ERA UMA VEZ UM FESTIVAL DE CINEMA

Transcrição

ERA UMA VEZ UM FESTIVAL DE CINEMA
O GLOBO
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SEGUNDO CADERNO
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PRETO/BRANCO
PÁGINA 2 - Edição: 20/10/2011 - Impresso: 20/10/2011 — 00: 29 h
SEGUNDO CADERNO
Quinta-feira, 20 de outubro de 2011
O GLOBO
.
PELO MUNDO
RIO COMICON 2011
EDUARDO LEVY, de Los Angeles
Era uma vez um
festival de cinema
Nunca me canso de escrever que são milhares de
filmes produzidos todos os anos. Alguns passam
no cineplex mais próximo, outros, os independentes, dependem do sucesso e do burburinho
criados no circuito de festivais para ter vida. E a
grande maioria não serve para nada. A história
que vou contar é pura fantasia. Não há fatos ou
semelhanças com a verdade dos grandes festivais de cinema, que fique bem claro. Inclusive,
inventei um nome fictício para nosso personagem principal. Assim vocês não pensam que sou
eu. Vamos de Leopoldo? Leopoldo Blumenfeld.
Era uma vez um instituto
criado com a intenção de dar
aos cineastas do mundo inteiro a chance de contar suas
histórias a mais de meia dúzia de pessoas. Eles correm
riscos todos os dias, enfrentando a falta de recursos, escasso apoio cultural e mínima liberdade de expressão
dependendo da re(li)gião onde vivem, com o intuito de
completar sua obra, tomar
os espectadores e críticos de
surpresa, e finalmente alcançar o ápice da carreira: abrir
mão dos seus princípios e
criar para um estúdio mais
uma brincadeira de milhões
de dólares.
Leopoldo já havia trabalhado com o instituto selecionando projetos para o laboratório de diretores. Por falar
línguas, além de entender culturalmente o mundo além
das barreiras americanófilas,
foi convidado a participar do
processo de seleção dos filmes estrangeiros (e locais)
de longa-metragem para o
festival que começava em alguns meses. Feliz,
orgulhoso e confiante, ele aceitou
a tarefa hercúlea
de assistir e fazer
a resenha de não
menos do que
cem daqueles filmes em 60 dias.
Lá foi Leozinho
assistir mexicanos, brasileiros,
espanhóis, croatas, russos e coreanos, dramas,
comédias, sátiras
políticas e thrillers
sem recheio, sentindo fazer
parte de algo importante, culturalmente relevante. A cada
dia que passava, mesmo dividindo suas obrigações com a
esposa Jammie — sim, esse é
o nome dela, já que a fábula é
minha —, ele fazia as contas
que nunca batiam e falava ao
espelho obsessivamente com
ares de Travis Bickle: “Somos
oito programadores. Eu devo
dedicar tanto ou mais tempo,
e dificilmente consigo. São
mais de 1.400 enviados dos
quatro cantos do mundo. Como é possível indicá-los a
tempo de a seleção ser feita?
Quem de nós, super-humano,
consegue acompanhar as 600
obras restantes que, do contrário, nunca serão vistas? Teria a direção do evento a audácia de escolhê-las sem ao
menos assistir a todas que foram submetidas, algo que incentivou desde o começo de
sua existência? Oh, yes... you
talkin’ to me?”
Foram semanas interessantes. Filmes péssimos
mais do que eram compensados por obras belíssimas
de Argentina, Coreia e Chile. Performances definitivas, mensagens que deveriam ser vistas e ouvidas,
ecos culturais de países onde o cinema é mais do que
simples diversão, é instrumento subversivo de transformação. E pensar que já
foi o caso no Brasil, não é?
Leopoldo acreditava estar
prestando um serviço à Humanidade. Bonitinho, de
tão ingênuo.
