COMPORTAMENTO Tema: Anti-‐heróis Pesquisador: Francis

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COMPORTAMENTO Tema: Anti-‐heróis Pesquisador: Francis
COMPORTAMENTO Tema: Anti-­‐heróis Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse O anti-­‐herói é um tipo de personagem recorrente na literatura e no cinema moderno que não sugere um tipo de modelo de conduta ou de virtude. Seus objetivos são sempre egoístas, pessoais e, se suas atitudes geram algum tipo de justiça, nunca é por motivos estoicos, mas sim levando em conta seus benefícios pessoais. Não é naturalmente mau mesmo que pratique atos condenáveis, também não é essencialmente bom, mesmo que realize algo altruísta. No Brasil, há dois modelos interessantes de anti-­‐herói: o malandro e o personagem de Mário de Andrade, Macunaíma. O programa pretende discutir as variações do anti-­‐herói na ficção brasileira e o modo como esses arquétipos respondem a determinados traços da vida e da cultura no país. Para tanto, os filmes A Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura, Lúcio Flávio -­‐ O Passageiro da Agonia, de Hector Babenco, Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade e Esta Noite Encarnarei em teu Cadáver, de José Mojica Marins, serão modelos a se discutir: o malandro (Macunaíma), o que mistura rebeldia legítima e atitude criminosa (Lúcio Flávio e A Rainha Diaba) e o amoral, ao mesmo tempo anti-­‐hipócrita e francamente monstruoso (Zé do Caixão em Esta Noite...). Apresentação dos filmes e das questões Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (Brasil, 1967), de José Mojica Marins Zé do Caixão é um dos personagens mais paradigmáticos do cinema brasileiro e um dos mais famosos no mundo. A trilogia começa com Meia Noite Levarei a Sua Alma (1963), continua com Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) e termina com o recente A Encarnação do Demônio (2008). A trilogia conta a história de um coveiro cético e cruel que quer encontra a mulher superior para lhe gerar o filho perfeito. Despreza a sociedade pela hipocrisia, covardia, superstição e pela servidão a que muitos homens se submetem. Despreza o mundo. Segundo o crítico português Luis Miguel Oliveira, Zé do Caixão é um personagem de um universo onde as autoridades máximas são “o padre e o doutor”. É um rebelde, ainda que seja cruel e psicótico. É um iconoclasta que destrói símbolos sagrados e segundo o crítico Jairo Ferreira, um anti-­‐
clerical a altura do melhor Buñuel. Em Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver Zé do Caixão sai do hospital (onde foi parar devido ao acidente ocorrido no final de À Meia Noite Levarei a Sua Alma) e volta a buscar a mulher superior para lhe gerar o filho perfeito. Submete, então, as mulheres à torturas físicas e psicológicas, enfrente a polícia, a igreja e a população da cidade. Personagem ambíguo que responde à hipocrisia social não com justiça, mas com o horror e com a maldade sem fim. Macunaíma (Brasil, 1969), de Joaquim Pedro de Andrade Baseado em Macunaíma, de Mário de Andrade, o filme de Joaquim Pedro foi um marco no Cinema Novo, ao inserir o tropicalismo no programa estético do movimento. O personagem “sem nenhum caráter” alguns dizem que a característica do “anti-­‐herói”, mas geralmente se entende, erroneamente, que é um “mau caráter”, quando na verdade isso quer dizer que ele não tem nenhuma característica (de valor, de moral, de etnia) que o define . OU seja: sem compromisso em ser um modelo de correção, de ideal “romântico”. O personagem nasce preto, se torna branco e passa por uma série de situações inusitadas da qual sai sem nenhum compromisso de consumar uma trajetória típica de herói ficcional. No fim de Joaquim Pedro, ele corresponde não só ao modernismo de 1922, mas também ao desbunde do tropicalismo, que, como disse Caetano Veloso em célebre discurso, “entra em todas as estruturas e sai delas fazendo-­‐as explodir por dentro”. É o nosso anti-­‐herói moderno. A Rainha Diaba (Brasil, 1974), de Antonio Carlos Fontoura O personagem da Rainha Diaba foi inspirada no malandro carioca dos anos 30 Madame Satã, negro, capoeirista e homossexual, preso diversas vezes. Como a referência à Madame Satã está na ordem da inspiração não no da biografia, tal como no filme de Karim Ainouz, o filme de Fontoura faz do protagonista um líder do narcotráfico, também negro e homossexual. O personagem que é interpretado por Milton Gonçalves, ao saber que um elemento do seu bando está ameaçado de prisão, fabrica outro bandido, o Bereco, para ser entregue à polícia. Mais tardes seu bando se volta contra ele. O filme trata abertamente da questão da tortura para fazer alusão à ditadura militar em uma época que essa situação era somente sugerida no cinema. 2 Lúcio Flávio -­‐ O Passageiro da Agonia (Brasil, 1977), de Hector Babenco Lúcio Flávio foi assaltante de bancos nos anos 60 que ficou famoso não só por seus assaltos, mas também por suas fugas da polícia. No filme é interpretado por Reginaldo Faria, ator que se notabilizou em outras épocas por interpretar marginais como o bandido romântico em Cidade Ameaçada e o líder de uma quadrilha em Assalto ao trem Pagador, ambos filmes dirigidos por seu irmão Roberto Farias. O filme dirigido por Hector Babenco em 1977 foi um dos maiores sucesso de bilheteria da história do cinema brasileiro atingindo quase seis milhões de espectadores. Transformar o criminoso Lúcio Flávio em anti-­‐herói foi uma questão contingencial e estratégica: uma maneira de se referir à crueldade e aos desmandos da polícia, em especial do grupo de extermínio conhecido como Esquadrão da Morte. Fazer do “marginal um herói” (tal como preconizou Hélio Oiticica), era fazer uma crítica ao sistema, aos poderes e o modo como eles operavam na vida nacional. Material Anexo O ANTI-­‐HERÓI Nem monstros nem heróis! FLAUBERT O herói clássico foi canonizado pela literatura: todas as suas características foram limitadas, celebradas e repetidas com exaustão. Não obstante, com o passar do tempo, essas figuras quase divinas, oriundas da nobreza, sem angústias e com os olhos sempre na coletividade, já não eram representativas. Em novas épocas, passou-­‐se a lançar um olhar diferente para aqueles personagens que não se encaixavam no estereotipado modelo clássico. De fato, a figura do herói e sua representação na literatura não mudaram repentinamente, mas passaram por um processo que refletiu a história da transformação do próprio homem na sociedade. Na Idade Média, por exemplo, o herói já começa a configurarse sob um enfoque diferente do clássico. Isso pode ser observado nas novelas de cavalaria, que são descendentes diretas das chamadas canções de gesta. Trata-­‐se de longas narrativas em prosa, geralmente enaltecendo os feitos e as virtudes de uma personagem principal, um guerreiro que se destaque entre os seus, quer por habilidade com as armas, quer por força física. Em sua 3 essência, são muito semelhantes aos heróis dos antigos poemas épicos da Antiguidade Clássica, entretanto, diferenciando-­‐se pelo seu caráter individualista em contraponto ao coletivo das epopéias gregas e romanas. Enquanto os clássicos encaravam o herói como um ícone da comunidade em que estava inserido, como um representante de todos os ideais e crenças dessa coletividade, os autores dessas canções de gesta já permitiam aos seus heróis alguma fraqueza, ou, pelo menos, alguma diferença na sociedade que o cercava, numa antecipação do que seria o futuro arquétipo do herói romântico, uma personagem que busca valores autênticos e em uma sociedade corrompida. A figura do herói, sob o prisma clássico, vai sendo aos poucos desconstruída, o herói passa a ser inserido no seu próprio tempo. Apesar de ser possível identificar, em períodos remotos, mudanças nos aspectos constitutivos do herói; estas não são efetivamente significativas, pois o herói ainda é amado e louvado pela sociedade embora acalente desejos individualistas. Assim, sua representatividade literária ainda reflete aspectos elitizantes do seu tempo, assim como o herói épico representava a aristocracia dominante. Portanto, em princípio, é na modernidade que se encontra uma expressiva subversão de valores heróicos tradicionais, segundo Köthe (1987, p. 61), “as obras modernas, para poderem ser artisticamente superiores, têm como que uma proibição de heróis positivos e de felicidade.” Nesse ínterim, o percurso do herói moderno é a reversão do percurso do herói antigo. Lukács (2000), em seu livro A teoria do romance, identifica o herói moderno como problemático, portador, dentre outras características, de afirmação da subjetividade, heterogeneidade do mundo, solidão e angústias, isto é, um indivíduo que possui uma identidade fragmentada e vive em permanente confronto com o mundo. O herói da epopéia é substituído pelo “herói problemático”, personagem cuja existência e valores o situam perante questões emergentes das quais ele não é capaz de expressar consciência clara e rigorosa. Assim, pode-­‐se perceber que a inclusão desse herói “problemático” na literatura vem aproximá-­‐lo do real, o que permitiu a sua associação com o cotidiano e, finalmente, seu afastamento da perfeição das figuras míticas. Ele vem, dessa forma, ser fiel à dimensão do humano, mas isso não significa que seja um personagem totalmente imperfeito, para Brombert (2004, p. 19), “esses personagens não são totalmente “fracassos”, nem estão desprovidos de coragem; simplesmente chamam a atenção por suas características ajudarem a subverter, esvaziar e contestar a imagem de ideal.” Essa postura paradoxal, às vezes, provocativa contribuiu para que esses personagens fossem chamados de “anti-­‐herói”. Quanto ao significado da palavra anti-­‐herói (do grego, anti, oposição, contra; heros, chefe, nobre, semideus), convém fazer algumas ressalvas. O sentido 4 do termo, em si mesmo, poderia dar a falsa impressão de que se refere à personagem que, numa ficção, funciona paralelamente ao herói como sua contrapartida, o que seria equivalente a chamá-­‐lo de antagonista. No entanto, quando o anti-­‐herói se instala claramente como eixo estrutural de um texto ficcional, seu sentido anti-­‐heróico não lhe advém de ser a contrapartida de nenhuma outra personagem desse texto. Ele é, na verdade, anti-­‐heróico à luz dos heróis clássicos modelares vigentes. O seu aparecimento resultou da progressiva desmitificação do herói, ou seja, da sua crescente humanização: o homem substitui os seres de eleição, semidivinos, que antes povoavam as tragédias e as epopéias. Por isso sua postura é altamente antitética, Gilda de Mello e Souza (1979, apud González, 1994, p. 98) assim o define: “um vencido-­‐vencedor, que faz da fraqueza a sua força, do medo a sua arma, da astúcia o seu escudo; que, vivendo num mundo hostil, perseguido, escorraçado, às voltas com a adversidade, acaba sempre driblando o infortúnio.” Brombert (2004, p. 13) afirma que apesar de se encontrarem, na literatura de outras épocas, personagens que também assumiam uma postura que subvertia o caráter modelar do herói clássico, esse termo só vai ser posto em circulação por Dostoiévski na parte final de Memórias do Subsolo, em 1864. Essa obra discute, precisamente, a idéia do herói na vida e também na arte. Nesta obra, a subversão deliberada do modelo literário está relacionada com a voz vinda do subsolo para contestar opiniões aceitas. Essa nova imagem do herói (antiherói) configurou-­‐se e avultou na literatura do século XX. É necessário entender o universo anti-­‐heróico, o modus vivendi desse indivíduo, em que momento ele renega as caracteríscas de construção do herói. Será o anti-­‐herói um vilão? Esse termo anti-­‐herói já traz em si conotações pejorativas, mas será que sua representação contestadora é realmente negativa? Atentar para tais questões é de suma importância para se compreender de maneira crítica e coerente os aspectos constitutivos da figura anti-­‐heróica. 2.1. Modos heróicos e anti-­‐heróicos Para compreender os modos anti-­‐heróicos é necessário questionar e reavaliar as tênues linhas que separam o heróico do não-­‐heróico. A questão para Brombert (2004, p. 14) configura-­‐se deste modo: como entender a presença de protagonistas fracos, incompetentes, humilhados, inseguros, ineptos e quase sempre “atacados de envergonhada e paralisante ironia”, mas às vezes capazes de inesperada resistência e firmeza. É exatamente essa estrutura paradoxal, enfatizada por Dostoiévski, que fascina e torna instigante o tema do anti-­‐heroísmo. 5 Esses personagens se contrapõem aos modelos tradicionais de figuras heróicas, essa contraposição lança dúvidas sobre valores que vêm sendo aceitos ou que foram julgados inabaláveis. Sob essa perspectiva, encontra-­‐se o que Brombert (2004, p. 15) classificou como “a principal significação de tais antimodelos, de suas forças secretas e vitórias ocultas”: o anti-­‐
