Elisa Lucinda - Rosany Costa

Transcrição

Elisa Lucinda - Rosany Costa
Elisa Lucinda
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Elisa Lucinda
Elisa Lucinda dos Campos Gomes (Vitória ,ES, 2 de fevereiro de 1958), é poetisa, jornalista,
cantora. Chegou a exercer a profissão de jornalista em Vitória. Em 1986, mudou-se para o Rio
de Janeiro disposta a seguir a carreira de atriz.
Sempre atuando em teatro, cinema e televisão, publicou seu primeiro livro de poesia “O
Semelhante”, em 1994. Este foi um passo para que a peça de mesmo nome, onde ela dizia
seus versos e conversava com a platéia, permanecesse em cartaz durante seis anos, no Brasil
e no exterior.
No mesmo formato, apresentou “Eu te amo Semelhante” e atualmente excursiona pelo país
com mais um espetáculo solo, “Parem de falar mal da rotina”, sucesso de crítica e público no
Fórum Internacional de Culturas, Barcelona, em 2004. Recentemente esteve representando o
Brasil na XIV Feira do Livro de Cuba – 2005.
Popularizando a poesia com seu jeito coloquial de escrevê-la e dizê-la, sua presença cênica
tanto no palco como na tela é impressionante.
Elisa Lucinda é considerada um dos maiores fenômenos da poesia brasileira. “A menina
transparente”, poema que marca sua estréia na literatura infantil, recebeu Prêmio Altamente
Recomendável, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ.
Reconhecida pela sua literatura poética (“O semelhante”, “Eu Te Amo e Suas Estréias”, os
infantis “A menina transparente”, “Lili a rainha das escolhas”, “O órfão famoso”, “O menino
inesperado” e seus mais recentes livros “Cinqüenta poemas escolhidos pelo autor”, “Contos de
Vista” e seu mais novo livro "A Fúria da Beleza" ), além de seus espetáculos, recitais e
workshops apresentados no Brasil e exterior; por seus trabalhos na área de recursos humanos
junto à diversas empresas e instituições como Petrobrás, Banco Real, Fiocruz e por seus
recentes trabalhos: na televisão, onde viveu a cantora Pérola em “Mullheres Apaixonadas” novela de Manoel Carlos no horário nobre na Rede Globo, "Páginas da Vida" também de
Manoel Carlos, ; no cinema, como protagonista ao lado da amiga e atriz Zezé Polessa, no filme
“Alegres comadres” (lançado no Festival BR de Cinema 2003); Elisa ainda mantém a “Escola
Lucinda de Poesia Viva” onde ensina interpretação teatral da poesia seguindo o lema: “Falando
poesia sem ser chato”.
Em breve será lançado o CD do show "Ô Danada", show ao vivo realizado com Marcos Lima e
que será o primeiro CD lançado pelo selo CCC (Centro Cultural Carioca)
A notável Capixaba vem ao longo de sua carreira presenteando o público com seu jeito
peculiar e natural de falar poesia sem representar o verso mas apresentando as emoções que
as palavras podem proporcionar...
Livros
* A Menina Transparente
* Euteamo e suas estréias
* O Semelhante
* Coleção Amigo Oculto (trilogia infantil).
* Contos de Vista
* A Fúria da Beleza (2006)
* Lili a rainha das escolhas
CDs de poesias
* Semelhante - sob o selo da gravadora Rob Digital
* Euteamo e suas Estréias - sob o selo da gravadora Rob Digital
* Notícias de Mim, com poemas da poeta paulista Sandra Falcone, participação de Miguel
Falabella, direção e produção de Gerson Steves. O CD é resultado do espetáculo homônimo
com roteiro e direção de Steves.
Fonte: www.escolalucinda.com.br e outros sites na Internet.
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De: O Semelhante
O Poema do Semelhante
O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,
Foi Ele quem arrancou deles
a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.
Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.
Esse Deus sabe que alguém é apenas
o singular da palavra multidão
Eh mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.
O Deus que cuida do
não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
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a solidão do nexo.
O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse
da alegria
de ser igual a toda gente
Esse Deus deu coletivo
ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.
Não fosse a inteligência
da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança
(madrugada onde fui acordada pelo poema no Rio de Janeiro, 10 de julho de 1994)
Aviso da Lua que Menstrua
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
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ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
No elevador do filho de Deus
A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
Que eu já tô ficando craque em ressurreição.
Bobeou eu tô morrendo
Na minha extrema pulsão
Na minha extrema-unção
Na minha extrema menção
de acordar viva todo dia
Há dores que sinceramente eu não resolvo
sinceramente sucumbo
Há nós que não dissolvo
e me torno moribundo de doer daquele corte
do haver sangramento e forte
que vem no mesmo malote das coisas queridas
Vem dentro dos amores
dentro das perdas de coisas antes possuídas
dentro das alegrias havidas
Há porradas que não tem saída
há um monte de "não era isso que eu queria"
Outro dia, acabei de morrer
depois de uma crise sobre o existencialismo
3º mundo, ideologia e inflação...
