, no rio Tarauacá, um fato estava sendo muito comentado pelos seringueiros:
um patrão recusara-se a pagar o saldo de um seringueiro e este fora ao Sindicado denunciá-lo. Com a defesa de um
advogado o seringueiro ganhou a causa e o patrão foi obrigado a pagar tudo, inclusive com correção monetária. Essa
alternativa ainda não estava sendo muito bem compreendida porque, pela primeira vez, ouviam falar da existência
dos direitos e ainda duvidavam de que fosse verdade.
180
As relações entre seringueiros e seringalistas são ambíguas: parte submissão, parte revolta.
Em circunstâncias diferentes, uma atitude ou outra é legitimada. E essa tensão entre submissão e
revolta é permanente, parte integrante da vida no seringal. Em algumas situações específicas essas
posições são radicalizadas, realizando-se então toda a potencialidade de violência contida nos
momentos anteriores. Foi assim na Revolta do Alagoas, analisada a seguir.
3.3.4
A Revolta do Alagoas
Um dos fatores que distingue o Alagoas de outros seringais do Acre é a união entre os
seringueiros e a violência nas relações entre eles e os seringalistas. Fala-se que muitos patrões já
foram assassinados ali em tempos passados. Há um local denominado Praia da Miséria, na beira
do igarapé São Salvador, divisa norte do seringal, pelo qual as pessoas não gostam de passar.
Contam que lá ocorreram muitos assassinatos e fazem referência a um deles:
O patrão colocou um freguês prá fora e foi até a sua colocação para expulsá-lo. O
seringueiro recebeu apoio de outro freguês e estavam os dois na colocação quando o
patrão chegou. Atiraram uns nos outros mas não morreram. Mataram-se com punhal.
Nunca mais ninguém foi morar naquela colocação, o mato cresceu e destruiu a casa.
No Alagoas os seringueiros desenvolveram uma prática de contestação coletiva - a greve.126
Fazer greve num seringal significa não entregar a borracha ao patrão na época de liquidar as
contas, no final do fábrico. Seguram a borracha na colocação. A razão para essa atitude foi o preço
proposto pelo seringalista para a comercialização da borracha.
Embora os preços fossem controlados pelo Governo, os seringalistas sempre pagaram
àbaixo do valor oficial e costumavam combinar entre si o valor que iam pagar. Por outro lado, os
seringueiros sempre acompanharam pelo rádio as notícias relativas aos aumentos do preço da
borracha e costumavam comparar com aquele que o patrão pretendia pagar. Se não
concordassem, seguravam a borracha como forma de pressionar o seringalista. Isso ocorreu em
1964, 1966, 1974 e 1976, conforme o relato dos seringueiros.
A ação era desencadeada no centro127 a partir de uma convocação dos seringueiros para se
reunirem numa colocação. Ali definiam os termos da negociação com o patrão para depois
dirigirem-se ao barracão. Normalmente quem vencia essa disputa era o seringalista através de
algumas artimanhas simples: oferecia dinheiro ou um objeto de valor para os líderes e eles
desistiam da greve; ou passava a administração de algum seringal pequeno para o principal grevista
O relato aqui apresentado foi registrado em 1978 e uma versão ampliada está em Zanoni (1979).
Denomina-se centro o espaço conjunto das colocações dos seringueiros em oposição à margem, o local do barracão e
do patrão.
126
127
181
e ele ia embora do seringal; ou então, concedia o aumento solicitado e, em seguida, subia os
preços das mercadorias que vendia no barracão compensando dessa forma as perdas.
No entanto, em 1966, a greve assumiu um caráter mais complexo e passou a ser lembrada
como a Revolta de Alagoas. Os fatos tiveram a seguinte seqüência: em 1964 a borracha foi
liquidada a 1000 cruzeiros o quilo; em 1965 um novo seringalista assumiu o barracão e quis
comercializar a borracha a um preço inferior, 850 cruzeiros; na metade de 1966 os seringueiros
estavam com dívidas muito altas em função da elevação constante dos preços das mercadorias;
além disso, não tinha sido feito o balanço final do fábrico, uma vez que os seringueiros não
concordavam com a diminuição do preço.
A greve foi a alternativa encontrada pelos seringueiros diante da recusa por parte do
seringalista em chegar a um acordo. A proposta que apresentaram tinha duas alternativas: ou a
borracha seria comercializada a 1000 cruzeiros o quilo ou deveria ser dado um desconto de 20%
sobre os preços do barracão, conforme relato de Nonato Sotério, seringueiro que participou da
revolta de 1966 e continuou morando no seringal:
A borracha nunca teve baixa; ela pode que todos os anos aumenta pouco, mas baixar
nunca baixou o preço, e ele foi e abaixou o preço da borracha. Foi por isso a greve... Aí a
gente vencemos um fábrico e já tava na metade do outro fábrico, em setembro, e
ninguém tinha conta em nenhum lado. Entonce o pessoal acharam que não tava certo
porque já tinham liquidado no outro fábrico atrasado com o outro patrão em mil
cruzeiros, né. E ele tinha aumentado o preço de muita mercadoria e diminuido o preço da
borracha e o pessoal se revoltaram... Aí então se reuniu todo o seringueiro e viemos falar
prá ele que ele ou aumentava o preço da borracha ou então dava abate de 20% nas contas
e se ele não aceitasse nada disso, arrumava todo mundo e ia s'imbora. Foi assim...
Reuniram-se e foram negociar com o patrão, Ribamar Moura, que concordou em
aumentar o preço a ser pago à borracha. Satisfeitos, os seringueiros voltaram ao trabalho em suas
colocações:
Aí o pessoal chegaram e ele também chegou no meio do pessoal e foi e perguntou o que
queriam com ele. Aí todo seringueiro foi falando, de um por um, era isso. Quando é que
ele terminava, outro contava o mesmo caso, que ele ia pagar a borracha de mil cruzeiros o
quilo. Aí ele por ali ainda querendo amarrar prá não pagar, aí foi e tratou com seringueiro
prá pagar. Se não o pessoal ia s'imbora e ele também perdia as contas, porque todo
pessoal devendo... Aí no outro dia bem cedo, todo mundo foi s'imbora, todo mundo
animado, todo mundo foi trabalhar...
182
Alguns dias depois chegou no seringal um contingente da Polícia Militar de Rio Branco,
intimou os seringueiros que participaram da greve a depor, ocasião em que vários deles,
especialmente os que haviam liderado o movimento, foram presos, torturados e expulsos do
seringal:
Aí nesse meio de vir pessoal de lá prá cá que ele soube que vinha saindo esses 60 homens
prá fazer essa greve... com prazo de umas duas semanas, aí chega a polícia. Que antes do
pessoal chegar, quando ele soube que tava embalado esse pessoal prá ir falar com ele,
passa um batelão, ele manda uma carta pro seu Altevir Leal (proprietário do seringal)
pedindo força que ele achava que ia ser agredido pelo pessoal. Aí a polícia vem e mandou
intimar todo mundo.
Os empregados daqui da firma, empregado do seu Ribamar, iam com ofício chamar os
seringueiros lá no centro. Todo seringueiro que tinha se achado na greve foi intimado, né.
Agora, o que acontecia é que muitos com medo da polícia aí, castigava os outros, né,
querendo dizer que seu fulano é que tinha sido culpado prá se defender com medo da
polícia, né... Aí naquilo, os patrão com raiva daqueles que tinham sido os mais
interessados, a polícia comendo às custas do patrão, e tratava de judiar com aqueles que
tinha sido mais culpados, e prender. Quando nóis chegamos eles foram prendendo ali
logo na hora, pegavam nossa carga, derramavam no meio do campo o que nós tinha,
derramava tudo no meio do campo. Não sei se a senhora sabe, todo seringueiro anda
com sua faca que ninguém vai andar sem uma faca numas matas dessas, né. Olha que nós
trazia as facas mas dentro da carga, né. Só de calção mesmo, camisa e a faca dentro da
carga. Eles pegaram e derramaram tudo, ficaram com as armas e nós ficamos sem nada.
Mas nem arma de fogo, ninguém chegou aqui com nada disso prá matar ele, não. A
polícia foi e levou os seringueiros presos prá Tarauacá prá de lá seguir prá outro seringal e
não voltar mais prá cá. Aqui desses que foi preso só tem eu mesmo.
Embora a narrativa do seringueiro não entre em detalhes a respeito das torturas, das
surras e da violência da polícia, uma vez que apanhar, ser preso, tem uma conotação pejorativa,
ligada à covardia, ao medo, à submissão forçada, ao crime, outros seringueiros, que não estiveram
diretamente ligados ao movimento, contam detalhes da violência. Os líderes do movimento
foram amarrados ao tronco de uma mangueira imensa que ainda existe no seringal e foram
açoitados. Outros foram jogados no rio depois de terem apanhado e quase se afogaram. Da
mesma forma, os seringueiros estavam dispostos a matar o patrão se não fossem atendidos em sua
reivindicação. E o seringalista tinha tanta certeza disso que percebeu a necessidade de uma
proteção policial.
183
A revolta dos seringueiros do Alagoas teve profundas consequências no decorrer dos
anos. Durante muito tempo os seringalistas controlaram qualquer tentativa de rebelião apenas
sugerindo chamar a polícia. Todos sentiam-se coagidos mas reprimiam sua revolta, como afirmou
um seringueiro entrevistado em outro seringal do rio Tarauacá:
Um seringal de povo unido, dentro do rio Tarauacá, não tem outro que nem o Alagoas,
dos seringueiros, né. Eles têm confusão, assim bebida e tal, né, que é de bebida mesmo.
Mas aqueles quando ficam bom do porre são amigos e pronto. E são unidos. Agora, que
nós não tem força, né. Porque nome de PM aqui prá nós, já é uma coisa que faz muita
raiva também pro seringueiro. Porque qualquer coisinha o patrão chega e diz que traz a
PM aqui...
Mas essa greve tem um outro significado quando relacionada com fatos ocorridos fora do
seringal, naquele mesmo momento, relativos às alterações que estavam sendo propostas para o
desenvolvimento da região amazônica. Conforme já foi apontado no Capítulo Dois, após 1964 o
governo militar estabeleceu mudanças na política para a borracha, desincentivando-a por alguns
anos e congelando os preços do produto.
A reclamação feita pelos seringueiros do Alagoas tinha razão de ser, uma vez que desde o
final da Segunda Guerra, quando o Brasil instituiu a política do Monopólio da Borracha, os
preços mantiveram-se constantemente em ascensão. Esse processo não era do conhecimento dos
seringueiros e, talvez, nem dos seringalistas locais. No entanto, o resultado - o congelamento dos
preços - teve repercussão muito forte no seringal, uma vez que esse era o fator mais perceptível,
para os seringueiros, das mudanças em curso.
Vários aspectos podem ser salientados em torno da revolta do Alagoas. Interessante
observar como o isolamento em que vivem os seringueiros não é um fato limitativo para o
estabelecimento de relações sociais próximas. O centro é um espaço de livre circulação e a noção
de distância tem outros critérios. Para quem vive na floresta onde a dispersão da ocupação é um
dado constitutivo à forma de produção, encontram-se modalidades próprias de agrupamento. É a
identidade de interesses, a percepção de um nós em oposição aos outros que estrutura as relações
sociais, mais do que a proximidade no trabalho ou no cotidiano.
Assim, a contestação individualizada, antes referida, tem seus limites quando o conflito é
vivenciado na mesma intensidade por todos e as alternativas pessoais não poderão surtir nenhum
efeito. No caso das questões com o patrão, pode ou não haver solidariedade entre os seringueiros,
uma vez que elas não são vistas como um problema comum a todos, embora possam se repetir,
isoladamente, com cada um. No caso da comercialização da borracha, o limite da ação individual
é claro: todos têm algo comum a defender, em um mesmo momento.
184
Quando um seringueiro tem uma questão com um patrão, o que está em jogo,
prioritariamente, é a autoridade deste sobre o conjunto dos seringueiros, expressa no
cumprimento dos regulamentos estabelecidos no seringal. Expulsar o seringueiro, tomar-lhes as
estradas, fazê-lo pagar multa, impor-lhe castigo físico, são formas de reafirmação perante os outros
seringueiros do tipo de relação que deve predominar entre patrões e fregueses. É a relação de
autoridade e de poder entre o patrão e os outros fregueses que está em pauta no caso de uma questão.
Do resultado obtido dependerá o prestígio, a reafirmação da força ou a desmoralização do
seringalista. É por isso que uma questão, por menor que seja, precisa ser levada às últimas
consequências pelo seringalista.
Por outro lado, a atitude do seringueiro nesses casos é ambígua: reage a um ato que
considera injusto, mas pelo fato de estar deixando de cumprir um regulamento, pode não ter o
apoio e não ser legitimado pelos outros seringueiros. Ele mesmo duvida, num certo sentido, da
contestação que está fazendo a uma regra que aprendeu a respeitar desde que nasceu.
No caso da greve várias outras relações estão em jogo. A primeira delas, inclusive na ordem
em que ocorre, é a que confronta seringueiros com o patrão, em nível do seringal. É a relação
mais violenta uma vez que a própria reprodução do seringal está em jogo. O que assegura aos
seringueiros a legitimidade da revolta é o fato de deterem o controle sobre a borracha produzida.
A força deles está no produto sob seu controle. Por outro lado, o seringalista é o único que tem
acesso às informações, ao mercado, à venda da borracha, necessária à sobrevivência dos
seringueiros. Por essa razão o confronto é violento.
A violência das relações entre seringueiros e seringalistas, a revolta, é a contrapartida da
submissão. A relação entre eles tem esses dois componentes imbricados. Entende-se a
peculiaridade dessa relação quando percebe-se que a lógica do seringal, enquanto forma de
produção, está assentada, de um lado, no controle do mercado e dos bens de subsistência, por
parte do seringalista e, de outro, no controle da produção, pelo seringueiro.
A segunda relação, é a que ocorre entre o patrão-arrendatário e o proprietário do seringal.
Quando o conflito se esboça e a violência está iminente, o arrendatário sabe que pode contar
com o apoio integral do proprietário. E este usa seu prestígio para obter a proteção policial.
Resolvido o problema com a violência mais forte do dono do seringal, as relações precisam ser
reordenadas. Do ponto de vista do proprietário, mais que tudo interessa que seu seringal esteja
produzindo. E assim, num segundo momento, ele coloca-se contra o arrendatário, tira-o da
administração do seringal e restabelece a confiança dos seringueiros. Atende a um pedido que
estes lhe fazem. De vilão passa a herói e obtém a lealdade incontestável de seus fregueses,
conforme se depreende do relato de Sotério:
185
P: E os outros patrões apoiaram o Ribamar?
R: Eles achavam que conseguindo aqui no Alagoas ia ficar tudo baixado o preço da
borracha, né. Mas sobre a polícia, isso aí ele perdeu até o cartaz de arrumar seringueiro.
Ele não tinha condições de arrumar seringueiro, ficou com o seringal seco. Seu Altevir
Leal tirou ele da firma, depois disso todo mundo foi s'imbora, por isso que o pessoal
debandou. Ele ficou com esse seringal quase sem ninguém. Só ficou com aqueles que não
podiam sair. Aí, seu Altevir Leal vendo que o seringal ia ficar sem gente, tirou ele e
passou dois anos gerente aqui por conta do seu Altevir mesmo... Que ninguém agrediu
ele, né, e ele antes do pessoal chegar mandou essa carta pro seu Altevir.
Algum tempo depois do conflito, o arrendatário, Ribamar Moura, restabeleceu sua relação
com o proprietário, Altevir Leal, que lhe entregou novamente a administração do seringal. E o
mesmo ocorre entre o patrão e o seringueiro da greve. É como se tivesse dado a ele uma lição e
depois uma recompensa pelo arrependimento:
P: E o senhor ficou aqui?
R: Os outros, como não tinham nada, não tinham família, ficaram por lá mesmo. Agora
que eu fiquei com a minha família aqui, uma mulher com quatro filhos. E pegaram uma
parte do meu gado e botaram na conta prá cobrir a conta e o resto ficou e não
compraram e nem eu tinha prá quem vender. E eles não levavam minha mulher, ficou aí,
na casa do pai, o pai muito pobre. Aí eu achei que não tava certo, aí fui procurar direito
com o doutor juiz. Ele foi e disse que sendo assim eu tinha direito de voltar e receber o
que era meu que tinha botado na conta e aí eu ia trabalhar prá pagar a conta. Tava
expulso do seringal, preso e coagido e entonce ainda tinha direito de tomar o que é da
gente prá pagar a conta. Que o sujeito quando vai expulso do seringal, o patrão perdoa a
conta, ele não quer mais ele no seringal, não quer também receber a conta dele. Aí eu
voltei.
P: E quando o Ribamar assumiu de novo o seringal não prejudicou o senhor?
R: Não. Hoje é colega, vive comigo, acha que eu sou um seringueiro muito trabalhador e
gosta muito de mim. Tem uma consideração a mim, manda me chamar prá resolver caso
prá mim e tudo. Ele se arrependeu. Ele justamente achou-se sem o seringal, que o
seringal ficou no vazio. Chegou o seu Altevir, no porto, tinha uns trinta seringueiros tudo
fazendo queixa e tudo já embalado prá ir embora, uns já tinham saído com a bagagem,
outros inda iam só buscar a família prá ir embora. Aí seu Altevir foi, controlou os
seringueiros e disse que tirava ele do movimento... Isso foi da greve uns dois anos.
P: E depois de pagar a conta o senhor não quis ir embora?
186
R: Não senhora, que o meu lema de viver é esse mesmo - a seringa; eu não tenho outro
ofício prá viver, eu não sei nem trabalhar de carpina, não sei escrever, não sei ler, não sei
nada. O ofício que eu tenho prá criar minha família, só é a seringa, que é o que eu sei
fazer. Não sei fazer nem uma canoa, meu pai me criou muito pobre cortando seringa.
Entonce foi o que eu aprendi, entonce meu lema de vida é a seringa.
O seringal voltou a funcionar como sempre foi e ainda melhor, ou seja, não era mais
preciso usar a força, uma vez que a lembrança dela na memória dos seringueiros era suficiente
para interromper qualquer tentativa de rebelião.
Assim, a autonomia, a liberdade em que vive o seringueiro no centro precisa ser controlada
pelo aviamento, pelos regulamentos, porque não existe outra maneira através da qual o
seringalista possa definir o ritmo da produção dos seringueiros e assegurar que o produto será
entregue para ele. Por outro lado, o isolamento, as dificuldades de sobreviver na floresta, a
opressão que exercem sobre os seringueiros as peculiaridades da mata, significam também uma
proteção, um lugar cativo, apropriado para organizar uma rebelião, uma emboscada, alguma
forma de resistência.
Observações Finais
A floresta é parte essencial da vida cotidiana dos seringueiros; as estradas são caminhos de
árvores e são estes caminhos que eles percorrem todos os dias para trabalhar; é ali que caçam
para se alimentar, é por ela que andam distâncias enormes, a pé, para se reunir, é nela que passam
a maior parte de suas histórias. O patrão é, também, parte integrante da vida social. Seus avós e
seus pais trabalharam para patrões, uns bons, outros ruins, criticando os ruins e agradecendo aos
bons e foi assim que o mundo se organizou na Amazônia, em torno dos patrões. Também passou
a fazer parte da vida no seringal a falta de educação e de saúde, de alternativas e de melhorias na
renda e na alimentação.
A vida no seringal tem, assim, simultaneamente um sentido de submissão e de liberdade.
O seringueiro tem autonomia na produção, na sobrevivência da floresta. No entanto, vê-se
totalmente submetido a regras de comercialização unilateralmente definidas. Como o aviamento é
parte da história de vida dos seringueiros, não se trata de questioná-lo na sua essência. A
contestação feita, tanto através das questões quanto da greve, em nenhum momento coloca em
cheque a razão de ser do aviamento ou dos mecanismos que o reproduzem. Questiona-se o
exercício – considerado justo ou injusto – da dominação e não sua razão de ser.
Mas quando se pergunta a um seringueiro tradicional, aquele que ainda vive nos altos rios,
se a solução para os problemas que enfrenta, é sair do seringal, ele responde com clareza:
187
A solução não é sair do seringal. É viver no seringal, trabalhando no seringal, mas existir
lei prá nós ter valor, prá nós não ser desvalorizados. Porque nós somos desvalorizados,
nós não tem valor de nada, e no entanto, era de nós ter valor de tudo. Porque a borracha
é o leme do mundo. O brio do Brasil é a borracha. E somos nós que produzimos.
(Ulisses Marques, seringueiro, Seringal Alagoas, 1978).
É evidente que esse foi o significado atribuído à migração para a Amazônia durante a
Segunda Guerra: produzir borracha para o Brasil, para a guerra, para os aliados. Essas
representações permaneceram vivas nos seringais durante muitos anos. Eram, inclusive,
alimentadas por programas de rádio que pediam ao seringueiro que continuasse produzindo
porque o Brasil precisava de sua produção.
São essas representações que, no decorrer do tempo, foram dando sentido à vida nos
seringais e sendo transmitidas de geração em geração. A auto-imagem, a identidade dos
seringueiros foi formada na busca de uma explicação para essa contradição: a de ter participado
de eventos históricos relevantes, a de produzir um produto de interesse para o país, em
comparação com a precariedade de sua vida cotidiana.
Deriva daí uma identidade específica, a de "herói esquecido em busca de justiça". É muito
comum os seringueiros se referirem ao fato de que "só eles sabem como eles vivem; se contar
ninguém acredita, só indo lá prá ver, é preciso denunciar ao Presidente da República".
Participantes de uma cultura cuja principal característica é a oralidade, a verdade está naquilo que
se vê de perto, naquilo que se escuta as pessoas dizerem. Como são raros os desconhecidos que
circulam pelos seringais, acreditam que a justiça, a punição como falam, não é feita porque
ninguém sabe como se vive nos seringais.
São essas representações que permitem ao seringueiro a construção de uma explicação
lógica para a vida no seringal: são heróis mas estão esquecidos, e é preciso fazer justiça nos
seringais. E é com base nela que ele constrói o que poderia ser um modelo ideal de seringal: um
local onde o seringueiro tivesse seu trabalho reconhecido, ganhasse dinheiro e vivesse sob a
proteção de um patrão que fornece a ele o que ele necessita para bem cumprir com sua missão, a
de trabalhar para a Nação. É dessa forma que a dominação adquire sentido para os seringueiros
A dominação é contestada, como se viu. Mas os conflitos de certa forma reproduzem e
consolidam a coerção. E não havendo elementos que interfiram, externamente, nessa lógica, ela
tende a se reproduzir e os seringueiros a vivem como a única possível.
Mas existe um outro elemento importante, também constitutivo ao seringal e à identidade
do seringueiro e que está subjacente aos já apresentados: o fato da borracha não ter, para ele,
188
valor de uso, estabelece a necessidade de um vínculo com o mundo, que extrapola os limites dos
seringais. A borracha que eles produzem, pode não lhes dar nenhum benefício, mas em algum
lugar, para alguma entidade, aquele produto tem valor. Eles atribuem o nexo a esta categoria geral
que denominam de Nação. E será em torno destas idéias que vão construir novos caminhos, a
partir das décadas seguintes.
Quando a floresta ficar ameaçada em função dos desmatamentos, na década de 1970,
estes serão os argumentos que os líderes do movimento vão utilizar para mobilizar os
seringueiros em torno de sua defesa. E encontrarão os elos necessários para que uma outra
conexão de sentido com o mundo se estabeleça. E estes elos serão construídos a partir da
experiência vivida nos seringais. Para fazer frente às regras coercitivas dos seringais, organizarão
os sindicatos e as greves para melhorar o preço da borracha serão substituídas pelos empates aos
desmatamentos. Para regularizar as áreas onde moram criarão uma modalidade específica de
proteção aos seringais.
Esta proposta será bem sucedida, como veremos a seguir, porque combinou, de forma
singular, elementos do antigo seringal tradicional - especialmente a estrutura e a forma de uso do
espaço natural - com elementos novos de organização econômica e social - a ausência da relação
social de produção que subordina fregueses a patrões, o aviamento. O êxito da proposta dos
seringueiros, por outro lado, vai evidenciar que as condições necessárias às mudanças que se
realizaram na década de 1990, em relação a um novo modelo de gestão dos seringais, já estavam
presentes no modelo anterior. Mas não será possível entender a profunda transformação que irá
ocorrer a partir da década de 1970 sem entender a realidade de onde estavam partindo.
Mas para isso, terá sido necessário que, ao menos um deles, tenha tido a oportunidade de
viver uma trajetória diferente dos demais. Chico Mendes conseguiu aprender a ler e escrever,
conviveu com um exilado político que o ensinou a pensar sobre a realidade que vivia,
desenvolveu um agudo senso de busca por justiça e conseguiu projetar uma alternativa que
acabou se concretizando. E o que Chico Mendes propôs aos seringueiros foi algo que eles não
podiam imaginar que seria possível, mas que estava contido nas regras centenárias: um seringal
sem patrão, que foi denominado de Reserva Extrativista. 128
128
Foi preciso esperar mais de vinte anos para essa realidade aqui descrita, do Seringal Alagoas, ser transformada.
Em 2000, naquele seringal e em outros vizinhos, foi criada a Reserva Extrativista do Alto Juruá.
189
4.
CONFLITOS PELA TERRA E PELOS RECURSOS
O empate foi uma forma que os trabalhadores encontraram, que eles
decidiram, de impedir o avanço do latifúndio. Uma espécie de uma bandeira
que eles, entre si, pensaram que seria o último apelo, já que às vezes eles
recorriam à justiça e o processo era muito lento. Enquanto eles recorriam à
justiça, enquanto isso, a floresta ia sendo derrubada, de qualquer maneira.
Então, isso não levava vantagem nenhuma pro trabalhador, porque ele ia
perdendo terreno, diariamente. Então ele pensou uma outra forma. Não em
termos de querer ser um agitador, como ele é acusado, muitas vezes, de agitar,
e tal, de ter orientações, nunca. Mas seria a única saída para ele defender os
seus direitos, a sua própria sobrevivência. É incrível dizer, muita gente até não
acredita, que o trabalhador chegou a dizer que dessa forma ele estaria
cooperando para a segurança nacional: empatar o desmate, quer dizer,
defender a seringueira e a castanheira, que é a sobrevivência deles, da família
deles, isso desde o século passado, e que ele considera também como seja a
única fonte de riqueza do Estado, ainda é, prevalece, apesar de toda a
destruição, é a seringa e a castanha.
Entrevista de Chico Mendes
a Mary Allegretti
Rio Branco, Acre, 22 de Maio de 1981
Conflitos pela posse da terra estão na origem de inúmeras mudanças históricas e
econômicas relevantes no Brasil. Derivam, em essência, tanto da estrutura fundiária concentrada
e da ausência de reforma agrária, quanto da existência de uma fronteira aberta, ou seja, de
imensas áreas de terras públicas ou com domínio não definido, passíveis de ocupação, seja
através de migração espontânea, de grilagem ou de projetos oficiais de colonização.
Este capítulo tem como objetivo analisar a emergência, desenvolvimento e as
características dos conflitos ocorridos no Acre na década de 1970. Contra quem os seringueiros
se confrontavam? As características dos conflitos e as reações dos seringueiros foram
influenciadas por agentes externos como organizações religiosas, sindicais e políticas? Se conflitos
pela posse da terra se generalizaram na Amazônia na década de 1970, por que só os seringueiros
do Acre inventaram os empates às derrubadas? A análise vai se concentrar na primeira etapa da
190
luta dos seringueiros na qual se confrontaram com seringalistas pela busca de autonomia na
comercialização da borracha e as etapas seguintes, quando resistiram às expulsões provocadas
pelos fazendeiros, até se organizarem nos empates contra as derrubadas.
A política de incentivo à implantação de empresas agropecuárias, iniciada na década de
70, desencadeou conflitos entre fazendeiros e posseiros em toda a Amazônia, uma vez que, após
a desagregação da economia da borracha, grupos sociais permaneceram na região dedicando-se a
atividades agrícolas de subsistência.
A compreensão dos conflitos ocorridos no Acre, na década de 1970, requer a análise das
inter-relações entre quatro fatores: (i) a política instaurada pelo governo federal de suspensão dos
subsídios à produção de borracha e direcionamento de incentivos fiscais a atividades
agropecuárias; (ii) a política do governo estadual de atração de empresas do sul do país para
adquirirem terras e implantarem projetos agropecuários; (iii) a peculiar história fundiária daquela
região, resultado das diferentes dominialidades ali instaladas, desde a conquista; (iv) a
especificidade das relações sócio-econômicas instauradas no contexto de expansão, consolidação
e crise da economia da borracha.
A especificidade dos conflitos ocorridos no Acre deriva do fato da economia da borracha
não ter se desestruturado completamente quando as empresas agropecuárias começaram a se
implantar. Em conseqüência, dois modos de produzir foram colocados em confronto: um que
existia previamente e dependia da manutenção da base de recursos naturais para se reproduzir e
outro que, para se implantar, requerida a destruição desta mesma base de recursos.
Os processos sociais que emergiram durante este período estão relacionados,
simultaneamente, à resistência à destruição do modelo anterior, à contestação do novo, e à busca
de soluções que contemplassem as especificidades do modo de vida dos protagonistas principais,
os seringueiros. Para serem compreendidos, é necessário identificar as diferentes etapas do
processo e os desdobramentos que produziram e que influenciaram cada momento, em uma
seqüência lógica e temporal de fatos: inicialmente, a desagregação da empresa seringalista facilitou
o surgimento do seringueiro autônomo; em seguida, a venda dos seringais abandonados, levou à
expulsão dos seringueiros autônomos para a periferia das cidades e para os países vizinhos,
Bolívia e Peru; com a criação dos Sindicatos de trabalhadores rurais, os seringueiros foram
legalmente definidos como posseiros e passaram a ter direito a uma indenização monetária ou a
uma parcela de terra; a percepção de que estes benefícios não compensavam a perda da posição
de seringueiro autônomo, levou a um novo momento, de resistência à expulsão e de identificação
do fato gerador dos conflitos, os desmatamentos que, ao destruírem a floresta, levavam à
eliminação definitiva do meio de vida destes grupos sociais.
191
Os dois líderes sindicais que se destacaram na luta contra os fazendeiros, no Vale do
Acre, tiveram uma trajetória social semelhante e o mesmo destino: Wilson Pinheiro, seringueiro e
presidente do STR de Brasiléia, iniciou sua carreira como delegado sindical em 1975 e foi
assassinado em 1980; Chico Mendes, seringueiro, secretário do STR de Brasiléia e presidente do
STR de Xapuri, iniciou seu trabalho sindical no mesmo ano e foi assassinado em 1988.
O período de tempo coberto pela análise, neste capítulo, é de doze anos, de 1970,
momento em que teve início a venda dos seringais, a 1982, ano em que Chico Mendes encerrou
seu mandato de Vereador na Câmara Municipal de Xapuri e que marcou a transição para sua
eleição como Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, ocorrida no dia 1o de
maio de 1983. Foi nesse contexto que Chico Mendes surgiu e se consolidou como líder sindical e
político dos seringueiros e de outros trabalhadores rurais do Acre.
A história de vida de Chico Mendes, que será aqui apresentada, abrange um período de
tempo maior, resgatando elementos de sua infância e adolescência e evidenciando, a partir de
1955, as diferentes formas de inserção social que teve oportunidade de vivenciar: de seringueiro
cativo se transformou em liberto (1955-1970), foi líder das Comunidades Eclesiais de Base, as
CEBs, (1973-1975), Secretário Geral do STR de Brasiléia (1975-1976), fundador do STR de
Xapuri (1977), Vereador pelo MDB (1977-1980), Vereador pelo PT (1980-1982), tendo exercido
a Presidência da Câmara dos Vereadores de Xapuri em 1981.
A metodologia utilizada neste capítulo difere da que foi adotada anteriormente, pelo fato
da história de vida de Chico Mendes ser um elemento estruturador dos temas abordados em cada
tópico. A narrativa desta história, da forma como está relatada aqui, na primeira pessoa, não será
encontrada em nenhuma das entrevistas que deu. Foi um trabalho de edição, feito a partir de
vinte entrevistas diferentes, procurando-se manter a estrutura dos fatos e as peculiaridades da
oralidade, enriquecendo cada momento com detalhes retirados das diferentes falas gravadas.
O objetivo é, não somente apresentar o protagonista principal do movimento dos
seringueiros, como destacar sua identidade social, uma vez que sua história evidencia tanto
elementos que podem ser considerados comuns a todos os seringueiros, quanto os que são
peculiares à sua vida, e que permitem entender porque se distinguiu dos demais, transformou-se
em liderança e influenciou todo o processo. A vida de Chico Mendes sintetiza cem anos de
história dos seringueiros na Amazônia.
Em todas as entrevistas, a narrativa de sua história de vida se mescla com a dos fatos
sociais e políticos dos quais participou e segue a cronologia dos principais acontecimentos.
Apenas uma distinção pode ser feita: quando se refere à infância e à juventude, salienta sua
experiência pessoal, talvez pelo fato de ter sido original e ter marcado de forma determinante o
192
seu futuro. A história foi segmentada em partes e será apresentada conforme o tema principal de
cada item for sendo analisado. As entrevistas gravadas com Chico Mendes e que não se referem à
sua história de vida, são utilizadas como referência para a compreensão dos acontecimentos, da
mesma maneira como se faz com os demais autores citados.
Não existem documentos adequados que permitam reconstituir as primeiras atividades
públicas de Chico Mendes, exercidas no período de 1965 a 1975. Mas em várias entrevistas que
deu, especialmente entre 1987 e 1988, ele fez referências à sua atuação naquele momento. A
partir de 1977 e até seu assassinato, existem fontes importantes: as atas das sessões da Câmara
dos Vereadores, o arquivo do STR de Xapuri, longas entrevistas gravadas para diferentes
interlocutores e o arquivo do IEA129.
Um dos aspectos que merece ser salientado é o fato de que Chico Mendes tinha o hábito
de escrever, cotidianamente, sobre os fatos em relação aos quais tinha responsabilidade pública e
política. Ele enviava ofícios às autoridades com denúncias e reivindicações, agradecia aqueles que
o atendiam, fazia documentos de análise dos conflitos e das propostas que estavam sendo
discutidas pelo Sindicato, enviava cartas e respondia as que recebia, mandava cartões de Natal,
deixava bilhetes para as pessoas com as quais queria conversar, enviava cartas para a seção dos
leitores, escrevia artigos para os jornais, e registrava as denúncias que os seringueiros traziam
diariamente ao Sindicato.
Em maio de 1977, por exemplo, na posição de Vice-Líder da Bancada do MDB na
Câmara Municipal de Xapuri, Chico enviou uma carta parabenizando o lançamento do jornal O
Varadouro afirmando que gostara tanto que logo comprara vários números para enviar a amigos
do interior:
O motivo que me levou a admirar Varadouro não foi tanto por tomar conhecimento de
uma nova redação jornalística em nosso Estado, mas, sim, pelo simples fato de encontrar uma
série de coisas que me fez recordar a velha história, verídica, dos nossos antepassados. Acredito
que Varadouro tenha despertado em muitos corações amadurecidos, recordações de muitas coisas
esquecidas e, hoje, Varadouro volta a lembrar a grande e estranha diferença do acreano de ontem
e o acreano de hoje.
Em julho de 2001 copiei as atas das sessões da legislatura da qual Chico Mendes participou como vereador que
encontram-se no arquivo morto da Câmara dos Vereadores de Xapuri. Esse material é inédito. No mesmo período
também copiei o arquivo do STR de Xapuri o que me permitiu preencher lacunas de informações existentes no meu
arquivo. Parte do arquivo do Sindicato foi perdido por ter sido atacado por cupins alguns anos após o assassinato.
Outra fonte inédita são os relatórios que ele escreveu ao IEA, durante o ano de 1997, como produto de um contrato
de pesquisador de campo que ele tinha com o Instituto.
129
193
Nos números seguintes e por vários anos, Chico Mendes se transformou em
correspondente do jornal em Xapuri e seu permanente colaborador.
Chico Mendes também não se recusava a dar entrevistas e levar as pessoas para conhecer
a vida na floresta. Inúmeros artigos foram publicados e documentários filmados sobre sua
história e a do movimento dos seringueiros. Tive acesso às transcrições das entrevistas mais
importantes que, somadas às que eu realizei, totalizam cerca de 20 horas gravadas.130 Além das
entrevistas, muitas gravações de reuniões do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e do
Conselho Nacional dos Seringueiros foram transcritas, especialmente aquelas nas quais haviam
intervenções de Chico Mendes. Assim, existe um rico material sobre os acontecimentos de
Xapuri, do Acre e do movimento dos seringueiros, especialmente no período entre 1982 e
1988.131 Procurou-se, por isso, privilegiar, como fonte principal de informação, documentos
produzidos pelas instituições envolvidas com o processo político daquele momento: o STR de
Xapuri, a Câmara dos Vereadores, a Igreja Católica e as matérias publicadas pelo jornal
Varadouro.132
Ao privilegiar estas fontes e este método, pretende-se valorizar a dinâmica do processo
social, tal qual ele foi vivido, interpretado e construído, de forma original, pelos atores locais
envolvidos. É um esforço visando captar as diferentes etapas pelas quais um movimento social se
estrutura, os revezes que enfrenta, as alternativas que encontra para avançar, processo somente
perceptível quando se procura resgatar sua lógica interna, a repercussão de suas ações junto à
opinião pública e as mudanças de tática e de estratégia em função das reações que provoca nos
adversários.
O primeiro tópico deste capítulo, Seringueiros Autônomos, tem como referência a
história de Chico Mendes no período de sua infância e juventude, sua formação política e os
primeiros movimentos que organizou visando modificar as regras tradicionais de produção e
comercialização da borracha existentes nos seringais, que permitiram a emergência do seringueiro
autônomo. Cobre o período de 1965 a 1975 e mostra o contexto de desagregação da empresa
As entrevistas utilizadas estão identificadas a seguir: Março 1980 (Jornal Varadouro); Maio 1981 (Mary Helena
Allegretti 1); Março 1987 (Steve Schwartzman ); Julho 1987 (Randall Hyman ); Agosto 1987 (IEA); Outubro 1987
(Paulo Chiesa); Janeiro 1988 (Alfredo Sirkis); Janeiro 1988 (Lucy Paixão Linhares); Janeiro 1988 (Jornal Ventania);
Maio 1988 (Mary Helena Allegretti 2); Julho 1988 (Mary Helena Allegretti 3); Julho 1988 (Linda Rabbin); Setembro
1988 (CUT); Setembro 1988 (QI na TV); Setembro 1988 (Valdir Sanches); Setembro 1988 (Mary Helena Allegretti
4); Outubro 1988 (Malu Maranhão); Novembro 1988 (Miranda Smith); Novembro 1988 (Cândido Mendes);
Novembro 1988 (Cândido Grzybowski). No Anexo encontra-se uma lista detalhada com o nome dos
entrevistadores, locais e datas das entrevistas.
131 Somente parte do material disponível foi utilizado; por falta de tempo, as fitas gravadas dos eventos que
ocorreram a partir de 1981 não foram todas transcritas e o arquivo do IEA não foi consultado integralmente.
132 O Jornal Varadouro, criado em maio de 1977, teve um papel fundamental na compreensão das causas dos
conflitos pela terra no Acre, pelo fato de dar espaço para manifestação por parte daqueles que se sentiam atingidos
pelos interesses dos grandes grupos econômicos.
130
194
seringalista em função da quebra do monopólio da borracha, a reativação do extrativismo após
1967, a venda dos antigos seringais e a primeira fase dos conflitos, que se caracterizou pela
expulsão dos seringueiros e pela organização das Comunidades Eclesiais de Base.
O segundo tópico, Seringueiros Posseiros, cobre o período de 1975 a 1977 e analisa a
especificidade histórica e econômica dos conflitos fundiários, resultante tanto do processo de
conquista e incorporação do Acre ao território brasileiro quanto do estatuto peculiar das relações
sociais entre seringueiros e seringalistas, que emergiu em decorrência da venda dos antigos
seringais. A identificação dos seringueiros como posseiros, nos termos do Estatuto da Terra,
resultou da presença da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG),
no Acre e da organização dos primeiros Sindicatos rurais. Às expulsões, ocorridas na primeira
fase dos conflitos, seguiram-se os empates às derrubadas, iniciativa original de defesa da posse e os
acordos com os fazendeiros mediados pelos Sindicatos.
O terceiro tópico, Chico Mendes: Vereador e Sindicalista, abarca o período de 1977 a
1983 e organiza tanto as informações sobre a trajetória política de Chico Mendes como vereador
quanto o quadro de conflitos existente na região e sua atuação como sindicalista. Está
subdividido em três grandes temas: da criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri à
sua atuação como Presidente da Câmara dos Vereadores; do assassinato de Wilson Pinheiro ao
seu enquadramento na Lei de Segurança Nacional; dos conflitos com a empresa Bordon, no
Seringal Nazaré, à sua eleição como Presidente do STR de Xapuri.
O capítulo procura fazer um balanço das especificidades desta etapa do movimento dos
seringueiros dando ênfase à idéia central de um processo social que iniciou como uma luta pela
terra, igual a muitas outras já registradas na história recente do Brasil, e se desenvolveu à medida
em que formulou soluções novas, uma vez que a especificidade das demandas dos seringueiros
não se enquadrava nos procedimentos jurídicos e administrativos vigentes.
4.1.
SERINGUEIROS AUTÔNOMOS
O seringueiro autônomo, ou liberto, é um seringueiro sem patrão, que comercializa a
borracha por conta própria, não paga renda, combina diferentes atividades produtivas (extração
de borracha, coleta de castanha e de outros produtos da floresta, agricultura e caça) conforme
suas necessidades e as características do mercado, e exerce controle sobre sua colocação. Emergiu
no bojo da desagregação da empresa seringalista, como resultado da política governamental que
extinguiu o monopólio da borracha, em 1967. O surgimento do liberto levou à classificação do seu
oposto como cativo, o seringueiro que vive sob a ordens de um patrão, paga renda, despende a
maior parte do seu tempo para a extração da borracha e faz uma pequena agricultura, só pode
195
vender a borracha no barracão e passa a vida endividado esperando conseguir um saldo no final do
ano.
Essa passagem, do cativeiro à liberdade, está claramente relatada na história de vida de Chico
Mendes e é semelhante à que ocorreu com a maioria dos seringueiros do Vale do Acre, naquele
momento. Sua trajetória pessoal somente vai se distinguir da dos demais, alguns anos mais tarde,
em função da educação política que recebeu no seringal onde morava.
4.1.1
Do Cativeiro à Liberdade
Chico Mendes nasceu e se criou em uma família tipicamente seringueira. O avô migrou
do Nordeste, o pai foi seringueiro e ele nasceu e cresceu em uma colocação de seringa. Foram três
gerações de trabalhadores subordinados a patrões e às regras tradicionais de produção e
comercialização da borracha. A oportunidade de mudar esta realidade surgiu quando os
seringalistas entraram em decadência e Chico, que herdara de seu pai uma atitude crítica em
relação aos patrões e tivera a oportunidade de aprender a ler, escrever e refletir sobre o sistema de
aviamento, decidiu organizar as primeiras ações em busca de autonomia, quebrando o sistema de
controle dos seringalistas. Surgiu, assim, em Xapuri, a primeira etapa da organização dos
seringueiros, entre os anos de 1965 a 1970.
Infância no seringal
Meu nome é Francisco Mendes Filho, mais conhecido tradicionalmente por Chico
Mendes. Sou filho do município de Xapuri, nasci na mata, no Seringal Porto Rico, seis
quilômetros da fronteira com a Bolívia, no dia 15 de dezembro de 1944. Meu pai trabalhava como
seringueiro e eu, com 9 anos de idade, fui ser seringueiro. Minha mãe teve 15 filhos e morreu, aos
33 anos, de parto.
Naquela época, os seringueiros não eram autônomos, vigorava ainda o sistema do
barracão, em que o dono do seringal era o patrão. Os seringueiros viviam num regime de
escravidão e eram amarrados com correntes e presos ao tronco para serem castigados. Não era
raro que fossem condenados à morte por fuzilamento. Nós, todos nós, tinha muito aquela idéia,
depois, nessa época mais moderna acabou-se esse massacre, mas sempre houve história: 'a gente
vai práquele patrão, fulano de tal é bom'. Por isso, a gente vivia mudando de seringal. No nosso
caso, em 1950, quando eu tinha seis anos, mudamos para a colocação Pote Seco, no Seringal
Equador, próximo à fronteira com a Bolívia e em 1955, com 11 anos, mudamos para o Seringal
196
Cachoeira, na colocação do Lago, que ficava ao lado do Seringal Equador. Nessa região eu morei
uma base de 25 anos.133
A minha vida começou igual à de todos os outros seringueiros: escravo submetido às
ordens do patrão. E como todos os filhos de seringueiro, comecei a aprender a sangrar a
seringueira com a idade de 9 ou 10 anos. Em 1955, com 11 anos, já tinha aprendido a cortar
seringa. Fui seringueiro por 28 anos, sem parar.
Naquela época, do ciclo da borracha, em vez de receber a lição do ABC, aprendi a sangrar
a seringueira. Mesmo meu pai, também o seu ABC foi sangrar a seringueira. Era nossa escola,
porque os patrões não permitiam que os filhos dos seringueiros aprendessem a ler nem que
fossem construídas escolas nos seringais. Porque para o seringalista, para o patrão, não interessava
botar escolas nos seringais para o filho do seringueiro estudar, ao passo que o filho do seringueiro
ir estudar, isso criava um desestímulo prá produção de borracha. E o patrão precisava que sua
produção de borracha fosse aumentando cada vez mais porque ele tinha que colocar os seus
filhos prá se formar em Belém, Rio de Janeiro, Fortaleza, e também ele precisaria comprar
apartamentos nessas grandes cidades, nas capitais do país. Então o direito do filho do seringueiro
era, aos 8, 9 anos, começar a cortar seringa lá na selva e enfrentar já as consequências.
Isso tinha algumas implicações, porque se o filho de um seringueiro aprendesse a ler
podia descobrir a forma como estava sendo explorado na contabilidade. Existiam seringueiros que
trabalhavam o ano todo, com uma alta produção e calculavam o saldo que deveriam ter no final
do ano, depois de descontada a parte do patrão. Mas quando o final do ano chegava, eles ainda
estavam devendo e não podiam provar o contrário, já que não sabiam ler. Isso também estava
ligado à produção, porque era muito mais interessante que um menino de 9 anos sangrasse as
seringueiras junto com o pai, do que tirasse parte de seu tempo indo à escola.
O avô de Chico Mendes migrou do Ceará para a Amazônia, a primeira vez, no início do
século passado e se fixou no Pará, com o objetivo de cortar seringa. Com a primeira crise da
borracha, voltou ao Ceará, onde casou-se e teve seis filhos. Em 1925, motivado por uma nova
seca que ocorria no Nordeste, decidiu voltar para a Amazônia, desta vez com destino ao Acre.
Quando a família Mendes subiu o rio Amazonas o pai de Chico, Francisco Alves Mendes, tinha
doze anos. Eles se colocaram no Seringal Santa Fé, perto de Xapuri.
Francisco Alves Mendes, o pai, cresceu cortando seringa, embora com uma certa
dificuldade porque tinha nascido com os pés defeituosos. Sabia ler e escrever, o que o distinguia
dos demais seringueiros, e tinha uma grande revolta contra os patrões, o que o tornava respeitado
133 Ver Figura 1, no Anexo, onde estão assinalados o Seringal Porto Rico, a colocação Pote Seco no Seringal Equador, e
a colocação do Lago no Seringal Cachoeira. O desenho foi feito por Antônio Teixeira Mendes, primo de Chico
Mendes, com o objetivo de orientar uma pesquisa sócio-econômica realizada pelo IEA, em 1987. As anotações a
lápis foram feitas pelo pesquisador Paulo Chiesa, e indicam o nome do seringueiro que morava em cada colocação e a
data da entrevista realizada.
197
pelos demais. Casou-se com Iraci Lopes e teve 15 filhos, dos quais apenas oito sobreviveram,
tendo Chico Mendes se tornado o mais velho após o falecimento dos demais.
Cativeiro
O passado do seringueiro é uma história muito complicada, de escravidão, de exploração,
de morte, mesmo. Foram séculos. Existe uma história desde 1839 que os índios descobrem a
borracha, e essas coisas, e já começa aos poucos a exploração dela. Mas a coisa começou mais a
partir de 1877, aí vinham aquelas levas de nordestinos... Eu ainda conheci antigos seringueiros, do
século passado, ainda, eu era meio novinho, eles gostavam de contar, mas infelizmente não
escrevi todas as histórias. Naquela época o seringueiro trabalhava muito, tirava muito leite, porque
às vezes, apesar dele roubar, como era todo mundo solteiro, o cara não tinha como roubar muito,
porque o cara não comprava quase nada. Não tinha como esconder. Aí o mercado, a praça, era
Belém, todas as compras vinham de navio, pros patrões, saíam da sede dos barracões, nas
margens dos rios e traziam os navios cheios de mercadorias. Sempre era duas vezes por ano, o
patrão avisava os seringueiros, que ia prá Belém, quem tivesse alguma encomenda.
Agora outra coisa interessante. Esse desbravamento, esse povo todo, eram nordestinos
que vieram prá cá, ninguém trazia família. Alguém chegava com 200 homens, não tinha uma
mulher. Em 77, o começo do desbravamento, 1877.
Aí, eu, por exemplo, tinha um saldo, aí: 'Patrão, eu queria que você trouxesse uma mulher
prá mim'. Aí o cara trazia, lá dos cassinos, escolhia uma mulher lá, trazia, aqui ele riscava minha
conta, meu saldo, tava riscado. Aí como a carência era demais, os outros às vezes se reuniam e
tomavam a mulher do cara. Houve muitas mortes por causa disso. Uma mulher só, servia de
briga. Bom, a partir daí, começam a vim outras levas, já por último, a partir acho que de 1925 em
diante, começam a vir algumas famílias, também, mulheres, vão se embrenhando. E aí foi
acabando a carência de mulher.
Naquela época, de 1870, de 80 até 1940, com a vinda das famílias nordestinas para
desbravar a Amazônia, isso foi considerado um tráfico de escravos disfarçado. Os nordestinos
que eram expulsos pela seca, de repente se formava aquele grupo de seres desesperados pela fome
e pela seca, e eram usados como uma forma de mercado de escravos prá Amazônia. E aí iam
trabalhar para os seringalistas e explorar a Amazônia e eram ao mesmo tempo preparados para
lutarem contra os índios, os verdadeiros donos da terra.
O seringueiro, ao longo dos anos, foi uma espécie de escravo branco. Apesar da abolição
da escravidão, nunca acabou a escravidão no Brasil. E principalmente na parte dos seringueiros.
Os seringueiros sempre continuaram sendo escravos mesmo, tanto fazia ser branco, preto ou
mulato, era escravo mesmo. De modo que o patrão, se você morava num seringal onde havia
determinado patrão, mesmo que você tivesse o seu terreno e a sua barraca, você não podia vender
a borracha, porque o patrão ia chamar a polícia e você ia para a cadeia. Agora acontece, muitas
vezes, que o seu filho adoecia, você chegava lá, não tinha um remédio, não tinha uma lata de leite
198
para comprar para dar ao seu filho, muitas vezes o patrão não lhe pagava, lhe negava seu saldo
para você não ir comprar a mercadoria em outro lugar e aí você ou passava fome ou tinha que se
virar para dar um jeito para pegar aquele produto e vender onde tinha aquela mercadoria. Aí, por
exemplo, você era punido, era acusado de ladrão daquilo que você mesmo produzia. Num
processo desses muitas vezes fomos obrigados a roubar o que era nosso. A gente produzia
borracha, derramava suor e ao mesmo tempo era obrigado a roubar o produto que era feito por
nós. Um esquema de escravismo assim muito radical. Todos nós juntos, eu inclusive, éramos
escravos dos patrões. Nós éramos submissos às ordens dos patrões.
Desde aquela época em que ninguém era dono da terra na Amazônia, o seringalista que
sabia que existia uma determinada região habitada por índios, preparava os seringueiros e atacava
a região, destruíam as malocas e implantavam a sede do barracão. Dali, contando com
profissionais, desbravavam uma área de 30 a 40.000 hectares dentro da mata, abrindo picadas e
estabelecendo as colocações dos seringueiros. Estes dividiam as colocações, que não são lotes,
entre 100 a 200 famílias e cada um deles explorava aproximadamente 300 a 500 hectares, em
vários blocos de seringueiras, o que denominamos estradas de seringa.
Por exemplo, o seringalista que tinha 30, 40 ou 50 famílias com uma produção anual de
50 toneladas de borracha, ia no banco e fazia, fazia um financiamento de 100 toneladas e o
seringueiro se via forçado a cobrir aquela produção. Daí ele se transformava em escravo, pois seu
grupo não poderia vender o produto para outro seringalista, pois se ele o fizesse, a polícia o
reprimia ou os jagunços o matavam. Isso prevaleceu até 1930.
Começa então o tráfico de nordestinos para a Amazônia. Eram trazidos de navio até o
porto de Belém, sendo a praça de Belém a sede principal dos seringalistas. Quando o navio
chegava, os patrões levavam um número de pessoas para a selva. Existia uma propaganda no
Nordeste de que a borracha era uma mina, quando a realidade era totalmente outra. Quando o
nordestino chegava na Amazônia, não tinha mais como voltar, estava preso pelo rio, caminhava
horas nas matas, havia índios que resistiam e que matavam, tudo isso além da malária e outras
doenças. Os que conseguiam sobreviver, quando conseguiam um saldo que concretizaria o seu
sonho de voltar à terra natal, não eram reembolsados. Como eram vários grupos de seringalistas,
financiados por entidades internacionais, cada um detinha o domínio sobre uma determinada área.
E um não podia entrar na área do outro. Se acontecesse de um seringueiro ir ao barracão de um
seringalista diferente daquele ao qual ele pertencia, e esse seringalista descobrisse, mandava a
polícia ao barracão, tomava a borracha do seringueiro e tacava fogo nele. Muita gente morreu
assim.
O próprio banco facilitava toda essa ação criminosa porque a borracha era marcada –
cada seringueiro tinha uma marca para marcar sua borracha – aí então o patrão sempre reconhecia
uma borracha diferente no seu lote.
Essa história violenta vai até 1930. De 1930 para cá isso foi se acabando pois o governo
andou prendendo vários seringalistas. Acabou porque, depois de muito tempo, chegou uma
199
denúncia no Rio de Janeiro, dizem que Getúlio Vargas, naquela época, mandou uma expedição
prá esses altos rios, de militares, e vários patrões desses, desceram amarrados nos porões dos
navios. Agora uma notícia dessa prá chegar no Rio de Janeiro, levava dois, três meses. Mas, ainda
hoje, em algumas regiões da Amazônia, prevalece o sistema de seringueiro escravo.
Em nada difere a vida de Chico Mendes, nesta fase, da dos demais seringueiros.
Enquanto o pai cuidava da agricultura, ele cortava seringa seis dias por semana, auxiliado pelos
irmãos mais novos. Na etapa seguinte, no entanto, sua vida vai seguir um curso inteiramente
peculiar e decisivo para seu futuro político.
Alfabetização política: 1960 a 1965
Muitas pessoas me perguntam porquê e como eu comecei a participar desses
movimentos, principalmente em vista do fato de que nem todos os filhos de seringueiro têm essa
idéia diferente de participar em movimentos de defesa da floresta e dos seringueiros. Foi com um
refugiado político que eu aprendi a ler e escrever. Isso aconteceu por volta de 1960, quando eu
tinha 16 anos. Nesta época eu já estava tentando sair daquela vida de escravo, tentando vender
por fora as pélas que produzia.
Eu acho que foi uma sorte que eu tive, eu ganhei a loteria! Em 1962, morávamos em uma
região de seringal perto da fronteira com a Bolívia e eu descobri que um homem diferente dos
outros seringueiros vivia perto da nossa casa, da casa que era dos meus pais. Ele morava a três
horas a pé da nossa casa, através da mata, e seu nome era Euclides Fernandes Távora. Era jovem,
tinha vinte e poucos anos e era muito inteligente. Dizia que só sabia ler, mas descobri que
queimava tudo o que anotava.
Certo dia ele resolveu sair e estava fazendo uma pequena viagem em volta da área para
conhecer as pessoas que viviam perto, na mata, e passou na nossa casa. E numa conversa com
meu pai, que tinha muito ódio dos seringalistas, da exploração, ele se interessou por mim e
perguntou se eu queria passar o final de semana na sua casa que ele ia me ensinar a ler.
Eu fiquei muito interessado em aprender a ler. Ele me perguntou porque eu queria
aprender a ler. E eu respondi que meu interesse em ler e escrever era para descobrir a exploração
na qual nós vivíamos. Nós éramos roubados e explorados pelos patrões e não podíamos fazer
nada porque não sabíamos contar e ler. Isso estimulou nele uma grande vontade de me ensinar a
ler. E logo percebi que ele não estava somente interessado em me ensinar a ler. Seu maior
objetivo era me ensinar outras coisas que seriam muito importantes no futuro.
No início, eu achava estranho, porque Euclides era uma pessoa diferente de nós, falava
bem. Eu ia prá casa dele na sexta-feira à tarde e ele começou a me ensinar a ler durante a noite,
aos sábados e domingos, até de madrugada, pois segunda-feira eu tinha que voltar a trabalhar.
Fiquei mais de 4 anos nessa vida, passando todo o fim de semana na casa dele. Me tornei um
200
grande amigo dele. Então, durante esses quatro anos, eu fiz as três horas de caminhada através da
mata para passar todos os fins de semana em sua casa, na colocação Bom Futuro. Nas aulas, já
que nós não tínhamos livros de ABC, eu aprendia através de discussões e com base na leitura de
alguns jornais que ele recebia, muito velhos, um ou dois meses atrasados, do Pará e da Bolívia.
Todo tipo de notícias. Eu não tenho idéia de como ele recebia estes jornais. Pegávamos recortes
de notícias de trabalhadores de países socialistas e de outros países da América Latina.
Começamos com aquelas leituras de jornal, ele ia me explicando as notícias e então comecei a me
interessar pelos trabalhadores.
Depois de 1964 e do golpe militar, nós conseguimos uma bateria prá fazer funcionar um
rádio de ondas curtas. Com esse rádio, às 6 hs da tarde, nós recebíamos os noticiários
internacionais em português, da Voz da América, da BBC de Londres e da Rádio Central de
Moscou. Quando ele me perguntou o que eu achava do golpe, respondi como todo mundo
desinformado, que parecia uma coisa muito boa para o país. Aí o Euclides disse que eu ia
entender o que significava o golpe. Sintonizou o rádio primeiro na Voz da América com a versão
dos Estados Unidos, que dizia que a democracia tinha sido vitoriosa, que os comunistas iam
acabar com o país, etc. No outro dia a gente ouviu a versão da Central de Moscou, que dava outra
versão completamente diferente, falava das prisões de sindicalistas, das torturas, dos assassinatos,
etc. Então eu tinha as duas versões: a dos americanos e a dos comunistas.
Euclides, porém, insistia que eu deveria ouvir uma terceira versão, dada pela BBC de
Londres, que relatava os fatos.134 'Tanto os Estados Unidos como a União Soviética', dizia,
'defendem os respectivos sistemas e ideologias. A BBC faz um trabalho jornalístico relatando os
fatos sem tomar partido'. Ele me explicava o que era aquela revolução, feita pela CIA com o apoio
da ala reacionária. Dizia que João Goulart, apesar de ser um governo populista, tinha aberto uma
exceção e os movimentos estavam se articulando para criar a reforma agrária no país e exatamente
preocupada com essa mobilização foi que a CIA articulou e financiou o golpe militar.
Aí ele começou a me conscientizar para o que estava acontecendo no país. E eu comecei
a receber as aulas baseadas nos programas de rádio de cada uma dessas emissoras internacionais.
Uma noite nós escutávamos um programa em português da Voz da América. Minha aula ia ser
baseada numa discussão relacionada com a filosofia da política americana. Em um outro dia nós
íamos discutir a questão da política soviética e em outro dia nós discutíamos as notícias divulgadas
pela BBC de Londres.
Ao final de todas essas discussões ele me explicava que o programa da BBC era muito
aberto para o mundo todo e era mais interessante para nós porque cobria notícias de todo o
mundo. A Voz da América tinha sua própria posição política: defendia o sistema capitalista. A
Central de Moscou também tinha sua posição ideológica em defesa dos interesses do socialismo e
Chico nunca iria imaginar, naquela época, que em março de 1987, seria ele que estaria dando uma entrevista à
BBC, em Londres, em um programa que foi considerado histórico na emissora e que não pode ser ouvido pelos
seringueiros porque o prefeito de Xapuri colocou a rádio fora do ar naquele exato momento.
134
201
do comunismo. E que eu devia optar de preferência pela rádio que divulgava as notícias de todo o
mundo. Daquele ponto em diante, eu fiquei fiel à BBC de Londres durante todo aquele tempo.
Isso estimulou muito a minha curiosidade. Eu ficava preocupado que centenas de outros
jovens na região não estavam participando dessa educação, não estavam interessados. Mas ele
disse que o compromisso dele era comigo.
Em 1965, em uma de minhas últimas conversas com ele, Euclides me explicou que ele era
um ex-oficial das Forças Armadas, havia sido Tenente do Exército, que tinha participado no
movimento de resistência esquerdista de 1935 no Brasil. Ou melhor, ele, como um oficial das
Forças Armadas, junto com seus companheiros de farda, havia se juntado com o movimento
revolucionário de Luiz Carlos Prestes, a Intentona Comunista, iniciada em 1935.
Com a derrota do Prestes, foi preso juntamente com os outros membros do movimento e
encarcerado na ilha de Fernando de Noronha. Como tinha parentes de grande poder político na
oposição, era sobrinho do Juarez Távora, a sua fuga foi mais ou menos liberada. Ele escapou em
um bote para Belém e, em seguida, fugiu para a Bolívia onde se filiou ao Partido Comunista e se
envolveu nos movimentos de resistência dos trabalhadores bolivianos, atuando na região das
minas. Lutou ao lado dos mineiros com armas na mão. Depois de um daqueles muitos golpes que
houve na Bolívia, foi perseguido e se escondeu na selva, andando até a fronteira com o Brasil.
Optou pela selva, pois era perto da fronteira. No Acre, atravessou a fronteira, passou a morar na
região dos seringueiros, se entrosou com alguns que lhe ensinaram a sangrar a seringueira, a fazer
a borracha. Decidiu optar por viver na selva e aprender a ser um seringueiro. Ficou isolado para
ninguém descobrir que morava ali.
Em julho de 1965 começou a emagrecer, achava que era úlcera. Deixou a mata em uma
viagem para a cidade, disse que ia arranjar um médico, que não havia mais perigo. Ele foi e não
voltou nunca mais, desapareceu. A notícia que eu ouvi era de que tinha morrido... mas depois
dessa época não recebi nenhuma informação mais.