herói é antes de tudo, implícita ou explicitamente, um questionador. Brombert (2004, p.18) enfatiza esse caráter subversivo do anti-­‐herói, afirmando que o herói negativo, muito mais que o tradicional, contesta pressuposições aceitas socialmente, por isso, na maioria das vezes, a sociedade o rejeita. O anti-­‐herói carrega características de um perturbador e de um agitador, seu modo subversivo o coloca à margem, contrariamente ao modelo do herói tradicional que é louvado e aclamado por todos, já que defende interesses de um grupo específico que domina e no qual também está inserido. Nesse contexto, é imperativo lembrar os grandes heróis da Ilíada, que defendiam a aristocracia do seu tempo, sem questioná-­‐la nem se impor contra ela. Ainda, serviam como repressores daqueles que não tinham poder algum, é oportuno resgatar o episódio de Tersites que foi terrivelmente humilhado por Ulisses quando tentava defender os interesses dos soldados cujas condições eram inferiores a dos grandes guerreiros aristocráticos vindos de toda a Grécia. Köthe (1987, p. 16) afirma que “o anti-­‐herói só deixa de ser “herói” por ele não se enquadrar no esquema de valores subjacentes ao ponto de vista narrativo”. Em qualquer época, a contestação de conceitos heróicos comporta implicações éticas e políticas. Desse modo, é praticamente impossível contemplar o tradicional modelo heróico sem que suscitem indagações sobre seus aspectos constitutivos, principalmente, quando se tenta, a partir desse modelo, entender o anti-­‐heroísmo. O heroísmo possui faces de orgulho, de honra, de ação – ainda que suas atitudes sejam questionáveis até monstruosas, estas se sobressaem, uma vez que foi o herói quem praticou. Segundo Köthe (1987, p. 16), “nenhum herói é épico por aquilo que faz; ele só se torna épico pelo modo de ser apresentado aquilo que faz.” Assim, os heróis estavam fadados a ser exemplares mesmo quando ligados a forças tenebrosas e incontroláveis. Esse crescente questionamento é um dos fatores que contribuiu para a aparição de um “herói” que indagasse as características do herói clássico e trouxessem-­‐no para o “subsolo”, do épico para o cotidiano; do semidivino para o indivíduo. Sob uma visão mais específica da análise do anti-­‐herói, Köthe (1987, p. 23) identifica dois tipos: um deles é o oposto ao herói clássico, por apresentar um caráter frágil, conformista. É um personagem dominado pelo meio, pelas circunstâncias e situações vividas, o que o torna incapaz de superar conflitos sociais ou psicológicos. Nesta acepção, é um personagem despido de virtudes, de objetivos nobres, de caráter ou de determinação, quando dele se esperariam 6 tais qualidades. Outra figura do anti-­‐herói corresponde a um indivíduo em ruptura com os padrões morais ou éticos-­‐sociais predominantes de uma época. O sujeito não se adequa aos padrões vigentes na sociedade, vistos por ele como injustos ou hipócritas e, por isso, repousa à margem desta. Por conseguinte, pode-­‐se constatar que são esses os processos fundamentais empregados pelos ficcionistas para marcar o papel do anti-­‐herói: a sondagem irônica e parodística da sociedade que o cerca, como se realizou no romance de Petrônio e, posteriormente, em Cervantes. Outro aspecto que chama a atenção é o modo como são apresentados fisicamente. São amplamente conhecidas as descrições comoventes e carinhosas feitas aos heróis clássicos: belos, fortes, inteligentes, sagazes, bondosos e assim sucessivamente. Desse mesmo modo, a descrição do anti-­‐herói é feita minuciosamente. No entanto, suas características físicas e psicológicas, geralmente, são enfatizadas, com o objetivo de ridicularizar sua figura e, conseqüentemente, suas ações. Eles são apresentados como sendo feios, cheios de defeitos físicos, perturbados, estranhos, enfim, totalmente alheios aos padrões estéticocomportamentais de sua época. Embora suas atitudes e intenções, muitas vezes, pareçam tão nobres e sublimes quanto ao do típico herói exaltado por Homero, elas são sempre narradas sob o prisma da negatividade. Pode-­‐se inferir, com base no que já foi exposto, que o anti-­‐herói não é a imagem pura e simples do fracasso, nem está desprovido de possibilidades heróicas. De fato, ele pode representar outros tipos de coragem, quem sabe mais de acordo com as necessidades apresentadas por um contexto moderno. Nesse ponto, pode-­‐se remeter ao herói de Cervantes, Dom Quixote, cuja figura torna-­‐se cativante quando se reconhece a humanidade presente nela e pela maneira como ajuda “a esvaziar, subverter e contestar uma imagem “ideal” (Brombert, 2004, p. 19). O anti-­‐herói apresenta, portanto, uma fidelidade à dimensão rigorosamente humana. Assim, também porta consigo o cotidiano do indivíduo, no qual se travam as verdadeiras guerras, valorizam-­‐se, desse modo, os conflitos individuais e não mais a coletividade. No contexto da literatura ocidental, é crescente a valorização do anti-­‐herói, justamente porque este é fiel à realidade que o cerca. Esse retrato não mais divinizado é marcado por uma desconfiança das verdadeiras intenções que moviam o herói tradicional e de valores e modelos não mais tidos como relevantes. Para Brombert (2004), é crescente a deconfiança do culto do herói e a denúncia por este alimentar ilusões, desonestidade e inércia moral que advém da confiança depositada em modelos ideais e inimitáveis. Com base nessas indagações, Brombert (2004, p. 20) apresenta uma hipótese: 7 Esta crítica à vicariedade subentende o diagnóstico de um vazio moral [...] Um vazio desse tipo clama por ser preenchido. A lembrança irônica do modelo ausente ou inatingível atua como um lembrete constante e também como um incentivo. A noção mesma do “anti-­‐herói” depende de tal lembrança. Herbert Lindenberget (1964, p. 47) afirmou-­‐o quando observou que o anti-­‐herói só é possível numa tradição “que já representou heróis reais”. A razão é que tal lembrança atua como bem mais do que um contraste; sugere um anseio, talvez até uma busca. Numa época de ceticismo e fé definhante, época marcada pela consciência difusa de perda e desordem, a intencional subversão da tradição heróica pode indicar uma iniciativa de recuperar ou reinventar significação... algumas das obras mais características escritas em oposição a modelos heróicos tradicionais podem perfeitamente refletir um impulso moral e espiritual, assim como uma tentativa de ajustar-­‐se responsavelmente a novos contextos. O anti-­‐herói vem revestido, portanto, de algumas das tensões inquietantes do espírito humano: conflitos entre valores individuais e coletivos, descontinuidades temáticas e históricas, resistência ao conformismo, questionamentos radicais da autoridade, intentos de novas atribuições de autoridade e também a subversão delas. Destarte, a presença desse herói contraditório não é gratuita, seja qual for o seu aspecto representativo, ele sempre surge para questionar, satirizar, denunciar, criticar algum aspecto da sociedade – sua aparição faz brotar das mentes mais simples um pensamento crítico que instiga e induz à reflexão. Contestam a pertinência de postulados transmitidos de uma geração para a outra, induzem o leitor a reexaminar categorias morais e ocupam-­‐se, muitas vezes de maneira desconcertante, da sobrevivência de valores. Força que assume a forma de fraqueza, deficiência traduzida em força, dignidade e vitórias ocultas conseguidas por meio do que pode parecer perda de dignidade, a coragem do fracasso vivido como a afirmação de honestidade fundamental. (Brombert, 2004, 20,21) Percebe-­‐se que a figura do anti-­‐herói, aparentemente, é mais significativa e profícua que a do herói tradicional, conquanto apresente corajosa lucidez e fidelidade ao aspecto estritamente 8 humano. Por isso, principalmente na modernidade, há uma certa hostilidade ao heróico, uma vez que o conceito de herói traria lições de falsa liberdade e perigosos modelos na história. Insistindo em que o heroísmo não é, afinal, um valor supremo, desconfiando de atitudes heróicas e retórica heróica. Pode-­‐se verificar, então, que o anti-­‐herói surgiu para contestar padrões preestabelecidos e postos como verdade absoluta pelo herói. Nisto reside a notoriedade do nãoheróico, a crítica que pode ser suscitada em qualquer tempo, em qualquer contexto históricosocial. Entende-­‐se, portanto, que o advento dessa figura contestadora não está apenas nas obras consideradas modernas; sob essa perspectiva o objeto de estudo desta pesquisa são obras que de forma inovadora já apresentavam personagens avessos ao modelo heróico: Satyricon de Petrônio e Dom Quixote de Cervantes. Porém, ainda falta preencher uma lacuna no que diz respeito a uma das primeiras formas de representação do modo anti-­‐heróico. Essa postura perturbadora é claramente indentificada no protagonista das novelas picarescas; é o germe do anti-­‐herói na figura do Pícaro. Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967), de José Mojica Marins IMAGENS QUE FICAM: JOSÉ MOJICA E O CINEMA FANTÁSTICO Há uma noção divulgada popularmente de que a obra de José Mojica Marins atende pela palavra trash, no sentido de “mal-­‐feito” e de “mau-­‐gosto”. Os filmes do mito Zé do Caixão, no entanto, superam facilmente esse tipo de interpretação para ocupar, de fato, um lugar especial no cinema de gênero “horror”. Seus filmes são uma anomalia e tanto na produção mundial, e mais ainda na brasileira, terreno notoriamente infértil para esse tipo de cinema. Começando precisamente onde À meia noite levarei sua alma(1964) terminou, Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) revela-­‐se um dos mais sólidos exercícios em cinema, seja na já rica obra de Mojica Marins, seja na filmografia completa do cinema brasileiro. Alguns poderão mencionar atuações mecânicas e recursos limitados de produção, critérios questionáveis que podem datar um filme que extrapola a própria época em que foi produzido, mas que aponta para uma noção atemporal de cinema. Os mesmos poderão concordar que estamos diante de uma coleção de imagens potentes que parecem se instalar no espectador, talvez o grande feito do cinema de horror, quem sabe do cinema como um todo. A mistura 9 cultural que faz do Brasil terra árida para o gênero fantástico parece ganhar em Esta noite encarnarei no teu cadáver um ato de vingança desse cineasta visionário. O estilo de Mojica, que parece estar filmando seus pesadelos pessoais e compartilhando-­‐os conosco, ganha nessas imagens uma interpretação para a simples história do contraditório Zé do Caixão, assassino sádico e cético que odeia a raça humana – “mesquinha e sanguinária” –, mas que é um profundo admirador das crianças, salvo pelo fato de que um dia crescerão. Também peculiar é a sua relação com as mulheres, pois busca uma, em especial, que possa dar continuidade à sua herança. Curiosamente, a escolhida passa não apenas a sensação de que será a perfeita fêmea reprodutora, mas também uma companheira com quem ele poderá compartilhar sua visão anormal de mundo, um pouco como alguém que será capaz de entender o artista e sua obra. Para as outras mulheres, Zé lhes reserva aranhas e cobras, com algumas gotas de ácido concentrado no rosto como bônus. Filmando de forma a sempre deixar claro o tamanho do seu ego, a presença de Mojica em seus filmes (incluindo o recente Encarnação do demônio, a sequência deste) é magnética, um Marquês de Sade muito brasileiro, carismático, que gera desconforto isoladamente, ou por acúmulo de barbaridades. De qualquer forma, esse acúmulo não acrescentaria muita coisa se não percebêssemos uma visão singular criando tudo, algo comprovado por uma das sequências mais interessantes do cinema brasileiro, quando o filme abandona o preto-­‐e-­‐branco para chegar às cores de um inferno que não é quente, mas glacial. É uma sequência que eleva ainda mais o nível geral do filme, composto por ideias muito bem articuladas por Mojica Marins a partir de uma obra de qualidades raras no Brasil: o entretenimento autoral. Kléber Mendonça Catálogo da Programadora Brasil Disponível em: http://www.programadorabrasil.org.br/programa/117/ Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver Uma boa análise sobre o cinema de José Mojica Marins pode começar pela constatação fácil: em uma cinematografia sempre dependente de informações externas como a brasileira, Mojica foi dos poucos realizadores originais. Diferente de seus contemporâneos, além do alto nível de criatividade, o ator/diretor transpôs outra idiossincrasia: a de rechear os filmes com a crônica local, tornando-­‐os escravos da complacência etnocêntrica para melhor apreço. Em Mojica, o meio é indiferente: a vila, os 10 hábitos e a persona de Josefel Zanatas poderiam estar em diversos outros lugares do mundo, sem prejuízos para a história. Essa originalidade e universalidade talvez se expliquem em um contexto maior: o de alguns paulistanos, principalmente dos mais atávicos como Mojica, que, em contraposição à maioria dos nacionais, guardam sua brasilidade como acidental ou circunstancial. Não à toa, foi em São Paulo que o cinema brasileiro encontrou a base de uma modesta indústria – e, onde, no final das contas, se produziu a maior parte dos filmes que ainda hoje merecem nossa atenção. Original, universal, Mojica significa parte deste contexto amplo e cosmopolita que foi a criação paulista dos anos 1960 e 70. Quando fez "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver"(1966) – seu melhor filme, melhor