E quando penso que não
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me vejo ressurgida no banheiro
feito punheteiro de chuveiro
Sem cor, sem fala
nem informática nem cabala
eu era uma espécie de Lázara
poeta ressucitada
passaporte sem mala
com destino de nada!
A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
ensaiar mil vezes a séria despedida
a morte real do gastamento do corpo
a coisa mal resolvida
daquela morte florida
cheia de pêsames nos ombros dos parentes chorosos
cheio do sorriso culpado dos inimigos invejosos
que já to ficando especialista em renascimento
Hoje, praticamente, eu morro quando quero:
às vezes só porque não foi um bom desfecho
ou porque eu não concordo
Ou uma bela puxada no tapete
ou porque eu mesma me enrolo
Não dá outra: tiro o chinelo...
E dou uma morrida!
Não atendo telefone, campainha...
Fico aí camisolenta em estado de éter
nem zangada, nem histérica, nem puta da vida!
Tô nocauteada, tô morrida!
Morte cotidiana é boa porque além de ser uma pausa
não tem aquela ansiedade para entrar em cena
É uma espécie de venda
uma espécie de encomenda que a gente faz
pra ter depois ter um produto com maior resistência
onde a gente se recolhe (e quem não assume nega)
e fica feito a justiça: cega
Depois acorda bela
corta os cabelos
muda a maquiagem
reinventa modelos
reencontra os amigos que fazem a velha e merecida
pergunta ao teu eu: "Onde cê tava? Tava sumida, morreu?"
E a gente com aquela cara de fantasma moderno,
de expersona falida:
- Não, tava só deprimida.
Viver de Poesia
Há tanto o que fazer com a poesia
que eu quase não dou conta das tarefas.
Trazê-la em estado de circulação
é mais que assumi-la sangue
de tanto me afundar no mangue
decorei o caminho do emergir
a volta do desmaio
do cair em si em mi
e mais todas as notas do percurso e escola.
Há tanto o que transar com a poesia
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que tenho estado com ela sem nenhum projeto de anticoncepção
falá-la então é o VT desse sexo explícito de procriação
com direito a prazer e gozo em cada dobra de rima
Trazendo-a em estado vivo exerço a alquimia
de atropelar o efêmero
com o doce trator da perpetuação
agarrada aos motivos eternos
dos versos que eu escrevi
latejante exposição em estado de música e fotografia
é o que faço aqui
e aqui chego com meus cães:
sigo tudo de acordo com as ordens do Deus poema
que é o fiel domador.
Corro, sento, busco ossos
e inda faço gracinhas
elefante, golfinho, leão, macaquinho,
sopro, tambor, teclado, cavaquinho
vou bebendo vinho.
Há tanto o que fazer com a poesia
Há tanto o que namorar com a poesia
Há tanto o que compreender com a poesia
Há tanto o que viajar com a poesia
que eu com esse excesso de bagagem
passo na cara do vigia
de mãos vazias.
Mas tamanha é a magia
que toda a muamba que ninguém via
agora se esparrama no palco:
ela rainha, galinha
sambando no pedaço,
minha rainha poesia
e de salto alto.
(Rio, verão de 1991)
Cor-respondência
Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem-feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
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de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.
Consagração da Criatura
A Juliano
Filho..., igualzinho à minha poesia
você nunca foi meu órgão
A arte é constante e me habita à hora que ela quer
e à hora que eu deixo
Mas não me existe combinada, não há contratos nem despejos
você tem intimidade com meus interiores
com meus departamentos
Você é um argumento contra mim e a meu favor
Me trai porque conhece meu avesso
Me enobrece porque me tornou poderosa
Capaz de prosseguir com essa invenção chamada humanidade
Você é a barbaridade de ter feito a minha barriga crescer
Meu corpo zunir, abrir, escancarar pra você sair
de onde eu nunca pus sequer os pés, as mãos
da casa em que vivo e habito sem nunca ter entrado
porque moro fora de mim.
O que faz de seu édipo eficiência
e de seu abuso, cultura
é essa estrutura feita de mim
sem que eu tenha em ti o mesmo acesso
Por isso a criatura é mais que o criador
e você que saiu por onde entrou
Como ocorre com o poema
tem seu passaporte carimbado para todos os estados
de minha alma, de meu espírito
Você que é onírico, sábio vassalo
Me tiraniza e perde a fala, o fôlego, o faro
Me organiza e ganha o futuro
e ainda segura o jogo duro de viver independente de minha respiração
Espião de meus bastidores
Olhou minhas entranhas enquanto virava ser humano
quieto dentro de mim como as palavras antes de serem poesia
Mas fui apenas uma pensão, uma besteira
ou um hotel cinco estrelas
ou um amniótico colchão.
Hoje saído dessa embalagem, me olhas como miragem
de parecer tão próprio, tão seu
Me olhas como árvore
ziguezagueia e olha para o que fui: passageira semente.
Me olha como gente que já me viu por dentro
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vasculhou meu plasma, minhas gavetas
me deixou pasma, coroou minha buceta
e sabe meu segredo
Me olha elegante e vestido
e se sente despido ao saber que o olho de minha coxia
também te viu virar varão.
Deixar de ser óvulo, indefinição, projeto, embrião
e haverá sempre um leite materno
escorrendo pelo seu terno
como mirra, bênção, distração
como birra, alimento, maldição
maior que mim, melhor que mim.
