Justaposições detetivescas: a propósito da obra de Roberto Bolaño

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Justaposições detetivescas: a propósito da obra de Roberto Bolaño
Resenha
Justaposições detetivescas: a propósito da obra de Roberto Bolaño
André Carneiro Ramos
É curiosa a frequência com que aparece a palavra “detetive” na obra do escritor chileno Roberto
Bolaño. “Detectives” é o nome de um dos contos de Llamadas telefónicas, protagonizado por dois
personagens que reaparecerão em “Carnet de baile”, de Putas asesinas; em vários fragmentos dos
poemas de Tres, o eu lírico de Bolaño sonha que é um detetive velho e doente; e toda uma seção do
livro de poemas Los perros românticos se chama “Detectives”, etc.
Apesar de sua predileção por Sherlock Holmes1, integra essas menções o fato de que, dentre
todos os detetives que desfilam por sua obra, haver um em especial: Abel Romero. Ele aparece
em La literatura nazi em América, Estrella distante, no conto de Putas asesinas intitulado “Joanna
Silvestri”, além de ter uma breve participação em Los detectives salvajes.
Isso revela um “modelo de investigador” que ele buscava desenvolver em suas obras, algo que se
assemelhava aos personagens dos romances policiais americanos, chamados de “gênero negro” e
nos quais a solução do enigma proposto se alcançaria através de uma contundente investigação
dos passos do criminoso; para tanto, o personagem-detetive não se afastaria da violência e um mal
absoluto2 que dali se desprendesse. Isso pode ser verificado num dos fragmentos de Los detectives
salvajes correspondente ao personagem Abel Romero, transformado numa espécie de Caim para,
só assim, conseguir matar o poeta-assassino Carlos Wieder:
De repente alguien, no sé quién, se puso a hablar del mal, del crimen que nos había
cubierto con su enorme ala negra. (…) Entonces le dije lo que me había estado rondando
por la cabeza. Belano, le dije, el meollo de la cuestión es saber si el mal (o el delito o el
crimen o como usted quiera llamarle) es casual o causal. Si es causal, podemos luchar
contra él, es difícil de derrotar pero hay una posibilidad, más o menos como dos
boxeadores del mismo peso. Si es casual, por el contrario, estamos jodidos. Que Dios, si
existe, nos pille confesados. Y a eso se resume todo.3
Todavia, os dois jovens que empreendem a busca pela escritora Cesárea Tinajero – Arturo Belano
e Ulises Lima –, seriam para ele os autênticos detetives, tal como compreendia o sentido do que
seria uma real investigação, o que se aproximaria do próprio ato de escrever.
Agora, igualmente se nota o quanto em La Vie mode d’emploi, um romance, por assim dizer,
enciclopédico, que em sua mescla de personagens reais e fictícios – em que também se visualiza
um pouco de outro livro de Bolaño, La literatura nazi en América – verificamos também crimes
e investigações em evidentes homenagens a Conan Doyle, Agatha Christie, Dashiell Hammett e
Raymond Chandler.
1Na entrevista que concedeu à jornalista Mónica Maristain poucos dias antes de morrer, ao ser perguntado sobre
que personagens da história universal ele gostaria de ter sido, responde: “A Sherlock Holmes. Al capitán Nemo. A
Julien Sorel, nuestro padre (…)”. (BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis: ensayos, artículos y discursos (1998-2003).
Barcelona: Editorial Anagrama, 2004, p. 336).
2Sobre isso, Bolaño afirmaria ainda que em Estrella distante tentou “(...) uma aproximación, muy modesta, al mal
absoluto”. (Idem, 2004, p. 20).
3BOLAÑO, Roberto. Los detectives salvajes. Barcelona: Editorial Anagrama, 1998, p. 397, grifo nosso.
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Nesse caso, os investigadores são ou se convertem em assassinos. Como o personagem Sven
Ericsson, que dedica sua vida e fortuna a buscar por todo mundo a responsável pela morte da
esposa e filho, e que quando finalmente lhe encontra também a assassina; ou Helène BrodinGratiolet, descrita no romance como uma mulher frágil, amedrontada e discreta, mas que a certa
altura mata os assassinos de seu marido, três perigosos bandidos.