até do que "Ritual dos Sádicos"(1969), que lhe custou parte da vida –, Mojica já era um nome famoso para os espectadores, muito por conta de aparições na imprensa sensacionalista e principalmente pelo sucesso estrondoso de "À Meia-­‐Noite Levarei Sua Alma" (1964). Assim, os produtores Augusto Pereira e Antônio Fracari não pouparam esforços para levantar fundos que viabilizassem a nova produção. Mojica nem precisava de rios de dinheiro, mas o mínimo oferecido representava o suficiente para que o diretor trabalhasse com maior liberdade, e colocasse em prática idéias impossíveis no primeiro filme da trilogia. A mais ousada foi reproduzir um inferno gelado, onde Zé do Caixão agoniza durante um pesadelo que o próprio Mojica tivera anos antes. Outra idéia – misógina, porém fascinante – envolve a tortura das “pretendentes” de Zé do Caixão – alunas do seu curso de arte dramática, que foram submetidas a aranhas e cobras passeando por babydolls, seios e coxas em frêmito. Uma delas, a ex-­‐miss Tânia Mendonça, quase morreu de verdade enforcada pela jibóia, enquanto rogava a praga que atormenta Zé pelo resto do filme. A busca pela sofisticação de "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" em relação ao filme anterior incluiu até uma revisão dos diálogos, a cargo da escritora Aldenoura de Sá Porto, e a adaptação de uma sinagoga abandonada, onde 95% das cenas foram rodadas, inclusive o pântano apavorante onde Zé persegue e é perseguido. Conta a lenda que Carlos Reichenbach, Jairo Ferreira e Rogério Sganzerla ficaram embasbacados ao visitarem o set e descobrirem que aquele pântano nada mais era do que uma poça d’água no quintal da sinagoga, coberta de folhas e galhos de árvores achados nas ruas do Brás. Fosse apenas pelos desvarios técnicos, o filme não teria sobrevivido tão bem. À liberdade da mise-­‐en-­‐scène junta-­‐se a força do protagonista, seu discurso gauche sobre o atraso e a crendice dos moradores do vilarejo, e sua obsessão eugenista por gerar “o filho perfeito”. 11 Zé do Caixão, mais uma vez, nada tem de sobrenatural: provoca ódio na população porque guarda a arrogância de se julgar intelectualmente livre, e todas as atenuantes moralistas que reduzem essa certeza – inclusive o pesadelo do inferno – apenas reiteram ao espectador que Zé mete medo por ser um revolucionário. Levando-­‐o ao divã, concluímos que ele não crê, e justifica sua progressiva psicopatia com a certeza de que tudo pode se não existe Deus – sem Deus, extingue-­‐se a culpa. Os velhinhos da censura, claro, só liberaram o filme com o adendo de uma manipulação moralista, católica; desfeita agora, quarenta anos depois, com a refilmagem da cena final em "Encarnação do Demônio". Mojica pode ter esperado bastante para ver Josefel Zanatas livre, mas no meio tempo fez "Ritual dos Sádicos", "Perversão" e uma meia-­‐dúzia de obras-­‐primas tão ou mais subversivas que seu personagem-­‐símbolo. Vigiado pelo governo militar e pela mediocridade nacional, acabou instalando-­‐se em um limbo pitoresco, chegando ao futuro como todos os verdadeiros heróis da cultura pop: eterno, mas parodiando a si mesmo para sobreviver. (in Zingu! #25, Outubro de 2008) Andrea Ormond Estranho Encontro Disponível em: http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2008/10/esta-­‐noite-­‐encarnarei-­‐no-­‐
teu-­‐cadver.html Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver Após inúmeros insucessos e dificuldades para realização de seus projetos, José Mojica Marins permanece obcecado pelo cinema. Em uma noite, como outra qualquer para os mortais, ele tem uma visão que mudaria para sempre a sua vida e dos apreciadores do gênero terror: é de um pesadelo sobre a própria morte que surge o coveiro Zé do Caixão, uma estranha figura que nasce sob a égide da provocação. Mojica fica tão perturbado que escreve as linhas gerais de seu novo projeto em menos de um dia. A sua idéia não é compreendida pelos seus alunos de interpretação nem mesmo por seus parceiros profissionais. Porém, remar contra a maré sempre foi o lema que norteou o caminho do realizador. E, aos poucos, consegue fascinar os incrédulos com sua pulsão por dirigir e transformar em película seus sonhos. Para custear "À Meia-­‐Noite Levarei Sua Alma", ele só não entrega mesmo a alma ao diabo. É obrigado a arrecadar dinheiro de todas as formas: vende cotas de participação na bilheteria que chegavam a 300%; manda sua mulher voltar a morar com os pais para não pagar mais aluguel e vender todo seus móveis, entre inúmeras outras peripécias. Ainda assim não 12 consegue toda a verba necessária e tem que vender todos direitos do filme para um empreendedor, mesmo sabendo que cometia um crime com sua criação. Resultado: "À Meia-­‐
Noite Levarei Sua Alma" é um sucesso de público e todos ganham dinheiro, menos Mojica. Mas para ele o principal objetivo foi alcançado e começa, finalmente, a alçar vôos maiores. O realizador consegue financiamento de forma mais fácil para continuar a saga de Zé do Caixão em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) e a expectativa é grande para que consiga realizar um filme à altura da obra-­‐prima anterior -­‐ um longa precursor, original e inventivo. Entretanto, diferente do que pensam seus detratores, Mojica sabe muito bem o que quer e, se nunca estudou teoria cinematográfica, compensa isso com sua vontade de realizar e seguir seu instinto. Além, claro, de jamais ter esquecido os filmes e as histórias em quadrinhos que povoaram sua infância. É dessa formação autodidata que José Mojica Marins molda seu cinema, distante de tudo realizado na década de 60, até então, no Brasil. Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver tem início no exato ponto em que termina "À Meia-­‐
Noite Levarei Sua Alma", incluindo um letreiro explicativo. Ou seja, Zé do Caixão está aparentemente morto sob olhos incrédulos dos moradores de uma cidade do interior de São Paulo. A inventividade já surge nos créditos estilizados de apresentação dos atores mesclados a cortes bruscos e o ritmo sendo transmitido pela música: como um super-­‐herói da Marvel, a história é contada em rápidas passagens, inclusive o julgamento de Zé, no qual é absolvido por falta de provas conclusivas. Essa abertura é a reafirmação de que havia nascido um personagem mitológico no cinema brasileiro. Um plano geral da cidade, que nunca é identificada, apresenta os pacatos moradores em uma fuga repentina: a presença de Zé do Caixão é pressentida e temida por eles. Ao avistá-­‐los com medo, o coveiro profere mais uma de suas interessantes reflexões repletas de ceticismo e niilismo. Alguns estudiosos aproximaram Zé do Caixão de Zaratustra, personagem de um famoso livro do filósofo Nietszche. E a intensidade de seus monólogos se interliga diretamente ao bardo inglês William Shakeaspeare. É impressionante a força de suas palavras em cena, sobretudo, com relação a sua cáustica análise a religião: "não tenho descrença, já que nunca tive crença. Crer em quê? Num símbolo? É ignorância do povo". Já com as bases acertadas na construção de seu personagem, Mojica elabora ainda mais a narrativa em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Zé do Caixão agora tem um assistente, o corcunda e asqueroso Bruno, que ajuda a capturar diversas mulheres para descobrir a ideal e que pode lhe render a continuação de sua espécie superior com o filho perfeito. A concepção dos planos segue a cartilha de quadrinhos, terror e cinema mudo. Há uma variação entre planos médios e closes para capturar as reações das personagens. Nesse entrecho inicial do 13 casarão de Zé, o cineasta se filia a estética dos clássicos da Hammer e a câmara de torturas remete a Frankenstein e o abominável Dr. Phibes, personagem clássico interpretado por Vincent Price. O esmero nos detalhes de composição, mesmo com baixo orçamento, são contrários às críticas de que seu cinema é pautado pelo tosco. Ainda hoje, as cenas causam um efeito real de medo em uma atmosfera lúgubre reforçada por uma fotografia expressionista. Mojica vai sofisticando cada vez mais a sua narração e sem promover quaisquer concessões. Finalmente, está livre de amarras dos ditames comerciais e pode levar até às últimas conseqüências o seu cinema. A construção climática é toda realizada através de sons da natureza e de uma trilha sonora instigante; forma-­‐se uma relação simbiótica entre câmera e personagem, que faz do espectador um voyeur privilegiado das ações de Zé do Caixão. É um estranho fascínio que ele desperta nas mulheres e, por conseguinte, na audiência. Planos antológicos se sucedem, entre eles, o alçapão com as mulheres rejeitadas sendo invadido por cobras enquanto Zé faz sexo com a escolhida. A tomada no espelho de uma conversa entre irmão e irmã desloca a perspectiva. E existe a repetição do plano-­‐detalhe do olho em que Jozefel Zanatas (satanás ao contrário) se transforma em Zé do Caixão e é capaz de cometer atos inomináveis, mantendo a postura irônica com relação aos seres inferiores. A tão questionada interpretação de Mojica torna crível toda a ação: o seu sentimento com relação ao personagem é tão verdadeiro que o diferencia de tantos outros risíveis do gênero terror. Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver se transforma mesmo em uma obra-­‐prima na descida ao inferno de Zé do Caixão, que transfere para a tela o pesadelo que gerou tudo. O filme é rodado em preto e branco e há um fade black após a entrada do coveiro em uma tumba. O inferno surge colorido com uma direção de arte inventiva e uma estilização particular que revela o olhar cinematográfico único de Mojica: a construção estética é toda calcada por imagens em choque, como a ambientação gélida e de fogo, realçadas por cores quentes e cinzentas. Zé do Caixão reafirma-­‐se como o profeta terceiro mundista e brada: "eu sou eterno. Nunca serei torturado! Sou a salvação da raça". A obra de José Mojica Marins está à frente de seu tempo. Ele afasta-­‐se do pensamento hipócrita burguês e questiona, com propriedade, o misticismo e a crença em símbolos enquanto o inferno está nas ruas. A sua filmografia é inventiva, marginal e, sobretudo, brasileira. Zé do Caixão é o anti-­‐herói brasileiro; uma lenda do cinema. Leonardo Luiz Ferreira Almanaque Virtual (07 de julho de 2008) Disponível em: http://almanaquevirtual.uol.com.br/ler.php?id=15039&tipo=23&tipo2=almanaque&cot=1 14 Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, como se sabe, é uma continuação de À Meia-­‐noite Levarei Sua Alma e se inicia no momento em que terminava o filme anterior -­‐ descobrimos então que Zé do Caixão sobreviveu sem seqüelas à noite de delírios que havia passado. Ainda e sempre obcecado com a idéia de ter a continuidade do seu sangue garantida por um herdeiro parido pela sua sonhada "mulher ideal", ele volta a aprontar das suas na cidadezinha em que mora. E Zé do Caixão é mau feito um pica-­‐pau. Percebe-­‐se de imediato a elaboração maior da história que se conta, na comparação com o filme anterior, até porque o personagem já era conhecido do público e agora estava sendo melhor trabalhado -­‐ tem-­‐se aqui um enredo mais complicado, até um pouco mirabolante, com tramas e reviravoltas diversas (ao contrário do enredo do primeiro filme, cuja simplicidade extrema tornava o resultado ainda mais impressionante). Da mesma forma, o personagem ganha maior desenvolvimento -­‐ se antes era apenas um sujeito super-­‐forte, amoral e violento, caracterizado pelo desprezo que nutre pelos seus pares e pelos costumes sociais, aqui se delineia mais claramente sua obsessão pelo filho perfeito e pela mulher ideal, assim como o sadismo da sua personalidade. Se em À Meia-­‐noite... Josefel Zanatas chocava ao comer carne em dia santo, agora ele é capaz de soltar aranhas e cobras em cima de garotas indefesas e medrosas. Se da outra vez parecia agir impulsivamente, agora parece planejar cada passo -­‐ como personagem de filme de terror, Zé do Caixão se sofistica bastante. Não está mais constantemente preocupado em dar demonstrações de desprezo pelas crendices alheias, como ocorria no caso citado da carne em dia santo -­‐ seu único interesse agora é o herdeiro perfeito. Este é o charme de Esta Noite.... Tendo obtido sucesso com o filme de apresentação do personagem, Mojica arriscou um pouco mais de recursos para fazer um filme que difere do outro na variedade de situações e climas que cria, sendo muito mais narrativo e menos discursivo. Violento, arrogante, debochado, pedante, cruel, calculista, Zé do Caixão foi bem definido por um outro cineasta -­‐ um retrato brasileiro, uma figura recalcada e boçal. É uma exorcização de demônios internos, como cabe a bons personagens de terror, é um personagem que, impaciente com as falhas alheias, volta e meia parece dizer tudo aquilo que precisa ser dito -­‐ para logo em seguida se mostrar um boçal que se crê onipotente. Mojica criou um personagem fabuloso para filmes de terror: um cara malvado que se veste de um jeito esquisito! E os diálogos, bem, os diálogos... Se a composição do personagem indica o parentesco com uma interpretação circense, algo espetacular, e as atmosferas mostram a 15 filiação à narrativa do cinema