Está pronto e feito, como o meu melhor poema
Nem branco nem preto.
Nem real nem ilusão.
Um grande amuleto da palavra são.
(Da série “Consagração da criatura”)
Safena
Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até ao auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tintas, tijolo
comecem a obra!
Por amor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Peitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou eu de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e ceras
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.
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Mulata Exportação
“Mas que nega linda
E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta
Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)
Minha tonteira minha história contundida
Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado...”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual...
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
Porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata!
(Da série “Brasil, meu espartilho”)
Dei um gelo nela (o poema da geladeira)
Estava há uma semana vazia...
Fazia dias que ela não gelava senão água.
Até que choveu na minha conta outro dia:
Saí, comprei aves, peixes, lagostas, camarões...
Olhei pra ela, estava cheia.
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Chuchus sorriam pra mim: há quanto tempo... diziam.
Uvas e beterrabas batiam palminhas do reencontro
Até a galinha morta era feliz por mim. Dormi pensando em receitas boas.
Acredita que de manhã um carrasco havia sido pago pra levá-la?
Ela que nunca foi totalmente minha.
Liguei pra dona, me humilhei sozinha dentro do discurso justo de que sou artista
e por isso inconstante na economia. E a dona nada. Não cedia.
O carrasco ia levar minha deusa, minha neve possível, minha geada de estimação.
À hora marcada, chorei agarrada àquela cônsul mimada demais por mim;
Tão adotiva, tão afetiva... eu atracada a ela, pedia, gemia...
E ela, nada; ela fria, desligada, já não me dava nem gelos.
Fiquei sem patrimônio. Sem preservação de alimentos.
Fiquei sem centro, a zombar de mim.
Até que me lembrei dos meus bens: a coragem, a beleza, a força, a poesia, a esperteza.
coisas que não se encontram em pontos-frios,
coisas que não são substituíveis por um isopor.
Então já amanheci pondo coentros nas jarras como flores!
Curei minhas dores sem congelamento.
Me virei por dentro onde tudo é mantido quente vivo.
Tirei tudo de letra e de ouvido
como quem tira uma música!
(Da série “Eletrodométricos”)
Chupetas Punhetas Guitarras
Choram meus filhos pela casa
fraldas colos fanfarras
Meus filhos choram querendo talvez meu peito
ou talvez o mesmo único leito que reservei pra mim
Assim aprendi a doar
com o pranto deles
Na marra aprendi a dar mundo a quem do mundo é
A quem ao mundo pertence e de quem sou mera babá
Um dia serei irremediavelmente defasada, demodê
Meus filhos berram meu nome função
querendo pão, ternura, verdade e ainda possibilidade de ilusão
Meus filhos cometem travessuras sábias
no tapa bumerangue da malcriação
Eu que por eles explodi buceta afora afeto adentro
ingiro sozinha o ouro excremento desta generosidade
Aprendo que não valho nada em mim
Que criar pessoa é criar futuro
não há portanto recompensa, indenização
mesquinhas voltas, efêmeros trocos.
Choram pela casa e eu ouço sem ouvidos
porque meus sentidos vivem agora sob a égide da alma
Chupetas punhetas guitarras
meus filhos babam conhecimentos da nova era
no chão de minha casa.
Essa deve ser minha felicidade.
Aprendo a dar meu eu, aquilo que não tem cópia
tampouco similar
E o tempo, esse cuidadoso alfaiate, não me conta nada
Assíduo guardador dos nossos melhores segredos
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sabe o enredo da estória
Vai soprando tudo aos poucos e muito aos pouquinhos
Faz eu lembrar que meu pai também já foi pequenininho
Que só por ele ter podido ser meu ontem
Só por ele ter fodido com desesperado desejo minha mãe
um dia eu existi.
Choram meus filhos pela Nasa onde passeamos planetas e reveses
Eu escuto seus computadores, eu limpo suas fezes
faço compressas pra febre, afirmo que quero morrer antes deles
assino um documento onde aceito de bom grado
lhes ter sido a mala o malote a estrela guia
Um dia eles amarão com a mesma grandeza que eu
uma pessoa que não pode ser eu
Serão seus filhos suas mulheres seus homens
Eu serei aquela que receberá sua escassa visita
Não serei a preferida.
Serei a quem se agradece displicente
pelo adianto, pela carona
de poderem ter sido humanidade.
Choram meus filhos pela casa
Eu sou a recessiva bússola
a cegonha a garça
com um único presente na mão:
Saber que o amor só é amor quando é troca
E a troca só tem graça quando é de graça.
de: Euteamo E Suas Estréias
Libação
É do nascedouro da vida a grandeza.