Em 1965, em nossa última conversa, ele me disse que poderia esperar por 15 ou 20 anos
de regime militar no Brasil, uma forte ditadura. E que essa ditadura era financiada pela CIA para
desmobilizar toda a resistência dos movimentos camponeses que estavam lutando pela reforma
agrária. E que eu somente conseguiria fazer alguma coisa pelos seringueiros o dia que me
envolvesse com alguma associação ou um Sindicato. Que eu, isolado, nunca seria capaz de fazer
nada. Ele me orientou para a questão do sindicalismo, dizendo que na situação em que o Brasil
vivia, os partidos políticos não eram confiáveis, e que eu deveria me centrar na organização
sindical. Ele me dizia também: 'Hoje os trabalhadores estão sendo rechaçados, mas por maior que
seja o massacre, sempre existirá uma semente que renascerá e aí você terá que entrar, mesmo que
seja daqui há 8, 10 anos'.
A oportunidade que teve Chico Mendes de receber uma educação política como a que lhe
proporcionou Euclides Távora não encontra registro semelhante na história dos seringueiros da
202
Amazônia. Embora o discurso dos seringueiros seja radical e muito crítico aos patrões, às regras
vigentes nos seringais e ao governo, conforme apontamos no capítulo anterior, não se trata de
um pensamento organizado politicamente como era o de Chico. Por outro lado, o fato de ter
sido socializado na floresta, como os demais seringueiros, dava a ele uma especial capacidade de
comunicação, porque sabia como mobilizar a revolta e o sentimento de injustiça latentes em cada
um, para levá-los, passo a passo, na direção de novas propostas e novos objetivos.
A influência que o exilado político Euclides Távora exerceu sobre Chico Mendes foi
decisiva em relação à sua forma de pensar o mundo e pode ser comparada ao processo que
viveram muitos outros políticos da esquerda brasileira, da mesma geração, que se formaram em
cursos de lideranças organizados pela Igreja Católica através da Juventude Estudantil Católica e
dos que eram realizados para trabalhadores, através da Juventude Operária Católica, assim como
de grupos de formação dos partidos políticos de esquerda, nos centros urbanos do país.
Na etapa seguinte de sua vida, Chico Mendes procurou aplicar alguns dos conhecimentos
políticos que havia adquirido; mas, como ele afirmou em inúmeras entrevistas, era um trabalho
isolado, sem muitos resultados, uma vez que não existiam instituições capazes de dar
conseqüência política às ações reativas de um grupo pequeno de seringueiros.
Autonomia dos seringueiros: 1965 a 1970
Em 1967, depois que meus pais morreram, eu passei a trabalhar de meeiro135 no Seringal
Filipinas. Durante os cinco anos seguintes, mais ou menos, fiquei meio perdido. Tinha 21 anos e
estava extremamente isolado, porque depois que Euclides desapareceu eu pensei comigo mesmo
sobre o que eu deveria fazer. Nesse momento extremamente difícil de regime militar, eu não
podia fazer muita coisa porque seria perseguido.
Não se falava em sindicalismo; na cidade só se falava em militar. Comecei a articular uma
discussão com meus companheiros. Como sabia ler, comecei a descobrir o quanto a gente era
roubado. Entre os seringueiros, por mais que os patrões tivessem melhorado com a presença do
exército, o que acontecia? Você produzia durante um ano um monte de borracha, gastava metade
no barracão do seringalista e então tinha aquela base de que no final do ano você teria metade do
lucro garantido. Mas chegava lá, você estava devendo. Descobri que era um roubo absurdo.
Nesse momento começou um processo de luta pela autonomia dos seringueiros. De 1965
até 1970, eu fiquei lutando de uma forma isolada, mas sem muito êxito. Comecei um trabalho de
conscientização, na tentativa de lutar pela liberdade, pela autonomia do seringueiro, ou seja, sair
das garras do patrão. Mas como é que podia fazer isso? Usando a figura do marreteiro. O
marreteiro, o vendedor ambulante, naquela época, era um cara que ele queria fazer um bom
Um seringueiro solteiro geralmente trabalha, durante alguns anos, de meia com outro seringueiro, dono de uma
colocação, dedicando-se exclusivamente ao corte de seringa, recebendo alimentação e dividindo pela metade a
produção ao final da safra.
135
203
negócio, prá arrumar cliente. E como era perigoso ele entrar no seringal, porque o patrão botava
ele prá fora...No rio era o regatão, que chamava. No seringal ele andava com um jamaxi, nas
costas. E aí o que é que ele fazia. Ia pro seringal vendendo fazenda, outros vendendo pão, porque
pão era uma coisa, naquela época, prá nós era uma coisa muito gostosa! Eles iam na padaria,
botavam no jamaxim, entravam pro seringal, vendendo.
Mas esse tipo assim, de jamaxim, não fazia muito perigo, porque os patrões sabiam que
eles não podiam carregar produto. Aí o que que o marreteiro fazia. Ele passava na casa do
seringueiro, vendia e o seringueiro tinha um saldo, mandava uma ordem pro patrão, aquele
marreteiro ia lá e recebia. Esse do jamaxim. Agora o regatão do rio, de comércio, já era um
problema mais sério, porque ele tinha um barco, ele ia comprar borracha prá vender.
Aí o que que eu fazia. Em 1968 eu organizei um movimento desse no Seringal Filipinas.
Cansei de sair à noite, levando companheiros que marcavam ponto com os marreteiros, para
vender sua borracha e comprar mais barato. Eu saía à meia-noite, marcava com o marreteiro num
porto isolado, num lugar que era longe do patrão, e combinava com os seringueiros. E às vezes à
meia-noite, uma hora da manhã, no silêncio da noite, a gente ia roubar o nosso próprio produto,
nós íamos vender pro marreteiro. Aí o marreteiro pagava mais cara a borracha e vendia o
alimento mais barato.
Me lembro que teve noite de juntar 10, 15 seringueiros, fazia aquela festa: 'Nós hoje
vamos vender a borracha mais caro'. 'E aí o que é que vamos fazer?' 'Vamos comprar vermute,
cachaça e comemorar aquele negócio'. Voltava todo mundo bebendo, perdendo a noite todinha.
Estava dando certo. Só que às vezes, tinha seringueiro, coitado, sem consciência, que
corria, ia lá e contava pro patrão: 'Olha, o Chico Mendes tava vendendo borracha, tal noite,
assim'...(risos) Com isso passei horas apertadas, eu quase apanho, muitas vezes, do patrão. Foi
duro. O negócio começou, os primeiros passos, a gente comeu um bocado de amargoso. Na
medida em que os companheiros eram pegos vendendo borracha para o marreteiro, eram presos,
eu mesmo fui encurralado algumas vezes por causa disso.
Esse processo de venda de borracha para o marreteiro, isto já começou a partir de 70.
Mas a coisa se aguçou mais com a criação do Sindicato. Antes eu levava muita porrada. Por
exemplo, iam 2 ou 3 companheiros vender o produto, mas aí o patrão descobria e mandava a
polícia pegar eles. O seringueiro era obrigado a botar aquele produto nas costas e levar por baixo
do chicote da polícia até a delegacia. E aconteceu também anteriormente que alguns patrões
fizeram ainda pior. Pegaram aquele produto, amarraram nas costas do seringueiro a borracha que
ele tinha vendido ao marreteiro e tocaram fogo. Muitos companheiros morreram queimados, de
uma forma mais cruel possível.
Aí como a gente percebeu que em pequenos grupos a gente não conseguiu fazer nada, a
gente decidiu lançar uma campanha geral onde envolvia não só 2 ou 3 companheiros, mas 30, 40
ou 50 seringueiros nesse processo. E, a partir daí, na medida em que a gente se organizou e todo o
mundo participou nesse trabalho, a gente tinha mais força para avançar esse movimento. De
204
modo que eles forçosamente tiveram que abrir mão e hoje, apesar de muita luta, mas nessa parte,
os companheiros tiveram uma vitória.
Aí fizemos um trabalho para evitar que o seringueiro pagasse renda, para que ele
começasse a construir sua autonomia. O que fazíamos? Os atravessadores estavam interessados
em comprar diretamente do seringueiro, só que ele não podia entrar no seringal, pois o patrão
mandava prendê-lo. Com o nosso apoio, ele começou a oferecer melhor negócio para o
seringueiro, ou seja, melhor preço para a borracha e, inicialmente, venderia os produtos
alimentícios mais barato. Começamos então a dar apoio ao marreteiro como uma forma de levar o
seringueiro à autonomia. Só que esse mesmo marreteiro depois que se viu livre para circular nos
seringais, transformou-se numa figura autoritária e exploradora. Agora, lutamos para combatê-lo;
nos foi útil no passado, hoje é nosso inimigo. Mas conseguimos eliminar o desconto que o patrão
fazia, até 1970, de 10% do peso da borracha do seringueiro, além de 30% de aluguel que era
obrigado a pagar.
Assim, antes mesmo que a CONTAG chegasse, eu já sentia o problema dos seringueiros
explorados pelos patrões seringalistas e acochados pela polícia quando vendiam a borracha para
terceiros e todas aquelas barbaridades dos seringais do Acre.
A substituição do patrão pelo marreteiro, naquele momento, em Xapuri, foi um fator
determinante na constituição do seringueiro autônomo. E a forma como ocorreu revela, também,
uma característica do comportamento de Chico Mendes que se tornará freqüente em sua prática
política, a de transformar obstáculos em oportunidades. Consciente de que os regatões tinham
interesses próprios, 'fazer bons negócios', e que essa motivação poderia ter utilidade para os
seringueiros, Chico fez, de certa forma, uma aliança com os marreteiros. Essa abertura mental
para identificar, em diferentes contextos, os meios disponíveis e o momento oportuno para
atingir seus objetivos, tornou-se característica de sua maneira de atuar nos conflitos. Ao mesmo
tempo, ele tinha consciência de que essa solução não significava as mudanças profundas no
sistema de exploração predominante que ele pretendia alcançar.
Essa condição de autonomia, que alguns autores definem com sendo típica de uma forma
camponesa de produção, surgiu em toda a Amazônia após a queda da economia da borracha no
começo do século passado (Ianni 1978; Sawyer 1978; Loureiro 1992; Almeida 2002; Costa 2001)
e caracterizou-se pela produção agrícola familiar para subsistência complementada com a coleta
da borracha, da castanha e de outros produtos da floresta.
No caso do Acre há uma especificidade. Pelo fato de ter sido um dos poucos estados
amazônicos que continuou tendo sua economia baseada no extrativismo gomífero, pelo menos
até a década de 1970, apesar das diferentes crises do setor, os seringueiros continuaram sendo
205
produtores de borracha, só que comercializando o produto de forma independente136. A quebra
do monopólio da borracha, ocorrida em 1967, e que ameaçou essa posição recém conquistada,
foi superada em 1968, em decorrência das pressões dos seringalistas que asseguraram a
continuidade da proteção aos preços da borracha amazônica.
A abertura da BR 317, em 1971, ligando Rio Branco à fronteira com a Bolívia, em
Brasiléia, com um ramal de acesso a Xapuri, foi também um fator decisivo nesse processo de
autonomia dos seringueiros, porque facilitou a circulação mais livre do produto e dos
intermediários em todo o Vale do rio Acre.
A condição dos seringueiros autônomos, no período de 1965 a 1970, no Vale do Rio
Acre, foi única na Amazônia, em decorrência dos fatores citados. Mas durou pouco tempo, uma
vez que, a partir de 1970, com a venda dos seringais para os fazendeiros, muitos seringueiros
foram obrigados a deixar suas colocações e migrar para as cidades. Realizaram, dessa forma, ainda
que por um curto período de tempo, o projeto antigo de viver por conta própria na floresta e ser
dono de sua colocação, alimentado desde a Revolução Acreana e da Segunda Guerra. Mais importante,
porém, esse momento deixou claro, para os próprios seringueiros, possivelmente pela primeira
vez na história, que eles podiam viver sem patrão. Em outras palavras, que o sistema de controle
sobre a força de trabalho predominante na empresa seringalista era uma condição essencial à
reprodução da própria empresa, ou seja, da relação patrão-freguês. O patrão não podia viver sem
seus fregueses, mas os seringueiros podiam continuar se reproduzindo, desde que passassem a ter
acesso direto ao mercado, substituindo o patrão pelos comerciantes ambulantes que passaram a
circular com liberdade pelos seringais.
Alguns anos depois, em 1976, foi essa condição de autonomia que permitiu o início da
resistência às expulsões e que se constituiu no elemento estruturador das propostas que os
seringueiros apresentaram, como solução para os conflitos, na década de 80, como veremos nos
itens seguintes. Mas é preciso compreender melhor as mudanças que ocorreram neste momento,
na política de desenvolvimento para a Amazônia, uma vez que as decisões adotadas então,
influenciaram o futuro dos seringueiros nas décadas seguintes.
4.1.2
A Venda dos Seringais
Conforme foi afirmado no início deste capítulo, os conflitos ocorridos no Acre, na
década de 1970, estão relacionados tanto à política de incentivos fiscais a atividades agropecuárias
Conforme dados do BASA, em 1949, no Acre, a borracha participava com 37% na geração da renda interna e no
produto bruto da agricultura e em 1959, com mais de 59%. Segundo dados de Ferreira da Silva, a arrecadação de
ICM, em 1979, referente a produtos extrativos correspondeu a 29,4% do total arrecadado, enquanto que a pecuária
contribuiu com apenas 1,3% do ICM arrecadado naquele ano (1982:52).
136
206
quanto à decisão do Governo do Acre de atrair empresas do sul do país para adquirirem terras e
implantarem projetos agropecuários. Nos primeiros anos da década de 1970 estes fatores atuaram
de forma conjugada: a política do governo federal facilitando a aquisição dos seringais pelas
grandes empresas, o governo do Acre ignorando a existência de irregularidades na titulação da
propriedade da terra, a ausência de regulamentação para evitar os conflitos entre fazendeiros e
seringueiros, deixando estes fragilizados diante da mudança radical na forma de utilização dos
recursos naturais. Eclodiu um clima de aberto conflito social que somente encontrou resistência
alguns anos depois e os seringueiros que ali viviam há gerações foram obrigados a migrar para as
cidades ou para a Bolívia, como relata Chico Mendes, ao contar essa parte de sua vida.
Os fazendeiros e as expulsões: 1970 a 1975
Em 69 prá 70, o governo do Acre vai no sul do país e faz aquele alarme, propaganda
para as empresas, os grandes latifundiários dizendo que o Acre tinha terra farta e barata e que o
povo acreano era um bando de malandros e que precisava de progresso para o Estado. E aí vem a
correria137 dos fazendeiros do sul e o conseqüente massacre dos seringueiros. Em 70 começaram a
chegar os fazendeiros. De 1970 a 1975 com o apoio dos incentivos fiscais da SUDAM,
compraram mais de 6 milhões de hectares de terra, espalhando centenas de jagunços pela região,
expulsando e matando posseiros e índios. Naquele momento todos viviam nas matas, ninguém
tinha consciência de luta, não tinham o direito de ir à escola, pois os patrões não permitiam.
A região mais afetada e mais complicada foi a região que abrange aqui o Vale do Acre, o
município de Rio Branco, Xapuri e Brasiléia, Assis Brasil, porque aqui já tinha a estrada aberta, a
BR 317. E em poucos anos, e a partir de 70 até 77, mais de 10 mil famílias de seringueiros foram
expulsas através dos métodos mais violentos possível. Xapuri foi o município... a maior vítima
dessa violência. Dezenas de jagunços foram mandados para os seringais, derrubar a casa dos
seringueiros, queimar os barracos dos seringueiros, seringueiros que moravam desde muitos anos,
que nasceram e se criaram na selva, foram de repente obrigados a sair sem receber nenhum tostão
pelos seus bens, pelo seu trabalho e o desespero dominou essa população de modo que uma
grande parte deles, de 10 a 15 mil, talvez 50%, foi tentar a vida na cidade. Rio Branco foi,
realmente, a cidade de preferência para o êxodo desse pessoal e como não tinham trabalho, não
tinham profissão nenhuma, não tinham saber nenhum, só sabiam cortar seringa, fazer a borracha
e cortar a castanha, aí foram e ocuparam as periferias das cidades. Rio Branco é um espelho dessa
realidade se você vê os bairros ao redor. A outra parte, grande parte, que achou que tentar a vida
na cidade seria arriscado demais, se mandou para a Bolívia e hoje, por exemplo, nós não temos
Chico utiliza o termo correria para a chegada dos fazendeiros, da mesma forma como no passado os seringalistas
utilizavam essa palavra quando organizavam expedições de captura dos índios na época de formação dos seringais,
como foi visto no Capítulo Dois.
137
207
uma previsão segura, mas se prevê que 10 a 20 mil famílias de seringueiros se encontram em
território boliviano, peruano, na Amazônia internacional.
Essa história permaneceu em toda a década de 70, quando o governo militar decidiu
acabar com o monopólio estatal da borracha e os seringalistas caíram na falência. A situação
piorou muito para o seringueiro que era tido, até então, como uma espécie de escravo, mas que
tinha sua sobrevivência garantida. Após 1970, com a implantação do sistema latifundiário, com a
política de especulação da terra, a situação mudou muito, iniciando-se então os grandes
desmatamentos e a expulsão em massa.
A partir de 73, 74, a Igreja aqui do Acre começa então a se preocupar com a situação
desse êxodo rural e da violência no campo. Mas eles não tinham nenhum trabalho organizado de
base. Iniciam, então, um trabalho da Igreja com o objetivo de tentar rearticular e levar uma
orientação melhor para o homem do campo, ou seja, a Igreja levanta uma campanha de opção
pelos pobres, denunciando os conflitos e a violência no campo.
A partir de 1973 comecei a me entrosar nos trabalhos das Comunidades de Base. Naquele
momento, o Sindicato só podia funcionar nas dependências da Igreja, devido à repressão. Ela teve
um papel muito importante, apesar de que depois retrocedeu um pouco. Durante esse tempo,
militei ativamente nas Comunidades de Base e tinha aqueles padres progressistas que inventavam
hinos ligados à nossa causa. Era uma vida sofrida, mas a gente se animava pois sabíamos que
começávamos a incomodar o poder.
Até 1975 vivi essa vida isolada, tentando um trabalho quase inútil, mas consegui criar um
grupo de alfabetização e alfabetizei quase 50 pessoas, mas tive de largar devido a uma pressão
muito grande. O prefeito e o padre da cidade mandaram me chamar dizendo que eu estava
criando um grupo de agitadores. E tive que passar quase dois anos e meio escondido, se não teria
sido preso.
Aí então que começa a mudança radical, a estrutura violenta. Na década de 70, quando
eram muito fortes, as queimadas contribuíram para o desemprego e a miséria. Na minha região,
em 5 anos, foram expulsas mais de 10.000 famílias de seringueiros; 40% delas tentaram a vida na
cidade, aumentando o cinturão de miséria das cidades; o resto foi para a Bolívia tentar a vida nos
seringais de lá, aonde estão até hoje, numa situação difícil pois não são considerados nem
brasileiros, nem bolivianos, vivendo na clandestinidade. O objetivo era a especulação:
desmatavam 2.000 hectares de floresta virgem, plantavam 1.000 hectares de pastagem e assim não
tinha mais como o seringueiro viver. Hoje, na capital do Acre, se você visita um bairro desses, só
vê miséria, prostituição, tráfico de drogas, porque o pessoal foi levado ao desespero. Por que hoje
nas cidades há tantos grupos marginais? Essas pessoas foram levadas a isso não por convicção,
mas pelas circunstâncias.
Mudou a nossa percepção, visto que a região de repente estava se tornando um enorme
pasto. Só na minha região, de 1970 a 1975, foram destruídas pelo fogo e pelas moto-serras,
180.000 árvores de seringueiras, 80.000 castanheiras e mais de 1.200.000 árvores de madeira de lei,
208
sem contar com as várias espécies de árvores medicinais que foram devoradas e transformadas em
pastagens.
Primeiro, começou no Seringal Santa Fé, em Xapuri. Todos os seringueiros foram
chamados por pessoas estranhas, e pelos próprios patrões, e aí ameaçados por armas, foram
forçados a assinar uma coisa que nem sabiam o que era. No final tinham assinado um documento
que dizia que não tinham mais direito à posse daquelas terras onde moravam. No rio Xapuri, na
mesma data, chegou um grupo da Bordon e aí já foi um processo diferente. Eles chegaram nas
casas dos seringueiros com os jagunços, tocaram fogo nos barracos e os seringueiros eram
expulsos sem nenhum direito à indenização. Inclusive nessa época, na época de 1973, mais ou
menos, uma mulher morreu numa dessas queimadas de barracos. No Seringal Albrácia, o senhor
Vilela, um outro fazendeiro que chegou do sul, chamou os jagunços e eles saíram em todo o
seringal na casa dos posseiros matando os animais que serviam de transporte para os seringueiros
e expulsando todos de modo que os seringais inteiros ficaram vazios.
A política do governo federal para a Amazônia, na visão de Dennis Mahar, estava pautada
em uma abordagem estratégica com duas vertentes, a econômica e a geopolítica. No aspecto
econômico, visava transferir para a Amazônia o mesmo modelo aplicado no Nordeste, de
promover a industrialização via substituição de importações, financiada por capital privado
externo e interno; da perspectiva geopolítica evidenciava-se na idéia de ocupação de espaços
vazios através da imigração inter-regional e da formação de assentamentos permanentes e autosuficientes nas áreas de fronteiras (Mahar 1978:22).
A Lei 5.173, de 27 de outubro de 1966, estabeleceu a orientação básica da nova política:
um papel central para a iniciativa privada nos chamados pólos de desenvolvimento regional,
proporcionando incentivos ao capital privado associados à implantação de infra-estrutura, ao
fortalecimento do sistema de planejamento regional e de pesquisas visando mapear o potencial de
recursos naturais. Papel fundamental nesta mudança foi atribuído ao Banco da Amazônia S.A., o
BASA, que, à semelhança do Banco de Desenvolvimento do Nordeste, foi reestruturado visando
assumir funções efetivas de agente financeiro do desenvolvimento e passou a atuar como banco
de fomento.
Nesse novo contexto, de incentivo à expansão capitalista na Amazônia, a apropriação
privada da terra apresentou especificidades em função da estrutura econômica peculiar que
caracterizou, historicamente, os diferentes espaços regionais. No caso do Acre, é fundamental
entender o papel do BASA, em sua nova função, na identificação de uma solução para a crise dos
seringais, intermediando a aquisição dos mesmos pelos fazendeiros.
Uma das atribuições do BASA era a de agente financeiro da SUDHEVEA em sua política
de incentivo aos seringais nativos, repassando recursos para o financiamento da economia da
209
borracha. O crédito era escalonado segundo categorias de gastos: custeio, abertura de estradas,
reabertura de estradas e seringal de cultivo. O total de recursos era repassado ao seringalista em
duas vezes: 70% no início do fábrico e 30% ao final. A primeira parte era destinada à compra de
utensílios e mercadorias para o abastecimento dos barracões e a segunda entregue ao final do fábrico
e destinada a pagar o saldo dos seringueiros e despesas com o transporte da borracha.
Substituindo as casas aviadoras do passado e agindo de forma semelhante, o BASA passou
a exigir dos seringalistas, como garantia para o financiamento, a hipoteca do seringal e da
produção. A safra era financiada com base em uma estimativa de produção por seringueiro e este
era definido como um trabalhador assalariado do seringalista, devendo, portanto, entregar a ele
toda a borracha produzida. Para o seringalista era interessante superestimar o volume de
produção e conseguir, dessa forma, um crédito maior; ao mesmo tempo, utilizava este argumento
para exercer pressão sobre os seringueiros para que aumentassem a produção. Ao final do
processo, o BASA pressionava o seringalista pela borracha empenhada e este pressionava o
seringueiro para entregar a ele toda a borracha produzida.
A realidade dos seringais estava mudando rapidamente, como já foi apontado. Primeiro,
em relação às regras internas de produção: à medida em que o seringalista ia transferindo para o
seringueiro, a maior parte dos custos de implantação e manutenção da colocação e permitia a
implantação de roçados de subsistência, como forma de diminuir os custos de produção, os
seringueiros iam se tornando mais autônomos e independentes em relação ao seringalista. Em
relação às regras de comercialização, com o crescente processo de organização dos seringueiros e
a presença, cada vez maior dos regatões, o seringalista foi perdendo o controle sobre o total da
produção. O resultado foi o crescente endividamento dos seringalistas com o BASA, que passou
a buscar clientes interessados em adquirir estas propriedades.
O jornal Varadouro publicou uma entrevista com um dos maiores conhecedores dos
seringais do Acre, Padre Paulino, que se referiu exatamente a este momento138:
Quando o BASA passou a financiar os seringais, substituindo as decadentes casas
aviadoras, muitos patrões ainda percorriam os sertões nordestinos em busca de mão de
obra. Mas devido à instabilidade do mercado, a maioria dos seringalistas endividou-se
com o BASA, que passou a cobrar de seus clientes juros sobre juros de suas enormes
dívidas. Os seringalistas não conseguiram agüentar o rojão e o BASA foi forçado a vender
os seringais a fim de que eles pudessem pagar suas dívidas. Os seringalistas passaram a ser
escravos do BASA e os seringueiros escravos de seus patrões. Nessa crise, os seringueiros
Os Padres Paulino e Heitor Turini, da Ordem dos Servos de Maria, do Vicariato Provincial do Acre e Amazonas,
trabalham em Sena Madureira, no Acre, desde 1955 e encaminham, regularmente, denúncias sobre a condição dos
seringueiros à imprensa e às autoridades do governo federal.
138
210
começaram a procurar as cidades mais próximas, mas ainda não era um êxodo em massa,
como ocorreu posteriormente, no início das vendas das terras para o especuladores,
grileiros e investidores do sul. De 1970 em diante foi que se começou a falar de paulistas e
da venda dos seringais. Não havendo quem avie mercadorias, os seringueiros logo fogem,
vão procurar outro meio de vida. (Jornal Varadouro N.15, junho de 1979, pág 12).
Até então, todos os anos, os seringalistas recebiam recursos de custeio para a safra da
borracha, tendo como base uma estimativa de produção, quase sempre super-estimada, pagavam
uma parte, faziam novo financiamento no ano seguinte e iam acumulando dívidas. A partir da
Operação Amazônia, foi o próprio BASA que passou a buscar interessados em adquirir esses
seringais e dar a eles outra utilização econômica, associando a compra das terras à política de
incentivos fiscais.
A política macro do governo federal, associada à campanha feita pelo governador do
Acre, Wanderley Dantas (1971-1974), no sul do Brasil, anunciando a existência de terras extensas
e baratas, prontas para serem adquiridas por empresários interessados em se beneficiar dos
incentivos da SUDAM e a dívida dos seringalistas com o BASA, foram os fatores que
determinaram a venda dos seringais para os fazendeiros. As informações que subsidiavam a
campanha incorriam em graves erros: o mapa do Acre mostrava uma rede de estradas e de infraestrutura que nunca existiu e a idéia de que os antigos seringais teriam titulação fundiária
regularizada ainda no início do século, era falsa. Era uma ótima solução para os seringalistas
falidos e também para o Banco. Nos primeiros anos da década de 70, o preço da terra era muito
baixo e os seringais foram vendidos a dois cruzeiros o hectare. Mas aos poucos esse passou a ser
um negócio muito valorizado, o preço da terra subiu, o BASA readquiriu o capital que havia
investido, os fazendeiros passaram a lotear os seringais e os conflitos começaram a surgir com
muita violência.
Estudo do Cedeplar (1979) realizado no Acre em 1978, apontou as modificações no
sistema de crédito do BASA como um dos fatores determinantes da venda dos seringais e do
surgimento dos seringueiros autônomos, na medida em que o corte de crédito do BASA colocou
para muitos seringalistas a incapacidade de continuar aviando os seringueiros. Além disso, o
BASA passou ser o proprietário de muitos seringais que haviam sido colocados como garantia
para os empréstimos. Vender estas terras para empresários sulistas era uma oportunidade
vantajosa para os seringalistas, que acabaram recebendo por elas mais do que valiam no
mercado139. O corte do crédito aos seringalistas provocou, por um lado, a concentração da
Este foi o caso, por exemplo, de Altevir Leal um dos maiores proprietários de seringais do Acre, inclusive do Seringal
Alagoas, em Tarauacá. A partir de 1958 Altevir Leal foi comprando seringais, usando dinheiro do financiamento do
139
211
propriedade da terra e, por outro, a transferência dessas propriedades para as mãos dos sulistas,
pouco interessados no extrativismo. "O impacto da política geral de crédito implantada a partir
de 1964 teve, no caso do Acre, o sentido de desprezar o seringal nativo, atividade considerada
ineficiente e irracional na perspectiva oficial", como afirma o relatório do Cedeplar.
O trecho de entrevista feita pelo jornal Varadouro com Padre Paulino, expressa essa
situação:
O primeiro comprador de terra foi um certo Alexandre que comprou o Seringal Oriental,
um seringal imenso que podia colocar até 3 mil facas e produzir até mil toneladas de
borracha. O antigo proprietário era João Martins, homem afável que levava os
seringueiros na conversa. Mas fornecia mercadorias, tornava o seringueiro um eterno
endividado e conseguia mantê-lo dentro do seringal. No Oriental havia um grande
movimento de seringueiros, eletricidade na sede do seringal, pequena estrada de 22 km
para dentro da mata, um trator e um caminhão. Havia também muitos diaristas
trabalhando no campo do seringal, botando roçados enormes para o patrão fabricar a
farinha e o gramixó; havia ainda vários comboeiros e suas famílias que viviam na sede,
próximos ao barracão. Quando construiu a escola lá no Oriental havia 130 alunos, mas
depois da venda do seringal houve um êxodo completo, restaram apenas cinco alunos. O
Oriental ficou vazio, completamente vazio. Depois esse Alexandre desapareceu, revendeu
o seringal para terceiros - especulação pura e simples da terra. Houve casos em que os
compradores de terra usaram da força, da ameaça e da presença de pistoleiros para retirar
os seringueiros que trabalhavam para os patrões seringalistas decadentes, desejosos de
venderem suas terras e liquidar suas dívidas com o BASA e comprar uma boa casa na
cidade e o carro do ano. (Jornal Varadouro N. 15, junho de 1979, pág 12).
As grandes vendas de seringais ocorreram entre 1971 e 1976. Conforme reportagem
publicada pelo jornal Varadouro, intitulada "Os Novos Donos do Acre", as seguintes empresas
adquiriram os seringais do Acre:
Maiores Propriedades do Acre: 1980
No.
1
Município
Sena Madureira
2
Sena Madureira
Nome
Hectares
Coloama – Colonizadora Agropecuária São
1 milhão de ha
Paulo-Amazonas S.A.
Nelson Taveira - Seringal Vale do Rio Chandless 975.000 ha
BASA até que não conseguiu cobrir o dinheiro e ficou endividado. Devia 3 bilhões de cruzeiros ao BASA, que exigiu que
a dívida fosse saldada. Ele colocou os seringais à venda e vendeu as terras dentro do BASA a Cr$ 12,00 o ha. O
Condomínio Tarauacá comprou e revendeu 550 mil ha para outra empresa, a Paranacre, nas cabeceiras do rio Gregório.
Grande parte dos seringais que Altevir Leal vendeu não era titulada. Mas ele vendeu da mesma forma que comprou
(Entrevista com Raimundo Ramos, seringalista, administrador da fazenda Paranacre, em Tarauacá, maio de 1978).
212
3
4
5
Paranacre
Companhia de Desenvolvimento Novo Oeste
José Mario Junqueira, Ismerindo Ribeiro do
Vale, Líbero Luchesi e outros.
Fazenda Califórnia
Santana Empreendimento Agropastoril
600.000 ha
510.000 ha
440.000 ha
6
7
Tarauacá
Feijó
Sena Madureira e
Rio Branco
Feijó
Cruzeiro do Sul
8
9
Tarauacá
Sena Madureira
300.000 ha
187.000 ha
10
Tarauacá
Condomínio Tarauacá
Coapai – Cooperativa Agropecuária Alto Iaco
Seringal Icuriã
Agronorte
11
Rio Branco
152.000 ha
12
Tarauacá
Rômulo Bonalumez
Na divisa do Acre com Amazonas
Agropastoril Leal Ind. Com. Ltda.
TOTAL
Fonte: Jornal Varadouro N. 19, Maio de 1980
427.000 ha
350.000 ha
160.000 ha
114.000 ha
5.215.000
Segundo Ferreira da Silva (1982), o fator determinante para a aquisição dos seringais no
Acre teria sido o baixo preço da terras, mais do que os incentivos fiscais, uma vez que poucas
empresas a eles se candidataram, nos primeiros anos da década de 1970. João Antônio de Paula
relaciona o interesse do grande capital nacional e internacional aos lucros acumulados no período
do "milagre econômico" e à perspectiva dos incentivos fiscais, do preço baixo da terra, da rápida
valorização e do mercado internacional de carne, como fatores decisivos para a expansão da
pecuária em grande escala. "Sobretudo, esse processo é caracterizado pelo fato de que boa parte
dessas aplicações de capital é feita sem maior desembolso, já que aproveitam incentivos fiscais e
creditícios, subsídios, benesses do Estado ao grande capital" (1980:21).
No momento seguinte houve uma estagnação do processo, provocada, por um lado, pelas
restrições formais que o INCRA passou a colocar nas transações de terras, mas
fundamentalmente, pela mudança na política econômica com relação à borracha, com a
implantação do PROBOR I, como já salientado. Quando as grandes empresas começaram a
encontrar dificuldades para legalizar as propriedades junto ao INCRA, decidiram reativar os
seringais como uma forma de demonstrar a utilização econômica da propriedade e evitar as
desapropriações por interesse social. Em 1978, por exemplo, a Paranacre, uma das maiores
empresas agropecuárias do Acre, dona de mais de 400 mil ha, decidiu reativar os seringais e buscou
financiamento no BASA para a produção de borracha em 12 seringais, 241 colocações, com uma
produção estimada de 144 toneladas. O mesmo aconteceu com outra empresa, o Condomínio
Tarauacá, que em 1977 empenhou 80 toneladas de borracha e conseguiu um financiamento de
Cr$842.000,00; em 1978 empenhou 155 toneladas e tirou um financiamento de Cr$2.300.000,00.
O surgimento, em 1975, da organização sindical no Acre, ampliando as primeiras
iniciativas já desenvolvidas pelos seringueiros em busca de autonomia, e a aplicação das normas
213
definidas pelo Estatuto da Terra, definindo o seringueiro como posseiro, constituirão o outro
lado do processo. Do encontro dos dois, os conflitos pela terra ficarão muito aguçados em todo
Vale do rio Acre.
4.1.3
Expulsão dos Seringueiros e Criação das CEBs
A primeira conseqüência da venda dos seringais para os empresários do sul foi a expulsão
dos seringueiros, uma medida que passaram a considerar essencial quando perceberam que as
terras não estavam regularizadas e poderiam ter que reconhecer os direitos de posse daqueles que
ali viviam.
Os problemas ficaram mais complexos à medida em que os fazendeiros decidiram lotear
os seringais e vendê-los para colonos pobres do sul do país que, naquele momento, estavam
sendo obrigados a vender suas pequenas propriedades em decorrência da expansão da agricultura
mecanizada no Paraná e da construção da Hidrelétrica de Itaipu. A possibilidade de vender um
minifúndio e adquirir, pelo mesmo valor, uma área duas ou três vezes maior, exercia grande
poder de atração sobre estes migrantes. Assim, em pouco tempo, os seringueiros acabaram
entrando em conflito com os colonos que, desavisados, compravam um lote de terra sem saber
que aquelas famílias viviam ali há gerações.
Como se verá em vários relatos apresentados a seguir, a motivação principal de pequenos
e médios proprietários estava diretamente associada ao diferencial do preço da terra entre o sul e
o Acre, e não à possibilidade de acesso aos incentivos fiscais.
Em 1976, o Padre Heitor Turini escreveu uma carta ao presidente General Ernesto
Geisel, na qual relata os problemas que ocorriam no Acre naquele momento: abandono dos
seringueiros, venda de seringais para grandes empresas, venda de lotes nos antigos seringais a
pequenos agricultores do sul, expulsão dos seringueiros, transcrevendo inúmeros depoimentos
sobre estes conflitos. Segundo suas palavras, a situação podia ser resumida da seguinte forma:
Enquanto o Brasil precisa da borracha natural, no Acre se encontram centenas de
estradas de seringueiras abandonadas. A produção caiu de milhares de toneladas de
borracha, centenas de famílias de seringueiros são deslocadas do próprio habitat, com
pequenas ou irrisórias indenizações, em direção à periferia das pequenas cidades,
aumentando o número de desempregados. Os seringueiros já pobres e às vezes em
condição de escravidão, ficam mais pobres e chutados para fora. Chegou o grande
fazendeiro do sul, às vezes com recursos próprios, outras vezes ajudado pelo governo.
Um comprou 8 mil ha, outro 15 mil, outro 50 mil, outro 100 mil, outro comprou 200 mil
ou mais. Começaram as grandes derrubadas, os incêndios dia e noite, centenas de
214
maravilhosas árvores derrubadas, incendiadas, perdidas, porque em 90% dos casos não é
possível aproveitar a preciosa madeira para fins industriais devido à falta de transporte.
No município de Brasiléia, relata Padre Heitor Turini, existem 14 seringais onde residem
780 famílias, com 4.684 pessoas, sendo que todos os seringais estão desmantelados, sem
financiamento. Os seringueiros estão completamente abandonados pelo patrão que não tem
recursos para financiar a mercadoria. Todas estas famílias vivem um verdadeiro inferno sem saber
o que se passa, como será o dia de amanhã, sem um metro quadrado de terra própria. Se uma
pessoa física pode comprar milhares de ha de terra, por que não consagrar este direito também ao
seringueiro, visto que a lei é a favor de todos os brasileiros sem distinção de raça, cor ou religião?
pergunta Padre Heitor. Estes pequenos colonos encontram, ainda, os seringueiros em suas terras.
Um, de Palotina, Paraná, dizia: "Nós não queremos brigar com os seringueiros, apenas queremos
que aqueles que nos venderam a terra com tantas mentiras, tomem as providências".
Os depoimentos dos seringueiros e colonos, registrados naqueles anos, evidenciam a
reação, de um lado, daqueles que viviam há gerações sem que a propriedade da terra fosse
questionada e, de outro, daqueles que, em confiança, adquiriram lotes de terras e os encontraram
ocupados. Os depoimentos dos seringueiros:
O Paixão já mandou atravessar o seringal para a venda, mas não se sabe nada, há
confusão, estamos esperando a revolução, estou com 44 anos, sempre nesta casa e nesta
terra. (Berto Araújo, 44 anos, 11 filhos. Seringal Oriente, Alto Acre, 11 de outubro de
1973).
Vivo tão assombrado porque os compradores do seringal já estão chegando e metem o pé
na bunda do pobre. Num diabo deste, que Deus me perdoe, eu ponho chumbo. Aqui há
dificuldade de carestia monstro, cobra engolindo cobra; a borracha a Cr$4.00 o kg e o
café a Cr$18,00 o kg. (Manoel Pimenta, 45 anos, 11 filhos, Colocação Buenos Aires,
Seringal São João, 26 de junho de 1974).
Este é um comunismo, o que fazem estes compradores; é a força sobre a justiça. Sem
espaço ninguém vive, só a alma vive fora do espaço, nós estamos acostumados a
ladroeira, mas agora querem tirar até a terra. Os compradores dizem que os padres são
bobos e mentirosos, os patrões são piratas e carcomidas, vendem pelo preço da morte:
uma lata de querosene custa Cr$100,00. Eu e minha família confiamos nos poderes de
Deus, no INCRA e nas Forças Armadas; do contrário na boca da espingarda. (Manoel
Rufino de Araújo, Seringal São Pedro, Brasiléia, 12 de fevereiro de 1975).
215
Cortei neste ano 800 kg de borracha e o maior problema, nós não temos lugar próprio,
nós não temos terra, nós não pode comprar terra e o governo não dá terra. A gente
trabalha sem gosto por não poder construir uma casinha melhor. O patrão diz: ‘a
qualquer momento você pode ser jogado fora’. Nós espera melhorar todo o dia, temos
que ter fé. (Geraldo Paulo da Silva, 52 anos, 8 filhos, Seringal Riozinho).
Trabalhei muito e ganhei nada. Fazem mal em vender o seringal, vão atentar a quem
mora aqui há tantos anos. Se fosse meu, não vendia para prejudicar aos outros fregueses.
É uma desacatação danada aos pobres. Moro aqui há 41 anos. Estou para morrer, não
quero sair daqui. (José Antonio Figueiro, 79 anos, Arraialzinho, 29 de novembro de
1973).
Se aqui venderem vai ser um cilibiró dos diabos. Se venderem o seringal São Francisco,
nós sai de pé na bunda e aonde vai? Por que vender e por os pobres para fora? Faz 48
anos que moro aqui. Nasci aqui. Não quero sair daqui, não por mim, é por meus filhos e
pelas outras doze famílias que moram aqui. Até os índios tem direito à terra, será que nós
somos menos que os índios? Por que o governo não dá 100 hectares de terra para cada
família? Estamos sem terra, com um horror de terra que há. (Anônimo e sem data,
Seringal São Francisco).
Em Brasiléia, relata Padre Heitor Turini, tem 46 famílias de paranaenses e a estrada chega
até lá mas o Banco diz que não pode emprestar dinheiro porque os colonos não tem títulos. Lá
no sul disseram que a estrada chegava até a gleba, mas não é verdade. Algumas famílias já
voltaram ao sul e outras estão como confinadas e não podem absolutamente voltar por falta de
recursos. Uma viagem destas para uma família, custa um patrimônio. O caso do João Sutil é um
exemplo. Com 39 anos, casado, apanhou malária na viagem, no trecho de Porto Velho a Rio
Branco, quando chegou em Brasiléia estava muito grave e morreu deixando nove filhos órfãos e a
esposa ainda grávida. Estas famílias chegam sem nenhum apoio por parte do governo, conforme
o depoimento dos colonos:
Vivo aqui há 3 anos, tenho 6 hectares de terra, sem documento, perto da rodovia, a 4 km
de Boca do Acre, Amazonas. Vim do município de Primeiro de Maio, Paraná, em
24.12.1973. Levamos 14 dias de caminhão até Rio Branco, gastamos Cr$6.500, e de Rio
Branco até Boca do Acre, um dia de baleeira, CR$1.700,00. (Pedro Alexandre da Silva, 48
anos, 9 filhos, Boca do Acre, Amazonas, 12 de abril de 1976).
Vendi tudo que eu tinha, vim de Dourado, no MT. O terreno era pequeno, diziam que
aqui a terra era maravilhosa e custava CR$100 o alqueire, mas quando cheguei me
216
disseram que a terra estava a 50 km da rodovia. Não comprei terra e nestes três anos
comi todo o dinheiro que ganhei vendendo em Dourado. Família pesada, fiquei na
miséria. Aqui tenho 6 hectares, mas sem documento algum. Espero participar no
desenvolvimento da terra e um dia possuir, se o INCRA resolver. O particular vende,
pega o dinheiro e deixa a briga para a gente. (Manoel Pereira, 57 anos, Boca do Acre,
Amazonas, 12 de abril de 1976).
Vendi tudo o que eu tinha em Linhares, Espírito Santo e comprei terra em Boca do Acre.
Fomos enganados. Disseram que a terra estava perto da rodovia, na realidade está dois
dias a pé dentro da mata. Como posso chegar até lá com crianças pequenas? Já gastei o
dinheiro na terra, mas voltarei ao sul, voltarei à minha terra. Perdemos tudo.
Começaremos tudo de novo. Deus há de ajudar. Lá no sul, vendi os meus 55 hectares de
terra por CR$130.000,00 e comprei aqui em Boca do Acre 300 alqueires a CR$250,00 o
alqueire. Para a gente trabalhar aqui é preciso a estrada e grandes recursos, porque o
município não ajuda em nada e o Banco só ajuda se tem a estrada, mas aqui não há
estrada. (Raimor Camiletti, 45 anos, Boca do Acre, Amazonas, 12 de abril de 1976).
No Acre as terras foram compradas até por CR$ 7,00 o ha e revendidas aos pequenos que
vieram do sul por CR$150,00 e CR$180 o ha. Pergunta Padre Heitor:
Por que o governo não vende também aos seringueiros? Em outros países as terras foram
vendidas aos colonos pagando até em 20 anos, na Alemanha até em 30 anos. Antes de
vender a terra, seja garantido o direito daquele que já vive na terra, seja posseiro ou não.
Foi nesse contexto de conflitos que surgiu a primeira reação a favor de seringueiros e
pequenos agricultores. A Igreja Católica decidiu criar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
uma iniciativa voltada para a organização dos trabalhadores através da reflexão sobre a doutrina
cristã e da conscientização dos direitos definidos pela legislação agrária.
As CEBs começaram a ser formadas em 1971, sob a orientação do bispo Dom Giocondo
Grotti, na periferia de Rio Branco. As reuniões eram baseadas em relatos e análises sobre os
problemas vividos pelas pessoas presentes, depois eram feitas as rezas e, aos domingos, visitavam
as famílias do bairro e os hospitais. Com a morte repentina de Dom Giocondo, em um acidente
de avião, o trabalho teve continuidade sob a coordenação do bispo Dom Moacyr Grechi. Os
líderes das comunidades começaram a expandir sua atuação dos bairros da cidade para as
colônias, ao longo dos rios e nos seringais. Em 1981 a Prelazia do Acre e Purus contava com
1.000 grupos de evangelização, 1.200 monitores, 400 catequistas, 70 grupos de jovens, 130
centros comunitários e 200 coordenadores de comunidades.
217
Segundo Osmarino Amâncio, líder seringueiro do STR de Brasiléia, a primeira vez que os
seringueiros reagiram, sob orientação da Igreja, foi em 1971, no Seringal Filipinas, quando o
Bispo fez uma primeira discussão com o pessoal. Em 1973 eles criaram as primeiras
Comunidades Eclesiais de Base. "Nas CEBs já se discutiu os incêndios nas casas, que já tinha
havido no Filipinas, que já tinha havido numa série de seringais. O próprio pessoal já lá no Iaco,
já enfrentava essa situação, em Sena Madureira, em Boca do Acre; foi generalizado", afirmou. O
relato de um dos participantes mostra o início deste trabalho:
Nós começamos nossa comunidade através de umas voluntárias italianas que vieram
trabalhar conosco. Nós rezávamos nas casas uma novena no mês de maio. E como nós já
tínhamos o costume velho de rezar novena, quase ninguém ignorou. Mas depois que
rezamos as novenas do mês de maio, elas começaram a falar prá nós de uma história de
monitor. Eu fiquei admirado com a história do monitor, não sabia nem o que era
monitor. Aí elas nos convidaram para a gente se ajuntar. Fazer aquele grupozinho e pegar
a ler o evangelho. Então começamos aquele grupinho de pouca gente. Isto foi em 1971.
Até que chegou o dia delas fazer o convite prá vir em Rio Branco. Convidaram 14 entre
homem e mulher. E nós viemos fazer o treinamento. (Jornal Varadouro N. 23,
agosto/setembro de 1981).
A mudança que estava sendo introduzida nas práticas da Igreja era muito profunda,
especialmente nos seringais, como demonstra o depoimento de um monitor: "Antes, os padres,
quando iam fazer uma desobriga nos seringais, iam prá dentro da casa do patrão. O seringalista era
quem convidava os seringueiros para comparecerem em sua casa, quando o padre passava. Os
padres não falavam em posse de terra, só davam razão e elogiavam os patrões". (Jornal
Varadouro N. 23, agosto/setembro de 1981).
Foi a Igreja Católica, no Acre, que iniciou o processo de organização dos seringueiros e,
dessa forma, antecedeu a formação dos Sindicatos de trabalhadores rurais, que teve início em
1975, preparando o terreno para que outras formas de resistência pudessem se desenvolver nos
anos seguintes. Conforme depoimento de um seringueiro ao jornal Varadouro, no início os
fazendeiros e grileiros levaram certa vantagem, mas aos poucos a realidade começou a mudar:
Muito companheiro fugiu para a Bolívia ou veio prá cidade. Outros ficaram mais por
teimosia. O fazendeiro sempre em cima da gente, acoxando. Nós não sabia de leis e não
estava todo mundo unido. Mas esse tempo já era. Agora que estamos unidos é o
fazendeiro que está com medo. (Jornal Varadouro N. 23, agosto/setembro de 1981).
218
Os cinco anos decorridos desde a venda dos primeiros seringais, em 1970, até o
surgimento dos Sindicatos rurais, em 1975, podem ser vistos como um período de choque entre
realidades muito diferentes entre si. Depois de cem anos durante os quais predominou uma única
forma de produção, a dos seringais, em poucos anos tudo se alterou. Embora os seringueiros
tenham se beneficiado, no início, com o enfraquecimento das empresas seringalistas, uma vez
que conseguiram viver com relativa autonomia e as consequências prejudiciais da quebra do
monopólio da borracha tenham sido revertidas através da proteção aos preços, por meio da
criação da TORMB, a venda dos seringais, da forma como ocorreu, afetou a vida de milhares de
famílias, de forma irreversível.
E o regime dos seringais, que até então era visto como um sistema que mantinha os
seringueiros em uma espécie de escravidão, passou a ser reconsiderado, em comparação com o
que estava ocorrendo sob a égide dos paulistas. Pela primeira vez, os acreanos refletiam sobre sua
própria história, movidos pela comparação entre a vida nos seringais e nas fazendas. Por pior que
fossem as condições de vida nos seringais, o paternalismo dos seringalistas assegurava que os
seringueiros pudessem ali viver sem grandes inseguranças, repassando aos filhos uma profissão
que, no mínimo, vinha assegurando a reprodução daquelas famílias há algumas gerações.
A expulsão dos seringueiros de suas posses e a completa falta de alternativa de emprego
para um trabalhador analfabeto e sem qualquer experiência de vida urbana, associada ao alto
nível de concentração da terra, em enormes latifúndios, nos quais o objetivo principal era
implantar pastagens que evitariam o reconhecimento das posses e a desapropriação por interesse
social, produziram, a princípio, uma certa paralisia na sociedade. Aos poucos, porém, os
confrontos foram se instalando, os trabalhadores começaram a reagir e a resistência começou.
4.2.
SERINGUEIROS POSSEIROS
A venda dos seringais gerou uma grande polêmica jurídica no Acre a respeito das origens
da propriedade da terra e da legalidade dos registros imobiliários dos seringais, trazendo à tona a
questão do estatuto das relações sociais entre seringueiros e seringalistas e entre estes e os
fazendeiros. De um lado, colocaram-se advogados dos grupos sulistas, buscando comprovar a
titularidade das áreas adquiridas; de outro, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG) reconhecendo, pela primeira vez na história do extrativismo, os direitos
dos seringueiros como posseiros, de acordo com o Estatuto da Terra. A compreensão desse
processo é fundamental, uma vez que dessa interpretação dependia os direitos que eles poderiam
vir a ter em relação à terra.
219
4.2.1
A Situação Fundiária do Acre
A peculiar situação fundiária do Acre é resultado do processo histórico de constituição de
seu território que se caracterizou, conforme detalhadamente descrito no Capítulo Dois, por
disputas em torno da definição de suas fronteiras internacionais, com a Bolívia e o Peru, gerando
uma diversidade de domínios institucionais. Soma-se a esse contexto, o sistema de produção que
ali se implantou e a peculiar forma de ocupação dos seringais. Assim, é preciso analisar tanto a
configuração político-administrativa do território, quanto as características da propriedade dos
seringais, para se compor um quadro completo dos conflitos surgidos na década de 1970.
Seis momentos diferentes caracterizaram a história político-administrativa do Acre, com
reflexos sobre a emergência dos conflitos modernos. (i) O primeiro, de 1852 a 1898,
correspondeu à fase inicial de estruturação da economia extrativa da borracha, durante a qual
aquele território esteve sob a administração da Província do Amazonas. (ii) Depois, durante 111
dias, no ano de 1898, ficou sob jurisdição da Bolívia, através da implantação de um posto
alfandegário próximo à área limite entre o território brasileiro e boliviano. (iii) Em seguida, um
movimento revolucionário sustentou, durante 7 meses, de julho de 1899 a março de 1900, a
República Independente do Acre, sob a liderança de Luiz Galvez. (iv) Conflitos armados,
liderados por Plácido de Castro, levaram à Revolução Acreana, entre 1902 e 1903. (v) Em 1903, a
região foi ratificada como brasileira pelo Tratado de Petrópolis e definida como Território
Federal. (vi) Por último, em 1962, o Acre foi transformado em Estado da Federação.
Contrariando todas as expectativas que haviam surgido em decorrência do conflito
armado, o Acre não foi erigido em estado da federação, mas transformado em território, o que
significava que todas suas terras eram administradas diretamente pela União, assim como o
controle sobre suas receitas. Além de ficar subordinado à União em razão dessa peculiar solução
político-administrativa, também o Acre enquadrava-se no regime especial de região de fronteira,
estabelecido pela Lei N. 601 de 1850, que reservava uma faixa de 66 quilômetros, dentro da qual
a aquisição de terras era gratuita. A partir da implantação do regime militar em 1964 essa faixa de
fronteira foi considerada de segurança nacional e estendida para 150 km. Em 1971, pelos mesmos
motivos, foram reservados 100 km de largura em cada lado do eixo das rodovias já construídas,
em construção ou projetadas na Amazônia. O resultado dessa regulamentação implicou em uma
situação contraditória: apesar de ter sido transformado em Estado, em 1960, por ser região de
fronteira e ter projetada uma estrada que atravessa seu território, todas as terras acreanas
permaneceram sob jurisdição da União.
O Tratado de Petrópolis estabeleceu, em seu artigo 2o: "A transferência de territórios...
compreende todos os direitos que lhes são inerentes e a responsabilidade derivada das obrigações
220
de manter e respeitar os direitos reais adquiridos por nacionais ou estrangeiros segundo os
princípios do direito civil". Ou seja, o Brasil passou a respeitar os direitos conferidos pela
legislação boliviana em terras que antes do Tratado integravam seu território, bem como a Bolívia
se obrigou a respeitar os direitos conferidos pelo Brasil em solo então tido como brasileiro. O
decreto 2.543-A, de 1912, e os decretos 10.105 (05/03/1913) e 10.320 (07/07/1913),
reafirmaram como válidos os títulos dados anteriormente à assinatura do Tratado de Petrópolis
(Linhares 1992:92). O artigo 10 determinou ao governo federal a obrigação de discriminar e
reconhecer as posses das terras do Território para expedição dos títulos definitivos de
propriedade e o parágrafo 2o definiu que a área máxima de cada lote seria de 10 km em quadra,
igual a 10.000 ha.
A interpretação desse dispositivo legal requeria a clara definição de qual parcela do
território do Acre era considerada brasileira e sobre a qual não teria havido nenhuma contestação
e qual esteve em disputa com a Bolívia. Em nenhum momento se questionou o fato de que a
região acima do paralelo 10o 20’ era brasileira. Por outro lado, a região localizada entre os
paralelos 7o e 10’, o chamado Acre Meridional, foi ocupada por brasileiros e toda a regularização
das fronteiras sempre levou em consideração o princípio do uti possidetis. Assim, além dos direitos
adquiridos pelos que detinham títulos de propriedade e que teriam sido assegurados pelo Tratado
de Petrópolis, tratava-se também de verificar qual o tipo de documento que assegurava os direitos
de propriedade, em qualquer parte do território acreano (conforme Carbone 1999).
Em nenhuma das diferentes fases administrativas as propriedades acreanas foram
regularizadas, fazendo surgir uma prática que se tornou comum e se consolidou na constituição
da propriedade privada no Acre: o registro em cartório (Silva 1982:31). Estes registros, por outro
lado, eram feitos em números de estradas de seringa e não em hectares, uma vez que eram as
árvores que tinham valor e não a terra e nenhuma propriedade havia efetivamente demarcado
seus limites, como se descobriu quando estes seringais foram vendidos. Como afirma Lucy
Linhares, para ter acesso aos subsídios da SUDAM, era preciso que fossem realizadas as
transferências de propriedade e esse processo evidenciou irregularidades históricas presentes nos
Registros de Imóveis dos antigos seringais (Linhares 1992:24).
Na verdade não foram muitos os títulos emitidos antes do Tratado de Petrópolis. Os
primeiros títulos definitivos de propriedade sobre as terras acreanas foram emitidos pela
Província do Amazonas, antes de 1898, outros durante a administração boliviana e, em 1903, pelo
Estado Independente do Acre.
O problema é que estes títulos eram, em geral, sobre uma parte ínfima do seringal, aquela
correspondente ao barracão, à casa do seringalista, às atividades agrícolas da sede do seringal.
221
Como esses títulos eram requeridos ao Governo do Amazonas e sobre eles pagava-se impostos,
esta deve ter sido a razão do registro cobrir apenas uma parte pequena da área efetivamente
explorada. Depois de 1912, o Governo designava técnicos em topografia que mediam pela beira do
rio entrando de cada lado e passando depois um traço reto de um ponto ao outro, completando uma
área de até 10.000 ha. Havia, portanto, sempre, uma área não demarcada mas ocupada em função da
permanente expansão dos seringais e considerada por todos como parte da propriedade.
Assim, poderia ser interpretado que, "...à época do Tratado, o Acre era pleno de terras
devolutas, na medida em que os títulos cobriam apenas uma parte das áreas detidas pelos
seringalistas, isso considerando que estavam todos de acordo com as exigências legais da época"
(Linhares 1992:93). Ou então, todas as áreas estariam legalizadas, desde que fosse reconhecida
apenas a área registrada, ou seja, seringais de extensão pequena, de 2.000 ou 3.000 hectares.
Ocorre que as áreas vendidas aos fazendeiros incluíam toda a extensão explorada pelos
seringalistas, definida em estradas de seringa, mas sem qualquer tipo de registro legal.
Esse é o ponto central do conflito pela terra na especificidade que adquiriu no caso do
Acre e no contexto que interessa nessa Tese. Se os seringalistas tinham registros legais apenas de
parte dos seus seringais, qual seria a situação jurídica dos seringueiros que viviam nestas áreas não
tituladas e quais direitos detinham sobre elas? Seriam os seringalistas posseiros nestas áreas, assim
como também o seriam os seringueiros? E qual o tratamento legal dado a estas posses?140
A polêmica reside no fato de que, para alguns advogados, não seria possível considerar
como legais as propriedades acreanas pelo fato de terem sido transcritas nos Registros de
Imóveis. Para outros, estas transcrições eram feitas de boa fé, baseadas na convicção dos
seringalistas de que eram donos legítimos destes imóveis, o denominado "animus domini",
permitindo a aplicação do princípio da "propriedade aparente".
Por outro lado, podia-se argumentar que, dadas as peculiaridades da produção extrativista,
os seringalistas exerciam o "animus domini" somente em relação ao monopólio sobre a produção
e não sobre a terra, o que tornaria os seringueiros tão posseiros quanto os seringalistas. Em
outras palavras, a relação entre seringalistas e seringueiros era definida em torno da
comercialização da borracha e não da propriedade da terra, o que tornaria o seringueiro dono de
sua colocação, assim como o seringalista seria dono da parte da propriedade sobre a qual exercia sua
atividade comercial. Este argumento seria reforçado pela prática dos seringueiros de comprar e
vender as colocações entre eles com liberdade.
O debate jurídico que se desenvolveu no Acre sobre esses temas é muito rico e foi objeto da Dissertação de
Mestrado de Lucy Paixão Linhares apresentada ao Museu Nacional, sob o título "Animus Domini – uma análise da
política de discriminação de terras públicas no Acre"(1992). Somente estamos utilizando alguns elementos para
contextualizar os conflitos, embora o tema seja bem mais complexo do que essa síntese pode deixar transparecer.
140
222
Quando os seringalistas se interessaram em vender seus seringais, passaram a buscar
argumentos jurídicos para justificar o domínio sobre o conjunto das áreas e não somente sobre a
parcela registrada. Suas áreas foram chamadas de "domínio por expansão", ou "esticamento",
processo através do qual justificavam a incorporação de novos seringais aos seus domínios.
Em documento do Governador do Acre, Wanderley Dantas, ao Ministro da Justiça,
Armando Falcão, em 1973, o governo estadual defendeu para o Acre a discriminatória e não a
anulatória dos registros feitos em cartório, argumentando que os seringais caracterizavam-se
como posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária ou havidas do primeiro
ocupante, que se achavam em exploração e eram morada habitual do posseiro, dando direito à
expedição do título de propriedade sobre o máximo de 10.000 ha. A anulação, argumentou o
governador, só poderia ser feita depois da discriminação de 10.000 ha.
Diante da vinda de empresas do sul fez a sugestão de que fosse dada nova oportunidade
de regularização das terras com abertura de novo prazo para revalidação de concessões, ficando
em cada seringal uma gleba de 15% destinada à colonização. O Registro Imobiliário do Acre
estava a cargo da União até a 1a Constituição Estadual e esta teria sido a razão pela qual os
proprietários dos seringais transcreviam os títulos de domínio nos registros de imóveis, o que o
faz pertencer à pessoa que registra. O registro tem função de meio de aquisição de propriedade
do imóvel. "A defesa que fazemos das grandes áreas para objetivos sociais definidos, tem
justificativa na concepção histórica e modelo de ocupação original dos seringais acreanos,
possibilitando que haja investimentos de maior porte", registrou o documento do então
governador.
As sugestões apresentadas pelo governador incluíram: abrir novo prazo para os
possuidores de terras legitimarem suas posses, para expedição de título definitivo e só após isso
iniciar a discriminação do público e do particular; considerar como domínio válido o adquirido
em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada; possibilitar que, por força das
transcrições no Registro de Imóveis do tempo do Território, possa haver novas transferências
dos imóveis e oportunidade de financiamento; admissão, pelo INCRA, da área mínima de 10.000
ha exigindo a exploração fiscalizada dos seringais nativos, permanência dos seringueiros, se
possível, titulando-lhes a área; aos possuidores de mais de 10.000 ha, exigir reserva territorial de
15% para fins agrícolas ou de colonização; para expedição do título de propriedade em áreas de
10.000 ha, exigir só justificação administrativa de posse mansa e pacífica; aos possuidores de mais
de 10.000 ha permitir titulação excedente exclusive de 15% obrigando em 5 anos cultura
definitivamente implantada.
223
A partir de 1975, o INCRA iniciou o processo de discriminação das terras acreanas e
passou a se fundamentar em sistemática definida pela Lei 6.383, de 7/12/1976. A discriminação
de terras consiste em separar o que é de domínio público, patrimônio público, terras devolutas,
dentre eles, e o que é de domínio particular, propriedade privada. Essa lei veio agilizar os
procedimentos discriminatórios, dividindo-os em dois processos: o administrativo e o judiciário.
Toda essa situação complexa e que alimentava inúmeros debates e argumentos de todos
os lados, foi equacionada com a aprovação da Exposição de Motivos No.77, de 10.10.1978,
(Jornal Varadouro N. 15 de junho de 1979, pags 20 e 21) assinada em conjunto pelos Ministérios
da Justiça e da Agricultura e pelo Conselho de Segurança Nacional. Foram normatizados os
procedimentos necessários para a realização das discriminatórias, a partir das seguintes
conclusões: a situação jurídica das terras do Estado do Acre - como de resto de toda a Amazônia
Legal - pode ser solucionada com base na legislação editada sobre terras a partir de 1850, que
convalidou, ao longo do tempo, situações de fato existentes, desde posses legitimamente tituladas
até meras ocupações, erigindo-as em propriedades.
