encontros teológicos 64

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encontros teológicos 64
Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
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http://www.itesc.org.br
FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
FACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINA – FACASC
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA – ITESC
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Diretor Geral da FACASC e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
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Coordenador da Graduação em Teologia da FACASC e Secretário do ITESC: Prof. Celso Loraschi
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CRB-14/416
Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 64, Florianópolis,
2013.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
CDU 2 (05)
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ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Edinei da Rosa Cândido – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Elias Wolff – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR
Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS
João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG
José Artulino Besen – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC
Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS
Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP
Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ
Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC
Marlene Bertoldi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS
Valter Maurício Goedert – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vilmar Adelino Vicente – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS
Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC
Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC
Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS 
Evaristo Debiasi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC
Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF
Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO
Luís Dietrich – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Luís Inácio Stadelmann SJ – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Márcio Bolda da Silva – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Mari Hammes – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Marta Magda Antunes Machado – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... Conferência: O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
7
Demétrio Valentini....................................................................................................
11
Debate sobre a conferência de D. Demétrio Valentini.................................. 25
Conferência: Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
Vitor Galdino Feller.................................................................................................. 29
Debate sobre a conferência do Pe. Dr. Vitor Galdino Feller......................... 51
Conferência: Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
Maria Clara Bingemer.............................................................................................. 65
Debate sobre a conferência da Profª Maria Clara Bingemer................................... 73
Conferência: Igreja, Sociedade e Juventude
João Batista Libânio SJ............................................................................................
79
Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio SJ................... 89
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
Daniel Ramada Piendibene...................................................................................... Um concílio a caminho
Walter Kasper...........................................................................................................
ITESC – 40 ANOS: O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
José Artulino Besen................................................................................................... Crônica: “O Cardeal Carlo Maria Martini (in memoriam)
97
137
147
Maurice Gilbert........................................................................................................
175
Crônicas da FACASC e do ITESC............................................................... 184
(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)
Editorial
Sem dúvida, nenhum fato histórico influenciou tanto o mundo eclesial
católico, nos últimos 50 anos, como o Concílio Ecumênico Vaticano II.
Nascido do processo histórico dos séculos anteriores, marcado pelas
tensões da Igreja com a modernidade e o iluminismo, bem como pelas
questões sociais decorrentes da revolução industrial, o Concilio representa um divisor de águas, no dialogo da Igreja com o mundo.
O Concílio Ecumênico Vaticano II nasce diretamente do coração
do Papa João XXIII, cujo otimismo e coragem incondicionais foram
contagiantes, superando a mentalidade cristalizada reinante nos escaninhos eclesiásticos! Paulo VI deu continuidade à primavera inaugurada
pelo seu antecessor, conduzindo com firmeza e mansidão o processo de
implantação do Concílio, suportando a cruz dos problemas e dificuldades
das novas concepções emanadas das decisões conciliares, legitimadas
pela maioria quase absoluta dos 2500 padres conciliares. Realmente, o
Concílio foi obra do Espirito Santo!
Como todo processo inovador, o Vaticano II foi objeto de várias
leituras e hermenêuticas, algumas duvidosas e resistentes, que geraram
um inverno eclesial, projetando uma perspectiva de sabor neoconservador, inspirado nas tradições da velha cristandade. Certamente essa
resistência obscurantista era tudo o que não se esperava como fruto do
Concílio, e que agora o Papa Francisco nos ajuda a rever, reinventando
o espírito do Vaticano II, na fidelidade ao Paráclito que o gerou!
Na América Latina, o Concílio teve um impacto profundo,
com posicionamentos singulares do episcopado nas Conferências de
Medellin e Puebla, que deram sintonia à caminhada continental da
Igreja Católica! Posteriormente, a Conferência de Santo Domingo
não deixou de refletir o processo de estabilização eclesial dos anos 90,
com consequências duvidosas no processo de evangelização. Finalmente, a Conferência de Aparecida retomou o espírito Conciliar, em
linguagem de nova evangelização, acentuando um projeto continental
para formação de discípulos e missionários, ou seja, de “discípulos
missionários” de Jesus Cristo.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
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Editorial
Este número de Encontros Teológicos, fruto do “Congresso
­ eológico” realizado em inícios de setembro de 2012, no quadragésimo
T
aniversário da criação do ITESC, agora FACASC, Faculdade Católica
de Santa Catarina, quer focalizar, mais uma vez, a riqueza inesgotável
das reflexões e decisões conciliares. Dizemos “mais uma vez”, porque
nossa revista já abordou o Concílio em seu número 62 (2012/2), intitulado
“Vaticano II – 50 anos”, como já o fizera em seu número 33 (2002/2),
intitulado “Concílio Vaticano II: 40 anos depois”, e também em seu
número 39 (2004/3), intitulado “Lumen Gentium – 40 anos” e, ainda,
em seu número 42 (2005/3), intitulado “Gaudium et Spes – 40 anos”.
A primeira contribuição é a conferência de abertura do Congresso,
pronunciada por Dom Demétrio Valentim, Bispo de Jales, SP, que, como
estudante de Teologia em Roma, foi testemunha ocular e atuou como
jornalista na abertura e nas posteriores sessões do Concílio. Título da
sua conferência: “O Concílio Vaticano II visto a partir dos seus 50 anos”.
Pe. Dr. Vitor Feller, Diretor da FACASC, abordou a Lumen Gentium,
apresentando-a como “pilar eclesiológico do Concílio”. A Profa. Dra.
Maria Clara L. Bingemer, da PUC do Rio de Janeiro, propõe uma nova
visão sobre o papel e a contribuição do laicato, a partir da Apostolicam
Actuositatem. Destacamos ainda a reflexão do Prof. Dr. João Batista
Libânio, da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, salientando os desafios
da evangelização da juventude no tripé “Igreja, sociedade e juventude”.
Cada uma dessas conferências foi seguida de debate, que foi sintetizado
e consta nesta edição. Finalmente, o Prof. Daniel Ramada Piendibene,
atualmente embaixador da Republica do Uruguai junto à Santa Sé,
examina com acuidade o Desafio hermenêutico da Gaudium et Spes,
questionando o conceito da “continuidade”.
No conjunto, os textos retratam o tom e o significado das conferências e discussões do Congresso Teológico, cujo objetivo maior era
celebrar, com os 40 anos do ITESC, os 50 anos do Concilio Ecumênico
Vaticano II, além dos 45 anos do Documento de Medellin. Concluem esta
edição da nossa Revista dois artigos muito esclarecedores: o do Cardeal Walter Kasper, síntese de uma sua conferência sobre Um Concílio
a caminho, e o do Prof. Pe. José Artulino Besen sobre a movimentada
história dos 40 anos do ITESC: O Instituto Teológico de Santa Catarina:
1973-2012. Seguem as notícias e crônicas do ITESC e da FACASC,
precedidas de uma evocação da figura ímpar do Cardeal Carlo Martini,
uma das grandes vozes do pós-Concílio.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Editorial
Este número especial da nossa revista, que apresentamos como
“Anais do Congresso Teológico de 2012”, sobre as “memórias e perspectivas do Concílio”, não deseja senão contribuir para a lucidez de
nossa consciência eclesial e para o esforço de evangelização de nossa
sociedade, neste tempo-kairós que nos é dado protagonizar neste alvorecer do terceiro milênio.
Vilmar Adelino Vicente
Coordenador do Congresso Teológico/2012
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
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CONGRESSO TEOLÓGICO
CONCÍLIO VATICANO II – MEMÓRIAS E PERSPECTIVAS
Local: FACASC – ITESC
Data: 3 a 6 de setembro de 2012
Programação
Dia 3 de setembro (segunda-feira)
08h00 – Conferência: “Da apostolicam actuositatem aos ministérios leigos”
Dra. Maria Clara Bingemer – debatedor: Pe. Ms. Pedro Paulo das Neves
20h00 – Conferência: “Lumen Gentium, pilar eclesiológico do Vaticano II”
Pe. Dr. Vitor Galdino Feller – debatedor: Pe.Dr. Elias Wolff
Dia 4 de setembro (terça-feira)
08h00 – Conferência: “50 anos do Concílio Vaticano II – Esperanças e Desafios”
Dom Luiz Demétrio Valentini, bispo de Jales, SP
– debatedor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
20h00 – Conferência: “Juventude, Sociedade, Igreja”
Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ – debatedor: Pe. Dr. Domingos Nandi
Dia 5 de setembro (quarta-feira)
08h00 – Conferência: “Formação Presbiteral na Igreja atual”
Pe. Dr. João Batista Libânio,SJ – debatedor: Pe. Dr. Edinei da R. Cândido
20h00 – Conferência: “Gaudium et Spes, pilar teológico-pastoral do Vaticano II”
Prof. Dr. Daniel Ramada, Embaixador do Uruguai junto à Santa Sé
– debatedor: Pe. Dr. Vilmar Vicente
Dia 6 de setembro (quinta-feira)
08h00 – Conferência: “40 anos da Caminhada do ITESC:1973-2012”
Pe. Prof. José Artulino Besen – debatedor: Pe. Ms. Ney Brasil Pereira
20h00 – Apresentação teatral “O Contestado”, no teatro Pedro Ivo Campos
Grupo TOCA de Teatro Universitário da UNOESC, Joaçaba, SC
Debatedores: Jorge Fernandes Zommer e Carlos Alberto Pellegrin
Resumo: O autor começa contextualizando o início do Concílio na Igreja local,
no caso, em Santa Catarina, cuja primeira diocese data de 1908. Quanto ao
próprio Concílio, destaca sua consistência, abrangência, coerência, e suas
grandes intenções, a começar da eclesiologia do “povo de Deus”. Mostra como
o Concílio foi um momento de grande prática eclesial, mas não deixou de ter
os seus limites, inclusive por causa das resistências enfrentadas. Comenta os
“percalços na recepção do Concílio”, os “retrocessos” acontecidos, os valores
a resgatar, os avanços produzidos, os desafios a enfrentar. Quanto aos “frutos”
do Concílio, classifica-os de exuberantes, embora não sejam percebidos como
tais pelas novas gerações.
Abstract: At the beginning of his exposé, the author focuses on the context of
the Council drawing attention to the local Church in the State of Santa Catarina,
in Brazil,, whose first diocese was established in 1908. As for the Council itself
emphasis is placed on its major objectives and most of all the ecclesiology of
the “People of God”. Similarly, the Council stands out due to its focus on the
practice of faith in the Church, not to mention its limitations caused by resistance
felt in some areas. A special comment on the “restrictions at the reception of
the Council” as well as “retrogressions” in the pursuit of its goals, as opposed
to the values newly discovered, the fostering of new aims to be achieved and
challenges to be put into practice. As regards the “fruits” of the Council mention
is made of exuberant perspectives although they are not perceived as such by
the new generations.