É da sua natureza a fartura
a ploriferação
os cromossomiais encontros,
os brotos os processos caules,
os processos sementes
os processos troncos,
os processos flores,
são suas mais finas dores
As conseqüências cachos,
as conseqüências leite,
as conseqüências folhas
as conseqüências frutos,
são suas cores mais belas
É da substância do átomo
ser partível produtivo ativo e gerador
Tudo é no seu âmago e início,
patrício da riqueza, solstício da realeza
É da vocação da vida a beleza
e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la
com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la,
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Elisa Lucinda
cheio que é o seu princípio
Todo vazio é grávido desse benevolente risco
todo presente é guarnecido
do estado potencial de futuro
Peço ao ano-novo
aos deuses do calendário
aos orixás das transformações:
nos livrem do infértil da ninharia
nos protejam da vaidade burra
da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz
daquilo que ao nos aumentar
nos amesquinha.
A vida não tem ensaio
mas tem novas chances
Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores
Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!
Termos da nova dramática (Parem de falar mal da rotina)
Parem de falar mal da rotina
parem com essa sina anunciada
de que tudo vai mal porque se repete.
Mentira. Bi-mentira:
não vai mal porque repete.
Parece, mas não repete
não pode repetir
É impossível!
O ser é outro
o dia é outro
a hora é outra
e ninguém é tão exato.
Nem filme.
Pensando firme
nunca ouvi ninguém falar mal de determinadas rotinas:
chuva dia azul crepúsculo primavera lua cheia céu estrelado barulho do mar
O que que há?
Parem de falar mal da rotina
beijo na boca
mão nos peitinhos
água na sede
flor no jardim
colo de mãe
namoro
vaidades de banho e batom
vaidades de terno e gravata
vaidades de jeans e camiseta
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Elisa Lucinda
pecados paixões punhetas
livros cinemas gavetas
são nossos óbvios de estimação
e ninguém pra eles fala não
abraço pau buceta inverno
carinho sal caneta e quero
são nossas repetições sublimes
e não oprime o que é belo
e não oprime o que aquela hora chama de bom
na nossa peça
na trama
na nossa ordem dramática
nosso tempo então é quando
nossa circunstância é nossa conjugação
Então vamos à lição:
gente-sujeito
vida-predicado
eis a minha oração.
Subordinadas aditivas ou adversativas
aproximem-se!
é verão
é tesão!
O enredo
a gente sempre todo dia tece
o destino aí acontece:
o bem e o mal
tudo depende de mim
sujeito determinado da oração principal.
29 de outubro de 1997
Da chegada do amor
Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.
Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.
Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.
Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.
Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
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Elisa Lucinda
sabor da mesma golada.
Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.
Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.
Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.
Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.
Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.
Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.
Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.
Sem senãos.
Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.
Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o "garantido" amor
é a sua negação.
Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.
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Elisa Lucinda
Sempre quis um amor
que vivesse a felicidade
sem reclamar dela ou disso.
Sempre quis um amor não omisso
e que sua estórias me contasse.
Ah, eu sempre quis um amor que amasse.
Euteamo e suas estréias
Te amo mais uma vez esta noite
talvez nunca tenha cometido “euteamo”
assim tantas seguidas vezes, mal cabendo no fato
e no parco dos dias.
Não importa, importa é a alegria límpida
de poder deslocar o “Eu te amo”
de um único definitivo dia
que parece bastá-lo como juramento
e cuja repetição, parece maculá-lo ou duvidá-lo...
Qual nada!
Pois que o euteamo é da dinâmica dos dias
É do melhoramento do amor
É do avanço dele
É verbo de consistência
É conjugação de alquimia
É do departamento das coisas eternas
que se repetem variadas e iguais todos os dias
na fartura das rotações e seus relógios de colmeias
no ciclo das noites e na eternidade das estréias:
O sol se aurora e se põe com exuberância comum e com
novidade diária
e aí dizemos em espanto bom: Que dia lindo!
E é! Porque só aquele dia lindo
é lindo como aquele.
Nossa sede, por mais primitiva,
é sempre uma
loucura da falta inédita
até o paraíso da água nova
no deserto da nova goela.
Ela, a água,
a transparente obviedade que
habita nosso corpo
e nos exige reposição cujo modo é o
prazer.
Vê: tudo em nós comemora
o novo milenar de si
todas as horas:
Comer é novidade
Dormir é novidade
Doer é novidade
Sorrir é novidade
Maravilhosa repetitiva verdade que se
expõe em cachos a nosso dispor
variando em sabor e temor e glória
Por isso te amo agora como nunca antes
Porque quando te amei ontem
eu te amava naquele tempo
e sou hoje o gerúndio daquela disposição de verbo
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Elisa Lucinda
Te amo hoje com você dentro
embora sem você perto
Te amo em viagem
portanto em viragem diferente da que quando
estava perto
Meu certo é alto, forte
Te amo como nunca amei
você longe, meu continente, meu rei
Eu te amo quantas vezes for sentido
e só nesse motivo é que te amarei.
(Da série “Eternidades Cotidianas”)
Brasília, 01 de dezembro de 1994
Lua nova demais
Dorme tensa a pequena
sozinha como que suspensa no céu
Vira mulher sem saber
sem brinco, sem pulseira, sem anel
sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê
Sem mãe perto,
sem pai certo
sem cama certa,
sem coberta,
vira mulher com medo,
vira mulher sempre cedo.
Menina de enredo triste,
dedo em riste,
contra o que não sabe
quanto ao que ninguém lhe disse.