de horror, são os diálogos, divertidamente bizarros, que trazem o tom de exagero debochado que faz a delícia do filme. Exagero debochado que entra no filme até por meios grosseiros: como se sabe, a censura da época exigiu que os últimos instantes do filme fossem mudados, acrescentando um arrependimento tardio ao final de Zé. Pois bem, esta grosseira oficial, que foi realizada apenas na parte de som do filme, é tão grotesca que parece paródica. Como em outros casos de censura, o feitiço volta contra o feiticeiro, e o arrependimento de Zé do Caixão parece debochar ainda mais da crendice religiosa. A cópia que está sendo distribuída em DVD e vídeo pela Cinemagia, se não tem imagem e som perfeitos (por origem e conservação das matrizes), mantém muito bem a dignidade do filme. Que não se espere muito, no entanto, da trilha de comentários -­‐ é melhor se poupar das histórias intermináveis que são contadas sobre Nádia Tell e das críticas até deselegantes (mesmo que justas) ao seu trabalho. O filme sobrevive a isso, fácil fácil. Daniel Caetano Contracampo -­‐ revista de cinema Disponível em: http://www.contracampo.com.br/46/estanoite.htm Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade MACUNAÍMA (JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE, 1969) Joaquim Pedro de Andrade (1932-­‐1988) foi um dos mais destacados representantes do chamado Cinema Novo brasileiro. O Cinema Novo, cujas primeiras obras remontam ao final dos anos 50, assumiu-­‐se como um movimento estético, cultural e político que procurou mudar as concepções da produção cinematográfica brasileira, até então completamente dependente da padronização estilística e temática da indústria norte-­‐americana. A frase «Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça», pronunciada por Glauber Rocha, um dos ícones do movimento, tornou-­‐se o lema de um conjunto de cineastas, como Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Roberto Santos, empenhados em construir um cinema crítico, com preocupações sociais e, acima de tudo, enraizado na cultura brasileira. Joaquim Pedro de Andrade é, porventura, um dos autores mais fiéis aos princípios do Cinema Novo. O seu cinema é eminentemente nacional-­‐popular, na medida em que nunca perdeu de vista a preocupação inicial de manter sempre vivo o diálogo com o público, usando símbolos da cultura popular brasileira sem, contudo, abdicar das marcas distintas de um cinema de autor. 16 Na obra cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade sente-­‐se uma pulsação comum, a marca da identidade cultural do povo brasileiro. Mas não se trata de uma busca de identidade, tema recorrente no cinema brasileiro, antes uma revelação dessa mesma identidade. Joaquim Pedro de Andrade move-­‐se de um tema para outro sem nunca abandonar os espaços culturais, históricos, políticos, eróticos e geográficos do Brasil. Ao abordar géneros tão diversos como o drama romântico rural em O Padre e a Moça (1965), o teatro histórico brechtiano em Os Inconfidentes (1972), a comédia burguesa em Guerra Conjugal (1975), a fantasia pornográfica em Vereda Tropical (1977), Joaquim Pedro nunca afasta o olhar da realidade psicológica, social e política do seu país. Mas é com Macunaíma (1969), uma rapsódia da psique brasileira construída com as cores vivas de uma representação que alia a chanchada ao teatro, o circo ao cinema, que Joaquim Pedro de Andrade se aproxima definitivamente do público, do gosto popular, e inaugura um estilo próprio que atravessará toda a sua obra, descrevendo com humor e inteligência o carácter do povo brasileiro. Macunaíma transporta para a linguagem cinematográfica uma das obras literárias mais significativas para a compreensão da cultura brasileira, o romance modernista de Mário de Andrade, Macunaíma, O Herói Sem Nenhum Caráter, publicado em 1928. O livro é constituído pelo encontro de mitos e lendas indígenas (sobretudo as amazónicas, recolhidas pelo antropólogo alemão Theodor Koch-­‐Grünberg nos finais do séc. XIX e publicadas na obra monumental Vom Roroima zum Orinoco, entre 1916 e 1924) com registos da vida brasileira quotidiana, misturando superstições, frases feitas, provérbios e tradições populares recolhidas pelo próprio Mário de Andrade. Mário de Andrade escreveu o livro em quinze dias, no final de 1926, durante umas férias numa fazenda da família, em Araraquara, interior de São Paulo. Em 1928, ao ser lançada a primeira edição, Macunaíma recebe a classificação de «história». Ao publicar o capítulo VII com o título de «Macunaíma», no Diário Nacional de São Paulo em 14 de Julho de 1928, Mário de Andrade usa a classificação «romance folclórico». Só na segunda edição, saída em 1937, o autor resolveu chamá-­‐la de «rapsódia», mais de acordo com a variedade de motivos populares que encerra. Rapsódia é a maneira de cantar dos rapsodos gregos. São também rapsódias os antigos romances versificados e musicados, as canções de gesta de Rolando e, actualmente, as gestas de cangaceiros, entoadas nas feiras do Nordeste brasileiro pelos cantadores. Daí a aproximação com as epopeias medievais. O filme narra a trajectória atribulada de Macunaíma que deixa a selva onde nasceu e para ela retorna após experimentar uma tumultuosa aventura na cidade. 17 As sequências do filme podem ser agrupadas em três grandes blocos narrativos que acompanham o nascimento e a infância do protagonista, a vida na grande cidade e o regresso ao mato. Macunaíma nasce «preto retinto e filho do medo da noite», numa maloca pobre, construída com folhas de bananeira e terra, num lugar chamado Pai da Tocandeira, Brasil. A mãe é que lhe dá o nome, profetizando a sua má sina. «Fica sendo Macunaíma. Nome que começa por má tem má sina». Passa seis anos sem falar, por pura preguiça, e só anda quando ouve o som do dinheiro. Passa o tempo comendo terra, observando o trabalho dos outros, nadando com a famíla no rio e brincando no mato com Sofará, companheira do irmão. Após a morte da mãe, Macunaíma parte para a cidade na companhia dos seus dois irmãos, Maanape e Jiguê. No caminho encontram uma fonte e Macunaíma transforma-­‐se num homem branco ao beber de suas águas. Na cidade, Macunaíma vive incríveis aventuras. Conhece vigaristas, vadios, mendigos e prostitutas. Envolve-­‐se com Ci, uma guerrilheira urbana, ninfomaníaca e apaixonada por dinheiro, com quem tem um filho preto. Após a morte de Ci e do filho, perde o rumo e vê-­‐se obrigado a enfrentar gigante Venceslau Pietro Pietra, o vilão milionário, para reconquistar o Muiraquitã, a pedra talismã que herdara de Ci. Reconquistada a pedra, Macunaíma retorna ao mato carregado de electrodomésticos, inúteis troféus da civilização, mas na terra onde nasceu espera-­‐o um fim triste, tão antropofágico quanto a sua própria vida. Obra ambiciosa, Macunaíma procura reflectir alguns dos elementos formativos da cultura brasileira, como a mestiçagem, a negação da identidade e o diálogo e o conflito entre culturas, que dão corpo à obra homónima de Mário de Andrade. O filme não é uma versão literal do livro, mas uma releitura, à luz do contexto da sociedade brasileira dos finais dos anos sessenta, de muitos dos aspectos abordados pelo modernista Oswald de Andrade no seu Manifesto Antropófago (1928). Com efeito, as grandes transformações económicas, políticas e culturais que então ocorriam no Brasil, resultantes do aumento da dependência externa, do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, do surgimento do tropicalismo ou das tendências mais populares da produção posterior ao Cinema Novo influenciaram de forma marcante tanto o seu discurso como a sua linguagem. No dizer de Joaquim Pedro de Andrade, na sociedade brasileira e na sociedade latino-­‐
americana em geral «os homens se devoram uns aos outros. Macunaíma trata dessa realidade antropofágica através de um personagem irreverente, que rompe com nossa coerção educativa.» 18 «A antropofagia é uma forma de consumo que os subdesenvolvidos usaram de maneira exemplar. Os índios brasileiros, notadamente, logo ao serem descobertos pelos nossos primeiros colonizadores, tiveram a felicidade de escolher o bispo português D. Pero Fernandes Sardinha, para comê-­‐lo em ato memorável. Não foi a toa portanto que os modernistas de 22 dataram o seu manifesto antropófago: ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha.» «Todo consumo é redutível, em última análise, ao canibalismo. As relações de trabalho, como as relações entre as pessoas, as relações sociais, políticas e econômicas, são ainda basicamente antropofágicas. Quem pode come o outro, por interposto produto ou diretamente, como nas relações sexuais. A antropofagia se institucionaliza e se disfarça. Os novos heróis, à procura da consciência coletiva, partem para devorar quem nos devora, mas são fracos ainda.» «Mais numerosamente, o Brasil, enquanto isso, devora os brasileiros. Macunaíma é a história de um herói brasileiro que foi comido pelo Brasil.» «Macunaíma é um encontro latino-­‐americano, o descobrimento de fronteiras ideológicas mais amplas. É um filme que encontra a América Latina em todos os sentidos, em uma busca nacional. [...] Outra coisa importante: a representação da antropofagia. Vemos que as coisas não mudaram desde a colonização, quando os índios comeram os portugueses... Como somos fracos, ainda, nossa única defesa é a antropofagia. Modernizada se assim se quiser, mas a relação entre os homens é ainda antropofágica. O filme não é de modo algum simbólico, seria um tratamento fraco. Quis mostrar que aqueles personagens da lenda se repetem, são representativos, de certos povos, da América Latina, do Terceiro Mundo. O que existe sim, é uma exacerbação de elementos que vem a ser reveladora.» Macunaíma foi lançado em plena época da ditadura militar, enfrentando grandes dificuldades devido a problemas com a censura. O censor que avaliou o filme admitiu desconhecer o livro de Mário de Andrade. No entanto, acabou por sugerir 15 cortes, incluindo todas as cenas de nudez protagonizadas por Dina Sfat (a guerrilheira Ci), o texto «muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são», as cenas em que aparece nas vestes de Joana Fomm (Sofara) o símbolo da Aliança para o Progresso, organização norte-­‐americana odiada pelos militares, e a sequência memorável na qual Macunaíma propõe a uma das suas namoradas «juntar pêlo com pêlo para cobrir o pelado», que não passa de um bem-­‐humorado convite à fornicação. Após um processo atribulado que envolveu conversações com o Chefe da Polícia Federal, então superior ao Chefe da Censura, uma sessão privada para a mulher do Chefe da Polícia e um grupo de amigas e uma chamada de atenção para a crítica internacional, o número de cortes foi reduzido para três. 19 A versão censurada de Macunaíma foi lançada no Rio de Janeiro a 3 de Setembro de 1969. No ano seguinte, foi distribuída em França por Claude Lelouch, com o slogan «Um filme estúpido e cruel». Ganhou o Grande Condor de Ouro, o prémio para Melhor Filme no Festival de Mar del Plata, na Argentina, e foi aclamado pela crítica no Festival de Veneza. No Brasil, recebeu o prémio Golfinho de Ouro do Conselho do Museu da Imagem e do Som e tornou-­‐se um enorme sucesso de bilheteiras. Eugénio Vital O Lugar do Sangue Disponível em: http://olugardosangue.blogspot.com.br/2008/05/macunama-­‐joaquim-­‐pedro-­‐