O Concílio Vaticano II visto a partir
do jubileu dos seus 50 anos
Demétrio Valentini*
*
O autor é Bispo da diocese de Jales, SP. Na CNBB, é o Presidente do SPM, Serviço Pastoral dos Migrantes, e é o Bispo responsável pela Pastoral da Mulher Marginalizada.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 11-23.
O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
Introdução
O convite para falar do Concílio neste Congresso Teológico do
ITESC, em Florianópolis, chega dentro de uma seqüência de reflexões,
nas quais me vi envolvido há mais de um ano, atendendo a pedidos semelhantes, em diversas partes do Brasil e da América Latina. Pensei que
não era o caso de repetir aqui algumas das reflexões já feitas em outros
lugares e circunstâncias. Na proximidade da celebração do Jubileu da
abertura do Concílio, a 11 de outubro, me sinto mais animado a olhar
para este grande Concílio a partir das observações proporcionadas pela
série de encontros já feitos. Preferi então organizar a reflexão de hoje
a partir do “observatório conciliar” que a celebração do jubileu está
proporcionando. Assim fazendo, me parece estar revivendo o relato bíblico dos observadores enviados para conferir a “terra prometida”. Eles
já traziam exuberantes frutos, prova de grande fertilidade. Vale dizer, a
celebração do jubileu já está produzindo bons frutos, e isto me parece
um “fato relevante”, que comprova de maneira inequívoca a fertilidade
eclesial do Vaticano II.
No Brasil já pude fazer esta constatação em diversos lugares, a
começar lá pelo Maranhão, seguindo para Belém do Pará, passando por
Recife, indo até Porto Alegre, em Campinas, e com mais freqüência lá
por perto de Jales, nas dioceses da Província de Ribeirão Preto. O último
encontro foi o agradável convívio de três dias de estudo sobre o Concílio
na Diocese de Rio do Sul, nesta “Bela e Santa Catarina”. Em todos os
lugares, sempre procurei vincular o processo conciliar, com a caminhada
de cada “Igreja Local”. Para ver como o Concílio incidiu sobre nossa
realidade eclesial, e para nos apropriarmos do processo conciliar, para
que ele continue incidindo positivamente em nossa vida de Igreja, com
os valores que ele despertou.
Sempre é importante olhar o concílio, não como um fato isolado e
fora da dinâmica eclesial. Mas ao contrário, entendê-lo como um momento forte de eclesialidade, que tivemos a graça de viver em nosso tempo.
Daí resulta uma constatação interessante e valiosa. O Concílio serve de
boa referência comum, para avaliar nossa caminhada pastoral, fortalecer
nossa identidade eclesial, tendo o Concílio como parâmetro dinâmico
e desafiador. Ter o Concílio como referência para nossa caminhada de
Igreja, eis uma boa proposta que o jubileu está incentivando.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Demétrio Valentini
Nesse sentido, é salutar situar a história de nossas dioceses no
contexto da história maior da caminhada da Igreja, em nossa região, em
nosso país, na América Latina, e também no contexto universal.
Eclesiogênese em Santa Catarina
Na semana passada, em Rio do Sul, pudemos lançar um breve
olhar sobre a “eclesiogênese” da Igreja de Santa Catarina. As datas são
muito interessantes. A Diocese de Florianópolis foi criada em 1908, um
ano muito fecundo para a implantação das estruturas eclesiais em nosso
país. Neste mesmo ano em no Estado de São Paulo foram criadas cinco
dioceses: Campinas, Ribeirão Preto, Botucatu, São Carlos e Taubaté,
passando São Paulo a arquidiocese.
A criação dessas dioceses em 1908 já era uma demonstração de
como tinha sido salutar a separação entre Igreja e Estado, com a Proclamação da República. Até o final do Império só havia no Brasil onze
dioceses, espalhadas pelo imenso território brasileiro, nesta ordem de
sua criação: Salvador em 1551, Rio de Janeiro em 1575, Olinda/Recife
e São Luís do Maranhão em 1614, Belém do Pará (1719), São Paulo,
Mariana, Goiás e Cuiabá ( 1745) Porto Alegre (1848) e Fortaleza (1854).
Depois da República, já em 1892 foi criada a Diocese de Manaus, e em
seguida, em 1895 da Diocese de São Paulo foi desmembrada a diocese
de Curitiba, da qual se desmembraria Florianópolis em 1908.
Aí já estamos chegando em casa! Mas antes de conferir a criação
das Dioceses de Santa Catarina, me permito assinalar como dá para sentirnos participantes da mesma caminhada de Igreja no Brasil, constatando,
por exemplo, o “parentesco eclesial” entre Florianópolis e Jales, nem que
seja um parentesco de segundo ou terceiro grau! Pois o mesmo impulso
que levou à expansão das estruturas eclesiais em 1908, com a criação de
várias dioceses no Brasil, entre elas Florianópolis, repicou 50 anos depois,
na celebração do jubileu de ouro dessas dioceses, levando à criação de
muitas outras dioceses nos arredores de 1958, entre as quais Jales! Pronto, está comprovado o parentesco. Coisa, aliás, que seria bom cultivar,
numa época como a nossa, de crise de identidade e de fragmentação da
realidade eclesial. Em nossas diferenciações, formamos a mesma Igreja,
e isto deve servir de motivação e de brio eclesial.
Mas, vamos agora conferir as Dioceses de Santa Catarina, na
ordem de sua criação.
Encontros Teológicos nº 64
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O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
Florianópolis em 1908, Lages e Joinville em 1927, Tubarão em
1954, Chapecó em 1958 , Rio do Sul e Caçador em 1968, Joaçaba em
1975, Criciúma em 1998, e Blumenau em 2000.
Uma constatação importante a ter presente é, certamente esta: o
concílio aconteceu numa época de intenso crescimento eclesial em nosso
país, que em cento e poucos anos passou de onze dioceses às duzentas e
setenta e seis que existem agora. Certamente o panorama eclesial seria
bem diferente se não tivesse havido o Concílio, com seu grande impulso
de renovação eclesial! Quantos assuntos mereceriam mais reflexão, ao
olhar para o Concilio à distância de 50 anos de sua realização!
Bem introduzidos, vamos às constatações.
1 Vaticano Segundo: um grande concílio!
Esta constatação vai emergindo com sempre maior clareza: o
Vaticano II foi um grande concilio ecumênico, que não fica devendo em
importância a nenhum outro dos 21 concílios ecumênicos já acontecidos.
Em nossa época, tivemos um respeitável concílio, cujos desdobramentos
não se esgotam tão rapidamente. Sua grandeza pode ser percebida de
diversos ângulos.
1.1 Sua consistência:
O Vaticano II teve como seu tema central a IGREJA, na sua natureza e na sua missão. Um tema forte, oportuno, decisivo. Na história
da Igreja, o Vaticano Segundo vai ficar marcado para sempre como o
concilio “eclesiológico”, que abordou a Igreja, de maneira profunda e
exaustiva.
1.2 Sua abrangência
O Vaticano II abordou o seu tema central de maneira ampla e
diversificada, flagrando a realidade da Igreja em seus diversos ângulos
e diferentes situações. Descreveu a Igreja na totalidade de sua natureza,
mas também na sua missão, e a partir dos diversos sujeitos eclesiais, e
confrontando a Igreja com o contexto humano em que ela vive e cumpre
sua missão.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Demétrio Valentini
Foi muito abrangente na maneira de analisar e definir a Igreja
de Cristo.
1.3 Sua pertinência:
Foi muito oportuno que o Concílio tivesse abordado em profundidade o tema da Igreja. Depois de dois mil anos de caminhada, estava
mais do que na hora da Igreja parar um pouco, para se analisar e avaliar,
à luz dos critérios que permanecem sempre como referência indispensável: o retorno às fortes, o Evangelho de Cristo e o testemunho eclesial
da Igreja Primitiva.
Foi providencial que o Concílio tivesse abordado o tema Igreja,
mesmo sem ainda assimilar bem todas as dimensões apontadas pelo
Concílio.
1.4 Sua coerência:
Os diversos documentos conciliares se complementam mutuamente. Eles formam uma verdadeira constelação, ao redor da Lúmen Gentium,
o seu documento central. De fato, dá para arquitetar uma verdadeira
“constelação solar” ao redor da Lúmen Gentium, colocando próximas
a ela as outras três “constituições”, em seguida os nove “decretos” e
depois as três “declarações”.
Todos estes documentos tem um elo comum, a uni-los e situá-los:
a Igreja de Cristo, sua constituição fundamental como “povo de Deus”,
sua missão neste mundo, na sua tarefa de evangelização e sua presença
solidária na sociedade. E´ sempre um bom exercício, sem ter os textos
na mão, ir colocando todos os documentos conciliares ao redor da Lúmen
Gentium. O concílio se manteve muito coerente na elaboração dos seus
documentos.
1.5 A qualificação dos seus documentos
O concílio foi muito consistente doutrinalmente, e muito rico
pastoralmente. Não se sustenta a afirmação de que este concílio só foi
uma reunião pastoral, sem a intenção de propor verdades doutrinais.
Encontros Teológicos nº 64
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O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
O fato de ter sido muito pastoral, a ponto de ter elaborado até uma
“constituição pastoral”, não quer dizer que ele não tenha sido doutrinal.
Basta conferir como abordou teologicamente o mistério da Igreja.
2 As grandes intuições do Concílio
No conjunto em que resultou o concílio, é possível destacar
algumas grandes intuições, tanto de ordem doutrinal, como de ordem
pastoral.
De ordem dogmática se destacam a visão da Igreja como “Povo
de Deus”, e a afirmação clara, firme e bem dimensionada da Colegialidade Episcopal, com as muitas decorrências que procedem destas duas
afirmações.
Algumas intuições de ordem pastoral são muito fecundas. Por
exemplo, a dimensão histórica da Igreja, decorrente de sua condição
de “povo de Deus”. É sempre oportuno ter presente esta dimensão da
Igreja, tanto para relativizar algumas situações vividas pela Igreja ao
longo de sua caminhada, como para valorizar a inserção na história, que
a Igreja sempre precisa cultivar, para ter consistência, e poder influenciar
positivamente a realidade onde ela vive.
Outra preciosa intuição do Concílio consiste na valorização das
“Igrejas Locais”, que continuam sendo referência indispensável para
situar a eclesialidade de todos os que pretendem se identificar com a
Igreja de Cristo. As “dioceses” serão sempre parâmetro para as antigas,
como para a novas expressões eclesiais.
Outra intuição decorrente da visão de “Igreja povo” e de “Igrejas
locais” é a importância das comunidades, como realizações concretas
da Igreja, e como expressão de comunhão eclesial e de inserção na
realidade.