Sobre isso destacaremos os capítulos 34 e 50: o primeiro emularia o método de construção de um
romance policial realizado por crianças de treze anos, em que cabem parentescos inesperados,
títulos grandiloquentes e reviravoltas que correspondem ao gênero; já o segundo seria a descrição
mesmo de uma novela policial no estilo de Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie
(chegando a mencioná-la no capítulo), com todos os suspeitos, incluindo a própria vítima, sendo
culpados. Isso tudo, porém, a partir de uma exagerada dose de absurdos propositais.
Portanto, em muitas obras de Bolaño e Perec se chega à conclusão de que todos são culpados por
alguma coisa. Como em Jorge Luis Borges, em que o traidor e o herói seriam os dois lados da
mesma moeda; vemos isso tanto em Bolaño quanto Perec, em seus personagens atuando como
vilões e vítimas. É por essa razão que os mencionados casos de Ericsson, Brodin-Gratiolet ou Romero se
assemelhariam ao de Carlos Wieder: um assassino infame que, todavia (da mesma forma que
os personagens de La literatura nazi en América), teria aptidões poéticas, característica que se
agravaria muito por conta dos predicativos épicos que Bolaño valorizava quando o assunto era a
criação literária.
Precisamente, dois dos romances policiais mais famosos de Agatha Christie são os que têm como
assassino o próprio detetive (DANGY-SCAILLIEREZ, 2002, p.82). A saber: O assassinato de
Roger Ackroyd e O caso dos dez negrinhos. Este é o tipo de escrita policial que agradava Perec, que não
somente pretendia evitar maniqueísmos em sua obra, mostrando que cada possibilidade poderia
ser essencialmente reversível e, portanto, cada personagem que criava era capaz de desenvolver um
interessante conjunto de potencialidades.
Uma das passagens mais divertidas de La Vie mode d´emploi é o engano ao qual se vê submetido
o milionário James Sherwood, que paga uma quantia exorbitante de dinheiro a dois impostores –
duzentos e cinquenta pacotes com duzentas notas de vinte dólares – pelo que ele acreditava ser o
Santo Graal. No romance, a personagem da escritora Ursula Sobieski, que está estudando o caso
para recriá-lo em uma história policial, propõe uma solução surpreendente:
(...) Ursula Sobieski fut plusieurs fois amenée à se demander si Sherwood n´avait
pas, dès le début, deviné qu´il s´agissait d´une mystification: il n´aurait pas payé
pour le vase, mais pour la mise en scène, se laissant appâter, répondant au programme
préparé par le soidisant Shaw avec un mélange adéquat de crédulité, de doute et
d´enthousiasme, et trouvant à ce jeu un dérivatif à sa mélancolie plus efficace encore
que s´il s´était agi d´un vrai trésor. Cette hypothèse est séduisante et correspondrait
assez au caractère de Sherwood, mais Ursula Sobieski n´est pas encore parvenue à
l´étayer solidement. Seul semble lui donner raison le fait que James Sherwood ne souffrit
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apparement pas du tout d´avoir déboursé un million de dollars, chose qui s´explique
peut-être par un fait divers postérieur de deux ans à la conclusion de l´affaire :
l´arrestation, en Argentine, en 1898, d´un réseau de faux-monnyeurs tentant d´écouler
massivement des coupures de vingt dollars.4
Em primeiro lugar, Sobieski pensa que Sherwood para pelo engano da mesma forma que um leitor
por um romance. Assim se estabeleceria um pacto secreto entre os ludibriadores e o ludibriado, em
que a noção de jogo desempenharia um papel fundamental. Por outro lado, o final da história nos
revela que o dinheiro com o qual Sherwood pagou os criminosos era falso. Com isso, regressamos
ao tema do ludibriador-ludibriado, e vice-versa.
Outra curiosidade é o sobrenome da escritora, Sobieski, que advém de um dos personagens do
livro Ubu Rei5, de Alfred Jarry, que tanto Bolaño quanto Perec admiravam. Um escritor que
trabalhava em seus romances soluções imaginárias relacionadas à ciência chamada patafísica6, que
discutia não as regras da vida e do mundo, mas suas exceções. Nesse caso, a solução do enigma na
história não teria tanta importância.