de-­‐andrade-­‐1969.html Macunaíma, Maria, era como eu brasileiro Em 1928, Mário de Andrade, tendo conhecido o estudo de Koch-­‐Grünberg sobre folclore ameríndio, escreveu Macunaíma o herói sem nenhum caráter, quase que uma adaptação do conjunto de lendas populares compiladas pelo alemão – o autor mesmo considerava a obra uma rapsódia. Era uma época de transição, em que a geração dos modernos tentava se libertar do padrão europeu de cultura buscando resgatar o próprio da terra, de modo que fosse possível chegar até uma identidade nacional, uma brasilidade. 41 anos depois, Joaquim Pedro de Andrade adaptou a obra andradiana para o cinema e foi esse filme, Macunaíma, que hoje, mais de 30 anos passados, ficou em sétimo lugar entre os melhores do cinema nacional, segundo pesquisa feita aqui, por Contracampo. Mas o que é que Macunaíma tem que o mantém vivo através de todo esse período de tempo? O cineasta considerava seu filme como um "comentário ao livro": ou seja, o que temos não é uma transposição simplesmente, mas notas, ponderações que visam uma interpretação; qualquer um que tenha lido Macunaíma... sabe muito bem, por exemplo, que a Uiara não o mata, mas que o herói acaba sobrevivendo ao ataque e virando constelação. E se essa está longe de ser a única mudança feita a partir da história original, talvez seja a mais significativa. Porque se, em virando a Ursa Maior, Macunaíma "...se aborreceu de tudo, foi-­‐se embora e banza solitário no campo vasto do céu.", em sendo comido pela Uiara, lenda brasileira, o que se mostra é uma impossibilidade de vida para ele. É o Brasil quem come Macunaíma. Está-­‐se em 1969, às beiras do movimento tropicalista; o que é filmar um herói colorido, festejado, cheio de paetês que acaba sendo devorado? É dizer contra o tropicalismo, que, nas palavras do diretor: "sempre foi completamente furada [a onda tropicalista] como movimento." Há, sim, um certo clima no filme que pode gerar uma identificação com o movimento, mas seu 20 final é de absoluta interdição. Parece que o que existe ali é uma espécie de tentativa de diálogo com temas populares: a chanchada, por exemplo, permeia toda a narrativa, presente inclusive no elenco, figurinos e cenário. É um tipo de deboche, de ironia carregada de sentido mas sem lição. Isso. Macunaíma é um filme sem lição, sem símbolos e modelos. É pura construção, do tipo que só aparece à medida que se vai construindo.. É sabido que Mário de Andrade escreveu dois prefácios para Macunaíma... mas que acabou publicando-­‐o sem nenhum. Esses dois textos, porém, acabaram aparecendo mais tarde e, no segundo deles, está escrito, sobre a falta de caráter do herói, que ela é "...no duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico." Aí está: o filme também o mostra assim e essa é a sua importância. Joaquim Pedro de Andrade atuou brilhantemente como rapsodo: Macunaíma não simboliza o povo brasileiro, mas é um brasileiro. E o Brasil é composto por brasileiros, que, como o herói, podem ter dificuldades para viver em seu país e podem também acabar devorados por ele. O cineasta disse que "Macunaíma é um filme que encontra a América Latina em todos os sentidos, em uma busca nacional." Talvez, se juntarmos a isso mais uma coisa que Mário de Andrade disse, em seu segundo prefácio, possamos responder à questão posta lá em cima, aquela da manutenção do Macunaíma até hoje. Mário escreveu que "Nas épocas de transição social como a de agora é duro o compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe. Eu não sei. Não desejo a volta do passado e por isso já não posso tirar dele uma fábula normativa. (...) O presente é uma neblina vasta." Pode ser que a importância de Macunaíma resida nos problemas que ele põe para nós, brasileiros. À época da escritura de Macunaíma... o presente era uma neblina vasta; em 1969, quando o filme foi feito, também. Talvez o sétimo lugar obtido por ele em 2001 seja sintoma de uma intranqüilidade frente à neblina que envolve o nosso cinema atualmente. Tem mais não. Juliana Fausto Contracampo -­‐ Revista de cinema Disponível em: http://www.contracampo.com.br/27/macunaima.htm Macunaíma, o herói da nossa gente Joaquim Pedro inicia o roteiro cinematográfico de Macunaíma, em 1967, adaptado do livro Macunaíma (O herói sem nenhum caráter), de Mário de Andrade. No mesmo ano, Joaquim Pedro é convidado pela empresa italiana Olivetti a dirigir um documentário sobre a construção 21 de Brasília, co-­‐roteirizado por Luís Saia e Jean-­‐Claude Bernardet: Brasília: Contradição de uma Cidade Nova. Em seguida, a emissora de televisão alemã, ZDF, convida Joaquim Pedro para dirigir um documentário sobre o Cinema Novo. O filme, cujo título em alemão é Improvisiert und Zielbewusst (Improviso com Objetivo Definido), teve a produção executiva assinada por K.M. Eckstein, também narrador desse documentário exibido na Alemanha, em 16 de abril. A versão brasileira do filme, Cinema Novo, foi produzida pela Cinemateca do MAM, com a narração de Paulo José. No Festival de Cinema de Teresópolis, o júri atribui o Prêmio de Melhor Direção a Joaquim Pedro que concorria com O Padre e a Moça. O cineasta contesta a decisão e propõe que o prêmio seja dado a Paulo César Saraceni pelo filme O Desafio. Na manhã de 20 de março de 1969, Joaquim Pedro é preso pela ditadura mas é solto no mesmo dia. Joaquim Pedro filma Macunaíma. A versão censurada é lançada no Rio, dia 3 de setembro. Macunaíma é distribuído na França, em 1970, por Claude Lelouch com o ousado slogan "um filme estúpido e cruel". Ganha o Grande Condor de Ouro – prêmio de melhor filme – no Festival de Mar Del Plata, na Argentina, e é considerado "o acontecimento" do Festival de Veneza. No Brasil, recebe o prêmio Golfinho de Ouro do Conselho de Cinema do Museu da Imagem e do Som – MIS e consegue uma das melhores bilheterias do ano. Por esse motivo, é tido como um marco da aproximação entre cinema e público. ........................................................................... JOAQUIM PEDRO depoimento sobre o filme MACUNAÍMA Antropofagia é coisa que os subdesenvolvidos entendem. E eu fiquei chocado foi quando soube que Weekend, de Godard, terminava com uma cena da mulher comendo os restos do marido e pedindo mais. Eu estava justamente acabando Macunaíma. Em veneza havia outros filmes com canibalismo. Pasolini também já colocou isso num de seus filmes recentes, Porcile. É curioso como nós e os artistas de sociedades avançadas tivemos, num certo momento, a mesma idéia. A antropofagia não é uma idéia nova no Brasil. Mas eu demorei muito a entender o alcance político das idéias de Oswald de Andrade, por exemplo, que redigiu seu manifesto antropofágico antes de 1930. A antropofagia é a denúncia de uma condição primitiva de luta, uma luta resumida ao seu nível mais primário. Uma dentada, afinal de contas, destrói muito pouco. Na verdade, a dificuldade maior que tive foi a de entender as coisas. Custei a ver claro no conjunto do livro, até que entendi como funcionava em relação aos problemas do Brasil e até 22 em relação aos problemas do mundo. Mas afinal a coisa se resolveu com bastante facilidade, quando consegui entender politicamente o livro. Escrevi duas adaptações que me consumiram quatro meses, mais ou menos de fevereiro a junho de 1968 (a filmagem só começou em setembro desse ano). Na primeira eu tentava racionalizar, de certa forma domar o livro. Mas as coisas colidiam. Iam em várias direções e não se completavam. Já na Segunda, quando entendi que Macunaíma era a história de um brasileiro que foi comido pelo Brasil, as coisas ficaram mais coerentes e os problemas começaram a ser resolvidos uns atrás dos outros. Porque escolhi Macunaíma para filmar? É difícil explicar porque a gente escolhe alguma coisa para fazer. É uma decisão tão complicada e ao mesmo tempo tão simples... Macunaíma era um projeto que me interessava há muito tempo, desde que pensei em fazer cinema e me lembrei do livro de Mário de Andrade, que já tinha lido antes. Me interessava muito, porque tinha um caminho de adaptação na cabeça, um caminho que me parecia viável. Mas nuca tentei realizá-­‐
lo antes, porque havia uma fila de gente pronta a fazê-­‐lo, inclusive amigos meus. Por um motivo ou por outro, foram desistindo. Restou então Cacá Diegues, que também passou uns anos com esta idéia na cabeça. Acho até que quando Cacá fez A Grande Cidade partiu tentando mesmo adaptar Macunaíma, desistindo no meio do caminho. Fui então falar com ele e perguntei se ainda pretendia adaptar o Macunaíma. Cacá respondeu que não e eu parti então para a realização do filme. "Macunaíma era um projeto que me interessava há muito tempo, desde que pensei em fazer cinema e me lembrei do livro de Mário de Andrade. Macunaíma é um herói antiqüíssimo, um herói dos índios e cujo nome significa Grande Mal. Os civilizados tomaram conhecimento dele pela primeira vez através dos estudos de um alemão, Koch-­‐Grünberg, que passou uns tempos no Brasil nos fins do século passado, recolhendo lendas indígenas. Ao lê-­‐las, Mário de Andrade, preso de grande comoção lírica e sentindo no Brasil de 1926 o eco de Macunaíma, escreve o livro. Acho que o personagem, no livro, é mais gentil do que no filme, assim como o filme é mais agressivo, feroz, pessimista, do que o livro amplo, livre, alegre e melancólico de Mário de Andrade. Para ser justo, considero o filme um comentário do livro. O que falta ao personagem de Macunaíma é uma visão mais geral, mais ambiciosa e mais consciente. Ele dá sempre os seus golpes com objetivo limitado, pessoal, individualista. É um estágio vencido -­‐ mas importante -­‐ do que seria o caminho para o herói moderno brasileiro. Macunaíma é o herói derrotado, que acaba comido pela Iara, abandonado e traído. Sua trajetória, desde o nascimento até a morte, com todas as reviravoltas, é um caminho da terra 23 para a terra. Ele come terra no princípio e no fim do filme, mas na verdade a terra é que termina por comê-­‐lo. O herói moderno, para mim, é uma espécie de encarnação nacional, cujo destino se confunde com o próprio destino de seu povo. Uma das suas características fundamentais é a consciência coletiva. Ao contrário de Macunaíma, ele terá de encarnar um ser moral, no sentido de estar possuído por toda uma ética social. Ainda não apareceu o herói moderno simplesmente porque ele terá de ser um vencedor, ao contrário do herói romântico, que era o herói vencido, triste. Em suma, o herói moderno terá de ser evidentemente uma superação de Macunaíma, embora conservando algumas características dele. O livro não tem limitações realistas como as que o filme tem, por escolha minha. Procurei tornar reais as lendas para aproximá-­‐las do público. Usei o essencial da lenda, para torná-­‐la mais ativa para a platéia. Acho que a lição de Kafka é tratar o absurdo de forma minuciosamente realista, dando a ele um poder de agressão muito maior. O canibalismo, por exemplo, é tratado no filme com a maior naturalidade, sem artifício. Isso o torna mais próximo e incômodo. Em Macunaíma, há uma total bagunça étnica. Botei Paulo José, travestido, como a mãe branca de Macunaíma preto (Grande Otelo). Nas transformações m,ágicas de preto para branco, Macunaíma torna-­‐se racista. Branco, gera com uma mãe branca um filho negro. O problema racial brasileiro, que é a coisa mais declarada do mundo através do próprio processo de auto-­‐ironia do negro, é visto, numa perspectiva brasileira típica, como se fosse uma brincadeira. No campo cinematográfico, e como reflexo do processo geral brasileiro, se fez evidente a necessidade de um cinema aberto, socialmente ativo e capaz de impor-­‐se no mercado interno. Em minha opinião, a evolução de nossa sociedade, e da sociedade latino-­‐americana em geral, faz com que não mais se justifiquem os esquemas da moral tradicional. É necessário denunciar as estruturas moralizantes; os valores ultrapassados que só servem para ocultar uma realidade antropofágica. De fato, em nossa sociedade os homens se devoram uns aos outros. Macunaíma trata dessa realidade antropofágica através de um personagem irreverente, que rompe com nossa coerção educativa. A antropofagia é uma forma de consumo que os subdesenvolvidos usaram de maneira exemplar. Os índios brasileiros, notadamente, logo ao serem descobertos pelos nossos primeiros colonizadores, tiveram a felicidade de escolher o bispo português D. Pero Fernandes 24 Sardinha, para comê-­‐lo em ato memorável. Não foi a toa portanto que os modernista s de 22 dataram o seu manifesto antropófago: ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha. Todo consumo é redutível, em última análise, ao canibalismo. As relações de trabalho, como as relações entre as pessoas, as relações sociais, políticas e econômicas, são ainda basicamente antropofágicas. Quem pode come o outro, por interposto produto ou diretamente, como nas relações sexuais. A antropofagia se institucionaliza e se disfarça. Os novos heróis, à procura da consciência coletiva, partem para devorar quem nos devora, mas são fracos ainda. Mais numerosamente, o Brasil, enquanto isso, devora os brasileiros. Macunaíma é a história de um herói brasileiro que foi comido pelo Brasil. "Macunaíma" é um encontro latino-­‐americano, o descobrimento de fronteiras ideológicas mais amplas. É um filme que encontra a América Latina em todos os sentidos, em uma busca nacional. Baseado em lendas indígenas, descobrimos que seus heróis coincidiam com a história e a realidade não só brasileira como de toda América Latina, uma síntese que não tinha nada a ver com uma cultura falsa, importada. As lendas contêm uma mesma verdade... O gigante comedor do homens, por exemplo, não é uma representação simbólica, é um típico industrial brasileiro... Outra coisa importante: a representação da antropofagia. Vemos que as coisas não mudaram desde a colonização, quando os índios comeram os portugueses... Como somos fracos, ainda, nossa única defesa é a antropofagia. Modernizada se assim se quiser, mas a relação entre os homens é ainda antropofágica. O filme não é de modo algum simbólico, seria um tratamento fraco. Quis mostrar que aqueles personagens da lenda se repetem, são representativos, de certos povos, da América Latina, do Terceiro Mundo. O que existe sim, é uma exacerbação de elementos que vem a ser reveladora. Os adornos da casa do gigante, por exemplo, são de um mau gosto delirante, que existe no Brasil. Esta concentração exacerbada permite destacar elementos, ultrapassar uma convenção realista que pode dissipar de uma expressão fundamental, reveladora. Um processo que também evita o engano, a ilusão de um realismo circunstancial. É que a nossa força, no momento, está dando, no máximo, para um impotente destruir outro impotente. Há novos heróis. Eles tentam devorar quem os devora. Mas os contestadores são industrializados pelos órgãos de divulgação e passam a ser consumidos, isto é, comidos, como todos aqueles que aceitam. Enfim, quem pode come o outro. Macunaíma é um sujeito que foi comido pelo Brasil, onde quem comia no tempo em que os índios devoraram o Bispo Sardinha continua comendo até hoje. Macunaíma começa comendo terra, mas não termina assim. Falta ao filme uma idéia mais clara a respeito dessa deglutição que a terra faz do homem. Uma espécie de geofagia ao contrário. 