3 O Concílio: momento de intensa prática eclesial
Outra salutar constatação vai no sentido de entender o Concílio
não como um hiato na caminhada da Igreja, ou um acidente de percurso,
ou como um evento fora da dinâmica eclesial. Ao contrário, o Concílio
foi um momento de intensa vivência eclesial, em continuidade com
a caminhada que a Igreja vinha fazendo. Em grande parte, o Concílio
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Encontros Teológicos nº 64
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Demétrio Valentini
foi fruto da vitalidade da Igreja, que se expressava através de diversos
movimentos pastorais, que foram renovando sua vitalidade.
Podemos citar alguns deles, com emblemáticos desta vitalidade da
Igreja. O movimento litúrgico, que forneceu à reforma litúrgica preciosa
contribuição. E assim outros movimentos, como o movimento bíblico,
ecumênico, o despertar missionário da Igreja da Europa, voltado especialmente para a África. O próprio Padre Ângelo Roncalli, futuro João
23, abriu caminho para a sua projeção pessoal por seu engajamento nas
“obras missionárias” de sua diocese de Bérgamo.
O concílio não ignorou os movimentos que o precederam. Tornouse estuário, onde eles puderam desembocar, possibilitando sua realização mais eficaz. Como exemplo mais emblemático podemos citar o
movimento litúrgico. O Concílio possibilitou concretizar as propostas
do movimento litúrgico, que antes eram apenas sonhos para um futuro
ainda incerto. Com o concílio, soou a hora da graça para estes movimentos, que assim puderam se enraizar melhor na Igreja, e serem hoje nela
integrados tranquilamente.
4 O Concílio como processo desencadeado
A visão do concilio como momento de vivência eclesial, nos
permite compreender melhor sua dinâmica, e seu alcance, como um
processo, desencadeado a partir da própria Igreja, que ainda continua.
Com isto, se confirma a visão do Concílio a partir da “hermenêutica da
continuidade”, como insiste Bento XVI. Como processo, se compreende melhor o alcance de algumas referências que o Concílio colocou,
e que permanecerão sempre como estímulo para a Igreja buscar nelas
sua inspiração.
Tomemos como exemplo o “sonho de Igreja”, que João 23 apresentou no discurso de abertura do Concílio, no dia 11 de outubro de 1962.
Uma Igreja chamada a ser “Mãe amorosa de todos, paciente, benigna,
cheia de misericórdia e de bondade para com todos, também para com
aqueles que dela se afastaram”. O Concílio propôs um ideal de Igreja,
que precisa sempre ser buscado e colocado como referência.
Encontros Teológicos nº 64
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O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
5 Os limites do Concílio
Seria ingenuidade não constatar limites concretos enfrentados
por este Concílio. A Igreja vinha de um longo período de estagnação
de suas estruturas. Havia uma predisposição para rejeitar o processo de
mudanças que o Concílio propunha. Paradigma desta estagnação era a
rigidez com que se lidava com a liturgia, que estava “congelada” deste
os tempos de Pio V, no século 16.
Os “padres conciliares” mais lúcidos, logo se deram conta que o
Concílio tinha que ser “moderado nas propostas”, na recomendação do
Papa João 23. Era preciso ir de vagar, para deixar as “portas abertas” para
dar outros passos, quando as circunstâncias permitissem. Portanto, o trabalho conciliar era monitorado de perto pela mentalidade conservadora,
que só aos poucos foi se abrindo, ao longo do processo conciliar.
Havia também a percepção de que alguns temas eram “improponíveis” para o concílio, pois iriam suscitar discórdia e dissolução da
maioria conseguida em plenário pela postura de moderação e de bom
senso dos presidentes das comissões. Este senso dos limites do concílio
foi demonstrado claramente por Paulo VI, quando o bispo de Lins, D.
Pedro Paulo Koop, apresentou a proposta de ordenação dos “viri probati”.
Paulo VI logo reagiu, tirando estes assunto da pauta do Concílio. Não é
que Paulo VI era contra o teor da proposta. Mas ele não queria que este
tema implodisse o concílio.
Portanto, este foi um concílio feito com o entusiasmo pela renovação da Igreja, suscitado por João 23, mas que se defrontava com
limites bem concretos. Nesse sentido, dá para dizer que o Vaticano II foi
generoso nas intenções, mas tímido nas decisões. Este me parece ser um
referencial muito prático para avaliar todo o processo conciliar.
6 As resistências enfrentadas
Desde o início do seu processo, o Vaticano II experimentou resistências. O próprio João 23 testemunhava que no dia do anúncio do
concílio, a cara de alguns cardeais demonstrava bastante ceticismo diante
da proposta de um concílio ecumênico que ele acabava de anunciar.
Estas resistências encontraram diversas formas e oportunidades
para se manifestar. Uma delas, bem explícita, foi a manobra preparada
pela Cúria Romana para a eleição dos membros das Comissões Conci-
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Encontros Teológicos nº 64
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Demétrio Valentini
liares, na primeira sessão de trabalho. Como cada bispo devia indicar
16 membros para cada uma das dez comissões, prevendo a dificuldade
que isto representava, a Cúria preparou uma lista já pronta, colocada à
disposição de cada bispo. Era claro o objetivo de manipular o concílio,
pela composição conservadora das comissões.
Outras resistências procediam da longa oposição ao modernismo,
que vinha sendo incentivada há tempo na Igreja. Tudo o que se parecesse
como uma concessão à modernidade, era visto em princípio como suspeito. As resistências específicas contra a dinâmica e o conteúdo do Concílio
se articularam em forma de um grupo de bispos, identificados como
“coetus internationalis patrum”, (grupo internacional de “padres”).
Este grupo de bispos, à cuja frente estava Mons. Marcel Lefebvre,
sistematizou uma resistência às posições majoritárias do Concílio, ao
longo de todo o período conciliar, e depois do concílio endureceu ainda
mais suas posições. De modo que também este concílio, proposto com
tanta abertura de espírito por João 23, enfrentou sérias resistências, que
acabaram se concretizando num cisma, que a duras penas o atual Papa
tenta agora dissolver, através de um difícil diálogo que é levado adiante
com muita paciência por parte de Bento XVI.
7 Percalços na recepção do Concílio
A Igreja da América Latina deu um bonito exemplo de acolhida
pronta e generosa do Concílio. Antes que terminasse o Concílio, D. Helder
e Dom Larrain, Presidente do Celam, tinham proposto ao Papa Paulo VI
uma espécie de “concílio para a América Latina”, para adaptar à nossa
realidade as grandes orientações do Vaticano II.. Assim é que apenas
três anos depois de encerrado o Concílio, aconteceu a Conferência de
Medellín, que tinha o propósito de trazer a dinâmica do Concílio para
dentro da caminhada da Igreja da América Latina.
Se compararmos com o Vaticano Primeiro, constatamos a grande
diferença. Só em 1999, trinta anos depois do Vaticano Primeiro, foi
realizado o “Concílio Plenário Latino Americano”, com a intenção de
aplicar à América Latina as rígidas disposições disciplinares decorrentes
daquele Concílio. Ao passo que, três anos depois de concluído o Vaticano II, com a Conferência de Medellín a Igreja da América Latina se
sentia profundamente envolvida com as propostas de renovação eclesial
apresentadas pelo Vaticano II.
Encontros Teológicos nº 64
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O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
Mas é forçoso constatar que houve muitos atropelos na recepção
do Concílio. Muitas vezes não se respeitava a mentalidade das pessoas,
que se sentiam desestabilizadas interiormente, e inseguras no seu procedimento. Estes atropelos, com freqüência, se traduziam em abandono
do próprio estado de vida, sobretudo em desistências de padres, de
religiosos e religiosas.
Durante o Concílio, os próprios bispos experimentaram uma
abertura progressiva de sua mentalidade. Mas na aplicação do Concílio
era mais difícil seguir as boas recomendações de João 23, de manter a
“serenidade de espírito, a concórdia fraterna, a moderação nas propostas,
a dignidade das discussões, e a prudência nas decisões”. Se fôssemos
fazer tudo de novo, com certeza algumas coisas poderiam ser feitas com
mais prudência e menos atropelo das mentalidades.
8 Retrocessos acontecidos
É bom também constatar que houve alguns retrocessos ao longo
da aplicação do Concílio. A clara afirmação da Colegialidade Episcopal,
tinha despertado a esperança de que ela seria usada como suporte sólido,
tranqüilo e seguro, para uma prática eclesial de maior descentralização
da Igreja, sob a responsabilidade das Conferências Episcopais.
Mas, quase ao contrário, as Conferências Episcopais foram se
tornando instrumento usado para a “formatação uniforme da Igreja”.
Elas poderiam se tornar referências seguras que permitissem à Igreja
acolher em seu seio expressões eclesiais diversificadas, que poderiam
manter suas características, em plena comunhão eclesial.
O potencial eclesial da Colegialidade Episcopal ainda não está
sendo devidamente valorizado. Este potencial permitiria uma autonomia
maior das dioceses, para decidirem o que fosse mais conveniente para a
sua dinâmica pastoral, e sua responsabilidade eclesial.
E assim daria para acenar para outros retrocessos. Na importância
dada às comunidades eclesiais, na reflexão teológica que sempre precisa
acompanhar o processo eclesial, dando-lhe segurança e consistência.
Outros retrocessos podem ser identificados nos campos específicos de
cada decreto conciliar.
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Encontros Teológicos nº 64
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9 Valores a resgatar
Passados 50 anos do Concílio, não é tão difícil perceber que sua
riqueza não se esgotou, e pode ainda ser recuperada. Existem valores a
resgatar. Dá citar os mais consistentes:
– a visão da Igreja como “Povo de Deus” resgatando sua dimensão bíblica e histórica.
– a Colegialidade Episcopal, como suporte simultâneo para a
comunhão e a diversidade eclesial.
– a valorização das Dioceses como “Igrejas locais” servindo de
referência eclesial indispensável.
– a importância das “comunidades eclesiais”, com seus diversos
formatos sociológicos, mas sendo concretizações da Igreja, inseridas na realidade, como fermento evangélico na sociedade.
– a reflexão teológica, como parte integrante do processo eclesial, com a missão de dar segurança e consistência à prática
eclesial.
10 Avanços produzidos
Ao lado de retrocessos, é importante constatar significativos
avanços na caminhada da Igreja a partir do Concílio. Foi para garantir
o processo conciliar que Paulo VI instituiu o “sínodo dos bispos”, uma
espécie de “mini concílio” a se realizar periodicamente, ou de maneira
especial para atender a situações localizadas. Os “sínodos” poderiam ser
mais eficazes se fossem deliberativos. Mas assim mesmo, produziram
avanços significativos na caminhada da Igreja em nosso tempo.
Olhando a trajetória da Igreja nestes últimos 50 anos, dá para identificar algumas ênfases, que foram despertando a Igreja para dimensões
importantes. A primeira destas ênfases emergiu com força no tempo do
Concílio, na forma do “aggiornamento” da Igreja, proposto por João 23.