Pelas novas regras, o INCRA passou a aplicar as alíneas "e" e "f" do Art. 5o do DecretoLei 9.760, de 5 de setembro de 1946. Esse decreto, que nunca havia sido aplicado antes, pelo
menos na Amazônia, passou a ser reivindicado pelos proprietários das grandes áreas, porque
declara de domínio particular diversas situações 'constituídas' à época (1946), incluindo todos os
seringais, conforme as alíneas citadas:
e) Por se acharem em posse contínua e incontestada com justo título de boa fé, por
tempo superior a 20 anos.
f) Por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30 anos, independentemente de
justo título e boa fé.
Após a Exposição de Motivos, por meios administrativos, o INCRA passou a reconhecer
na comprovação da propriedade privada: título definitivo, registro de imóveis com cadeia
dominial de 20 anos e certidão de posse com cadeia dominial de 30 anos. Com esses
documentos, o INCRA passou a reconhecer a propriedade que neles estivesse registrada. Se a
área comprada era maior, encaminhava para o processo judicial, quando o comprador tinha que
provar a posse, ou seja, provar que não era terra pública.
No Acre isso significava que todos os seringais vendidos a especuladores e grileiros, a
grupos nacionais e multinacionais, ou tomados por eles de forma violenta, passaram a ser
propriedade privada inquestionável. Antônio Carlos Carbone - coordenador fundiário do INCRA
em Rio Branco, afirmou: "Quem tem justo título já se pressupõe que tem boa fé. Justo título
224
pode ser uma escritura registrada ou uma cadeia dominial de 20 anos em 1946. Quem não o
possui aqui no Acre, legal ou forjado em cartório?"
A Exposição de Motivos No.77 consolidou a categoria denominada Domínio por
Ocupação, regularizando a posse dos proprietários dos antigos seringais e o INCRA reconheceu
a ocupação, encerrando a polêmica sobre a regularização fundiária das terras por reconhecer a
legalidade dos seringais acreanos e a legitimação dos títulos, com base nas peculiaridades da
legislação da época em que foram emitidos.
Os principais aspectos da E.M são os seguintes141:
1. Legitima os títulos de concessão outorgados pelo governo brasileiro antes de 5 de
março de 1913 (data do Decreto 10.105), reconhecendo, inclusive, os títulos de posse emitidos
pelo prefeitos dos Departamentos que haviam sido considerados ilegais.
2. Considera os rumos e confrontações descritos nos títulos e concessões toda vez que as
áreas concedidas não estiverem consignadas numericamente, como é o caso da maioria dos
seringais, cujos limites são extremamente ambíguos.
3. Considera como aptos os registros particulares de compra e venda desde que os
impostos tenham sido pagos até a publicação do decreto. Para os que pagaram os impostos
depois, os registros serão considerados legítimos se as terras transferidas tiverem sido adquiridas
por posse e os que as transferiram tiverem sido seus primeiros ocupantes. Esta disposição
permitia reconhecer as transcrições imobiliárias dos seringais como válidas, mesmo que sua
origem fosse baseada na posse, desde que a cadeia dominial fosse ininterrupta desde o primeiro
ocupante.
4. Fica cancelada exigência anterior que determinava que a posse deveria ser exercida
diretamente pelo proprietário, admitindo-se o uso do preposto.
5. Passa a ser direito adquirido o reconhecimento de posses até o limite de seiscentas
vezes o módulo rural, conforme estipula o Estatuto da Terra. Fora disso o imóvel é considerado
latifúndio. O módulo no vale do Acre é de 55 ha e no Juruá 100 ha, o que significa que no
primeiro era possível regularizar áreas até 33 mil ha e no segundo até 60 mil.
6. Na ausência de título justo e de boa-fé, fica garantido o reconhecimento da posse desde
que tenha sido exercida por trinta anos até 1946. Por se acharem em posse contínua e
incontestada com justo título de boa fé, por tempo superior a 20 anos.
7. A existência do barracão, rancho ou casa passa a ser considerada prova de morada
habitual, assim como os indícios de cultura efetiva ou exploração extrativa de castanhal ou
seringal e campos de criar, tomados como prova de exploração da terra e requisito para a
O resumo sobre as mudanças trazidas pela Exposição de Motivos 77 foi baseado em Linhares (1922) pags 110 a
122 e em Carbone (1999).
141
225
regularização da ocupação. Mesmo que tenham sido explorados pelos seringueiros, passam a ser
provas da exploração do seringal pelo seringalista.
8. O pretendente ao Domínio por Ocupação só terá sua pretensão atendida se concordar
em regularizar a situação dos posseiros existentes na área em parcela não inferior à Fração
Mínima de Parcelamento, que no Acre era em torno de 20 ha.
9. Se o domínio for titulado, o interessado terá reconhecida a área constante do título e a
excedente será reconhecida como ocupação, situação denominada de "domínio por extensão".
10. Quando diversos imóveis tiverem sido adquiridos por uma só pessoa, cada seringal
pode ser reconhecido até o limite de 60 mil ha, considerando não a denominação do imóvel mas
o número de proprietários existentes em 1946, acabando-se, dessa forma, os problemas de limites
para o reconhecimento dos grandes seringais nas regiões do Alto Juruá e Alto Purus, uma vez
que essas empresas se formaram pela compra de diferentes seringais e cada um dele poderá se
legalizar até 60 mil ha.
Para a regularização das posses incidentes em terras de domínio privado, foi utilizado o
Termo de Acordo, previsto no item 5.7 do Roteiro de Aplicação da Exposição de Motivos nº
77/78, que estabelece o seguinte: "Quando se verificar, nos casos de domínio titulado e de
domínio por ocupação, que sobre tais áreas incidem posses com ancianidade igual ou superior a
um ano e dia e que não estejam amparadas pela legislação a que se refere o 'rol', o Presidente da
Comissão Estadual, antes de proferir julgamento no processo principal, proporá acordo ao titular
do domínio no sentido de abrir mão de parte da área a que teria direito, se porventura não houver
excesso àquela que lhe será deferida, para regularização das posses dos ocupantes nela existentes,
recebendo estes o tratamento de posseiros, de acordo com a legislação agrária em vigor". Este
dispositivo, utilizado por ocasião dos procedimentos discriminatórios, buscava encontrar uma
solução administrativa para a coexistência pacífica entre proprietários e ocupantes no mesmo
imóvel e foi a base para inúmeros acordos entre seringueiros e fazendeiros nos anos seguintes.
Em princípio o processo deveria restringir-se às áreas atingidas pelas discriminatórias
administrativas conduzidas pelo INCRA, mas abriu-se exceção para os projetos financiados pela
SUDAM ou outros órgãos públicos. Assim, os beneficiários da nova regulamentação da terra no
Acre foram todas as empresas que adquiriram os seringais e que constam do quadro apresentado
anteriormente.
Somando as grandes áreas que passam pelas discriminatórias com aquelas que se situam
em projetos com financiamentos da SUDAM, BASA, Proterra ou PROBOR, obtém-se um total
superior a 5 milhões de ha, um terço da área total do Estado, sendo transferidos para os grandes
226
grupos econômicos, enquanto seringueiros, castanheiros, pequenos colonos, posseiros e índios
eram despojados de suas terras e deslocados paras as cidades, criticou o jornal Varadouro.
A CONTAG questionou a legislação, defendendo uma definição fundiária em favor dos
pequenos e médios agricultores que efetivamente trabalhavam e reinvestiam na região, além de
maior severidade na legitimação de títulos, diminuição das áreas a serem reconhecidas e tamanho
das áreas médias, dando-se absoluta prioridade para as pequenas. Afirmou que o governo deveria
incrementar as discriminações e anulações de títulos de terras e desapropriar áreas onde viviam e
trabalhavam muitos posseiros, nas proximidades das cidades, para melhorar o abastecimento e
dar emprego aos desempregados.
Conforme foi visto anteriormente, o instrumento utilizado durante a Discriminatória
Administrativa, visando a regularização das posses incidentes em terras de domínio privado no
Estado do Acre, foi o Termo de Acordo, previsto no item 5.7 do Roteiro de Aplicação da
Exposição de Motivos nº 77/1978. Este dispositivo, utilizado por ocasião dos procedimentos
discriminatórios, buscava encontrar uma solução administrativa para a coexistência pacífica entre
proprietários e ocupantes no mesmo imóvel.
Decorridos mais de dez anos da aplicação desses procedimentos, o documento do Plano
de Reforma Agrária do Acre, de 1985, fez um balanço dos resultados, evidenciando seus limites:
o prazo definido para os trabalhos da Comissão de Discriminação e sua posição, como simples
interveniente entre as partes acordantes, não era suficiente para que se obtivesse a concretização
dos acordos; os trabalhos da Comissão eram encerrados, na maioria das vezes, apenas com o
'Termo de Compromisso' do proprietário em liberar uma parcela de sua área em favor dos
ocupantes. A partir daí competia aos Projetos Fundiários a responsabilidade de obter uma
fórmula que fosse satisfatória a ambas as partes e permitisse a materialização do acordo.
Para isso ocorrer existiam várias dificuldades: dependia exclusivamente da vontade das
partes aceitar os termos de negociação propostos e não da ação do INCRA; os altos custos da
demarcação topográfica e a falta de recursos dos interessados, impediam a materialização dos
acordos; por se tratar de posse constituída sobre propriedades privadas, era necessário um
intenso trabalho cartorário, para lavrar e registrar tantas escrituras públicas quantos fossem os
ocupantes do imóvel que precisavam ser reconhecidas pelo INCRA; os acordos, em sua maior
parte, implicavam no compromisso de posterior remanejamento do ocupante, fato que não era
aceito pelo detentor da posse.
Em 1985 os trabalhos de discriminação administrativa, em cujo bojo se efetuaram os
acordos, já haviam sido concluídos em uma área que atingia, aproximadamente, 32% do Estado,
mas considerando o número de proprietários e ocupantes envolvidos nessas discriminatórias,
227
verifica-se que o quantitativo de acordos efetivamente concluídos era mínimo. Conforme afirmou
Otília Sampaio, Superintendente do INCRA no Acre, em entrevista:
A Discriminatória separa o que é público do que é particular. E nessa separação ficou
provado que não se arrecadava grandes áreas dentro do procedimento discriminatório,
porque a grande maioria das terras tinha registros imobiliários. Aquelas que tinham
registros que poderiam ser questionados foram para a via judicial e, sendo propriedade
particular, a ingerência do INCRA é pouca, não pode ocorrer. E, para atender, na
discriminatória, a esse ocupante, que é o seringueiro, muitas vezes, ao morador que vivia
na propriedade, o INCRA tentava fazer acordos na base de 55 hectares. Mas esses
acordos, raríssimos foram os que deram certo. O grande problema não era ele aceitar, é
que ele tem uma atividade que é a de seringueiro. Foram feitos acordos até dando a ele os
55 hectares na área em que estava a casa. Mas isso também não questionaram. Não
questionaram porque ele pode vender daqui a pouco, porque se o proprietário destinar a
sua área para a pecuária, ele vai derrubar e deixar aquele pedacinho do seringueiro. Não
tem como. (Entrevista concedida à autora em abril de 1986).
A regularização fundiária dos grandes seringais, permitindo que a transferência de
domínio fosse feita para os grandes grupos empresariais do sul, foi uma resposta à valorização
das terras ocorrida no período entre 1972 e 1974 que, segundo estudo do CEDEPLAR, não teria
sido inferior a 1.000%, chegando a 2.000% nas áreas próximas às estradas (CEDEPLAR 1979).
A reação dos seringueiros sobre a forma como foram adquiridos e regularizados os
seringais mudou a partir de 1975, quando teve início um processo organizado de resistência à
expulsão e de luta pelo reconhecimento da especificidade da posse extrativista.
4.2.2
A Organização dos Sindicatos Rurais
A CONTAG foi criada em 1963 com o objetivo de congregar os Sindicatos rurais já
existentes e organizá-los onde não existiam. Este foi o ano em que a legislação trabalhista, que já
beneficiava os trabalhadores urbanos foi estendida aos trabalhadores rurais. Os Sindicatos
deveriam ser reconhecidos pelo Ministério do Trabalho para serem oficiais e eram controlados
pelo governo. A partir do golpe de 1964 muitos Sindicatos ficaram sob intervenção,
especialmente os mais combativos, e novas direções foram eleitas com o objetivo de tornar o
organismo de classe do trabalhador rural uma entidade que prestava benefícios sociais aos
associados, como assistência médica, e intermediava acordos trabalhistas com os patrões.
Por interferência da Igreja Católica e face ao crescimento dos conflitos fundiários no
Acre, a CONTAG decidiu instalar uma Delegacia, também responsável pelo Estado de
228
Rondônia, com o objetivo de criar os Sindicatos, organizar as federações e depois se retirar. Não
havia nenhum Sindicato rural organizado nestas regiões e o trabalho começou em 1975.
A primeira iniciativa era um curso sobre formação sindical e legislação agrária, para um
número reduzido de líderes rurais, indicados pelas CEBs. Em seguida a CONTAG organizava
um encontro, convocando outros seringueiros e todas as autoridades do Estado, para em um
evento público, eleger e empossar uma diretoria provisória do Sindicato. Os documentos de
fundação do Sindicato eram encaminhados para reconhecimento oficial pelo Ministério do
Trabalho.
No Acre, a organização sindical começou em Brasiléia, em 1975. Um curso de
preparação, de três dias, explicando o que era um Sindicato e qual o objetivo daquele Sindicato
para os seringueiros, foi dado pelo Delegado da CONTAG no Acre e Rondônia, João Maia da
Silva Filho, para um grupo de 30 a 40 seringueiros, nas dependências cedidas pela Igreja. No
terceiro dia, quando as pessoas escolhidas já estavam cientes do trabalho que ia ser feito, a
comissão da CONTAG organizou um encontro, convocando outros seringueiros e todas as
autoridades do Estado para a criação oficial do primeiro Sindicato de trabalhadores rurais do
Acre.
A CONTAG no Acre: 1975
Esse foi precisamente o momento em que grandes fazendeiros tinham acabado de chegar
do sul do país para acabar com a nossa floresta, com centenas de jagunços na região, expulsando
da terra milhares de famílias de seringueiros e ao mesmo tempo queimando suas casas nessas
matas. Deste momento em diante eu comecei a me interessar nessa luta em defesa dos meus
companheiros que estavam numa difícil situação.
O movimento sindical no Acre surgiu no momento em que começaram a chegar os
primeiros grupos de latifundiários do sul do país que, com a propaganda do governo naquela
época, lançaram mão de todas as terras, principalmente nas margens da estrada BR 317, que foi a
primeira estrada a ser aberta da capital do Estado para o interior. E eu lembro muito bem, que eu
era seringueiro, trabalhava na extração da borracha com os meus companheiros, e de repente
percebi a monstruosidade que estava acontecendo.
A partir de 1975 começou a nascer uma consciência, organizam-se os primeiros
Sindicatos rurais, juntamente com o trabalho da Igreja Católica. A Igreja, quando começou a
resistir aos crimes contra os seringueiros, aí começou a denunciar. Através da Igreja, em final de
74 para 75, chegou a primeira Comissão da CONTAG, no Acre, com o objetivo de fundar os
Sindicatos, principalmente nas regiões onde estava havendo mais conflito, mas ainda com
acompanhamento do Ministério do Trabalho. A Comissão da CONTAG teve uma relação muito
boa com a Igreja, porque, inclusive, ela também ia atender a situação da Igreja no Acre. E aí eu
229
lembro que o primeiro Sindicato foi fundado em Brasiléia, onde estava um momento de tensão
muito grande.
Não foi muito difícil porque todo mundo estava vivendo o problema e a gente já tinha
certa orientação para defender a terra. Mas houve, sim, algumas incompreensões de alguns
companheiros e principalmente pressões dos patrões seringalistas e dos fazendeiros. Diziam que
éramos 'um bando de subversivos' e procuravam amedrontar o pessoal.
A partir de 73 eu tava no seringal e vendo essa situação acontecendo, de uma forma
desesperadora, mas sem saber o que fazer. A única forma... a gente tentava denunciar, mas não
havia espaço prá nós. Quando de repente surge, como milagre prá nós, a notícia, da fundação dos
primeiros Sindicatos de trabalhadores rurais. Uma comissão da CONTAG, com apoio da Igreja, a
Igreja cedeu toda a sua estrutura, suas Igrejas nos municípios, para a realização dos primeiros
cursos de sindicalismo rural. E aí esse primeiro curso que organizaram na cidade de Brasiléia, no
município de Brasiléia, eu já corri prá lá também, fui um dos que foi participar desse curso.
Eu ouvi falar que estava chegando essa comissão da CONTAG, recordei muito as lições
passadas do Euclides e o primeiro passo meu foi seguir prá lá mesmo sem ser convidado. Fui um
dos primeiros a me apresentar, para fazer um curso de sindicalismo em Brasiléia. Eu cheguei lá,
fui aceito e participei ativamente do curso e dos primeiros preparativos para a fundação do
Sindicato de Brasiléia.
Os preparativos para a fundação de um Sindicato iniciaram nas áreas onde havia mais
conflitos e onde havia seringueiros com a consciência mais avançada. Esses seringueiros foram
convocados em número de 30, 40 e, durante dois a três dias, nas dependências cedidas pela Igreja,
os dirigentes da CONTAG organizaram um curso de preparação, explicando o que era um
Sindicato e qual o objetivo daquele Sindicato para os seringueiros. E no terceiro dia, então, as
pessoas já cientes do que seria o trabalho que a gente ia fazer a partir daquele momento em diante,
a comissão da CONTAG organizou um encontro, convocando outros seringueiros e, numa
concentração, era automaticamente eleita e empossada uma diretoria provisória do Sindicato. A
partir daí a comissão encaminhava para o Ministério do Trabalho todo o processo da fundação
daquele Sindicato.
O Estatuto da Terra foi a primeira cartilha que nós recebemos, de orientação, porque aí a
gente estava perdido, todo mundo. As coisas acontecendo e os companheiros se mandando para a
cidade, outros fugindo para a Bolívia, outros apavorados, outros desesperados e outros na cadeia,
também. Aqueles que tentavam resistir iam para a cadeia e a gente não sabia o que fazer. E a
partir daí, então, a CONTAG levou o Estatuto da Terra. A partir desse Estatuto, a gente iniciou
um processo de luta e começamos, então, um trabalho urgente e imediato explicando a todos os
seringueiros os direitos que a gente tinha sobre a terra. Bom, então foi a partir daí que a gente
começou o trabalho de conscientização, de organização e de preparação das bases, das delegacias
sindicais.
230
E deu certo, eu tive bastante sucesso, porque como eu já tinha uma experiência aprendida
dez anos antes, eu não tive problema de me colocar dentro das discussões que se levantavam
naquele momento. Fui escolhido como um dos diretores, o primeiro diretor daquele Sindicato no
Acre e acabei sendo eleito Secretário Geral do Sindicato.
Tive também a condição de descobrir que as orientações que levaram à fundação daquele
Sindicato eram ainda uma tendência muito cautelosa, muito conservadora, dava prá perceber que
eram orientações muito ligadas ao sistema, orientação muito de conciliação, de defesa do
seringueiro e tal, mas ficava entre uma coisa e outra, muito embananosa. Isso eu descobri logo e
cresceu mais a minha vontade de penetrar naquele movimento.
Com a criação do Sindicato em 1975, eu tinha que passar muito tempo na cidade para
ajudar a encaminhar as propostas, pois de repente começaram a chegar questões de todos os
lados. Como eu tinha que trabalhar na produção para ajudar em casa, no começo aproveitava os
finais de semana para me dedicar ao movimento. Mas a partir de 1976 eu vivia mais na cidade, em
Brasiléia, porque o movimento estava muito agitado. Durante esse período passei muitas
dificuldades, passava até fome, não tinha dinheiro nem prá comer.
Quando os companheiros de Xapuri, ligados àqueles seringais vizinhos de Brasiléia,
souberam que eu estava na direção do Sindicato de Brasiléia, todos correram prá lá para se
filiarem ao Sindicato de Brasiléia. Mas Xapuri era uma outra jurisdição, então eu me empenhei
mais em vir prá Xapuri prá começar a atuar nas bases e fortalecer o movimento aqui para a
possível criação do Sindicato. Agora aqui foi mais difícil, os primeiros passos, porque havia uma
diferença. Naquela época, a Igreja, liderada pelo Bispo Dom Giocondo, aqui da Prelazia do AcrePurus, ela começou a fazer uma opção muito grande em favor do seringueiro ameaçado, porque o
momento era de uma repressão muito grande. Então em Brasiléia a Igreja abriu suas portas para o
Sindicato, de modo que os cursos, o treinamento, a fundação do Sindicato em Brasiléia foram
feitos dentro das dependências da Igreja.
Em Xapuri a coisa foi diferente. A primeira vez que eu recebi intimação da polícia civil,
foi originada de uma denúncia feita pelo padre local daqui, naquela época, que era totalmente
contra qualquer tipo de mobilização dos trabalhadores e totalmente comprometido com a política
do latifúndio, que por sinal, além de padre era um agente secreto do SNI, o padre José Carneiro
de Lima. De modo que esse movimento foi um pouco difícil para se enraizar aqui. Mas com
muito esforço, sacrifício, o movimento foi se enraizando.
Em 76 ficou acertado de eu ir para Xapuri tentar organizar o Sindicato. A partir de 77,
quando eu já estava em Xapuri, o Wilson Pinheiro, que era um delegado sindical do Seringal Santa
Quitéria, assumiu a direção do Sindicato em Brasiléia e o movimento se fortaleceu muito mais,
porque Wilson Pinheiro era um companheiro de uma capacidade muito grande e de muita
coragem.
A fundação do Sindicato de Xapuri se deu em abril de 1977. Com muito sacrifício a gente
conseguiu organizar, porque apesar de haver uma pressão muito forte liderada pela Igreja local
231
daquela época, apoiada pela classe média local e autoridades do município, mesmo assim os
seringueiros tinham uma grande ânsia prá haver alguma mudança, prá se verem livres da pressão e
das ameaças a que eles estavam submetidos naquele momento. Fundou-se o Sindicato baseado
nas experiências de Brasiléia, mas o pessoal começou devagarinho e começou a se organizar prá
lutar contra os grandes desmatamentos.
Eu lembro que quando a gente iniciou esse trabalho em 77, a gente tinha um
compromisso prá lutar pela organização dos nossos companheiros e a CONTAG colocou isso
muito claro. 'Vocês vão ter que enfrentar, além da pressão da polícia e dos jagunços, também
muitas jogadas dos fazendeiros; eles vão jogar pesado de todas as formas para tentar barrar o
movimento'. De modo que quando a gente iniciou esse trabalho, já abertos os Sindicatos mesmo,
a gente então começou a sentir e a ver essa coisa.
Os fazendeiros quando viram que nós estávamos bem organizados, não podiam resistir.
De uma forma ou outra, eles tentaram apelar para a consciência da gente, oferecendo dinheiro.
Infelizmente, isso aconteceu com alguns companheiros, porque isso é uma luta que exige muita
seriedade. E, de repente, em alguns momentos, muitos companheiros caíram nas armadilhas.
Receberam propina, dinheiro e saíram do movimento. Quer dizer, traíram o movimento. Mas
aqueles que mantiveram o seu compromisso, o seu ideal, eles estão até hoje nessa luta.
Isso encontrava muita resistência, porque os fazendeiros, de repente, e as pessoas ligadas
aos fazendeiros, fizeram uma propaganda muito grande que nós éramos comunistas e que
estávamos recebendo orientação subversiva para enganar os trabalhadores numa séria de coisas e
chegamos a receber muitas ameaças. A gente era xingado na cidade, a polícia nos perseguia e os
jagunços nos perseguiam, claro, a mando dos fazendeiros e então era uma situação delicada. Mas
foi um momento muito importante assim, porque os seringueiros desesperados, sem saber que
rumo tomar, de repente todos os seringueiros, quando ouviam falar que havia Sindicato, corriam
para lá e se associavam.
E logo em seguida, a partir de 77, a gente formou um segundo Sindicato na capital do
Estado, o terceiro em Xapuri e o quarto em Sena Madureira. A partir daí, então, a gente tinha
iniciado um processo de organização e de defesa dos seringueiros do Acre. Mas tudo ocorrendo
muito lentamente até 1980, quando generalizou-se por toda a região o movimento de resistência
dos seringueiros para impedir os grandes desmatamentos.
Nesse período eu não tinha articulação política com nenhuma organização. Até porque a
coisa estava tão crua, principalmente entre os seringueiros, onde 95% nem votava. Era muito
difícil. Começaram a perceber que eram explorados a partir da criação do Sindicato.
Em 21 de dezembro de 1975, com a presença de 890 pessoas, em reunião realizada no
salão paroquial, coordenada pelo novo Governador do Acre, Geraldo Mesquita, foi criado o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. E em 9 de abril de 1977, com a presença de 302
232
pessoas e também do Governador do Estado, em reunião realizada no colégio mantido pelas
freiras da Igreja Católica, foi fundado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (STRX).
A partir do momento em que a CONTAG se instalou no Acre, atuou tanto na
intermediação dos conflitos entre seringueiros e fazendeiros, quanto na regularização das relações
de trabalho entre seringalistas e seringueiros. No primeiro caso, o seringueiro foi definido como
posseiro e, no segundo, como parceiro.
Definir o seringueiro como posseiro significava aplicar a Lei 4.504, de 30.11.1964142, o
que implicava em reconhecer direito à indenização por benfeitorias existentes na área onde
morava e preferência na aquisição de uma parcela de terra ou na legitimação da posse. Foi com
base nesses princípios que a CONTAG atuou nos conflitos, primeiro assegurando que os
seringueiros ameaçados de expulsão recebessem indenização pelas benfeitorias existentes na
colocação e, em seguida, realizando acordos com fazendeiros visando a distribuição de lotes aos
seringueiros que moravam nos seringais que haviam sido vendidos.
Caberia ao INCRA ratificar essas definições, especialmente com relação à figura do
seringueiro. Embora alguns alegassem que o problema era da atribuição do Ministério do
Trabalho, o INCRA definia o seringueiro como um autêntico posseiro porque, com a desativação
dos seringais, passou a ser um trabalhador autônomo que, por conta e risco, permaneceu na terra
durante 15, 20 anos. Os conflitos ocorreram, na visão do INCRA, pelo fato dos empresários,
alguns desavisados e outros mal intencionados, não levarem em conta os direitos que os
seringueiros possuíam sobre suas posses.
Para o caso das empresas seringalistas, a CONTAG também aplicou o Estatuto da Terra
definindo o seringueiro como parceiro extrativista, o que implicava em uma regra fundamental:
como renda, o seringueiro só deveria pagar 10% da produção para o seringalista e somente sobre
a borracha, não devendo pagar nada sobre a agricultura. O restante da produção deveria ser
vendido a dinheiro, a preços de mercado e a quem quisesse comprar. Se o seringalista pagasse o
mesmo preço da praça, o seringueiro podia entregar os 90% restantes a ele, tendo o seringalista a
preferência. Se não, podia vender fora do barracão.
Logo que estas regras começaram a ser aplicadas pelos Sindicatos, os seringalistas
reagiram. Argumentavam que o BASA exigia deles, para o financiamento, o empenho de 100%
da produção e, se seguissem as novas regras, acabariam inadimplentes com o Banco. O resultado
da pressão dos seringalista foi a mudança das regras da CONTAG, que passou a orientar os
seringueiros a entregar toda a produção ao proprietário.
142 Art. 97 inciso II – todo trabalhador agrícola que, à data da presente Lei, tiver ocupado, por um ano, terras
devolutas, terá preferência para adquirir um lote da dimensão do módulo de propriedade rural que for estabelecido
para a região, obedecidas as prescrições da lei.
233
Outras regras foram definidas pela CONTAG, como obrigações do seringalista: dar
recibo da mercadoria vendida e da borracha adquirida; manter regulada a balança que pesava a
borracha; manter controle sobre os preços das mercadorias vendidas; cobrar juro bancário, e não
maior, para empréstimos de dinheiro e não cobrar juro sobre o saldo do seringueiro. E definiu
como direitos dos seringueiros: exigir comprovante mensal de compras de mercadorias; exigir
recibo da borracha na hora da venda, caso contrário poderia reter a borracha; assistir ao peso da
borracha e receber preço de mercado para a borracha143.
Em um primeiro momento, as regras definidas e aplicadas pela CONTAG, a partir de
1975, contribuíram para minimizar os conflitos, principalmente pelo fato de passar a existir uma
instituição, o Sindicato, com poderes legais de representar os posseiros em seus confrontos com
os fazendeiros. Aos poucos foi ficando claro, porém, que a solução encontrada para reconhecer
os direitos de posse não se aplicava adequadamente à realidade vivida pelos seringueiros,
principalmente pelo fato de ter sido elaborada pensando na utilização agrícola da terra e não
extrativista. E os seringueiros não tinham a intenção de se transformar em agricultores. Essa
convicção cresceu, principalmente depois que foram realizados os primeiros acordos.
Quando a indenização a ser paga pelo fazendeiro era acordada no sentido de que ele
destinasse parte da área na forma de lotes aos seringueiros, estes poderiam atingir até 55 ha, o que
inviabilizava a produção extrativista. Os primeiros seringueiros a aceitarem essa proposta
acabaram vendendo seus lotes e indo para a cidade. O INCRA tentava fazer acordos na base de
55 hectares mas raros foram os que deram certo e geralmente a área cedida não passava de 30
hectares por família. À medida em que o proprietário começava a derrubar a área para implantar a
pecuária, ia cercando o lote dos seringueiros, inviabilizando a permanência deles no local.
A essência do problema, na verdade, era outra. Os seringueiros não reconheciam o direito
de propriedade dos fazendeiros porque passaram a compreender que a titulação dos antigos
seringais não englobava a área toda que havia sido vendida e se consideravam legítimos posseiros
das colocações nas quais viviam há gerações. Aí residia o foco principal dos conflitos uma vez que,
143 Encontrei no arquivo do STRX um Contrato de Parceria Agrícola, firmado no dia 20 de fevereiro de 1977, entre
Nicolau Macowski, proprietário da Fazenda Chipanamo, no Município de Xapuri-AC, na Estrada de Rio Branco –
Xapuri, km 147 e o Sr. Eurico C. de Brito, seringueiro, assinado por ambos, que respeitava algumas das novas regras.
O contrato visava o trato de 2,5 estradas de seringal e a colheita de castanhas, e estabelecia o seguinte: o seringueiro
paga ao proprietário 40 quilos de látex “borracha” por estrada que explorar; o proprietário tem preferência na
compra do produto, havendo igualdade de preço com os demais compradores; o seringueiro colhe também os
ouriços das castanheiras existentes dentro das estradas que cuida; das castanhas que colher dentro da propriedade, o
seringueiro paga ao proprietário 30% do produto colhido, tendo o proprietário a preferência em ficar com toda a
produção, se seu preço oferecido for igual aos dos outros compradores; o seringueiro que explora uma colocação,
antes de passar sua colocação a um terceiro, fica obrigado a oferecê-la primeiro ao proprietário, ficando assim o
proprietário com a preferência na compra da colocação em igualdade de condições (Arquivo do STRX).
234
por esta mesma razão, o comprador de terras procurava expulsar os seringueiros existentes na
área para evitar que a posse deles fosse reconhecida, ameaçando, dessa forma a regularização das
grandes áreas adquiridas, muitas vezes de forma fraudulenta.
A compreensão existente entre os seringueiros, conforme entrevistas de Chico Mendes,
era de que as terras que haviam sido conquistadas, pelos seus antepassados, aos bolivianos e
peruanos, não haviam sido regularizadas, não sendo, portanto, legítima a constituição da
propriedade privada no Acre, tanto no caso dos seringalistas quanto dos fazendeiros.
Com base nessa compreensão, a partir de 1976, a forma de organização dos seringueiros
para defender suas posses adquiriu uma característica nova e peculiar àquela região do Acre –
emergiu em Brasiléia um movimento espontâneo de confronto direto com os fazendeiros,
impedindo que realizassem desmatamentos nas áreas nas quais eram posseiros, mudando para
sempre o cenário das lutas sociais na Amazônia.
4.2.3
Empates às Derrubadas – O Caso do Seringal Carmen
O Seringal Carmen, localizado no município de Brasiléia, próximo da fronteira do Brasil
com a Bolívia, e palco dos conflitos iniciais entre bolivianos e brasileiros ocorridos na Revolução
Acreana, no início do século, estava se transformando na Fazenda Carmen, e seria novamente
cenário de importantes acontecimentos que repercutiram nacional e internacionalmente, nos anos
seguintes. Em março de 1976, os seringueiros do Carmen reuniram suas famílias e decidiram
defender suas posses impedindo o desmatamento que estava sendo feito por peões, contratados
pelo novo dono da terra, que tinha o objetivo de limpar a área e dividi-la em colônias para serem
revendidas a colonos vindos do sul do país. Inauguraram, assim, uma nova etapa na prática dos
movimentos sociais
da Amazônia. Foi o primeiro empate às derrubadas, modalidade de
organização que passou a caracterizar a resistência dos seringueiros à expulsão de suas posses, a
partir daquele momento.
Empatar, no linguajar amazônico, quer dizer impedir. O empate às derrubadas, o embargo aos
desmatamentos; foi essa a denominação dada a uma iniciativa local que resultou da organização do
primeiro Sindicato no Acre e da consciência que adquiriram em relação aos direitos de posse
assegurados pelo Estatuto da Terra. Chico Mendes era, então Secretário do STR de Brasiléia:
Trincheiras na selva: 1976
Então, na década de 70 começam as compras de terra. O que que acontece, em muitos
lugares isso aconteceu, porque não havia o legítimo proprietário de terras, o seringalista era um
posseiro também, nesse tempo, porque eles chegavam numa área virgem, eles desbravavam,
abriam aqueles grandes seringais e se tornavam posseiros. E aí o que que acontece. Os fazendeiros
235
chegavam, iam nos cartórios com muito dinheiro, eles forjavam documentos, conseguiam a custo
de dinheiro, de repente quando os fazendeiros do sul chegaram nos cartórios, começaram a
aparecer documentos, títulos definitivos de terras, de proprietários de terras, tudo isso à custa de
dinheiro, documentos comprados. Então foi a partir daí que começa essa luta.
Aí o que que acontece. Começa logo a grande desmatação. Começa a destruição, o fogo
começa a dominar e começa o seringueiro a ser substituído pelo boi. E essa foi uma situação
difícil. Xapuri é o grande exemplo, é a grande cidade que foi arrasada, Xapuri hoje parece ter saído
de um bombardeio, de uma guerra, exatamente porque foi um dos municípios mais bombardeado
pelo latifúndio. A gente começa então a pensar o que fazer, depois de criado o Sindicato. Aí nós
tínhamos que pensar em outras alternativas. Aí partimos para os empates.
Em 10 de março de 1976 aconteceu o primeiro movimento mais importante, quando
chegaram 3 seringueiros de um seringal próximo a Brasiléia, o Seringal Carmen, e denunciaram
que a área deles estava sendo devastada por 100 peões, com pistoleiros na região. Num momento
de desespero, porque as suas colocações estavam ameaçadas pelos peões do fazendeiro lá dentro,
acampados prá desmatar, foram barrados pelos trabalhadores. E a gente viu que pela via judicial
não tinha jeito, aí falaram: 'Companheiros, vamos pensar numa outra alternativa, vamos partir
para o empate'. E aí um grupo de 60 posseiros, pela primeira vez, homens e mulheres, sem
orientação, se entrincheiraram na área, fizemos uma trincheira na selva para impedir o
desmatamento. Fomos todos armados e encurralamos os peões. E durante 3 dias o desmate foi
suspenso.
Isso teve uma repercussão muito louca naquela época, porque além de ser uma faixa de
fronteira, área de segurança nacional, em pleno período da ditadura militar, aí você se viu diante
da polícia militar, polícia civil, polícia federal, exército, houve uma grande repercussão. Este fato
chamou a atenção de todos, chegou o Exército e a polícia, até que uma comissão da CONTAG
foi negociar. O ato teve grande repercussão, porque foi uma surpresa. A partir dali começam esses
primeiros avanços. Eu pertencia à Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia,
participei como secretário do Sindicato.
Foi a primeira forma que os trabalhadores encontraram, o primeiro teste que eles fizeram,
diante de toda a pressão do latifúndio, dos fazendeiros, foi então fazer esse primeiro empate.
Quer dizer, esse primeiro empate foi uma pequena vitória, já, porque atraiu a presença de todas as
autoridades do INCRA, do próprio Exército, finalmente, do Governo. A comissão da CONTAG
chegou lá na área e daí partiu-se para os primeiros acordos entre fazendeiros e posseiros. O
pessoal não foi expulso dessa vez, eles forçaram os fazendeiros a dar a cada um, um pequeno
pedaço de terra.
Ainda foi um acordo muito fora daquele que podia ser mesmo, porque uns receberam 30
ha, outros 70, o pessoal não tinha ainda, não tinham pensado uma forma melhor de decidir as
coisas, uns acharam que 30 ha tava bom. Mas de qualquer maneira já foi uma vitória dos
trabalhadores e a gente chegou à conclusão de que a luta era por ali mesmo. Eram uns acordos
236
ainda ao nível de consciência muito reduzido, mas já era um grande passo prá frente. Depois disso
fizemos uma avaliação do movimento, que passou a ser pacífico, mas não arredamos o pé,
recorrendo sempre aos empates quando uma área estava para ser desmatada.
A história do Empate do Carmen ficou famosa pelo fato de ter sido a primeira manifestação
organizada por trabalhadores rurais para evitar um desmatamento nas Amazônia e por ter sido o
primeiro de muitos outros que aconteceram nos anos seguintes. A decisão, inusitada, de impedir que
peões iniciassem a derrubada da floresta marcou uma nova etapa na história dos trabalhadores do
Acre e serviu de base para um dos movimentos sociais mais importantes ocorridos na Amazônia no
final do século passado.
A reconstituição apresentada a seguir foi feita com base em uma entrevista realizada em
Brasiléia, com alguns dos principais protagonistas, no dia 14 de julho de 2001, ou seja 25 anos
depois144. O texto foi organizado em torno de três grandes temas: (i) Antecedentes; (ii) O empate e
o acordo com o fazendeiro; e (iii) A situação atual das famílias entrevistadas. Três fatos foram
identificados como antecedentes: o quadro de expulsões, pelos fazendeiros, que predominava na
região nos primeiros anos da década de 70; a assinatura de um acordo com o fazendeiro, em
1975, pelo qual os posseiros receberiam uma área alagada e imprópria para a agricultura e que
rejeitaram; e a criação do STR de Brasiléia, pela CONTAG, em 75, divulgando o Estatuto da
Terra. A edição do texto procura manter o estilo das falas, organizando-as em uma seqüência lógica
que facilite a compreensão da seqüência dos acontecimentos.
(i) Antecedentes
Expulsões
Os participantes do empate no Seringal Carmen eram famílias de seringueiros nascidos na
região, que haviam comprado145 suas colocações no Seringal Carmen; o mais antigo estava no
mesmo local há nove anos, os demais há dois ou três anos. Os que haviam chegado mais
recentemente compraram suas colocações sem saber que já haviam conflitos dos seringueiros com o
fazendeiro, Francisco de Souza Medeiros, conhecido como Coronel Chicão, e que muitos
estavam saindo por esta razão, conforme relata um dos entrevistados:
144 A entrevista contou com 9 participantes do empate no Seringal Carmen: Anália Soares Damacena, Antonia Soares
Lopes, Cícero Galdino de Araújo, Elena Rodrigues da Conceição Araújo, Emiliano Rodrigues da Silva, Francisco
Pacheco da Silva, Maria Almeida, Francisco Rodrigues de Messias, Raimundo Nonato da Silva. Os entrevistados
vivem hoje em Brasiléia e estão todos com mais de 50 anos. (Ver foto no Anexo).
145 Os seringueiros vendem as colocações entre si, geralmente com aval do patrão, e calculam o preço com base nas
benfeitorias existentes.
237
A história é a seguinte. Nós tudo era morador lá no Carmen. Aí o patrão vendeu sem nós
saber. O patrão era Valdemar Teles Brilhante. Ele era do Rio Grande do Norte. Vendeu
pro Coronel Chicão, Francisco de Souza Medeiros. Aí nós, como seringueiro lá, vivia
tranqüilo, lugar bom, quando chegaram os peões dele, botando a mata abaixo. Porque
sempre onde tem seringal tem o patrão, o freguês comprava a colocação queria trabalhar.
Então o que foi que eu fiz: comprei a colocaçãozinha e fiquei lá. No segundo ano eles
começaram a me atropelar, tem que sair daí, não pode ficar aí, foi aquele negócio todo.
Porque antes desse ano que nós fizemos o empate, 76, eles demarcaram todinho o
seringal em lotes prá botar o gado, e chamaram os peões prá desmatar. A minha
colocação ficou, a do Pacheco ficou, tudo demarcado, prá colocar gente do Mato Grosso,
gente que nós não conhecíamos, muita gente, tinha 100 homens lá naquela época,
brocando o seringal Carmen.
Tava todo mundo sendo expulso, daqui do município, no Humaitá e outros cantos. Era
jogado na beira da estrada. Na beira da estrada. Era cruel. E tinha mais uma coisa.
Quando eles não queriam sair, eles mandavam tirar as coisas de dentro da casa e tocavam
fogo. Ainda queimavam o lugar que eles estavam. O Marcelo, filho desse Coronel Chicão,
era quem queimava as casas. De 75 prá frente. Na estrada prá Assis Brasil tava ocorrendo
a mesma violência. Era cruel prá nós aqui. As autoridades ficaram tudo do lado deles, nós
não tinha direito a nada.
Assinaram sem ler: 1975
Com o objetivo de indenizar os posseiros, em 1975 o fazendeiro separou uma área do
seringal para a qual eles seriam transferidos e os fez assinar um documento no qual renunciavam
a qualquer direito de posse. Era uma área alagada, um igapó, inapropriada para atividades
agrícolas e eram lotes pequenos que não permitiriam a continuidade da exploração da seringa. Os
posseiros assinaram o documento sem ter consciência do que estavam fazendo e, no dia da
fundação do STR de Brasiléia, 22 de dezembro de 1975, conversaram com o Delegado da
CONTAG, João Maia. O advogado da CONTAG os criticou por estarem entregando suas
posses sem a orientação do Sindicato e disse que deveriam permanecer nas colocações de seringa.
Eles seguiram essa determinação e, enquanto isso o fazendeiro continuou brocando e queimando
a área onde moravam:
Nós tínhamos assinado os papéis que tavam dando as colônias, dando fora da história...
porque não tavam dando nada, iam tomar de nós. Chama-se um papel queimado, né.
Porque não tinha nada, nele, escrito. Era numa outra área de terra. Mas nós não
queríamos, era pequeninha demais. Eles diziam que ou aceitava essas terras ou 3 mil
238
cruzeiros. O contrato dizia que nós aceitava se retirar de lá. Só que nós assinamos sem
saber o que nós tava assinando. Eram uns hectares de terra, dentro de um igapó, era um
igapó. Nós ficamos aperreado. Fomos só olhar prá ver como era que tava. Nós não
quisemos não. Ficamos olhando daqui e dali e ficamos se agüentando na colocação de
seringa porque já tinha projeto do Sindicato, nós já tava sabendo que tinha o Sindicato
que podia dar força prá nós. Ficamos se agüentando uns dias.
Quando nós fomos no dia 22 de dezembro de 75, eu mais o Pacheco, Emiliano, nós
fomos lá com o Dr. João Maia, ele disse: 'Vocês vão falar com o Dr. Pedro'. Aí nós
fomos falar com Dr. Pedro, ele foi e disse assim prá nós, quer ver, presta atenção: 'Olha,
vocês têm cabeça prá guardar merda, é? Vocês têm a colocação de vocês, vocês fiquem aí,
que nós tamos acabando de organizar o Sindicato, o Sindicato é uma arma muito
poderosa que nós vamos ter. Vocês fiquem em seu lugar'. Nós já tínhamos uma
organizaçãozinha, um começo de organização, começou mais o Pacheco, mais o
Raimundo, o Roque, aquele pessoal. Começamos. E prá onde é que nós vamos? Nós
tinha que segurar, tinha que segurar. Aí passou-se. Com cinco meses, quatro, cinco meses,
nosso rolo de briga - porque se fosse lá no igapó, nós não ia não, porque nós ia morrer,
afogado mesmo, só lugar prá jacaré, cobra. Aí nós ficamos lá ilhados, se agüentando, não
deixaram mais botar roçado, nós perdemos um bocado de lavoura, eu perdi mil covas de
roça, não pude colher.
Deram as terras, a gente ficou na colocação esperando, se ao menos brocasse o lugar, lá,
prá gente fazer uma barraquinha prá gente morar. Aí nós estávamos ainda na colocação,
eles brocaram todinha a colocação onde nós estávamos, tocaram fogo... Menina, nesse
dia, foi o pior sufoco, cobriu tudo de fumaça, eu tinha 4 crianças pequenas, foi o maior
sufoco, a fumaça. Nós pegamos, saímos, fomos prá colocação de outro companheiro lá,
enquanto a gente fazia ao menos um tapiri lá, prá onde a gente ia morar. Quando nós
pensamos que não, eles chegaram, tocaram fogo no barraco, com as mãos na cabeça.
Tinha uns colonos que moravam lá, no Nazaré, nós fomos lá com os colonos, eles
ficaram com compaixão da gente, e deixaram nós ficar 15 dias lá junto com eles, família lá
tudo amontoado, ficamos lá até construir um barraco prá gente morar.
O Sindicato e a Lei da Terra
O advogado da CONTAG deu aos posseiros uma cópia do Estatuto da Terra para que se
informassem sobre os seus direitos enquanto estava sendo concluída a organização do Sindicato
em Brasiléia:
239
Foi quando chegou o sindicado prá trabalhadores rurais, prá proteger. O período tava
muito violento, no Carmen, eles eram violentos, eram valentes, os Medeiros, Joaquim
Medeiros, o Coronel Chicão, o Eusébio. Aí nós se filiemos tudinho no Sindicato e
começamos a nos reunir, todo mês tinha reunião. Tinha sido fundado o Sindicato há
pouco tempo, em 75. Nessa época, o Dr. Pedro era o advogado do Sindicato e ele
entregou um livrinho, disse até que era proibido entregar aquele livro, que chamava Lei da
Terra. Ele disse: 'Ó, o livrinho do Estatuto da Terra prá vocês se informarem'. Nós
fomos lá e não perdia tempo, como é que nós vamos fazer prá nós não perder a
moradia... Aí meu marido pega o livro e leva lá prá casa. E nós começamos a ler o livro. E
já estava todo mundo ameaçado de sair do lugar. Aí nós pegamos, lemos o livro todinho,
estudamos, fomos lá na casa do Chico Pacheco, fomos lá na casa dele, nós estudamos o
livro juntos. Bom, agora nós vamos nos organizar prá defender nosso lugar. Aí nós já
estamos sabendo qual é a lei, em cima dessa lei nós vamos se organizar.
(ii) O empate e o acordo com o fazendeiro
Pacheco e a mulher dele, Anális, decidiram que, apesar das ameaças, não iam parar de
trabalhar e, como era tradição entre os seringueiros, começaram a brocar uma pequena área na
colocação para fazer um roçado, contrariando as ordens do fazendeiro, como eles relatam:
Pacheco e Anális enfrentam o gerente
Em março de 76, chegou seu Eusébio Alves Ferreira, o gerente da fazenda, e disse: 'Seu
Pacheco, eu compro a sua posse'. 'Muito bem, seu Eusébio, eu tô precisando, querendo
me retirar daqui'. 'Lhe dou 50 mil cruzeiros'. Aí vai conversa, e vai conversa, vai conversa
e dinheiro nada. Era época de seringueiro, colono, brocar. Nós tava preocupados que
tinha que brocar. [Anália continua contando a história]. Ele brocou, não queria que
derrubasse, ele falou: 'Eu derrubo, porque quem é que vai dar de comer aos meus filhos?'
Aí levou a espingarda e ia derrubar. Aí um dia o gerente disse que ia arrastar ele na
chincha do cavalo. Ele tava pro roçado. O Eusébio chegou lá em casa, e perguntou pelo
Pacheco. Eu disse: 'Tá pro roçado, tá trabalhando. O senhor nem pense que aqui o
senhor faz como lá no Teodomiro'. Porque lá, eles chegavam lá, casavam e batizavam,
eles ficavam tudo quietinho, tinham medo, não era? Aí ele foi e perguntou onde ele táva.
Eu fui e ensinei direitinho. Aí agarrei, quando ele saiu, agarrei a espingarda e botei
cartucho na espingarda e mandei os meninos sair, prá trás, tinha uns pés de ingazeira, na
sombra, aí botei uns cartuchos ali encostados, fiquei na janela esperando ele. Digo, ele
vem, na volta ele vem de lá prá cá. Se ele vier, era ele e um peão dele, se ele vim, eu meto
fogo em todos os dois. Eu queimava, tava decidida, botei meus filhos até fora de casa.
Tava decidida, ia atirar mesmo.
240
Mas à medida em que avançava o desmatamento do fazendeiro, as colocações dos
seringueiros iam sendo atingidas, alguns iam vendendo suas posses e eles não sabiam o que fazer
para continuar resistindo. Quando a broca estava chegando perto da colocação de Raimundo Jonas,
no dia 7 de maio, ele foi pedir ajuda ao Pacheco e, juntos, foram à casa de Emiliano. Lá,
decidiram que iam reunir o pessoal e empatar:
Reunindo o pessoal
No dia 7 de maio, conta Pacheco, chegou um amigo meu, em minha casa, Raimundo
Jonas, era umas 4 horas da tarde. Ele chegou e disse: 'Pacheco, vamos dar uma ajuda a
nós, o Corrêa já vendeu o lugar'. Eu disse: 'Vá na fumaceira', eu tinha uma fumaceira,
com um horror de sernambi, eu era seringueiro, 'pegue um sernambi aí, vai chamar o
pessoal'. Nós reunimos todos, 22 pessoas. A história do seu Eusébio era de me dar uma
pisa e me arrastar na chincha do cavalo. Mas como é que esse homem vai me arrastar na
chincha do cavalo, eu não matei! Quero trabalhar.
Emiliano diz que quando deu 6 horas o Pacheco chegou lá na casa dele, mais o Raimundo
Jonas. 'Os homens tão chegando com a broca lá em casa', disse o Raimundo, 'o que que
nós vamos fazer?' 'Agora nós vamos empatar', eu falei, não foi? 'Vamos empatar'. Eu mais
o Cícero e o Messias, nós já tava sabendo que ia passar por aquele período de empate.
Tem que levar cartucho, nós vamos comprar onde? Na Bolívia, porque se comprar
cartucho aqui em Brasiléia, eles já mandam é matar nós. Compramos umas duas caixas de
cartucho na Bolívia e escondemos lá e fomos pro empate.
Pacheco continua a história: Aqui tem um velho, que eu passei duas noites numa porteira,
esperando o seu Eusébio; ele chama-se Cícero Galdino. E Cícero continua: Quando o
Pacheco chegou, disse: 'Amanhã nós temos que resolver'.
Nós tava quase tudo desesperado. Fomos avisar todo mundo. A gente começou às 7
horas da noite. Isso era no dia 7 de maio de 76, que nós tava fazendo a viajada de noite,
prá dia 8 começar o empate. Aí quando foi uma hora da madrugada, duas horas, três
horas da madrugada, começou a chegar os companheiros, aquilo tudo revoltado, com as
espingardas tudo nas costas e nós chegamos lá no Pacheco, 4 horas da madrugada.
'Vamos empatar'. Nós com as espingarda assim nas costas, aí as mulheres disseram:
'Vocês vão arriscar uma coisa muito difícil. É vida ou morte. Ou nós fica, ou já vai pro
céu, vamos direto'. E nos organizamos aí e saímos.
Anália diz que 'quando eles reuniram o pessoal, eles vieram todos prá nossa casa. Aí
passamos dia e noite sem dormir, guarnecendo, que o povo dizia que eles vinham de
241
avião e iam fuzilar nós tudo lá. Aí tava tudinho entrincheirado lá dentro da nossa casa'. E
a mãe dela completa: 'Quando foi de manhã... eu era viúva... o pessoal quebraram o jejum,
um bocado de homem, aquela zuada danada, eu fiquei foi triste. Quando eles acabaram
de comer e sair, no rumo do empate, Ave Maria, foi horrível. Mas graças a Deus que
foram e voltaram e não aconteceu nada, foi tudo em paz. Aí ficou eu e a minha filha, era
nós que cozinhava prá eles, foram muitos dias, nós cozinhando e eles andando prá cima e
prá baixo e cuidando do negócio deles, do que era preciso fazer. Nós ficamos ali, dormir
ninguém dormia, guarnecendo, a casa. Era gente por todo canto, era dentro de
defumaceira, dentro de paiol de arroz...'
No dia 8 de maio, foram até o acampamento dos peões e pediram que parassem a
derrubada. Os peões concordaram, mas disseram que quem decidia era o gato, que os tinha
contratado para realizar o trabalho. Os seringueiros disseram, então, pro gato avisar o gerente da
fazenda que eles estavam esperando para conversar com ele na colocação do Pacheco:
Empatando a derrubada
Daí chegou a hora dele vir de lá prá cá fazendo a broca. A primeira peãozada que nós
encontramos tava ali já pro campo do Pacheco. Era 8 horas do dia. E dissemos: "Pára o
serviço aqui. Pára a broca. Nós não temos nada contra vocês, mas tem que negociar,
depois de nós conversar com o chefe daqui da fazenda, aí vocês continuam brocando,
vocês não vão perder nada com isso. Mas vocês vão parar o trabalho aqui'. Mas os peões,
quando nós chegamos lá, eles pararam, eles disseram que nós tinha direito. Lá prá eles lá,
de onde ele vinham, já existia. Se não fizesse o empate, eles acabavam com tudo. Aí eles
disseram: 'Mas nós não resolve nada, vocês têm que falar com o gato...Nós viemos ganhar
nosso dinheiro, mas não temos nada com isso'. Então nós falamos: 'Então vocês param
que nós vamos lá na sede de vocês'.
Aí fomos. Nós ia passando pelo meio da derrubada, ia encontrando os peões, e avisando,
que eles parassem que nós ia fazer aquela proibição. Chegamos lá o barraco táva cheio de
peões. 'Nós viemos conversar com você prá você não brocar mais ali onde pertence as
colocações de seringa, que nós somos seringueiros, nós mora lá, nós somos pais de
família, enquanto não resolver nosso caso, ninguém vai brocar'. Aí ele foi prá lá e disse:
'É, vocês têm direito. E nós continuamos: 'Seu Eusébio é muito brabo, nós já tem história
dele, nós vamos voltar, você diga prá ele, prá ele ir prá lá, que nós tamos lá. Diga a ele que
nós estamos esperando lá'. Aí o gato, o chefe dos peões, ele concordou plenamente com
nós, concordou que ia parar, e foi lá no Eusébio comunicar o que táva acontecendo. Aí
eles pararam. O gato era um criminoso, o Tonhão, que já tinha matado mais de 20, cruel.
Tinha 64 peões. Nós era 22.
242
O gerente da fazenda não foi conversar com os seringueiros e eles decidiram, então,
procurar o apoio do Sindicato. Oito dias depois, o fazendeiro foi intimado a comparecer a uma
reunião com os posseiros, na sede do quartel da Polícia Militar, considerada a maior autoridade
no município e a quem os seringueiros sempre recorriam em caso de conflito. Foram defendidos
pelo advogado da CONTAG, mas tiveram, também, que explicar porque tinham ido armados
impedir o desmatamento:
A CONTAG
Ele não foi lá, o Eusébio. E nós fomos pro Sindicato, fazendo um barulho desse. Se não
há briga, não há organização. Sindicato só tem briga quando tá organizado, então vamos
prá cima agora. E nós corremos prá cima do Sindicato: 'Que que vocês dizem prá gente
resolver essa parada?' Os homens já tinham demarcado a terra, nós vamos correr de lá?
Nós não tinha prá onde ir, explica Emiliano. Tudinho tinha família, eu tinha família,
Pacheco tinha família, o Cícero tinha família e nós vamos prá onde? Porque sempre o
costume deles era botar no carro e deixar na beira da estrada, porque o costume deles, o
seringueiro lá que desse um jeito.
O Dr. Pedro, era muito cruel, era advogado do Sindicato, defendia os direitos, disse
assim: 'Acreano tem que aprender a ser homem e tem que ir no batente lá e segurar a
parada, sem se atrancar. Se brocar, tem que ter o direito'. Aí o João Maia tinha chegado
naquela época, era o delegado da CONTAG, fomos com ele lá na 4a. Companhia, prá ver
os nossos direitos de posse, que nós tinha direito de ganhar. O Presidente do Sindicato
era o Elias Rozendo, ele acompanhou também.
Aí na 4a. Cia, com Dr. João Maia, intimaram os fazendeiros e o Dr. João disse: 'Vocês vão
avisar todas as autoridades daqui de Brasiléia, juiz, o delegado de polícia, o comandante
da 4a. Cia, o camarada do IBDF'. Eu fiquei de lá prá lá e prá cá, avisando todo mundo,
que era prá quando o fazendeiro chegasse com a denúncia dele, não crescesse muito o bá
bá bá, porque nós já tinha avisado as autoridades, que nós tínhamos feito aquilo. E ir
dizer pro comandante da 4a. Cia.: 'Nós fomos armados, comandante', foi o que eu achei
mais difícil. Mas o advogado mandou e nós dissemos.
Antônia conta: No dia que nós fomos pro quartel, já 8 dias que nós estávamos lá em casa,
eu nem comia e nem bebia, só fumava. Não tinha condições. Meus filhos, retirei prá casa
de um vizinho, os grandes. Os pequenos ficaram. E fomos. A gente ia naquele sobrosso,
com coragem e com medo. Aí fomos pro quartel. Aí lá eles foram e falaram que tinha ido
um filho meu lá, armado, na sede deles, do Eusébio. Eu pedi licença ao capitão, eu queria
falar. Ele disse que eu podia dizer. Eu disse: 'O senhor não queria que ele fosse armado,
243
mas o senhor ia lá em casa com seus peões, só ia bala na fivela do cinturão, com revólver
na cintura, e os peões com cada faca assim, atravessando'. E disse que toda semana eles
tavam lá em casa, entonce, nós não tinha direito? Então, ele queria tomar nossas armas,
dos seringueiros todos. Aí foi onde o João Maia disse: 'Não, as armas são pros
seringueiros matar as nambuzinha prá eles comerem, pro seringueiro comer'. Aí acabou.
Era muita gente, aí fui e falei.
Pacheco também conta que na 4a. Companhia, chegaram ao ponto de dizer que ele foi
armado e ele disse: 'Eu não tenho dinheiro prá comprar café todo dia, que dirá prá
comprar um revólver'. Aí a minha velha, a Anália, disse: 'Mas ele tem ido armado, seu
Eusébio na nossa casa; só não vai com arma na fivela do cinturão. E o Eusébio
respondeu: 'Mas minha arma é registrada'. E ela disse: 'Mas mata também'.
Desta reunião resultou o primeiro acordo entre fazendeiros e posseiros de que se tem
notícia no Acre, resultado direto da presença da CONTAG no Estado. Mas é interessante
observar que o empate não tinha sido feito para impedir o desmatamento da floresta, mas sim
como um meio de garantir o direito de posse. E foi o que conseguiram: pelo acordo, deixaram
suas colocações e foram morar em lotes destinados pelo fazendeiro. Parar o desmatamento foi a
forma que encontraram de pressionar pelo reconhecimento do direito a uma indenização,
conforme definia o Estatuto da Terra. Foi nos anos seguintes, depois de avaliarem as
consequências dessa primeira iniciativa, que os empates passaram a ter o objetivo consciente de
interromper a derrubada da floresta. No caso do Carmen, as colocações foram derrubadas assim que
eles saíram:
O primeiro acordo
Aí na 4a. Cia. foi que foi resolvido e nós ganhamos uma outra área aqui na Esperança,
uma área boa, só que muito pequena. Deixamos as colocações e fomos para esta colônia.
A culpa foi de uns parceiros nossos que aceitaram. Nós íamos ganhar numa faixa de 60
ha ou 50. Mas teve uns deles que acharam que tava bom, a gente não pôde fazer mais
nada. Ele cortou, meteu um travessão extremando com o Nazaré e dividiu 30 ha prá cada
um, como colônia. Foi loteado, tudinho, as colocações. E até hoje não está regularizado.
Pacheco conta: Eles me deram 70 ha, eu não nego não, eu tinha uma criação de gado e eu
disse: 'Eu não posso viver com esse gado'. Aí eles cortaram uma derrubada e me deram
70 ha. Os outros tudinho foram 30 ha. E o Carmen foi derrubado, uma parte. A parte
que nós morava foi todinha derrubada. Nós já tínhamos saído. Eles derrubaram na época
que nós saímos.
244
É interessante fazer uma relação entre o primeiro empate e a história de vida de um dos
líderes do movimento, o seringueiro Cícero Galdino. Ele já tinha uma experiência anterior, no
Seringal Icuriã, em Assis Brasil, onde havia organizado, no início dos anos 70, uma greve contra o
patrão, que queria expulsar alguns seringueiros que estavam vendendo a borracha para
marreteiros, ou seja, fora do controle do barracão. Como ele mesmo disse, "Já tinha experiência de
greve no seringal, com o patrão":
Cícero Galdino e a greve do Icuriã
Nasci no Rio Grande do Norte, na cidade que chama-se Florânia, cidade de flores, que
tinha o nome de flores e Brasiléia, que tinha o nome de Brasília e hoje tem o nome de
Brasiléia. Eu nasci em 1934 e vim pro Acre em 1942, cortar seringa no Acre. Meu pai veio
como Soldado da Borracha, eu era pequeno, tinha 8, 9 anos, aí nós viemos cortar seringa
no Acre. Passamos 3 anos, trabalhei no seringal Filipinas. Em 1945 nós fomos pro Alto
Acre, morar no seringal do meu tio, encostado em Assis Brasil. Lá trabalhei 10 anos numa
colocação de seringa, depois meus pais morreram, trabalhei 3 anos numa colocação.
Depois fui pro seringal Icuriã, mais 18 anos; trabalhei na Bolívia, trabalhei 35 anos de
seringa. Quando eu vim prá Brasiléia, em 1973, fui numa colocação de seringa que
chama-se Lambari, a única faixa de mata do seringal Carmen que ainda tá em pé.
Naquele tempo, quando eu vim prá cá, eu já tinha feito uma organização de seringueiros,
que queriam botar prá fora, no seringal do Icuriã. O barracão que servia nós, acabou
mercadoria. Aí o povo começou a vender borracha de um canto prá outro. Quem não
fazia isso tava sofrendo. Aí o patrão disse que ia botar quatro fregueses fora. Chamei
todos os quatro e disse: 'Vocês têm coragem de fazer uma greve na margem do Icuriã,
por causa disso?' Eles eram todos meus parentes. 'Porque eu acho injusto vocês serem
jogados fora, porque a produção de vocês é pouca, e todo mundo tá vendendo a borracha
fora, vocês acham que isso é justo, vocês saírem com a família de vocês? Disseram: 'Não'.