A malandragem, a molequice
se misturam aos peitinhos novos
furando a roupa de garoto que lhe dão
dentro da qual mestruará
sempre com a mesma calcinha,
sem absorvente, sem escova de dente,
sem pano quente, sem O B.
Tudo é nojo, medo,
misturação de “cadês.”
E a cólica,
a dor de cabeça,
é sempre a mesma merda,
a mesma dor,
de não ter colo,
parque
pracinha,
penteadeira,
pátria.
Ela lua pequenininha
não tem batom, planeta, caneta,
diário, hemisfério,
Sem entender seu mistério,
ela luta até dormir
mas é menina ainda;
chupa o dedo
E tem medo
17
Elisa Lucinda
de ser estuprada
pêlos bêbados mendigos do Aterro
tem medo de ser machucada, medo.
Depois mestrua e muda de medo
o de ser engravidada, emprenhada,
na noite do mesmo Aterro.
Tem medo do pai desse filho ser preso,
tem medo, medo
Ela que nunca pode ser ela direito,
ela que nem ensaiou o jeito com a boneca
vai ter que ser mãe depressa na calçada
ter filho sem pensar, ter filho por azar
ser mãe e vítima
Ter filho pra doer,
pra bater,
pra abandonar.
Se dorme, dorme nada,
é o corpo que se larga, que se rende
ao cansaço da fome, da miséria,
da mágoa deslavada
dorme de boca fechada,
olhos abertos,
vagina trancada.
Ser ela assim na rua
é estar sempre por ser atropelada
pelo pau sem dono
dos outros meninos-homens sofridos,
do louco varrido,
pela polícia mascarada.
Fosse ela cuidada,
tivesse abrigo onde dormir,
caminho onde ir,
roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura, teatro, abraço, casaco de lã
podia borralheira
acordar um dia
cidadã.
Sonha quem cante pra ela:
“Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha...”
Sonha em ser amada,
ter Natal, filhos felizes,
marido, vestido,
pagode sábado no quintal.
Sonha e acorda mal
porque menina na rua,
é muito nova
é lua pequena demais
é ser só cratera, só buracos,
sem pele, desprotegida, destratada
pela vida crua
É estar sozinha, cheia de perguntas
sem resposta
sempre exposta, pobre lua
É ser menina-mulher com frio
mas sempre nua.
(Poema encomenda,1995)
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Elisa Lucinda
No pasto
Meu amor dorme
ele sabe que o amo
sabe que a gripe dele
morre de medo de mim
meu amor é um escândalo
é masculino do modo
mais amplo e mais preciso
e é por isso que eu espero
os seus processos
suas crises
como se fossem tratores
caminhões desgovernados
no meio da perigosa estrada
espero que passem
e se puder
ponho avisos e anjos nos caminhos
pra que sejam sem mortes
os desastres e descontroles as derrapadas.
Meu amor dorme
eu chegarei como
uma poderosa aspirina
toda mulher
toda menina
extirparei dele
o que for constipação
o que não for felicidade.
Meu homem tem cheiro de mato
o cheiro de todos os capins cheirosos no peito
lá com nariz enfiado nesse jeito
morrerei
tudo que quero
tem ele no fundo
meu bom mundo
o cheiro de fazenda
que trazes no plexo
foi o touro que me ensinou
te amo inteira e farta
vaca que sou.
Lilith Balangandã
Ponho o lenço do pescoço na cabeça
Molho os cabelos com calma
uma mulher é uma espécie de alma com enfeite
Chega diante do espelho
adorna-se como uma árvore de natal
nem é natal
mas ela vai dar bola
Às vezes não varre o quintal
mas pinta as maçãs
blushes ruges
Às vezes não costura
mas realça cortinas
cílios rímel lápis
Às vezes não conserta as portas
mas pinta as bordas das janelas
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Elisa Lucinda
pálpebras delineador sombra
Mulher é uma Eva encantada
de espalhar-se por fora
em paraíso
batom cintura tesão juízo
pulseiras brincos balangandãs
são seus sonhos de fachada
que repetem de dentro
que rondam a porta da casa
Invento de princesa
Durante todas as primaveras
um cardume de cinderelas
ainda insiste dentro dela.
Do Príncipe ao sim
O homem que eu amo
veio de tanto eu pedir
mas quando parei de esperá-lo
veio quando eu ao depená-lo
do meu sonho receio,
permiti que em vez de início ou fim
ele no meio de mim
fosse só o meio.
Não meio no sentido tático
de jeito ou de modo.
Meio no sentido de durante
de enquanto
de presente.
Quando abandonei o título futuro
definitivo da eternidade
o rótulo azarento de garantia
no departamento de intimidade,
quando abandonei o desejo
de ressarcir aqui
o que perdi na antigüidade,
meu homem chegou cheio de saudade
ocupando inteiro
seu lugar de meio
sua inteira metade.
4 de agosto de 1995
de: A Fúria da Beleza
Lambe Lambe
Passam muitas pessoas no saguão dos aeroportos.
Passam neste aeroporto da agora,
e eu, no meu pensamento,
não me comporto, imagino elas fodendo:
fulano com fulano,
são casados, gozam, fazem planos?
E ela, quer logo que acabe?
E ele, penetra rosnando?