25 A empostação que pretendi dar a Macunaíma não se vincula à onda tropicalista, que, para mim, sempre foi completamente furada como movimento. O que houve como movimento tropicalista foi a diluição de algumas obras fortes que podem ser chamadas tropicalistas, como Terra em transe, de Gláuber Rocha, e O rei da vela, na encenação de José Celso Martinez Correia. A meu ver, Macunaíma mostra que o balão inchado e colorido do tropicalismo estava furado mesmo e tinha que se esvaziar, do mesmo jeito que Macunaíma, personagem, festeja muito, mas acaba sendo comido pelo Brasil. Meus filmes vêm tentando discutir um problema só: o de uma pessoa viver no Brasil. São diferentes entre si porque eu trabalho em função do que quero dizer e é preciso dizer as coisas de maneiras diferentes. O padre e a moça é um filme de negação. Nega tudo, inclusive o fato de tentar se resolver como filme. E contém doses mais fortes de irracionalismo. Quando a pessoa desiste de ser racional, está confessando que seu único caminho está fechado. Veja: anos atrás, quando queríamos resolver alguma coisa, tínhamos que decidir coletivamente. As soluções individuais eram criticadas. Hoje está todo mundo "na sua". Antes, a gente via um maconheiro na rua e apontava para aquele monumento de originalidade: olha lá, um maconheiro! Hoje as pessoas vão ao morro comprar maconha. A situação no morro não mudou, não muda nunca. Nós mudamos. E mesmo os nossos filmes, quando tratam de assuntos importantes, precisam fazê-­‐lo de maneira indireta. Meu crédito com os produtores se havia esgotado, e eu acho que essa era a única maneira de fazer alguma coisa. Porque de qualquer forma já existe um público de cinema aqui no Brasil, e o Macunaíma tinha esta vantagem: propunha um saída diferente do que estamos acostumados, porque tinha a possibilidade de comunicar com muita gente entendida em cinema, mas também podia ganhar o Brasil inteiro, por sua polêmica. E porque é profundamente enraizada na cultura brasileira, eu achava que podia inclusive renovar o público de cinema, atrair aqueles que estavam afastados do cinema há muito tempo, o público da chanchada, por um caminho diferente, sem repetir as velhas fórmulas com variações. O Macunaíma é realmente diferente de tudo quanto foi feito em matéria de cinema, não pelo meu trabalho mas em virtude do próprio livro. E, apesar disto, é uma coisa bolada pelo povo brasileiro, porque é mesmo uma rapsódia, como o próprio Mário de Andrade o chamou, ou seja, uma orquestração de motivos populares, uma decantação do que seria o espírito, a crítica e a inteligência popular brasileira, que se cristalizaram em determinadas formas históricas, como a dos índios, e se repetem assumindo formas parecidas e desiguais. Isso tudo indicava que o filme podia atrair todo esse pessoal, que não teria o condicionamento que o público habitual de cinema tem. Por outro lado, além de 26 ser diferente, era imprevisível, porque tanto era um filme que podia ser vetado pelas pessoas, como poderia ser amado por elas. Uma espécie de desafio. Procurei fazer um filme sem estilo predeterminado. Seu estilo seria não Ter estilo. Uma anti-­‐
arte, no sentido tradicional da arte. Procurei, também, evitar que o filme fosse subserviente de qualquer modo. Não existem nele concessões ao bom gosto. Já me disseram que ele é porco. Acho que é, mesmo, assim como a graça popular é freqüentemente porca, inocentemente porca como as porcarias ditas pelas crianças. É imprevisível o resultado da interação. Não sei se os caras vão detestar, cuspir em cima, xingar, rasgar a cadeira do cinema, ou se rirão, mostrando que gostam e que entendem realmente o que quis dizer. Trata-­‐se de encontrar um lugar além da hipocrisia vigente e aquém dos limites reais que são impostos: o projeto tem que ser viável. Ou seja: o consumo de massa no Brasil constitui uma possibilidade original Dom maior interesse para o cinema. As "massas afluentes" no Brasil são uma semente de vitalidade muito forte, e devemos aceitar esta proposta. Acho mesmo que existe um reacionarismo em recusá-­‐la. Procurar um tipo de purismo em cinema que implique em recusar o desafio do consumo de massa (posição mais comum do que se pensa) é uma atitude reacionária. É como se se quisesse fazer retroceder o consumo, é propor para o cinema uma espécie de "beletrismo" muito acadêmico. O filme de arte tradicional de impostação e "respeitabilidade" cultural tem muito deste ranço: utilizar inadequadamente um veículo que é moderno justamente por ser um veículo de comunicação de massa. A proposição de consumo de massa no Brasil é uma proposição moderna, é algo novo, que não existia antes. As grandes audiências de TV entre nós é certamente um fenômeno novo. É uma posição avançada para o cineasta tentar ocupar um lugar dentro desta situação nova. O avançado é assumir o lado moderno do cinema, que é justamente a possibilidade de se comunicar com a massa. Isso implica em si assumir todos os valores culturais, sociais e políticos que possam ser transmitidos por esta forma de comunicação. Este caminho, de qualquer modo, é sempre muito perigoso: pode facilmente levar à prostituição da proposta inicial com o fito de assegurar audiência, etc.: a grande maioria dessas tentativas resulta sempre em verdadeiras drogas. De qualquer forma acho fundamental a exploração crítica deste caminho. Foi neste sentido que realizei Macunaíma. Macunaíma é um filme que surgi depois da, digamos, Segunda fase do Cinema Novo. De uma primeira fase em que o diálogo com o público era buscado de maneira discutível, quase sempre paternalista, passa-­‐se a esta segunda fase em que os autores passam a se encarar em 27 suas próprias obras -­‐ são trabalhos na primeira pessoa. Macunaíma volta a descobrir e a falar na terceira pessoa, ao mesmo tempo em que se situa na fase atual dos filmes de grande população (cor, grande elenco, figurinos, cenários, etc.) -­‐ o cinema nacional se industrializando -­‐ retoma de certa maneira a própria chanchada: presente na grossura, no deboche, no informal" e até mesmo no ressurgimento de alguns atores. Até que ponto esta retomada é intencional e em que medida? Tive a intenção deliberada, desde o início, de procurar uma comunicação popular tão espontânea, tão imediata, como a da chanchada, sem ser nunca subserviente ao público. Apesar de não ser subserviente, o filme não é paternalista, no sentido em que talvez fossem paternalistas os primeiros filmes do Cinema Novo: "dando uma lição". Ele procura ser feito do povo para o povo, é a orquestração mais simples possível, mais diretas de motivos populares, atendendo à definição de rapsódia, que foi como Mário de Andrade qualificou o livro. Filmar o livro é um projeto antigo, realizá-­‐lo foi uma questão de oportunidade. Creio que ele é ao mesmo tempo um corte e uma continuação em meu trabalho. Os primeiros filmes que fiz, a partir de Manuel Bandeira, passando por Couro de gato e Garrincha, continham experiências realizadas no nível da linguagem cinematográfica, e em várias partes deles eu aplicava uma experiência de sintaxe cinematográfica de fora para dentro (preexistente ao material). Manuel Bandeira apresentava cortes no tempo e no espaço com continuidade plástica, uma tentativa de conseguir uma fluidez de montagem. Em O padre e a moça, dá-­‐se o primeiro rompimento violento, uma tomada de consci6encia, uma recusa de valores que era aparente nestes filmes. A experiência de linguagem é mais de recusa do que de invenção positiva. Mas subsiste em O padre e moça uma preocupação com os valores plásticos atuando dentro da cena, marcações de atores e cortes (concepção geral e equilíbrio) -­‐ o diretor ainda está "domando" o material filmado, pelo enquadramento, marcação, etc.. Evidentemente que o mais importante nestes filmes vem de dentro para fora, o que sobrevive a esse processo. No Manuel Bandeira há uma visão embarcada -­‐ de certa maneira, engajada com ele. Faltaria um processo mais dialético de crítica, em que esses valores fossem confrontados mais agressivamente com outros valores que já agrediam -­‐ de ordem moral, ética, política, etc.. Um filme de amigo, incondicionalmente solidário. No Couro de gato, a preocupação política crítica já existe efetivamente. Mas esta espécie de engajamento emocional ainda está presente e de certa maneira limita o poder de crítica do filme. No Garrincha, a seleção de valores já é menos clara -­‐ há uma recusa de uma crítica óbvia e a tentativa de apreender uma realidade individual e, a partir daí, social, etc., muito mais rica. Essa tentativa nem sempre foi bem sucedida, o que 28 dá às invenções no terreno da linguagem cinematográfica um valor, às vezes, substitutivo. Em O padre e a moça, o processo fica absolutamente claro. As opções se radicalizam e, a meu ver, é um filme negativo sobre a negação. Macunaíma é, de certa maneira, a explosão da tendência positiva. Com o campo mais ou menos limpo, a tentativa, agora, é de plantar o que vale a pena. Ainda aparece no Macunaíma um certo tipo de ascetismo, de recusa, que vem de O padre e a moça. Agora, essa recusa vai mais longe, porque atinge o interior do quadro. Macunaíma é um filme, digamos, chocantemente informal. Macunaíma, de qualquer jeito, ainda é um princípio de discussão -­‐ no sentido da discussão que permanece (se processa) de um filme para outro. No sentido do personagem, Macunaíma é realmente o contrário do padre. O padre é a negação, em que a consciência tem um papel aprisionador reduzido ao osso da alegoria. O Macunaíma é um personagem sem consciência e, portanto, é inteiramente desinibido -­‐ estamos caminhando para o herói moderno, que é vital e consciente. Macunaíma é vital, mas ainda inconsciente -­‐ falta consciência dos condicionamentos contemporâneos, é moderno mas parcial. O filme é moderno porque, ao colocar o problema do herói vital mas inconsciente, está-­‐se discutindo o problema do herói moderno que é vital mas consciente, que é um herói que não está definido, mas sim em processo de elaboração. Visto hoje, Macunaíma está no passado. Inclusive porque continuamos vivos depois que ele morreu. Não há nenhuma tranqüilidade em verificar, pela descrição de vida de Macunaíma desde o nascimento até a morte, passando por tantas aventuras que o herói de nossa gente (será?) viveu em vão. Apesar de termos uma consciência melhor informada, não seremos nós, os espectadores de Macunaíma, os primeiros a terem o poder de morrer tranqüilos. [fonte: Heloisa Buarque de Hollanda, Macunaíma, da literatura ao cinema. RIo de Janeiro: José Olympio, 1978 Disponível em: http://www.febf.uerj.br/tropicalia/tropicalia_joaquim_pedro.html Macunaíma, nosso irmão Amigos e amigas: acho a hora boa para rever Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, que reestreou com cópia brilhando de nova. O filme diz muito sobre nós e nosso país. Abaixo, transcrevo a crítica do filme que escrevi para o Caderno 2: Paulo José: o Macunaíma branco Dá para discutir se Macunaíma é ou não o melhor filme de Joaquim Pedro de Andrade. Afinal, pode ser tema de debate a superioridade formal de O Padre e a Moça ou a maturidade política de Os Inconfidentes. De toda forma, talvez Macunaíma seja, se não o melhor, talvez o seu 29 título mais significativo. Aquele através do qual Joaquim conseguiu realizar o que se esperava de um diretor do Cinema Novo naquele momento – um pensamento profundo sobre o Brasil, suas determinações, sua situação diante do mundo e de si mesmo. É claro, também, que toda essa perspectiva vinha já embutida no romance-­‐rapsódia de Mário de Andrade e em seu personagem, o herói sem nenhum caráter. Mas coube a Joaquim ler o romance em sintonia com sua época (fim dos anos 60), imprimindo à trama, se o termo cabe, o tom feérico, colorido ao extremo e debochado de uma neochanchada já pós-­‐Terra em Transe (lançado em 1967) e em plena efervescência tropicalista. Vale dizer: o herói Macunaíma é o próprio povo brasileiro, e isso já havia saído da cabeça de Mário de Andrade. A opção por interpretá-­‐lo através de Grande Otelo, quando preto, e Paulo José, quando branco, foi inteligente. Macunaíma é o herói preguiçoso, mulherengo, cheio de astúcia mas frágil – um profeta do jeitinho brasileiro, essa característica da qual tanto nos orgulhamos, e que tanto nos envergonha. A duplicidade de Macunaíma é a de todos nós diante do Brasil; e suas mutações sucessivas, sempre permanecendo o mesmo, falam bem da clássica ambivalência do brasileiro em relação ao País. Amamos e odiamos. Queremos nos livrar do Brasil e o levamos colado à pele, ora como um manto sagrado, ora como uma canga. E ele termina por nos devorar, como faz com Macunaíma na magistral cena de desfecho. Levando Macunaíma à cidade e promovendo seu encontro com a guerrilheira Ci (Dina Sfat) e com o capitalista ítalo-­‐brasileiro Venceslau Pietro Pietra, Joaquim adensa o personagem e o faz dialogar