Então vamos.
Isso foi na década de 70, no Icuriã. Aí nós saímos. Aí eu digo, é o seguinte: 'Nós vamos
nós quatro, quem quiser ir mais nós sobre o assunto de que vão ser jogados fora, vão
ficar sem nada, nós vamos brigar contra essa história aí, essa briga'. O homem tem que
ser resolvido, não é questão de ser moleque não. Mas eu tava fazendo isso aí porque eu
sabia o que é que eu tava fazendo. Tinha pena de ver uma situação daquela, mas era o
jeito. Chegamos lá: manda chamar Zé Dantas. Fomos numa mesa redonda, igual a juíza.
Aí, sentamos na mesa, negociamos, era pouca mercadoria mas não saiu ninguém. Aí os
caras tiveram muito cuidado, ficaram pagando o pessoal em cima do balcão. O bonito foi
245
isso daí. Quando eu vim embora de lá, eu já sabia movimentar alguma coisa. Tinha
experiência. Tinha experiência de greve no seringal. Com patrão.
Quando veio aquela caravana de compradores de terra, compraram Guanabara, Icuriã e
São Francisco. Eram 50 sócios naquele tempo. Quando eles vieram, invadiram,
compraram e foi aquele rolo todinho. Aí os meninos já sabiam da história como eu tinha
feito, foram lá, a segunda guerra, nós soubemos que lá eles tinham feito do mesmo jeito.
Foram lá pro meio do campo de aviação, fizeram aquela buraqueira toda, enfiaram os
tocos, e acabou eles debandando tudo e hoje em dia tá a Reserva Chico Mendes lá dentro
e as coisas todinhas. Isso custou muito. Eu fui seringueiro naquele seringal 18 anos.
(iii) Situação atual
Os seringueiros que fizeram o primeiro empate acabaram, em decorrência do acordo,
tendo que se transformar em agricultores nos lotes de 30 ha, em média, que cada família recebeu.
Se analisado da perspectiva atual, o resultado não foi favorável. Não tinham experiência com
agricultura e não conseguiram produzir além da própria subsistência, embora a maioria deles
tenha conseguido educar os filhos.
Mas o principal problema é que nunca receberam a titulação dos lotes e, depois de
esgotado o uso agrícola dos 30 ha, sem alternativa, alguns deles acabaram vendendo estas
mesmas áreas para o próprio fazendeiro, como relata Antônia Soares Lopes:
Na mata virgem não tinha nada, nada; era chegar na mata, ir lá e construir tudo, com as
coisinhas que tinha e a roupa do corpo. E continua: 'Aí chegamos lá fomos construir
tudo, nos 30 hectares. Aí nesses 30 ha, nós moramos 15 anos. Aí chegou o tempo que
não podia mais derrubar, que não podia brocar, aí já cansado de tanta luta, vendemos pro
fazendeiro. Aí tá com 9 anos que nós viemos prá cá. Aí quando nós chegamos aqui,
quando a gente sai de lá, já perdemos o direito, nem uma aposentadoria, não tem mais o
direito de fazer. A gente luta tanto, trabalha tanto, perde os direitos'.
Hoje, todos os participantes do empate do Carmen que foram entrevistados moram em
Brasiléia onde vivem de pequenos biscates, sem aposentadoria e ainda com saudades da mata,
como mostram os seus relatos:
Cícero Galdino: Eu moro aqui na rua, mas tenho lá a colônia, tenho meu filho que mora
lá e eu preciso do documento dela. Prá tirar o despacho no Ibama, ou que seja agora no
Imac, é uma luta. Eu só tenho direito a 6 ha; eu não fui culpado, é 50%, deixei na metade.
Esse tempo que a gente tá lá, eu economizei metade. Essa parte que eu derribei, ela ficou
246
cansativa, tão parado de tudo. Agora, eu só tenho direito a 6 ha, 50%, e até agora não
chegou nem isso prá mim queimar, por meu gadozinho. E eu já resolvi o seguinte: o
pouco gado que eu tenho, que é pouquinho, tenho 7 cabeças de gado, vou vender, vou
vender. Eu quero mesmo que me dê um documento da terra prá família não ficar
desamparada um dia. Porque é uma segurança que a gente tem. As pessoas querem
comprar, eu não quero vender. Eu não queria vender. É o custo de uma história que foi
criada, que nós lutamos prá criar, uma qualidade de vida, as pessoas sem nada, como se
fosse vagabundo. Não existe justiça no Brasil. Uma pessoa como eu, um seringueiro
como eu, como Chico Pacheco, Chico Messias, o Emiliano, umas pessoas dessas, que
somos velhos, que começamos no tempo da borracha, 25 anos de seringa, pelo amor de
Deus... De seringueiro em fazendeiro, eles queriam a terra e nós não queria entregar, mas
de qualquer maneira entregamos prá eles.
Francisco Pacheco da Silva: Eu vendi a colônia porque já tava velho porque não
agüentava mais trabalhar e não tinha mais condição de derrubar. A minha terra era 70 ha
e era prá deixar 50%, eu deixei só 15 ha, o resto foi sacudido no chão. Aí vim me embora.
Hoje estou morando aqui na cidade, há uns 8, 9 anos, sou aposentado, trabalho com
banana e eu vou levando.
Emiliano Rodrigues da Silva: Eu acredito que a vida ficou mais ruim. Porque a minha
terra que eu ganhei lá, não deu as 30 hectária, deu 20 ha, não deu as 30. E lá eu passei 24,
25 anos, uma menina minha que nasceu lá, Antonieta, estudou o segundo grau, tá dando
aula aqui, ela nasceu lá e fez a 4a série lá, é formada, quer dizer que foi muita coisa. Uma
área muito péssima, muito daquele mato que chama sapé. Depois, quando nós tava aqui,
derrubou 14 ha, o Ibama já bateu lá e aí pararam o roçado, não pode brocar, aí começou a
tribuzana. Aí tive que dar estudo pros meninos, só tinha um restinho de mato, uns 3 ha,
não tinha uma mata, não tinha nada. Então eu acho que vivo sofrendo porque a minha
vida toda foi de seringal, foi cortando seringa, foi trabalhando na vida rural. E eu fiquei
que nem um peixe, tirou de dentro da água e tá atrapalhado. O seringueiro tem que estar
na mata. E eu fiquei fazendo empate, fazendo aquele negócio todo, e fiquei sem terra,
fiquei sem colocação. Quer dizer que nós fez o prato e outras pessoas foi quem comeu.
Plantamos a planta e outro foi que comeu tudo. E aí nós vem fazendo entrevista, fazendo
aquele negócio todinho, repassamos com muitas pessoas da França, da Dinamarca, da
Inglaterra, a gente tem feito uma porção de entrevista. Então não sei prá que que serviu a
coisa, que prá nós não ficou. Porque se eu tivesse ficado na minha colocação, ou numa
colônia, tenho seis filhos, tudo adulto, naquele pedacinho onde nós vivia bem, plantava
nossa mandioca e nossa banana, nós vivia bem. Eu não saí de lá. Mas nós merecia, nós
merecia, um lugar prá nós sobreviver. Mas nós fomos no INCRA, nós nunca tivemos
247
oportunidade de conseguir. Então a coisa eu não acho que tá boa não, pegamos poeira,
na zona rural, tudo, mas o analfabetismo que agora que está saindo umas facilidades pro
pessoal estudar, mas na minha época, não tinha como a gente estudar, então nós não vive
uma vida boa, tem que sofrer, tem que trabalhar, aquele negócio.
Antônia Soares Lopes: Porquê ele saiu, o Emiliano não tem direito a uma
aposentadoria. Desde criança que trabalha na zona rural e não tem direito. Ao menos do
Funrural. Estamos com 8 anos morando aqui na cidade. Meu marido vendeu a colônia,
não tinha mais condições de cuidar de campo, de gado, os meninos saíram todos,
casaram, vieram prá rua prá estudar, os outros tinham os empregos, aí nós viemos.
Trouxemos o legume que colhemos lá e vendemos pro fazendeiro. Mas eu ainda hoje
sinto saudade da minha colônia, gosto de uma colônia. Não gosto da rua. Eu sinto, eu
sinto saudade. Prá mim é melhor. Eu gosto da mata, gosto da mata.
Francisco Rodrigues de Messias: Eu me encontro hoje na cidade, mas não foi um
gosto meu, sair da zona rural, da mata. Eu nasci e me criei no mato, gosto muito, tenho
saudade de lá. Vivo aqui, dá prá viver, apertado, eu tava brocando meu roçado quando o
Ibama chegou: 'Você não pode brocar mais nem um pedaço, porque você ultrapassou os
limites, você é obrigado...' Hoje o Ibama faz igual ao que o fazendeiro fez. Fui obrigado a
deixar minha colônia, comprei uma casinha aqui, tô vivendo aqui, com uma
aposentadoriazinha, um empregozinho aqui acolá, vou levando minha vida. Mas que
saudade de lá! Seu eu pudesse estava lá! Essas as minhas palavras.
Raimundo Jonas: Lá onde eu ganhei minha área lá, teve um vizinho que ganhou na
extrema, na colônia, um campo, quase a metade. Aí ele não tinha direito de ganhar
porque ele morava do lado da Esperança. Aí foi com nós lá, eu e meu irmão, prá nós dar
lá uma parte prá ele, nós pagamos a benfeitoria. Aí nos brocamos, eu e meu irmão, nós
brocamos 2 ha de roçado, quando nós terminamos de brocar, tinha 3 meses prá sair do
local, terminamos de brocar, quando eu vim dar uma olhada de novo, ele botou fogo,
tava só que não prestava mais prá nada. Aí eu fui e vendi para um outro amigo que tinha
ganhado uma área lá. Ainda hoje é dele. Vendi e aí comprei uma colônia no Seringal Bela
Flor, que era desapropriado. Aí fiquei lá, morei lá mais de 20 anos, mas levei pouca sorte.
O meu vizinho lá foi comprando, comprando, eu fiquei no meio, 25 ha no meio do
campo, sem condições de plantar, aí eu vendi e vim embora prá rua. Faço que nem o
Pacheco, trabalho na carroça de boi também, não deu mais lá, tem que procurar outro
meio. Não tenho aposentadoria, perdi a colônia, perdi tudo.
Se olhado da perspectiva do momento em que ocorreu, o empate da Fazenda Carmen foi a
primeira iniciativa dos seringueiros do Acre de reagir à expulsão de suas posses, da forma como
248
estava ocorrendo naquele momento em toda a região, sem qualquer indenização. A decisão de
agir foi resultado imediato do conhecimento da legislação sobre direitos de posse, respaldada pela
presença do Sindicato na região, pela primeira vez na história, e pela segurança de um líder como
Cícero Galdino, que certamente influenciou seus companheiros. Foi a primeira vez, em mais de
cinco anos de expulsões, que os seringueiros posseiros foram ouvidos pelas autoridades e que o
fazendeiro foi obrigado a cumprir a lei.
Mas ainda não estava em questão o desmatamento e os prejuízos que causava ao meio de
vida dos seringueiros, elemento que somente surgiu posteriormente na luta destes trabalhadores.
O empate do Carmen foi contra as derrubadas porque derrubar a floresta era a forma de assegurar
a propriedade ao fazendeiro e eliminar a posse do seringueiro. Não havia, portanto, nenhuma
conotação ambiental na ação realizada naquele momento. Tanto isso é verdade que a área de
floresta na qual estavam as colocações dos que participaram foi toda desmatada depois que eles
saíram, em função do acordo realizado e não existe registro de que isso tenha sido considerado
uma perda, naquele momento. A conquista que os seringueiros do Carmen tiveram foi o
reconhecimento dos direitos de posse, sacramentados através dos lotes de terra que receberam,
alguns deles ainda não titulados até hoje146.
O empate do Carmen passou a constituir uma referência para os seringueiros de todo o
Vale do Acre por ter sido a primeira vitória de um Sindicato recém criado e por estabelecer, pela
primeira vez na história do extrativismo, naquela região, que o lado mais fraco nos conflitos pela
terra, teve seus direitos reconhecidos pelas autoridades locais. A partir daquele momento, os
empates contra as derrubadas passaram a ser a principal forma de luta e uma prática que se
espalhou por toda a região, seguida de acordos entre posseiros e fazendeiros, mediados pela
CONTAG. Representaram um avanço fundamental frente ao período anterior, no qual eram
expulsos sem nenhum tipo de defesa e sem direito a qualquer indenização147.
O acordo realizado no Carmen trouxe um resultado novo para a vida daqueles
seringueiros. De um dia para o outro, eles se viram em um lote de terra de 30 ha e não mais em
uma colocação de seringa que tinha, geralmente, 300 ha e que oferecia diferentes alternativas de
sobrevivência, em função dos recursos da floresta. Embora estivessem, de fato, em uma posição
melhor do que a dos seringueiros que haviam sido obrigados a migrar para a periferia das cidades,
não tinham experiência de sobreviver exclusivamente da exploração da terra. Tanto isso é
146 Até realizar a entrevista com os participantes do empate do Carmen, eu tinha a informação de que eles haviam se
beneficiado da criação da Reserva Extrativista Chico Mendes que englobou a maior parte dos seringais em conflito
naquela região, como será apresentado no capítulo seguinte. Iniciativas estão sendo tomadas pelo STR de Brasiléia e
pela Associação dos Moradores da Resex, com apoio do MMA, no sentido de compensar os ex-seringueiros do
Carmen.
147 Ver fotos6 e 7 no Anexo que mostram os seringueiros se dirigindo para um empate na região de Xapuri.
249
verdade que a única prática que adotaram foi a de queimar e derrubar, perdendo, no decorrer dos
anos, a fertilidade da terra e tendo que vender as colônias recebidas e ir, eles também, para a
periferia da cidade, embora mais de uma década depois.
Outro aspecto interessante desta história é o fato de que, ironicamente, os seringueiros
que ficaram famosos por terem iniciado o movimento de defesa da floresta contra os
desmatamentos, passaram a ver o Ibama como um inimigo tão poderoso quanto fora o
fazendeiro no passado. "Hoje o Ibama faz igual ao que o fazendeiro fez", afirmaram.
Em função do Código Florestal, que estabelece que cada propriedade na Amazônia deve
manter uma reserva legal de 80%, os agricultores tiveram que vender seus lotes porque não
podiam mais desmatar148. E sem desmatar não faziam suas roças, com as quais conseguiam a
subsistência da família. Ou seja, eles haviam deixado suas colocações em função do conflito com o
fazendeiro e não podiam mais explorar a terra de seus lotes, em função da fiscalização do Ibama.
As ações dessa primeira etapa do movimento sindical no Acre apresentam duas
características principais: permitem aos trabalhadores rurais que tomem conhecimento e adquiram
consciência sobre a legislação que protege os direitos de posse face à realidade concreta das
expulsões sumárias realizadas pelos fazendeiros. Por outro lado, a presença da CONTAG e a
implantação dos primeiros Sindicatos não foram suficientes para fazer com que a legislação passasse
a ser respeitada. Foi preciso que os seringueiros dessem à lei uma forma concreta, que identificassem
na realidade vivida por eles a manifestação real da violação destes direitos recém conhecidos.
Quando visualizaram os desmatamentos atingindo suas posses, identificaram a forma de luta e o
objetivo a ser alcançado: 'vamos empatar', foi a palavra de ordem que sintetizou e aglutinou a reação.
Foi a experiência dos seringueiros transformados em colonos, que estabeleceu as
condições para as etapas futuras da luta. Como será abordado posteriormente, o empate avançou
nos anos seguintes. De uma iniciativa em defesa da posse, passou a ser, também, uma ação contra
os desmatamentos, independente da existência de posseiros sendo atingidos diretamente pelas
derrubadas, marcando assim uma transição para uma nova fase dessa luta, quando a defesa da
floresta passou a ser o objetivo principal. Também os acordos foram questionados e revistos.
Mas isso somente ocorreu quando se conscientizaram dos precários resultados advindos
da conquista alcançada, ou seja, quando perceberam a dificuldade que significava deixar de ser
seringueiro, profissão que haviam herdado de seus pais, para serem agricultores, atividade que
oferecia níveis mais baixos de retorno. Passaram, então, a defender a posse da colocação e da
O Código Florestal, Lei 4.771 de 15.09.1965, definia 50% como Reserva Legal em todas as propriedades do país.
Em decorrência do aumento dos desmatamentos na Amazônia, por meio da Medida Provisória 1511, editada em
25.07.1996 esse limite foi ampliado para 80% naquela região.
148
250
floresta, porque representava uma forma de vida superior à da agricultura, inaugurando, dessa
maneira, uma nova etapa nesta história.
Mas independente dos resultados concretos imediatos, o empate do Carmen foi uma escola
para todas as lideranças daquela região, inclusive algumas de projeção nacional como Chico
Mendes e Marina Silva, como afirmou Cícero Galdino:
Depois do empate no Carmen, participamos na Porongaba, fomos ameaçados pela
polícia, foram três vezes, na Porongaba. Foi em 88, 89, 90. Nós éramos acostumados,
combatentes, Chico Mendes, companheiro combatente, Marina Silva, Gouveia e outros.
Chico Mendes participou dos primeiros empates como diretor do STR de Brasiléia. Em
1977 foi eleito vereador, exerceu o mandato até 1982 e utilizou o espaço político, durante este
período, para denunciar os conflitos, responsabilizar os governos estadual e federal pelos
problemas de terra, e apoiar o Sindicato na defesa dos seringueiros frente aos fazendeiros. Em
maio de 1983, concluída sua única experiência parlamentar, foi eleito Presidente do STR de
Xapuri. Essa história será apresentada a seguir.
4.3.
CHICO MENDES: VEREADOR SINDICALISTA
Dois fatos são centrais na análise realizada neste tópico do capítulo quatro, ambos
ocorridos em 1977: o início do mandato de Chico Mendes como vereador na Câmara Municipal
de Xapuri, em 1o de fevereiro, e a fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, em
9 de abril. A carreira política via mandato eletivo, iniciada naquele momento, durou cinco anos e
foi encerrada em 1982, uma vez que em nenhuma outra eleição à qual se candidatou ele
conseguiu ser eleito149. À medida em que se restringiam os espaços político-partidários, porém,
crescia e se consolidava sua liderança sindical, especialmente depois de eleito presidente do STR
de Xapuri, em 1o de maio de 1983, função que desempenhou por cinco anos, até seu assassinato.
O período de tempo abordado neste tópico, de 1977 a 1982, foi marcado por eventos tão
relevantes que extrapolaram o pequeno cenário da cidade de Xapuri e mesmo o Estado do Acre:
o crescimento da organização sindical e a capacidade de mobilização demonstrada por suas
lideranças, levou ao aguçamento dos conflitos pela posse da terra e ao assassinato de Wilson
Pinheiro de Souza, presidente do STR de Brasília, em 21 de julho de 1980 e do fazendeiro Nilo
Sérgio, o mandante do crime, dez dias depois. A pressão dos fazendeiros e de suas entidades de
classe levou ao indiciamento de líderes sindicais locais e nacionais, na Lei de Segurança Nacional,
Tendo se filiado ao Partido dos Trabalhadores em 1980, Chico Mendes foi candidato a Deputado Estadual em
1982, a Prefeito de Xapuri em 1985 e a Deputado Estadual em 1985, não tendo sido eleito em nenhum dos pleitos.
149
251
inclusive Chico Mendes e Luiz Inácio Lula da Silva. Afetado pela perda de sua liderança principal,
o movimento sindical em Brasiléia se desarticulou nos anos seguintes, enquanto cresceu e se
fortaleceu em Xapuri, generalizando-se os empates às derrubadas e criando-se as bases para formas
inovadoras de organização que surgirão a partir de 1981.
Conforme já foi utilizado em todo este capítulo, a história de vida de Chico Mendes
continua sendo o elemento estruturador da narrativa neste tópico150. Além disso, foram
identificados os principais fatos ocorridos em cada ano do seu mandato como vereador e
reproduzidos os discursos mais relevantes, selecionados das Atas das Sessões Legislativas151. Para
analisar os conflitos pela posse da terra, além das fontes já referidas (o arquivo do STR de Xapuri
e o jornal Varadouro) a partir de 1981 foram utilizadas entrevistas inéditas com Chico Mendes e
excertos de gravações realizadas nos eventos mais importantes ocorridos naquele período,
material também inédito. Assim, estes três aspectos – história de vida, atuação parlamentar e
conflitos pela terra – serão apresentados e analisados em cada ano.
No contexto das mudanças econômicas e políticas em andamento no Acre, como já foi
mencionado, o Varadouro, editado mensalmente, diferia radicalmente dos demais, por publicar
matérias que buscavam retratar e refletir sobre os conflitos em torno da terra e as consequências
para os seringueiros e índios. Adotava uma posição de defesa da história e do modo de vida dos
acreanos em contraposição ao dos paulistas e passou a ser um dos meios mais importantes de
formação de opinião pública na região, principalmente por adotar uma linguagem compreensível
pela população dos seringais e da periferia das cidades e por inserir na discussão os temas trazidos
pelos pesquisadores regionais, para os quais os jornais diários não abriam espaço.
4.3.1
Sindicato de Xapuri e Presidência da Câmara
A história de vida de Chico Mendes, entre 1977 e 1979, passou por uma mudança radical.
Da posição de diretor do STR Brasiléia, na qual se sentia seguro, porque havia se preparado com
os ensinamentos de Euclides Távora, assumiu o compromisso de criar o Sindicato em Xapuri e,
150 O relato de Chico Mendes sobre suas inserções político-partidárias e sobre sua experiência como vereador foi
inteiramente retirado de entrevista que deu para Cândido Grzybowski, em Xapuri, em novembro de 1988. De todas
que conheço, essa é a única entrevista na qual Chico refere-se à sua experiência como vereador e a compreensão da
história pode ser aprofundada a partir dos pronunciamentos que fez na Câmara dos Vereadores.
151
É preciso ressalvar que toda a análise feita neste capítulo, sobre a atuação de Francisco Mendes como vereador,
assim como sobre as manifestações dos outros vereadores, está fundamentada nas Atas das Sessões Legislativas,
datilografadas e arquivadas na Câmara de Vereadores de Xapuri. Parte-se do pressuposto que suas palavras foram
corretamente transcritas. Também é necessário registrar que, de acordo com o Regimento Interno da Câmara, era
reservado o direito à Presidência da Casa de sustar 50% dos pronunciamentos, devendo cada vereador reclamar no
momento em que cada ata era aprovada, na sessão seguinte. Em nenhuma ata existe o registro de pedidos de
retificação. Cópia completa das Atas, de 1977 a 1982, está em meu arquivo.
252
eleito vereador, iniciou, sem qualquer experiência, uma carreira parlamentar. Paralelamente, tanto
os conflitos quanto a organização sindical continuaram em ascensão em todo o Vale do Acre.
Esse processo culminou em 1979 com grandes enfrentamentos entre seringueiros e fazendeiros.
Eleito Presidente da Câmara, em 1979, Chico atuou de forma cada vez mais radical em
defesa dos seringueiros, procurando testar seus companheiros de bancada e acabou sendo
obrigado a renunciar, no final do ano, por pressão exatamente daqueles que ele considerava seus
pares na oposição, os demais vereadores do MDB. Em Brasiléia, Wilson Pinheiro organizou uma
mobilização de mais de 400 trabalhadores, de todos os Sindicatos do Acre, e saiu em defesa de
posseiros ameaçados por jagunços em Boca do Acre, município do Amazonas, no que foi
chamado de "O Grande Mutirão Contra a Jagunçada". Estes fatos determinaram tanto a carreira
política quanto sindical de Chico Mendes nos anos seguintes.
1977 – História de Vida
Eleito pelo MDB
Quando eu era Diretor do Sindicato em Brasiléia e havia a necessidade de organizar o
Sindicato em Xapuri, por uma coincidência, naquele momento também estava acontecendo o
processo político, campanhas políticas, um momento eleitoral de Xapuri e toda a região.
Naquela época havia dois partidos só, na ditadura, que era Arena – Aliança Renovadora
Nacional e MDB – Movimento Democrático Brasileiro. Então o MDB, naquela época, era tido
como o partido realmente de oposição ao sistema atual, mesmo sendo criado pela ditadura, mas
era o único partido que os trabalhadores depositavam certa confiança, por ser aquele esquema de
resistência contra a ditadura.
Como era um momento negro e muita gente não tinha nem coragem de ser candidato
por um partido de oposição, eu fui convidado prá preencher uma vaga de candidato a vereador de
Xapuri, porquê o partido tinha dificuldade, o partido precisava de um número de candidatos para
poder concorrer à eleição. E aí eu aceitei prá preencher a vaga, consultei os companheiros de
Brasiléia, eles ficaram preocupados porque achavam que aquele não era o momento, mas eu teria
o direito de vir porque eu tinha uma função aqui, de organizar também, ao mesmo tempo, o
Sindicato. No final houve consenso e por isso me desloquei prá cá e aceitei ser candidato a
vereador pelo MDB naquela época. Ficou combinado que eu me afastaria temporariamente do
Sindicato e, caso não fosse eleito, voltaria.
Só que eu aceitei pensando que o meu nome era simplesmente prá preencher uma vaga
para o partido poder concorrer, que eu nem tinha recurso nenhum, não tinha nenhuma
experiência nesse lado da política partidária. Era um eleitor já de oposição, já era, tinha uma
convicção de oposição ao sistema, mas não entendia do processo político-partidário. Mesmo
assim aceitei, com essa tarefa de organizar o Sindicato. Findou dando certo e eu, com o resultado
da eleição, passada a eleição, o resultado das apurações, eu fui eleito. Fui eleito com os votos e
253
apoio financeiro dos seringueiros do Porvir que fizeram uma coleta para custear as mínimas
despesas da campanha eleitoral.
Então isso me deixou numa situação muito difícil, porque eu não tinha nenhuma
experiência nesse ramo. A minha experiência, que eu estava desenvolvendo, era a questão sindical,
a luta sindical. E aí eu tive que juntar duas coisas naquele momento, prá poder tocar o trabalho.
Iniciei uma luta em duas frentes: na Câmara Municipal e no recém fundado STR de Xapuri, do
qual fui um dos fundadores.
Naquele momento, o MDB elegeu três vereadores e o partido dominante elegeu quatro,
ficou com a maioria. E eu sabia de antemão que ia enfrentar uma barra muito pesada, porque
sabia que aquelas pessoas eram do lado do latifúndio. Eu tinha uma esperança que meus dois
outros companheiros de bancada pudessem seguir também uma linha política mais comprometida
com os trabalhadores e aí foi minha grande decepção, porque além de ter começado, dado os
primeiros passos sem muita experiência, percebi ao mesmo tempo que os companheiros não
fechavam com a minha idéia, que era de usar o mandato como instrumento de luta em favor dos
seringueiros, principalmente, que estavam ameaçados naquele momento.
Quando começaram os meus primeiros trabalhos na Câmara, foi com o objetivo voltado
contra a expulsão dos seringueiros e isso não agradou os companheiros de bancada, muito menos
o outro lado do poder dominante. E também não agradou os outros políticos maiores do próprio
partido em que eu estava e isso foi me deixando um pouco decepcionado.
No final de 77 sofri as primeiras ameaças de morte por parte dos fazendeiros, ao mesmo
tempo em que enfrentei a reação de meus companheiros de bancada na Câmara Municipal. Quase
fui cassado, porque eu participei ativamente da fundação do Sindicato de Xapuri. Não pude ser
diretor porque exercia um cargo político, mas aí pude nomear companheiros por detrás das
cortinas. Fiz um trabalho prá indicar companheiros prá assumir a direção do Sindicato. A partir
desse momento comecei a ter um certo apoio da Igreja local, que naquele momento estava
passando por um processo de transformação com a saída do padre anterior, que era um
reacionário.
1977 – Atuação Parlamentar
Em 1976 ocorreram eleições para vereador. Em Xapuri, o MDB não conseguiu completar
a lista de candidatos. Então, o vereador Félix Pereira152 convidou Chico Mendes para se
candidatar. Francisco Alves Mendes Filho153 licenciou-se da posição que ocupava no STR de
Brasiléia, para se candidatar a vereador pelo MBD, tendo sido eleito em 15 de novembro de 1976
para exercer um mandato de seis anos, de 1977 a 1982, na Quinta Legislatura da Câmara
Félix Pereira foi depois eleito Deputado Estadual e Presidente da Assembléia Legislativa do Estado.
Todos os documentos sobre o período em que atuou como Vereador registram o seu nome completo, Francisco
Alves Mendes Filho ou Francisco Mendes, razão pela qual também o faremos nos itens referentes a este período,
por extenso ou pelas iniciais FM.
152
153
254
Municipal de Xapuri154. Em 1980 Francisco Mendes saiu do MBD e filiou-se ao recém-criado
Partido dos Trabalhadores.
A Câmara Municipal de Xapuri iniciou a Quinta Legislatura com sete vereadores, quatro
da Arena e três do MDB155. O primeiro ano legislativo, 1977, teve 34 sessões. FM esteve presente
em todas. Na segunda sessão foi indicado Vice-Líder da Bancada; nas sessões 28a, 29a e 30a
Francisco Mendes foi Secretário em exercício da Mesa Diretora. Deixou de se pronunciar em
duas sessões, apenas, a 23a e a 24a. Foi, inclusive, o único vereador a discursar na sessão solene de
abertura da Legislatura, após as falas oficiais dos dois partidos, Arena e MDB:
Usou da palavra o Vereador Francisco Mendes dizendo que para ele era um motivo de
grande satisfação estar sendo empossado naquele momento, pois sempre procurava
defender o direito do povo, que lhe confiou o voto, o direito de lhe representar nesta casa
do povo. Muito embora não tivesse a prática suficiente para se expandir nesta Câmara, ia
fazer tudo para que assim chegasse a corresponder à expectativa popular.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, MDB,
Ata da 1a Sessão Ordinária, 1º de fevereiro de 1977
Em 1977, os temas recorrentes nas sessões da Câmara Municipal de Xapuri, como não
poderia deixar de ser, estavam relacionados aos problemas da cidade e do meio rural, alternandose críticas e elogios à administração do prefeito nomeado Ivonaldo Portela da Costa, tanto por
parte da situação, quanto da oposição156. Com 5.000 habitantes na época, Xapuri apresentava
problemas estruturais: falta de água e de energia, que somente estavam disponíveis algumas horas
por dia; problemas de destinação do lixo, de saneamento e de higiene, principalmente no
matadouro municipal, temas abordados em quase todas as sessões. No que se refere à zona rural,
ausência de estradas, de escolas, de transporte, de atendimento à saúde e de crise nas atividades
econômicas.
Comprovando o que foi afirmado nos capítulos anteriores desta Tese, os discursos dos
vereadores, de forma recorrente, faziam referência ao papel dos nordestinos desbravadores do
Acre e dos que lutaram com Plácido de Castro para conquistar aquele território para o Brasil,
evidenciando que esse tema fazia parte da cultura histórica local, permeando também os
Vereadores eleitos pelo MDB, além de FM: Félix do Valle Pereira e Wagner Oliveira Bacelar; Vereadores eleitos
pela Arena: Antônio Farias de Araújo, Amadeu Dantas Dias, Eurico Gomes Fonseca Filho e Euclydes Guimarães
Brasileiro.
155 A Mesa Diretora da Assembléia Legislativa em 1977 foi formada pelos seguintes vereadores: Presidente: Euclydes
Guimarães Brasileiro da Arena; Vice-Presidente: Wagner Oliveira Bacelar, do MDB; Secretário: Eurico Gomes
Fonseca Filho; Líder da Bancada da Arena: Eurico Gomes Fonseca Filho; Líder da Bancada do MDB: Félix do Valle
Pereira.
156 Todo o território do Acre foi incluído como área de segurança nacional e em função disso os prefeitos
municipais eram nomeados pelo Governador do Estado, após ouvir o governo federal.
154
255
discursos dos seringueiros. Tanto para uns quanto para outros, a lembrança do passado,
considerado glorioso e heróico, sempre serviu de comparação com a crise presente e de base para
as críticas à crise econômica vigente.
Xapuri é uma conseqüência natural da corrente migratória nordestina, que para aqui veio
com a miragem de fazer fortuna fácil e fabulosa, explorando os seringais nativos... Solicito
ao prefeito municipal para que seja construído um obelisco... [que] servirá de registro e
reconhecimento aos desbravadores desta terra que participaram do grande feito histórico
que foi a conquista deste torrão ao Brasil, concretizado pela ação de Barão de Rio Branco,
através do Tratado de Petrópolis.
Vereador Félix Pereira, MDB,
Ata da Sétima Sessão Ordinária, 25 de março de 1977
Associando-me às comemorações e festejos programados para o 1o. Centenário do
desbravamento e colonização do Acre, quero prestar homenagem a todos aqueles que
com esforço e tenacidade concorreram para que o Acre também fosse Brasil, em especial
aos que denodadamente lutaram na gloriosa epopéia de 6 de agosto de 1902, onde a
figura ímpar do Coronel José Plácido de Castro é o ponto central, despontando como
estrela fulgurante de primeira grandeza na qualidade de chefe supremo das forças
revolucionárias que sustentaram o inconformismo e cujas atitudes culminaram com os
acontecimentos e lances guerreiros daqueles crepitantes dias de 1902. Pelo transcurso de
mais um aniversário da gloriosa Revolução Acreana, é-nos grato lembrar e referenciar a
memória dos quantos aqui viveram, lutaram e tombaram para que o Acre também fosse
Brasil. Ao coronel José Plácido de Castro e bem assim a todos os paladinos desta jornada,
nossa gratidão e o nosso reconhecimento.
Vereador Félix Pereira, MDB,
Ata da Vigésima Sessão Ordinária, 19 de agosto de 1977
Neste pronunciamento quero focalizar não só uma parte dos tempos idos mas também o
presente momento de nosso Município...Xapuri, Princesa do Acre, Xapuri, berço da
Revolução Acreana. Naquela época não haviam agências bancárias, mas a situação
financeira e econômica do povo era bem diferente dos atuais dias. Todos os seringais
povoados, ocupados na exploração da borracha que era o verdadeiro sustentáculo
econômico do Município. Tínhamos a usina de beneficiamento de castanhas com mais de
300 operários. Sobre a pecuária, era atrofiada. O gado de abate vinha da Bolívia,
importado pelo fazendeiro Tufic Kouri. Hoje não temos borracha nem pecuária. Havia o
Mercado Municipal, de madeira, onde os colonos, sábados e domingos, vendiam
diretamente aos consumidores o fruto do seu trabalho. Hoje Xapuri tem mercado de
alvenaria, mas é ocupado por marreteiros, não tendo os colonos lugar onde expor seus
256
produtos. Xapuri naquele tempo tinha o cemitério municipal todo cercado de arame
farpado que isolava os animais irracionais. Hoje está transformado não em campo santo,
mas sim em campo de pasto. Xapuri em parte passou de princesa a mendiga.
Vereador Wagner Oliveira Bacelar, MDB,
Ata da Vigésima Sétima Sessão Ordinária, 06 de outubro de 1977
Dois embates ocorreram entre FM e os vereadores da Arena no primeiro ano em que
participou da Câmara dos Vereadores de Xapuri: um foi relacionado com a atuação da
CONTAG no Acre e o outro sobre denúncias de expulsão de seringueiros por fazendeiros.
Atuou de forma inexperiente no primeiro episódio, mas rapidamente aprendeu a maneira mais
adequada de defender suas idéias sem atrair a agressão de seus opositores.
Na 6a sessão, ocorrida em 18 de março de 1977, o Líder da Bancada da Arena, vereador
Eurico Filho, em seu pronunciamento, alertou a CONTAG quanto ao cumprimento fiel de seus
estatutos, que a definia como entidade sem vínculos religiosos.
Queremos tecer nossos elogios pelo trabalho que vem realizando em nosso Município,
criando Sindicato que representará a grande classe dos trabalhadores na agricultura. Agora
lançamos o nosso apelo para que cumpra fielmente os estatutos de sua confederação,
reconhecido pelo Decreto Nº 53.517... está acontecendo um pequeno desvio na letra A
do Artigo 5o do referido Estatuto, qual seja, de envolver religiosos em reuniões de
fundação do Sindicato, em uma localidade, e peço à Mesa Diretora para que encaminhe
recomendação à Direção da CONTAG em Rio Branco, para que solucione de imediato
este desvio e para a CONTAG desempenhar seu real papel junto ao trabalhador rural.
Vereador Eurico Filho, Líder da Bancada da Arena,
Ata da Sexta Sessão Ordinária, 18 de março de 1977
Ao ocupar a tribuna para rebater a acusação do vereador da Arena, FM personalizou as
críticas abrindo espaço para ásperas críticas que lhe foram dirigidas em seguida, evidenciando que
esse era um tema em relação aos qual haviam profundas diferenças ideológicas entre os partidos:
Ocupo esta tribuna para dizer aos senhores que no momento não trago nenhum
programa de trabalho a esta Casa, pelo fato de não terem tido solução os problemas
surgidos anteriormente, mas quero dizer ao nobre colega Vereador Eurico Filho que se
houve alguma notícia que o dirigente da CONTAG estava confundindo sindicalismo com
política não é do meu conhecimento, acho ter sido alguma história mal interpretada. Até
mesmo eu já mantive contato com estes homens, mas nunca para abordar assuntos
políticos e quero que apresente provas se mantive tal assunto com os mesmos. Ao
chegarem em Xapuri, os dirigentes da CONTAG, para realizarem a sua missão, por se
tratarem de serem meus conhecidos desde a fundação do Sindicato dos Trabalhadores da
257
Agricultura de Brasiléia, onde fui eleito Secretário daquela Diretoria... Quero ressaltar que
quando surgiu a campanha política passada e minha intenção era participar da vida
política, falei o assunto ao Delegado Regional do Acre e Rondônia, Dr. João da Silva
Maia, o qual me respondeu que não impedia minha participação na política, mas tinha que
me afastar daquela entidade, pois a mesma não admitia movimentos políticos. Daí recorri
ao Ministério do Trabalho e pedi o meu afastamento temporário, se caso não obtivesse
êxito, voltaria a trabalhar naquela entidade. Mas alcancei o almejado e afastei-me por
completo. Os dirigentes da CONTAG mantiveram contato comigo apenas para indicar
os pontos mais necessários a fazer nas reuniões da CONTAG "pois você sabe muito bem
que nossa entidade não permite política e você hoje é político", frisou o Delegado
substituto. E quanto a religiosos no sindicalismo infiltrados não devem ser ignorados,
pois o Sindicato de Brasiléia recebeu todo apoio daquela Igreja onde fizemos até cursos
no salão paroquial, a fundação foi efetuada dentro da própria Igreja e ninguém foi
contrário àquela atitude e porque a Bancada da Arena ignora a participação ou seja a
intervenção de religiosos aqui em Xapuri?
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, MDB,
Ata da Sexta Sessão Ordinária, 18 de março de 1977
O líder da Arena pediu um aparte e o debate deixou clara a grande resistência da elite
local em relação à organização do sindicalismo na região e à estratégica posição assumida pela
Igreja, cujo apoio continuaria sendo fundamental no equilíbrio de forças:
Nobre colega Francisco Mendes, acho eu que a má interpretação foi vossa, em apresentar
tantas e tantas desculpas, e a defender tão bem a entidade da qual V.Excia. fazia parte, no
caso, me permita até dizer, suspeito. E não falei me referindo de que era o nobre colega
que estava envolvendo assuntos políticos na referida entidade, nem tão pouco disse que
estava ventilando tais assuntos em qualquer reunião da CONTAG. Disse que os estatutos
da mesma, no seu Artigo 5o proibiam tais atitudes, o que veio a tocar na sensibilidade de
V.Excia. E quanto a assuntos religiosos, não foram conversas contadas à Bancada da
Arena e sim um documento que temos em mãos. Agora, maior documento ainda, são as
palavras do digno Vereador, dizendo que não tem mal algum a infiltração de religiosos na
CONTAG, caso, talvez, fira o estatuto, não tem nada de mais para o vereador do MDB.
Vereador Eurico Filho, Líder da Bancada da Arena,
Ata da Sexta Sessão Ordinária, 18 de março de 1977
Quem encerrou a discussão foi o líder da bancada do MDB, político mais experiente,
vereador Félix Pereira, que já havia sido prefeito de Xapuri, colocando em foco irregularidades na
conquista do mandato, por parte do líder da Arena:
258
No meu modo de interpretar, verifica-se que o Sr. Vereador Eurico Gomes Fonseca
Filho, não se desencompatibilizou quando de sua posse e continua exercendo o mandato,
em flagrante desrespeito à Lei, porque é o Diretor da Rádio 6 de Agosto, órgão de
propriedade do Município. Portanto, o Presidente da Câmara tem a obrigação de declarar
a extinção do mandato do Vereador Eurico Gomes Fonseca Filho, por não haver se
desencompatibilizado em tempo hábil.
Vereador Félix Pereira, Líder da Bancada do MDB,
Ata da Sexta Sessão Ordinária, 18 de março de 1977
Francisco Mendes parece ter percebido a necessidade de cuidar de suas palavras, nos
pronunciamentos, porque na sessão seguinte ressaltou o ambiente de concórdia que existia na
Casa, e iniciou, a partir daí, a prática de abordar temas específicos e trazer fatos concretos, de
interesse de segmentos sociais com os quais estava ligado, pedindo sempre o apoio da Bancada às
suas proposições. Ao agir dessa forma conseguiu conduzir com maior habilidade o segundo
principal debate ocorrido na Câmara Municipal no ano de 1977, sobre os conflitos entre
seringueiros e fazendeiros, tema que abordou na 15a Sessão, ocorrida no dia 3 de junho:
Com a palavra o Vereador Francisco Mendes, vice-Líder da Bancada do MDB, que
iniciou explicando que na sessão passada fez um pronunciamento defendendo uma classe
que tanto contribui para o desenvolvimento da nossa pátria, mas que hoje, por
esquecimento ou por interesse político do governo, se acha humilhada pela grande
pressão dos grupos econômicos aqui implantados. Logo após o meu discurso o líder da
Arena nesta Casa pediu para que eu justificasse e provasse minhas críticas. E agora
comprovo com o fato acontecido no último dia 30 de maio com o senhor José Menezes.
O senhor José Menezes chegou no Seringal Iracema no dia 10 de fevereiro de 1973 e se
estabeleceu na Colocação Juaneri. O referido senhor tinha campos cercados, bastante
agricultura, os paulistas compraram a terra e assim surgiu a desventura. Numa atitude
desumana não deixaram que ele brocasse um pequeno roçado para a manutenção da sua
família. Dias depois seu sítio foi devastado pelos peões da fazenda. Por autorização do
proprietário da terra, ainda obrigado pela Secretaria de Segurança Pública, aceitou uma
indenização de Cr$2.000 (Dois mil cruzeiros) e passou então a trabalhar na diária. No dia
17 de maio quando vinha de seu trabalho, foi surpreendido pelo antigo gerente da
fazenda, um tal senhor Neném, acompanhado de dois comissários que o levaram à
presença do Delegado Hilário para prestar esclarecimentos. Ao voltar à sua barraca tudo
que lhe restava de bem tinha sido saqueado. Continuou o vereador Francisco Mendes
dizendo que sentia revolta em ver aquilo e, ao mesmo tempo, de saber que tal fato era
ignorado pelos representantes do povo. E perguntou o vereador emedebista: por que as
autoridades governamentais deixam de cumprir a lei em favor daqueles menos
259
favorecidos, para servirem somente os seus interesses pessoais? E continuou: o governo
que tudo pode, que dispõe de todos os recursos e poderes competentes para fazer
cumprir as leis, já poderia ter solucionado tantos problemas como este que acabei de
relatar. Criticou ainda o desconhecimento e não cumprimento da legislação. Perguntou:
para que foi criada a Lei 4.504 e o Decreto 70.430? Disse que tudo isso visa a garantia da
posse da terra, mas até agora são incompreendidas e ignoradas pelos maus
administradores que visam somente lucros pessoais, esquecendo centenas de
trabalhadores ao abandono, muitos deles subjugados e humilhados pelo latifúndio. E
quando se procura denunciar tais fatos, somos acusados de caluniadores e surgem as
cobranças de justificativas que não deixamos de apresentar, já que elas são claras aos
olhos de todos.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Vice-Líder do MDB,
Ata da Décima Quinta Sessão Ordinária, 3 de junho de 1977
O Vereador Eurico Filho, líder da Bancada da Arena, voltou à tribuna e pediu para que,
dentro do prazo legal, o Vereador Francisco Mendes apresentasse provas reais de todos os fatos
expostos no seu pronunciamento, pois caso contrário processaria o vereador como caluniador.
Continuou dizendo que sua Excelência, o Senhor Governador do Estado, Prof. Geraldo
Mesquita e o Senhor Secretário de Segurança do Estado, Tenente Coronel José Maria de
Castro, são homens íntegros e jamais permitirão que fatos desta natureza aconteçam, eis o
motivo, Senhor Vereador Francisco Mendes, porque peço as provas, pois se isso
aconteceu, levarei ao conhecimento dos mesmos e tenho certeza que não ficará impune.
Vereador Eurico Filho, Arena
Ata da Décima Quinta Sessão Ordinária, 3 de junho de 1977
Esse debate não teria tido maiores repercussões, não fosse o fato da bancada do MDB ter
decidido criar um boletim informativo para divulgar as atividades desenvolvidas na Câmara
Municipal e ter publicado o pronunciamento do Vereador Francisco Mendes, em seu primeiro
número. A bancada da Arena decidiu criticar o boletim alegando que ostentava um carimbo da
Câmara Municipal de Xapuri, sem que para isso tivesse havido autorização expressa da Mesa
Diretora. O debate em torno do carimbo tomou várias sessões. De um lado, o líder do MDB
afirmando que o objetivo maior era tornar pública a atuação dos parlamentares e, de outro, o
líder da Arena afirmando que havia sido um ato ilegal.
Este debate repercutiu fora de Xapuri e virou artigo do jornal Varadouro, com o título
Xapuri - a briga pelo carimbo. "Os vereadores do MDB, em Xapuri, resolveram fazer um boletim
informativo e utilizaram uma réplica do carimbo da Câmara Municipal. Os vereadores da Arena
apresentaram queixa obrigando o Delegado de Polícia a abrir inquérito para apurar
260
responsabilidades. Fundamentaram a acusação no Código Penal, capítulo III, Da Falsidade
Documental, art. 296. O presidente da Câmara, Guimarães Brasileiro, não desiste de seu intento
policialesco levando o líder do MDB na Assembléia a procurar o Governador para segurar as
feras".
Depois de reproduzir o pronunciamento de Chico Mendes, o jornal fez a seguinte
pergunta: "Dá para entender, agora, porque os vereadores da Arena não admitem que o selo da
Câmara Municipal de Xapuri seja utilizado num boletim para ser distribuído entre a
população?"(Jornal O Varadouro número 4, setembro de 1977, pag 8).
Ao final, o balanço do primeiro ano de atuação parlamentar foi positivo para Chico
Mendes, especialmente por ter descoberto duas táticas que passaria a utilizar em sua luta política
dos anos seguintes: apresentar casos concretos que dificilmente poderiam ser questionados e
enviá-los, na forma de denúncia, para os jornais. Ao tornar públicas suas denúncias obrigava seus
opositores, para se defender, a terem que se expor à crítica da opinião pública. E com um jornal
que circulava no Acre todo, como o Varadouro, não era difícil perceber que angariava a simpatia
da população para o seu lado.
1977 – Conflitos pela Terra
A fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no dia 9 de abril de 1977,
contou com a presença de 302 pessoas, do Governador do Estado e de autoridades de todos os
setores e, da mesma forma como ocorrera em Brasiléia, recebeu o apoio da Igreja Católica, que
cedeu espaço para a reunião157. Mas em uma região que, em cem anos de ocupação, nunca tivera
uma instituição de defesa dos direitos dos trabalhadores, seria natural que a presença da
CONTAG e dos Sindicatos fosse objeto de polêmica e de desconfiança, não somente por parte
dos fazendeiros mas também dos trabalhadores.
Debate semelhante ao que ocorrera na Assembléia Legislativa, sobre o papel da
CONTAG, também surgiu na Assembléia Geral Extraordinária do Sindicato, no dia 8 de maio de
1977, com a presença de 234 associados, do Delegado da CONTAG, João Maia da Silva Filho, e
do Capitão Celso, representando o Diretor de Polícia Judiciária.
O Delegado da CONTAG esclareceu dúvida levantada por depoimento de três
empregados da fazenda Nova Esperança que declararam na Delegacia de Polícia de Xapuri que
teriam ouvido, em reunião realizada no dia 5 de abril de 1977, na casa do sr. João Bezerra, na
colocação Porto Manso, que "a CONTAG autorizava os trabalhadores a entrar nas terras alheias,
inclusive pela força". João Maia explicou que esse tipo de orientação nunca havia sido dada; que
A Diretoria do Sindicato foi formada por Luiz Damião do Nascimento, Antonio Miranda da Fonseca e Alberto
Rocha de Amorim.
157
261
dos três empregados da fazenda um assinou, ou seja colocou o dedo sem ter lido, e não estava de
acordo com as acusações feitas contra a CONTAG em sua declaração; que outros trabalhadores
presentes à dita reunião declararam nunca ter ouvido qualquer orientação da CONTAG para
invadir terras, de maneira nenhuma. O Delegado perguntou à assembléia se alguém ouvira
alguma orientação da CONTAG para entrar em terra de seringal ou fazenda e os presentes
responderam que nunca tinham ouvido tal orientação em nenhuma reunião da CONTAG. O
Delegado deixou bem claro à assembléia que a CONTAG não autorizava nem mandava ninguém
entrar em terra alheia; a CONTAG defendia os direitos adquiridos dos trabalhadores. "Aqueles
que não têm terra e vêm à CONTAG e ao Sindicato, são encaminhados ao INCRA", reafirmou
João Maia. (Arquivo do STRX).
Por outro lado, nem sempre os seringueiros se sentiam protegidos pelo Sindicado, como
mostra uma declaração de um seringueiro, que pediu seu desligamento por não ter conseguido
que o Sindicato defendesse sua posse:
Eu, José Lopes da Silva, brasileiro, casado, 31 anos de idade, residente no Seringal São
Pedro, Rio Xapuri, na colocação Paraíso, há dois anos, declaro para os devidos fins, que o
gerente deste seringal, Sr. Guaraci Teles, me expulsou da minha colocação pelo motivo de
ter vendido um princípe de borracha158 para suprir as minhas necessidades. Este Gerente
veio aqui na sede com o Presidente e o Presidente mostrou as leis para ele, que não tinha
mais sujeição e que o seringueiro tem o seu produto livre. Este gerente saiu zangado com
o Presidente e foi com o Gerente-Chefe da Fazenda Tupá, Sr. Toin, que veio com o
Delegado Enok, me intimou e me obrigou a sair da minha colocação, sem o direito de
indenização. Por este motivo, eu requeiro a minha baixa do Sindicato pois que o
Delegado disse que o Sindicato não valia nada. Para clareza da verdade, assino este
presente instrumento, por mim declarado. Xapuri, 20 de dezembro de 1977 (Arquivo do
STRX).
Dos conflitos pela terra registrados nos jornais naquele ano de 1977 um, em especial,
mobilizou a sociedade acreana e merece destaque: o caso do Seringal Empresa, em Rio Branco159.
O conflito ocorreu no dia 7 de julho, em pleno período de desmatamentos, e resultou no
assassinato, pelos posseiros, liderados por Antônio Caetano de Souza, do representante do
proprietário, Carlos Sérgio, e seu auxiliar, Osvaldo Gonfim. Todos os personagens da história
recente do Acre se envolveram no caso (o fazendeiro paulista e seu representante local, o
Usa-se essa expressão, principe (princípio) de borracha, para uma péla pequena, de cerca de 15 quilos.
O Seringal Empresa era o mesmo do local onde ocorreram os combates liderados por Plácido de Castro na
Revolução Acreana.
158
159
262
posseiro, o policial, o Governador, o Bispo e o INCRA) e seus discursos evidenciam com
precisão a forma crítica como estava se dando o enfrentamento entre posseiros e fazendeiros
naquele momento no Acre.
Arquimedes Barbieri, 60 anos, industrial paulista, era dono da Indústria de Inseticidas e
Óleos Agroeste Ltda. O Seringal Nova Empresa havia sido dividido e ele comprou uma gleba de
10 mil hectares, deixando Carlos Sérgio como seu preposto no Acre. Barbieri disse que não
podiam dar documento aos posseiros porque não haviam pagado o imposto do INCRA e
nenhum contrato particular podia ser feito sem anuência do INCRA. Tinha que pedir certidão
negativa. E surgiu um erro no caso do Nova Empresa. Ele ia pagar 10 a 12 mil pela gleba e o
INCRA passou a exigir 90 mil. Foi pedir parcelamento da dívida e não conseguiu. Estavam
impedidos de dar escritura porque não podiam ir no cartório sem uma certidão negativa do
INCRA.
Carlos Sérgio Zaparoli Sena, 26 anos, era paulista de Marília e sua função no Nova
Empresa era de procurador. Afirmou que a proposta era assentar os seringueiros em lotes de 25
hectares, com escritura, mas sem autorização de vender a área por 4 anos e tendo a empresa a
prioridade de compra, com o objetivo de produzirem hortifrutigranjeiros. Haviam denúncias
contra ele, feitas pelo secretário da bancada do MDB na Câmara Municipal de Rio Branco, Elias
Antunes de Aguiar. Ele havia tentado ir à casa de um posseiro e fora impedido. "Mostrei minha
carteirinha de identificação e ele respondeu que aquilo não significava nada para ele. Que por ali
não passava vereador, nem deputado, nem polícia. Ele expulsou gente com cinco, seis, dez anos
de seringal, que vieram todos algemados para Rio Branco".
Depois desse episódio, o vereador João José de Araújo deu uma sugestão na Câmara
Municipal de Rio Branco: "De muita coisa nosso Estado está carente, mas o mais importante na
conjuntura em que vivemos, é extinguir essa jagunçada de todos os quadrantes do Estado". E
prosseguiu:
Nós, acreanos, temos trânsito livre na Bolívia e por que não temos o mesmo direito em
nossa casa? Precisamos coibir esses abusos, precisamos proteger nossos irmãos que há
anos se embrenharam por essas matas, vivem no seringal Nova Empresa e agora estão
tolhidos, sem liberdade de sair ou entrar; além de ameaçados de perder suas terras,
porque vivem constantemente pressionados por jagunços a mando de patrões que não se
conhece. (Jornal Varadouro No. 2, julho 1977).
O jornal perguntou a Carlos Sérgio, por que ele expulsava os posseiros? Ele respondeu:
Ora, há muita diferença entre o seringueiro, o posseiro e o invasor. O primeiro não cria
problemas, trabalha de parceria. O posseiro, o que toma posse de terra devoluta, da
263
União, não existe no Acre porque não há mais terra devoluta no Acre. E há o invasor que
vai na conversa dos tumultuadores, ou que vai instigado por alguém a entrar na terra... Eu
não expulso ninguém. Nunca expulsei, ou então não existe justiça. Houve uma revolução
em 1964. Eu era pequeno mas meu pai me disse que a revolução foi feita para garantir o
direito à propriedade. E a propriedade deve ser respeitada. Me diga lá, você está tranqüilo
em seu terreno e uma pessoa, sem mais licença, abre o portão e vai entrando assim....
Pode? Eu tenho obrigação de deixar entrar lá quem eu quiser.
Antonio Caetano de Souza, cearense, 53 anos, pai de 18 filhos, posseiro, declarou que ele
e outros companheiros não saíam da terra porque os proprietários não queriam dar escritura,
nenhum documento que garantisse o outro lote oferecido como indenização. E como Carlos
Sérgio insistia em tirá-los da terra assim mesmo, armaram a tocaia:
Eu atirei seguro para ele não escapar e se não faço isso ele me matava. Os proprietários
queriam tirar a gente da terra, dizendo que íamos para o outro lote. Mas eles não
garantiam esse lote, não forneciam documento nenhum, queriam somente que a gente
saísse. Várias vezes fui ameaçado por Carlos Sérgio e procurei as autoridades em Rio
Branco. Pedi garantia de vida ao diretor de Polícia Judiciária, fui ao governador, ao
INCRA. A gente já nem trabalhava só procurando as autoridades para resolver o nosso
problema.
Caetano reuniu 20 homens em sua casa para decidir sobre o capataz do Nova Empresa e
seu auxiliar, por estavam "espalhando espalhando o terror no seringal" e afirmou aos jornalistas:
Por Deus, me desculpe que não sei nem assinar meu nome, moço, mas conheço o direito.
E, por Deus, isto aí tá errado, tá errado, muito errado... Eu morava no Nova Empresa e
me mandaram embora de lá. Agora me perdoe mas eu conheço o direito e sei que isto
está errado, tá errado, muito errado. Eu sou filho daqui da terra, nascido neste lugar que
Deus criou e como, com que direito os outros que são de fora vêm me tirar da minha
terra? Como, me responda o senhor que é estudado...
O Delegado Wilpídio Hilário de Souza, do 1º Distrito Policial de Rio Branco, admitiu que
Carlos Sérgio não tratava os posseiros com bons modos e temia pela sua sorte, por causa de sua
manifesta arrogância. Contou sobre um velho posseiro a quem o capataz chamou de "cabra velho
sem vergonha", deixando-o moralmente abatido, a ponto de caminhar 20 km a pé para se queixar
ao Delegado, em Rio Branco.
Conflitos como este levaram o bispo Dom Moacyr Grechi, da Prelazia do Acre e Purus e
presidente da CPT a escrever um documento ao Presidente da República nos seguintes termos:
264
"Esgotadas as esperanças de solução por vias legais, o desespero costuma conduzir à violência,
como aconteceu na semana passada no seringal Nova Empresa, onde dois capatazes foram
mortos... Numerosas famílias deixaram suas terras ou por não conhecerem seus direitos ou por
não ter como defendê-los e hoje se encontram na capital ou nas sedes dos municípios, que não
têm condições de absorver toda essa mão de obra".
Em depoimento à CPI da Terra, Dom Moacyr Grechi relacionou os conflitos às
irregularidades fundiárias (práticas da grilagem, falsificação de títulos, esticamentos) bastante
generalizadas, afirmando que os problemas sociais se agravavam a partir do momento em que
começavam as derrubadas nas áreas adquiridas pelas empresas para formar pastagens. "Sendo que
a terra geralmente é ocupada por famílias de seringueiros ou agricultores, um dos primeiros
objetivos dos fazendeiros é o de limpar a área, isto é, tirar das terras os moradores que nela
trabalham 5, 10, 20 ou 40 anos, sem o menor respeito pelos direitos dessa gente", declarou.
Continuou sua explanação afirmando que o fato de os seringueiros e colonos não
conhecerem as leis agrárias e os direitos que elas garantem ou por não ter como fazê-los respeitar,
resultava na prática comum de expulsar posseiros através de métodos como: a) não fornecimento
de mercadorias para os seringueiros, obstrução de varadouros, proibição de desmatar e fazer
roçados; b) destruição de plantações, invasão de posses, derrubadas até perto das casas dos
posseiros, deixando-os sem ou quase sem terra para trabalhar; e) compra de posses e benfeitorias
por preços irrisórios ou, quando muito, em troca de uma área muito inferior ao módulo, o que
não permitirá ao posseiro e família trabalhar e progredir; d) atuação de pistoleiros que
amedrontam os posseiros numa guerra psicológica através de ameaças ou mesmo com
espancamentos e outras violências; e) ameaças feitas por policiais a serviço dos proprietários,
prisões de posseiros por questões de terra sem ordem judicial ou por ordem judicial sem que
tenha sido movida a ação competente (Jornal Varadouro N. 5, novembro de 1977).
Também o Governador do Estado, Geraldo Mesquita, fez uma exposição ao Presidente
da República, quando de sua visita ao Acre, solicitando intervenção do governo para equilibrar a
situação econômica do Acre: "A borracha, mais que uma contingência histórica na vida do Acre,
é uma realidade econômica insofismável. Seu desempenho, na composição tributária estadual,
ainda é cerca de dez vezes superior ao do setor agropecuário como um todo.... Os novos
povoadores, entretanto, estão se dedicando, principalmente, à pecuária. Tem-se, dessa forma,
dois Acres distintos, um avançando e outro recuando. Não resta a menor dúvida que uma política
de laissez-faire transformará, em pouco tempo, o Acre num estado puramente agropecuário. Este
é, portanto, o momento de o Governo intervir para conseguir um pouco de equilíbrio". (Jornal
Varadouro N. 3, Agosto 1977).
265
Em nada diferia a situação vivida pelos posseiros do Seringal Empresa e aquela relatada
no caso do Seringal Carmen. Enquanto no Carmen os posseiros puderam contar com a assessoria
legal da CONTAG e fizeram um acordo, no caso do Empresa o confronto foi direto. Os
posseiros planejaram o assassinato do gerente e se justificaram alegando auto-defesa, mas foram
presos.
O caso serviu para acentuar as críticas públicas ao modelo agropecuário que estava se
implantando no Acre, uma vez que ao substituir a antiga economia dos seringais deixava os
seringueiros sem alternativa de sobrevivência. De maneira generalizada a pecuária encontrava
forte resistência, não somente por parte dos trabalhadores, mas também dos intelectuais locais.
Em entrevista ao Varadouro, o economista acreano Mário Lima afirmou que a "pecuária
não é uma solução para a economia da região, é ecologicamente uma desgraça e socialmente um
crime" e propôs a reativação dos seringais, em um momento que o país consome mais borracha
do que produz e paga mais divisas em função do aumento dos preços do petróleo. A reativação
dos seringais implicaria em modernizar a tecnologia e a forma de organização da produção,
através do estabelecimento de cooperativas. Salientou, também, como causa dos conflitos a
especulação na compra de terras: "No caso do Acre precisaríamos analisar que tipo de empresário
veio para cá. Quem acompanhou as vendas de terras sabe muito bem que o que está circulando
por aí é mais carta de opção do que dinheiro, investimento real. Essas cartas passam de mãos em
mãos, envolvendo milhares de hectares de terra... a maioria dos empresários está se servido da
captação ou se aproveitando da indústria dos incentivos fiscais. Tivemos pessoas que vieram para
cá sem um centavo no bolso, apenas com uma dessas cartas de opção e conseguiram vultosos
financiamentos bancários. O Banco financiou a compra da terra, a implantação dos projetos e, às
vezes, financiou até a 'falência', quando não a 'grilagem'" (Varadouro N. 4, setembro de 1977).