Meninos e meninas — ou
como diz meu avô brasileiro
com sotaque alemão, meninis
e meninis — antes mesmo de
terminarem de rebobinar todos os DVDs, não é que a lista
de filmes já havia sido divulgada? E que mistério, já que
todos estavam devidamente
representados por alguma
agência de talento em Los
Angeles, Nova York ou Londres, ou foram escolhidos
com a “ajudinha” de uma Sony Classic ou The Weinstein
Company. Volto a lembrar
que esta é uma historinha de
mentira. Nada disso acontece
ou aconteceu em tal festival.
Heresia, viu, já que filme não
pode ter distribuição oficial
antes de entrar na seleção
oficial. Depois da seleção, aí
são outros quinhentos. Bem,
eu mesmo não levo a sério o
que falo ou escrevo. Se isso
fosse verdade, era de se esperar que a grande maioria dos
projetos em competição fosse estrelada por
nomes famosos
do cinema atual.
Hummm, é pura
coincidência...
Falando sério,
por vezes precisamos fazer concessões para
manter a relevância e continuar
sendo referência.
Nos dias pasteurizados em que vivemos, poucos
são aqueles que
podem afirmar
saber a diferença entre o que
é criativo e o que nos empurram goela adentro como tal.
Se fingir para o mundo que a
escolha é democrática, der a
centenas de artistas na corda
bamba a ilusão de que seu
trabalho foi devidamente
considerado, e tudo para levantar milhões de dólares em
patrocínios e bolsas para diretores e roteiristas, produtores africanos, asiáticos e de
minorias étnicas que, do contrário, nunca poderiam criar
seus trabalhos, qual é o problema? Se decidir que, dependendo do ano os melhores projetos vêm da China ou
da Rússia para garantir o
aconchego junto a doadores
desses países, qual é o probl... não, isso eu não consigo
escrever de cara limpa.
Quanto mais importante
o evento cultural nas montanhas nevadas, seja ele de
cinema ou não, maiores as
pressões dos poderosos sobre os seus organizadores.
Mas o mundo não é todo ele
comprometido. Há centenas, talvez milhares de festivais onde o que importa é
somente a qualidade do material enviado. Aliás, essa
quantidade absurda é parte
do problema. Nomes de
atores e diretores não fazem diferença, agentes e
distribuidores não têm o
que fazer. Aí, Leopoldo pergunta, quem vai se importar e assistir, não é?
Antes mesmo
de terminarem
de rebobinar
todos os DVDs,
não é que a
lista de filmes
já havia sido
divulgada?
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA
PELO MUNDO
PELO MUNDO
Hermano
José Miguel
Francisco
Felipe
Cristina Ruiz,
Eduardo Graça,
Vianna
Wisnik
Bosco
Hirsch
de Berlim
de Nova York
Eduardo Levy,
de Los Angeles
DOMINGO
Caetano
Veloso
O homem que transformou
X-Men em febre internacional
Chris Claremont diz que história refletia sobre imigrantes e novas culturas nos EUA
W
olverine deve sua
reputação de ser o
melhor naquilo
que faz — seja matar supervilões ou vender milhares de gibis mundo afora — a
um senhor inglês de 60 anos
que promete ser uma das mais
concorridas atrações da Rio Comicon 2011: o escritor Chris
Claremont. No sábado, às 20h, a
convenção de quadrinhos vai
dedicar uma mesa ao homem
que transformou a HQ “X-Men”
numa febre internacional a partir dos anos 1970, quando adicionou complexidade psicológica a um grupo de vigilantes nascidos com poderes especiais. É
dele um dos maiores best-sellers do setor, a minissérie “Eu,
Wolverine”, lançada em 1982
com desenhos de Frank Miller,
transportando o mutante de
garras metálicas a um Japão infestado de ninjas e mafiosos.
— Meu Wolverine era uma espécie de John Wayne, um caubói solitário em meio a um mundo em construção. Mas o Wayne
que me interessava não era o
dos épicos dos anos 1930 e
1940. Meu modelo era o John
Wayne de “Rastros de ódio”, dirigido por John Ford em 1956.