Fantasio as inúmeras possibilidades de encaixes,
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Elisa Lucinda
em como foram as noites de amor que tiveram para fazer essas
crianças chinesas africanas alemãs francesas mexicanas libanesas
brasileiras cabo-verdianas espanholas cubanas holandesas
senegalesas turcas e gregas.
(meu pensamento é inconveniente mas ninguém sabe,
escrevo num café, estou, por fora, muito chique no cenário
e nitidamente estrangeira.)
Agora passam dois homens.
Sentam à mesa ao lado.
Falam germânico mas a tradução é da mais alta putaria,
Uma iguaria da mais pura sacanagem!
Eu sei, são gays. Eles não sabem que eu sei.
Pensam que escrevo o abstrato
E capricham descansados ao colo do idioma que não alcanço.
Mas sou poliglota na linguagem dos molhares,
cílios a mais antiga cortina do mais antigo teatro
na pátria universal dos gestos, meu bem!
Eles não escapam.
Um chupa muito o outro, que eu sei,
e o magrinho gosta de dar por cima e de lado.
Importante dizer que dentro desse meu pensamento safado
também não tem pecado.
Só me diverte
Ver o que todos negam,
O que não se diz no social,
Uma radiografia verbal da intimidade alheia é o que faço aqui,
Sem que ninguém suspeite,
Sem ninguém me permitir.
Aquele tem pau pequeno e, pior que isso,
e, mais que suas parceiras, acha isso um problema.
Aquele ali também tem, mas arde na cama e se empenha muito
compensando a diferença.
Aquela, num outro esquema,
diz não gostar da coisa
e fala sem parar.
Só uma pirocada de jeito para fazê-la calar.
A gostosa gordinha engole a espada todinha
daquele altão desajeitado,
cujo grosso membro se torna,
em meio às coxas dela, disfarçado.
E o velhinho punheteiro
De pau mole com jornal no colo?
Talvez seja o único a adivinhar o teor dos meus escritos,
dado que me olha dissimulado e constante
de modo a nunca perder meus segredos de vista.
(Com licença mas é dessa matéria hoje minha poesia)
Enxerida, vejo a mulher com cabelo cortado à la moicano
Com a menina que iniciara a tiracolo,
Feliz sem ser por ela lambida
E sem saber no que estou pensando.
Passam as pessoas
no saguão do aeroporto,
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Elisa Lucinda
fingem que fazem check-in
fingem viajar sérias e de férias,
fingem estar trabalhando...
mentira,
pra mim ta todo mundo trepando!
Frankfurt, 6 junho de 2002
Tatame
Cá estou para uma guerra inesperada
e dificil: lutar contra o meu amor,
o amor que eu sinto.
Puta que pariu!
Civil, despreparada
e desprovida de armas, pareço perder
de cara a empreitada.
Levanto da primeira derrubada
e o bicho já me golpeia certo no
diapasão; justamente o afinador dos fracos,
a bússola sonora
dos instrumentos de canção.
Me emudece, me desafina
ceifa rente meu braço de poema, e,
manca dele, procuro ainda alguma proteção.
Mais um golpe, estou no chão.
O amor caçoa então: quer morrer, danada, não vai lutar não?
Com o bico da chuteira da mágoa
desfiro-lhe dois golpes seguidos no queixo.
O amor ri: não doeu, nem senti!
Irada, engancho minhas pernas em seu
pescoço, tento as tesouras imobilizantes
que copiei das lutas da televisão.
(Que nunca gostei, será que prestei a devida atenção?)
O amor interpreta mal...
Ah, quer me seduzir? Enforcar, que é bom, não?
Eu nada falava, torcia pernas, me esgotava,
fremindo-lhe a cabeça entre as coxas.
Isto pra mim é trepada, boba!
Eu gosto do aperto, do cheiro da roxa
e de te ver roxa.
E gargalhava.
Cansada, humilhada e sem
munição, desmaio e me entrego:
pode me matar, amor
eu estou na sua mão.
O amor me olha de cima então:
querida minha, eis o segredo da esfinge
eis o problema diante da solução:
matar-te é matar-me
e matar-me é matar-te.
Se no chão do amor estava,
nesse chão continuei então.
Deitada sob o amor,
debaixo do amor,
no ringue do amor,
o amor me beijou,
me beijou, me beijou.
9 de Abril de 2005
22
Elisa Lucinda
Mais de Elisa Lucinda:
Quanto Mais Vela Mais Acesa
Um dia quando eu não menstruar mais
vou ter saudade desse bicho sangrador mensal
que inda sou
que mata os homens de mistério
Vou ter saudade desse lindo aparente impropério
desse império de gerações absorvidas
Desse desperdício de vidas
que me escorre agora mês de maio.
Ensaio:
Nesse dia vou querer a vida
com pressa
menos intervalo entre uma frase e outra
menos respiração entre um fato e outro
menos intervalos entre um impulso e outro
menos lacunas entre a ação e sua causa
e se Deus não entender, rezarei:
Menos pausa, meu Deus
menos pausa.