Críticas semelhantes também eram feitas por cientistas de renome nacional e
relacionavam a presença das empresas agropecuárias ao aumento dos desmatamentos e
queimadas. Warwick Kerr, então Diretor do INPA, exemplificou o que ocorria na Amazônia
com os dados sobre o desmatamento no Acre: em 1974, era inferior a 1% da área florestal; em
1975, dobrou para 1,8% da área florestal e em 1976 a devastação destruiu 3,5% da floresta
acreana. Ao desmatamento acompanham as queimadas; densas nuvens de fumaça cobrem o Acre
a partir de julho e agosto. E as perspectivas eram críticas, segundo o cientista: o Projeto Novo
Oeste, que estava sendo implantado em Porto Rubim, às margens do rio Envira, no vale do
Juruá, tinha como meta, em 1976, desmatar cerca de 3 mil hectares, um trabalho para mais de 600
homens. Em uma expressão que ficou famosa e passou a ser repetida por todos, Kerr disse:
266
Não devemos permitir que gaúchos, paulistas e outros, venham acabar com as florestas
da Amazônia. Eles chegam aqui, criam o boi, mandam a carne para a Alemanha e outros
países, o dinheiro fica por lá e o homem da Amazônia fica apenas com o berro do boi.
(Jornal Varadouro No. 1, Maio 1977).
As alternativas elencadas por Warwick Kerr incluíam: radical alteração da legislação
florestal que permite a substituição de matas naturais por florestas artificiais formadas de pinus e
eucalipto; criação imediata de parques ou reservas florestais; reformulação do IBDF dando-lhe
reais condições de executar a política florestal. Estes temas passaram a fazer parte das denúncias e
das discussões realizadas pelos seringueiros naqueles municípios, como Xapuri e Brasiléia, onde
os Sindicatos já estavam organizados.
1978 - História de Vida
No ano de 1978, Chico Mendes consolidou sua dupla atuação, como sindicalista e como
político. Retomou suas atividades como seringueiro para poder se associar, manter seu vínculo e
influenciar as decisões do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri. Além disso, ampliou seu
horizonte político envolvendo-se com segmentos intelectuais de Rio Branco e atuando
clandestinamente no PC do B. Ao final do ano conseguiu se destacar como vereador, sendo
eleito Vice-Presidente da Assembléia Legislativa.
Outra reflexão importante, desse momento, foi a avaliação em relação aos conflitos e às
conquistas dos Sindicatos, como resultado dos acordos feitos entre seringueiros e fazendeiros,
mediados pela CONTAG. Como já havia ficado evidente na avaliação dos resultados dos empates,
a legislação que assegurava indenização para posseiros, era adequada para agricultores e não para
extrativistas. Chico Mendes percebeu que receber um pedaço de terra não resolvia a situação dos
seringueiros, que não se adaptavam a outro sistema de trabalho e, aos poucos, começou a propor
como objetivo da luta defender a colocação, não aceitando pequenos lotes de terra como
indenização.
Vereador e sindicalista
Os anos de 78 e 79 foram difíceis. Eu como vereador e ao mesmo tempo como
sindicalista. O problema é que, como político, estava sentindo certa dificuldade de entrar em
contato com os trabalhadores, com o Sindicato. Além disso, o estatuto do Sindicato não permitia
que eu, como político, fosse sócio. Mas só que aqui me colocaram uma imposição. Eu não
poderia ser sócio do Sindicato como vereador, eu tinha que exercer alguma atividade no campo
para poder ser sócio. Pensei então que, voltando a ser trabalhador, teria toda a liberdade de agir. E
eu aceitei. Então na época da safra da castanha eu ia cortar castanha, era época do recesso da
267
Câmara e eu aproveitava prá ir cortar seringa ou coletar castanha. Aí o Sindicato me aceitou como
sócio e comecei a participar quase que diretamente já das decisões do Sindicato. A coisa ficou
mais ampla, ficou melhor prá mim e os seringueiros não estranharam minha decisão porque
estava lá no meio deles como um trabalhador qualquer.
Por achar que a tribuna da Câmara não dá a solução para o trabalhador e por achar que o
político que realmente se compromete com a luta do trabalhador deve estar ao seu lado, decidi,
então, ir quebrar castanha para estar ao lado dos seringueiros. Eu sentia o problema da luta
sindical em Xapuri, a pressão dos patrões, dos fazendeiros, dos próprios políticos da oposição,
pelos quais fui acusado até de agitador.
Aí eu tive que enfrentar uma briga contra os fazendeiros e uma briga contra seis
vereadores e isso foi uma das experiências mais amargas que eu passei. Só que isso me ajudou a
amadurecer muito e aprender muita coisa e comecei então a descobrir como funciona a máquina
político-partidária, o esquema tão trágico, tão ridículo, como que funciona a coisa, como é que os
trabalhadores são enrolados e servem de massa de manobra prá fortalecer os políticos, e os
trabalhadores, inconscientemente, eles fazem que nem uma pessoa que encontra um leão ferido,
cura ele prá depois ser devorada por ele. Quer dizer, os trabalhadores fortalecem os políticos, que
defendem os inimigos deles e muitos não descobrem isso, ainda não descobriram e isso foi uma
lição, prá mim, nesse tempo.
Em 78 foi o momento mais difícil prá mim, porque eu enfrentava uma luta interna contra
os companheiros de bancada e enfrentava uma outra luta contra o latifúndio e, ao mesmo tempo,
eu comecei a ter um relacionamento com o outro lado, dos intelectuais, do pessoal mais de
formação diferente, que eram estudantes e professores universitários e que participavam de outros
movimentos de esquerda. E esse pessoal começou a me cooptar e eu comecei a ter entrosamento
também com esse outro lado da história. Ao mesmo tempo eram pessoas ligadas aos partidos
clandestinos e eu comecei a me entrosar também. Cheguei a participar, inclusive, do movimento
clandestino, do PC do B, naquela época na clandestinidade. Eu comecei a me entrosar e achava
bonita a proposta das esquerdas e então comecei a descobrir que eu estava no partido errado, mas
por uma questão de tática, tinha que seguir, por enquanto, usar aquele mandato como
instrumento de luta, porque sem ele seria pior. Naquele momento era a avaliação que se fazia.
Mas no final do ano, aproveitando uma crise entre os dois partidos existentes, MDB e Arena, fui
eleito Vice-Presidente da Câmara Municipal de Xapuri.
Em 78 passamos também por uma fase muito difícil, de repressão, quando começamos a
resistência contra o desmatamento. A Polícia Federal começou a pegar no meu pé, fui submetido
a vários interrogatórios isolados, sem o acompanhamento de ninguém. Depois veio aquele
julgamento em tribunal militar, em 1981.
A gente foi descobrindo, no decorrer dos dias, do processo, do avanço da
conscientização, que o importante não era fazer acordo com fazendeiro e ganhar um pedaço de
268
terra. O importante era lutar pela conservação da nossa floresta, da defesa da seringueira e,
finalmente, da defesa das nossas posses.
De modo que a partir de 1977, 78, 79, houve momentos de enfrentamento muito
perigosos, porque aí a nossa posição era de defesa mesmo, não deixar derrubar a seringueira e não
aceitar pedacinhos de terra, porque depois a gente foi percebendo que os primeiros acordos que
foram feitos, os companheiros que recebiam um pedaço de terra, não chegava a dois anos e já
estavam vendendo ao fazendeiro, porque já não se adaptavam àquele sistema de trabalho.
1978 – Atuação Parlamentar
A Câmara Municipal de Xapuri iniciou o Segundo Ano Legislativo da Quinta Legislatura,
em 1978, com o mesmo número de vereadores, quatro da Arena e três do MDB e a mesma
composição da Mesa Diretora160. O ano legislativo teve 24 sessões ordinárias e FM esteve
presente em todas, realizando pronunciamentos na maioria das sessões. Continuou como ViceLíder da Bancada do MDB e, ao final do ano, em decorrência das eleições, algumas mudanças
foram realizadas na posição ocupada pelos partidos: Euclydes Guimarães Brasileiro, da Arena,
assumiu a Prefeitura Municipal de Xapuri em função do afastamento do prefeito, Ivonaldo
Portela, acusado de corrupção; Wagner Oliveira Bacelar, do MDB, assumiu a Presidência da
Câmara; o vereador Félix Pereira foi eleito Deputado Estadual e renunciou ao mandato de
vereador; Francisco Alves Mendes Filho assumiu a posição de Vice-Presidente da Câmara.
Em geral o ano foi fraco em termos de debates políticos, com discursos centrados nos
problemas urbanos de Xapuri, principalmente na questão da precariedade das estradas e dos
transportes públicos e em pronunciamentos alusivos a datas comemorativas como Dia das Mães,
Dia do Soldado. É necessário destacar, no entanto que, neste dia, FM, diferentemente dos
demais, fez referência específica aos Soldados da Borracha:
Hoje é um dia reconhecido em nosso país como o dia do soldado e por esta razão eu
solicito à Mesa, que faça constar em ata estas minhas palavras, as quais se referem àqueles
patriotas que trabalham mediante um soldo. Luiz Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias,
cujas altas virtudes cívicas e militares o transformaram em patrono do Exército brasileiro.
O dia do seu aniversário natalício, 25 de agosto, é considerado em todo o Brasil, como o
dia do soldado. Para finalizar seria uma injustiça não se fazer ao menos referência àquele
soldado que tem um papel tão importante na nossa história acreana e que não é
lembrado, nem tampouco ouvido pelas autoridades: é o nosso Soldado da Borracha,
A Mesa Diretora da Assembléia Legislativa em 1978 foi semelhante à de 1977, formada pelos seguintes
vereadores: Presidente: Euclydes Guimarães Brasileiro da Arena; Vice-Presidente: Wagner Oliveira Bacelar, do MDB;
Secretário: Eurico Gomes Fonseca Filho; Líder da Bancada da Arena: Eurico Gomes Fonseca Filho; Líder da
Bancada do MDB: Félix do Valle Pereira.
160
269
soldados seringueiros que vieram para desenvolver a nossa terra acreana e muito pouco
têm recebido em recompensa pela grandiosidade de tudo que fizeram.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Vice-Líder do MDB,
Ata da Vigésima Primeira Sessão Ordinária, 22 de setembro de 1978
Ainda com referência às datas históricas, deve-se registrar que novamente foi lembrado o
papel de Xapuri na Revolução Acreana161, evidenciado em discurso do Líder do MDB:
Alguém já afirmou alhures: o homem é um eterno construtor dos mecanismos sociais
geradores dos dramas que singularizam as sociedades. José Plácido de Castro foi, sem
dúvida, o construtor destes mecanismos aqui no Acre. O drama do Acre foi a luta contra
a incompreensão daqueles que dirigiam a política interamericana do Brasil. Foi luta contra
os primeiros vôos sobre o Brasil do imperialismo europeu e norte-americano. Devo
também lembrar a ação guerreira da Revolução de Seis de Agosto de 1902, a qual
defendia os direitos de nossa pátria. Este era o quadro que se nos apresentava, era este
estado de fato que, em 1902, estava pondo em perigo as boas relações que sempre
animaram o povo brasileiro e o povo boliviano.
Vereador Félix Pereira, Líder da Bancada do MDB,
Ata da Décima Nona Sessão Ordinária, 18 de agosto de 1978
O tema que mais mobilizou a atenção dos vereadores de Xapuri, em 1978, foi a discussão
sobre a nova política para a borracha, representada pela abertura de crédito através do PROBOR
II, programa coordenado pela SUDHEVEA. FM ocupou a tribuna para divulgar os encontros
que a SUDHEVEA estava organizando com o objetivo de acelerar o processo de contratação de
projetos relacionados com o PROBOR II e dar oportunidade aos seringalistas de debater seus
problemas com representantes do Governo Federal, responsável pela política de produção da
borracha. Ao mesmo tempo que apoiava essa iniciativa do governo, a bancada do MDB criticava
a política fundiária pelo fato de estar gerando conflitos sociais.
Usando da palavra, o vereador descreveu uma série de desacertos praticados pela política
governamental, quer no setor borracha, quer no que diz respeito à situação fundiária e os
reflexos que têm causado à economia acreana, contribuindo para o empobrecimento dos
municípios interioranos, o deslocamento da mão de obra do campo para a cidade,
facilitando a especulação fundiária. Demonstrou com dados as causas de falecimento do
nosso outrora pujante comércio. No Acre não existiu problemas de terras e hoje a
situação agrava-se dia a dia, pois o governo assumiu posição facciosa. E agora, o governo,
A referência recorrente ao tema da Revolução Acreana, nos pronunciamentos dos vereadores de Xapuri, confirma a
tese que desenvolvemos no início deste trabalho com relação à conexão que os seringueiros sempre fizeram entre a
luta em defesa de suas posses e a conquista do território no início do século, evidenciando tratar-se, também de uma
ideologia predominante na sociedade de Xapuri.
161
270
sentindo os erros de sua política, e o clamor popular, resolveu partir para as
desapropriações.
Vereador Félix Pereira, Líder da Bancada do MDB,
Ata da 11a Sessão Ordinária, 19 de maio de 1978
O vereador iniciou parabenizando o líder de sua Bancada pelo seu importante
pronunciamento, fez autêntico apelo para a liberdade democrática em nosso país, que foi
eliminada desde 64 e foi imposto um desenvolvimento econômico nada original. Criticou
ainda a quebra do monopólio da borracha em nosso Estado, a queda dos salários e a
profunda deterioração do nível de vida dos trabalhadores e exaustiva penetração do
latifúndio em nosso Estado. A gestão da atual crise econômica apareceu pelo
impedimento da organização autônoma dos trabalhadores e o segundo Plano Nacional de
Desenvolvimento vai apenas conseguir harmonizar os efeitos da crise do modelo imposto
ao país após 64. Finalizou ressaltando que o referido modelo imposto em 64, serviu
exclusivamente aos grupos monopolistas nacionais e especialmente estrangeiros.
Vereador Francisco Alves Mendes Filhos, Vice-Líder da Bancada do MDB,
Ata da 11a Sessão Ordinária, 19 de maio de 1978
Havia consenso, tanto entre os políticos quanto entre os seringalistas, sobre a necessidade
de rever a política para a borracha, principalmente por considerarem os desacertos das políticas
governamentais a principal causa da crise que atingia o setor. Mas quando se tratava de discutir
soluções, centravam suas críticas na Igreja e nos Sindicatos afirmando que as novas regras
definidas para a comercialização da borracha do seringueiro, contribuíam para aumentar a dívida
dos seringalistas com o BASA. Em função disso, os políticos se mobilizaram para pressionar o
governo visando o perdão das dívidas acumuladas com o Banco:
Hoje durante a sessão do PROBOR II, realizada na capital acreana, na sede da
Assembléia Legislativa do Estado do Acre, Sua Excia. o Governador do Território de
Rondônia propôs àquela Assembléia que fossem perdoadas as dívidas dos seringalistas
para com o BASA, evidenciando assim um reconhecimento dos desacertos e vacilações
enfrentados pela política governamental do setor borracha que aos poucos está levando à
estagnação os municípios interioranos do interlando amazônico, do qual o nosso querido
Xapuri poderá servir de amostra. Na oportunidade fez a demonstração da relação
nominal de nossos seringais e sua respectiva produção em quilos. E finalizando apelou
para que as autoridades responsáveis pela política do setor borracha se dignem prestar um
pouco de atenção a este seu pronunciamento e às verdades que ele encerra, tendo por
objetivo trazer subsídios para o aumento da produção e produtividade de nosso principal
produto.
Vereador Félix Pereira, Líder da Bancada do MDB,
271
Ata da Quinta Sessão Ordinária, 31 de março de 1978
Visando discutir as regras de utilização dos recursos do PROBOR para reabertura de
seringais nativos, a SUDHEVEA organizou vários encontros com seringalistas em diversas
capitais da Amazônia. A pauta incluía vários temas, dentre eles assistência técnica, crédito,
problemas fundiários, comercialização e preços. A SUDHEVEA tinha como objetivo alterar o
sistema tradicional de produção ainda adotado, que era a defumação, por um novo, denominado
de CVP - Cernambi Virgem Prensado, que exigia menor tempo e melhorava a qualidade do
produto final. Os recursos para o PROBOR, conforme já abordado em capítulo anterior, eram
originários da taxa que equiparava o preço da borracha importada ao da nacional, a TORMB.
Em Rio Branco, o Encontro de Seringalistas ocorreu nos dias 28, 29 e 30 de março de
1978 e dois debates merecem destaque: sobre a situação fundiária do Acre e sobre as regras de
comercialização da borracha162. Na medida em que os seringueiros não eram chamados a
participar de nenhuma destas reuniões, as críticas sobre a atuação sindical ficavam sempre sem
resposta.
Sobre a questão fundiária, todos os aspectos apontados anteriormente, quando este tema
foi tratado, estavam presentes nos discursos dos seringalistas. Eles afirmavam que não podiam
obter financiamento no BASA porque não conseguiam Carta de Anuência do INCRA, que não
reconhecia o Registro de Imóveis como equivalente ao título definitivo da propriedade, mas
somente como uma demonstração de intenção de propriedade, não gerando direitos definitivos
sobre o seringal. O INCRA, por outro lado, afirmava que somente podia reconhecer estes
registros numa extensão de até 2.000 ha, conforme estabelecia a lei e que estaria sendo estudada a
possibilidade destes títulos serem reconhecidos até 10.000 ha. Somente estavam sendo
reconhecidas áreas maiores, até 70.000 ha, para aqueles seringais que possuíam títulos expedidos
antes do Tratado de Petrópolis. Os seringalistas associavam as dificuldades com o INCRA à
atuação dos padres e do Bispo.
O Bispo prometeu terra, incitando o trabalhador a não sair da colocação, incitando o
trabalhador a não entregar a borracha, incitando o trabalhador a não pagar a renda ao
seringalista, dizendo que a terra é de Deus e eles de lá não devem sair. A queixa é de um
modo geral. E também em todos os Sindicatos rurais, também interferindo exatamente
com os mesmos argumentos, dizendo que a terra não é dos seringalistas, que o
seringalista, apesar de ter escritura, de ter o registro de imóveis, muitos também têm título
definitivo – estes não se queixam – todos se queixam da classe eclesiástica, da ação do
Os debates foram transcritos de gravação realizada por mim durante o encontro, em Rio Branco, no dia 29 de
março de 1978.
162
272
Bispo e dos padres aqui na região e também do Sindicato rural. (Seringalista em Reunião
da SUDHEVEA, Rio Branco, 29.03.1978).
O gerente do BASA, por outro lado, se defendia colocando a responsabilidade na
CONTAG. Ao orientar o seringueiro a vender a borracha por conta própria, os Sindicatos
estavam impedindo o seringalista de firmar contrato com o Banco, uma vez que não conseguiam
atender às suas cláusulas contratuais, a de fiel depositário e do empenhamento da borracha. A
conclusão era que o Banco deixaria de financiar o seringalista prejudicando o seringueiro que, por
não ter estrutura social e empresarial para ser financiado, abandonaria a produção. Em resumo,
os seringalistas defendiam seus próprios interesses argumentando que, dessa forma, estavam
procurando evitar uma crise social nos seringais.
Além do perdão da dívida, os seringalistas pediam a volta do monopólio da borracha.
Entendiam que essa seria a única forma de resolver o problema do marreteiro que estava
invadindo todos os seringais. A SUDHEVEA encerrava o debate explicando que o monopólio
havia sido extinto a pedido dos próprios seringalistas e que a política vigente obrigava a indústria
de borracha a consumir 25% do produto nacional, garantindo a segurança do seringalista e do
usineiro de vender a borracha a qualquer momento. Com a queda do monopólio havia sido
possível criar a taxa de valorização que se transformara em um programa de incentivo à
produção, o PROBOR.
As pressões dos seringalistas e da SUDHEVEA fizeram a CONTAG mudar sua
orientação em relação à liberdade de comercialização da borracha por parte do seringueiro. Para
aqueles que viviam em seringais financiados pelo BASA, ou seja, os que não eram autônomos, a
obrigatoriedade de entregar a borracha para o patrão acabou sendo reafirmada pelos Sindicatos,
como já foi apontado.
1978 – Conflitos pela Terra
O papel das autoridades policiais, em aberta defesa dos interesses dos fazendeiros, foi um
dos elementos que mais dificultou o trabalho de defesa dos direitos dos seringueiros e
trabalhadores rurais que a CONTAG realizava no Acre naquele período. Denúncias de violência
e de prisões arbitrárias de trabalhadores, a pedido de fazendeiros e seringalistas, constam dos
arquivos do STRX e das páginas dos jornais.
Em abril de 1978, um ano depois de sua criação, o STR de Xapuri fez uma assembléia
extraordinária, com a presença do Delegado da CONTAG, João Maia, para eleger uma nova
diretoria, uma vez que muitos cargos estavam vagos em função da dificuldade dos seringueiros
conciliar a busca da sobrevivência com o trabalho sindical. O segundo ponto mais importante da
273
reunião foi a reclamação generalizada, dos membros do Sindicato, sobre prisões irregulares
realizadas contra trabalhadores rurais pelo Delegado de Polícia de Xapuri, Enock Pessoa de
Araújo. O Delegado da CONTAG informou que estas arbitrariedades já haviam sido relatadas ao
Secretário de Segurança e ao Governador do Estado e que aguardava soluções.
Chico Mendes já havia denunciado, na tribuna da Câmara, no ano anterior, a ausência de
um juiz em Xapuri o que tornava o Delegado de Polícia a autoridade superior em qualquer caso
de conflito entre seringueiros e patrões ou seringueiros e fazendeiros.
Segundo o presidente do Sindicato, Luiz Damião, em depoimento prestado na Delegacia
de Polícia de Rio Branco163, o Delegado Enok Pessoa de Araújo se envolvia em problemas de
terra, intimidando os seringueiros a deixar suas posses sem indenização, apreendendo produtos
de seringueiros quando vinham à cidade para comprar seus mantimentos, devolvendo a borracha
aos patrões e o Sindicato recebera inúmeras denúncias de agricultores e seringueiros que haviam
sido presos e espancados por determinação do delegado. Contou, também que, na condição de
presidente do Sindicato fora chamado pelo delegado, humilhado e desacatado moralmente pelo
mesmo, inclusive taxado de "velho safado, subversivo e agitador", talvez porque defendia os
direitos do trabalhador rural à frente do Sindicato. A pedido dos trabalhadores rurais
prejudicados por Enok, redigiu uma carta endereçada ao Secretário de Segurança Pública,
solicitando a substituição daquele Delegado.
Os casos de injustiça contra seringueiros, cometidos pelo Delegado, eram públicos em
Xapuri e a população havia ficado especialmente revoltada com o que ocorrera com Adolfo
Custódio da Silva, de 46 anos, morador da colocação Escondido, no Seringal Porto Rico, de
propriedade de Gastão Mota. Ele ficara preso por três meses, sem direito à defesa, por tentativa
de homicídio, quando reagiu à invasão de sua colocação por um empregado do seringalista. O
delegado pressionou o seringueiro preso a receber CR$2.000,00 de indenização pelos bens que
tinha na colocação, descontando desse valor CR$800,00 por conta do custo do tratamento do
empregado ferido. A mulher do seringueiro, com 4 filhos menores, foi despejada da colocação a
mando do patrão. Em levantamento feito pela CPT na colocação do seringueiro seus bens foram
estimados em CR$40.000,00 e o caso foi comunicado ao Governador através de ofício da
CONTAG.
Outro conflito registrado pelo Sindicato de Xapuri estava ocorrendo no Seringal Porto
Manso, na colocação Bonfim. Quatro irmãos seringueiros, trabalhando há 20 anos na colocação,
cortando seringa, estavam sendo pressionados a não colocar roçado e a deixar o local, sem
Depoimento do STR de Xapuri, Luiz Damião do Nascimento, 54 anos, na Delegacia de Polícia do 1o Distrito, em
Rio Branco, em relação aos conflitos que estavam ocorrendo em Xapuri, em agosto de 78.
163
274
indenização, porque o seringal havia sido vendido. Estavam vivendo em condições precárias
porque o ramal que eles mesmos haviam aberto, da colocação até a estrada, agora passava no meio
da fazenda e o capim colonião estava fechando a estrada cada vez mais, impedindo a saída.
Foram intimados várias vezes pelo Delegado de Polícia para tentar um acordo, mas o proprietário
só chegava depois que os posseiros já haviam saído. Uma proposta feita aos posseiros foi a de
receberem 50 hectares de terra noutro lugar, mas eles acharam impossível viver em 4 famílias na
outra terra, pois além do mais já estava em parte explorada. O Sindicato estava tentando
intermediar um acordo em melhores condições para os posseiros.
Mas os conflitos não se resumiam à expulsão da terra pelos novos proprietários.
Denúncia registrada pelo Jornal Varadouro mostrou que os antigos regulamentos dos seringais
continuavam sendo motivo de conflito com os seringalistas. O seringueiro Manoel Eustáquio, de
49 anos, morador do Seringal Curitiba, próximo de Nova Olinda, na colocação Maravilha, estava
acostumado a produzir mil quilos de borracha por safra, entregando toda a produção para o
seringalista Antônio Leite, em troca do aviamento. Analfabeto, não sabia fazer contas, por isso
nem procurava pelo saldo, que nunca teve. Há quase meio século, desde que começara a cortar
no Alto Purus, com 9 anos de idade, tinha sido assim. Ele tinha aprendido a conviver com a
injustiça, ou talvez nem conseguisse distingui-la como tal, uma vez que fazia parte de seu
cotidiano e dos seringueiros em geral.
Mas agora tinha acontecido algo diferente: o seringalista, com mais três capangas,
armados de carabina, expulsaram-no do seringal e queimaram seu barraco com todos os
pertences. Ele havia descumprido uma regra fundamental: vendera borracha para outro patrão.
Estava faltando querosene no barracão de Antônio Leite e o seringueiro vivia há dias no escuro na
sua colocação. Ele sabia que era proibido vender a borracha fora do seringal, mas achou que,
naquela situação, o seringalista entenderia se ele trocasse apenas 10 quilos do produto por
querosene, no seringal vizinho. Por isso foi avisá-lo do seu feito, para que tudo parecesse legal. O
seringalista, contudo, marcou data para ele deixar a colocação com a família. Vender borracha fora
do barracão continuava sendo um crime imperdoável, apesar dos avanços que estavam sendo
feitos pelos Sindicatos.
Em função das denúncias de desmatamentos, em novembro de 1977 o IBDF editou uma
portaria proibindo a derrubada das castanheiras, em toda a Amazônia. Mas isso não impediu que
a floresta continuasse sendo destruída. Ao contrário, a partir de então, o cenário amazônico
passou a ser o de imensas pastagens com centenas de castanheiras mortas no meio. Nas áreas
desmatadas, as castanheiras foram ficando em campo aberto, longe do ambiente natural e sem
capacidade de reprodução ou então foram ficando secas devido ao fogo.
275
Para os empresários sulistas, a proibição somente dificultava os desmatamentos e
passaram a chamá-la da "vaca sagrada" dos acreanos. Para os seringueiros, não podia haver crime
maior. Para eles, a castanheira era o símbolo de uma preciosa fonte de recurso natural:
O que se está fazendo com a castanheira e a seringueira é um verdadeiro crime. É um
crime derrubar uma árvore como esta. A castanheira e a seringueira são como se fossem
nossas mães. Quando nossos pais vieram do Nordeste para cá, tiraram delas o sustento.
Foi com leite de castanha que nos criaram. Foi com leite de seringa que nos vestiram.
Para tornar ainda mais incoerente a política do governo para a região, o financiamento do
PROBOR para o cultivo da seringueira exigia que a terra ficasse completamente limpa, inclusive
com a retirada das castanheiras, uma determinação que conflitava com a diretriz do IBDF. Para
compensar, o IBDF decidiu executar um projeto de produção de mudas de castanha para
reflorestamento das áreas onde haviam sido aplicados os recursos do PROBOR. Ou seja,
primeiro cortava a castanheira, plantava a seringueira e depois plantava novamente as mudas de
castanheira.
Denúncias como essas passaram a ocupar, cada vez mais, não somente as páginas mensais
do Varadouro, mas também dos jornais diários. A animosidade contra os fazendeiros era
crescente, uma vez que não havia uma área na qual a implantação de seus projetos não implicasse
na expulsão de posseiros. Estes mesmos trabalhadores, vivendo agora na periferia das cidades e
sem oportunidades de emprego, acabavam sendo contratados como peões dos mesmos
fazendeiros e voltavam para os seringais para desmatar a floresta que era, antes, sua fonte
principal de subsistência.
1979 - História de Vida
Em 1979, Chico Mendes foi escolhido Presidente da Câmara Municipal de Vereadores de
Xapuri e seus discursos foram críticos tanto em relação ao governo quanto ao seu próprio
partido, atraindo contra si a oposição de todos os demais vereadores. Suas ações também foram
mais radicais: em setembro ele realizou uma reunião com lideranças dos trabalhadores rurais no
plenário da Câmara, durante a qual os vereadores foram publicamente atacados, o que aguçou a
animosidade contra ele. No dia 29 de novembro, em reunião secreta, foi decidido que ele deveria
renunciar à Presidência, o que aconteceu na sessão pública realizada no dia seguinte.
Presidente da Câmara
Em 1979 assumi a Presidência da Câmara, com a destituição do Prefeito. Em novembro
promovi uma grande reunião com lideranças sindicais e religiosas, transformando a Câmara num
276
foro de debates. Fui acusado de subversão e sofri os primeiros e duros interrogatórios. Em
novembro, em meio a uma forte pressão liderada pelas duas bancadas na Câmara, renunciei à
presidência da mesma. Em dezembro, quatro homens mascarados me seqüestraram em Rio
Branco e fui torturado secretamente. Tarde da noite, me abandonaram numa rua deserta. Não
tinha como denunciar publicamente o fato, pois a imprensa estava ao lado dos fazendeiros. Não
desisti e continuei enfrentando, ao lado dos seringueiros, a luta nos empates.
No final de 79 surgiu o PT e então a grande expectativa já de sindicalistas de São Paulo e
mesmo aqui do Acre, era a minha adesão ao Partido dos Trabalhadores e aí eu passei uma
transição difícil. O PC do B considerava traidor, naquele momento, todo aquele que aderisse ao
Partido dos Trabalhadores. Como eu discordei de algumas posições do PC do B, naquela época,
porque a gente se articulava na luta contra o latifúndio, mas quando eu enfrentava a luta dos
empates, que a repressão caía em cima de mim, eles se escondiam por detrás das cortinas e só
aparecia eu na história. E eu comecei a ficar meio bravo com aquilo, desconfiando daquilo, e aí eu
fui e rompi com o grupo do PC do B e então aderi ao Partido dos Trabalhadores e comecei a
minha militância política no Partido dos Trabalhadores. E como era um partido que vinha se
afinando com o movimento sindical, eu ingressei.
Só que também passei por experiência amarga, não pela própria orientação nacional do
partido, mas por vários grupos que também entraram no partido e houve divergências internas e
eu também fui vítima desse confronto, interno. Fui candidato em 1982 a deputado estadual pelo
PT e perdi e percebi que, naquele momento, também cheguei a enfrentar oposição interna.
Porque alas com tendência mais à direita achavam que a minha candidatura representava um
perigo dentro do partido, porque poderia levar o partido a uma posição muito radical e coisas
dessa natureza. O pior de tudo isso foi ter sido criticado por setores da Igreja e, muito pior ainda,
porque eram setores da Igreja tidos como progressistas naquele momento.
Mas tudo bem, eu avaliei, achei que isso fazia parte do processo da luta mesmo e
continuei. Mas fui me afinando mais com o movimento sindical. Eu achei que era a bandeira mais
eficiente prá mim atuar dentro dela, era o movimento sindical e isso me recordava muito as lições
aprendidas com Euclides Távora, em 65. Mas mesmo assim, eu continuei na militância do Partido
dos Trabalhadores.
A partir de 79, os seringueiros partiram para outra opção. Não dava mais para aceitar um
pedacinho de terra que não ia adiantar. Isso era uma desgraça para nós. Nós decidimos que o que
tínhamos que fazer era defender as colocações e a seringa e, com isso, estávamos preservando a
floresta também, como fizemos há tantos anos e isso temos que continuar a fazer. Com isso
conseguimos frear muito a devastação da área, mesmo enfrentando a polícia que, como até hoje,
sempre se coloca ao lado dos fazendeiros, no Acre, como em todo o Brasil.
Eu lembro que houve um grande movimento, também, com a Polícia Federal do outro
lado, em que vários posseiros estavam encurralados por um grupos de pistoleiros e, dessa vez,
num passo histórico, 400 posseiros se organizaram e foram nessa área para libertar os
277
companheiros das mãos dos pistoleiros. Esse foi o primeiro passo de demonstração de
solidariedade, foram 400 seringueiros do Estado do Acre para essa área para defender os
companheiros de Boca do Acre. Foi um passo histórico.
O deslocamento de posseiros para a área teve um certo apoio da CONTAG, no sentido
de garantir o transporte de caminhão. De qualquer forma, a CONTAG estava ali para prevenir,
para demonstrar que não estava insinuando a violência no campo, já que a gente enfrentava um
processo da ditadura militar muito perigoso, um período muito negro. Os posseiros se
organizaram também e o pessoal fez uma conta de modo que de cada município vinha gente e de
cada Sindicato que estava organizado veio um bocado de gente. No fim, se juntou 400 posseiros,
400 companheiros que tiveram um papel muito importante em salvar a situação dos dezenas de
posseiros que estavam para ser encurralados pelos jagunços no município no Estado do
Amazonas.
1979 – Atuação Parlamentar
A Câmara Municipal de Xapuri iniciou o Terceiro Ano Legislativo da Quinta Legislatura,
em 1979, com o mesmo número de vereadores, quatro da ARENA e três do MDB, mas com
mudanças na posição ocupada pelos partidos em decorrência das eleições realizadas no ano
anterior. Em conseqüência, houve também uma renovação nos membros da Mesa Diretora164. O
ano legislativo teve 28 sessões ordinárias e, como nos anos anteriores, FM esteve presente em
todas, realizando pronunciamentos na maioria das sessões. O vereador Euclydes Guimarães
Brasileiro, da Arena, que havia assumido a Prefeitura em decorrência do afastamento do Prefeito,
em novembro de 1978, foi substituído, em março, pelo vereador Antônio Farias de Araújo, da
Arena, por ser Presidente da Câmara, assumindo em seu lugar, Francisco Alves Mendes Filho,
que era Vice-Presidente. João Simão dos Santos, suplente de Félix Pereira, assumiu a vaga aberta
com sua eleição a Deputado Estadual, tendo este sido escolhido Presidente da Assembléia
Legislativa.
As mesmas questões sobre administração da cidade foram tema dos debates durante todo
o ano: abastecimento precário de água, falta de energia elétrica, ausência de fiscalização nos
preços do comércio da cidade, melhorias nas estradas vicinais, problemas de transporte intermunicipal.
Diferentemente dos anos anteriores, neste, os problemas dos seringueiros e dos conflitos
de terra predominaram em quase todas as sessões. No princípio, o MDB falou a mesma
164
A Mesa Diretora da Assembléia Legislativa em 1979 foi formada pelos seguintes vereadores: Presidente: Antônio
Farias de Araújo da Arena; Vice-Presidente: Francisco Alves Mendes Filho, do MDB; Secretário: Amadeu Dantas
Dias da Arena; Líder da Bancada da Arena: Euclydes Guimarães Brasileiro; Líder da Bancada do MDB: Wagner
Oliveira Bacelar.
278
linguagem, criticando, por exemplo, a atitude dos novos proprietários de colocar porteiras que
impediam a circulação das pessoas entre os seringais, ou a devastação da flora local que estava
sendo feita pelos sulistas, prejudicando os seringais nativos e levando ao fracasso seringalistas e
arrendatários165. Também o Líder da Arena, Euclydes Brasileiro se manifestou pedindo
informações ao IBDF no sentido de que o órgão informasse as razões da proibição da derrubada
da castanheira não se estender também à seringueira (Oitava sessão, 27 de abril de 1979).
O acordo interno do MDB acabou na oitava sessão, ocorrida no dia 27 de abril, quando
FM fez um discurso criticando os políticos acreanos por esquecerem os compromissos
assumidos com o povo durante as últimas eleições:
Tinham eles prometido lutar por uma melhor estrutura agrária em favor do homem do
campo e até agora tudo neutralizado, nenhuma esperança para o seringueiro e o que se
nota é as constantes injustiças aos seringueiros. Continuando, o vereador teceu críticas
aos órgãos com competência de zelar pela referida causa. Senhores, não devemos chorar
mais tarde os atos de violência por causa da omissão das competentes autoridades que
não agiram em tempo em proveito da justiça. E finalizou solicitando providências
urgentes nesse sentido.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Presidente da Câmara,
Ata da Oitava Sessão Ordinária, 27 de abril de 1979
Este discurso desencadeou a primeira crítica a ele feita pelo próprio MDB, na sessão
seguinte, em pronunciamento do vereador Wagner Bacelar, que acabou se transformando no
cerne dos embates políticos que surgiram naquele ano:
Na reforma política de 1978 foi suspensa por um ano a Lei de Infidelidade Partidária,
para a criação de outros partidos. Assim, ficaram os parlamentares brasileiros com
liberdade para escolher o partido que quisessem filiar-se ou continuar no que estivessem.
Com esta liberdade o MDB está recebendo adesões, mas acredito que também perderá
alguns de seus filiados. Na sessão do dia 27 de abril passado ocupou a tribuna o
Excelentíssimo Sr. Vereador Francisco Mendes do MDB, atual Presidente em exercício
da Casa. Em seu pronunciamento, pela maneira de expressar-se, senti que pretende
mudar de partido já que o nobre Vereador é da oposição e ocupou a tribuna para criticar
seus correligionários da Assembléia Legislativa do Estado. Na Assembléia temos o nosso
representante xapuriense, o ilustre Deputado Félix Pereira, atual Presidente daquela Casa,
eleito pela legenda do MDB. Adianto ao ilustre Vereador Francisco Mendes que, na
campanha eleitoral de 1978, acompanhei os passos do candidato eleito Félix Pereira em
165
Discurso do vereador Wagner Bacelar do MDB na sétima sessão ordinária, em 20 de abril de 1979.
279
sua cabala de votos e jamais presenciei o mesmo fazer promessas de regularizar a situação
de nossos seringueiros, como expressou-se o nobre Vereador. O Deputado Estadual
Félix Pereira jamais usou de demagogia e de falsas promessas por ser um homem que tem
personalidade partidária e social, merecendo assim nosso respeito. É de nosso
conhecimento que o desajuste que impera no meio rural, quer de âmbito nacional ou
regional, tem como responsáveis os órgãos federais e não os estaduais. Os deputados
estaduais apenas estão na obrigação de solicitar ao governo estadual para que, junto ao
governo federal, tome as medidas necessárias em favor dos seringueiros acreanos. Sr.
Presidente e Srs. Vereadores, ocupo esta tribuna como representante do povo xapuriense.
Tenho a honra de ter sido eleito pela legenda do MDB e nele continuarei. Depois de o
MDB ter enfrentado por 13 anos um regime discricionário em uma luta constante, temos
alcançado, passo a passo, o retorno paulatino para uma abertura política com o objetivo
de chegarmos a uma plena democracia...
Vereador Wagner Bacelar, Líder da Bancada do MDB,
Ata da Nona Sessão Ordinária, 4 de maio de 1979
A resposta de FM a este discurso foi afirmar que seu compromisso estava acima dos
partidos, por envolver uma determinação de dar sua própria vida, se necessário, para defender o
povo, sempre injustiçado e marginalizado. A partir deste momento, em todos seus discursos, ele
criticou a atuação do MDB e indicou sua disposição em mudar de partido por entender ser
necessário continuar mantendo uma postura de oposição:
Vejam meus Senhores que surpresa para nós e para vocês. Há poucos instantes nós
vínhamos a esta tribuna para protestar contra aqueles que querem prejudicar o povo. Mas
vejam, meus amigos, eu fui eleito pela sigla de um partido contra outro partido. Mas hoje
estou aqui em nome de um povo que está acima de qualquer partido. Acredito que o
cidadão que assume a responsabilidade de representar uma classe e se nega a defendê-la,
ele não merece confiança, nem é capaz de representar uma classe. Não falei em nome de
Félix Pereira e aí está a ata da sessão para desmascarar sua denúncia e estarei disposto a
criticar todos aqueles que não tiverem coragem de lutar por este povo. Também Sua
Excelência não pode afirmar nada, porque nunca contei com vossa presença, em nenhum
comício, pois os comícios do interior não contavam com sua participação. Infelizmente, o
momento é crítico em minha Bancada. Mas me animo, pois tenho compromisso é com o
povo que me elegeu, não é com partido, pois acima deste partido está o povo, pelo qual
estou decidido a sacrificar a própria vida; este povo que está sempre injustiçado e
marginalizado, não pode ficar sozinho. Sua Excia. fala em lei, mas parece que não
conhece o Estatuto da Terra; a lei 4.504 diz que todo posseiro com mais de um ano e um
dia não pode ser despejado de sua posse sem antes ser indenizado. E Sua Excia. recebeu
280
votos deste povo e, no entanto, deixa eles sozinhos. Não tenho eu paixão por sigla
partidária, não sou covarde para temer e não defender este povo, que me confiou o seu
voto. Se eu represento uma classe e não tenho coragem de defendê-la, eu desisto.
Outrossim, o MDB chega ao poder com o mesmo comodismo. Eu não serei mais desse
partido, serei sempre oposição, firme e decidido, pois não devo e nem tenho
compromisso com o partido.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Presidente da Câmara,
Ata da Oitava Sessão Ordinária, 27 de abril de 1979
A sessão foi encerrada com um discurso de Wagner Bacelar que evidenciou claramente o
confronto que o partido passou a adotar em relação às posições de FM:
Quando venho a esta tribuna, para fazer um pronunciamento, quer escrito ou
improvisado, minhas palavras são bem pensadas e analisadas, para não cair em ridículo
para com os meus nobres pares e o público. No Grande Expediente, V.Excia. Sr.
Vereador Francisco Mendes, fez a sua justificativa, que não tinha citado o nome do
Deputado Félix Pereira, mas V.Excia. pronunciou-se no plural, criticou os deputados da
oposição. V.Excia. é representante do povo Xapuriense, Félix Pereira é representante do
povo de Xapuri e, sem dúvida alguma, quis referir-se à pessoa do nobre Deputado Félix
Pereira. Mas eu, como líder da Bancada do MDB nesta casa, representante do Deputado
Félix Pereira aqui em Xapuri, estou no direito de defender críticas formuladas contra
aquele Deputado. É de nosso conhecimento que Félix Pereira jamais faz promessas que
não possa cumprir. O nobre Vereador não tem conhecimento dos trabalhos
parlamentares do Deputado Félix Pereira, na Assembléia Legislativa do Estado.
Vereador Wagner Bacelar, Líder da Bancada do MDB,
Ata da Nona Sessão Ordinária, 4 de maio de 1979
A questão da defesa dos seringueiros continuou ocupando os pronunciamentos dos
vereadores na sessão seguinte, realizada no dia 11 de maio de 1979. Wagner Bacelar fez referência
a discurso feito pelo Presidente da Assembléia Legislativa do Acre, Deputado Félix Pereira, sobre
o problema maior que está "na desativação da maioria dos seringais acreanos e no conseqüente
êxodo rural que a tentativa de implantação da pecuária está provocando e criticou a política
econômica do governo e se manifestou como um dos maiores defensores do extrativismo e
apelou para que o governo dividisse o Estado em zonas de produção, onde seriam estabelecidas
as áreas para as diversas atividades econômicas". Em seguida, defendeu-se da acusação de que
seria contra os seringueiros:
281
Queria uma justificativa de um mal entendido de pessoas que encontravam-se na galeria
desta Casa na sessão passada. Chegou ao meu conhecimento que estavam apregoando
pela cidade que eu estava contra os seringueiros. Nos primeiros dias de representante do
povo nesta casa, critiquei o Governo Federal sobre o abandono dos nossos seringueiros.
Sou bem claro, em parte dou razão aos grupos empresariais, eles compraram as terras, o
Governo Federal não proíbe as derrubadas e as irregularidades contra os seringueiros.
Nada poderei fazer em defesa desta classe injustiçada, se não apenas criticar o Governo.
Vereador Wagner Bacelar, Líder da Bancada do MDB,
Ata da Décima Sessão Ordinária, 11 de maio de 1979
No dia 18 de maio de 1979, durante a Décima Primeira Sessão Ordinária da Câmara, FM
fez a primeira denúncia pública de ameaças que estava recebendo:
As visitas que fiz a vários seringais surtiram efeito, tanto que não tardaram as pressões e
ameaças sobre a minha pessoa, pois no sábado passado fui advertido pelo Sr.
Rubiquinho, da Fazenda Filipinas que, ao me encontrar ao lado do Hotel Xapuri, me fez
severas advertências, em sinal de represália ao apoio que dei àqueles posseiros.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Presidente da Câmara,
Ata da Décima Primeira Sessão Ordinária, 18 de maio de 1979
Na 14a sessão, analisando a conjuntura do país, FM continuou sua crítica ao MDB,
afirmando que, no quadro de abertura política, existiam diferentes tendências dentro do partido
de oposição ao regime, o MBD:
Nota-se também que a primeira tendência da oposição corresponde aos setores
privilegiados burgueses temerosos de que a completa liquidação da ditadura os deixe cara
a cara com as massas oprimidas e exploradas; e a segunda tendência da oposição
corresponde aos setores populares da sociedade interessados em levarem até o fim a luta
contra a miséria e a opressão. Até agora esses dois setores da oposição, em meio a crises e
dificuldade, têm convivido dentro do MDB, mas é evidente que ele vai se tornando uma
camisa estreita demais para esse fim. Por um lado, são setores moderados que buscam
insistentemente um partido próprio; e outros setores estão conseguindo depurar a vida
sindical, acuar os pelegos, garantir na prática métodos democráticos e conquistar vitórias
memoráveis. Certamente toda essa experiência será muito positiva em nossa luta pela
transformação do MDB em um verdadeiro partido popular.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Presidente da Câmara,
Ata da Décima Quarta Sessão Ordinária, 22 de junho de 1979
O debate sobre as questões agrárias teve prosseguimento nas sessões seguintes:
282
Há poucos dias reuniram-se mais de dois mil trabalhadores em nosso vizinho município
de Brasiléia, ocasião em que se fez presente o Sr. Governador do Estado, Joaquim Falcão
Macedo, que na oportunidade transmitiu sua mensagem perante aquela multidão de
trabalhadores que pediam uma melhor estrutura agrária e protestavam contra a infiltração
dos latifundiários, que procuram por todos os meios perturbar a tranqüilidade das
famílias de seringueiros. Por outro lado, estranha-se porque a TV Acre divulgou somente
a mensagem governamental enquanto a voz dos líderes sindicais ficaram sepultadas no
silêncio, no momento em que se fala em abertura política.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Presidente da Câmara,
Ata da Décima Quarta Sessão Ordinária, 22 de junho de 1979
O vereador FM referiu-se a uma notícia do jornal "O Rio Branco" que dizia 'Seringueiro
seqüestra fazendeiro', onde disse acreditar que esse fato possa acontecer, pela situação
que ora vem se verificando por parte dos posseiros e seringueiros; falou sobre as forças
que se opõem à redemocratização; falou ainda sobre os paulistas que se apossaram das
terras dos posseiros do nosso Estado com isso prejudicando milhares de famílias que aqui
residem. E finalmente fez apelos para que o governo olhe com mais carinho e atenção
para esse povo, que muito vem sofrendo e que necessita do nosso apoio.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho, Presidente da Câmara,
Ata da Vigésima Sessão Ordinária, 30 de agosto de 1979
Este pronunciamento foi apoiado pelo vereador do MDB, Wagner Bacelar, que falou
ainda sobre o desinteresse dos governos para com o homem do campo e finalmente pediu
soluções para tais problemas.
Na 22a sessão, realizada em 28 de setembro, o debate sobre a questão da terra continuou
e contou com a presença do vereador de Rio Branco, Adalto Paiva, que disse ter ouvido com
bastante atenção o vereador Wagner Bacelar quanto ao problema da terra, mas afirmou que o
vereador só responsabilizou o governo federal enquanto ele achava que "o governo federal não
era o único culpado e sim os seus delegados, ou seja, os governadores, que não fizeram cumprir
as leis em defesa dos seringueiros e hoje o nosso estado está entregue às empresas de outros
estados". E finalizou criticando o governo estadual pelo desmando existente no estado. Wagner
Bacelar contra argumentou afirmando que do seu ponto de vista o único culpado era o governo
federal, pois os investidores não tinham culpa de nada e finalizou fazendo a leitura de um
pronunciamento do Deputado Félix Pereira, o qual dizia que o seringueiro acreano estava se
transformando em verdadeiro bóia-fria. FM tomou a palavra para afirmar que tinha admirado
muito o pronunciamento do vereador Adalto Paiva, e continuou dizendo que "estava disposto a
283
seguir na luta contra o latifúndio e que lutaria pela permanência do trabalhador na terra, doa a
quem doer, mas minha luta continua em defesa dos menos favorecidos".
Estava criado o contexto de confronto entre FM e os demais vereadores, seja em relação
às questões fundiárias envolvendo os seringueiros, quanto em relação ao verdadeiro papel
oposicionista do MDB. Passo a passo, Francisco Mendes ia radicalizando suas posições em
defesa dos seringueiros e perdendo o apoio do MDB. Esse processo culminou com a realização
de uma grande reunião, no plenário da Câmara, no dia 17 de setembro, organizada por FM, com
a presença de trabalhadores rurais ligados ao Sindicato, para discutir os problemas que estavam
enfrentando, que passou a ser o motivo principal de crítica ao Presidente da Casa e que
desembocou no seu afastamento.
Na 27a sessão ordinária, realizada no dia 23 de novembro, o vereador João Simão dos
Santos, Vice-Líder do MDB, apresentou ao Presidente da Comissão de Justiça, uma denúncia
formal contra o Presidente da Câmara Municipal de Xapuri, sob a alegação de que a reunião
realizada com os seringueiros no plenário da Câmara contrariava os estatutos e convocou, em
seguida, os membros da Comissão para uma reunião na qual deveriam resolver os devidos
processos. A posição foi endossada pela maioria dos demais vereadores, que acrescentaram
críticas à atuação do STR de Xapuri. A única exceção foi o vereador Amadeu Dias, que convidou
FM a sair do MDB e ingressar na Arena:
Euclydes Brasileiro: advertiu o Presidente por ter realizado reuniões que não pertencem à
Câmara nesta Casa do Povo e, conseqüentemente, ferindo o regimento interno.
Amadeu Dias: fez uma explanação sobre o Sindicato Rural dos Trabalhadores, onde
enfatizou que o Sindicato nada vem fazendo para com os associados, pois deveria ter
médicos, dentistas e advogados, para darem assistência aos seus associados; disse ainda
que isso está sendo um absurdo e pediu aos srs. Vereadores o apoio inconteste, uma vez
que nós temos que zelar pelo nosso povo.
João Simão dos Santos: congratulou-se com o pronunciamento de Euclydes Brasileiro,
advertindo o Presidente para não fazer reuniões que não sejam políticas na Casa do Povo.
Eurico Filho: teceu críticas ao Presidente da Casa, pelo fato do mesmo ter outorgado
direito a pessoas estranhas a ocuparem a tribuna dentro de um horário reservado
exclusivamente aos vereadores.
Wagner Bacelar: enfatizou sobre pessoas que criticam o Deputado Félix Pereira, dizendo
que ele não faz nada em prol do homem do campo, são pessoas que não sabem o regime
daquela Casa Legislativa, que impede o Presidente de fazer qualquer indicação e sim
284
pronunciamentos resumidos e referiu-se ainda sobre o regimento da nossa Casa que não
está sendo respeitado.
João Simão: disse que não é contra o Sindicato e sim contra a doutrina deles, de
conformidade com o que disse na reunião realizada dia 17 do corrente.
Wagner Bacelar: fez leitura de uma manchete do jornal A Gazeta do Acre, onde dizia:
'Seringueiros debatem com Vereadores em Xapuri', mas discordou plenamente e disse
que o que houve foi alguns seringueiros pressionando o Deputado Félix Pereira,
insinuados pelo Vereador Francisco Mendes, discordando plenamente do nobre
Vereador, pois sei perfeitamente da sua intenção, intenção esta de ser candidato a
Deputado Estadual nas próximas eleições. Finalmente disse o Vereador que não tem
demagogia e nem vai enganar ninguém para colher votos do povo.
Amadeu Dias: disse que vem ouvindo atentamente as palavras dos Srs. Vereadores, como
também as discussões dos mesmos, pediu em primeiro lugar paz e harmonia e disse que
isso é uma verdadeira vergonha, dizendo ainda que, como vice-líder do ex-partido da
Arena, não admitia coisas dessa natureza nesta Casa do Povo, pois o Vereador é uma
autoridade soberana, de uma vez que ele é votado pelo povo; enfatizou que o Vereador
deve ter o respeito de ambas as Bancadas e notou as críticas sobre o seu nobre colega
Vereador Francisco Mendes e sendo assim, fez convite ao mesmo para que ele viesse
trabalhar junto à nossa Bancada, porque quando observamos coisas dessa natureza, são
elementos querendo se limpar com o sujo dos outros.
Eurico Filho: falou sobre o Sindicato Rural dos Trabalhadores, dizendo que
evidentemente que bem administrado surte efeito, mas em nosso município não
observamos esse desenvolvimento, qual seja, o de dar assistência aos seus associados.
Wagner Bacelar: disse discordar do pronunciamento do Vereador Amadeu Dantas Dias,
no que diz respeito ao que falou que estamos criticando e apedrejando Francisco Mendes
e finalmente discordou dizendo que alguém quer se limpar às custas do referido
legislador.
FM: falou diretamente da Mesa Diretora, onde agradeceu em aparte o pronunciamento
do ilustre Vereador Amadeu Dantas Dias, com referência à minha pessoa, quanto ao
convite feito pelo nobre colega, eu prefiro me silenciar um pouco e ser o último a se
movimentar. E disse que quanto aos erros, reconhece que errou e todos nós temos erros.
Enfatizou que quanto às acusações feitas pela oposição de maneira nenhuma se
surpreendeu, pois acredito que, talvez o desespero dominou essas pessoas e fez com eles
285
ocupassem a tribuna para dizerem o que bem queriam. Quanto à reunião realizada nesta
Casa dia 17 do corrente, adiantou que se esta é uma casa do povo e nós trabalhamos pela
democracia, o povo deve participar e disse que não houve humilhações e se o povo
pressionou é porque ele sente algum problema e está vendo que não está certo. Disse
ainda que não era culpado do jornal publicar que o Vereador João Simão foi vaiado pelo
povo que ocupava esta Casa e se esses companheiros que saíram humilhados é porque
não tiveram argumento para responder ao próprio povo que cobrava nesse momento
aquilo que lhe era de direito, e para melhor dizer, os senhores sabem muito bem que esse
Vereador entrou com um requerimento, mas não teve condições de ler o requerimento na
tribuna e sim usou intermediário. E finalmente, disse que o seu compromisso é
unicamente com o povo.
Na última sessão ordinária do ano, realizada em 30 de novembro, FM já havia renunciado
ao cargo de Presidente da Câmara dos Vereadores de Xapuri. A sessão esteve sob a presidência
em exercício do vereador Amadeu Dantas e foi secretariada em exercício pelo vereador Eurico
Gomes Fonseca Filho. Foi registrada a entrega, para a Mesa Diretora, de um envelope lacrado
com documentos e uma fita de uma sessão secreta realizada dia 29/11/79 na Casa do Povo, que
foi verificada pelo Presidente da Comissão de Justiça. Em seguida o Presidente, em entendimento
com os vereadores, resolveu realizar a eleição para o cargo vago de Vice-Presidente. Verificada a
votação, foram 4 votos válidos e 2 votos em branco. Depois de apurar os votos, foi constatado o
seguinte resultado: para Vice-Presidente Eurico Gomes Fonseca Filho, eleito com quatro votos.
Em seguida o vereador Euclydes Brasileiro fez entrega da renúncia de Eurico Filho dos cargos de
Presidente da Comissão de Finanças e relator da Comissão de Justiça, em virtude de sua eleição.
O preenchimento do cargo vago de vice-presidente permitiu ao vereador eleito assumir a
presidência da Casa, uma vez que o presidente eleito no início do ano legislativo estava exercendo
o cargo de Prefeito Municipal.
No momento da leitura da Ordem do Dia, o Presidente em exercício convidou os
Vereadores para ficar de pé para o Juramento do novo Presidente do Poder Legislativo
Xapuriense. Logo após o juramento foi empossado no cargo para o qual foi eleito pelos seus
pares. Eurico Filho falou do trabalho, esforço e dedicação em prol da Casa do Povo, dos nobres
colegas que por ali passaram, disse da sua grande satisfação em ter sido eleito para o cargo de
Vice-Presidente da Câmara, que tudo fará para o bem estar do povo e também iria continuar o
trabalho do nobre colega Vereador Francisco Alves Mendes Filho, para que a Câmara possa
desenvolver com mais afinco seus trabalhos e finalizou pedindo dedicação e união de seus pares.
FM parabenizou o Vice-Presidente eleito e empossado como Presidente da Casa do Povo
e disse ainda "que esta missão é muito espinhosa, pois temos que zelar pelo bom andamento da
286
Casa e pelo desenvolvimento e o progresso da comunidade"; enfatizou ainda sobre a organização
dos trabalhos desta Câmara que haviam sido iniciados pela sua pessoa, quando na Presidência
deste Legislativo e esperava que o novo Presidente desse prosseguimento a esse trabalho. E
finalmente falou sobre o recesso da Casa na certeza de que na próxima legislatura poderiam
trabalhar com mais afinco e harmonia para a arrancada desenvolvimentista da comunidade.
Em março de 1980 o jornal Varadouro publicou a primeira entrevista dada por Chico
Mendes para um veículo de comunicação166, e tanto a manchete quanto a chamada do texto,
sintetizam a decisão tomada por ele ao final de 1979: ser vereador sem deixar de ser seringueiro.
O Vereador Seringueiro
Por achar que a tribuna da Câmara não dá solução para os trabalhadores e por achar que o político que
se compromete com a luta dos trabalhadores deve estar ao lado deles, decidi, então, ir quebrar castanha para estar
ao lado dos seringueiros.
Na boca de qualquer político acreano, esta frase sairia atravessada e dificilmente
convenceria. Dita, entretanto, pelo vereador Francisco Mendes, ou Chiquinho Mendes, ela soa
natural, espontânea e convence. Chiquinho Mendes, no dizer de um dirigente da CONTAG, é o
único político acreano que se pode confiar. Originariamente foi seringueiro, ajudou a fundar os
Sindicatos dos trabalhadores rurais de Brasiléia e Xapuri, elegeu-se vereador pelo MDB de Xapuri
e atualmente, voltou ao Seringal Porvir onde está trabalhando, durante o recesso parlamentar, na
coleta de castanha. Foi a maneira que encontrou para passar suas férias.
Sua história de vida é simples e comum como a da grande maioria dos trabalhadores
acreanos. Nasceu no Seringal Porto Rico, município de Xapuri e, aos dez anos, já trabalhava
como seringueiro para sustentar a família, porque o pai ficou aleijado. Com a morte deste,
mudou-se com a mãe para a sede do município. Mas quando a CONTAG chegou no Acre e
começou a campanha de sindicalização por Brasiléia, Chiquinho Mendes foi dos primeiros a se
engajar na luta porque, como diz, "antes mesmo que a CONTAG chegasse, eu já sentia o
problema dos seringueiros explorados pelos patrões seringalistas e acochados pela polícia quando
vendiam a borracha para terceiros e todas aquelas barbaridades do seringais do Acre. Em 1975,
começa também a investida dos fazendeiros 'paulistas'. Em Brasiléia, quase todos os seringais
foram vendidos para grupos sulistas".
JV: Como foi o início do Sindicato? Fácil ou difícil, hein Chico?
CM: Não foi muito difícil porque todo mundo estava vivendo o problema e a gente já
tinha certa orientação para defender a terra. Mas houve, sim, algumas incompreensões de alguns
companheiros e principalmente pressões dos patrões seringalistas e dos fazendeiros. Diziam que
éramos 'um bando de subversivos' e procuravam amedrontar o pessoal.
Ver Varadouro N. 18 de março de 1980. Estou afirmando que é a primeira entrevista publicada não só porque
não tenho conhecimento de outra, anterior a esta, como pelo fato do entrevistador, anônimo, reproduzir seu nome
da forma como costumavam chamá-lo em Xapuri, naquela época: Chiquinho Mendes.
166
287
Em 1976, eleições para vereadores. Em Xapuri, o MDB não conseguiu completar a lista
de candidados. Então, o hoje deputado estadual e presidente da Assembléia Legislativa, Félix
Pereira, convidou Chiquinho Mendes para se candidatar. Os dirigentes da CONTAG não
concordaram porque o julgavam mais necessário junto ao Sindicato, mas no final ficou
combinado assim: "eu me afastaria temporariamente do Sindicato e caso não fosse eleito, voltaria.
Mas fui eleito com os votos e apoio financeiro dos seringueiros do Porvir que fizeram uma coleta
para custear as mínimas despesas da campanha eleitoral". Nas vésperas das eleições, os
adversários tentaram agredi-lo e até proibiram que Chiquinho distribuísse suas cédulas.
JV: E agora, você volta a ser seringueiro. O que houve?
CM: Eu senti o problema da luta sindical em Xapuri, a pressão dos patrões, dos
fazendeiros, dos próprios políticos da oposição, pelos quais já fui acusado até de 'agitador'.
JV: Então você se desiludiu com a política?
CM: Não é bem isso. O problema é que, como político, estava sentindo certa dificuldade
de entrar em contato com os trabalhadores, com o Sindicato. Além disso, o estatuto do Sindicato
não permite que eu, como político, seja sócio. Pensei, então, que, voltando a ser trabalhador, teria
toda a liberdade de agir. Por achar que a tribuna da Câmara não dá a solução para o trabalhador e
por achar que o político que realmente se compromete com a luta do trabalhador deve estar ao
seu lado, decidi, então, ir quebrar castanha para estar ao lado dos seringueiros.
JV: E não estranhou o "pesado" depois desses anos todos?
Chiquinho diz que não porque desde pequeno foi acostumado a pegar no pesado, como
os seringueiros não estranharam sua decisão porque "estou lá no meio deles como um trabalhador
qualquer".
JV: E não é difícil conciliar ser político com ser seringueiro?
CM: É, não é fácil, porque como seringueiro a gente fica isolado, mais preso ao trabalho e
não pode se movimentar para acompanhar o trabalho em outros seringais. Por isso, inclusive,
estou pensando em adquirir uma colônia, que permitiria maior movimentação.
JV: Mas vai continuar trabalhando?
CM: Vou sim. Trabalhando, a gente fica perto do povo e no momento em que houver
qualquer problema, a gente também se apresenta como um trabalhador, com as mãos calejadas.
Problemas, conflitos pela posse da terra, não vão faltar em Xapuri, onde se concentram
grandes fazendas, inclusive a da multinacional Bordon. No início de abril, com o fim do período
das chuvas, chega a época dos grandes desmatamentos e, segundo Chiquinho Mendes, "o povo
vai reagir porque sabe que não pode perder suas posses. Na Bolívia, os acreanos estão sendo
acochados; o governo boliviano, pelo que consta, estaria jogando impostos altos sobre
seringueiros acreanos para pressioná-los a voltar para o Brasil".
JV: Quer dizer que houve mudança na consciência dos seringueiros?