A primeira ênfase, portanto, foi a “renovação”.
Com o sínodo de 74, sobre a Evangelização, se firmou outra ênfase
que motivou muito a caminhada da Igreja, em forma de “evangelização”. Desde aquele sínodo, até hoje, a palavra que encabeça o “objetivo
geral” da CNBB é sempre a mesma: “evangelizar”. Outra ênfase pode
ser identificada a partir da encíclica de João Paulo II, a “Redemptoris
Missio”, onde ficou destacada a razão de ser da Igreja, que é a MISSÃO
Encontros Teológicos nº 64
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O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos
que ela tem a cumprir. A Conferência de Aparecida, de certa maneira,
retomou estas ênfases, identificando-as de modo operativo em forma de
“discípulos (e) missionários” de Jesus Cristo.
Em todo o caso, com o Concílio, a Igreja não estagnou sua caminhada. Ao contrário, a retomou, com novas motivações.
11 Continuidade do processo
As reflexões sobre o Concílio fazem emergir esta outra constatação
importante: ele não foi um fato isolado, mas um processo desencadeado,
que pode sempre retomar vigor.
Daria para dizer que o Concílio despertou a “conciliariedade” da
Igreja, como uma dinâmica que pode ser acionada de acordo com as
circunstâncias históricas. Tanto que, a rigor, fica relativizada a questão
se teremos ou não um outro concílio. Sem negar a possibilidade, e a
conveniência, de um novo concílio, podemos com segurança levar em
frente o processo desencadeado pelo Vaticano II.
12 Desafios pela frente
Um concílio como este coloca evidentes desafios. Seja para implementar suas recomendações, como para retomar as suas grandes inspirações. Tomemos, por exemplo, a generosa proposta de renovar a Igreja de
Cristo, para que possa cumprir sua missão de evangelizar a humanidade
de hoje. Como podemos empreender, de novo, um impulso renovador,
que supere as resistências que até agora impediram uma renovação mais
adequada e consistente da Igreja? Ou o desafio da liturgia: como melhorar
nossas celebrações, valorizando os passos dados, justificando-os diante
de quem os contesta e acha que se deve retroceder?
É normal que um grande concílio deixe grandes desafios a
enfrentar.
12 Frutos do concílio
Este é um capítulo fácil, e exuberante. Quantos frutos podemos
colher, agora, em decorrência do impulso positivo do Concílio.
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Demétrio Valentini
Acontece que as novas gerações nem se dão conta das grandes
mudanças ocorridas, e de quanto foram benéficas. Sem nos dar conta,
respiramos as grandes mudanças trazidas pelo concílio. Não faz mal,
de vez em quando, recordá-las, para constatar quanto foram diversas e
profundas.
13 Ponderações finais
O Concílio não foi um meteoro, que só passou perto do planeta,
e na medida que se afasta vai perdendo luminosidade. Ao contrário, o
jubileu está mostrando que, quanto mais os anos passam, mais nos damos
conta da grandeza desse acontecimento, que ainda permanece atual.
Depende de como nos posicionamos diante dele. O concílio pode
ser uma graça desperdiçada, ou uma oportunidade valorizada.
A celebração do jubileu está mostrando claramente que podemos
fazer do Concílio uma grande oportunidade de renovação da Igreja, e de
profundo envolvimento pessoal com suas causas. Depende de nós!
Endereço do Autor:
Rua Vinte, 3061
CEP 15700-000 Jales, SP
Email: [email protected]
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TRIBUTO A DOM CLEMENTE ISNARD1
Sebastião Armando Gameleira Soares2
Conheci Dom Clemente em Roma, durante o Concílio Vaticano II, quando cursava
teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Ele era visto por nós como o bispo da Liturgia.
Fazia parte da comissão conciliar internacional e da comissão da CNBB para a implantação da
reforma litúrgica.
Talvez tenhamos sido nós, estudantes do Pio Brasileiro, o primeiro grupo a experimentar
a nova liturgia da missa, antes ainda da promulgação da Sacrosanctum Concilium. Dom Clemente
sentiu-se autorizado a passar-nos o novo rito da missa, ainda em latim, para traduzir provisoriamente
em português uma das orações eucarísticas, tradução que revisou e aprovou. Eu mesmo me meti a
colaborar na tarefa. Num fim de tarde, na acolhedora cripta da capela do colégio Pio Brasileiro, sob
a presidência dele, reunia-se uma assembleia nossa de uns vinte estudantes de teologia. Com que
emoção éramos todos ali “um só coração e uma só alma”, com a doce e ingênua expectativa de que
estávamos a plantar, com o sacramento do Corpo e Sangue do Cristo e a escuta da Palavra, a semente
da maravilhosa mudança da Igreja que, de qualquer forma, mexeria com as estruturas da sociedade
opressora. “Pão que dá vida ao mundo”, penhor, sempre, da nova vida que irradia da Ressurreição de
Jesus. Terminado o Concílio, estivemos com ele muitas vezes em suas idas e vindas a Roma. [...]
Reencontramo-nos muitos anos depois, no Recife, ele já emérito, e eu, casado com
Madalena – a vida dá muitas voltas – bispo da Igreja Anglicana do Recife. [...] Quando celebrou
os cinquenta anos de sua ordenação episcopal, em julho de 2010, fez-nos gesto de fina delicadeza.
Madalena e eu estávamos na assembleia litúrgica. Ele, sentado a presidir a missa, pela fraqueza
das pernas. Em certo momento, para surpresa de todos, disse mais ou menos o seguinte: “Está
entre nós alguém que conheci há muitos anos, quando ele era jovem estudante em Roma. Depois,
perdemos o contacto. Há algum tempo aqui no Recife nos reencontramos, ele agora bispo da
Igreja Anglicana. Neste momento, antes da Santa Comunhão, vamos realizar o gesto tradicional
do ‘partir o pão’, que aponta para o sentido profundo da Eucaristia, partilha em comunhão fraterna
na suprema doação de Cristo. Convido Dom Sebastião a se aproximar e que nos demos o ósculo da
paz, sinal da unidade da Igreja, para em seguida comungarmos da mesma mesa do único Senhor”.
Madalena e eu nos dirigimos à sua cadeira presidencial, abraçamo-lo e o beijamos com intensa
emoção espiritual, ao experimentar profundamente o quanto podemos ser no mundo testemunhas
de unidade na diversidade. Comunhão no sentido mais pleno da palavra, gesto de delicadeza de
quem sabia o que significa realmente celebrar liturgia como expressão do que se vive.[...]
O exemplo de Dom Clemente, em seus últimos anos, foi o de tomar a palavra com
liberdade e coragem. Assim, mesmo contrariando o sistema (editoras católicas se recusaram a
publicar seus inocentes opúsculos), lançou um grito de alerta à Igreja, quanto ao risco de fechar-se
aos apelos da realidade, aos “sinais dos tempos”. As estatísticas não estão a dizer o resultado da
“política de avestruz”? [...]
Não deve ser este o ministério dos bispos e padres eméritos, a intrépida tomada da palavra
para profetizar à Igreja e anunciar-lhe corajosamente os rumos da vontade de Deus? Como calar
diante da tentativa de jogar fora a luminosa herança que a Igreja tem tido em mãos nos últimos
50 anos? [...] Dom Clemente foi um bispo plenamente consciente de sua tarefa de “magistério
episcopal”, que exerceu até o fim, renovando-a com admirável lucidez e coragem profética, da
“emérita” altura dos seus 90 anos...
(Excertos da Apresentação de Dom Sebastião ao livro “Memórias que anunciam o Futuro”,
em homenagem a Dom Clemente Isnard, Recife, 2012, pp. 15-24)
1
Dom Clemente Isnard, beneditino, bispo de Nova Friburgo, RJ (1960-1994), faleceu em 24-082011 como Bispo emérito.
2
Dom Sebastião Armando é Bispo da Diocese Anglicana do Recife, da IEAB.
Debate sobre a Conferência
de Dom Luiz Demétrio Valentini
Sintetizador: Erik Dorff Schmitz*
*
Graduando do 2º ano de Teologia da FACASC.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 25-27.
50 anos do Concílio Vaticano II
Debatedor, Pe. Dr. Vitor Galdino Feller: Iniciou sua reflexão
elogiando a retrospectiva feita a respeito da eclesiogênese da Igreja
em Santa Catarina, em comunhão com a caminhada histórica da Igreja
no Brasil à luz do Concílio Vaticano II. Questionou sobre como fazer
com que os bispos assumam de fato o sentido pleno de sucessores dos
apóstolos e também de “vigários de Cristo”, e não vigários do vigário de
Cristo, com sua auctoritas, parresia e profecia. Como trabalhar mais em
nosso tempo o profetismo social, não só dos bispos mas de toda a Igreja,
profetismo bastante apagado na atualidade? Como fazer um verdadeiro
retorno a Jesus de Nazaré, e passar de uma Igreja preocupada com o
triunfo, para uma Igreja mais simples, kenótica, sóbria, empenhada em
lutar contra os poderes religiosos das “novas religiões” do nosso tempo.
E o que teria acontecido com a Igreja se não fosse o Concílio?
Dom Demétrio concordou com a necessidade de os bispos terem
maior colegialidade e comunhão, bem como eles e a Igreja darem maior
ênfase às questões sociais, buscando configurar-se de fato a Jesus de
Nazaré. O Concílio abrangeu um leque muito grande de preocupações
como essas, que não podemos deixar de partilhar.
Outras questões da assembleia, comentadas pelo conferencista
Dom Demétrio:
1ª – Neste jubileu de abertura do Concílio vemos muito como
negativo, ou seja, o que ainda não se realizou do Concílio. Porque não se
salienta mais a dimensão da continuidade do Concílio, como a Comissão
que o preparou?
R.: O Concílio Vaticano II foi uma benção e alegria, porém receiase que se feche o processo de sua recepção.
2ª – O Concílio Vaticano II abriu a perspectiva para o mundo moderno, mas já estamos no pós-moderno (da globalização e consumismo;
cultura individualista e autonomia do sujeito na prática; secularização
total; perspectiva niilista e falta de sentido de vida). Quais as propostas
do Concílio para enfrentar o nosso mundo, ou há necessidade de se fazer
um outro Concílio?
R.: Devemos nós mesmos fazer “pequenos concílios”, nas bases.
O Concílio Vaticano II talvez veio cedo demais, antes da virada cultural
de 1968. Ou talvez veio tarde demais. Em tempos de crise, tem-se a volta
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência de Dom Demétrio Valentini
do conservadorismo. É motivo para um novo Concílio? Pode ser. Nesse
caso, teríamos o aprendizado recente do Vaticano II.
3ª – Uma palavra muito usada no Concílio Vaticano II foi “serviço”.