com a conjuntura do momento e o capitalismo tardio da época. Se o projeto modernista de Mário previa uma reflexão sobre o Brasil, o ideário do Cinema Novo incluía essa meditação e a desenvolvia segundo as contradições daquela época. O Brasil entrava de forma consistente no ciclo industrial mas ao mesmo tempo se colocava à margem da democracia. Participava do jogo mundial como dependente e enfrentava uma oposição interna que pretendia levá-­‐lo à emancipação. Era assim naquele final de década, já na ressaca de 1968 e sob a ditadura do AI-­‐5. A grande qualidade de Macunaíma foi ter juntado contingências e traços mais permanentes e conseguido somá-­‐los em seu projeto estético. Melhor ainda: travou com o público o diálogo que outras obras do Cinema Novo não puderam estabelecer. Pode-­‐se supor que a platéia que via Macunaíma naquela época talvez estivesse seduzida por sua forma carnavalesca e, assim, refletia sobre seu conteúdo mais profundo. Afinal, Joaquim promove, com este filme,a síntese de uma das tantas dualidades a que o brasileiro se vê sujeito durante a sua vida: com a ênfase na antropofagia, Joaquim leu Mário de Andrade com olhos de Oswald. E nega-­‐se portanto a optar entre as duas figuras de proa do 30 modernismo – Mário e Oswald – entendendo que é de ambos, o apolíneo e o dionisíaco, que devemos nos servir para compreender e viver o Brasil, e não ou de um ou de outro, de forma excludente. Macunaíma é, também, uma arte da síntese. Luiz Zanin Oricchio O Estado de S. Paulo Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/luiz-­‐zanin/rever-­‐macunaima/ A Rainha Diaba (1974), de Antonio Carlos Fontoura Filme revela as contradições do regime militar sem se referir a ele Era a função catártica que mais chamava a atenção em "Rainha Diaba" e que o levou a ser considerado um dos melhores filmes dos anos 70. Passados 30 anos, convém perguntar se o filme oferece interesse ao espectador de um outro momento. A resposta é sim. Um enfático sim, na verdade. A história da luta controle pelo tráfico de maconha, entre um rei homossexual -­‐a rainha do título-­‐ e seus asseclas rebelados revela-­‐se hoje um belo documento sobre o período mais duro do governo militar, embora não se refira em nenhum momento a isso. No entanto, ela está lá: a disputa sangrenta pelo poder diz respeito no caso não a disputas legítimas que envolvem a sociedade, mas a grupos fechados em si mesmos, cujos objetivos são meramente pessoais. Por desejo ou premonição, o autor Antonio Carlos Fontoura e seu argumentista, Plinio Marcos, captaram muito bem o estado de coisas de um Estado que, por ditatorial, se constitui como organização criminosa. O interesse atual do filme procede, no mais, justamente da diferença com os filmes feitos no país depois de 1990, que procuram aplainar as contradições e construir um terreno de harmonia. É das cores contrastantes de "Rainha Diaba" que vem em grande parte a percepção de que o conflito não é ocasional, ele é a própria essência desse mundo (o descrito e o mundo em geral). Mas não só delas: a inquietude da câmera, a luz muito seca de José Medeiros -­‐tudo contribui para colocar em relevo as contradições. Se "Rainha Diaba" não sofre do tecnicismo contemporâneo, em compensação sofre de certas características técnicas da época, a mais evidente delas é a deficiência dos estúdios e da própria concepção de som e, sobretudo no início, certas falhas de figuração. Isso é muito pouco, no entanto, para retirar interesse de um desses filmes em que tudo se encaixou perfeitamente sob o signo do vermelho (sangue), e um dos raros exemplos de filme que trabalha com contrastes de cor muito acentuados sem tender ao caos cromático. 31 Ninguém se esquecerá, por fim, de falar do grupo de intérpretes liderado por Milton Gonçalves. Entre eles, Nelson Xavier, Odete Lara, Wilson Grey e Stepan Nercessian compõem tipos realmente admiráveis. Os extras do filme se caracterizam pelo excesso. Uma versão comentada pelo próprio diretor pode bem servir a propósitos didáticos. Já a entrevista do mesmo, mediada pela de alguns dos participantes do filme, sofre de ser extremamente longa e detalhada, embora detalhes significativos da produção sejam repassados ali ao espectador. Inácio Araújo Folha de S. Paulo Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0810200427.htm Rainha Diaba “Rainha Diaba”, de 1974, é um monumento. Críticas apressadas de jornalistas idem tacharam o filme – na época do seu surpreendente relançamento em dvd – como uma ode tresloucada ao “homossexualismo marginal”. As mesmas pessoas que produzem páginas e páginas sobre qualquer blockbuster norte-­‐americano sofrem de calafrios ao escrever umas poucas linhas sobre as obras-­‐primas rodadas na esquina de suas casas. Qualquer filme brasileiro esquecido (que não renda jabaculê) vira superficial, simplista e facilmente rotulável. Pura ignorância. Basta dizer que antes de Almodóvar e no alvorecer do gay power norte-­‐americano, houve Antônio Carlos Fontoura. Levemente inspirado no malandro da vida real, Madame Satã, Fontoura aliou-­‐se ao gigantismo de Milton Gonçalves – com certeza aqui, sem nenhum exagero, em uma das dez maiores interpretações da história do cinema mundial – e deu à luz um filme sublime, inovador, que ainda hoje produz indisfarçável mal estar em quem, sentado no conforto de sua casa, o assista. A imagem que se tem de Satã é a do “pederasta” – assim fichado pela polícia varguista de seu tempo –, underground total, com plumas, brilhos e paetês, gingado de capoeirista e apetite sexual intenso. Já a ficcional Diaba (Milton Gonçalves) guarda destas qualidades apenas algumas, pois não é o solitário réu da Lapa, cavaleiro andante de punguistas e contraventores. É dono de mais de uma dezena de bocas, controla o narcotráfico, estabelece relações maternais com o séquito de outras moçoilas, que protegem-­‐na como os aprendizes à mestra. Diaba é criminosa nata: aplica mão de ferro para garantir a qualidade dos serviços à população mas, por outro lado, preocupa-­‐se em cozinhar quitutes para a marginália gay que o cerca, apavorado que estava com os traidores que tentavam acabar com sua autoridade empresarial. 32 Os traidores, como o ovo da serpente, estavam ali mesmo, guardados no ninho, e Diaba mal sabia. Liderados pelo amigo Zeca Catitu (Nelson Xavier), Manco (Wilson Grey), Anão (Lutero Luiz), Violeta (Yara Cortes) – sócia do prostíbulo mantido pela Rainha – Coisa Ruim (Procópio Mariano), e outros empreendedores, celebram um levante para desmobilizar o ofício e tomar o controle dos negócios. Em outra ponta da narrativa, fluindo em paralelo, o casal Bereco (Stepan Nercessian) e Isa Gonzalez (Odete Lara): cafetão e prostituta. Ele, rapaz novo, bonito, cooptado por Catitu, junta forças ao golpe, servindo tolamente de bucha de canhão. Ela, seduzida, seviciada, suja, cantora do “Leite da Mulher Amada Night Club”, local em que seria posteriormente seqüestrada e torturada pela cáfila de amigas da Diaba. Neste momento as narrativas se cruzam e, quadros depois, no paroxismo da descoberta de Bereco, Diaba encontra seu fim. O garoto degola-­‐a, é em seguida morto por Catitu, Catitu e amigos são em seguida mortos por Violeta, e Violeta – única a restar do levante – é morta, nos esgares finais, por Diaba, ensangüentada, que ressurge na sala e junta mais dois corpos – o seu e o da vítima – à dúzia que se amontoava na sala. Percebam que a exuberância do filme reside em detalhes e, como transgressor do audiovisual, descrevê-­‐lo faz diminuir sua força. Apenas quem assistiu às cenas compreenderá o porquê de ser este um dos marcos da história do cinema. Mostrem a Quentin Tarantino a chacina referida acima; o momento em que personagens, um por um, se apresentam ao espectador; a violência contra Isa no salão de cabeleireiro; as meninas em momentos de delírio ultra-­‐psicopático; a revolta da prostituta, molestada, torturada; os créditos em papel crepom, cartolina e hidrocor. São exemplos do som e da fúria, da inventividade nacional, do talento que contorna a falta de dinheiro e cria, cria muito, bem mais do que a vã pasteurização de algumas produções atuais deixa supor. O argumento de Plínio Marcos – dramaturgo, ator, dionisíaco, um vulcão, falecido em 1999 – e do diretor, Antônio Carlos Fontoura, inventa focos múltiplos de ação no roteiro escrito pelo segundo, o que tende a aguçar a vontade do elenco. Digo isso pois não apenas Milton Gonçalves é verdadeiramente indescritível, mas os bandidos, Odete Lara e a trupe de amigas (formada, dentre outros, por Perfeito Fortuna, que deu um tempo nas dunas de Ipanema para incursão ao lado menos aristocrático da cidade) assustam, brutalizam e tornam o filme um momento de lucidez, certeiro ao atingir a alma kitsch e doentia dos personagens. Vale a pena citar a fotografia de José Medeiros – concretizando a saturação pedida pelo universo retratado –; o figurino de Ângelo de Aquino; a música, atordoante, a cargo de Guilherme Magalhães Vaz; a edição de Rafael Justo Valverde; a co-­‐produção da Lanterna 33 Mágica, R.F. Farias, Filmes de Lírio e Ventania Filmes – esta última do saudoso Paulo Porto, neto do cacique Ventania, que dera o nome à firma. Antônio Carlos Fontoura é um realizador bissexto. Traz no currículo o seminal “Copacabana Me Engana “ (1968) – também com Odete Lara, estréia de Carlo Mossy no cinema – e “Espelho de Carne”(1984) – clássico da “Sala Especial”, com Dênis Carvalho e Daniel Filho em momentos de suprema intimidade. Dirigiu também programas de tv, dentre eles “Plantão de Polícia” e “Ciranda, Cirandinha”. O trabalho de Fontoura é inspirador – porque nunca previsível –, apesar da cinematografia brasileira se ressentir da quantidade de histórias que poderiam ter vindo a público e não vingaram. Incansável, mas sabendo operar além dos grandes refletores e da badalação da mídia, Fontoura é destes mestres que a arte nacional guarda próximo ao peito, e gerações recentes procuram ávidas, em busca de informações. Ao encontrá-­‐las, saberão um pouco mais de si mesmas e, quem sabe, das delícias da criação humana. Andrea Ormond Estranho Encontro Disponível em: http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2005/10/rainha-­‐diaba.html Lúcio Flávio -­‐ O Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco 34 Continua na página abaixo 35 36 37 Lúcio Flávio -­‐ O Passageiro da Agonia Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia (1977) conta a história real de Lúcio Flávio Lírio, que ficou famoso na década de 1970 por seus grandes assaltos a banco e repetitivas fugas da polícia. O filme, dirigido por Hector Babenco e estrelado por Reginaldo Farias no papel principal, é a adaptação do livro homônimo do jornalista José Louzeiro, que também trabalhou no roteiro da produção e baseou-­‐se no relato feito pelo próprio assaltante a um repórter pouco tempo antes de sua morte. Com cerca de 5,4 milhões de espectadores (de acordo com o portal Filme B), o segundo longa-­‐metragem do diretor argentino naturalizado brasileiro é o sexto filme nacional mais assistido de todos os tempos. A produção, baseada em fatos reais, mantém os nomes verdadeiros dos bandidos, mas altera os dos policiais envolvidos, e narra a história do bando comandado por Lúcio Flávio e as dificuldades da vida de assaltante nos anos 70, em plena ditadura militar. Entre um roubo a banco e outro, a gangue tem de lidar com Moretti, interpretado por Paulo César Peréio, um policial de moral duvidosa que recebe pagamentos para protegê-­‐los, e Bechara, papel de Ivan Cândido, que decide caçar Lúcio Flávio empregando toda a brutalidade possível. O personagem interpretado por Cândido era um dos líderes da organização paramilitar Esquadrão da Morte, cujo objetivo era perseguir e matar os criminosos considerados perigosos demais à sociedade. Uma das mais fortes cenas do filme, aliás, é a em que Bechara prende e tortura o protagonista, que consegue fugir, ainda na primeira metade do longa. Diante de tantas dificuldades – traições por parceiros de bando e por Moretti e a perseguição que sofre – Lúcio Flávio ainda tenta deixar pra trás a vida de crimes com a mulher e o filho, apenas para descobrir que não é tão fácil se esconder de seu passado. Com quase duas horas de duração, a produção começa com uma pegada rápida, que pode parecer confusa a princípio. São tantos personagens introduzidos em poucos instantes que o espectador pode se confundir entre aliados, inimigos e traidores, mas com o tempo a trama se acerta, chegando até a ficar levemente arrastada por volta da metade. Esses altos e baixos na velocidade da narrativa mostram a inexperiência do então jovem Hector Babenco, anos antes de dirigir o filme que lhe renderia uma indicação ao Oscar de melhor direção, a produção americana O Beijo da Mulher Aranha, em 1985. No entanto, esta inconstância é passageira e nada que prejudique demais o resultado final. Há de se assistir a uma obra dessas com olhos atentos e a mente consciente de que muito do que vemos hoje é resultado de experiências e tentativas desta época (a década de 1970 também rendeu outros dois dos filmes nacionais 38 mais assistidos da história, Dona Flor e seus dois maridos e A dama do lotação) e que, por isso, pode parecer datado ou até mesmo ultrapassado. Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia foi escolhido como o melhor filme da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo pelo Júri Popular em 1977, e recebeu cinco indicações no Festival de Gramado de 78, ganhando quatro prêmios (entre eles o Kikito de Ouro de melhor ator para Reginaldo Farias e melhor edição). Tamanho reconhecimento não se deve apenas pela qualidade do filme, mas também pela coragem de atacar de frente o regime militar, mostrando de forma chocante a corrupção instalada nas forças policias e suas práticas de tortura (mesmo que o então governo acabe se desviando das acusações na figura da Polícia Federal, que, no enredo, condena essas ações). Se fosse lançado em 2010, seria o quinto filme mais visto do ano, superando nomes de peso como Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1, Toy Story 3 e Alice no País das Maravilhas, e atrás de produções como Avatar (a maior bilheteria da história mundial) e Tropa de Elite 2, longa-­‐metragem mais visto no Brasil em todos os tempos. Pode se dizer até mesmo que a produção de José Padilha deve um pouco de seu sucesso a Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, que décadas atrás mostrou que o cinema policial brasileiro poderia, sim, ser grande. Grande na casa dos milhões. César Soto Objethos -­‐ Observatório de ética jornalística Disponível em: http://objethos.wordpress.com/2011/09/14/resenha-­‐lucio-­‐flavio-­‐o-­‐passageiro-­‐