CM: Sim, a gente sente uma grande transformação. A grande maioria já está consciente de
que a luta deverá ser outra. Estão decididos a defender seus direitos, compreenderam que unidos
288
têm força para segurar a terra e que podem lutar contra o latifúndio. Antes, não sabiam o que
fazer diante do problema, mas com o correr dos tempos, os mais experientes foram
conscientizando os outros, dizendo que a terra é nossa, que foram nossos antepassados que
lutaram para conquistar esta terra e que hoje é possível fazer uma nova reconquista, se for preciso.
1979 – Conflitos pela Terra
No dia 12 de agosto de 1979 o STR de Xapuri realizou eleições gerais, com a participação
de 529 associados, sendo Luiz Damião do Nascimento reeleito presidente. Nos documentos do
Sindicato referentes ao ano de 1979, foram registrados inúmeros conflitos, basicamente com o
mesmo padrão dos anos anteriores: alguns ainda relacionados à tentativa de seringalistas de
manterem as regras tradicionais de controle sobre os seringueiros167; o maior número, porém, foi
referente a posses em seringais vendidos para fazendeiros do sul, posseiros ameaçados de
expulsão sem indenização e desmatamentos atingindo estradas de seringa. Face à crescente
resistência dos seringueiros em deixar suas colocações sem indenizações, os proprietários iam dar
queixa na Delegacia de Polícia e os posseiros pediam a interferência do Sindicato. De maneira
geral a Polícia posicionou-se a favor dos proprietários desqualificando a ação do Sindicato,
chamando os diretores de 'vagabundos e analfabetos', levando o STR a pedir a interferência da
CONTAG junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado.
Mas o ano de 1979 viria a ser lembrado, mais tarde, como um dos mais significativos na
história do movimento social do Acre, pelo tipo de resistência que se desenvolveu no segundo
semestre, sob a liderança do sindicalista Wilson Pinheiro e que conduziu ao seu assassinato no
ano seguinte. O empate mais famoso daquela região ocorreu naquele ano em Boca do Acre, no
Estado do Amazonas e não foi somente contra os desmatamentos, mas contra a grilagem de
terras e a favor dos direitos de posse. Ficou conhecido como "O grande mutirão contra a
jagunçada", título que o Varadouro deu à matéria sobre o assunto (Jornal Varadouro N.16,
outubro 1979).
O local da ação era o Seringal Senápolis, entre os quilômetros 35 e 38 da BR 317, na
rodovia que liga Rio Branco, no Acre, a Boca do Acre, no Amazonas. Ueze Elias Zarhan,
fazendeiro paulista, adquiriu uma terça parte ideal do seringal onde se localizavam 36 famílias de
posseiros e entrou com uma ação de reintegração de posse na justiça. No dia 6 de junho de 1979,
20 policiais e 13 jagunços tentaram expulsar as famílias em decorrência de um mandado de
167 O STRX registrou, por exemplo, o caso de um seringueiro que foi preso, a pedido do patrão, por tentar vender
alguns quilos de cernambi para um marreteiro. Invocando o direito de comercializar com quem oferecesse melhor
preço, o STRX interferiu para que o seringueiro fosse libertado, quando soube que este já havia concordado com o
preço oferecido pelo patrão.
289
despejo, mas o Tribunal de Justiça do Amazonas determinou que fossem reintegrados. Foi então
que os jagunços começaram a dizer: "Vocês ganharam na justiça mas vão perder na bala".
A ação dos jagunços foi marcada pela violência: impediram os posseiros de brocar e
plantar, saquearam as casas, incendiaram os paiós, ameaçaram com armas, deixando-os acuados
em suas posses. Além disso, o pretenso fazendeiro contratou 20 peões para iniciar o
desmatamento nas áreas de posse, com respaldo das autoridades locais, como João Sorbile,
famoso grileiro de terras indígenas, o fazendeiro e vereador da Arena Adão Nunes Barbosa, o
Oficial de Justiça e a Polícia Militar. Duas vezes o juiz convocou um pelotão da PM de Manaus
para fazer o despejo.
A situação ficou tão crítica que a CONTAG decidiu intervir e, fundamentada no fato de
que as terras eram públicas e os trabalhadores tinham o direito de nelas permanecer, reuniu
representantes de Sindicatos de Rio Branco, Sena Madureira, Xapuri, Brasiléia, Feijó, Tarauacá e
Cruzeiro do Sul para uma assembléia geral em Boca do Acre. No dia 2 de setembro mais de 440
trabalhadores, armados de foices e facões, chegaram ao km 28 para o encontro dos sindicalistas
acreanos com os amazonenses. Ali se organizaram em oito pelotões de 50 homens e foram ao
acampamento dos jagunços, sob a liderança de Wilson Pinheiro. Encontraram um arsenal de
armas e munições que foram apreendidas e entregues à Polícia Federal em Rio Branco.
Assumindo o controle da situação os trabalhadores organizaram um mutirão para ajudar as
famílias a brocar e plantar e, depois, uma grande assembléia. Por interferência da CONTAG em
Brasília, houve mudança nos representantes do poder judiciário em Boca do Acre e o conflito foi
considerado encerrado e vitorioso para os trabalhadores168. Outros conflitos ocorreram, com
grande repercussão, no segundo semestre de 1979, no Seringal Guanabara, no Alto Iaco e no
Seringal Nova Empresa, no município de Rio Branco, evidenciando uma crescente mobilização
dos seringueiros, alimentada pela confiança que resultou do empate de Boca do Acre e pelo apoio
da CONTAG e da Igreja.
Na crescente tensão existente entre seringueiros e fazendeiros, em seringais de diferentes
regiões do Acre, algumas informações aparentemente pontuais e inofensivas, acabavam
provocando reações imediatas, revelando que os seringueiros estavam cada vez mais atentos na
defesa dos seus interesses. Foi assim no caso do Seringal Guanabara no Alto Iaco. As ameaças de
expulsão e de derrubada de seringueiras eram constantes, até que os seringueiros ficaram sabendo
que os fazendeiros disseram que eles eram como "cachorro que late mas não morde". A resposta
foi imediata. Quarenta e um seringueiros, irados, decidiram ir para a margem do rio onde
168 As fontes disponíveis sobre esse evento são precárias e seria necessária uma pesquisa no arquivo da CONTAG
para ter elementos mais precisos sobre os aspectos legais do conflito. Apesar dos inúmeros problemas de edição, o
livro de João Antonio Bronzeado, ex-presidente do STR de Brasiléia, "O Crepúsculo dos Líderes", um capítulo sobre
este conflito. (Ver foto 8 no Anexo).
290
colocaram tocos de madeira e empataram, por duas semanas, a pista de pouso utilizada pelo
fazendeiro paranaense Zé Ribeiro. Avisaram o Sindicato e foram buscar apoio na 4a Companhia,
em Assis Brasil, onde denunciaram que estavam tendo suas terras invadidas e suas seringueiras
derrubadas. A resposta que receberam era de que deviam levar os responsáveis até lá. Juntaram
mais de 100 homens armados, vindos de quatro seringais e decidiram "pegar" o seringalista Chico
Vieira e o fazendeiro Zé Ribeiro. Depois de muita discussão em torno de propostas radicais,
decidiram que quatro homens armados iriam falar com o seringalista e com o fazendeiro, para
convencê-los a ir a Assis Brasil discutir o problema da terra com as autoridades. E assim fizeram:
enquanto os quatro foram, os 100 ficaram à distância, esperando, de armas na mão. Depois de
dois dias de caminhada, chegaram lá, os seringueiros e os patrões.
Na reunião na 4a Companhia entrou uma comissão formada por três delegados sindicais e
os dois acusados e ficaram lá uma hora. O povo todo lá fora esperando. A conversa terminou
com um acordo assinado pelos dois lados: os fazendeiros se comprometiam a não entrar mais na
área dos seringueiros e estes iam deixar os fazendeiros em paz. Saíram para tomar cerveja juntos.
Para os seringueiros foi uma decepção. Tinha gente que estava fora de casa há mais de dez dias.
Entendiam que iriam poder falar diante das autoridades, todos juntos, e negociar um acordo para
valer. Semanas mais tarde reuniram-se no Seringal Guanabara com João Maia, da CONTAG, que
reafirmou que era proibido desmatar área de posse dos seringueiros.
Entre os trabalhadores rurais a movimentação foi intensa durante todo o ano, uma vez
que a broca, primeira fase do desmatamento, estava sendo feita pelos fazendeiros, em todos os
antigos seringais no vale do rio Acre e os preparativos para empatar as derrubadas também. A
grande novidade era a organização sindical, que se espalhava pelo Estado, já congregando cerca
de 25 mil pessoas. Onde houvesse um seringueiro, um colono, um posseiro, ali também estava o
Sindicato, afirmavam os jornais, repercutindo o discurso dos seringueiros:
Antes do Sindicato chegar nós vivia no maior cativeiro do mundo, os patrões faziam o
que queriam. Depois chegou o Sindicato explicando os direitos e as leis que protegem os
posseiros e hoje nós não estamos libertos mas pelo menos já temos um amparo. E o que
dizem os patrões? Eles tão tudo revoltado e alguns já disseram que esse negócio de
Sindicato vai dar em muito sangue. Aqui mesmo em Brasiléia eles já juraram de matar o
Presidente. Corre por aí a conversa de que o Nilo comprou um revólver para dar a um
paraguaio para fazer o serviço. Mas eles estão enganados porque o Sindicato não é o
presidente e o que nos dá a coragem é a nossa necessidade. E a reforma agrária? Se o
Presidente não fizer, nóis faz. Não tem prazo. Cada paulista que for chegando nóis vai
resolvendo o problema. (Jornal Varadouro N. 16, outubro 1979, pag 17).
291
A trajetória ascendente do movimento sindical no Acre, entre 1975 e 1980, com a
multiplicação dos empates às derrubadas, a divulgação dos conflitos pela imprensa, a pressão sobre
os órgãos federais e estaduais visando a regularização fundiária, o apoio da Igreja e da CONTAG,
alimentaram a atuação de Chico Mendes na Câmara dos Vereadores. Pela primeira vez um
seringueiro havia alcançado uma posição de destaque na política local, como a que ele
conquistou.
Se tivesse um perfil convencional, mesmo tendo origem nos setores marginalizados e
pobres da sociedade, provavelmente ele teria cedido às pressões de seus pares vereadores e feito
algumas concessões para não perder a posição de Presidente da Câmara. O que ocorreu, na
verdade, foi o contrário. Não somente ele utilizou a ampliação desse espaço de influência para
consolidar os compromissos de seu mandato com os seringueiros, como decidiu estreitar ainda
mais os laços com sua história de vida, reafirmar sua identidade de trabalhador voltando a
trabalhar no seringal.
Apesar da resistência dos seringalistas e da postura agressiva dos fazendeiros, em menos de
cinco anos a realidade em Xapuri mudara profundamente. Havia um Sindicato que se fazia presente
nos conflitos intermediando as partes envolvidas e regulando as relações sociais. Mas certamente
nem Chico Mendes nem as demais lideranças sindicais e políticas estavam preparados para enfrentar
a estratégia definida pelos fazendeiros para conter a ascensão dos seringueiros: o assassinato da
principal liderança rural que havia surgido até então no Acre, Wilson Pinheiro de Souza.
4.3.2
Assassinato de Wilson Pinheiro
Os anos de 1980 e 1981 foram críticos no Vale do Acre. Os fazendeiros decidiram reagir
ao crescimento da organização sindical na região mandando assassinar seu principal líder, o
sindicalista de Brasiléia, Wilson de Souza Pinheiro. E os seringueiros e líderes políticos locais
reagiram organizando uma manifestação pública em Brasiléia, deixando claro que não estavam
isolados ao contar com a presença das principais lideranças sindicais nacionais, inclusive de Luis
Inácio Lula da Silva, sindicalista do ABC paulista, em sua primeira visita ao Acre (Ver foto no
anexo). O assassinato de um fazendeiro, considerado mandante do crime, dias depois, levou a
uma intervenção direta do regime militar por meio do indiciamento na Lei de Segurança
Nacional, dos representantes sindicais que participaram da manifestação, acusados de incitamento
à violência. Foi o primeiro grande revés para a organização sindical no Acre, no momento em
que apresentava as primeiras conquistas e adquiria respeito entre seus associados, em decorrência
de lideranças autênticas como Wilson Pinheiro.
292
1980 – História de Vida
Chico Mendes em Xapuri e Wilson Pinheiro em Brasiléia eram lideranças de destaque no
movimento sindical do Acre e estavam sendo ameaçadas de morte. Um foi assassinado e o outro
foi indiciado. Em Brasiléia o Sindicato entrou em uma fase de acomodação, especialmente em
função da iniciativa do governo de desapropriar terras na região de conflito. Em Xapuri, ao
contrário, o trabalho cresceu muito a partir de 1981, principalmente pelo fato dos empates se
generalizarem em todos os seringais.
Assassinato de Wilson Pinheiro
Em 78 surgiu uma grande liderança em Brasiléia, Wilson Pinheiro, que era um delegado
sindical do Seringal Santa Quitéria, naquela época considerado um dos melhores dirigentes
sindicais do Acre e a maior liderança sindical do Estado. Sob a liderança dele, a partir de 80, os
empates à derrubada se generalizaram por toda a região. A coisa ficou tensa. Foi aí que aconteceu
um problema muito grave, pois um fazendeiro resolveu construir uma pista de pouso no Seringal
São Pedro, a 80 quilômetros de Brasiléia, e começou a desmatar e expulsar gente. Wilson Pinheiro
reuniu os companheiros, foi até lá, esburacou toda a pista, cercou os pistoleiros, tomou as armas,
amarrou o fazendeiro no lombo de um burro e entregou-o, mais uma porção de fuzis
apreendidos, para o destacamento do Exército em Assis Brasil.
O que fazem os latifundiários? Previram esse lance, esse ponto fraco no nosso meio e aí
programam a morte de Wilson Pinheiro, juraram matar o Wilson Pinheiro e eu. Como eu tinha
viajado, estava em Cruzeiro do Sul, fronteira com o Peru, numa assembléia sindical, eles pagaram
um pistoleiro e no dia 21 de julho de 1980, às 7:30 da noite, Wilson Pinheiro é assassinado, dentro
do Sindicato. Um pistoleiro contratado pelos fazendeiros matou Wilson na escada do Sindicato.
Era uma grande liderança de toda a Amazônia. Ele tombou, foi morto.
Isso foi uma forma de esvaziar o movimento sindical, de fato. E a gente percebeu que
não houve assim uma posição radical por parte da Confederação Nacional. Ficou muito naqueles
discursos de solidariedade e alguma coisa que foi feita na prática foi feita pelos próprios
trabalhadores.
A morte de Wilson gerou uma reação muito grande e coincidiu com a época em que o
Lula e eu estávamos organizando o PT na região. Num ato público que realizamos em Brasiléia,
até com a presença do Lula e de outros companheiros, havia 5 mil pessoas presentes.
Terminamos o comício à meia-noite e viemos embora. A gente não acreditava mais na
justiça, pois todo o mundo sabia que o fazendeiro Nilo Sérgio havia sido o mandante. Mas de Rio
Branco chegou uma ordem para parar as investigações. Uma semana depois, seringueiros e
colonos fizeram uma emboscada na entrada da Fazenda Santa Quitéria e mataram o fazendeiro
que havia mandado matar Wilson. Aí a justiça funcionou. Atribuíram que foi influência do nosso
293
discurso. Só que eles estavam a 85 km de onde aconteceu o ato público, não poderia ter nenhuma
influência do Lula, nem minha.
Isso desencadeou uma repressão sem precedentes contra os seringueiros, que foram
presos às dezenas e torturados. Em 1980, passei 90 noites dormindo em lugares diferentes. Eu fui
submetido a duros interrogatórios e depois, junto com o Lula, acusado de incitar a violência. Até
hoje acusam a orientação política de criar a figura de uma grande liderança como o Wilson, não se
preocupando em recriar a força nas bases. Naquela época ele encabeçava todos os movimentos e
os fazendeiros, compreendendo isso, mandaram matá-lo.
Depois disso, houve um recuo muito grande do movimento sindical, principalmente no
Vale do Acre. Os Sindicatos sofreram um impacto com a morte do companheiro e isso nos levou
a mais uma lição na nossa luta, de que nós não podemos, de repente, concentrar a nossa confiança
só numa pessoa.
E os fazendeiros usavam uma tática de tentar fazer acordo com as lideranças. Eu mesmo
fui vítima disso. Lembro que no caso da morte do companheiro Wilson Pinheiro, muita gente foi
envolvida. Quando os trabalhadores vingaram a morte do companheiro Wilson, começou a haver
justiça do lado dos fazendeiros, aí a justiça começou a prender seringueiro, torturar seringueiro.
Aqueles que não foram torturados, foram processados. Eu fui um deles. A pedido dos fazendeiros
fui indiciado na Lei de Segurança Nacional.
E o que faz o governo? Prá dar uma de bonzinho, desapropria, diz que vai fazer a
reforma agrária para atender as reivindicações dos trabalhadores. Desapropriou 90 mil hectares de
terra em algumas regiões do Acre, nas áreas de conflito. E o que é que aconteceu? Ele
taticamente, com muita inteligência, que nós consideramos um acordo nos bastidores com os
fazendeiros, desapropriou e o INCRA loteou a terra, loteou. Aí o governo, dizendo que estava
dando tantos mil hectares de terra aos trabalhadores, que era uma mentira, porque quando ele
recebeu o lote da terra e a escritura, aí já havia um imposto e uma série de pagamentos. Quer
dizer, o governo não dá terra, você fica pagando ela. E se passa o prazo de pagar aquela taxa, você
é punido. Foi isso que aconteceu.
O governo dá essa terra, diz que deu, e daí com o decorrer do tempo, o seringueiro
deixou de cortar a seringa, ele agora ia passar a plantar arroz, a plantar feijão e mandioca para ter
aquilo como seu mercado para a partir dali tirar o seu lucro. Aí o governo não adotou uma
política de crédito, não deu condições para a família do seringueiro trabalhar, não deu escola, não
deu estrada para escoar a produção. Aí as pessoas se viam encurraladas e vendiam a terra para os
mesmos fazendeiros. As terras retornaram de uma forma legal para as mãos dos fazendeiros. Isso
consideramos um esquema, uma tática legal do governo em beneficiar o latifundiário de uma
forma estratégica. De modo que o fazendeiro diz que eu comprei, o cara me ofereceu e comprei
legalmente e a gente não pode fazer nada. Daí vem o processo, não é porque o seringueiro é
preguiçoso, mas é toda uma tática para desmoralizar nossa classe. De modo que a gente enfrenta
294
tanto a ação do fazendeiro, como a do próprio governo que, de um forma ou outra, está sempre
ao lado do latifundiário. É preciso a gente ter um trabalho muito sério de conscientização e esse
trabalho está sendo feito.
A partir daí houve um recuo muito grande no movimento sindical do Acre,
principalmente no Vale do Juruá, os Sindicatos sofreram um impacto com a morte do
companheiro e isso nos levou a mais uma lição na nossa luta, de que nós não podemos, de
repente, concentrar a nossa confiança só numa pessoa. O movimento sindical exige, a partir desse
momento, a gente começou a descobrir, que o movimento sindical para ter força, para impor
respeito, precisa ampliar os seus quadros, ampliar a sua liderança e nunca ficar as coisas a correr
pela mão de um só companheiro. Mas ter participação ativa da classe.
Foi com essa decisão que o Sindicato de Xapuri avançou. O Sindicato dos trabalhadores,
vendo que a situação dos dirigentes sindicais do Acre tinha rendido muito pouco, a gente então
partiu para um trabalho espontâneo mesmo de organização das bases. De uma forma que a gente
conseguiu, graças aos esforços de um grupo de companheiros de se empenhar nessa tarefa. Todo
o mundo dizia que o movimento sindical estava regredindo na medida em que foi articulado o
assassinato e a morte do Wilson Pinheiro, a gente descobriu que era um golpe. Foi uma tática
muito inteligente dos fazendeiros, que naquela época só tínhamos o companheiro Pinheiro como
estrela do movimento, a cabeça do movimento.
Aí surgiu a preocupação entre um grupo de sindicalistas mais sérios em Xapuri, que a
gente então começou a ampliar o trabalho, como já disse. Isto causou uma certa, não sei, uma
certa dúvida da parte de alguns companheiros que não estavam conscientes dessa tarefa, de modo
que chegou o momento até em que eles quiseram isolar o Sindicato de Xapuri, achavam que nós
estávamos radicalizando, que a gente estava fazendo uma opção por uma linha muito radical, até
subversiva. Mas hoje esse trabalho está provado, que foi o que defendeu a própria manutenção e a
continuidade do movimento sindical do Acre.
1980 – Atuação Parlamentar
Em 1980 Chico Mendes saiu do MDB e foi um dos fundadores do Partido dos
Trabalhadores no Acre, exercendo seu mandato de vereador com mais liberdade, a partir de
então, pela inexistência de conflitos entre sua ideologia e a de seu partido. Até 1980 o movimento
sindical teve papel decisivo na defesa dos interesses dos trabalhadores. Como afirmou Chico
Mendes, "em plena ditadura, o delegado regional da CONTAG, que era o João Maia, conseguiu
fazer um trabalho importante no sentido de unificar o trabalho sindical na região". O Partido dos
Trabalhadores surgiu das bases sindicais que já estavam organizadas em todo o Acre.
295
A Câmara Municipal de Xapuri iniciou o Quarto Ano Legislativo da Quinta Legislatura,
em 1980, com seis vereadores169 e um novo contexto partidário, uma vez que haviam sido
extintos os partidos políticos e criados dois blocos, um de situação e outro de oposição, não
tendo ainda havido nenhuma mudança nas filiações naquele momento. Os vereadores da exArena formaram o PDS - Partido Democrático Social: Amadeu Dantas Dias, Eurico Gomes
Fonseca Filho e Euclydes Guimarães Brasileiro e os do MDB formaram o PMDB - Partido do
Movimento Democrático Brasileiro: Wagner Oliveira Bacelar, João Simão dos Santos e Francisco
Alves Mendes Filho, dando origem a uma nova composição da Mesa Diretora170. FM
permaneceu no PMDB sem ocupar posição de liderança até maio de 1980 quando filiou-se ao
Partido dos Trabalhadores, passando a partir de então a responder com líder do PT. O ano
legislativo teve 24 sessões ordinárias e FM teve três ausências justificadas, realizando
pronunciamentos na maioria das sessões.
A partir do momento em que se filiou ao PT, FM passou a fazer discursos mais políticos e
críticos à ditadura militar, abordando temas nacionais como o alto custo de vida e assuntos de
interesse de outros setores da sociedade, como a defesa de melhores salários para os professores:
A situação vivida por milhões de brasileiros, atualmente neste país, está levando todas as
classes à luta por melhores salários e melhores condições de vida. A tão apregoada
Revolução de 64, implantada não pelo povo, mas sim por um grupo de militares que se
dizia com objetivos de salvar o país, deixa hoje muito a desejar, pois são decorridos 16
anos de promessas e esperanças frustradas e não cumpridas. O movimento dos
professores do Acre, que atualmente estão percebendo um salário de fome, classe essa
que tanto tem contribuído para o engrandecimento deste país e que como recompensa
recebe o já citado salário, resolve agora quebrar os grilhões da escravidão imposta por um
regime que há tantos anos vêm usando a bandeira da democracia para enganar, perseguir
e humilhar diversas classes dos trabalhadores. E o governo distribuiu nota dizendo que a
referida greve era ilegal; ilegal é a situação em que nos encontramos atualmente.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Quarta Sessão Ordinária, 21 de março de 1980
Foram eleitos sete vereadores em 1976 e no início do ano legislativo de 1979 o Presidente da Câmara dos
Vereadores, Antônio Farias de Araújo, assumiu a Prefeitura de Xapuri. Em eleição realizada no final de 1979, foi
preenchido o cargo de vice-presidente, que havia ficado vago com a renúncia de FM. Assumiu o vereador Eurico
Gomes Fonseca Filho que passou a responder pela presidência da Casa. Em março foi nomeado um novo prefeito e
o vereador Antônio Farias de Araújo voltou à Presidência da Casa.
170
A Mesa Diretora da Assembléia Legislativa em 1980 foi formada pelos seguintes vereadores: Presidente: Eurico
Gomes Fonseca Filho, do PDS; Secretário: Amadeu Dantas Dias, do PDS; Líder da Bancada da Arena: Euclydes
Guimarães Brasileiro; Líder da Bancada do MDB: Wagner Oliveira Bacelar.
169
296
FM falou inicialmente sobre a abertura política, a qual é apregoada pelo General
Figueiredo, que não vem correspondendo com os anseios do nosso povo. Enfatizou
sobre a expulsão do Padre Vitor Miracapilo e classificou tal fato como uma
arbitrariedade. E finalmente disse da doação pelo Ministro do Planejamento Delfim Neto
à empresa japonesa Suzuki a importância de 200 mil dólares e disse que jamais se calará
diante de tantas e muitas injustiças.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Vigésima Primeira Sessão Ordinária, 31 de outubro de 1980
Pela primeira vez em seu mandato de vereador referiu-se à questão dos desmatamentos e
do modelo que estava sendo implantado na Amazônia, assim como defendeu "a classe dos
trabalhadores rurais que vêm sendo perseguida pela classe dos empresários, destacou o trabalho
incondicional do seringueiro e disse que continuará na luta em prol da classe dos trabalhadores"
(Ata da Vigésima Segunda Sessão Ordinária, 7 de novembro de 1980). Pediu providências em
relação à forma como estava se dando a exploração da Amazônia Brasileira, "pois vem
acarretando sérios prejuízos para o nosso povo e a nossa gente" (Ata da Oitava Sessão Ordinária,
02 de maio de 1980).
Para dar maior relevância ao seu pronunciamento, Francisco Mendes inaugurou uma
prática que se tornaria freqüente, a partir desse momento, a de se dirigir, por escrito, às
autoridades federais, Presidente e Ministros, relatando a realidade e solicitando providências:
FM fez um pedido de informação ao Ministro da Agricultura, Sr. Ângelo Amaury Stábile,
com referência à floresta amazônica que atualmente está sendo abalada com a chegada
dos grandes empresários sulistas e conseqüentemente expulsando os posseiros que aqui
labutam há muitos anos, pois aqui não se observa nada de constitucionalidade na presente
lei. Portanto, estas considerações fizeram-me importuná-lo endereçando-lhe estes pedidos
de informações para que eu possa prestar alguns esclarecimentos à comunidade residente
ou a qualquer outro munícipe que me procurar.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Décima Segunda Sessão Ordinária, 13 de junho de 1980
Em agosto, FM referiu-se à violência que havia ocorrido em Brasiléia e levado ao assassinato
de Wilson Pinheiro, embora a ata da sessão na qual se pronunciou não faça referência ao nome do
líder sindical:
FM começou criticando o governo federal pelo não apoio à classe dos trabalhadores
rurais e solicitou providências necessárias quanto ao problema fundiário; falou ainda
sobre o derramamento de sangue no vizinho município de Brasiléia e responsabilizou
297
também por tais fatos a falta de responsabilidade das autoridades policiais e finalmente
fez apelos às autoridades competentes para que casos com esses não venham mais se
verificar em nosso Estado.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Décima Quarta Sessão Ordinária, 15 de agosto de 1980
O último tema de debate na Câmara dos Vereadores, em 1980, foi o enquadramento do
vereador Francisco Mendes na Lei de Segurança Nacional. Em seu discurso, ele anunciou o fato
referindo-se, com ironia, como uma notícia alvissareira para seus inimigos e, ao mesmo tempo, com
um certo orgulho, uma vez que estava sendo reconhecido, perante os pares, como um político
combativo:
FM falou sobre algumas divergências por parte de vereadores da sua ex-bancada que o
taxavam até mesmo de subversivo e que muitas vezes foi mal interpretado por elementos
de sua própria bancada. Assim sendo, trouxe uma notícia alvissareira para esses
elementos, que estaria enquadrado na Lei de Segurança Nacional. E disse que estava
acompanhado por seu advogado e tinha um prazo até quinta-feira para se defender e
considerou que tal fato ocorreu porque sempre diz a verdade e defende os direitos do
nosso povo. E finalmente disse que direta ou indiretamente continuará a luta.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Vigésima Terceira Sessão Ordinária, 14 de novembro de 1980
Na sessão seguinte, novamente Francisco Mendes refere-se ao seu enquadramento na Lei
de Segurança Nacional, comentando a veiculação da notícia no jornal Gazeta do Acre:
FM iniciou falando sobre a publicação do jornal Gazeta do Acre, onde dizia que
membros do PT estavam incluídos na Lei de Segurança Nacional e constava o seu
próprio nome e enfatizou que isso deve ser porque sempre falou em prol dos
trabalhadores rurais, que são perseguidos pelos grandes empresários que aqui chegam e se
utilizam de sua força financeira e criticou os grileiros que espancam os posseiros como
também todos aqueles que procuram violar as leis do nosso país e se solidarizou com
toda classe de trabalhadores rurais que vivem com salários de fome.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Vigésima Quarta Sessão Ordinária, 21 de novembro de 1980
O mandato parlamentar de Francisco Mendes havia sofrido dois revezes no último ano e,
em ambos os casos, ele acabou encontrando alternativas que, ao invés de diminuírem sua
influência, o fortaleceram. Em 1979, a perda de apoio político de seus pares do MDB coincidiu
com o surgimento do PT, ao qual se filiou, em 1980, assumindo, inclusive, a liderança do Partido
298
na Câmara no ano seguinte. E o enquadramento na LSN colocou-o no mesmo patamar de líderes
nacionais como Luiz Inácio da Silva, Jacó Bittar e do Presidente da CONTAG, José Francisco da
Silva, e de líderes regionais como João Maia. Porém, como será evidenciando posteriormente,
nem sempre a projeção nacional facilitou sua atuação política em nível local.
1980 - Conflitos pela Terra
No ano de 1980 duas questões ocuparam os associados do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Xapuri, com consequências decisivas para o futuro dos seringueiros daquela região. A
primeira, referiu-se à cobrança, pelos seringueiros, de uma atuação mais forte da direção sindical,
segundo eles mais preocupada com a administração do que com a mobilização dos seringueiros
para os empates. A posição assumida pelos associados, nas assembléias realizadas em 1980, vai
gerar sucessivas mudanças na direção do Sindicato até 1983. Em assembléia geral extraordinária,
realizada pelo STR de Xapuri em 1o de maio de 1980, os temas centrais foram estes: a
necessidade de organização, o não intimidamento pelas ameaças dos fazendeiros, a liberdade
sindical, os empates para evitar as derrubadas e o questionamento à Diretoria por se preocupar
somente com aumento das mensalidades e dos salários dos diretores.
O questionamento dos seringueiros estava diretamente relacionado com a segunda
questão: o enfrentamento com o Grupo Bordon e a intensificação dos conflitos na área do
Seringal Nazaré, área adquirida em 1972 nas qual estava realizando desmatamentos todos os anos,
desde então. O imóvel, com área de 46.149,00 ha, foi matriculado e registrado no Registro de
Imóveis da Comarca de Xapuri como de propriedade do Frigorífico Bordon, grande grupo
exportador de carne sediado em São Paulo. Suas exportações totalizavam mais de US$140
milhões por ano e sua fazenda em Xapuri era a maior do município.
Os seringueiros que mais contestaram os encaminhamentos da Diretoria, terão cada vez
maior influência sobre o futuro do Sindicato: Raimundo Mendes de Barros, primo de Chico
Mendes, e moradores do Nazaré, como João Sena, João Conde, Sebastião Marinho e Simplício
Pereira de Araújo que serão protagonistas de inúmeros empates na área, transformando o
confronto com a Bordon em um dos mais importantes que ocorreu no município de Xapuri171.
Raimundo de Barros era funcionário da SUCAM quando os Sindicatos começaram a ser
formados na região. Decidiu largar o emprego e se dedicar à organização das delegacias sindicais,
criadas, segundo ele, não por indicação dos próprios trabalhadores mas diretamente pelo
presidente do Sindicato. As reuniões que passou a realizar nos seringais tiveram resultado
Além do conflito ocorrido no Nazaré ser exemplar, foi ali que teve início o Projeto Seringueiro, em 1981,
primeira experiência de educação e cooperativismo, iniciativa de Chico Mendes, apoiada pelo sindicato, conforme
relatado no Capítulo Cinco.
171
299
imediato, aumentando a participação dos seringueiros na vida do Sindicato. Mas não contaram
com o apoio do presidente. Depois de quatro meses fazendo este trabalho sem ganhar nada,
Raimundo resolveu se instalar, com a família, em uma colocação para também ganhar a vida
cortando seringa como os demais seringueiros. Segundo ele, a falta de envolvimento da Diretoria
no trabalho de organização sindical, enfraquecia a atuação do Sindicato no enfrentamento dos
desmatamentos. Morador do Seringal Floresta, vizinho ao Nazaré, Raimundo passou a ter grande
influência nos desdobramentos do conflito com a Bordon.
O primeiro relatório de conflito com a Bordon existente no arquivo do STR de Xapuri, é
de 1973 e registra que tocaram fogo nos barracos, expulsaram os seringueiros sem direito a
indenizações e que uma mulher morreu numa dessas queimadas de barraco. Os seringueiros do
Nazaré contam o que aconteceu quando o seringal foi vendido:
Tinha muitos fregueses colocados, com roçado de arroz, roçado de milho; deixaram tudo
e foram embora. Chegaram amedrontando todo mundo, ameaçando que iam queimar as
casas, iam fazer isso e aquilo, queriam era a área limpa e ficou limpa mesmo, porque
ficaram só dois fregueses dentro do Seringal Tupá (área próxima ao Nazaré e ao Floresta).
Isso tá com uns sete anos mais ou menos. Aí depois foi colocando outros fregueses, mas
sempre jurando de fechar o seringal, não trabalhar mais ninguém com seringa, derribar o
seringal todinho, pelo gosto deles já tinham derribado todinho ele. Tinha que negociar
com ele ou desocupava a área, que ele ia precisar. Bolaram aí, com uma hora daqui, o meu
vizinho, fizeram o maior medo ao pobrezinho do homem ali, até um aleijado e a mulher
dele é cega, disseram até que iam tirar eles daí, levar prá fazenda, engordar três meses eles
e soltar na balsa, de rio abaixo. E o pobrezinho ficou em tempo de morrer de medo, que
ele é meio medroso mesmo172.
Da mesma forma como estava ocorrendo em outras fazendas no Juruá, também no Vale
do Acre, enquanto ia se dando a implantação das atividades agropecuárias e a expulsão ou os
acordos com os posseiros, as empresas assumiam a continuidade da extração de borracha, no
estilo dos antigos seringais. No caso da Bordon, havia a sede da fazenda, administrada por um
gerente, localizada na margem do rio Xapuri e um depósito, administrado pelo gerente da seringa,
que ficava no centro do seringal. Como disse Valderi de Souza: "A Bordon é fazenda e seringal.
De primeiro, tudo era da fazenda, a gente era aviado pela fazenda, mas ficava muito longe; aí
botaram esse gerente aqui mais no centro, prá ficar mais perto dos seringueiros". Perguntei se
cobravam renda e ele respondeu:
172
Entrevista com Valderi de Souza, seringueiro, Colocação Boa Vista, Seringal Nazaré, no dia 29 de julho de 1981.
300
Eles não cobram renda e cobram, na seguinte forma, porque só no preço da borracha eles
já estão descontando a renda. Agora, só não é renda descoberto. Quem não sabe
pergunta assim: 'Vocês pagam renda?' E o cara diz logo: 'Não, não paga'. Mas ele não
paga porque a renda não está descoberta; mas que o preço tá aí, tirando já. Agora muitos
não entendem mesmo, pensam que não paga, né. Mas é pagando todo tempo, né, desde o
começo.
Em 1978, depois de muitos conflitos com os posseiros, foi feito um acordo, mediado pela
CONTAG, em função do qual 48 seringueiros receberiam lotes de 50 ha para cada família, com
escritura pública, tendo prazo para se mudar e podendo permanecer no corte da seringa. A ata da
Assembléia Geral Extraordinária, realizada em 23 de abril daquele ano, registra as palavras do
Delegado da CONTAG, João Maia, lembrando que o exemplo positivo do acordo do Seringal
Nazaré era uma conseqüência da força do movimento sindical que vinha conseguindo a fixação
do homem na terra.
Em abril de 1979, quando começou o período das derrubadas, o Sindicato recebeu
reclamação de três sócios do Seringal Nazaré dizendo que a Bordon havia começado a derrubar e
indenizara a posse de três companheiros. O presidente do STR programou uma reunião na
residência de um dos sócios, a ser realizada no dia 20 de maio, a fim de incentivar os sócios para
uma greve, mas no momento em que terminou a reunião um dos que estava presente foi avisar o
fazendeiro. Ao mesmo tempo, 56 seringueiros se reuniram e decidiram empatar o desmatamento.
Não receberam apoio do Sindicato que sequer comunicou à CONTAG o que estava
acontecendo.
Em 22 de abril de 1980 o advogado de Geraldo Bordon, Luiz Saraiva, enviou uma carta
ao Presidente do STR de Xapuri, com cópia para o Delegado da CONTAG, nos seguintes
termos:
Tendo em vista os acordos celebrados com os seringueiros do Seringal Nazareth, cujo
acordo contou a assistência do Dr. João da Silva Maia, delegado da CONTAG, pelo qual
indenizaríamos os seringueiros em área naquela ocasião escolhida e aceita por todos,
vimos pela presente comunicar que já se encontram assentados alguns moradores no local
escolhido. Comunicamos mais, que se encontram à disposição dos seringueiros 7 lotes
devidamente demarcados, para assentamento imediato. Comunicamos mais que, quando
uma equipe de topógrafos procedia o levantamento dos demais lotes, foi impedida já por
duas vezes por elementos que se dizem com ordem desse Sindicato para assim proceder.
É de nosso interesse cumprir plenamente os acordos firmados, razão porquê estamos
fazendo a presente comunicação a fim de ressalvar nossos direitos e demonstrar a
301
intenção mais uma vez de cumprir o acordado. Nosso propósito foi e será sempre de que
somente com harmonia e compreensão entre as partes, chegaremos à paz social onde
cada um possa trabalhar em paz.
Em 1o maio de 1980, a ata da assembléia extraordinária do STR de Xapuri registrou
novamente as palavras de João Maia sobre a greve dos trabalhadores da Fazenda Bordon,
dizendo que havia muita fofoca, que ninguém confiasse na falsa abertura e que somente o povo
organizado é que ia fazer a verdadeira democracia.
Os empates demonstravam que os seringueiros do Nazaré haviam decidido não aceitar o
acordo com a Fazenda Bordon, que havia sido negociado com a intermediação da CONTAG.
Isso foi confirmado por depoimentos dos seringueiros do Nazaré quando os entrevistei, em
Xapuri, em maio de 1981, a respeito de outro empate que eles tinham acabado de realizar.
Perguntei se eles queriam ser donos das colocações onde moravam e eles responderam referindo-se
ao acordo proposto em 1978173:
Nós tem essa fé que um dia ainda chega o ponto de nós ser dono das nossas colocações.
Eles prometeram aí, fizeram mil promessas de dar área de terra, dada, com título
definitivo, mas ninguém aceitou isso. Teve foi um ou foi dois que aceitaram até agora.
Nós não aceitamos porque vimos que não dá prá gente viver, num trecho de terra de 50
hectares de terra, colocar 60 pessoas que tinha lá dentro do seringal. Ninguém tem
recurso nem prá explorar essa terra, nem prá por o primeiro roçado prá levantar a
barraca, ninguém tem recurso, a não ser a seringa e a castanha.
E o único objetivo desse trabalho que eles queriam fazer, não trazia resultado prá nós.
Porque depois dessa área derribada, que tivesse todo mundo colocado, passando
privação, o gado invadia, ia destruir tudo e eles ficavam com tudo novamente. E não
adiantava que não tinha transporte. Até eles mesmos derrotaram nossa mata com a
semente deles. Quando eles vão semear o capim, eles pegam o avião, eles passam naquele
trecho que é daquele povo... 'eu vou semear logo aqui prá quando eles brocar o roçado já
nasce a semente do meu capim'. Eles ainda não fizeram, mas tem essa margem prá fazer.
Aliás eu já vi um roçado de um companheiro meu do Seringal Nazaré de extrema com o
Tupá, com quase uma hora de viagem, ele semeou o colonhão lá no campo dele e nasceu
dentro do roçado desse companheiro que nós tamos falando. A gente já tira a experiência
por aí.
Entrevista com João Sena e Sebastião Rocha, seringueiros do Seringal Nazaré, em Xapuri, dia 31 de maio de
1981.
173
302
Exatamente o mesmo argumento foi utilizado por Chico Mendes e confirmado por
Raimundo de Barros, em uma entrevista dada em 1988 (LPL), quando lhes perguntaram as razões
pelas quais os seringueiros do Nazaré não havia aceitado a proposta de acordo com a Bordon:
A Bordon era um grupo que tinha grande influência política e relacionamento com o
capital internacional e essas coisas; eles tinham um poder muito grande de liderança
perante o governo e as autoridades. É tanto que tivemos várias derrotas perante a
Bordon, por causa do aparato repressivo que eles levavam prá lá, da polícia. Mas como
ninguém recuou, chegou um momento em que eles se desesperaram. Eles chegaram a vir
com essa proposta prá nós, de tirar uma faixa de terra e dar 300 hectares pros
seringueiros; isso foi tido naquela época como assim um milagre, os fazendeiros
bonzinhos e tal. Só que a gente sabe claramente que a intenção deles era nos isolar
mesmo com esses 300 ha lá e mais adiante retomar essas terras todas. Isso era uma farsa,
uma demagogia barata desses caras, levando no discurso prá tentar desestabilizar e
desmoralizar o trabalho da gente.
Chico Mendes afirmou que durante muitos anos esse exemplo da Bordon foi utilizado
como um argumento para mostrar as grandes ações que os fazendeiros queriam fazer para os
seringueiros e que eles, como eram radicais, não aceitavam.
4.3.3
Indiciamento na Lei de Segurança Nacional
Wilson de Souza Pinheiro foi assassinado no dia 21 de julho de 1980, na sede do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. No dia 27 de julho foi organizada uma
manifestação pública em Brasiléia e, uma semana depois, foi assassinado o gerente da Fazenda
Santa Quitéria, Nilo Sérgio de Oliveira, considerado o mandante do crime174.
Em 1981, a Federação da Agricultura do Estado do Acre preparou um documento
sigiloso, intitulado "O Acre e a Ação Subversiva da Igreja Católica"175 e encaminhado às
autoridades militares, no qual fazem acusações à CONTAG como responsável pelos empates aos
desmatamentos com o apoio da Igreja Católica e que serviu de subsídio para o inquérito aberto
pela Promotoria Militar de Manaus contra os líderes sindicais que haviam participado do ato
público em Brasiléia.
Em 11 de outubro de 1984 o jornal O Rio Branco publicou matéria confirmando que o assassinato de Wilson
Pinheiro, ocorrido em 21 de julho de 1980 havia mesmo sido realizado a mando do fazendeiro Nilo Sérgio,
assassinado dia 28 de julho do mesmo ano.
175 Documento produzido pela Federação da Agricultura do Estado do Acre, Ofício do Gabinete do Presidente,
s.no., inserido entre as folhas 504 e 516 do processo da 12a Auditoria da Justiça Militar.
174
303
Indiciamento na Lei de Segurança Nacional
Eu lembro que, em abril de 81, eu tinha recebido um ofício, uma intimação, uma Carta
Precatória da Justiça Militar de Manaus, que estava enquadrado na Lei de Segurança Nacional e
meu julgamento tinha que ser num tribunal militar. Os fazendeiros da região haviam entrado com
requerimento na Polícia Federal pedindo o meu enquadramento na Lei de Segurança Nacional,
sendo acusado de incitar posseiros à violência. O pedido dos fazendeiros foi acatado e, em
setembro de 1980, fui submetido a interrogatórios nas dependências da Polícia Federal. Em
outubro de 80, após os últimos interrogatórios, confirmou-se meu indiciamento e posterior
enquadramento na LSN, em julgamento no Tribunal Militar de Manaus.
Quando os fazendeiros souberam que eu estava sendo intimado a comparecer para
julgamento, aí eles perceberam que eu, como não tinha costume com isso, deveria estar com
medo. E eles aproveitaram o lance, são bem inteligentes, e pediram uma conversa comigo. Era o
pessoal da Bordon e outro fazendeiro chamado Rubico de Carvalho, que é de um grande grupo
ligado a uma multinacional.
Então, eles foram na minha casa e fizeram uma proposta: 'Olha Chico, quando é que
você vai viajar para Manaus?' 'Eu daqui a três dias estou viajando.' 'Então, é o seguinte, a gente
veio aqui para fazer umas propostas. Quanto é que você precisa para essa viagem?' 'Olhem, eu
não preciso de nada, já tenho passagens garantidas por meus amigos, de modo que não estou
precisando.' 'Mas é o seguinte, nós temos outra proposta; se você quiser nós vamos a Rio Branco,
te levamos lá, a gente telefona para o Sarney (que era Senador naquela época) e te garantimos,
com palavra de honra, que você não vai ao Tribunal Militar.' 'E por que é que eu não vou, já que
estou sendo chamado para lá? Tenho alguma explicação a dar. Então, eu prefiro dispensar a
proposta de vocês'. E inclusive um deles ainda foi mais adiante, me chamou de louco porque eu
podia muito bem negociar, e ainda chegaram a me perguntar quanto é que eu queria. Eles
disseram: 'Chico, você pode abrir a boca e diga quanto é que você quer, não queremos te comprar
não, queremos que você fique como mediador nesse conflito entre nós e os posseiros. De modo
que no momento em que houver um conflito, você entra por causa da tua liderança e porque você
é muito respeitado e como mediador é fácil encontrar uma forma que toda a gente se sai bem'. Eu
respondi para eles que quando assumi o movimento sindical, eu tinha um compromisso de não
trair a minha classe. Isto era um ideal meu, gostassem ou não gostassem. No dia em que achava
que não tinha mais condição de lutar por eles, eu seria capaz de explicar para eles, mas jamais me
venderia. E então eles, inclusive, levantaram uma questão: 'Olha, você é um louco, a gente quer te
ajudar. Você sabe muito bem que a gente tem o poder na mão. Nós temos o dinheiro, para além
do dinheiro nós temos as armas, nós temos o poder do país na mão. Você quer lutar contra o
sistema capitalista e isso é uma loucura, é como se um mosquito quisesse brigar com um leão'. Eu
respondi para eles: tudo bem, eu admitia para eles, que eles tinham o poder, o dinheiro, as armas e
todas as forças do país na mão. Só que eles não tinham o povo. E no dia em que esse povo
304
tomasse consciência do seu direito, eles cairiam com todas as suas armas e todo o seu dinheiro.
Eles riram na minha cara. Mas a partir daí saíram e não conseguiram mais negociar.
Apesar da falta de recursos consegui uma forte defesa com a solidariedade de diversas
entidades e após 8 horas de julgamento, fiquei livre da prisão preventiva. Continuei minha luta em
liberdade condicional, e voltei novamente ao banco dos réus em março de 1984, quando fui
absolvido por falta de provas, após 10 horas de julgamento.
O documento dos empresários, assinado pela Federação da Agricultura do Estado do
Acre, apresentava um diagnóstico que nenhum crítico do governo se recusaria a assinar: o
complexo problema fundiário não havia sido equacionado juridicamente; 90% da população vivia
do sub-emprego, sem acesso aos benefícios da Previdência Social; a perspectiva de vida não
ultrapassava 35/40 anos, proliferando o empreguismo, o compadrio e o favoritismo político; o
governo estava desestruturado e alheio à realidade, não existindo administração mas uma série de
atos dispersos que consumiam os parcos recursos públicos sem maiores benefícios à população e
as lideranças políticas se impunham pela compra do voto e pelo uso imoral da máquina oficial.
Corretamente, o documento afirmava também que, nesse contexto, uma revolta, uma reação,
uma pregação subversiva tinha seu principal aliado na insatisfação popular, gerando insegurança
que impedia o investimento de recursos e de energia em área de tamanho desequilíbrio social.
Em síntese, no diagnóstico da Federação da Agricultura, o Acre vinha sendo submetido a
um organizado processo de subversão social, uma poderosa frente subversiva cujos agentes
principais eram a CONTAG e as Comunidades de Base, liderados por Dom Moacyr Grechi, cuja
pregação era orientada exclusivamente para a problemática social, focalizando a fome, a ditadura,
a pobreza em contraposição à riqueza, com apoio do jornal Varadouro, financiado pela Igreja e
da rádio Novo Andirá que difundia o vírus da revolta e da luta entre as classes. O proprietário
rural, dizia o documento, era mal visto pelo governo, pelos seus empregados, pela Igreja, pela
CONTAG e pela população que o tinha na conta de aproveitador, de espoliador e explorador do
trabalho alheio, resultado de uma sistemática campanha de descrédito de que vinham sendo
vítimas os proprietários rurais.
Concluindo, os empresários solicitavam proteção, segurança, uma política que
resguardasse os direitos dos proprietários e trabalhadores rurais e/ou a aplicação imparcial da
legislação atual e declaram seu apoio à campanha que estava sendo desencadeada pela
Confederação Nacional da Agricultura (CNA) voltada para denunciar fatos, em todo o país, que
atentavam contra a segurança nacional.
Este foi um dos documentos que subsidiou a denúncia assinada pela Procuradora Militar
Maria de Nazaré Guimarães de Moraes, em Manaus, em 9 fevereiro de 1981, encaminhada ao
305
Juiz Auditor da 12a Auditoria da 12a CJM, contra Jacó Bittar, Luiz Inácio da Silva-Lula, José
Francisco da Silva, Francisco Alves Mendes Filho, Vulgo "Chico Mendes" e João Maia da Silva
Filho, na forma do art. 77 do Código Penal Militar176. A denúncia refere-se ao movimento dos
empates aos desmatamentos, iniciado em 1979 pelos Sindicatos rurais, com irrestrito apoio da
CONTAG e cobertura jornalística de A Gazeta do Acre e Varadouro, e à criação, em 1980, do
Partido dos Trabalhadores, como o contexto dentro do qual ocorreu o Ato Público de Brasiléia,
em 27 de julho de 1980, responsabilizando as autoridades constituídas pela situação em vivia a
classe trabalhadora no Estado do Acre. O documento reproduz excertos dos principais discursos
pronunciados na ocasião:
Jacó Bittar:...Quantos e quantos trabalhadores não vêm morrendo lentamente pelo
problema da fome, por não ter um pedaço de terra, porque este país está sendo vendido,
está sendo entregue pela incompetência dos dirigentes... dos ditadores que só conseguem
fazer dívidas e através da entrega do nosso solo é que eles tentarão pagar esta dívida...o
nosso solo será do povo e o povo há de conquistá-lo à custa de suor, à custa de sangue,
ou à custa de quem quer que seja... que outros trabalhadores cansados de promessas de
vários ditadores que passaram, já não se sustentam mais e farão mesmo justiça com as
próprias mãos...
Luiz Inácio da Silva:... A classe trabalhadora brasileira já está cansada de promessa, de
passar fome, de fugir e já está cansada de morrer. A classe trabalhadora brasileira não vai
aceitar, nem fugir e nem morrer. Ela vai começar agora a devolver em troco aquilo que
estão dando para ela...
José Francisco da Silva:...o pessoal do Acre deveria imitar o que foi feito pelos
sindicalistas da Paraíba que pegaram em armas para repelir as injustiças que estavam
sofrendo...
A seguir, o documento apresenta os argumentos referentes às ações realizadas por cada
um dos citados e que justificariam a denúncia de subversão a eles atribuída.
Como Presidente da CONTAG, José Francisco da Silva, deu consentimento à Delegacia
do órgão no Acre e Rondônia para convidar Luiz Inácio da Silva a tomar parte no ato público de
Brasiléia, na qualidade de dirigente sindical, embora sabendo de sua destituição do cargo que
exercia no Sindicato de Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material
Denúncia encaminhada ao Juiz Auditor da 12a Auditoria da 12a CJM, assinada pela Procuradora Militar Maria de
Nazaré Guimarães de Moraes, Manaus, 9 fevereiro de 1981, cuja cópia está em meu arquivo pessoal.
176
306
Elétrico de São Bernardo do Campo e Diadema, por ato do Ministério do Trabalho datado de 17
de abril de 1980.
O denunciado Francisco Alves Mendes Filho, vulgo "Chico Mendes", afirma que sua
participação no ato público deveu-se à sua condição de representante do Centro de Defesa dos
Direitos Humanos de Xapuri e não à condição de Vereador da Câmara Municipal de Xapuri.
Embora saliente não se recordar das palavras que proferiu no ato público, lembra-se de ter dito
"...que o sangue de Wilson não ficaria impune". Emprestou sua colaboração aos jornais O
Varadouro, de Rio Branco, Estado do Acre, e A Tribuna da Luta Operária, do Estado de São
Paulo, aos quais fornecia notícias sobre os trabalhos desenvolvidos pelos Sindicatos rurais no
Estado do Acre.
João Maia da Silva Filho orientou os "empates de derrubadas", promoveu a ida ao Estado
do Acre de elementos da Comissão Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores e foi o
responsável pela organização do ato público de Brasiléia, apresentando, naquela oportunidade, os
oradores. As suas palavras foram no sentido de despertar, nos trabalhadores rurais, o sentimento
de vingança pela morte de Wilson de Souza Pinheiro, como um dos líderes da classe rural. Essa
liderança lhe possibilitou a coordenação efetiva do movimento de Brasiléia, responsável pelo
assassinato de Nilo Sérgio de Oliveira.
Argumentou a Procuradora Militar que, terminado o ato público e quando os
trabalhadores rurais retornavam às suas colocações, teve lugar o assassinato de Nilo Sérgio de
Oliveira, por muitos considerado como responsável pela morte de Wilson de Souza Pinheiro.
Não existem dúvidas, afirma, que aquele assassinato decorreu do clima de tensão que se
estabeleceu com os discursos, inflamados, de vários dos oradores que participaram do ato público
de Brasiléia; e o ato público pela morte de Wilson de Souza Pinheiro desenvolveu-se, todo ele,
em meio a pronunciamentos exaltados, que clamavam por vingança e onde só se falava em matar
gente.
O documento afirma em seguida que as lideranças dos trabalhadores rurais, quer no
Estado do Acre, quer a desenvolvida pela CONTAG, não evitaram o envolvimento da classe, por
elas representada, com elementos vinculados a movimentos tradicionalmente conhecidos no país,
e a órgãos de imprensa com eles comprometidos, cujo desfecho eclodiu no ato público de
Brasiléia, envolto num clima de profunda tensão emocional. Qualifica, então, os crimes
cometidos em dois tipos:
(i) Os denunciados Jacó Bittar, Luiz Inácio da Silva, Lula, e José Francisco da Silva, por
incitamento à desobediência coletiva às leis e à luta pela violência entre as classes sociais.
307
(ii) Os denunciados Francisco Alves Mendes Filho e João Maia da Silva Filho por
incitamento à luta pela violência entre as classes sociais, resultando na incitação à morte de Nilo
Sérgio de Oliveira.
A Procuradora concluiu:
É indiscutível que a ação dos denunciados foi no sentido de instigar os trabalhadores
rurais, pessoas capazes de serem estimuladas, com facilidade, tanto à desobediência
coletiva às leis, como à luta pela violência entre as classes sociais. De oratória fácil, capaz
de impressionar aqueles trabalhadores e utilizando-se da liderança que alguns exerciam
com o monopólio de entidades de classe e a colaboração de órgãos publicitários
comprometidos, os denunciados souberam explorar o assassinato de Wilson de Souza
Pinheiro, além da distribuição de boletins e panfletos para, pretextando solidariedade à
memória do líder e à sua família, incitar, no ato público de Brasiléia, os trabalhadores
rurais ali presentes, tanto que, a prova testemunhal demonstra que a morte de Nilo Sérgio
de Oliveira foi conseqüência dos discursos pronunciados, timbrados pelo desejo de
vingança.
Com base nos fatos arrolados, a Procuradoria denunciou Jacó Bittar, Luiz Inácio da Silva
e José Francisco da Silva, como incursos na sanção do artigo 36, II e IV, e seu Parágrafo Único e
Francisco Alves Mendes Filho e João Maia da Silva Filho, do artigo 36, IV e seu Parágrafo Único,
da Lei de Segurança Nacional (Lei N. 6.620, de 17 de dezembro de 1978) a fim de serem os
mesmos processados e julgados e cita como testemunhas, para serem inquiridas, dentre outras, o
seringalista Guilherme Lopes, o agricultor Manoel Bento Filho, o dirigente sindical do STR de
Brasiléia, Elias Rosendo de Oliveira e dois agentes da Polícia Federal lotados no Acre.
A defesa dos sindicalistas foi feita pelo advogado Luiz Greenhald que conseguiu mantêlos em liberdade condicional, livrando-os da prisão preventiva. Foram novamente a julgamento
em março de 1984, sendo então absolvidos por falta de provas, após 10 horas de julgamento.
1981 – Atuação Parlamentar
A Câmara Municipal de Xapuri iniciou o Quinto Ano Legislativo da Quinta Legislatura,
em 1981, com sete vereadores, três do PDS, três do PMDB e um do PT e a nova Mesa Diretora,
eleita na primeira sessão ordinária para o biênio 1981/82, expressou a composição entre os três
partidos políticos: Presidente: Eurico Gomes Fonseca Filho do PDS, Vice-Presidente: Euclydes
Guimarães Brasileiro do PMDB e Secretário: Francisco Alves Mendes Filho do PT. O ano
legislativo teve 25 sessões ordinárias; FM precisou pedir licença do mandato em função do
processo aberto na Justiça Militar, ficando afastado no período entre 10 de abril e 15 de maio;
308
além desse afastamento, esteve ausente em mais três sessões; como nos anos anteriores, ele se
manifestou em todas as sessões nas quais esteve presente.
Os discursos da primeira sessão foram pautados pelas palavras de FM que, após agradecer
o voto de confiança dos companheiros que fizeram com que o PT passasse a compor a Mesa
Diretora, conclamou em nome do seu partido, todas as bancadas para que trabalhassem com
união e dedicação para com o povo para o êxito do município de Xapuri.
Em função do seu enquadramento na LSN, pediu licença, em março, para responder à
intimação feita pela Procuradoria Militar de Manaus. Mas não se manifestou espontaneamente
sobre isso. A referência veio de outro vereador, afirmando que Francisco Mendes devia pedir
afastamento para responder ao processo no qual estava sendo acusado. Sua resposta foi afirmar,
genericamente, que algumas pessoas, por estarem ao lado dos trabalhadores, eram enquadrados
na LSN.
A atuação de Chico Mendes foi pautada, de um lado, pela sua reinserção política na
Câmara, agora como líder do Partido dos Trabalhadores, o que lhe dava espaço para falar não
somente sobre temas locais, como os desmatamentos e a questão fundiária, mas também a
respeito das teses do partido sobre temas nacionais:
Pediu desculpas à Mesa Diretora por não se fazer presente na sessão anterior, devido a
um chamado urgente a São Paulo para avaliar a legalização do Partido dos Trabalhadores
em alguns Estados brasileiros. Continuando falou com relação ao Programa de atuação
do PT diante do homem do campo, que muito necessita do nosso apoio para ter os seus
direitos defendidos.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Décima Terceira Sessão Ordinária, 14 de agosto de 1981
Enfatizou com relação à oposição, no que diz respeito à sua falta e justificou dizendo que
estava a serviço da Convenção do seu partido. Continuando falou com relação a alguns
acontecimentos no Brasil e no mundo e falou ainda com referência à criação de novos
partidos; em seguida falou sobre o objetivo do seu partido ou seja o registro do PT,
fazendo conseqüentemente leitura do pronunciamento do Presidente Nacional do PT, Sr.
Luiz Inácio da Silva, Lula, e disse da sua posição nesta Casa para com o nosso povo e
que o seu papel principal é defender o homem do campo e os menos favorecidos que
muito esperam de nós que somos seus verdadeiros representantes.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Vigésima Terceira Sessão Ordinária, 13 novembro de 1981
309
Também referiu-se, várias vezes, aos problemas vividos pelos trabalhadores rurais
lembrando o papel por eles desempenhado na história do Acre, comparando com as dificuldades
que enfrentavam no presente em conseqüência dos desmatamentos realizados pelos fazendeiros:
O nosso município foi palco dos grandes acontecimentos, principalmente na zona rural e
enfatizou com referência aos nordestinos que vieram para o Acre, sem terem
recompensa, recompensa esta foi serem expulsos de suas terras. Disse também que o
trabalhador rural não quer violência e sim a posse de suas terras e falou de alguns
fazendeiros que ainda continuam fazendo desmatações e com isso prejudicando
sensivelmente os posseiros e assim sendo, pediu providências por parte do INCRA e do
IBDF.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Terceira Sessão Ordinária, 20 de março de 1981
Falou sobre a nossa história, qual seja, a história do Acre e comparou a época anterior
com a atual e disse que antes vivíamos mais tranqüilos, enquanto que agora estamos
passando por uma época dificílima e falou sobre o fábrico da borracha que se constituía
como uma fonte de grande riqueza para o nosso país. Continuando enfatizou sobre os
empresários que aqui vieram se apossar das terras do nosso povo que aqui vivem e
conseqüentemente roubando-lhes as terras e expulsando-os das mesmas e finalmente
falou sobre a desvalorização da borracha principalmente por parte do órgão competente,
qual seja a SUDHEVEA.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Sétima Sessão Ordinária, 29 de maio de 1981
A exploração predatória da floresta amazônica foi o único tema que aglutinou a oposição
e a situação, naquele ano, tendo sido objeto de fortes críticas por parte do Presidente da Câmara,
Eurico Gomes Fonseca Filho, do PDS e de aparte de Francisco Mendes:
Teceu críticas à maneira pela qual as autoridades competentes estão deixando desbravar
criminosamente a floresta amazônica e conseqüentemente tirando nossas riquezas. Com
um aparte o Vereador FM se congratulou com seu nobre colega Eurico Filho no que diz
respeito às críticas à devastação da Amazônia Brasileira. Eurico Filho agradeceu as
palavras de Francisco Mendes e enfatizou a situação atual que está enfrentando o nosso
Acre e disse não receber o apoio integral por parte do Governo Central. A nossa grande
riqueza que é a borracha está se acabando devido à expulsão pelos latifúndios dos
seringueiros de suas respectivas terras e principalmente os nordestinos e com isso o
Estado perde grande parte do ICM. Em seguida fez críticas à SUDAM por permanecer
310
acomodada diante dessas ocorrências e como também a SUDHEVEA e o INCRA pela
não participação no desenvolvimento da Amazônia Brasileira.