Essa atitude devemos recuperar na Igreja pós-Vaticano II. Na liturgia se
pergunta muito o que eu posso fazer ou não posso fazer, mas essa pergunta
é errada. Deve-se perguntar como eu posso celebrar melhor o mistério de
Deus. A grande ênfase da Sacrossantum Concilium não foi mudar ritos,
mas fazer com que o mistério de Cristo fosse melhor recebido. Ficamos
porém muito na mudança exterior, e a mudança interior onde está?
R.: Os apóstolos se deram conta de que deveriam partilhar o serviço. Quanto a nós, é preciso estarmos abertos a novas ideias e propostas
para dinamizar os ministérios, os serviços: dos leigos e leigas, diáconos
e presbíteros.
4ª – Onde estão os nossos profetas hoje, já que a geração profética
conciliar não existe mais? Por exemplo, na história de Israel, quando os
profetas cessaram, surgiram os anônimos, como o 2º Isaías. Hoje, na
ausência de Deus na sociedade, a tímida recepção do Vaticano II não
seria um profetismo minguado?
R.: Já que estão faltando grandes profetas, então vamos ser todos
nós pequenos profetas, mas profetas de fato.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
27
Resumo: O artigo começa aludindo aos “quatro pilares”, as quatro Constituições conciliares, fazendo notar que a Lumen Gentium é o “pilar eclesiológico”
do Vaticano II. Após uma contextualização remota do próprio Concílio, o autor
analisa as três etapas de sua interpretação/recepção, e discorre sobre o “processo quenótico-pascal” da Lumen Gentium. Analisa os conceitos centrais de
“mistério” e “povo de Deus”, aplicados à Igreja, destacando este último conceito,
que marca a virada eclesiológica. Afirma que “povo de Deus” é uma realidade
substantiva, a “eclesialidade primeira”. Na conclusão, lembra as duas atitudes a
serem cultivadas pela Igreja: ad extra, a disposição para o serviço, e ad intra, o
princípio da colegialidade. E adverte que o “retorno sincero” ao Vaticano II nos
ajudará a encontrar o justo caminho da Igreja neste início do novo milênio.
Abstract: The author begins by a reference to the “four pillars” dealt with in
the four Constitutions of the Council, laying stress on the document of Lumen
Gentium as the “ecclesiological pillar” of Vatican II. In the initial paragraph he
recalls the remote context of the Council itself giving the author the opportunity
to analyze the three phases both of its interpretation and reception laying stress
on the “kenotic paschal process” of Lumen Gentium. He then goes on studying
the central concepts of “mystery” and “people of God” which are applied to the
Church, with special emphasis on the last one which is characteristic to the great
change in ecclesiology. He defines the “people of God” as a substantial reality,
that is, the “first ecclesiology”. In the conclusion he reminds the reader of two
attitudes to be cultivated by the Church: ad extra, the involvement of the faithful
in rendering service, and ad intra, the principle of collegiality. He offers a word
of advice in the sense of a “sincere return” to Vatican II which will help us to find
a direct way of the Church at the beginning of the new millennium.
Lumen Gentium: pilar eclesiológico
do Concílio Vaticano II
Vitor Galdino Feller*
*
O autor, Doutor em Teologia Sistemática pela Gregoriana, é Diretor da FACASC e do
ITESC.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 29-50.
Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
Introdução
A celebração dos 50 anos do Concílio Vaticano II é oportunidade
para retomar suas grandes propostas, tal como foram elaboradas e argumentadas pela maioria conciliar, que quis promover uma virada no modo
de se entender a Igreja e de ela se relacionar com o mundo. Enquanto o
Vaticano II, sobretudo na Lumen Gentium, propunha o retorno às fontes
bíblicas e patrísticas da fé cristã, percebe-se que hoje é preciso voltar ao
Vaticano II, para interpretá-lo conforme o desejo de seus protagonistas e
fazer dele a fonte inspiradora dos grandes projetos evangelizadores para
o início do novo milênio.
Chamamos a Lumen Gentium de pilar eclesiológico do Concílio.
Um edifício se constrói com pelo menos quatro pilares. Os do Vaticano
II são: as duas constituições referentes às duas mesas com as quais o Pai
alimenta seu povo, Dei Verbum e Sacrosanctum Concilium, respectivamente sobre a mesa da Palavra e a mesa dos sacramentos, sobretudo da
Eucaristia; e as duas constituições referentes à Igreja, Lumen Gentium e
Gaudium et Spes, respectivamente sobre o ser e o agir da Igreja, respondendo às duas perguntas postas pelos Padres conciliares logo no início do
Concílio: quem és tu, Igreja? E: Igreja, o que tens a dizer ao mundo? Se,
depois, considerarmos que na Gaudium et Spes temos o cuidado pastoral
de ampliar o leque dos serviços que a Igreja presta ao mundo, de incentivar a caridade cristã num mundo em mudança, poderíamos entender
que esse documento fala, então, da terceira mesa: a mesa ou o múnus
(serviço, ofício) da Caridade. Assim os três múnus – profecia ou Palavra,
celebração ou Liturgia, pastoreio ou Caridade – teriam, cada um, uma
constituição que lhe dá fundamento bíblico-teológico-místico-pastoral:
Dei Verbum, para o múnus do ensino, Sacrosanctum Concilium para o
múnus do culto, e Gaudium et Spes para o múnus do serviço. A Lumen
Gentium ficaria, então, como o fundamento dos fundamentos!
O presente artigo se propõe analisar a Lumen Gentium como o
documento central do Concílio, em que se fazem presentes as grandes
propostas de mudança histórica na imagem da Igreja e na sua relação
com a modernidade. Primeiro, faremos uma contextualização do Concílio como estuário de um grande movimento histórico de reforma
que sobreviveu no subterrâneo da história eclesiástica no decorrer dos
últimos 1500 anos. Em seguida, faremos uma análise das três etapas
diversas de interpretação do Concílio. Depois, trataremos do processo
quenótico-pascal do documento. Por fim, após ressaltar-se a importância
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Vitor Galdino Feller
do conceito de mistério, resgata-se a imagem da Igreja como povo de
Deus, articulando-a com a consciência da inserção da Igreja no mistério
da Trindade e com a prática eclesial da encarnação do Evangelho na
história. A imagem de povo de Deus, vista à luz do conceito patrístico da
comunhão, mostra-se assim como realidade substantiva e globalizante, a
mais adequada e condizente com o mistério de nossa fé e com os desafios
atuais da evangelização.
Cinquenta anos representam muito pouco diante dos 2000 anos da
história da Igreja. Seria exigir demais que, nestes poucos 50 anos após
o Concílio Vaticano II, a Igreja tenha conseguido se despojar da roupagem clerical e piramidal com que se revestiu nos 1500 anos anteriores.
Todavia, 50 anos significam mais que a metade da existência de um fiel.
É muito, em termos particulares!
Se, por um lado, deve-se cultivar a paciência histórica que vai
pavimentando decidida e firmemente a estrada rumo a um novo modo
de ser Igreja, de outro lado, não se pode perder tempo. É agora o tempo
que temos, o tempo que nos cabe e nos resta, para fazermos acontecer,
em nosso favor e para o bem das novas gerações, a mudança histórica
querida e promovida pelo Concílio Vaticano II.
Contextualização remota do Concílio Vaticano II
Para entender a virada promovida pelo Concílio Vaticano II, sobretudo por suas duas grandes constituições – a Lumen Gentium, sobre a
identidade da Igreja, e a Gaudium et Spes, sobre a presença da Igreja no
mundo –, convém situar historicamente este grande evento, que marca
hoje a nossa história.
O Concílio Vaticano II foi a primeira ocasião, no longo período
de 2000 anos, em que a Igreja parou para refletir sobre si mesma e, mais
ainda, para se enxergar através dos olhos do mundo. Desde o século IV,
quando, por obra de Constantino, imperador romano, o cristianismo
tornou-se religião oficial do Império, a Igreja havia assumido uma postura
conflitiva na sua relação com o mundo.
Na segunda metade do primeiro milênio, dos anos 400 a 1000,
houve supremacia do Império sobre a Igreja, os reis e imperadores interferindo nas coisas eclesiásticas, na escolha de bispos, na criação de
dioceses, nas decisões de concílios e sínodos etc., com nefastas consequências para a liberdade da Igreja.
Encontros Teológicos nº 64
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
A primeira metade do segundo milênio, dos anos 1000 a 1500, foi
caracterizada como a época da cristandade medieval, com a supremacia
da Igreja sobre a sociedade, com o Papa interferindo nas coisas civis e
temporais. Nessa época, aconteceram as duas grandes divisões da Igreja:
em 1054, o cisma entre Oriente e Ocidente; no século XVI, a separação
das igrejas da Reforma. A imposição da verdade e a preocupação com o
poder fizeram com que a Igreja se tornasse protagonista de fatos claramente anti-evangélicos, por ex., a inquisição, as cruzadas e o genocídio
de culturas e povos indígenas.
Na segunda metade do segundo milênio, dos anos 1500 até o Concílio Vaticano II, houve um movimento progressivo de fechamento da
Igreja, de enfrentamento da Reforma e do Iluminismo, de distanciamento
com relação ao mundo, de oposição entre Igreja e mundo, com a Igreja
se afirmando como sociedade perfeita, com leis, estruturas e quadros
próprios, em competição com o mundo.
Em todo esse tempo, foi intenso e persistente o desejo de reformas.
Por trás de toda a movimentação reformística estava a certeza de que a
Igreja não pode viver sem o mundo. Ela é, por sua própria constituição
evangélica, fermento na massa, luz no ambiente, semente na terra, sal na
comida, grão lançado no chão. Fora do mundo, a Igreja se perde, o grão
apodrece sem poder germinar, o fermento fica na prateleira, o sal, no
saleiro, a semente, no saco. Fora do mundo, a Igreja não tem salvação.
Numa breve resenha dos principais anseios de reforma, temos:
No século XI, com o papa Gregório VII, a Igreja, que vivia sob a
influência de reis e imperadores, promove grande reforma, em busca da
liberdade diante do poder civil, para poder escolher seus papas e bispos,
criar suas instituições etc. Problema foi terem as coisas se invertido: a
Igreja, com o fortalecimento do papado, passa a dominar o poder civil.
O século XII foi marcado pelos movimentos pauperistas ou mendicantes, que queriam uma Igreja mais pobre e simples, despojada da
pompa e do poder. Alguns desses movimentos (franciscanos e dominicanos, por ex.) foram integrados na estrutura eclesial, enquanto outros
(cátaros) enveredaram pelo caminho da heresia.
Os grandes reformadores do século XVI (Lutero, Calvino,
Zwinglio) reagiram ao poder papal, ao materialismo da Igreja romana;
pretendiam uma Igreja não simoníaca, mais bíblica, concebida como
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Vitor Galdino Feller
povo sacerdotal. Não foram ouvidos; separaram-se da Igreja de Roma e
passaram a criar novas expressões do cristianismo.