Para um Amor na Rua
Meu amor,
vem pra casa que ouvi dizer
que vai estourar a guerra
Nostradamus previu
Raimunda, nega Raimunda confirmou
Por favor, ponha os pés na terra
Chão firme cama da gente
ouvi dizer que vai estourar a guerra.
Você que é mundano convicto
você que erra
vai argumentar que não há perigo e o escambou
que é apenas o "bicho" internacional.
Vai confundir tudo com show
vai dizer que tem Prince, Rock n'roll
Gun's N'Roses e talvez Gal;
É mau, meu bem
tem também Sadam, Bushes e mesquinharias
Vem pra casa guardar num cofre sua ingenuidade
vem proteger da maldade sua fotografia.
Aqui fiz cuscuz farofa e feijão fraldinho
aqui pintei filosofia, comigo-ninguém-pode
espada de São Jorge, jasmim, arruda, carinho.
Tudo anti-míssil
tudo bruxaria anti-crueldade bélica
Lá fora alguns meninos
querem experimentar a potência
de seus terríveis brinquedos.
23
Elisa Lucinda
Não tenha medo
vem pra casa sem nem telefonar
aqui tem ar, poesia, fé
e tudo que a alegria da alma encerra.
Vem, meu amor
que ouvi dizer que vai estourar a guerra.
Penetração do Poema das Sete Faces
A Carlos Drumond de Andrade
Ele entrou em mim sem cerimônias
Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu
Na primeira fala eu já falava como se fosse meu
O poema só existe quando pode ser do outro
Quando cabe na vida do outro
Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada
Há apenas frases e desabafos pessoais
Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz
A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas
Te amo porque nunca nos vimos
E me impressiono com o estupendo conhecimento
Que temos um do outro
Carlos, me escuta
Você que dizem ter morrido
Me ressuscitou ontem à tarde
A mim a quem chamam viva
Meu coração volta a ser uma remington disposta
Aprendi outra vez com você
A ouvir o barulho das montanhas
A perceber o silêncio dos carros
Ontem decorei um poema seu
Em cinco minutos
Agora dorme, Carlos.
Escolha
Eu te amo como um colibri resistente
incansável beija-flor que sou
batedora renitente de asas
viciada no mel que me dás depois que atravesso o deserto.
Pingas na minha boca umas gotas poucas
do que nem é uma vacina.
Eu uma mulher, uma ave, uma menina^
Assim chacinas o meu tempo de eremita:
quebras a bengala onde me apoiei, rasgas minhas meias
as que vestiram meus pés
quando caminhei as areias.
Eu te amo como quem esquece tudo
diante de um beijo:
as inúmeras horas desbeijadas
os terríveis desabraços
os dolorosos desencaixes
que meu corpo sofreu longe do seu.
Elejo sempre o encontro
24
Elisa Lucinda
Ele é o ponto do crochê.
Penélope invertida
nada começo de novo
nada desmancho
nada volto
Teço um novo tecido de amor eterno
a cada olhar seu de afeto
não ligo para nada que doeu.
Só para o que deixou de doer tenho olhos.
Cega do infortúnio
pesco os peixes dos nossos encaixes
pesco as gozadas
as confissões de amor
as palavras fundas de prazer
as esculturas astecas que nos fixam
na história dos dias
Eu te amo.
De todos os nossos montes
fico com as encostas
De todas as nossas indagações
fico com as respostas
De todas as nossas destilairias
fico com as alegrias
De todos os nossos natais
fico com as bonecas
De todos os nossos cardumes
as moquecas.
Incompreensão dos Mistérios
Saudades de minha mãe.
Sua morte faz um ano e um fato
Essa coisa fez
eu brigar pela primeira vez
com a natureza das coisas:
que desperdício, que descuido
que burrice de Deus!
Não de ela perder a vida
mas a vida de perdê-la.
Olho pra ela e seu retrato.
Nesse dia, Deus deu uma saidinha
e o vice era fraco.
Reconstituição
Tive de repente
saudade da bebida que eu estava bebendo...
tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava,
qual era a bebida...
Fui procurando entre copos e móveis
e dei com sua boca.
A saudade era dela
A bebida era o beijo.
25
Elisa Lucinda
Texto para uma separação
Olhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim...
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu co'a minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?
Um Bonde Chamado seu Beijo
Quem encobrirá meu sono?
Beijará quem minhas costas no cotidiano?
Quem, no meio do frio, me cobrirá com lindas orelhas
e me dirá palavras indecentes nos ouvidos?
Quem, atrevido, me acordará com o ponteiro em riste
como um pássaro que não quer tudo
apenas o céu, a gaiola, o alpiste?
26
Elisa Lucinda
Quem que, quando eu dormisse, por mim zelasse
e eu, quando acordasse, lhe fizesse iogurtes brejeiros
massagens nos pés, cumplicidades de enlace?
Quem me agarrará por trás quando eu sair cheirosa do banho
e terá orgulho de eu ser guerreira e perfumada ao mesmo tempo?
Quem em bom senso dirá que muito me assanho
quem orientará a guerrilha diária a que me proponho
quem será inteligente e gostoso a meu lado como está no meu sonho?
Quem, a quem me disponho a cozinhar e fazer versos
quem racional e perverso cochichará nos tímpanos da minha alma
a doce ordem, a venal palavra: Calma?