Vereador Eurico Filho,
Ata da Décima Sexta Sessão Ordinária, 25 de setembro de 1981
Por outro lado, qualquer motivo parecia suficientemente forte para despertar a ira geral
contra Francisco Mendes, especialmente quando estava em jogo, como já acontecera em 1979,
críticas públicas à atuação dos vereadores. Se considerarmos que as atas registram efetivamente o
teor dos debates ocorridos, várias sessões da Câmara dos Vereadores de Xapuri, em 1981, foram
dedicadas a responder a uma entrevista que deu ao jornal Gazeta do Acre, dizendo que a
oposição havia sido comprada pelo Prefeito e perdera a independência:
Falou sobre o que disseram os Srs. Vereadores no dia 1o de agosto, em que todos
pediram união, e disse que isso não está acontecendo por parte do Vereador Francisco
Mendes; repudiou a entrevista feita pelo mencionado Vereador no jornal Gazeta do Acre
e solicitou à Presidência para que envie ofício ao Vereador Francisco Mendes pedindo as
provas... caso contrário irá enquadrá-lo na Lei Complementar 201 como crime de calúnia.
Vereador Wagner Bacelar,
Ata da Décima Oitava Sessão Ordinária, 9 de outubro de 1981
Os Vereadores são pessoas íntegras e donas de suas responsabilidades e disse que irá
comunicar ao Sr. Vereador Francisco Mendes para que ele explique os fatos com maior
clareza ou seja, quais os Srs. Vereadores que estão se vendendo, pois se for apontado e
comprovado o corrupto será punido e disse ainda que a Presidência irá publicar um ato
oficial com referência aos fatos do jornal Gazeta do Acre através do Vereador FM.
Convocou o Srs. Vereadores para uma sessão extraordinária na próxima quarta-feira, dia
14 de outubro, às 11:00 da manhã, para resolvermos o envolvimento do Poder
Legislativo, através do Vereador Francisco Mendes, no jornal Gazeta do Acre.
Vereador Eurico Filho,
Ata da Décima Oitava Sessão Ordinária, 9 de outubro de 1981
Congratulou-se com seus nobres colegas e principalmente com o Edil Wagner Bacelar no
que diz respeito ao envolvimento do Legislativo pelo Vereador Francisco Mendes, através
do jornal Gazeta do Acre, e de acordo com o Sr. Presidente, irá convocar o referido
Vereador para que ele dê as provas da referida matéria.
Vereador Euclydes Brasileiro,
Ata da Décima Oitava Sessão Ordinária, 9 de outubro de 1981
311
Durante três sessões seguidas, inclusive uma extraordinária, as declarações de Francisco
Mendes renderam comentários ácidos dos demais vereadores, levando-os, inclusive, a não aceitar
a justificativa para suas faltas a algumas sessões. Francisco Mendes argumentou em sua defesa
que a oposição não estava fazendo uma fiscalização mais séria sobre as ações da prefeitura
deixando o chefe do Poder Executivo à vontade para administrar segundo seus próprios
interesses. Os debates evidenciaram tanto uma postura provocativa de Francisco Mendes quanto
discriminatória dos demais vereadores.
É preciso lembrar que ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional era ser publicamente
acusado de subversão, em um momento de grande repressão nos meios de comunicação. Não
somente estes fatos não eram divulgados como os acusados não se sentiam confortáveis em
mencioná-los. Tanto isso é verdade que as atas das sessões legislativas da Câmara dos Vereadores
neste ano, não registram nenhum discurso de Francisco Mendes sobre os episódios de Brasiléia
que deram origem ao processo.
De fato, estava ficando claro que aquele espaço, como vereador, já era pequeno para
quem estava sendo convidado a participar de reuniões nacionais sobre a construção de um novo
partido, havia ganho alguma visibilidade em função do processo militar e continuava, cada vez
com mais afinco, envolvido diretamente nas lutas travadas pelo Sindicato de Xapuri. Por outro
lado, seus projetos, a partir de 1981, orientaram-se para outra direção, uma vez que passou a
contar com o apoio direto de pessoas ligadas a universidades e a organizações não
governamentais locais e nacionais.
1982 – Atuação Parlamentar
Em 1982, com a vitória do PMDB nas eleições para o Governo do Estado, as lideranças
principais da CONTAG, como o João Maia, que era filiado ao PT, mudaram de posição e
entraram no PMDB. Foi a época do chamado voto útil, quando muitos trabalhadores decidiram
concentrar seus votos no PMDB. O resultado foi que lideranças sindicais passaram a fazer parte
do governo fragilizando a luta pela posse da terra, que continuou sendo liderada pelo PT.
A Câmara Municipal de Xapuri iniciou o Sexto Ano Legislativo da Quinta Legislatura, em
1982, com sete vereadores, três do PDS, três do PMDB e um do PT e a mesma Mesa Diretora,
eleita no ano anterior para o biênio 1981/82177. O ano legislativo teve 22 sessões ordinárias e
muitas ausências por ser um ano eleitoral. FM esteve ausente, com justificativa, de cinco sessões
A Mesa Diretora era formada pelos seguintes vereadores: Presidente: Eurico Gomes Fonseca Filho do PDS, VicePresidente: Euclydes Guimarães Brasileiro do PMDB e Secretário: Francisco Alves Mendes Filho do PT.
177
312
e, em 24 de setembro, pediu licença de um mês para cuidar dos assuntos do Partido dos
Trabalhadores. Foi candidato a Deputado Estadual pelo PT mas não se elegeu.
É sempre importante registrar, como tem sido feito neste trabalho, todas as vezes nas
quais Francisco Mendes denunciou, publicamente, as ameaças de morte que sofria. Neste ano,
mais uma vez, ele se manifestou a este respeito na sessão legislativa de abril, reafirmando sua
decisão de não recuar na defesa dos interesses do povo:
Abordou a questão dos direitos humanos e criticou alguns agentes da Polícia Militar do
Acre em Xapuri e disse que pelo simples motivo de ter denunciado irregularidades da
mencionada polícia sofreu ameaças; continuou dizendo que jamais recuará diante de tais
ameaças e persistirá a defender os direitos do nosso povo e da nossa gente e pediu
providências por parte da Presidência da Casa.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Sétima Sessão Ordinária, 23 de abril de 1982
Dois temas predominaram nos pronunciamentos de Francisco Mendes no último ano do
seu mandato de vereador: irregularidades na Prefeitura de Xapuri e a devastação da floresta
amazônica. Em ano eleitoral, entendia que era seu papel fiscalizar a atuação da Prefeitura e
solicitou informações, ao Prefeito, sobre o número de funcionários contratados, a data de
admissão e os salários que recebiam. Apesar de ter feito deste requerimento uma questão de
honra e de ter cobrado, em muitas sessões, uma resposta, ela nunca veio. Em agosto, o líder do
governo municipal informou que o prefeito se fundamentava em uma lei federal que o isentava
da obrigação de prestar contas sobre esse assunto.
Sobre a questão amazônica, seus pronunciamentos foram incisivos. Criticou a política do
governo federal de facilitar a aquisição de terras por grandes empresários prejudicando os
trabalhadores rurais e contou com o apoio dos demais vereadores:
O governo brasileiro se acomoda diante desses problemas e conseqüentemente permite a
invasão das terras do povo brasileiro pelos empresários latifundiários com isso não
permitindo condições de trabalho pelo homem do campo em suas terras. E finalmente
teceu críticas quanto à devastação da grande floresta amazônica pois para os brasileiros se
constitui como uma fonte de riqueza natural.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Segunda Sessão Ordinária, 5 de março de 1982
Disse que tratando-se a respeito do trabalhador, a mencionada classe foi vítima do
capitalismo e em seguida criticou a política do Governo pelo não apoio ao homem rural e
sim ao latifundiário e defendeu a referida classe no que diz respeito às agitações que
313
atualmente vêm existindo em nosso país. Continuando teceu críticas ao governo do
Estado por ter jogado a sua força contra os trabalhadores rurais com isso favorecendo o
desmatamento dos nossos seringais e deixando desprotegidos aqueles que vêm
trabalhando e lutando pela sua sobrevivência. Enfatizou que sempre estará ao lado dos
menos favorecidos porque com essa atitude o governo está jogando de encontro uma
classe com outra e pediu apoio dos seus companheiros para que se evite derramamento
de sangue.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Oitava Sessão Ordinária, 30 de abril de 1982
Eurico Fonseca Filho falou sobre a má atuação do IBDF aqui em Xapuri e em toda
Amazônia Brasileira e definiu o IBDF como Instituto Brasileiro de Destruição Florestal.
Reforçou as palavras do Vereador Eurico Filho com referência à devastação da nossa
floresta e disse que elementos dessa natureza deveriam ser presos e não os seringueiros e
classificou como um verdadeiro desrespeito à classe rural e um crime contra a nossa
economia.
Vereadores Eurico Filho e Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Décima Oitava Sessão Ordinária, 10 de setembro de 1982
Na sessão de encerramento do primeiro semestre, realizada no dia 30 de junho de 1982,
Francisco Mendes leu um discurso escrito e distribuiu cópias do mesmo para várias pessoas. O
fato de não ter sido eleito em nenhuma das outras eleições nas quais participou, e de suas falas,
citadas até aqui, terem sido transcritas das atas, fazem deste o único discurso pronunciado em
uma tribuna legislativa que teve, seguramente, sua autoria. No contexto em que vivia, naquele
momento, quando estava sendo iniciada a campanha eleitoral para governador, deputado e
vereador, sua mensagem estava centrada nas características de um verdadeiro partido de
oposição, alertando seu próprio partido a não cometer os erros tradicionais da política partidária
que já havia vivenciado no PMDB e na necessidade de educação política da população para que
pudesse exercer plenamente a cidadania.
Sr. Presidente, Srs. Vereadores.
Neste momento em que, com esta sessão marcamos o fim do 1º semestre do ano em
curso, vale a pena lembrar que também será este o último primeiro semestre de nossa
legislatura, que teve seu início em março de 1977. E que neste longo período em que aqui
nos encontramos, sete companheiros, que tivemos o privilégio de merecer a confiança do
povo Xapuriense, até hoje tivemos momentos agradáveis, desagradáveis, divergências,
mal entendidos. Acertos e desacertos marcaram a nossa caminhada espinhosa, até aqui. E
neste ano de 1982, ano político eleitoral, será hora de todos nós juntos refletirmos
314
seriamente o compromisso que nós temos para com o povo, com a comunidade e a sigla
partidária que representamos. Por fim, o nosso trabalho nas campanhas eleitorais.
O discurso que hoje apresento nesta casa é no sentido de que ele tenha significação para
o momento político de nossa terra. Apesar das diversas limitações, confio em que na luta
franca de opiniões todos nos esforçaremos por encontrar as soluções que sirvam à nossa
grande causa. Ante a confusão ideológica e política imperante, o centro dos debates deve
girar, a meu ver, em torno da linha geral e da tática, pois disso depende, em última
instância, o papel do partido, a sua capacidade de transformar a classe trabalhadora em
fator decisivo na formação da luta contra os monopólios imperialistas e pela construção
de um verdadeiro regime democrático como força dirigente em nosso país.
Com a criação do Partido dos Trabalhadores, nos foi imposta a tarefa de superar os erros
dogmáticos e sectários de natureza subjetivista, agravados pelos velhos costumeiros
métodos aplicados pelos partidos tradicionais que impregnaram nossas concepções, quer
quanto à sua prática política quer quanto ao modo de agir, a sua política e aos seus
métodos. Como fui um dos portadores, no passado, dessas concepções e um dos
responsáveis por esses erros, compreendo a necessidade de impedir sua repetição.
Ao mesmo tempo me preocupo no empenho de que o partido, desde sua direção, não
venha cair nos mesmo vícios, de outros partidos, cujas direções, apesar de pregarem o
credo oposicionista, são de concepções direitistas, que na conjuntura atual são o maior
perigo para o movimento de organização dos trabalhadores. E nesta campanha eleitoral
que se inicia eu conclamo a todos os dirigentes políticos para que em suas peregrinações
não cometam os erros que muitos já estão cometendo, que é o de usarem argumentos
mesquinhos e demagógicos que só os incapacitados e débeis mentais usam. Devemos
levar em conta que a política deve ser encarada com seriedade, pois ela faz parte de um
conjunto de ideais que podem muito bem influir na evolução de um povo, do mesmo
modo, ela pode ser o desequilíbrio de uma sociedade, como muitos fazem em nosso país.
Daí porquê hoje muitas pessoas encaram a política com a arte da sacanagem. Mas se isso
ocorre no pensamento destas pessoas, é porque a grande maioria de nossos políticos
usam-na em proveito pessoal. Daí a razão de torná-la desacreditada perante a opinião
pública. Entretanto cabe a nós fazer com que ela se transforme em instrumento de
organização da classe trabalhadora.
Faz-se urgente desenvolver junto aos movimentos populares um intensivo trabalho de
educação política que desperte o operário, o trabalhador rural, a dona de casa, o estudante
e demais pessoas do povo para o direito inalienável à condição de cidadão, que é o de
315
ativa participação na vida política do país, inclusive na vida partidária. Cabe à educação
política, criar consciência de que esse direito, exercido dentro de um processo de
engajamento social que, sem ser excludente, passa por diferentes etapas, desde a mais
simples luta pela água de um bairro ou pela terra, até a elaboração de um projeto político
alternativo. A atividade partidária não deve ser exclusiva e jamais desvinculada do
trabalho de base e da inserção do militante nos movimentos populares.
Vereador Francisco Alves Mendes Filho,
Ata da Décima Quarta Sessão Ordinária, 30 de junho de 1982
Dos quatro vereadores da Câmara Municipal de Xapuri que concorreram à reeleição,
somente um, Wagner Bacelar, do PMDB, teve sucesso. Assim, a última sessão, no dia 30 de
novembro de 1982, foi de despedidas. Para Francisco Mendes, embora ele não tivesse
consciência disso, era também uma despedida da vida parlamentar. Ele ressaltou que Xapuri tinha
a Câmara mais atuante do Acre, enfatizou que as críticas que havia feito ao prefeito tinham o
objetivo de ajudá-lo a melhor administrar o município, agradeceu aos funcionários da Casa e
desejou boas festas aos que iriam permanecer, esperando que os sucessores fossem democráticos.
E concluiu dizendo: "Perdi neste pleito político mas continuarei na luta em prol das pessoas que
mais necessitam".
Os anos de 1981 e 1982 encerraram uma etapa da vida de Chico Mendes, a de líder
sindical e político com atuação local. Abriram, por outro lado, um novo e último capítulo em sua
vida caracterizado por uma atuação regional, nacional e internacional. Eleito Presidente do
Partido dos Trabalhadores do Acre em 1981, passou a viajar pelo estado e a se envolver com a
construção do partido em nível nacional. De certa forma, ao ser enquadrado na Lei de Segurança
Nacional juntamente com personalidades sindicais do porte de Luiz Inácio Lula da Silva, Jacó
Bittar e José Francisco da Silva, foi alçado a uma posição que lhe trouxe projeção nos anos
seguintes.
Mas foi como Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, cargo para o
qual foi eleito em maio de 1983, que ele deu sua principal contribuição para a construção de um
movimento social de perfil inédito até então e que o projetou internacionalmente. E a mudança
para esta direção começou em 1981 quando tiveram início as primeiras iniciativas voltadas para
buscar soluções para os conflitos sociais nos quais os seringueiros estavam envolvidos. Esta nova
etapa será objeto do Capítulo Cinco desta Tese.
316
Observações Finais
Análises realizadas sobre a emergência do movimento sindical no Acre e a forma original
de defesa que os seringueiros encontraram para tentar barrar a expansão dos desmatamentos,
mostram essa história como um processo linear até a eclosão da proposta das Reservas
Extrativistas, em 1985. O que este capítulo procurou evidenciar foi o longo caminho percorrido
durante dez anos para a conquista de um efêmero resultado até 1982: a existência de um
Sindicato de trabalhadores rurais consciente dos direitos que lhes eram assegurados por uma lei
elaborada no regime militar e que não conseguiam ver cumprida naquilo que era mais essencial:
os direitos dos seringueiros como posseiros.
A desagregação da empresa seringalista e o questionamento aos regulamentos dos
seringais, resultara em uma conquista para os seringueiros do vale do Acre: haviam conseguido
ficar independentes dos patrões, haviam saído do cativeiro, trabalhavam como autônomos, ou seja,
estavam libertos. Chico Mendes vira a profecia de seu orientador político se concretizar e se
envolvera na luta sindical. Mas de fato eles não haviam conquistado quase nada até aquele
momento. Ao contrário, a simples defesa do direito de comercializar a borracha para quem
oferecesse o melhor preço, ainda podia levar um seringueiro para a prisão.
Na verdade, os seringueiros do Vale do rio Acre não tiveram tempo de se organizar
economicamente como produtores autônomos, porque a liberdade foi drasticamente
interrompida com a venda dos seringais. À chegada dos fazendeiros sulistas, seguiu-se o processo
mais penoso que foi o das expulsões, sem direito nem ao mínimo que a legislação assegurava e
que somente mudou depois da interferência direta da Igreja Católica e da CONTAG. Mesmo
assim, expulsões continuaram acontecendo durante todos os anos que se seguiram,
simultaneamente aos acordos e negociações que ocorriam em algumas áreas.
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelos seringueiros do Acre, pode-se afirmar,
com segurança, que, nesse contexto, o surgimento dos Sindicatos rurais foi o acontecimento mais
importante desde a Revolução Acreana pelo fato de ter colocado em cena, pela primeira vez na história
do extrativismo, os direitos de uma categoria centenária de trabalhadores. Ao explicitar os direitos de
posse não estavam somente afirmando que os seringueiros deveriam ser indenizados, conforme
determinava a lei. Estavam também reconhecendo uma posição até então inexistente, a de que
aqueles trabalhadores eram posseiros. Ficaram assegurados, dessa forma, direitos sociais inerentes
a essa figura legal, permitindo a intermediação nos conflitos e buscando acordos que cumprissem
as exigências legais.
Ao final de dez anos de conflitos, de 1972 a 1982, o movimento sindical rural estava
organizado no Acre, mas o custo social e político havia sido alto. Uma expressiva liderança
317
assassinada e uma outra liderança emergente processada por crime contra a segurança nacional.
Empresas agropecuárias avançando na constituição de suas pastagens e seringueiros resistindo
aos desmatamentos. O empate do Seringal Carmen apontava um caminho novo, mas a intensa
mobilização que ocorria em Brasiléia, sob a liderança de Wilson Pinheiro, foi derrubada com o
assassinato de seu líder. Não tendo sido reeleito vereador, Chico estava num impasse político em
relação ao seu futuro. Mas a ideologia que o mobilizava era essencialmente sindical e foi nesse
campo que ele reconquistou um espaço de liderança pública.
Ou seja, os seringueiros do Acre haviam conquistado o direito de organização sindical e o
reconhecimento de que eram posseiros e deviam receber algum tipo de recompensa pelos anos
dedicados ao trabalho na produção da borracha que estavam perdendo para grandes empresas
agropecuárias. E essa conquista havia sido o resultado da resistência em sair de onde viviam há
gerações e da pressão da Igreja, da CONTAG e da imprensa, particularmente do jornal
Varadouro. Era um resultado expressivo para seus protagonistas, mas irrelevante do ponto de
vista do que ocorria na Amazônia e no resto do país. Até porque, nos estados mais
desenvolvidos, as conquistas trabalhistas haviam ocorrido décadas antes e a surpresa era que
trabalhadores rurais ainda estivessem submetidos a ações policialescas como as que ocorriam no
Acre.
A ação incisiva do regime militar no sentido de punir, exemplarmente, a possível aliança
entre o movimento sindical mais organizado do país e, potencialmente, o mais explosivo, porque
localizado em uma região de fronteira da Amazônia, tinha uma mensagem clara: não seriam
tolerados confrontos com os fazendeiros que estavam, na verdade, realizando o projeto
econômico dos militares para a região amazônica.
Chico compreendeu bem esta lição. Primeiro, percebeu que precisava concentrar suas
atividades em Xapuri, já que o movimento sindical de Brasiléia se desarticulara com o assassinato
do líder principal. Segundo, entendeu que não se poderia construir uma luta sindical tendo como
base ações corajosas mas personalizadas e, por isso, vulneráveis. Terceiro, que precisava de
aliados que suprissem a falta de força econômica que tinham os seringueiros naquele momento.
Foi com esses ingredientes em mente que ele assumiu a presidência do Sindicato de Xapuri e
perseguiu seu novo objetivo a partir de 1983: criar uma organização de base sólida que pudesse
dar sustentação a uma luta permanente e que fosse vitoriosa na direção da conquista dos direitos
dos seringueiros.
Até 1983, quando Chico Mendes assumiu a presidência do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Xapuri, todas essas etapas haviam sido cumpridas e esgotadas, de um processo de lutas
e conflitos, mas a resolução dos fatos que estavam na origem daquelas lutas e conflitos ainda não
318
acontecera e parecia ainda muito distante. Principalmente porque os seringueiros do Acre não
tinham o peso econômico dos líderes sindicais do ABC paulista para enfrentar o regime militar,
razão fundamental da política de desenvolvimento vigente na Amazônia que estimulava as
grandes empresas e assegurava seu poder político. A aliança entre realidades tão distantes, que o
assassinato de Wilson Pinheiro havia provocado, não podia, naquele momento, representar uma
alterarão na equação de poder vigente na região.
Mas o que mais chama a atenção em relação ao processo descrito neste capítulo e que se
constitui na base da análise que será feita no próximo, é o impasse que estavam vivendo os
seringueiros de Xapuri nos primeiros anos da década de 1980 e pode ser resumido nos seguintes
pontos:
Primeiro, a quebra da política do Monopólio da Borracha não mais assegurava preço para
o produto que faziam. Assim, estavam vivendo um processo de empobrecimento crescente e,
mesmo não sendo expulsos, muitos seringueiros estavam deixando os seringais por não
conseguirem sobreviver da produção da borracha. Eles eram seringueiros livres, mas não tinham
a quem vender sua produção. Ou seja, havia uma crise econômica de difícil solução.
Segundo, as alternativas existentes para resolver os conflitos fundiários estavam
assentadas em um modelo econômico que não era compatível com a história dos seringueiros
enquanto trabalhadores: a pequena produção agrícola. Eles eram produtores de borracha e
faziam agricultura apenas como um complemento para a atividade principal e como uma
reafirmação da posse das áreas onde viviam. Não sabiam plantar para vender e o que plantavam
para a subsistência não tinha mercado que remunerasse.
Terceiro, o que a política de reforma agrária lhes oferecia não era, portanto, uma solução:
deixar de ser seringueiro para se transformar em colono. Isso implicava em largar uma colocação de
300 hectares por um lote de 30 hectares; largar uma área de floresta, distante da cidade, tranqüila,
com caça, pesca, castanha, borracha, e uma infinidade de outros produtos que sabiam utilizar,
por um pedaço de terra, geralmente sem vegetação protetora, degradado, em um projeto de
colonização, na beira de um ramal por onde não se conseguia transitar com produtos perecíveis
nos longos meses de inverno.
Os seringueiros haviam descoberto, por conta própria, um espaço específico de pressão
em relação aos fazendeiros, que era o empate. Através dele haviam diminuído as expulsões e
estabelecido um espaço de negociação com o governo. E continuaram utilizando essa estratégia
de combate em inúmeras batalhas nos anos seguintes ao empate do Carmen. Mas esbarravam na
ausência de uma solução para o problema que, no fundo, perseguiam: continuar sendo
seringueiros.
319
O que estava evidente, e era a razão do principal impasse vivido pelos seringueiros e por
Chico Mendes, é que eles sabiam que a solução existente não lhes interessava e que a que buscavam
implicaria em uma guerra muito difícil de ganhar, porque a vitória de um significaria a derrota do
outro. Ou seja, parar um desmatamento significava questionar o direito de propriedade que aquele
fazendeiro alegava ter e no qual se fundamentava para agir de acordo com seus interesses na área de
terra que havia comprado.
Se os seringueiros de Xapuri tivessem se contentado em parar um desmatamento para
conseguir uma indenização e ficado satisfeitos com os lotes recebidos, a história, provavelmente
teria terminado em um ou dois anos mais. O governo teria destinado uma extensão maior de terras
para a colonização e colocado ali todos os seringueiros indenizados e aqueles que não haviam
conseguido se adaptar à produção agrícola acabariam na periferia das cidades, dando lugar,
provavelmente, a colonos ávidos por um pedaço de terra para recuperar a condição de vida perdida
no sul do país. Não sendo essa a solução, era evidente que o caminho seria difícil e os conflitos ainda
maiores e mais complexos.
Um balanço da realidade do Acre, no período analisado, expressa relações sociais em aberto
confronto. Fazendeiros e seringueiros estavam em guerra. E a vitória de um lado significaria a
derrota do outro. Para continuar existindo, os seringueiros precisavam impedir que as fazendas se
consolidassem. Era o direito de posse, de um lado, e o poder econômico do outro, sobre um mesmo
território. Fazendeiros destruíram e queimaram barracas de posseiros, seringueiros foram presos,
reagiram, fizeram emboscadas, mataram e foram mortos.
Estavam criadas as condições para a etapa final desta história, que será apresentada no
capítulo seguinte e último, quando emerge, finalmente, uma nova fase desta luta, na qual os
seringueiros passaram a defender o seu modo de viver e de produzir e que, para se realizar, teve que
superar inúmeras dificuldades legais e institucionais. Não somente isso, a realização dos objetivos
principais dos seringueiros somente viria a ser alcançada como resultado do impacto produzido pelo
sacrifício pessoal de seu líder, assassinado. Porque o que estava em jogo, em essência, era o
questionamento em torno de diferentes formas de acesso e de utilização dos recursos naturais e de
direitos conflitivos em relação à propriedade da terra.
320
5.
DEFESA DA FLORESTA
O segredo da natureza é muito profundo, assim, um negócio que toca mesmo. O
som da mata, por exemplo. Você escuta como se fosse um som das árvores, se
comunicando umas com as outras. Agora, é preciso que você esteja sozinho,
concentrado, numa mata mais longe, fechada, aí você pára e você percebe que
existe um som, muito assim meio misterioso e tal, que é o som da transmissão da
própria floresta, das árvores. Também tem os mistérios na mata. Existe, por
exemplo, o deus da caça, que é o curupira e também o caboclinho da mata, que
no fundo é uma coisa só. E tem a mãe da seringueira, que é uma rainha. E o
mistério da noite. Você vai prá uma espera à noite, você observa, se você estiver
esperando, numa árvore, esperando caça, perto de um córrego, de uma vertente,
você tá ouvindo o ruído da água, mas na passagem da meia noite, durante uns
cinco, uns dez segundos, ou quinze segundos, no piso da meia-noite, tudo pára,
silencia. Pára a correnteza da água, pára tudo, na passagem da meia noite, silencia
tudo, ninguém faz ruído nenhum, é aquele silêncio mais profundo do mundo.
Até um grilo se estiver cantando, ele pára, se estiver cantando à meia-noite. Pára.
Aí depois, fica tudo normal. E das duas horas da madrugada em diante, então
começa o despertar das aves, dos animais, do corujão, começa a gritar. São as
horas, os momentos mais silenciosos é à meia noite.
Entrevista de Chico Mendes
a Mary Allegretti
Xapuri, Acre, 17 de julho de 1988
Diferentemente do que pensam os biólogos, natureza não é um conceito exclusivo das
ciências naturais. Natureza é um conceito que pertence, também, às ciências sociais. Porque
existem diferentes percepções do que seja a natureza conforme as relações sociais que em torno
dela são estabelecidas. Como afirma Bennet, os valores assignados para o ambiente não vêm da
natureza, mas da cultura. "The use of the environment is taken inside society and the physical
substance are transformed into 'resources', that is, into aspects of culture. Modern economics is
perhaps the most familiar example: the values assigned to the environment do not come from
nature but from culture" (Bennett 1993).
321
É no campo contraditório entre diferentes valores atribuídos à natureza que vai se
desenvolver a última etapa desta história. Essa diferenciação ocorre entre o valor da natureza
como meio de vida, para os seringueiros, e como obstáculo à produção, para os fazendeiros; ou
como espaços vazios a serem inseridos na economia de mercado, para os militares, e reservas de
recursos a serem protegidos, para os ambientalistas.
Chico Mendes e os seringueiros vêem a natureza pelos olhos de sua cultura. E a vêem
como um espaço de observação, experimentação e descobertas; de intimidade, respeito e
convivência espiritual; berço de seus antepassados; equilíbrio entre múltiplas formas de vida e
fonte onde sempre encontram o que precisam para viver. Se a natureza, na forma de floresta,
representa tudo isso, derrubá-la para desocupá-la destes seres e para colocar no lugar um simples
campo de pasto, é muito mais que um ato insano. É um crime e um genocídio!
É com estes conceitos em mente que Chico Mendes vai organizar os seringueiros e lutar
com eles para proteger a mata amazônica Mais que isso, vão criar uma maneira nova de assegurar
estas áreas não somente para si mesmos mas para seus descendentes e, assim fazendo, estarão
garantindo uma alternativa de uso dos recursos naturais que poderá ser replicada em outros
cantos do planeta.
É este o objetivo deste capítulo. Analisar o processo por meio do qual, no bojo dos
enfrentamentos para defender a floresta, os seringueiros criaram as primeiras iniciativas locais de
educação e cooperativismo, empataram as derrubadas, foram presos inúmeras vezes, até chegarem,
em 1985, à decisão de criar um movimento social orientado para a proposição de alternativas
inovadoras de defesa da floresta. Mas para isso acontecer, ao lado dos empates, questionaram as
consequências de um projeto de desenvolvimento baseado no asfaltamento da BR 364 e
projetaram suas idéias pelo mundo em busca de apoio. Mas confrontaram o poder no seu âmago
- a propriedade da terra - e receberam como resposta o assassinato covarde de seu líder.
Reagiram e conquistaram a proteção definitiva, exclusiva e permanente da floresta, ainda que
respingada de sangue.
Originado em Xapuri, o movimento alcançou dimensão regional, nacional e internacional.
De características sindicais e centrado na defesa da posse, adquiriu identidade ambiental, de
defesa de territórios e dos recursos naturais. E culminou com uma nova política pública que
inseriu a variável social no campo ambiental.
Assim que concluiu o mandato de vereador, Chico Mendes foi eleito Presidente do STR
de Xapuri. Dos confrontos e embates do período anterior havia ficado uma questão em aberto: a
proposta de regularização fundiária feita pelo governo não contemplava a especificidade de
ocupação territorial nem o sistema de produção dos seringueiros. Isso significava que a reforma
322
agrária, da maneira como estava formulada, não representava uma solução e era preciso buscar
outros caminhos.
Muitas etapas já haviam sido superadas, desde as primeiras iniciativas, no começo da
década de 1970, até o início dos anos 80, conforme foi apresentado no capítulo anterior. A
primeira ocorrera ainda no contexto dos seringais tradicionais e fora voltada para a busca de
justiça nas relações de trabalho e de autonomia no processo de comercialização de borracha; a
segunda, uma luta essencialmente social, teve como objetivo impedir a expulsão dos seringueiros
de suas posses assim que os seringais começaram a ser vendidos para fazendeiros; a terceira foi o
reconhecimento dos seringueiros como posseiros e o direito a indenizações pelas benfeitorias que
haviam realizado em suas colocações; a quarta etapa foi aberta pelo empate do Carmen, quando os
seringueiros de Brasiléia decidiram que não queriam sair das colocações e resolveram se contrapor
ao desmatamento do seringal; a quinta foi a retração da organização sindical depois do
assassinato de Wilson Pinheiro e do indiciamento de Chico Mendes na Lei de Segurança
Nacional.
Até então os seringueiros estavam buscando sua inserção no conjunto de leis e políticas
disponíveis para solucionar os conflitos fundiários, acreditando que o problema estava na
ausência de reconhecimento, por parte dos órgãos de governo, da categoria dos seringueiros
como beneficiários do que previa a lei, ou seja, da indenização pelas benfeitorias, monetária, ou
na forma de um lote de terra.
A partir do empate do Carmen e do assassinato de Wilson Pinheiro, houve uma mudança
de concepção e de estratégia, que foi consolidada nos anos seguintes e será detalhadamente
analisada neste capítulo. Conforme já foi explicitado, os seringueiros perceberam que a
indenização eliminava o que lhes era mais caro – o direito de continuar exercendo a profissão. Ao
receberem a terra deixavam de ser seringueiros para se transformar em colonos e isso trazia uma
série de desvantagens. Além disso, ao perderem o principal líder, que havia concebido essa tática
de luta, entenderam que precisavam descobrir outros meios de defesa e de organização.
Estas reflexões estavam claras para Chico Mendes e ele se referiu a elas em inúmeras
entrevistas que deu em 1988, quando relatava a história do movimento. E a demonstração de que
ele tinha consciência clara sobre esses impasses está na estratégia que conduziu a partir do início
dos anos 80: decidiu que era preciso que os seringueiros se organizassem nas bases, de forma
mais permanente e consistente, para evitar a desagregação ocorrida no Sindicato de Brasiléia
depois da morte de Wilson. Foi com base nessa reflexão que surgiram as primeiras iniciativas de
organização de escolas e cooperativas em Xapuri:
323
O movimento então passa por uma fase difícil. Esse movimento começa então a ser
coordenado a partir de Xapuri, com a morte do companheiro Wilson. E a gente percebeu uma
coisa muito interessante: o Wilson era uma pessoa de muita coragem, muito bom, mas todo o
movimento era centralizado na mão dele. Então isso foi uma armadilha, um golpe fatal, prá nós.
Aqui em Xapuri, então, a gente começa um movimento diferente no sentido de articular as bases,
prá fortalecer o movimento. Porque se morresse alguém, o movimento não recuava, seria tocado
prá frente. E assim foi feito. A gente começou a se organizar, articular o movimento, as bases e os
empates continuaram, os movimentos continuaram, a resistência, e esse movimento passou a ser
comandado a partir do Sindicato de Xapuri, que era um pouco fraco naquela época e começou a
se fortalecer e começou a andar. E em 80, 81, por aí assim, a gente passou a articular, numa
comunidade aqui bem distante, a possibilidade de se criar um modelo de alfabetização popular
para o seringueiro; isso com o objetivo de fortalecer mais a luta desse trabalhador, porque com
um trabalho de educação popular, isso iria ajudar também a fortalecer essa luta, esse movimento
dos trabalhadores. E a coisa deu certo. Então nessa época, foi criada a primeira escola do Projeto
Seringueiro com um método de ensino ligado àquele educador Paulo Freire. E começamos no
Seringal Nazaré, na área da Fazenda Bordon, as primeiras escolas de alfabetização popular. E a
partir daí a luta foi crescendo, devagar, foi crescendo, foi amadurecendo. (Entrevista de Chico
Mendes a Linda Rabbin, Xapuri, 26 julho 1988).
A outra mudança conceitual e de estratégia surgiu no campo mesmo da reforma agrária.
Os empates realizados a partir de 1982 não visavam mais somente impedir o desmatamento como
meio de reconhecimento da posse. Os seringueiros passaram a empatar as derrubadas em áreas
onde não haviam posseiros, criando um novo tipo de confronto com as autoridades
governamentais e legais que os levou inúmeras vezes à prisão.
Esse novo tipo de posicionamento face aos conflitos estava centrado na idéia, cada vez
mais forte a partir de então, de que o que estava em questão era a manutenção da especificidade
do trabalho extrativista e o objetivo da luta passou a ser a determinação de não sair da floresta, ou
seja, a defesa da colocação como expressão do direito de posse de uma categoria específica de
trabalhadores:
A partir de 81 a gente começa a discutir uma outra forma, não vamos mais sentar com o
fazendeiro, não vamos sentar mais prá negociar, fazer acordo no escuro que só tem trazido
prejuízo prá nós. E começa então a resistência prá não se permitir indenização nenhuma, nem
loteamento nenhum. A questão é empatar mesmo. E começa a resistência. Em 81 nós tivemos
mais de 112 dirigentes sindicais, trabalhadores presos, encurralados em caminhões, pela polícia
militar, cercados por metralhadoras, presos, batidos, mas a avaliação nossa era que tinha que
resistir na luta. E foi se generalizando: 82, 83, 84, os empates, resistência e derrotas da nossa parte,
324
porque como os fazendeiros têm grande influência no poder político no Estado eles contam com
o aparato policial, pagavam a polícia. A gente ia lá mas ia enfrentar as bocas das metralhadoras.
Agora, a gente começou uma outra tática, de levar mulheres, crianças, todo mundo, prá frente dos
empates, prá frente de luta, e as mulheres assumiam as frentes de comando com as crianças, porque
eles iam pensar duas vezes em atirar numa criança, numa mulher de um trabalhador. E a gente foi
na base da pressão. (Entrevista de Chico Mendes para Lucy Paixão Linhares, janeiro de 1988, Rio
Branco, Acre).
Foi esse elemento que abriu caminho para as inovações que surgiram, a partir de 1985,
nas propostas visando a regularização do acesso e do uso dos recursos da floresta. Descobriram
que, à semelhança dos indígenas, também poderiam ter áreas reservadas para o extrativismo, o
que os levou à proposta da Reserva Extrativista e a uma organização nacional orientada para
defendê-la, inaugurando uma categoria nova no rol de áreas protegidas, que permite a presença
humana.
Essa trajetória, aparentemente linear, foi de fato marcada por avanços e recuos,
principalmente porque neste período deu-se a principal mudança na correlação de forças entre os
seringueiros e o governo federal, decorrente do debate em torno do asfaltamento da BR 364,
estrada que liga o Acre ao sul do país. Financiada pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento, a estrada era vista, pelo governo local e pelos empresários que haviam
comprado os seringais, como o símbolo do progresso e o fim do isolamento do Acre, razões
principais da ausência de desenvolvimento na região. Para os seringueiros e índios, porém,
representava a maior ameaça que surgira até então, uma vez que a valorização da terra e a
especulação fundiária, acabariam por expulsá-los definitivamente de suas áreas. Ou interferiam
naquele momento, ou perderiam a oportunidade de ver regularizadas as áreas que ocupavam, seja
as Reservas Indígenas ou Extrativistas. Chico Mendes decidiu interferir e, como resultado das
pressões lideradas por ele, em forte aliança com o movimento ambientalista internacional, o
recurso foi suspenso até ser implementado um plano de proteção para comunidades indígenas e
seringueiras afetadas pela estrada. Foi esse confronto, entendido pelos proprietários e seus
representantes governamentais, como um questionamento ao poder instituído, que criou o
contexto para o seu assassinato. Ao contestar uma política estratégica para o governo militar, em
um momento de aguçamento dos conflitos com os fazendeiros, Chico Mendes foi assassinado.
Dois anos depois, em 1990, o movimento dos seringueiros conseguiu ver aprovada a
proposta de Reserva Extrativista. Dois milhões de hectares foram decretados e a proposta de
defesa da floresta, que Chico Mendes ajudou a construir, foi oficializada pelo governo brasileiro.
A maior reserva de todas, com cerca de 1 milhão de hectares, denominada de Reserva
325
Extrativista Chico Mendes, foi criada em cima das fazendas e seringais onde estavam ocorrendo
os confrontos que, a partir daí, foram completamente eliminados no Vale do Acre.
O capítulo descreve as diferentes etapas desse movimento, de 1981 a 1988. A identidade
social que marca esse momento da história de Chico Mendes é a de líder sindical e ambiental; e a
identidade coletiva criada pelos seringueiros é a de extrativistas, guardiões da floresta.
A metodologia utilizada neste capítulo difere da adotada nos anteriores. As entrevistas
dadas por Chico Mendes, sobre esse período de sua história tratam, de forma homogênea, das
análises feitas por ele sobre os fatos políticos em torno do movimento dos seringueiros,
evidenciando que os eventos de sua vida pública concentravam e mobilizavam seu pensamento e
sua ação. Assim, no lugar de estruturar a narrativa em torno da história de sua vida, as citações de
entrevistas dadas por ele contribuem para explicar e contextualizar os fatos principais ocorridos
naquele período em torno tanto dos conflitos pela terra quanto das proposições em defesa da
floresta.
Diferentemente também dos capítulos escritos até aqui, em relação aos quais a fonte das
informações utilizadas eram dados secundários, literatura especializada, ou pesquisa para fins
acadêmicos, a partir de 1981 e até 1990, àquelas informações serão agregadas outras, resultantes
de material original de pesquisa e da participação direta da autora nos acontecimentos178. As
fontes utilizadas diferem pouco em conteúdo, uma vez que os procedimentos técnicos foram os
mesmos: a gravação dos fatos enquanto estavam ocorrendo e o arquivo de documentos
considerados relevantes. O que muda, essencialmente, é o objetivo do levantamento das
informações: elaborar propostas de intervenção, de caráter técnico e político, participar da
implantação de projetos específicos e, principalmente, da estratégia de atuação das lideranças do
movimento dos seringueiros, especialmente de Chico Mendes.
Mas as razões relacionadas à forma como me envolvi com os fatos políticos do Acre
naquele período merecem uma explicação objetiva. Em uma situação de conflito social ostensivo,
como a descrita no capítulo anterior, e nas circunstâncias culturais próprias do Acre, onde o
sentimento de "acreanismo"179 é muito acentuado, torna-se quase impossível uma inserção social
diferente da que realizei.
178
As fitas gravadas e que serão utilizadas nesta Tese, a partir do ano de 1981, constituem parte de pesquisa de
campo com o objetivo de subsidiar projeto de Tese de Doutorado que foi apresentado e aprovado, em fevereiro de
1982, para o Curso de Doutorado em Antropologia da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra.
Eunice Durham, sob o título "Extrativismo e Ideologia. O processo de transformação do seringueiro cativo em
liberto". Este curso foi interrompido em 1983 em função do meu envolvimento crescente com o STR de Xapuri na
coordenação do Projeto Seringueiro.
179 Em toda a Amazônia verifica-se uma atitude cultural de rejeição às pessoas consideradas 'de fora', que podem ser
oriundas tanto de outros estados do país quanto de outros países. Pessoas nascidas na Amazônia e que sempre
moraram fora não perdem a identidade do local onde nasceram. Mas pessoas nascidas em outros estados e criadas na
Amazônia podem ser consideradas 'de fora'. Em alguns estados, como Rondônia, em consequência da intensa
326
Na década de 1970 e no bojo dos conflitos pela terra, duas identidades sociais foram
geradas, classificando as pessoas como acreanos ou paulistas, categorias que representavam muito
mais do que a origem regional. A identidade paulista não somente englobava sem distinção todos
aqueles não nascidos no Acre, independentemente do estado de origem, como ser paulista era, por
princípio, um qualificativo depreciativo, associado aos males causados aos acreanos pela venda dos
seringais. Assim, todas as pessoas de origem sulista eram classificadas como paulistas e, na maior
parte dos casos discriminadas, independentemente dos objetivos que as motivara a ir para o Acre.
Mesmo aqueles, oriundos do sul, mas sem laços familiares, econômicos, políticos ou ideológicos
com os fazendeiros, precisavam provar sua identificação com a causa acreana180 para serem aceitos
e não hostilizados.181
Nesse contexto, também o conceito de acreano se redefiniu. Durante toda a história do
território, uma única modalidade de organização econômica e social havia predominado, o
extrativismo, com reflexos culturais marcados pela exclusividade. Os acreanos não haviam tido a
oportunidade de refletir, pela comparação, sobre sua própria identidade. Assim, a chegada dos
paulistas desencadeou, pela primeira vez, uma espécie de reflexão sobre si mesmo pela
comparação com o outro. Da mesma forma como a categoria paulista englobava todos os 'de fora'
independentemente de classe social ou posição ideológica, a categoria acreano englobava todos os
'de dentro', seringueiros e seringalistas, patrões e fregueses, aviadores e aviados. Durante os primeiros
anos tendia-se, inclusive, a esquecer as relações antagônicas entre uns e outros, face à ameaça
maior representada pelos novos donos da terra.
Passar de uma categoria para a outra, ou seja, ser paulista de origem e acreano por ideologia
não era um processo simples e requeria mais do que um discurso ideológico ou um projeto de
pesquisa de orientação marxista182. Era preciso fazer uma opção clara pelos segmentos sociais
marginalizados socialmente e transformar esta opção em resultados concretos, positivos e
imediatos, para obter o respeito das pessoas com as quais se estabeleciam relações de trabalho ou
migração do sul do país, houve uma inversão na origem cultural da elite local, com perda de representação
econômica e política das famílias consideradas tradicionais. No Acre isso não ocorreu e o sentimento de acreanidade
continua até hoje muito presente.
180 A "causa acreana", em síntese, significava a defesa dos interesses dos seringueiros e índios, da história e da cultura
locais e o envolvimento com as inúmeras iniciativas populares que estavam surgindo em todo o Estado. Esta postura
era defendida no jornal Varadouro, pelas Comunidades Eclesiais de Base, pelos sindicatos de trabalhadores rurais e
outros movimentos sociais, sendo respeitada, mesmo sob protestos, pelas lideranças políticas de tendências
ideológicas contrárias.
181 Albert Memi (1977), em seu livro "Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador" descreve com
muita perspicácia e propriedade situações de conflito envolvendo categorias culturais próprias dos países que
vivenciaram situações coloniais que se aproximam das que estou descrevendo em relação ao Acre.
182 No Acre, por razões a serem melhor conhecidas, discursos ideológicos sempre estiveram subordinados a práticas
políticas concretas, na hierarquia de valores com os quais se dá a avaliação dos comportamentos humanos. Valorizase mais o envolvimento das pessoas em projetos de mudança social do que em discursos acadêmicos ou filosóficos.
Esse fato era muito acentuado no passado, mas ainda se manifesta no presente.
327
de produção de conhecimento. E essa postura não estava restrita aos segmentos intelectuais da
sociedade acreana, mas também aos trabalhadores rurais183.
Em síntese, estas observações evidenciam que um pesquisador ou um profissional da área
de ciências sociais interessado em realizar pesquisas no Acre, deveria buscar sua inserção social
tanto por meio da identidade ideológica com a "causa acreana" quanto, e principalmente, pelo
envolvimento em projetos sociais e políticos concretos. E foi o que ocorreu comigo durante o
período no qual transcorre a análise deste capítulo e com muitas outras pessoas que viveram a
mesma experiência.
É por esta razão que ao escrever sobre o movimento dos seringueiros e a construção da
política de Reservas Extrativistas, objeto deste capítulo, não foi possível estabelecer uma clara
distinção entre os papéis que desempenhei ao longo do processo. De um lado, como
pesquisadora, registrei, documentei e gravei os fatos ocorridos e as diferentes interpretações
feitas sobre eles pelos atores sociais e políticos envolvidos; de outro, participei diretamente dos
eventos que documentava sendo, também, personagem da história. A maneira que encontrei para
dar objetividade aos fatos analisados, foi apresentar os documentos e as falas registradas sobre
cada situação analisada, somente fazendo referência à minha participação naquelas ocasiões nas
quais era preciso citar diretamente o nome das pessoas envolvidas.
Este capítulo cobre sete anos, de 1981 a 1988, e relata os acontecimentos registrados no
Acre no período. Tem como ponto de partida o Projeto Seringueiro e o Encontro Nacional dos
Seringueiros e coloca no centro da análise o asfaltamento da BR 364, as negociações entre o
governo brasileiro e as comunidades locais lideradas por Chico Mendes e os conflitos com
fazendeiros que culminaram com seu assassinato, em 1988.
O capítulo está organizado em cinco tópicos. O primeiro, Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Xapuri, cobre o período de 1981 a 1983, durante o qual ocorreu um importante empate
contra a Fazenda Bordon, que se transformou em símbolo do movimento e levou Chico Mendes
à presidência do STR de Xapuri, consolidando sua liderança sindical. O segundo tópico, Projeto
Seringueiro, cobre o mesmo período de tempo do anterior, 1981 a 1983, e analisa a primeira
iniciativa voltada para a modificação das condições sociais vigentes nos seringais de Xapuri,
através da criação de escolas e cooperativas, significando um avanço em relação ao momento
anterior de enfrentamento às ameaças de perda da posse, embora os conflitos continuem sendo
constantes em Xapuri. O terceiro tópico aborda o Encontro Nacional dos Seringueiros,
ocorrido em outubro de 1985, iniciativa que marcou o início do movimento social e o surgimento
183 Esta postura pode estar associada ao isolamento vivido, durante o extrativismo, em relação ao resto do país e à
fraca presença do Estado. Assim, uma pessoa de fora visitar o Acre a trabalho, especialmente nos seringais, era um
acontecimento que, na avaliação dos seringueiros, obrigatoriamente deveria reverter em algum tipo de benefício (Ver
Zanoni 1979).
328
da proposta de Reserva Extrativista como uma modalidade nova de regularização fundiária e de
utilização dos recursos naturais. O quarto tópico, A Construção Institucional da Reserva
Extrativista, apresenta as informações necessárias para se compreender o quadro de alianças que
foi construído entre os seringueiros e o movimento ambientalista internacional, em torno, de um
lado de uma campanha em defesa das florestas tropicais e, de outro, da necessidade de fazer
frente às consequências imediatas do asfaltamento da BR 364. Analisa, também, a primeira
iniciativa de inserir a idéia de Reserva Extrativista na política da reforma agrária, em 1987, criando
o Projeto de Assentamento Extrativista, sob responsabilidade do INCRA.
Por último, o quinto tópico, Guerra na Floresta – O Assassinato de Chico Mendes,
inicia com a suspensão dos desembolsos para o empréstimo da BR 364, relata os prêmios
internacionais recebidos por Chico Mendes e mostra, simultaneamente, o conflito local em torno
da grilagem do Seringal Cachoeira, local onde Chico Mendes viveu a maior parte de sua vida, e o
conflito nacional e internacional desencadeado pelo questionamento de uma obra de infraestrutura considerada essencial tanto para o governo federal quanto para os novos proprietários
das terras. Esse quadro complexo vai permitir que se entenda o contexto do seu assassinato.
5.1.
SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE XAPURI
Os documentos que servem de base para este tópico resultaram de pesquisa de campo
sobre os seringueiros autônomos, realizada durante o ano de 1981, em Rio Branco, Xapuri e no
Seringal Nazaré184. O mais significativo de todos é a primeira entrevista que gravei com Chico
Mendes, na qual ele explica os que são os empates e faz um balanço das conquistas dos
seringueiros, permitindo que se compreenda o contexto no qual ocorriam os conflitos em Xapuri.
No dia seguinte, eu o acompanhei a uma reunião com colonos e seringueiros em Plácido de
Castro e, uma semana depois, fui a Xapuri pela primeira vez. Escrevi duas matérias com base nas
entrevistas realizadas nestes locais, publicadas nas edições de junho e agosto do jornal185. Foi a
184 No meu arquivo pessoal existem 13 fitas gravadas durante o ano de 1981 em reuniões nas quais estive presente;
dia 22 maio: primeira entrevista realizada com Chico Mendes em Rio Branco; 23 de maio: gravação de Encontro de
Chico Mendes com seringueiros e colonos em Plácido de Castro e duas fitas de entrevista com Manoel Freire de
Lima, soldado da borracha, também em Plácido de Castro; 29 de maio: reunião de delegados sindicais e lideranças do
Seringal Nazaré em Xapuri; 30 maio: reunião de avaliação do STR em Xapuri e entrevista com Raimundo de Barros;
31 de maio: Assembléia Geral do STR de Xapuri e entrevista sobre o empate do Seringal Nazaré; 20 de abril:
entrevista com Antônio Carlos Carbone e Raimundo João, técnicos do Incra em Rio Branco; 20 de julho: reunião do
STR de Brasiléia em homenagem a Wilson Pinheiro, no primeiro aniversário do seu assassinato, em Brasiléia; 29 de
julho e 1o de agosto: reuniões no Seringal Nazaré em preparação para o início das atividades do Projeto Seringueiro,
em Xapuri.
185 Ver "Seringueiros apontam rumo para o sindicato", Varadouro N.22, junho/julho de 1981 e "Varadouro vai a
Plácido de Castro", Varadouro N. 23, agosto/setembro de 1981. Conforme já mencionado o trabalho de campo foi
realizado visando a elaboração da Tese de Doutorado para o Departamento de Antropologia da USP. Associar a
pesquisa com a produção de matérias para o Varadouro era uma prática típica do Acre, naquele momento, e quase
uma exigência para conseguir ser aceita entre o grupo de pessoas que refletiam e escreviam sobre a realidade da
329
partir deste momento, ou seja, maio de 1981, que teve início meu trabalho com Chico Mendes no
Acre186.
5.1.1
Entrevista com Chico Mendes em 1981
O destaque dado, neste tópico, a esta entrevista, se justifica por várias razões: foi a
primeira dada por Chico Mendes para uma pessoa de fora do Acre e é o primeiro texto que
apresenta, de forma relativamente organizada, o ponto de vista de um líder sindical sobre os
conflitos fundiários e as reações organizadas dos trabalhadores, no momento em que os fatos
estavam acontecendo e não como reconstituição e reinterpretação do passado, como as demais
entrevistas realizadas nos anos seguintes.
Além disso, em 1981, Chico Mendes era pouco conhecido, ainda, no Acre e praticamente
desconhecido fora de lá, assim como pouco se sabia a respeito do movimento sindical em
Xapuri. Este fato dá a esta entrevista um outro significado: ela registra o pensamento de Chico
Mendes sem qualquer influência dos aliados que a ele se juntaram depois de 1985, cientistas,
jornalistas, antropólogos e ambientalistas. Revela, também, pelo teor das perguntas formuladas,
um desconhecimento quase completo da realidade dos seringueiros do Vale do Acre e daquela
vivida por ele, naquele momento.
Dois outros aspectos, ainda, devem ser salientados: nesta entrevista Chico Mendes adota
uma postura diferente da que assumiu em todas as demais que foram gravadas com ele nos anos
seguintes. Ele fala dos trabalhadores, dos seringueiros, na terceira pessoa – eles – como se não
fizesse parte da mesma classe. Essa postura distanciada sempre me chamou atenção, embora não
conseguisse explicar claramente as razões que o levaram a assim se manifestar.
Colocando-a no contexto dos acontecimentos daquele momento, no entanto, parece ficar
claro que, em maio de 1981, ele acabara de chegar de Manaus, intimado por uma carta precatória
para responder a uma acusação que, com base na Lei de Segurança Nacional, poderia levá-lo à
prisão. Isso certamente explica o distanciamento que ele procurou dar às respostas, uma vez que
o acusavam, exatamente, de incitar os seringueiros à violência, fato que somente pude
compreender no processo de elaboração deste estudo.
região. Foi essa postura, própria de algumas pessoas, especialmente Terri Valle de Aquino e Elson Martins da
Silveira, que teve influência decisiva na minha carreira profissional a partir de então.
186 Iniciei meu trabalho com Chico Mendes três anos depois de ter realizado pesquisa no Acre e defendido minha
Tese de Mestrado sobre os seringueiros e quatro anos antes do Encontro Nacional dos Seringueiros, que ocorreu em
1985 e deu origem ao movimento dos seringueiros. Antes, também, dele ficar conhecido e ser premiado, o que
ocorreu em 1987 e 1988. Faço questão de salientar este aspecto para contrapor a interpretações recorrentes de que eu
teria feito minha vida profissional à sombra da fama de Chico Mendes, ou de insinuações de que teria me envolvido
com esta história quando ele ficou mundialmente conhecido.
330
A entrevista foi realizada no dia 21 de maio de 1981, na sede do jornal Varadouro, por
sugestão do jornalista Elson Martins, editor do jornal, do qual eu era colaboradora:
MA: Você podia dizer teu nome?
CM: Meu nome é Francisco Mendes Filho.
MA: Você é do Sindicato?
CM: Sim, bom. Eu atuo no Sindicato como sócio, não como Diretor, mas que eu assumo
um trabalho voluntário, porque realmente os trabalhadores pedem esse meu apoio na área
sindical, então eu tenho desenvolvido... Antes fui Diretor do Sindicato de Brasiléia, desde 75.
Bom, como eu era um Diretor do Sindicato e tentei fazer o que pudesse em termos de
organização dos trabalhadores, então o pessoal, os trabalhadores em si, me consideram até hoje
como assim uma forma de dirigente sindical que em todos os movimentos deles eles contam com
a minha presença, fazem questão da minha presença, de atuar junto com eles.
MA: Talvez a primeira coisa seria assim...porque eu não conheço praticamente nada desse
tipo de movimento. O que são os empates?
CM: O empate foi uma forma que os trabalhadores encontraram, que eles decidiram, de
impedir o avanço do latifúndio. Uma espécie de uma bandeira que eles, entre si, pensaram que
seria o último apelo, já que às vezes eles recorriam à justiça e o processo era muito lento.
Enquanto eles recorriam à justiça, enquanto isso, a floresta ia sendo derrubada, de qualquer
maneira. Porque enquanto um problema desse, a dificuldade de um juíz do município, assim uma
questão judicial é muito difícil, assim muito lenta. Então, isso não levava vantagem nenhuma pro
trabalhador, porque ele ia perdendo terreno, diariamente. Então ele pensou uma outra forma.
Não em termos de querer ser um agitador, como ele é acusado, muitas vezes, de agitar, e tal, de
ter orientações, nunca. Mas seria a única saída para ele defender os seus direitos, a sua própria
sobrevivência. É incrível dizer, muita gente até não acredita que o trabalhador chegou a dizer que
dessa forma ele estaria cooperando para a segurança nacional: empatar o desmate, quer dizer,
defender a seringueira e a castanheira, que é a sobrevivência deles, da família deles, isso desde o
século passado, e que ele considera também como seja a única fonte de riqueza do Estado, ainda
é, prevalece apesar de toda a destruição, é a seringa e a castanha.
Então, com isso ele achou que uma forma mais fácil seria unir os trabalhadores, eles se
unirem entre si e juntos chegar nas fazendas, chegar nas desmatações, lá onde... nos
acampamentos e pedir para os peões se retirarem alegando, eles alegam aos peões que têm
também, como pobre, têm que ajudarem eles, que a forma deles ajudarem eles, era não fazer
aquele trabalho, não fazer, porque ele também é um sofredor, então eles fazendo aquilo eles
tavam prejudicando a própria família dos trabalhadores.
Realmente, o peão nunca resistiu. O peão em si, quando chegava esse momento que os
trabalhadores seringueiros chegavam e pediam para eles suspenderem o trabalho, toda a vida eles
obedeceram. Porque eles também compreendem, são sofredores, então eles acham que,
331
realmente, seria até um crime e que com isso então eles conseguiram muitas vitórias. Em Xapuri,
mesmo. Em Brasiléia, hoje, foi uma grande vitória que o Sindicato conseguiu com isso, essa única
forma que eles acharam de empatarem, embargarem a desmatação.
Quer dizer, quando se falava num embargo à desmatação, que eles iam lá, se eles iam
prevenidos, a arma do trabalhador mesmo, a espingarda de caça, o facão, a foice, no caso, eles
geralmente, eles alegam que iam armados, porque alguém, os adversários perguntam: 'Então, por
que esses homens iam armados?' Não, eles respondem o seguinte: 'Nós imo armado às vez
porque existe aquela conversa do pistoleiro que tá lá prá dar garantia aos peões, muitas vezes, os
próprios administradores, os capataz da fazenda, diziam que tavam indo de metralhadoras, de
todo tipo de armas pesadas'. Então eles iam, não tinha segurança, se houvesse uma reação,
imediata, então eles também tariam dispostos a reagir. Mas isso, num último recurso. Realmente, a
intenção deles era de uma... chegar lá de uma forma pacífica e pedir a retirada. É claro que eles
desmontavam os barracos já com o fito dos peões não voltarem mais.
MA: Quando começou esse movimento?
CM: Olha, essa história do empate-derrubada começou a partir de 78, quer dizer, 77 já
começou, 76, eu lembro que houve o primeiro empate na Fazenda Carmen em Brasiléia, onde 60
peões foram barrados pelos trabalhadores. Foi a primeira forma que o trabalhador encontrou, o
primeiro teste que eles fizeram, diante de toda a pressão do latifúndio, dos fazendeiros, foi então
fazer esse primeiro empate que eu me lembro. Foi na Fazenda Carmen, em 76 ainda eu era,
pertencia à Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. Quer dizer, esse
primeiro empate foi uma pequena vitória, já, porque atraiu a presença de todas as autoridades do
INCRA, do próprio Exército, finalmente, do Governo, e já houve o primeiro acordo. Houve um
primeiro acordo entre fazendeiro e posseiro. Ainda foi um acordo muito fora daquele que podia
ser mesmo, porque uns receberam 30 hectares, pessoal não tinha ainda, não tinham pensado uma
forma melhor de decidir as coisas, uns acharam que 30 hectares táva bom, outros com 70, então, a
partir daí, quer dizer... mas de qualquer maneira já foi uma vitória dos trabalhadores.
MA: E eles...esses seringueiros, eles são todos posseiros?
CM: Sim, todos são posseiros. Realmente são posseiros.
MA: E quem está comprando as terras?
CM: São os empresários que vêm de fora. No Acre se diz 'paulista'. Mas geralmente essa
palavra paulista foi assim uma forma que o povo usa em termo geral, mas que não é só os
paulistas, são paranaenses, mato-grossenses, mineiros, goianos, todo esse povo, quer dizer, que
tem capital, que chegou aqui, que encontrou espaço, as portas abertas. Realmente os governos
anteriores diziam que o Acre tinha terra barata, farta... O único culpado, a meu ver, é também o
próprio governo que foi lá levar a campanha, uma propaganda, que no Acre tinha terra farta,
barata, mas não disse que lá dentro tinha os trabalhadores posseiros, que habitam aquela terra, que
foram eles que realmente conquistaram essa terra para o Brasil, pode-se dizer, foram os
nordestinos, os seringueiros, que se transformaram em soldados, de uma hora para a outra, prá
332
defender, quer dizer, tomar, conquistar essa terra que pertencia aos bolivianos. Eles julgam, por
isso, eles se julgam donos da terra, porque foram seus antepassados que lutaram por ela. Então o
governo devia, quando ele foi no sul dizer que o Acre tinha terra barata, terra farta, que o
trabalhador, o acreano era malandro. Mas ele devia ter dito: ‘Lá, realmente tem muita terra, mas
tem os posseiros lá dentro’.
MA: Mas esses seringais, eles não tinham título de propriedade?
CM: Olha, não se sabe dizer. Pelo que se sabe, pelas informações que temos, é que talvez
uma ou duas pessoas ou três no Acre é que teriam o título definitivo, realmente reconhecido,
ainda por Plácido de Castro. A maioria são títulos comprados à custa de dinheiro, nos cartórios,
títulos de documentos falsos, conseguidos à custa de muito dinheiro, aí, com os juizes, pessoal aí,
dono de cartório. Pelo que se sabe, duas ou três pessoas teriam título definitivo, no Acre, título
ainda assinado por Plácido de Castro, que seriam, realmente, os únicos documentos que teriam
validade.
MA: Agora, quando o seringueiro empata, ele está empatando o desmatamento, tá
empatando a demarcação da terra? Ele está reinvindicando a posse daquela terra?
CM: Sim, realmente, quando ele empata, quando ele parte para o empate, realmente ele tá
defendendo a própria vida da seringueira, da castanheira, que prá ele é tudo. O seringueiro, tem
que ver! O seringueiro, ele tem um amor à seringueira, à castanheira, então, aquilo toda a vida até
hoje, durante um século, foi a sobrevivência dele, aonde ele nasceu, ali.