A resposta proporcionada pelo Concílio de Trento (1545-1563)
concentrou-se na área da doutrina (relação entre graça divina e liberdade
humana, o realismo do pecado original, a sacramentalidade da fé etc.) e
na disciplina (obrigatoriedade de residência para os bispos, cuidado na
formação do clero etc.). Houve, sim, uma reforma, chamada de ContraReforma; mas foi tímida em relação à gravidade dos problemas e fez
nascer uma eclesiologia da “sociedade perfeita”, visível, jurídica, em que
a Igreja é comparada com a república de Veneza e o reino da França.
Durante o século XIX, a Escola de Tübingen, na Alemanha, vinha
apresentando algumas propostas de reformas, em termos de maior realce
à unidade eclesial, à dimensão espiritual, à presença do Espírito Santo na
vida da Igreja, ideias que foram abortadas pelo Concílio Vaticano I, em
1870, que se preocupou mais com a definição dos dogmas do primado
romano e da infalibilidade papal.
Diversos movimentos (litúrgico, bíblico, catequético, ecumênico,
missionário, teológico, social, laical etc.), o estudo da Patrística, a Ação
Católica, a nova teologia etc., prepararam, no decorrer do século XX,
o caminho que daria no Concílio Vaticano II. Foi-se forjando o sujeito
moderno, que passou a ser o interlocutor principal do Concílio.
É necessário frisar também que o ambiente cultural marcado pelas
filosofias modernas do personalismo, do existencialismo, da história,
da práxis, pela experiência dramática das duas Grandes Guerras Mundiais, pelo surgimento da ONU e o valor sempre crescente atribuído aos
Direitos Humanos, pela busca da superação da guerra fria e da corrida
armamentista nuclear etc., também contribuíram para a realização do
Concílio Vaticano II, acontecimento de enorme repercussão dentro e
fora da Igreja.
Essa corrente reformística, que percorria o subterrâneo da Igreja, produzindo tanto santos quanto hereges, latejava forte demais para
continuar sendo reprimida. A decisão do papa João XXIII de convocar
um Concílio foi acolhida com satisfação, não só pelo povo católico, mas
por todos os cristãos e, mesmo, por todo o mundo. O grande número de
bispos vindos de todas as partes do mundo tudo fez para marcar posição e garantir uma verdadeira mudança histórica no jeito de ser Igreja.
Rejeitou os documentos que haviam sido preparados pelas comissões
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
preparatórias, vazados ainda no estilo da eclesiologia tridentina. Exigiu
o debate e a introdução de novos temas, que devessem levar a Igreja a
uma nova maneira de se entender e de se posicionar diante da história.
Produziu, assim, um magistério fecundo a respeito da identidade da
Igreja e de sua configuração histórica. Continuando em essência a mesma, a Igreja ganhava um modo diferente de se relacionar com o mundo.
Continuidade no ser, reforma no agir!
Três etapas de interpretação
Há três modos de interpretar o Concílio Vaticano II, correspondentes a três etapas distintas:
A primeira recepção, seguida em grande parte de nossas dioceses
e comunidades, teve seu auge nos primeiros vinte anos pós-conciliares,
de 1965 a 1985. Foi comandada pela maioria conciliar, pelos bispos e
teólogos que debateram os grandes temas do Concílio, redigiram seus
textos, introduziram assuntos e palavras de corte renovador, trabalharam
para que o Concílio realizasse o sonho do papa João XXIII: um evento
significativo e modificativo da história da Igreja. A Igreja é vista a partir
de sua relação com o mundo, em ótica profundamente renovadora e até
inovadora, buscando um salto para a frente, um salto para além de sua
própria sombra, rompendo com o jeito de ser do segundo milênio, para
reaproximar-se decididamente do modo de ser do primeiro milênio,
sobretudo dos tempos apostólicos. Tema-chave dessa interpretação é a
imagem da Igreja como povo de Deus, imagem que, na América Latina,
se configurou como Igreja dos pobres.
Parece claro que a intenção do Concílio Vaticano II foi a de preparar a Igreja para uma nova era da história. A grande produção bibliográfica surgida nas décadas de 60 e 70 assim o acolheu e compreendeu.
Para sustentar essa interpretação, que marcou a primeira recepção do
Concílio, podem ser lembrados o discurso inaugural de João XXIII, o
discurso final de Paulo VI, a consciência da soberania conciliar por parte
da maioria dos bispos presentes e o desejo de retornar à tradição do primeiro milênio, quando ainda não existiam as divisões no cristianismo,
quando o cristianismo não era vivido como cristandade e instituição,
mas como profecia e inserção no mundo.
A par dos elementos positivos dessa interpretação, não há que se
negar alguns acentos marcados pela ambiguidade. Viu-se o Concílio como
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solução de todos os problemas, abertura para todo tipo de experimentações pastorais e litúrgicas, facilitação para qualquer modo de interpretar
e viver a fé, ruptura do dique que represava anseios seculares de diálogo
com o mundo e de inserção na realidade, relaxamento moral e pastoral
diante dos grandes princípios doutrinais, descompromisso com dogmas,
verdades estabelecidas, ritos litúrgicos etc., afirmação isolada do pêndulo
pastoral com rejeição do pêndulo doutrinal.
Uma segunda interpretação do Concílio Vaticano II, surgida talvez
por reação a esses elementos ambíguos, considera em termos críticos o
otimismo generalizado do momento histórico (a década de 60) e do contexto geográfico (o Primeiro Mundo) em que o Concílio se realizou. Esta
segunda recepção, que passou a ter força com o Sínodo Extraordinário
sobre o Vaticano II, de 1985, teve à sua frente o então cardeal Joseph
Ratzinger, reorganizando a minoria conciliar, grupo que, no decorrer
do Concílio, trabalhava para impedir que passassem ideias e textos que
pudessem levar a uma real mudança histórica, presumida como catastrófica, e empenhava-se para inserir ideias e textos que pudessem, depois,
corrigir os desvios previsíveis. Como maior fator corretivo às mudanças,
essa segunda recepção atrela as intuições do Concílio Vaticano II à linha
de continuidade com a eclesiologia do segundo milênio, do Concílio
de Trento e do Concílio Vaticano I, em que a dimensão institucional se
faz bastante presente. Tema-chave dessa recepção é a imagem da Igreja
como comunhão. Esquece-se a temática do povo de Deus, que não aparece mais nos documentos da Igreja posteriores a essa data. Fala-se da
Igreja como comunhão, mas tirando-lhe sua contextualização histórica e
desfigurando-a de sua concretude popular. Com isso, barra o acesso aos
moldes configurativos da Tradição do primeiro milênio, em que predominava a eclesiologia da comunhão universal da Igreja una e católica na
diversidade disciplinar das Igrejas diocesanas e regionais.
Nota-se, aqui, um esforço por enquadrar o Concílio e inseri-lo
nos moldes e parâmetros dos concílios anteriores, tirando-lhe a força
revolucionária e o instigante apelo de retorno às fontes bíblicas e patrísticas. Chega-se mesmo a questionar a oportunidade da realização do
Concílio em uma década claramente marcada pelo otimismo, muitas
vezes ingênuo. Um sem número de diretórios e documentos emanados
das congregações romanas parece ser uma tentativa de apropriar-se do
Concílio, obscurecendo as suas principais riquezas, acentuando-lhe não
as grandes ideias, mas incisos colocados precisamente pela minoria
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
conciliar. A imagem da Igreja como povo de Deus é sistematicamente
esquecida.
A virada copernicana proposta pela maioria conciliar com a introdução do tema do povo de Deus é revista em termos de insistência
no tema do mistério. Cabe aqui lembrar as restrições que em 1985 o
cardeal Ratzinger pôs à categoria de povo de Deus: propõe uma volta ao
Antigo Testamento; suscita sugestões políticas, partidárias e coletivistas; provoca o risco de retroceder mais que de avançar. Sua proposta é:
voltar à categoria de mistério, ao conceito de corpo de Cristo, por serem
mais próximos ao Novo Testamento. Foi o que prevaleceu no Sínodo
de 1985, onde a categoria de povo de Deus passou a ser vista como um
dos diversos modos de falar da Igreja, e voltou-se ao mistério, com o
objetivo de responder a uma época de retorno ao sagrado. No mesmo
ano, também a Comissão Teológica Internacional sugeriu que povo de
Deus é uma entre outras denominações, e que era preciso promover um
balanço entre mistério e sujeito histórico. Enfim, mistério passa a ser
posto no fundamento, e povo de Deus passa a ser visto igual a corpo de
Cristo e templo do Espírito Santo. Mas todas essas categorias são transformadas em a-históricas; faz-se uma eclesiologia dedutiva, perde-se a
linha indutiva. Com elas pode-se avançar na compreensão da Igreja, mas
não se produz nenhuma mudança histórica.
A força que ganhou esta interpretação deve ainda ser creditada a
dois outros fatores. Primeiro de tudo, insistiu-se demais, irresponsavelmente, que o Concílio tinha apenas caráter pastoral. Isto faz esquecer as
muitas reviravoltas por ele intencionalmente operadas no dogma, como
no caso da eclesiologia de corte trinitário e comunional (capítulos 1 e
2 de LG), da sacramentalidade episcopal (LG 21), do colegiado episcopal (LG 23-27), da fisionomia balanceada do governo, a um tempo
monárquico e sinodal (LG 22), da facticidade local da Igreja (CD 11),
da liberdade religiosa (DH), do ecumenismo (UR) e do diálogo com as
grandes religiões (NAe), doutrinas estas que viriam mostrar um seguro
e sereno desenvolvimento dogmático sobre a identidade e a missão da
Igreja. Depois, foi uma pena que o Código de Direito Canônico e o
Catecismo da Igreja Católica não tenham sido elaborados no imediato
pós-concílio. Se tal tivesse acontecido, eles poderiam ter expressado
melhor a intenção daqueles que tinham vivido a experiência conciliar e
participado de seus debates.
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Consequência prática dessa segunda recepção foi o reforço dado
ao tradicionalismo. Em vez de retorno à grande Tradição do primeiro
milênio, as vozes e práticas tradicionalistas retornam somente até o século
XVI, com o apego ao juridicismo, ao moralismo e ao ritualismo litúrgico,
o acento nas expressões barrocas e a ênfase na identidade católica em
contraposição ao mundo, às religiões e às outras igrejas.