Na realidade, pouco importava a resolução dos crimes, e isso fica nítido através da enorme
quantidade de incógnitas que salpicam as obras de Bolaño e Perec. Nesse caso, o mistério, que
raras vezes se resolve completamente, relativizando sua importância.
Surge assim uma perspectiva repleta de vazios, onde cada vez mais o leitor deve se inserir, objetivando
tentar completá-los. Para Bolaño, o grande detetive é o leitor. Em Los detectives salvajes, o périplo
de Belano e Lima, reconstruído a partir de fragmentos/testemunhos (por vezes contraditórios),
necessitaria por demais da colaboração de um leitor atento para se atingir o efeito esperado.
Se nos lembrarmos do caso Sherwood, então, como uma espécie de metonímia de toda obra
perequiana, evidencia-se a ideia de jogo, aspecto que se relacionaria não somente com francês, mas
também com o chileno, que, inclusive, ao falar sobre Los detectives salvajes declarou: “Creo que mi
novela tiene casi tantas lecturas como voces hay en ella. Se puede leer como una agonía. También se
puede leer como un juego.” (BOLAÑO, 2004, p. 327).
Mas só para um fechamento do raciocínio, Georges Perec, a seu modo também trabalharia essa
temática em seus escritos, e de forma excepcional. Primeiro por ser membro do Oulipo; segundo
por ser um escritor francês que, obviamente, “bebeu na fonte” de Rabelais e Sterne, escritores que
valorizavam a literatura como fruto de uma prática constante, como um trabalho. Ou um jogo.
4PEREC, Georges. La Vie mode d´emploi. Paris: Hachette, 1978, p. 127-8. (Ursula Sobieski foi levada várias vezes a
perguntar a si mesma se Sherwood não havia, desde o princípio, percebido que se tratava de mistificação: pagara não pelo
vaso, mas por toda aquela encenação, deixando-se ludibriar, entrando no enredo preparado pelo suposto Shaw com uma
mescla adequada de credulidade, dúvida e entusiasmo e encontrando nesse jogo um derivativo para a sua melancolia,
ainda mais eficaz do que se se tratasse de tesouro verdadeiro. A hipótese é sedutora e corresponderia bastante ao caráter
de Sherwood, mas Ursula Sobieski na conseguiu ainda estabelecê-la de maneira conclusiva. Parece apoiá-la apenas o fato
de que James Sherwood aparentemente nada sofreu com o desembolso de um milhão de dólares, o que se explica talvez
por uma notícia surgida dois anos após a conclusão do caso: o desbaratamento na Argentina, em 1898, de uma rede de
falsários que tentavam passar maciças quantidades de notas de vinte dólares). Trad. de Ivo Barroso.
5JARRY, Alfred. Ubu Rei. Trad. de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
6Ciência que se expressa quase sempre por meio de uma linguagem aparentemente sem sentido, anárquica, e que
mesmo assim tenta explicar os absurdos existenciais da vida e do mundo explorando o que seus adeptos consideram
“negligenciado” pela física e metafísica; inclusive, a patafísica é o oposto dessa última.
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Referências
BOLAÑO, Roberto. A literatura nazi nas Américas. Trad. de Cristina Rodriguez e Artur
Guerra. Lisboa: Quetzal Editores, 2010.
_______________. Entre paréntesis: ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona:
Editorial Anagrama, 2004.
_______________. Llamadas telefónicas. Barcelona: Editorial Anagrama, 1997.
_______________. Los detectives salvajes. Barcelona: Editorial Anagrama, 1998.
_______________. Los perros románticos. Barcelona: Acantilado, 2006.
_______________. Putas asesinas. Barcelona: Editorial Anagrama, 2001.
_______________. Tres. Barcelona: Acantilado, 2000.
_______________. Tres novelas (Amuleto, Estrella distante, Nocturno de Chile). Barcelona:
Círculo de Lectores, 2003.
DANGY-SCAILLIEREZ, Isabelle. L´énigme criminelle dans les romans de George Perec.
Paris: Champion, 2002.
JARRY, Alfred. Ubu Rei. Trad. de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
PEREC, Georges. La Vie mode d´emploi. Paris: Hachette, 1978.
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