Outra coisa, ele acha o seguinte: ele, o que ele aprendeu, foi cortar seringa, foi cortar
castanha, simplesmente ele não tem, quer dizer, nós não recebemos uma educação, uma
assistência educacional, ele não recebeu qualquer tipo de assistência dada pelo governo. Então, ele
já pensa o seguinte: se sair dali, então ele não vai ter meio de sobreviver. O que acontece é ir para
a Bolívia, como muitos foram. Ele imagina que ir prá cidade, fazer o quê, só se trabalhar no facão,
de terçado. Mas ele não vai encontrar trabalho nem salário suficiente que dê prá sustentar a
família dele. E eles, hoje, eles estão achando, e vendo o exemplo de outros companheiros seus,
que saíram prá cidade e hoje tão passando fome, miséria, aí, numa situação difícil.
Então, até, muitas vezes, então, é um questionamento que a maioria dos empresários,
quase todos, ele não quer dar aquilo que o posseiro merece, o direito próprio que o Estatuto da
Terra lhe faculta, que seria o direito a uma área, um determinado tempo que ele tá na área, então
ele teria um direito de 350 ou 100 hectares de terra, conforme a família. Mas muitas vezes o
fazendeiro, hoje mesmo, o fazendeiro, já está disposto a esse tipo de diálogo. Mas o que acontece.
As áreas de acesso, estão no poder deles. Então eles já desmataram as áreas que realmente o
posseiro teria condições de receber a terra e poder trabalhar em agricultura. Ele quer dar às vezes,
uma área lá no fundo da fazenda onde ele não vai encontrar acesso prá, por exemplo, escoamento
da produção, nem ninguém vai assistir ele lá naquela área. E o que que acontece? Ele recebe
aquela terra e vai ficar lá, isolado e mais tarde o próprio fazendeiro vai pegar aquela terra quase de
333
graça porque o cara se vê desesperado, sem ter uma saída ele finda entregando a título de qualquer
coisa aí. Então, esse é o grande problema.
MA: Já teve algum caso deles conseguirem o título da terra?
CM: Olha, agora, eu tenho um exemplo, o único exemplo, no caso de Xapuri, na Fazenda
Santa Fé. A Fazenda Santa Fé, no ano de 80, lá foi uma área de conflito, onde houve dois empates.
O primeiro empate organizado por uma base de 128 homens, então, tranquilamente, eles proibiram
a desmatação. Eles alegavam a derrubada de mais de 1000 seringueiras e 1200 castanheiras. Então
eles, baseados naquilo, se organizaram e foram lá nos acampamentos e pediram a retirada dos
peões antes que eles começassem o trabalho. Logo um dia depois, um outro fazendeiro vizinho,
também foi feita uma operação dessa natureza. Eles foram lá e embargaram todo o trabalho. O
fazendeiro então, não resistiu, o seu Marcos Veríssimo.
Esse ano, então, o fazendeiro apelou para o diálogo. Foi lá, entrou em contato com a
CONTAG, exigiu a minha participação no problema lá da terra, então ele alegou que queria
desmatar, que tinha tido um prejuízo incalculável, e tal, com o empate do ano passado, que ele
estaria disposto a um diálogo. Então, fomos saber qual seria a decisão deles. Bom, ele taria
disposto a dar terra ao trabalhador. Como, realmente, há lá uma área de acesso à toda a margem
da estrada, a BR 317, e ele se propunha a dar terra aos trabalhadores na margem da estrada, então
teria acesso prá escoamento da agricultura.
Os trabalhadores então aceitaram, esse tipo de conversação e diálogo e foram muitos,
vários dias de diálogo, não foi um negócio feito de imediato, mas os trabalhadores testaram,
testaram e realmente reconheceram que o cara tava disposto ao diálogo e até certo ponto, então,
dar valor àquilo que eles mereciam. Então os trabalhadores começaram a discutir, exigir, que
fariam o acordo, mediante as exigências deles. Se ele aceitasse as exigências, que seria terra
suficiente prá eles trabalharem com a família, então o acordo estaria feito. Era uma maneira de
provar que eles não eram agitadores, nem eram guerrilheiros, como alguns políticos aí do
Governo diziam ano passado, que havia focos de guerrilha naquela área com influência de
pessoas...de pessoas influentes. Mas os trabalhadores provaram realmente que não era, não era
essa a questão, de guerrilha, e sim uma maneira de defender, realmente, as suas posses.
E foi feito um acordo onde, alguns trabalhadores, foram variadas as espécies de acordo
sobre o módulo da terra. Alguns exigiram 100 ha, outros 150 ha, outros 250 ha e outros disseram:
'Nós queremos continuar fazendo a borracha e cortar a castanha'. Então pisaram firme, não
aceitaram de maneira alguma a terra e foi feito um acordo, o fazendeiro prometeu a eles que não
ia mexer com eles e os outros, então, receberam o título de escritura que mais tarde, então, o
INCRA vai lhes dar o título definitivo. Mas que esse título que receberam, esse documento, a
escritura pública que eles já receberam, então já é um documento, uma espécie de um título
definitivo. Então foi uma grande vitória pros trabalhadores naquela área.
MA: Quais são as áreas onde tem conflito?
334
CM: Hoje, nós temos o caso da Fazenda Filipinas. É uma grande fazenda, onde houve
empates, onde houve ameaça de conflitos em 79. É Xapuri. Onde eu fui ameaçado até de...por
pistoleiro, até por parte de um filho de um fazendeiro de lá. Então vi uma situação um pouco
difícil. Bom, parou, já. Não desmataram mais, durante o ano de 80. Tem outra, a Fazenda Bordon.
A Fazenda Bordon, eles têm sido um pessoal muito radical. Foi feito, parece que se não me
engano em 79, foi feito um acordo entre a Bordon e os posseiros daquela área, foi feito esse
acordo perante o INCRA, o Sindicato dos Trabalhadores, no caso, a CONTAG, em que se
comprometeram a dar terra aos trabalhadores, principalmente aqueles onde seriam afetados pela
desmatação. O acordo foi feito, mas depois não foi cumprido e então, essa foi uma das razões, do
ano passado, os posseiros se reuniram e empataram uma desmatação lá. A justificativa dos
posseiros é porque, realmente, não respeitaram o acordo e então tentaram radicalizar e humilhar
os posseiros, então eles decidiram não aceitar a desmatação enquanto realmente não fosse feito o
acordo que eles tinham feito antes. Fosse respeitado o acordo.
Agora, novamente esse ano, esse acordo prometido não foi cumprido, e mais uma vez 22
seringueiros foram lá e eles foram avisados de que eles iam começar uma desmatação, então
foram lá e mais uma vez empataram, quer dizer, tinha lá, foram lá nos barracos, desmontaram os
barracos, pediram aos moradores que se retirassem quer dizer, eles foram lá, não foi uma tentativa
de agressão, como muitos dizem, mas uma forma de avisar o fazendeiro que não podia desmatar
enquanto não fosse discutida seriamente a situação deles. E mais uma vez eles não vão, segundo
as informações que recebi ontem, os fazendeiros não vão conseguir desmatar. Mas é lá uma
pressão, uma força sindical, o trabalhador que decidiu fazer isso.
MA: O peão que vai lá desmatar, acaba concordando com os seringueiros?
CM: Concordam. O seringueiro chega e pede para ele se retirar e ele tranquilamente não
reage. Se retira tranquilamente.
MA: Os fazendeiros não têm colocado jagunço armado?
CM: Esse ano, pelo menos, não se tem falado. Sim, no caso da Bordon, existe um
capataz, denominado Jaime, que realmente essa pessoa tem ameaçado os trabalhadores.
Realmente, uma das grandes indignações do trabalhador, do seringueiro, na Bordon, é a questão
desse homem lá que, segundo eles, ele abre a boca lá e diz que tá disposto a matar, fazer e
acontecer, porque tem cobertura dos donos, dos proprietários da fazenda. Então, essa é uma
grande reação dos trabalhadores.
Esse último embargo, agora, a polícia foi lá, a polícia, assim, numa certa forma de agradar
o fazendeiro, foi lá, trouxe os trabalhadores, debaixo de ordem, quando os trabalhadores
chegaram na Delegacia já tinha gente da CONTAG e então a Polícia usou uma maneira de dizer,
de agradar as duas partes, disse que não ia mexer com os trabalhadores e tal, que não houve
violência, os trabalhadores também receberam a Polícia muito bem, mas no fundo, então, abriram
um inquérito para os trabalhadores, pelo que se sabe. E desarmaram os trabalhadores, tomaram
suas espingardas de caça, tomaram as armas, que é uma espécie de sobrevivência do próprio
335
trabalhador. De qualquer maneira, pode-se ver claramente que eles tão mais ao lado do patrão do
que do trabalhador.
MA: Quantos seringueiros, no total, têm sido envolvidos nos empates, nesses anos?
CM: Nesses anos? Acho que mais de 500 seringueiros, no caso, 1000 seringueiros foram
envolvidos. O ano passado a gente mobilizou, houve uma mobilização dos seringueiros dos
seringais Santa Fé, Seringal Porto Rico, Seringal Cachoeira, Seringal São Miguel, Seringal Equador,
Seringal Nazaré, que é onde tá localizada a Fazenda Bordon. Seringal Filipinas, Seringal Floresta,
Seringal São João do Iracema, tudo isso. Houve uma certa mobilização no Seringal Palmeira.
Então, todo esse povo se mobilizou.
MA: Todos de Xapuri?
CM: Todos de Xapuri. Mesmo em alguns seringais desses, não houve nada. Mas aqueles
trabalhadores sentiram o problema do outro, no outro seringal, e iam lá levar sua solidariedade,
seu apoio, moral, ao companheiro lá e fazer frente junto com o empate-derrubada.
MA: Como tem sido a atuação da CONTAG?
CM: Da CONTAG? Olha, a atuação da CONTAG tem sido das melhores. A CONTAG
tem tentado, realmente, fazer o possível prá apoiar o trabalhador em sua luta e ao mesmo tempo
provar que não são eles... Realmente, os inimigos, os patrões dizem que esses trabalhadores são
influenciados pelos dirigentes da CONTAG. Quando no fundo, nenhum dirigente da CONTAG,
pelo que eu sei, foi lá mandar o trabalhador invadir fazenda. Esse movimento surgiu, realmente,
porque o trabalhador... a CONTAG, simplesmente, ela começou a mostrar que tem uma lei que
ampara o trabalhador, que tem o Estatuto da Terra, que o trabalhador deve se basear por ele.
Então, o trabalhador começou a ver isso, e ele achou que então uma maneira seria ele mesmo,
junto com seus companheiros, tentar barrar esse avanço do latifúndio.
Mas, pelo que eu sei, eu acho que nunca alguém, dirigente da CONTAG, foi lá dizer ao
trabalhador que ele tinha que pegar numa arma e tinha que defender, lá, na base do pau, não. Ele,
realmente, o catecismo da CONTAG, realmente, é dizer ao trabalhador que ele seja pacífico,
aprenda a discutir e a defender o que é seu, de uma maneira pacífica, mas também não entregar o
que é seu ao patrão. Porque tem uma lei, um Estatuto, aí, que lhe dá o direito. Até que a
CONTAG sempre faz mais na lei, o trabalhador, tem os seus direitos... Então o trabalhador, quer
dizer, começou a ver essa lei, que protege ele. Mas também, por outro lado, ele descobriu que,
embora existe a lei mas também aquelas pessoas que deviam cumprir a lei, não fazem. E então ele
diz: 'Olha, se tem a lei, a lei é assinada pelo Ministério do Trabalho, pelo Presidente da República,
mas eles não vão cumprir, nós cumprimos. Mas nós não estamos fugindo dela, estamos nós
mesmos tentando cumprir ela, executar ela'.
Agora, essa idéia de que o Delegado Sindical, a própria Igreja, segundo outro, tá aliada à
CONTAG prá agitar os trabalhadores, prá levar o trabalhador de encontro ao Governo, é uma
farsa, ao meu ver, porque nunca vi também chegar um padre e mandar lá o trabalhador invadir,
ou quer dizer, não invadir, mas reagir de arma na mão... Nunca! Geralmente, sempre, o que eles
336
pregam, o lado da Igreja prega o Evangelho, prega a união dos trabalhadores, e tal, do outro lado,
a CONTAG diz que tem uma lei que ampara o trabalhador e que ele deve se basear por aquela lei.
MA: E esses seringueiros são sindicalizados?
CM: A maioria. É, quase todos são sindicalizados. Quase todos. Pode-se dizer que 99%
são sindicalizados.
MA: Quais seriam os seringais, ou as pessoas, que a gente poderia ir prá fazer algumas
entrevistas?
CM: Olha, você teria no Seringal Floresta, um pessoal que luta, assim. Seringal Nazaré, se
você puder ir, no Seringal Cachoeira tem acesso prá lá, o Seringal Nazaré seria central. Tem o
Seringal Filipinas, que é bem perto da colônia, você pode ter contato por lá, tem outro seringal,
Porto Rico, que se pode ter contato pela estrada. Tem a Santa Fé, que hoje não tá havendo mais
problema e tudo. Mas, eu acho que talvez seria interessante entrevistar aqueles seringueiros prá
ver como é que eles estão vendo aquela transformação agora e tal.
MA: E tem prevista alguma reunião dos seringueiros?
CM: Temos uma previsão, é quase certeza, uma Assembléia Geral do Trabalhador para o
dia 31 e essa era uma grande oportunidade, porque de todos os seringais, tem aquelas lideranças,
esse pessoal. Em Xapuri, dia 31 de maio.
MA: Então dava prá ir, dia 31 a gente podia ir.
Alguns outros aspectos devem ser observados, sobre esta entrevista, além dos já citados.
A clara identidade de Chico Mendes como vereador sindicalista, na resposta à primeira pergunta,
indica que seus laços políticos são mais fortes com a luta sindical do que partidária e essa
identidade irá se fortalecer muito nos anos seguintes.
Ao explicar as razões dos empates, Chico Mendes relaciona quatro fatores: a defesa da
floresta, a luta pela sobrevivência, a aplicação da lei e os direitos históricos. Seu pensamento
evidencia que a idéia de defesa da floresta está inserida no contexto da luta pela sobrevivência e
pelo reconhecimento de direitos conquistados historicamente. Não existe, até aquele momento,
nenhuma influência externa sobre seu pensamento que pudesse dar à idéia de defesa da floresta
qualquer conotação ambiental. E esta é exatamente a peculiaridade do pensamento dos
seringueiros, que ele expressa de forma clara, ou seja, a identidade estrutural existente entre a
floresta como um meio de vida próprio àquela categoria de trabalhadores.
Outro aspecto interessante é sobre a influência da CONTAG e da Igreja sobre a
organização dos trabalhadores, que ele reconhece, mas enfatiza que ambas as instituições
ampliaram a consciência dos seringueiros sobre seus direitos, especialmente frente ao Estatuto da
Terra, mas a responsabilidade pelos empates não pode ser atribuída a estas organizações. E
337
apresenta duas razões táticas para o êxito dos empates: a ineficácia da justiça e a ausência de
resistência dos peões.
Fica evidente, também, o momento da luta dos seringueiros: eles já haviam tentado
recorrer à justiça, mas a demora não impedia que a floresta continuasse sendo derrubada, o que
requeria um tipo de ação direta e com consequência imediata sobre o problema maior – parar o
desmatamento. Por outro lado, estavam naquele momento alcançando as primeiras vitórias, que
eram os acordos, por meio dos quais recebiam lotes de terras como reconhecimento da posse.
Mas é importante reafirmar o que já foi dito anteriormente, que essa solução era mais adequada
àqueles que pretendiam trabalhar a agricultura e não se ajustava aos que queriam continuar
vivendo da borracha e da castanha. Para estes, os acordos não eram adequados, como se pode ver
na entrevista, quando Chico Mendes relata que alguns seringueiros 'pisaram firme, não aceitaram
de maneira alguma a terra e foi feito um acordo; o fazendeiro prometeu a eles que não ia mexer
com eles e os outros, então, receberam o título de escritura que mais tarde, então, o INCRA vai
lhes dar o título definitivo'.
Era exatamente essa especificidade da situação dos seringueiros que não ficava visível
naquele momento e que continuou sendo objeto de luta nos anos seguintes e até ser formulada a
proposta de Reserva Extrativista, em 1985, objeto de análise do capítulo seguinte.
5.1.2
O Empate do Nazaré e Conflitos com o Sindicato
Os dois conflitos centrais da luta sindical em Xapuri, já registrados no ano de 1980,
continuaram presentes em 1981 e encontraram resolução. As críticas dos associados ao
presidente da entidade, por omissão na defesa dos interesses do trabalhadores, levou à eleição e
renovação da diretoria do Sindicato. E o conflito com a Fazenda Bordon deu origem a um novo
empate e à busca de soluções inteiramente diferentes para os moradores do Seringal Nazaré, com a
primeira experiência de educação e cooperativismo. No bojo destes conflitos, que não ocorriam
somente em Xapuri, mas em toda a região do Vale do Acre, os seringueiros realizavam
interessantes análises comparativas entre o passado dos patrões, o presente dos marreteiros e o
futuro que, acreditavam, seria possível construir. Chico Mendes participou ativamente da vida
sindical em Xapuri e, tendo assumido a Presidência do PT do Acre, realizou inúmeras viagens
pelo Estado, ampliando suas referências sobre a situação dos trabalhadores e as alternativas que
gostaria de ver implementadas.
Os fatos estavam todos relacionados entre si. As críticas à atuação do Sindicato, que
haviam surgido no ano anterior, se aguçaram com mais um conflito no Seringal Nazaré e levaram
à eleição de uma nova Diretoria. Ao mesmo tempo, o empate na Bordon evidenciou a crescente
338
mobilização dos seringueiros de Xapuri, independentemente da coordenação realizada pela
Diretoria, e levou à constatação de que suas demandas não se restrigiam à defesa da posse mas
também à busca de soluções econômicas mais permanentes.
Em 19 de janeiro de 1981 houve uma Assembléia Extraordinária do Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Xapuri, na qual muitos sócios afirmaram que não pagariam mais sua
contribuição sindical enquanto o Presidente não entregasse o cargo. A crítica principal feita por
Raimundo Mendes de Barros, presidente do Conselho Fiscal, era de que o balanço financeiro não
estava disponível para os associados. Nessa ocasião, João Maia criticou Raimundo de Barros
dizendo que cabia a ele fiscalizar as contas e apresentar as falhas em um relatório para a Diretoria.
Percebendo, no entanto, a animosidade dos associados, afirmou que o presidente deveria
convocar uma assembléia geral, com pelos menos 300 sócios, para saber se a maioria aprovava
seu afastamento.
No dia 31 de maio, com a presença de 83 associados, foi realizada uma Assembléia
Ordinária187, com dois temas na pauta: prestação de contas do ano de 1980 e aprovação de
aumento de salário de um empregado e de gratificação dos diretores. A assembléia foi antecedida
de reuniões de avaliação da atuação do Sindicato, que ocorreram nos dias 29 e 30, cujas gravações
permitem que se compreenda a importância desse momento da luta sindical em Xapuri.
Duas críticas principais foram feitas à atuação de Luiz Damião à frente do STR de
Xapuri: mau uso do dinheiro e omissão em relação aos desmatamentos. O Sindicato havia feito
uma campanha da arrecadação de fundos para a construção da sede e a obra não havia sido
realizada; não havia dinheiro nem para comprar água para a reunião e o presidente ainda estava
pedindo aumento de salário para a secretária e para ele mesmo. Em relação aos desmatamentos,
os associados o criticavam tanto por fazer acordos com os fazendeiros quanto por não apoiar os
empates realizados pelas bases sindicais.
Embora a Assembléia não tivesse sido convocada para realizar eleições, os seringueiros
queriam que Luiz Damião deixasse a presidência do Sindicato e as reuniões prévias tinham como
objetivo avaliar a profundidade da crise e buscar soluções que seria encaminhadas para uma nova
assembléia, cujo objetivo iria depender das conclusões a que chegassem naquele momento.
Luiz Damião respondeu às críticas dizendo que era preciso respeitar os estatutos, que a
diretoria havia sido eleita para um mandato que encerraria em agosto do ano seguinte, que não
havia força suficiente para contestar as leis e que seria preciso pelo menos 300 associados para
Conforme havia ficado combinado, quando fiz a entrevista com Chico Mendes, compareci a esta assembléia,
como convidada dele, representando o jornal Varadouro, conforme consta no Livro de Atas da entidade.
187
339
que uma decisão desse tipo fosse tomada188. O principal crítico de Damião, Raimundo de Barros,
foi um orador brilhante na Assembléia, recebendo calorosos aplausos dos seringueiros,
principalmente pela sagacidade dos seus argumentos. A primeira defesa de Damião, referia-se ao
fato de que não havia número legal suficiente para tomar uma decisão de mudança de diretoria e
foi questionada por Raimundo:
Damião: Mas companheiro, o sindicado tem 1800 inscritos, mas tem que se ter 300
companheiros quites, esses 300 companheiros, pela lei diz, têm o direito de votar e ser
votado, todos aqueles que estão gozando os seus plenos direitos dentro da sociedade.
João Maia me disse, tem que ter pelo menos 300 pessoas nessa assembléia, para decidir
isso, então como que uma minoria vai aprovar uma coisa de responsabilidade.
Raimundo: O companheiro não achou bom que essa minoria, essa mesma minoria que
está aqui aprovasse o balanço que o companheiro Ramalho acabou de ler? O
companheiro Damião não acha bom que essa mesma minoria que está aqui aprove o
aumento da sua gratificação e o aumento do salário de sua companheira, da funcionária?
O companheiro Damião não aceita que essa mesma minoria que está aqui aprove tudo
aquilo quanto venha a beneficiar a si e à sua companheira? Eu tenho certeza que o
companheiro acatará e receberá de braços abertos e coração tranquilo, tudo que essa
minoria que está aqui faça em benefício dele...
O segundo questionamento, também relacionado com a legalidade do processo e com a
falta de força do movimento sindical para se contrapor às leis, foi igualmente contestado por
Raimundo, argumentando que o empate também não estava previsto na lei, no entanto estava
sendo feito como forma de defesa da posse:
Não existe, não está escrito no papel, feito pelos homens que estão lá no poder, que nós
trabalhador tinha direito de empatar a derribada dos fazendeiros, que são filhos legítimos
deles. E a gente aprendeu isso e tem servido bastante. Eu me lembro e os companheiros
se lembram, quando os próprios elementos do IBDF, numa época, eles disseram, que a
lei também tem os seus lados. Isso prova tanto, que muitas vezes nós tinha os nossos
direitos boicotados por eles, porque têm o dinheiro na mão. Então rouba o nosso direito
através do dinheiro. Então por que nós não podemos dar um salto maior?
188 A transcrição das fitas gravadas corresponde aos debates havidos na Assembléia Geral. A reprodução dos
diálogos mostra que, diferentemente do que se poderia pensar de um sindicato de seringueiros, de um pequeno
município isolado do mundo, o debate era articulado, preciso e com argumentos elaborados. Foi essa capacidade
analítica da realidade que sempre fascinou as pessoas que se envolveram com os seringueiros do Acre, de jornalistas a
pesquisadores.
340
Por fim, para justificar sua posição de cautela na condução dos assuntos do Sindicato,
Luiz Damião invocou o argumento da fragilidade do movimento sindical, naquele momento,
frente ao enquadramento de seus líderes na LSN, obtendo a seguinte resposta de Raimundo de
Barros:
O que é que tem o fato dos homens estarem enquadrados na Lei de Segurança Nacional?
É porque alguma coisa estão procuranto fazer a bem existir. E porque se não estivessem
fazendo algo bem visível, estivessem todo dia puxando o saco do patrão, não teria
nenhum enquadrado.
Foram três horas de acirrados debates, na Assembléia. Apesar da defesa do presidente do
Sindicato, a reunião culminou com um pedido dos seringueiros para que renunciasse. Colocou a
proposta em votação e os seringueiros foram unânimes: queriam um novo presidente, queriam
um Sindicato mais forte, queriam uma diretoria mais presente nas colocações, mais próxima das
lutas dos seringueiros. Com a aprovação da Assembléia, o presidente marcou uma próxima
assembléia para agosto com o objetivo de eleger uma nova diretoria189.
No dia 30 de agosto de 1981, em Assembléia Geral Extraordinária, com 322 associados
presentes, o presidente em exercício Luiz Damião do Nascimento pediu afastamento do cargo
que exercia desde o mês de abril de 1977, alegando que sua permanência enfraquecia o Sindicato.
O secretário e o tesoureiro também pediram afastamento. João Maia checou o quorum, foram
aceitos por unanimidade os nomes propostos e uma nova diretoria foi eleita, para um mandato de
um ano, quando então seriam realizadas novas eleições. Pela primeira vez uma mulher
seringueira, Dercy Teles de Carvalho, foi eleita presidente de um Sindicato de trabalhadores rurais
no Acre. Com ela assumiram delegados sindicais combativos, como Júlio Barbosa de Aquino, na
posição de secretário e Sebastião Gomes de Araújo como tesoureiro190.
Uma das primeiras iniciativas da nova presidente do STR de Xapuri foi enviar um ofício
ao Diretor do IBDF comunicando que dois delegados da entidade, devidamente credenciados,
haviam visitado a derrubada feita na Fazenda Santa Fé naquele ano e constatado, em 16 alqueires
visitados, a destruição de 503 castanheiras nativas. Conforme a informação que o Sindicato
dispunha, a licença havia sido concedida para desmatar 400 alqueires e, em função disso,
solicitavam que o órgão enviasse um fiscal florestal para confirmar os trabalhos feitos pelo
189 Ver "Seringueiros Apontam Rumo para o Sindicato", Jornal Varadouro N. 22, junho-julho de 1981. Nesta matéria
escrevi que o Secretário havia assumido interinamente até as novas eleições. Consultando as Atas do Sindicato
percebi que havia cometido um erro, uma vez que o Presidente somente se afastou em agosto.
190 Júlio Barbosa de Aquino é hoje Prefeito de Xapuri, no segundo mandato. Raimundo de Barros, é vereador pelo
PT, no quarto mandato. Sebastião Gomes de Araújo e outros líderes eleitos naquela ocasião, como Pedro Sebastião
da Rocha e Osmar Facundo, ainda hoje pertencem à Diretoria do STRX.
341
Sindicato, salientando ainda, um pedido de "uma maior atenção no sentido de punir os que
destróem nossas riquezas naturais". (Arquivo do STRX, Ofício N. 06/81).
Quando estava começando o verão, em abril de 1981, 22 seringueiros do Nazaré,
realizaram um novo empate às derrubadas, contra a Fazenda Bordon. Foram os desdobramentos
deste empate que fortaleceram as críticas à atuação da Diretoria do Sindicato. Relatório existente
no arquivo do STRX assim descreve os fatos:
No dia 21 de abril, 22 seringueiros do Seringal Nazaré reuniram-se por conta própria e
empataram uma derrubada que o gerente da Fazenda Bordon estava iniciando na margem
da estrada que liga Xapuri ao Seringal Petrópolis, na colocação denominada Pelingrino,
colocação que a firma grilou do Seringal Floresta e expulsou o seringueiro, dando uma
irrisória indenização de cinco mil cruzeiros191. O gerente veio na cidade de Xapuri
diretamente com o Delegado de Polícia, com testemunhas falsas, contando além do
acontecido. O Delegado imediatamente avisou o Secretário de Segurança e este mandou
que o Delegado fosse prender os seringueiros. Dia 26 de abril, domingo, às 8 horas do
dia, o Delegado Antonio de Lima Cretário tomou o barco da firma Bordon, juntamente
com 8 policiais armados, inclusive dois agentes de polícia local e na segunda-feira
chegaram na colocação dos seringueiros e tomaram todas as armas, inclusive terçados. Dia
29, quarta-feira, às quatro horas da tarde, chegaram na Delegacia de Polícia, para serem
interrogados. Assim passaram ontem, o dia primeiro de maio, sendo interrogados, e só
saíram depois que assinaram processo, ficando suas armas presas. (Arquivo do STRX)192.
A repercussão do caso dos seringueiros do Nazaré estava centrada no fato deles terem
sido presos e processados, sem a assistência do Sindicato, e de suas armas terem sido apreendidas
e não devolvidas. Para o advogado da CONTAG, o fato de terem ido armados realizar um empate,
estava dificultando sua defesa. Nas reuniões de avaliação do Sindicato que ocorreram nos dias 29
e 30 de maio, com os delegados sindicais, o caso do empate da Bordon tomou conta dos debates.
Os seringueiros cobraram uma resposta do Presidente e este se justificou com base nas
dificuldades legais que o Sindicato estava encontrando para defendê-los:
L. Damião: Tem que ter calma, tem que ver essas coisas com calma.
No arquivo do STRX há a seguinte declaração: "Eu, Francisco Carapinha Neto, brasileiro, familiado, de 27 anos
de idade, residente neste município de Xapuri, Seringal Nazaré, na colocação denominada Pelingrino, desde 1976,
confirmo perante os meus vizinhos que as estradas de seringa da minha colocação foram cortadas pelo travessão
mandado fazer pela firma Bordon que comprou o Seringal Nazaré e resolvi fazer uma casa na margem da Rodagem
de Petrópolis, na mesma área explorada por mim e outros moradores antes de mim, no dia 11 de maio deste ano de
1978".
192 O Relatório, do dia 2 de maio de 1981, apresenta também a lista dos nomes dos seringueiros processados e que
tiveram suas armas apreendidas.
191
342
Seringueiro do Nazaré: Muita calma às vezes não presta, porque quando o Presidente
esteve lá no centro ele disse: 'Quando vocês saírem lá na rua, vocês trazem as armas de
vocês'. Agora já vai demorar com 90 dias.
L. Damião: Eu disse que ia conversar com o advogado e vocês vinham prá cidade prá
fazer um pedido de habeas corpus. Mas o advogado disse que o caso já está na juíza, a
juíza é que vai determinar. No dia em que vocês forem ouvidos, aí eu apresento o
advogado prá fazer a defesa de vocês. O causo é esse. Vocês foram processados, vocês
assinaram um processo. Se os companheiros não tivessem sido processados e tivessem
avisado o Sindicato, teria sido feita a defesa dos companheiros lá, que tivessem negado,
que não deram tiro, que não levaram armas, entonce o problema era mais maneiro para
os companheiros.
Seringueiro: E por que essa juíza ainda não veio? Nós não podemos ficar empatados
sobre esse assunto. Da minha parte, eu dou essas armas de presente prá delegado,
promotor, dou essas armas de presente, né, da minha parte. Eu não posso mais parar o
meu trabalho por isso, que eu não me importo de comprar três ou quatro espingardas.
L. Damião: Pois é, companheiros, é lamentável que os companheiros tenham sido
processados, porque nós lutamos prá fazer a defesa dos companheiros, quando os
companheiros entraram no quartel eu fiquei aqui até dez horas com Dr. João Maia,
conversando com as autoridades, veio telefonema pro Delegado, ele não escutou mais, já
a Federal estava aí, aí disseram: 'Nós queremos colher algumas coisa desse povo, se eles
forem lá prá sede do Sindicato, dormirem aí, nós não colhe nada'. Exatamente porque
sabiam que vocês chegavam aqui e iam ser orientados, iam receber uma aula de defesa.
Raimundo de Barros: Decerto eles queriam saber, como é do interesse deles, quais são os
subversivos que estão lá no meio. Mais ou menos é isso, o que eles queriam saber. Se
defender os direitos nossos é fazer subversão, então todos nós que estamos aqui e os
outros que estão lá, todos nós somos subversivos. Porque o que se está fazendo nada
mais é do que defender os direitos da gente. Cada um dos companheiros sente a falta da
sua espingarda, não deve esquentar a cabeça, vamos caminhar.
A questão dos seringueiros utilizarem suas armas quando iam fazer um empate era sempre
motivo de polêmica e, depois desse episódio do Nazaré, eles aboliram essa prática. Ocorre que o
uso de armas sempre fez parte das atividades de sobrevivência, para caçar, e elemento essencial
de defesa dentro da mata, o que dava ao episódio uma conotação diferente daquela prevista na
legislação. Perguntei aos seringueiros do Nazaré qual o uso que eles faziam das armas e eles
responderam:
343
O seringueiro anda armado para matar a caça, matar o porquinho, matar o veado, matar o
capelão, que é uma caça boa, que a gente tem lá nas matas e também matar uma cobra
que queira morder a gente, que não pode matar ela de pau, vai com uma espingarda no
ombro, atira nela, passa no caminho tranquilo. É prá isso que a gente usa a espingarda.
Na hora da defesa ela serve muito também. Seringueiro sem uma arma no seringal não é
nada.
Também o problema de segurança dos seringueiros preocupava, conforme afirmou
Raimundo de Barros:
A maioria dos nossos companheiros estão lá nas suas colocações sem uma espingarda. É
arriscado uma hora até uma onça vir, comer toda a família e não pode se defender dessa
onça porque as armas estão todas retidas... sem os trabalhadores terem matado, sem
terem feito nenhum crime, só porque levaram as armas deles, com a única intenção de
matar um quatipuru, um macaco no caminho e não prá ofender ningúem. Feliz daqueles
que têm feijão e arroz, porque se não tiver, tava comendo farinha com água.
A questão da devolução das armas apreendidas não foi resolvida de imediato. Os
seringueiros do Nazaré resistiam à idéia de esperar pela justiça ou de comprar novas armas,
porque achavam que os fazendeiros não tinham o direito de dificultar a sobrevivência deles: "A
gente pode comprar, mas quem é que vai tirar leite dos filhos prá comprar uma espingarda, tendo
espingarda, embargada pelas autoridades, pelas mãos dos fazendeiros..."
193
. Eles também não
acreditavam que tinham conseguido interromper de forma definitiva os desmatamentos
planejados pela Bordon, conforme avaliou Valderi de Souza:
A situação ficou naquela, eles pararam, eles pararam uns dias, né, tá tudo parado. Mas eu
mesmo já sei que o gerente mesmo botou dois trabalhadores, desde abril até agora, prá
fazer um roçado, que diz que é um roçado que é um fim de mundo; esses homens tão
brocando escondido sem ninguém saber, não tinha quem soubesse, veio espoucar essa
conversa agora e o roçado já tá pronto. Mas diz que é um roçado muito grande. Você vê
que dois homens brocando, quatro meses, todo dia, faz muito serviço. Mas não tinha
quem soubesse que eles estavam fazendo esse trabalho (Entrevista realizada na Colocação
Boa Vista, Seringal Nazaré, no dia 29 de julho de 1981).
Para os seringueiros do Nazaré o empate era parte de um processo mais amplo no qual se
envolveram, de defesa das matas, base da sobrevivência de todos:
As citações são de gravações realizadas com os seringueiros do Seringal Nazaré, em Xapuri, no dia 30 de maio de
1981.
193
344
MA: Quem foi que teve a idéia de fazer os empates?
Rocha: A idéia é de todo mundo, é geral.
J. Sena: A idéia é de todo mundo, todo mundo se sente agravado em ver o fazendeiro
tocar o machado numa seringueira, numa castanheira, que essas duas árvores é quem
sustenta nós lá na mata. Dessas duas árvores nós tira todo o meio de nós viver. Da
seringueira e da castanheira
Rocha: Ela é a nossa atividade como também a defensora de nossa pátria, porque sem ela
o avião também não pousa sobre a terra. É uma grande defensora.
MA: Quer dizer que quando o seringueiro faz o empate está defendendo a colocação e as
árvores também?
J. Sena: As árvores, as caças, até o próprio peixe que vive na água, porque eles bolem com
tudo.
Rocha: Onde faz a derribada seca tudo.
MA: Os seringueiros já tiveram algum resultado positivo?
J. Sena: Até agora ninguém enxerga resultado. Tem muita mata derrubada, capoeira já
crescida que não entra nem gado dentro. O resultado é que já acabaram as colocações de
seringa e essas colocações não vão mais servir prá colocar outros seringueiros pai de
família naquele mesmo lugar. Tá só o boi deles pisando e a capoeira crescendo. O
resultado que a gente viu foi esse. Aí com esse resultado que a gente começou a imaginar
que não devera mais deixar acabar com aquelas colocações que a gente convive nelas.
Mas a consequência direta do empate de 1981, sobre o rumo do movimento sindical de
Xapuri foi clara: foram seus questionamentos sobre a ausência da direção do STR, na defesa dos
seringueiros, em suas bases, que levou à mudança da diretoria. Os seringueiros do Seringal
Nazaré saíram fortalecidos dessa assembléia e tinham um plano para a continuidade dos seus
embates com a Bordon: queriam avançar nas conquistas econômicas que já haviam alcançado,
como seringueiros autônomos, criando um sistema de compra e venda da borracha e das
mercadorias de consumo, uma espécie de cooperativa, como sabiam que já estava acontecendo
em outro seringal, o Icuriã, no rio Iaco. Essa idéia recebeu integral apoio de Chico Mendes que se
envolveu em todas as etapas de preparação do que veio a ser chamado de Projeto Seringueiro e
que será analisado no capítulo seguinte.
A decisão de Chico Mendes de apoiar iniciativas novas de organização sindical resultou
das reuniões que ele vinha organizando, como Presidente do PT, em vários municípios, naquele
ano, como a que realizou em Plácido de Castro, da qual participei pelo jornal Varadouro. A
questão que os seringueiros queriam debater referiam-se às mudanças em curso em todo o Vale
345
do Acre em função da saída dos seringalistas, entrada dos marreteiros, venda dos seringais e as
vantagens e desvantagens de trabalharem como autônomos, ou seja, sem um patrão.
Em Plácido de Castro ficou clara a insatisfação dos seringueiros com o processo de
concentração da comercialização da borracha nas mãos de poucos intermediários e o controle
que eles estavam exercendo sobre os preços. Apesar de existirem mais de 50 pequenos
comerciantes atuando no município, todos estavam subordinados a apenas dois grandes
marreteiros. Para eles, ficar subordinado a um marreteiro, em moldes semelhantes ao que ocorria no
passado em relação aos patrões, sem as vantagens inerentes ao velho sistema, trazia grandes
insatisfações, como expressou o seringueiro Manoel Freire de Lima:
Um patrão é aquele que antigamente mandava deixar a mercadoria lá na casa do
seringueiro, um seringueiro adoecia ele dava assistência na doença do seringueiro, ele era
todo responsável pelo seringueiro, ele mandava fazer ponte, ele comprava burro, pagava
comboeiro, mandava roçar varadouro, esses que eram os patrões. Hoje, tudo isso é o
seringueiro que faz por conta dele, traz a borrachinha, vende a ele, despacha a hora que
quer, paga o que quer. Ele é um marreteiro sem uma responsabilidade.
A mesma discussão estava ocorrendo entre os seringueiros do Nazaré, mas com uma
abordagem inteiramente diferente, conforme relata Raimundo de Barros que naquele momento
morava no Seringal Floresta, área vizinha ao Nazaré e sobre a qual exercia grande liderança:
A gente nesse pouco tempo de trabalho, mesmo não bem organizado, a gente conseguiu
despertar, aprender tanta coisa. Antigamente a gente tinha a borracha, fazia a borracha e
um outro companheiro dizia assim: 'Rapaz, fulano tá dando mais dinheiro, mais 10
cruzeiros, 15 cruzeiros acima'; mas a gente já estava tão acostumado que dizia assim: 'É
rapaz, mas prá gente levar prá lá vai ter que gastar dia, vai ter que fazer despesa, assim ele
vem buscar aqui na casa da gente e já vem deixar mercadoria, então a gente não tem
mais... tanto trabalho que a gente já teve de roçar, raspar, cortar, colher e defumar e ter o
trabalho de vender, assim a gente já entrega prá ele'. Hoje o seringueiro, a maioria deles já
não pensa mais assim. Eu já tive o trabalho de roçar, raspar, cortar, colher e defumar, vou
também ter o trabalho de pegar, levar pro fulano e vender, nem que seja mais 10
cruzeiros, mas em cima de 100 quilos de borracha eu já tenho mil cruzeiros de lucro e a
mercadoria que eu vou comprar lá fora já não é do preço que eu vou comprar do
marreteiro, eu vou economizar mais 1000 ou 1500 cruzeiros, então já vai ter uma
vantagem prá mim de 2000. Se era de dar esses 2000 pro patrão, esses ficam prá mim
comprar de leite, de açúcar, de pano, pros filhos da gente. Porque os marreteiros são
muitos. Na época do patrão, o patrão ocupava uma grande área sozinho, então todo
346
mundo tinha que dizer amém ao patrão. Hoje são muitos marreteiros, a gente tem
liberdade de vender e comprar prá quem quer, então eles se interessam, cada um se
interessa de comprar mais. E nessa daí, uns já põe um preço melhor, põe 5 cruzeiros
acima do outro, outro já põe dez.
Um dos mais antigos seringueiros do Nazaré, Sebastião Rocha, também avaliava a
situação dos seringueiros hoje como melhor que antigamente:
É muito melhor porque nós somos libertos. Tá aqui um, casado com uma sobrinha
minha, trabalhava com patrão, fazendo grande quantidade de borracha não tinha... às
vezes faltava até a roupa. E hoje em dia tem gado tem tudo. Sem patrão. A gente enxerga
que sem patrão tá melhor porque não tem quem esteja ali querendo oprimir a gente. Você
hoje vai trabalhar, fazer esse serviço, cortar seringa, pelo menos, patrão só quer que a
gente não pare com a seringa de jeito nenhum. A gente assim tem o tempo de fazer o
roçado da gente maior, faz a borracha mais pouca, mas sobra mais também porque tem
do roçado prá comer.
A proposta dos seringueiros do Nazaré era a organização de uma cooperativa, idealizada
por eles mesmos, como explicou o Rocha:
Nós se ajunta tudo prá um vender aquele produto em atacado e comprar em atacado que
sai tudo mais barato, até nós podermos formar um caixa, um gerente nosso. Prá poder
vender a borracha e trazer a mercadoria.
Raimundo de Barros também concordava com a idéia de criar uma cooperativa, desde
que feita pelos trabalhadores, como estava acontecendo em outros seringais e disse que na área
dele já haviam oito seringueiros dispostos a começar, a partir de julho, a comprar mercadorias em
conjunto e vender o produto de todos. Mas tudo dependia do fortalecimento do Sindicato, na
clara visão de Raimundo de Barros, especialmente em função do aumento dos desmatamentos
que estava ocorrendo neste ano:
Nós sem o nosso Sindicato no nosso município, o que que vai acontecer? A escravidão
vai voltar como foi antigamente. Seringueiro vai voltar a pagar renda, seringueiro vai ser
obrigado a vender e comprar de patrão, seringueiro vai apanhar de chicote outra vez dos
fazendeiros com seus jagunços, seringueiro vai ver novamente sua casa incendiada pela
mão dos jagunços, vai ver sua família e ele viajando aí de estrada a fora, de varador a fora,
com os troços na cabeça sem saber prá onde vai, passando fome. Então eu acho que é
hora de nós procurar consertar essas coisas, porque tá a nosso critério, quem tem que
tocar prá frente somos nós mesmos.
347
Nas reuniões realizadas naqueles dias os seringueiros afirmaram que estavam ocorrendo
desmatamentos em vários seringais: São Miguel, Equador, Cachoeira, Santa Fé, Palmeira, áreas
que, segundo Raimundo, "o ano passado eles não derribaram um mato, porque a turma foi lá e
disse prá não derribar e eles não derribaram". Essa desmobilização dos seringueiros preocupava
Raimundo porque "se no ano passado os companheiros tiveram a disposição de fazer esse
serviço e esse ano não estão mais com essa disposição, eu não sei o que eles viram que
desanimaram". Na avaliação dele uma das causas foi o fato dos seringueiros não terem mais se
reunido desde a época que terminaram as derrubadas, no ano anterior, exatamente pela falta de
organização do Sindicato:
Por isso que o Sindicato é importante, porque se a turma tá se movimentando nas suas
delegacias, tá se reunindo nas delegacias, tá aprendendo coisas novas, tá acompanhando
os exemplos de outros companheiros e se não existe esse entrosamento, essa organização,
o povo fica aí todo mundo pensando que o governo vai tomar de conta, vai tomar
providência. O governo jamais tomará providência com isso, se tivesse de tomar
providência já tinha tomado há muito tempo. Acho que é isso que o pessoal tá pensando.
A gente sente a necessidade de mudar, mas taí as dificuldades.
No dia 30 de maio de 1981, antes da realização da Assembléia que decidiu pela eleição de
uma nova diretoria para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Chico Mendes
coordenou uma reunião com os Delegados Sindicais, com o objetivo de avaliar os trabalhos
realizados e preparar a pauta a ser discutida no dia seguinte. Dezesseis associados falaram e
depois Chico Mendes, sendo vereador, perguntou se podia se manifestar também; todos
concordaram e ele fez a seguinte intervenção, intercalada com algumas observações
complementares dos participantes:
Avaliação do Sindicato de Xapuri
Eu acho, gente, apesar das consequências, dos desníveis, de alguns fracassos nossos, eu
acho que nós avançamos muito. Nós temos muitas vitórias por aí, apesar dos fracassos. O
trabalhador viveu todo esse tempo abandonado, sem ter orientação, aí de imediato a gente
começa esse trabalho, realmente existe todo esse fracasso, um companheiro não acredita no
outro, ainda, ainda existe isso, mas com tudo isso a gente tem caminhado bastante. Eu acho que o
que não deve-se fazer no momento é desanimar.
Seringueiro: Eu não desanimo, eu fico é com raiva.
A gente deve tentar caminhar, vamos procurar conscientizar aqueles companheiros que
não estão acreditando na gente, mostrar qualquer tipo de exemplo... prá que ele acredite em nós.
348
Essa questão ali do Nazaré, os companheiros que estão sem arma, eu acho que esse problema aí
vai depender da união dos companheiros, os companheiros se reunirem, alguém na medida do
possível vai dar uma ajuda, e isso é fruto da nossa luta. A gente tem que admitir mesmo os
fracassos, os pontos positivos e negativos, mas no âmbito geral, assim, nós fazendo uma análise,
temos 95% de resultado, 5% negativo, 95% de resultado. Porque em Xapuri é onde se concentra
o maior poderio do latifúndio. E se a polícia voltar a tomar a arma de algum companheiro outra
vez, isso não é motivo da gente esmorecer, mesmo que haja repressão, a gente tem que caminhar,
nós temos que defender esse resto de herança que sobra aí, esse resto de floresta, porque vocês
têm que ver uma coisa...
Olha gente, a gente vê muitos setores aí do governo, INCRA, o próprio governo
interessado em desapropriar a terra, dar terra ao trabalhador, mas isso é um negócio muito
perigoso, porque o governo tá vendo a força de vocês e então eles, através do INCRA, estão
tentando enfraquecer o movimento dos trabalhadores, prometendo terra, desapropriando terra,
futuramente, a gente vai sentir o fracasso. O bom seria que a gente tivesse se mantido firme, não
ceder e não aceitar esse tipo de coisa, ficar firmes em suas colocações. Mas como aconteceu já, a
gente sabe a situação, a gente não tá ainda, não podemos fazer aquilo que queremos, mas pelo
menos devemos manter esse resto que tem aí, pé firme aí, porque acho que já fizemos muito e
temos que fazer muito mais ainda. E não temer. Eles podem usar todo tipo de ameaça, e tudo,
mas acho que o maior sofrimento, a maior tortura, é você ver um filho morrer de fome, é você se
ver expulso de sua colocação, eu acho que não há maior tortura, maior sofrimento que esse.
Ameaças, se morrer alguém, se morrer um, mas o movimento deve continuar. Eu acho que na
medida que morre cada um, deve fortalecer mais o movimento. Porque essa questão de acordo,
que tá havendo aí, tá sendo um troço muito esquisito.
E os próprios fazendeiros, companheiros, eles estão usando um sistema chato, eles estão
vindo aqui na minha casa diariamente, querendo botar o braço no meu pescoço e eu sei que na
outra mão, se eles pudessem ter um revólver, eles tinham vontade de disparar. Mas eles tentando
esse tipo de jogo, eles não estão mais mandando pistoleiro como faziam antes, pensaram
diferente, talvez se reuniram e disseram: 'Não, vamos agir sabiamente, vamos tentar agradar,
vamos tentar botar o braço em volta do pescoço dele, vamos dar oferta prá ele, vamos oferecer
alguma coisa prá ele tentar, junto aos trabalhadores, fazer aquilo que nós queremos'. Então tá
havendo esse jogo, isso é muito perigoso, companheiros. Eu estou sendo até mesmo, estou sendo
pressionado, semanalmente, quase que diariamente, eu estou recebendo agora na porta um
fazendeiro, me chamando, botando dentro do carro, querendo botar, prá passear, prá ir lá na
fazenda dele, me oferecer cavalo, prá ir lá no meio de vocês. E eu tenho procurado o máximo
evitar isso. Eu acho que seria ridículo, eu chegar lá no meio de vocês montado num cavalo de
fazendeiro, qual era a imagem que eu ia apresentar lá.
Seringueiro: Isso aí é o causo, né, que tem seringueiro aí prá onde eu moro, né, que às
vezes a gente vai falar quanto ao fazendeiro, eu fui falar: 'que negócio é isso dessa derrubada?' 'É,
349
ele tá derrubando lá, mas não atinge a nós, você sabe, né, que o Evaristo é muito bom, porque dá
uma pomada prá a gente curar uma bicheira de um bicho...' Se não pode comprar, não se
arrebache...sou dessa opinião.
Raimundo de Barros: Já é tempo, companheiros, da gente pensar o seguinte. Se ele dá
uma pomada prá curar uma bicheira, se ele até presentear um cavalo, ele não tá presenteando o
suor dele não. Ele tá presenteando é o próprio suor dos pais de família que ele já tirou.
Presenteando não, dando, do que ele já tirou dos pais de família. Eu acho que a gente, cabe a nós,
procurar amadurecer, não ficar se iludindo nessas balelas, nem o seringueiro, nem o político que
hoje tem uma certa intenção, no caso do Chico, e nem tampouco uma diretoria do Sindicato.
Deve morrer como homem e não se entregar como covarde, uma classe tão sofrida e tão
espezinhada como somos nós. Tem que morrer como homem e não como covarde.
Chico Mendes: Eu só queria concluir, mesmo. Pois bem, companheiros, nós estamos
defendendo uma herança que foi conquistada, que custou sangue, custou sacrifício e a gente tem
que marchar, marchar firme, o Chico Ramalho quer falar alguma coisa....
Chico Ramalho: O pessoal aí da Filipinas, como o Francisco falou, que tá recebendo
diariamente um fazendeiro aí na porta dele, é como lá, também, sempre, na minha porta, recebo
convite do fazendeiro. Mas eu não vou lá. Fui lá uma vez, mas não gostei da sugestão dele, já
mandou vários, eu não vou lá. E o resultado é que ele prá poder adquirir alguma coisa do
trabalhador, ele diz assim: 'Eu já fui com o Francisco, ele está de acordo; eu já fui com o João
Maia, ele está de acordo; eu já fui com o Seu Luiz, ele tá de acordo; só o Ramalho aqui que tá
duro, ele não tá entendendo o movimento, ainda'. Ele faz uma trancinha prá poder tirar da mente
do trabalhador, aquela orientação que ele recebeu anteriormente. Eles usam dessa malícia prá
poder derrubar o trabalhador.
Mas muitos já estão conscientizados. Nós vimos agora, do dia 11 ao dia 20, o doutor do
INCRA entrou dentro do Seringal Filipinas. E ele não encontrou boas sugestões lá dentro, não
saiu do gosto dele. Ele saiu com uma ação indicado já pelo fazendeiro, prá que ele entrasse lá
dentro e verificasse o movimento lá dentro, se o trabalhador estava de acordo a aceitar um
contrato de renda de três anos, mesmo na área que ele precisa derrubar, como na área de reserva.
Se ele aceitasse, tem uma meta de cortar uma área de terra, ele dar aquela área de terra ali, que prá
ele é definitivo, mas dentro do contrato. E muitos que reclamam na hora, ele diz o seguinte: 'Eu
dou prá você'. Eu perguntei: 'Você é dono dessa área, você e os seus filhos?' O fazendeiro disse:
'Não, eu dei prá ele, o dia que ele morrer, a terra é minha'. Diz que dá pro chefe de família, mas
quando ele morrer, os filhos perdem a terra. O INCRA andou em todo o seringal, dentro da
sessão de Santa Isabel, e os seringueiros responderam prá ele que não tinha mais acordo com
fazendeiro. O pessoal está bem orientado. Eles entraram prá lá pela necessidade de cortar o
seringal, então não vão fazer mais acordo com fazendeiro. Eles prometeram em assinar um
contrato e depois disseram que não assinam mais.
Chico Mendes: Eu gostaria de entrar na pauta...
350
Eram reuniões como esta, realizadas com delegados sindicais, em Xapuri ou nas colocações
dentro dos seringais, que consolidavam a liderança de Chico Mendes e faziam o Sindicato
amadurecer, enfrentar o problema da defesa da posse e dos desmatamentos e ajustar suas
estratégias, conforme o desenvolvimento das ações dos seringueiros e as reações dos fazendeiros
e do governo.
É perceptível a crítica crescente à reforma agrária que o governo estava tentando
implantar em resposta aos empates. Mas não era exatamente para receber lotes de terra que os
seringueiros estavam lutando. Chico fazia questão de ressaltar, sempre, que eles estavam
defendendo uma floresta que haviam herdado de seus antepassados, à custa de muito sacrifício,
consciente também dos riscos nos quais ele e os outros seringueiros estavam envolvidos quando
defendiam propostas que estavam muito além do que tanto o governo quanto os fazendeiros
estavam dispostos a ceder.
Os debates ocorridos em 1981 no Sindicato de Xapuri, os empates aos desmatamentos se
generalizando em toda a região, e a forte liderança de Chico Mendes sobre os seringueiros,
compunham os ingredientes de mudanças profundas que estavam em curso naquela região,
apoiadas pelas Comunidades de Base da Igreja e pelo Partido dos Trabalhadores, mas que tinha
na atuação sindical sua principal força. Com exceção de um padre italiano, Claudio Avelone, que
havia substituído o antigo responsável pela Igreja de Xapuri, tão criticado por Chico Mendes
pelas suas posições reacionárias, era restrita, quase inexistente, a influência de grupos ou de
pessoas de fora do contexto local. É possível identificar, nas entrevistas, um processo de
crescente controle, pelos seringueiros, em relação às soluções que queriam implantar em
contraposição aos conflitos nos quais estavam envolvidos. O empate era uma iniciativa local,
surgida no decorrer dos conflitos, que foi sendo aperfeiçoada e que acabou desembocando em
ações de maior amplitude, à medida em que Chico Mendes começou a se preparar para assumir a
Presidência do Sindicato assim que encerrasse seu mandato de vereador.
Duas áreas lideravam esse processo de resistência e de proposição de alternativas: o
Seringal Nazaré e o Seringal Floresta, ambos sob a carismática liderança de Raimundo de Barros
e todos confiantes nas decisões estratégicas sobre o futuro, que estavam nas mãos de Chico
Mendes. Percebendo a importância de fortalecer a organização sindical nas bases, Chico Mendes
resolveu apoiar o pleito dos seringueiros do Nazaré de organizar uma cooperativa, e buscou
apoio externo para isso, dando início à primeira parceria do Sindicato com organizações não
governamentais de fora da área. O Projeto Seringueiro, voltado para educação e cooperativismo,
foi iniciado no segundo semestre daquele mesmo ano, com o objetivo de criar a cooperativa e
351
implantar a primeira escola de alfabetização de adultos dentro da floresta, exatamente nos
seringais Nazaré e Floresta.
5.1.3
Conflitos pela Terra em 1982 e 1983 e Eleição no Sindicato
Desde a eleição de Dercy Teles de Carvalho para a presidência do STR de Xapuri, mudou
a postura do Sindicato em relação à defesa dos seringueiros, procurando se antecipar às ações de
repressão da polícia civil, como mostram dois ofícios existentes no arquivo do STR: no primeiro,
de 14 de fevereiro, a presidente do Sindicato, orientada pela CONTAG, convida o Delegado de
Polícia de Xapuri para comparecer a uma reunião para "...tratarmos do que está acontecendo no
Seringal São Francisco do Iracema entre os posseiros e o fazendeiro"; no segundo, pede que o
Delegado "...como autoridade competente, mova um inquérito criminal contra o fazendeiro
Roberto Junqueira, da Agropecuária Rio Bonito Ltda, com sede neste município, no Seringal São
Francisco do Iracema", em função dos conflitos ali existentes.
No dia 31 de julho de 1982 foi realizada Assembléia Geral Extraordinária para eleição do
novo presidente do STR de Xapuri, prazo no qual encerrava o mandato legal da diretoria
anterior. Foi eleito Osmar Facundo, em uma eleição presidida por Chico Mendes e tumultuada
por uma impugnação do Ministério do Trabalho, recebida 15 horas antes, a um dos nomes da
chapa, que havia sido encaminhada para homologação, 30 dias antes da realização da eleição,
conforme determinava a lei194.
Foi uma oportunidade para os associados questionarem a falta de autonomia sindical e
desacatarem a decisão do governo, mantendo a chapa escolhida por eles. A ata da assembléia
salientou as declarações dos associados: "... naquele momento começávamos a ver que o povo
estava consciente do que é o Sindicato; a assembléia não concorda com a saída de um dos
companheiros da chapa pois todos tinham sido escolhidos pelos próprios trabalhadores; para
tirar um dos nomes da chapa é preciso começar outro trabalho, organizar nova assembléia, que
não é nada fácil para nós".
A posição do presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do
Acre, José Martins Castro, que já havia sido criada e substituíra a Delegacia da CONTAG, foi
mais cautelosa: "...os STRs são feitos pelos trabalhadores do campo mas vivem dominados pelo
Ministério do Trabalho e não estamos preparados para topar uma briga desta, que depois o pau
vai quebrar nas nossas costas. Vocês deveriam analisar se essa decisão vai servir ou prejudicar a
A impugnação era ao nome de Ronaldo Lima de Oliveira, coordenador do Projeto Seringueiro no Seringal
Nazaré, onde vivia como seringueiro e era associado ao sindicato. No tópico seguinte será abordado esse tema.
194
352
luta dos trabalhadores". Apesar dessas ponderações feitas pela Fetracre, predominou a posição
dos associados e a chapa foi mantida tal qual havia sido definida anteriormente.
E os conflitos que os seringueiros enfrentaram, em 1982, requeria um Sindicato forte e
atuante, uma vez que, pela primeira vez, passaram a defender não somente a posse, mas a própria
floresta e a questionar o modelo econômico que estava levando à sua destruição. Teve início,
naquele momento, a transição para a fase seguinte da luta sindical em Xapuri.
O conflito ocorreu no Seringal Santa Fé, de propriedade do Vice-Presidente da Federação
de Agricultura do Estado do Acre, Veríssimo da Costa Neto. No dia 2 de maio, 112
trabalhadores foram presos quando caminhavam para o local onde estava se processando a
derrubada e só foram liberados no dia 5. A prisão resultou no indiciamento de 7 posseiros no
Código Penal. Por se tratar de crime afiançável, os trabalhadores puderam responder ao processo
em liberdade. Cinco dos trabalhadores processados eram candidatos do PT à Câmara Municipal
de Xapuri. A prisão resultou do fato dos posseiros do Seringal Santa Fé estarem impedindo,
desde o início do mês de abril, o desmatamento de uma área de cerca de 1.200 hectares.
Ofício do STRX ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos do Acre, em Rio Branco, de
6 de maio, trouxe o relato dos seringueiros:
Queremos por meio deste denunciar o arbítrio e a violência cometidos pela polícia contra
um grupo de 37 seringueiros sócios deste Sindicato, por ocasião de uma operação militar
para reprimir as justas reivindicações destes trabalhadores: evitar que fossem derrubadas
várias estradas de seringa e um extenso castanhal. Eis seus relatos:
Íamos pacificamente pedir que parassem a derrubada quando a polícia nos cercou e
apontando suas armas - metralhadoras, fuzis com baionetas e revólveres de grosso calibe
- nos forçou a deitar no chão empoeirado e quente do sol, visto que eram mais ou menos
11:30 ou meio dia. Quem não conseguiu deitar foi deitado às custas de chutes e
coronhadas de fuzis. Nesta posição fomos interrogados sob gritos de palavrões e
xingamentos bem como novas pancadas de pés e coronhadas. Aí eles começaram a dizer
que o vereador Francisco Mendes - representante do núcleo do CDDH daqui - era um
bandido, um cafageste, patife e outros palavrões que faz vergonha dizer. Só não
chamaram ele de santo. Isso tudo quem disse foi o Soldado PM José Elias. Depois eles se
viraram para nossa Presidente e disseram que ela era uma mulher que não valia nada e
que eles, os militares, não a queriam nem prá prostituí-la, mesmo sendo ela uma
prostituta. Outros arbítrios: o mesmo Soldado PM José Elias enfiou o cano de seu fuzil
na boca do Sr. João José de Andrade Filho, de elevada idade, e queria forçá-lo a confessar
que havia um cabeça. Este soldado, queremos esclarecer, já é bem conhecido por seus
arbítrios e violências. Foi ele que, há uns anos atrás, juntamente com o cabo PM Rogério,
353
torturou até à morte um peão. Há pouco tempo foi denunciado outra vez, desta feita por
torturar dois trabalhadores. Outro militar espetou a barriga do Sr. Elias Gadelha com a
baioneta afixada no cano do fuzil. Contra o Sr. Jorge Victor da Silva, bateram com a
coronha do fuzil em suas nádegas, pisaram em seu pé e queriam que ele contasse quem
era o agitador.
Foi grande a repercussão desse empate nos jornais de Rio Branco195, porque aos 37
seringueiros que haviam iniciado o movimento, em seguida juntaram-se outros, dos Seringais
Nova Esperança, Cachoeira e Porto Rico, totalizando 112 seringueiros, todos presos, inclusive
delegados sindicais que se encontravam na área para discutir uma solução para o problema. E
também porque os posseiros já haviam denunciado o desmatamento ao INCRA, IBDF e
CONTAG e várias negociações haviam sido feitas entre o proprietário e os posseiros, mediadas
por aquelas instituições e pelos STRs de Xapuri e Rio Branco.
A denúncia do desmatamento tinha resultado em uma matéria publicada na Gazeta do
Acre de 29 de março, ocasião na qual os posseiros afirmaram estarem dispostos a impedir o
desmatamento, pois em seu entender já era grande a área desmatada naquela propriedade, sendo
que nenhuma atividade produtiva vinha sendo desenvolvida nela. Em documento que divulgaram
na ocasião, os posseiros lembraram que no ano anterior haviam denunciado ao IBDF que o
fazendeiro Veríssimo havia derrubado cerca de 12 mil castanheiras, aumentando as dificuldades
que encontravam para sobreviver. O IBDF reconheceu esse fato mas não tomou nenhuma
medida punitiva contra o fazendeiro. Também mencionavam a existência de milhares de famílias
brasileiras vivendo em terras bolivianas porque não encontravam terras para trabalhar no Brasil,
enquanto grandes propriedades como aquela não estavam sendo utilizadas produtivamente.
Em 1981 havia sido feito um acordo entre o proprietário e 20 posseiros, mediado pela
CONTAG, por meio do qual eles receberiam lotes entre 55 ha e 100 ha e deixariam a fazenda em
março de 1983. Além disso, o fazendeiro comprometeu-se em não realizar, durante o mesmo
período, de 3 anos, nenhum desmatamento na parte da propriedade objeto do acordo. Chico
Mendes referiu-se com detalhes a esse ac

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