Uma terceira interpretação, que passa a tomar força com a mensagem de Bento XVI pela celebração dos 40 anos do final do Concílio,
em dezembro de 2005, insiste na reforma dentro da continuidade ou na
continuidade na reforma. Trata-se de superar duas formas de negação
do Concílio: passar por cima dele rumo a um futuro imprevisível ou não
chegar até ele. A proposta de uma mudança radical rumo a um futuro
totalmente novo nega o Concílio passando por cima dele, querendo mais
do que o Concílio propôs, avançando mais do que o Concílio possibilitou, passando por cima de suas proposições prático-pastorais e teóricodoutrinais, em vista de temas ulteriores que não estavam na agenda do
Concílio, num avanço desordenado e desarticulado. O apego total a um
passado controlado nega o Concílio, pois não chega até ele, não aceita
suas decisões em termos de atualização da verdade aos novos tempos,
por ex.: colegialidade episcopal, sacerdócio comum, carismaticidade e
ministerialidade, hermenêutica bíblica, reforma litúrgica, ecumenismo,
diálogo inter-religioso, liberdade religiosa, presença no mundo, serviço
em favor da vida e dos direitos humanos etc.
O atual prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, Gerhard
Ludwig Müller, ao falar de interpretações heréticas do Concílio, ensina que
sua única leitura ortodoxa é a que o considera como uma ocasião de
reforma e de renovação, na continuidade do único sujeito-Igreja. Esta
hermenêutica é a única que respeita “o conjunto indissolúvel entre a
Sagrada Escritura, a Tradição completa e integral e o Magistério, cuja
maior expressão é o Concílio presidido pelo Sucessor de Pedro, como
líder da Igreja visível”. Segundo ele, existe uma “interpretação herética”
que se opõe à interpretação correta: “a hermenêutica da ruptura, tanto
no grupo progressista como no grupo tradicionalista”. Os dois grupos
possuem em comum a rejeição do Concílio: “os progressistas, porque
querem deixá-lo para trás, como se fosse uma estação que é preciso
abandonar para chegar numa outra Igreja; os tradicionalistas, porque
não querem chegar até ele, como se fosse o inverno da Catholica”. Ele
acrescenta que o erro doutrinal não é uma característica exclusiva de
inovadores modernistas, como se propala em muitos campos, pois os
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
setores neotradicionalistas, que pensam que o Vaticano II deu as costas
à “Igreja de sempre”, também o cometem.
A história da recepção do Concílio conta, pois, com estas três
modalidades de interpretação. Cada uma delas tem forte incidência sobre a vida da Igreja, a ação evangelizadora, a organização da pastoral,
a celebração, a espiritualidade, o estudo e o ensino da teologia, enfim,
sobre todos os aspectos da vida cristã. Na escolha da melhor interpretação, muitos fatores exercem influência sobre pessoas e grupos: formação
teológica e pastoral, posto ou cargo eclesial, idade etc. Mas, o fator mais
influente é, sem dúvida, o acesso ao Concílio: em que medida o Vaticano
II é realmente conhecido, estudado e valorizado?
O conhecimento cuidadoso dos textos e da história do Concílio, bem como e sobretudo das aspirações e sonhos que o animaram,
nos levaria a fazer dele a linha mestra de toda a nossa ação pastoral e
evangelizadora. Quando há, hoje, muita gente dizendo que a Igreja está
perdida, nossa diocese não tem linha, nossa paróquia perdeu o rumo,
valeria a pena voltar ao Vaticano II e, através dele, voltar às fontes: Jesus
de Nazaré, Deus na história humana! Central em todo este processo é
a Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja! O programa
do Concílio de retorno às fontes da fé cristã continua valendo para o
nosso tempo. Agora, porém, com novo alcance: retorno às fontes da
Igreja dos primeiros séculos, através da história e dos documentos do
Concílio Vaticano II.
De nossa parte, preferiremos continuar com a primeira recepção,
corrigindo-lhe as ambiguidades e acrescentando-lhe os valores encontrados, agora, na terceira etapa. Entendemos que, na primeira recepção,
o ideal de reforma não estava em contradição com a essência da Igreja.
Ao contrário, buscava (e busca) aproximar-se das fontes bíblicas e patrísticas da Igreja. Estava em contradição, sim, com uma determinada
configuração histórico-institucional da Igreja, que marcou o segundo
milênio. Além disso, a concepção da Igreja como povo de Deus é mais
fiel aos ideais do Concílio, é mais abrangente, mais concreta e prática
que a ideia, por vezes abstrata, de comunhão. Como povo de Deus, a
Igreja é, evidentemente, mistério e comunhão. É como povo de Deus
que a Igreja se realiza em sua dimensão de mistério. É como povo de
Deus que ela realiza sua mais profunda e verdadeira comunhão. É como
povo de Deus que a Igreja irá realizar a mudança histórica, a virada que
os bispos do Concílio Vaticano II quiseram promover, visando o reposi-
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cionamento da relação da Igreja com o mundo, não mais em termos de
distância, confronto e condenação, mas como aproximação, diálogo e
misericórdia, como era desejo do papa João XXIII.
O processo quenótico-pascal da Lumen Gentium
O Concílio Vaticano II promoveu um processo de rebaixamento e
despojamento na Igreja, favoreceu uma eclesiologia em tom menor para
exaltar, em tom maior, o mistério de Deus. Chamamos esse processo de
quenótico-pascal, pois, como em Fl 2,6-11, a um movimento de quênose,
de descida, segue um movimento de subida, de exaltação. O processo
quenótico-pascal deslanchado pelo Concílio Vaticano II está presente em
todos os documentos, mas reflete-se de modo especial na Constituição
Dogmática Lumen Gentium. De uma configuração institucional, mais
voltada para sua exterioridade e mundanidade, com destaque para o
triunfalismo, a Igreja passa para uma configuração mistérica, voltada
para sua essência, com ênfase na simplicidade. E, paradoxalmente,
quanto mais voltada para sua identidade, mais impulsionada a assumir
sua presença evangélica no mundo.
Este processo quenótico-pascal da eclesiologia do Vaticano II
pode ser percebido no uso dos dois enfoques dos quais o Concílio se
serve para ver a Igreja. Quando analisada em sua identidade, usam-se
grandes dimensões. Quando vista em sua relevância na relação com o
mundo, contam as pequenas dimensões. Quando vista em si mesma,
em sua identidade, como o faz a Lumen Gentium, a Igreja é grandiosa.
Ela é a imagem da Trindade, o povo santo de Deus, o corpo místico de
Cristo, o templo do Espírito Santo, o sacramento universal da salvação,
o germe e instrumento do Reino (LG 1-8). Vista em seu próprio mistério, a realidade da Igreja é grandiosa, é a obra de Deus-Trindade em sua
manifestação salvadora de toda a humanidade. Mesmo sendo grandiosa,
ela é, porém, o mistério de Deus encarnado, quenotizado na história. No
entanto, quando vista em sua relação com o mundo, como a vê a Gaudium
et Spes, ela adquire pequenas dimensões. Aí, é o mundo que é visto em
grandes dimensões. O mundo é o pléroma do Verbo encarnado (1Cor
15,28; Ef 1,10; Col 1,20), dentro do qual se situa a Igreja. Na relação
com o mundo, a Igreja se vê pequena. “A marca da pequenez, da quênose
de Cristo, não é própria da Igreja inicial apenas, mas deve continuar e
ser visível pelos séculos afora, como essencial para a missão da Igreja”
(Valfredo TEPE). Ela readquire as conotações bíblicas de pequeno reEncontros Teológicos nº 64
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
banho em meio aos lobos, fermento na massa, semente lançada na terra,
luz sobre o candeeiro. O mundo lhe dá, agora, uma dimensão com a qual
ela não estava acostumada.
Essa nova configuração da Igreja é fruto da deliberação dos Padres conciliares de inserir, nos esquemas preparatórios, dois conceitos
básicos para a compreensão da intimidade essencial da Igreja. Ambos
provenientes da eclesiologia bíblica e patrística: a Igreja como mistério
e a Igreja como povo de Deus. Um conceito mais místico e outro mais
histórico. Ambos colocados logo no início, antes da apresentação das
diferenciações das categorias dos fiéis. Ambos profundamente entrelaçados, de modo que o mistério da Igreja só pode ser captado em sua
inserção na história, e a imagem da Igreja como povo de Deus só pode
ser entendida como mistério.
A mudança eclesiológica acionada na Lumen Gentium precisa ser
entendida dentro da mudança histórica pretendida pelo Concílio Vaticano II. Na circulação hermenêutica entre os dois capítulos, vê-se que
quanto mais o mistério desce à história, mais a Igreja ganha força para
o exercício de sua missão universal. Reconhece-se que sua configuração
institucional não somente não dava conta da missão universal, mas até
a impedia. Nesta circulação hermenêutica, entendemos, contudo, que
o primado cabe ao conceito de povo de Deus. Pois, o novo paradigma
da Lumen Gentium está na inserção, deliberadamente buscada e trabalhada, da imagem da Igreja como povo de Deus, como comunidade
de crentes, raça de sacerdotes, em sua igualdade fundamental, em sua
cidadania batismal.
A elaboração da Lumen Gentium foi marcada por momentos polêmicos. De início, foi rejeitado o esquema apresentado pela comissão
preparatória, por parecer por demais assemelhado à eclesiologia que
vigorava desde o Concílio de Trento, uma eclesiologia feita a partir da
instituição e não a partir da vida cristã, com ênfase na visibilidade jurídica
exterior e não na dimensão interior do mistério.
Promoveu-se, então, uma virada no esquema sobre a Igreja.
Fixou-se o tema do povo de Deus como ponto de partida para centrar a
Constituição. Pôs-se o tema do povo de Deus, como segundo capítulo,
antes e na base dos capítulos que falam das categorias da Igreja: hierarquia (c. III) e laicato (c. IV) e vida religiosa (c. VI), antes e na base dos
capítulos sobre o chamado à santidade (c. V) e à contínua renovação
escatológica (c. VII), antes e na base do capítulo sobre Maria, membro
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eminente do povo de Deus (c. VIII). Todos esses capítulos devem ser
lidos, portanto, em chave histórica, como encarnações particulares e
situadas do grande povo de Deus. Também o capítulo primeiro, sobre a
Igreja como mistério, que serve de base e introdução ao segundo, sobre
a Igreja como povo de Deus, deve ser lido em chave histórica: o mistério
encarnado na história.
Uma boa interpretação de Lumen Gentium deve, pois, escolher a
categoria de povo de Deus, como ponto de partida da proposta conciliar.
É preciso historicizar todas as categorias usadas na Lumen Gentium –
sacramento de salvação, sinal da unidade do gênero humano, germe e
instrumento do Reino, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo etc. – a
partir da consciência histórica que delas se tem, das ressonâncias que
provocam, e do uso histórico que delas se faz. Tanto o conceito de mistério
quanto o de povo de Deus são decisivos para uma mudança eclesiológica,
mas o segundo mais que o primeiro. Pois mistério já estava no esquema
rejeitado, que se serviu das sugestões da Mysticis Corporis (Pio XII,
1943), enquanto povo de Deus foi fruto do esforço de reestruturação
do novo esquema, em vista da mudança querida pelo Concílio, com um
novo roteiro que colocasse tudo em questão.