Um caubói sombrio, em luta para administrar o ódio contra os
índios em seu coração. Wolverine é igualzinho. Ele tem um animal dentro de si, que quer sair e
destruir. O maior inimigo de
Wolverine é seu lado bicho —
diz o escritor, em entrevista por
telefone ao GLOBO.
Radicado nos EUA desde menino, Claremont se aposentou.
Hoje, se dedica à literatura. Trabalhou até com o cineasta George Lucas (“Star Wars”) na produção de uma trilogia de romances chamada “Chronicles of the
Shadow War”, lançada de 1995 a
1999, mas sempre foi reticente
sobre roteiros para cinema.
— Comecei escrevendo prosa antes de ser convidado para
roteirizar os X-Men. Num gibi
mensal, que é a minha especia-
Divulgação
O INGLÊS
Chris Claremont
fala sábado no Rio:
destaque por sua
escrita concisa
lidade, você tem, no máximo, 22
páginas para dar seu recado. Na
literatura, tenho mais liberdade.
Um romancista escreve direto
para o leitor. Um roteirista de
HQs, não. Ele escreve primeiro
para o desenhista — explica.
Claremont é respeitado pela
crítica por sua concisão na escrita. Sua fama se expandiu internacionalmente após a publicação de sagas como “A Fênix
Negra” (1980), onde a telepata
Jean Grey adquire poderes cósmicos, e “Dias do futuro do presente” (1981), cujo enredo sobre
viagens no tempo inspirou o filme “O exterminador do futuro”
(1984), de James Cameron. Ele
trabalhou ainda com os heróis
do Quarteto Fantástico e do grupo WildC,A.Ts., fenômeno de
venda nos anos 1990. Mas até
hoje seu nome é atrelado ao de
Wolverine e companhia.
— Nos anos 1970, eu e os desenhistas Dave Cockrum e John
Byrne enxergávamos nos X-Men
um potencial que a Marvel parecia não perceber. Nessa época, as noções clássicas da identidade americana estavam mudando com a chegada de imigrantes e a afirmação de diferentes movimentos culturais até
então encarados como minorias. Nossa ideia era buscar o
espírito dos EUA daquela década e narrar o processo de adaptação de jovens de diferentes
origens, incluindo um canadense como Wolverine e uma africana como Tempestade, a um
mundo novo — explica Claremont. — Pegue como exemplo
um personagem como Colussus, um garotão russo cuja pele
ganha a consistência do aço. Se
eu conseguisse provocar alguma identificação entre um jo-
vem leitor americano e um moleque russo que vira uma viga
de aço humana, eu estaria fomentando uma reflexão sobre
igualdade entre culturas rivais.
Esse era o nosso desafio.
Sem qualquer traço de sotaque britânico — “Fui sequestrado por piratas quando bebê e
mantido em cativeiro da América”, brinca —, Claremont assumiu os roteiros de “Unccany XMen” em 1975, quando o título
estava ameaçado por baixa nas
vendas. Criou personagens, a
procura dos leitores cresceu, e
ele ficou no título até 1991.
— Nos anos 1980, por conta
de um trabalho de publicidade
da editora DC Comics, a mídia
comprou a lenda de que as HQs
adultas, como “Watchmen”, seriam o futuro. A Marvel Comics
jamais embarcou nessa. Sabíamos que uma história adulta limitava o público consumidor. A
Marvel queria títulos para as
massas, com enredos que
atraíssem multidões sem deixar
de discutir questões sociais urgentes com uma abordagem sutil — diz Claremont. — Meu papel era ser um manancial de sutilezas. (Rodrigo Fonseca) ■
O espírito de Will Eisner está de volta
Exposição traz pela primeira vez ao Brasil 107 obras originais do autor de Spirit
Reprodução
Ana Branco
Mauro Ventura
[email protected]
E
la veio dos Estados
Unidos no colo do
americano Denis Kitchen, dentro de uma
sacola vermelha, embalada em
papel bolha. Foi entregue à brasileira Marisa Furtado e desembrulhada diante da reportagem
do GLOBO, na Estação Leopoldina, onde estará exposta a partir de hoje na RioComicon.