Quem com sua alma me mostrará um mar vertical?
Quem, meu igual, me apontará andores reais, sem excesso de glacê no bolo
Com determinação de touro e a nobreza de poder ser banal?
Quem, coisa e tal, me beijará a boca e me enfiará as mãos
por debaixo da barra do segredo do vestido
e um dia passeará comigo no segredo contido na Barra do Jucu?
Quem, senão tu que eu elejo, eu planejo, pode habitar o lugar
a suíte que há tanto tenho reservado?
Quem, encomendado, pode me manter na confiança dos edredons
enquanto não chega?
Quem, com certeza, me visitará num outubourbon no gume da lira
de eu ser égua, cadela, mulher e sua?
Quem sobre mim sua, pinga, chove?
Quem que com lucidez resolve o abismo simples de prever o risco de sonhar
pra nele mesmo cair, rir
e se embolar?
Quem me dará a idéia de conceber a saudade no sentido tático
quem, não estático, de longe me fará cometer poemas de meia-noite?
Quem, sem favor, me estende o braço com rosas na mão
com explicação pro meu calor?
Quem, senão meu doido bondinho
meus olhos acesinhos, meu comedor...
Meu triz, meu risco
meu cristo redentor?
Au Gratin
Fumo um cigarro fino
Como um palito
O calor do Rio é ridículo
Calor de chuva enrustida
Calor do céu oprimido
De inferno mar resolvido
Que não sabe se queima esse cara
Ou o assa ao ponto
Um calor filho da puta
Um calor de estufa
E eu sem nem ser judia
Sofro aos pouquinhos
Sofro esse zé pagodinho
Ardo nesse pecado que não cometi
Nesse forno onde me meti
Por uma apimentada dica
De um nordestino
Que me mostrou uma placa citada, tinhosa:
"CIDADE MARAVILHOSA"
Eu vim.
27
Elisa Lucinda
Dá Licença, Bastiana?
Vim te pedir, mulher
seu filho um pouquinha
seu filho um cadinho
pra brincar comigo.
Ah, Bastiana é só por carinho
que vim te implorar
Juro! Não vou machucar
Ai, Tiana tá danado
Você pode compreender
eu vim pedir emprestado
esse fruto abusado
de sua enorme paixão
Eu não quero ter ele não
Se tiver posso perder
como já perdi a razão.
Eu vim pedir
teu curumim pra mim
por uns tempos longos por dentro
Quero ele só um pouquinho...
O quê?
Ele diz que pra mim não existe pouquinho?
Mas tá mentindo, Tiana,
você sabe, vou devolver...
Quero fazer com ele um filme pra televisão
Quero ir com ele cantar no Canecão
e a gente vira cinema
na cara de toda Nação
Ai, Bastiana, não diga que não!
Se ele chupou seus peitinhos
eu também quero
Lá em casa tem uma rede que é pra ninar ele
Se ele dormiu no seu colo
eu também quero
Ai, Tiana como te venero!
Parece apelação
mas é mais desespero de nega enfeitiçada
que sente no couro
o que é pedir para si
o filho dos outros.
Já sei:
A gente grava junto um disco
só pra tocar na sua vitrola.
No domingo ele ia pra aí
só pra comer do seu pudim
e molhar a boca na sua galinha ensopada
Eu deixava
Cheia de felicidade
Espalhada na cidade, num grande out-door
Pedindo pros deuses pra que falte dor
Ai, Tiana, open the door, por favor!
Eu até prometia:
a netinha, viria linda um dia
se você tivesse a gentilieza
de me emprestar essa represa
que é onde foi dar o meu coração.
28
Elisa Lucinda
Entenda Tiana:
Não quero tua solidão
e tampouco quero a minha
Essa é a situação.
Mas a culpa é sua!
Quem mandou fazer bem feito?
Os olhinhos puxadinhos
a boca, o umbiguinho.
a mão suave de armarinho
a voz e até o carinho.
Podia até ser caprichosa, mulher
sem precisar exagerar
Mas você passou da dose
fez acabamento
e até na pele ton-sur-ton.
Vim pedir teu filho um cadinho
pra brincar comigo até o sol nascer.
Eu vim pedir o seu.
Um dia vão levar o meu
sem nem pedir, sem nada.
Porque a gente é só mesmo mala
dessa tal criação
dessa tal criatura
e não vês a verdura desse meu olhar?
Ai, Tiana, me desculpe, eu vou entrando...
Me desculpe, eu vou levar.
Amanhecimento
De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.
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Elisa Lucinda
O Amor de Dudu nas Águas
Estou virando uma menina
tornada mulherinha
com tanta coleirinha
de maturidade
ainda assim me sinto parida agora
tenra, maçã nova
nova Eva novo pecado.
Tudo gira e eu renasço menina
vestido curto na alma de dentro...
Deixo no mar os velhos adereços
a velha cristaleira, os velhos vícios
as caducas mágoas.
Nasce a mulher-menina de se amar
com água no ventre e no olhar.
Nasce a Doudou das Águas.
©Protegido pela Lei do Direito Autoral
LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam
mantidas.
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Elisa Lucinda

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