da-­‐agonia-­‐1977/ Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia Em 1977 um jovem argentino, com cara de hippie, bateu na porta da casa do jornalista e escritor José Louzeiro, no Rio. Vindo de São Paulo, o moço queria adaptar o romance-­‐
reportagem de Louzeiro, "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia", para o cinema. Acreditando no ímpeto do jovem, que se chamava Héctor, Louzeiro passou por cima de uma proposta de Roberto Farias e cedeu os direitos. Quando voltou do Festival de Cannes, Farias não gostou nem um pouco do arranjo e se desentendeu com o escritor. O roteiro acabou sendo escrito por Louzeiro e Jorge Durán -­‐-­‐ e o papel principal entregue ao irmão do preterido Roberto, Reginaldo. Tranquilizados os ânimos, realizaram um dos melhores policiais brasileiros da década de 70, quando o gênero alcançou no país um nível de expressão e criatividade ímpares. 39 Mas vamos recuar no tempo e desvendar o mistério: quem era o argentino que impressionou Louzeiro naquela tarde em que o jornalista, atrasado para o trabalho, ouviu suas considerações? Héctor Eduardo Babenco foi criado em Mar del Plata, famoso balneário na província de Buenos Aires, filho de pai portenho e mãe polonesa. O pai, dono de uma mercearia em Mardel -­‐-­‐ como os argentinos chamam carinhosamente a cidade -­‐-­‐ ficou doente, vendeu seu negócio e o rapaz teve que fazer de tudo para sobreviver. Inclusive carregar malas em um hotel de luxo, servindo a cineastas famosos como François Truffaut. Receoso do serviço militar, em 1964 se mandou pra Europa com uma mochila nas costas e vinte dólares no bolso. Andarilho, sobrevivia graças a trabalhos temporários, como o de figurante em westerns. Decidido a voltar para a América, esbarrou com o problema de não ter servido o exército. Assim, em 1969 desembarcou em São Paulo, onde fixou residência. Apaixonado por cinema, durante alguns anos Babenco esteve envolvido na produção de documentários, trabalhando com Pedro Carlos Rovai e com o próprio Roberto Farias. Estreou na ficção em 75, com "O Rei da Noite", e em 77 já tinha credenciais para bater na casa de Louzeiro com a proposta sobre "Lúcio Flávio". O marginal Lúcio Flávio Vilar Lírio, assassinado em 29 de janeiro de 1975, a facadas em uma cela no presídio da Ilha Grande, era àquela altura dos acontecimentos uma espécie de símbolo da bandidagem carioca, mito alimentado pela imprensa, sustentado pela boa articulação verbal do assaltante. Refém do corrupto sistema policial, Lúcio -­‐-­‐ como quase todo bandido brasileiro -­‐-­‐ no fundo era um coitado, isca de uma organização criminosa formada por gente graúda da polícia, que tomava dele a maior parte dos lucros sem correr qualquer risco. No filme de Babenco, Lúcio Flávio (Reginaldo Faria) é atormentado pela figura repugnante de Moretti (Paulo César Peréio), uma espécie de disfarce do detetive Mariel Mariscott de Mattos, que, de tão vaidoso, implorou a José Louzeiro para ser retratado com seu nome real. Toda a história é um gato e rato entre Moretti e Lúcio, mas a composição do submundo é rica e a força dos personagens impressiona. Em "Lúcio Flávio", Babenco não só consolida uma escolha temática -­‐-­‐ o olhar aos marginalizados -­‐-­‐ que o acompanharia por toda a carreira, mas também rascunha o esforço seguinte, "Pixote, a Lei do Mais Fraco", que lhe abriria as portas do mercado internacional. O endeusamento de bandidos comuns, prática na época, hoje soa bastante discutível, principalmente por seus desdobramentos nos anos 80 e 90, quando o crime quebrava a espinha do Rio de Janeiro e setores da imprensa e da intelligentsia ainda tratavam bicheiros e 40 traficantes como se fossem personagens da Revista Caras. Por outro lado, nunca devemos cair na esparrela de reduzir o drama ao embate polícia versus ladrão. Nesse ponto, "Lúcio Flávio" é brilhante nas sequências em que Moretti enrola Lúcio, afirmando que "estão do mesmo lado". Conseqüentemente a tomada de consciência de Lúcio chegará através da sentença: "Polícia é polícia, ladrão é ladrão". Esta idéia, embora óbvia, parece tão difícil de ser aplicada no Brasil quanto não jogar lixo nas calçadas ou silêncio depois das 22 horas. O sucesso de "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" motivou Jece Valadão a produzir uma resposta pró-­‐polícia: "Eu Matei Lúcio Flávio", de 1979. Tentou contratar Louzeiro para seu projeto, mas o escritor não tinha tendências esquizofrênicas suficientes para contrargumentar a si mesmo. Jece, claro, acabou fazendo melhor, juntando Leopoldo Serran e Antônio Calmon em um exploitation mentiroso, tresloucado e brasileiríssimo de tanta cretinice e farsa. Bancado com dinheiro do jogo do bicho e de amigos de Mariel Mariscott, "Eu Matei Lúcio Flávio" é a obra-­‐
prima que o filme de Héctor Babenco tenta, mas não consegue ser. Chega perto nas seqüências teatrais do bando enfurnado no apartamento de Liece (Ivan de Almeida), amante de Lígia (Lady Francisco). A consciência de que são bucha de um sistema perverso cresce na angústia do esconderijo, no cerco hipócrita dos policiais-­‐bandidos e na ruína financeira em que permanecem, apesar dos roubos. E o que seduz em Lúcio -­‐-­‐ ou pelo menos na construção de Reginaldo Faria -­‐-­‐ é que ele tem o raciocínio de um homem comum, distante das elucubrações psicopatas a que se entregam os artífices de crimes. Namora Janice (Ana Maria Magalhães), cria um filho com ela, reclama do trabalho e tem medo. Tanto medo que sofre de pesadelos ao imaginar Janice à mercê da loucura de Moretti. A razão pela qual uma fábula em que a lei é doente e o bandido humano foi permitida pela censura explica-­‐se por mais um olé inteligente da dupla Louzeiro-­‐Durán: denigre-­‐se a polícia carioca, mas em certo momento surge a "federal", no intuito de consertá-­‐la. Elogiados, os federais não viram razão em caçar a história. A punição dos que "se desviaram da conduta" parece explícita -­‐-­‐ e cabe ao espectador preencher lacunas com seu julgamento particular. Mesmo assim, para desgosto de Louzeiro, a exibição do filme foi interditada na sua cidade natal, São Luís do Maranhão. Como sempre acontece, o Estado atrapalhou o que lhe parecia incômodo com um inferno de exigências e burocracias, disfarçando mera perseguição à liberdade. Ironicamente, proibição em moldes parecidos se repetiria na pré-­‐estréia argentina, dessa vez para a tristeza de Babenco. 41 Lúcio Flávio, Liece e outros são legítimos arautos da paranóia criminosa que tomou conta do país. Olhá-­‐los, como querem alguns, pertencentes a um contexto "romântico" é tolice. Profissionais do crime matavam, corrompiam, traficavam e assaltavam quase da mesma maneira que hoje. O que mudou não foi só a barbárie, mas a imprensa, a repressão e a sociedade. Analisar este processo como um todo, apontando o papel de cada agente, responderia muitas questões. Só que ninguém dá bola pra cultura, mesmo quando ela pode salvar milhares de vidas. Andrea Ormond Estranho Encontro Disponível em: http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2010/05/lucio-­‐flavio-­‐o-­‐passageiro-­‐
da-­‐agonia_30.html Lúcio Flávio -­‐ o Passageiro da Agonia Trata-­‐se de uma obra que se volta mais para quem é fã do que para quem simplesmente gosta de cinema. Lúcio Flávio, nascido em 1944 no Rio de Janeiro e tendo se tornado um nome nacionalmente conhecido durante os anos iniciais da ditadura militar, é um criminoso cuja história se associa diretamente ao um período histórico do nosso país, mas de quem pouco se ouve falar. Particularmente, eu havia ouvido falar sobre o livro que deu origem ao filme, mas não sabia exatamente as proporções da fama do sujeito nem a sua relevância. Morto aos 31 anos, no ano de 1975 numa prisão, sem grandes apurações quanto ao seu assassinato, a figura de Lúcio fica registrada no livro “Lúcio Flávio – o Passageiro da Agonia”, de José Loureizo, concebido apenas um ano após a morte do rapaz, e, por fim, o filme homônimo cujo roteiro se baseou no livro. Tantas são as figuras inseridas no universo da ditadura e talvez nós estejamos bastante a par de muitas figuras importantes que ajudaram a combater a ditadura, tenso sido, em qualquer momento, vítimas diretas do sistema governamental. Basta que nos lembremos de dois filmes recentes, “Zuzu Angel” e “Batismo de Sangue”, respectivamente de 2006 e 2007, retratam personagens que sofreram as opressões da ditadura: no primeiro, uma mulher, a personagem-­‐
título Zuzu, mãe de um rapaz que sumiu devido aos seus envolvimentos políticos contrário ao governo vigente, luta para conseguir notícias acerca do filho; no segundo, freis franciscanos são punidos por apoiar às causas estudantis contra o governo. Curiosamente, são pessoas que estão conforme à lei, oprimidos pelo sistema – Lúcio Flávio, por sua vez, é um fora-­‐da-­‐lei, um homem que não se detém pelas noções de ordem, que não ouve instruções, que não ouve a 42 polícia, que não respeita os cidadãos ou seus direitos, mas notadamente se coloca contra o sistema vigente, visando tirar mais dele do que de qualquer outro cidadão. Curioso notar que mesmo outros bandidos respeitam Lúcio. O rapaz burguês cuja família foi assassinada é uma criatura influente em qualquer ambiente: os policiais o teme, porque ele não mede esforços para conseguir o que quer; os bandidos o temem, porque ele se encontra protegido por inúmeros outros bandidos, já que ele é bastante habilidoso para crimes mirabolantes. Os bancos o temem – ele sempre os rouba; a delegacia não quer dizer nada pra ele – ele sempre foge. Assim, sua figura pouco a pouco se cristaliza como um homem com que se preocupar. Não sei como é no livro, mas o roteiro deixa bastante clara a postura de Lúcio em relação aos seus comparsas e o modo eficiente com o qual lida com problemas, mesmo que eles demandem atenção prescritiva. Considerando a personagem e a sua força, parece que a interpretação de Reginaldo Faria é pouca. Aliás, qualquer personagem é pouco perto da narrativa que notadamente favorece uma única personagem, que não apenas é a central como também e a única verdadeiramente interessante. Acompanhar Lúcio é interessante, mas ver as subtramas não nos soam emocionantes o suficiente a ponto de que verdadeiramente nos sintamos cativados e motivados a acompanhá-­‐las com atenção. Não quero, porém, criticar a direção de Hector Babenco, como se ela fosse incabível à trama – o problema talvez esteja no roteiro, que singulariza Lúcio de tal modo que soa inclusive incomum vê-­‐lo interagindo com qualquer outra pessoa. O personagem ganha tom heróico demais para alguém comum, mesmo que, AM sua maneira, díspar da sociedade ordinária que caminha inquestionada. Se Reginaldo Faria, o protagonista, some em seu personagem, sendo esse mais interessante que aquele, parece evidente que o mesmo acontece com outros atores – e é verdade. Acredito que a obra seja fundamental àqueles que realmente visam maior conhecimento de um assunto específico – seja os agentes sociais mais ativos do período ditatorial, seja o personagem desse filme. De um modo abrangente, ainda que satisfatório, não é um filme que atraia a atenção ou que mantenha a atenção do espectador fixa, a não ser, como disse, se o espectador realmente estiver assistindo a fim de aprender mais sobre o sujeito-­‐objeto desse filme. Penso que seja mais válido conhecer com caráter educativo e de pesquisa a conhecer a obra por entretenimento. Blog Literariocinematografico Disponível em: http://literarioecinematografico.blogspot.com.br/2012/04/lucio-­‐flavio-­‐o-­‐
passageiro-­‐da-­‐agonia.html 43 

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