A peça é uma estátua — ou
melhor, uma estatueta — em
bronze, com 38 centímetros e
dez quilos. Só existe uma no
mundo e acaba de ficar pronta.
Está avaliada em US$ 6 mil e retrata Spirit, o personagem mais
famoso do quadrinista Will Eisner, que morreu em 2005. Logo
depois, seguiu para o apartamento de Marisa, que não quis
se arriscar a deixá-la lá.
Última história do Spirit
A peça é o maior destaque da
exposição “O espírito vivo de
Will Eisner”, que tem curadoria
de Marisa e de Kitchen, editor
da obra de Eisner há mais de 30
anos. Após os quatro dias da
RioComicon, a mostra vai para
a capital paulista, onde fica de
15 de novembro a 18 de dezembro no Centro Cultural São Paulo. São 107 trabalhos originais
de Eisner, que nunca foram exibidos no Brasil — o seguro das
obras é de US$ 300 mil.
Outro destaque é um original
da P’Gell, femme fatale que é vilã das histórias de Spirit. Vale
US$ 50 mil. Também será mos-
PAPEL DE PÃO com pintura de Spirit e a estatueta do personagem, em bronze, com 38 centímetros
trada uma história do Spirit publicada na revista “As incríveis
aventuras do Escapista”.
— Eisner fez a história com
dores no peito, mas entregoua em dezembro de 2004. Aí foi
ao consultório médico, internou-se e morreu dias depois.
Foi a última coisa que desenhou na vida — diz ela, diretora do documentário “Will
Eisner, profissão cartunista”.
A exposição ocupa 170 metros quadrados e é dividida em
seis ambientes. Na fachada, há
uma imagem de Spirit emergindo da água com mais de 40 metros quadrados. Numa das laterais, há dez grafites de desenhistas reinterpretando a obra
de Eisner. Nas paredes, há graphic novels, aquarelas, desenhos em bico de pena. Há ainda
uma pintura em papel de pão
de 1,5 por 1 metro com um desenho de Spirit. A partir dele, a
mulher de Eisner, Ann, fez uma
tapeçaria. Numa das salas, há
uma mesa com pertences pessoais de Eisner, como óculos,
blocos de notas e pincéis. Também serão exibidos filmes.
A estatueta fica numa sala
chamada Tumba de Spirit, por
onde se entra após ultrapassar
uma porta de cetim com um
rasgo no meio. Uma das paredes reproduz a metrópole de
Eisner. Em meio às imagens, há
os prédios típicos do quadrinista, lápides com nomes de personagens e o autor desenhando
embaixo de uma árvore no cemitério de Spirit. Foram 110 horas de trabalho somente para
desenhar o cenário da tumba.
A estátua só existe por
obra de Marisa. A história remonta a 20 anos atrás, quando Eisner desenhou-a e entregou-a ao artista plástico polonês Peter Poplasky.
— Ela foi esculpida em cera
no início dos anos 1990, porque
a fundição em bronze era muito
cara — explica Kitchen.
E teria permanecido assim
se Marisa, ao entrevistar Kitchen para seu documentário,
não tivesse visto o molde.
— Ela insistiu para que finalizássemos a escultura, e eu não
pude descordar. A família de
Eisner também ficou muito feliz
ao ver a peça finalmente pronta, pelo esforço de uma mulher
brasileira de temperamento forte que é fã de Eisner.
Ann confirma a felicidade,
não só com a estátua, mas
com toda a exposição:
— Estou certa de que Will,
onde quer que esteja, só pode
estar sorrindo.
Marisa festeja a realização da
escultura com um trocadilho:
— Agora o espírito de Will
pode descansar em paz. ■

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