A Igreja como mistério
Foi a partir da categoria de povo de Deus que os bispos do Concílio quiseram que a Igreja manifestasse mais explicitamente seu rosto
divino, sua origem trinitária, sua relação com a graça de Deus mais que
com o poder humano. Uma eclesiologia do mistério, de corte divino,
cristológico, pneumatológico, em que ficasse visível a graça (cháris)
divina. Foi então reelaborado o primeiro capítulo, sobre o mistério da
Igreja. Nele são apresentados os seguintes temas: a) as relações da Igreja
com cada uma das pessoas divinas (LG 2-4); b) a relação da Igreja com
o Reino de Deus, do qual ela é apresentada como sinal e instrumento
(LG 5); c) as imagens bíblicas e patrísticas da Igreja (LG 6); d) a Igreja
como Corpo místico de Cristo, peregrino na história (LG 7); e) a complexidade visível e invisível, material e espiritual, institucional e profética
da Igreja (LG 8).
A Igreja aparece na dimensão da sacramentalidade. O Concílio
não pensa em mistério como realidade inacessível de Deus, nem como
conjunto de verdades sobrenaturais. Mas como sacramento, mostrando a
realidade humana de Cristo encarnada na história humana. Como Cristo
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
em sua humanidade é comprovação histórica do desígnio salvífico de
Deus, assim a Igreja, por uma não fraca analogia, é sinal e instrumento
da ação de Deus na história (LG 8).
A Igreja é mistério, porque tem sua origem, sua forma e seu destino
no mistério da Santíssima Trindade. Fiel a Cristo e aos seres humanos,
a Igreja deve tornar-se cada vez mais, na prática, aquilo que ela já é na
sua essência. Ela é na terra o sinal que reflete a comunhão das pessoas
divinas da Santíssima Trindade, é o ícone terreno da Trindade celeste.
Acolhendo essa intuição, o Documento de Aparecida dirá: “O mistério
da Trindade é a fonte, o modelo e a meta do mistério da Igreja” (DAp
155). A Igreja vem de Deus-Trindade, vive em Deus-Trindade e vai para
Deus-Trindade. A Trindade é a unidade das três pessoas distintas que se
amam tanto e tão bem, que são um só Deus. Em Deus Trindade, somos
unidade, mas não uniformidade; somos diversidade, mas não divisão;
somos comunhão, mas não confusão. A Santíssima Trindade é a perfeita
comunidade missionária. Ao explicitar essa fórmula sintética, diz ainda
o Documento de Aparecida: “A Igreja é comunhão no amor. Esta é a sua
essência e o sinal através do qual é chamada a ser reconhecida como
seguidora de Cristo e servidora da humanidade” (DAp 161).
A intenção de fundo na escolha do termo mistério foi pôr fim à
época da Contra-Reforma. Primeiro, o Concílio quis superar a compreensão tridentina, bellarminiana, hierarcológica, da Igreja como sociedade
perfeita, e ver a Igreja como realidade complexa, visível e invisível (LG
8). Era preciso superar de vez o visibilismo tridentino e o invisibilismo
luterano (como já o tentara a Mystici Corporis, mas sem sucesso, pois
permanecia no fundo o esquema anterior de sociedade perfeita). Para
isso, propõe-se a abertura da Igreja ao Espírito de Cristo (LG 14).
O Concílio quis também superar o dualismo Igreja-mundo, pelo
retorno aos Pais, à teologia e prática da comunhão, à concepção da Igreja
como sacramento, como contraste provocativo com outras sociedades
humanas, sacramento como instância crítica direta da Igreja visível,
societária, hierárquica, das reformas gregoriana e tridentina.
Ao passar da visão da Igreja como instituição, como mediação
para o acesso a Deus, para a compreensão da Igreja como sacramento
da salvação, isto é, da vinda e da presença de Deus, o Concílio deu importância ao Jesus histórico e à historicidade da Igreja. Mais que arca de
uma salvação buscada na vida após a morte, a Igreja realiza esta salvação
já agora, na forma de sinal, de mistério, na comunhão humana dos fiéis
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reunidos em Cristo. Entende-se, agora, que o mistério encarna-se e revelase na história. Com isso, avança-se para além da Mystici Corporis, que
sublimou o mistério deixando intacta a história, identificando sem mais
Igreja de Cristo com a Igreja romana. O Concílio propõe, agora, que a
Igreja de Cristo subsiste na Igreja romana (LG 8), questionando tanto a
absolutização do sistema romano quanto a forma romana de relacionar-se
com as igrejas e religiões e propondo novas práticas para o ecumenismo
(LG 15) e o diálogo com as religiões (LG 16). A concepção da Igreja
como mistério, ao contrário de Igreja como instituição, facilita o diálogo
com o mundo, as culturas, as igrejas, as religiões.
Com o termo mistério, o Concílio quis evitar o hábito de ver a
fundação da Igreja só em Mt 16,18ss, para vê-la na continuidade da proclamação do Reino de Deus pelo Crucificado-Ressuscitado e da missão da
Igreja impulsionada pelo Espírito Santo, em Pentecostes. A Igreja como
mistério está fundada na totalidade do mistério de Jesus Cristo, do Jesus
histórico e do Cristo pascal (encarnação, ministério, morte, ressurreição,
pentecostes, glória).
O Concílio quis, enfim, entender o mistério de Deus e da Igreja a
partir dos pobres, tema que, após a inserção de povo de Deus, sacudiu a
assembleia. Embora não tendo sido mais aprofundado, o tema da Igreja
dos pobres aparece em LG 8, onde se fala da relação entre mistério e pobreza, entre mistério e escândalo de sua visibilidade histórica: a pobreza
de Jesus, o mundo dos pobres, a identificação de Jesus com eles. A Igreja
como mistério é escândalo, como o são o Jesus histórico e os pobres.
Portanto, é interessante observar que, nesse primeiro capítulo,
sobre o mistério, em que se busca salientar a origem divina da Igreja, há
uma significativa insistência na dimensão histórica da Igreja. O mistério
da Igreja nunca é mostrado como algo unicamente sobrenatural, distante
do mundo, desligado da história, mas sempre em relação íntima com a
história. Na lógica da encarnação, a Igreja é uma só realidade complexa, humana e divina, visível e invisível, histórica e mistérica. A chave
de leitura para todo esse capítulo aparece no seu final, com a seguinte
citação: “(A Igreja) é, por isso, mediante uma não medíocre analogia,
comparada ao mistério do Verbo encarnado. Pois como a natureza humana, assumida indissoluvelmente unida a ele, serve ao Verbo divino
como órgão vivo de salvação, semelhantemente o organismo social
da Igreja serve ao Espírito de Cristo que o vivifica para o aumento do
corpo” (LG 8). Vê-se que o mistério é visto dentro e a partir da história.
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
Alguns exemplos que revelam a preocupação dos bispos com a dimensão
histórica do mistério da Igreja:
Nos números 2 a 4 de Lumen Gentium, a Igreja é apresentada como
prefigurada na história do povo de Israel, inaugurada no ministério, na
morte e na ressurreição de Jesus de Nazaré, enviada ao mundo pela força
do Espírito Santo, sendo por ele hoje e sempre sustentada. Nesses itens,
as três pessoas divinas são vistas em sua relação histórica com a vida
concreta das pessoas e dos povos.
A relação da Igreja com o Reino (LG 5) tem por fundamento a
pregação e o ministério de Jesus de Nazaré. A missão da Igreja deve
continuar a missão de Jesus, na caridade, humildade e abnegação, no
caminho da cruz.
Até mesmo a imagem de Corpo de Cristo, tão apreciada pela
minoria conciliar, não é vista em sua sobrenaturalidade mística, mas
em sua inserção histórica. A Igreja é entendida como sacramento e não
como sociedade perfeita. Ela é vista como sacramento apenas e enquanto
está unida a Cristo, sendo este lembrado em sua encarnação histórica.
Somos membros do Corpo de Cristo, enquanto, “peregrinando ainda
na terra, palmilhando em seus vestígios na tribulação e na perseguição,
associamo-nos às suas dores como o corpo à Cabeça” (LG 7).
A Igreja deve comunicar Jesus Cristo, perseguido, amigo dos
pobres, crucificado. Ela vive entre sombras, manifestando a plena luz
(LG 8). Assim como Jesus Cristo foi enviado pelo Pai a evangelizar,
também a Igreja tem como razão essencial de sua existência o chamado
à salvação do sofredor.
A Igreja é entendida como mistério, não no sentido de fuga da
realidade, mas, pelo contrário, como engajamento ainda maior e mais
comprometido com a vida do povo. Em outras palavras, só se pode entender o mistério como encarnação de Deus no mundo, sendo a cruz de
Jesus a maior prova do amor de Deus e da manifestação do seu poder.
Como se vê, o primeiro capítulo tem um corte profundamente
histórico, ainda que seu conteúdo fosse o mistério da Igreja em sua
origem divina. Desse modo, percebe-se que o primeiro capítulo prepara
e introduz o capítulo central do documento, o capítulo segundo, sobre a
Igreja como povo de Deus.
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Vitor Galdino Feller
A Igreja como povo de Deus
O primeiro capítulo da Lumen Gentium fala da Igreja como mistério divino, imagem humana da comunhão trinitária. Logo a seguir, porém,
o capítulo segundo concretiza na história a realização desse mistério. A
Igreja é mistério enquanto comunhão divino-humana, povo de Deus em
comunhão e missão. A Igreja é povo de Deus, porque é, antes de tudo,
comunidade de crentes, nação santa, povo sacerdotal, conceitos que
pavimentam a igualdade fundamental e a cidadania batismal comum a
todos. Assim, o que é comum – o mistério divino inserido na história
humana do povo de Deus – vem antes das diferenças das categorias dos
fiéis, de seus ministérios e carismas.
A Igreja é o novo povo da nova aliança. “Qualquer que seja a
nação a que pertença, Deus aceita a quem o teme e pratica a justiça”
(At 10,35). Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os seres humanos, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas
constituindo-os em um povo que o conhecesse na verdade e o servisse
santamente” (LG 9). O novo povo da nova aliança, firmada no sangue de
Cristo (1Cor 11,25), não é formado segundo a carne mas no Espírito. Na
Igreja realiza-se a profecia da primeira carta de Pedro: “raça escolhida,
sacerdócio real, nação santa, povo adquirido... que outrora não era povo,
mas agora é povo de Deus” (1Pd 2,9-10). A Igreja é o povo messiânico.
“Embora não abranja de fato todos os homens, e não poucas vezes apareça
como um pequeno rebanho, é, contudo, para todo o gênero humano o
mais firme germe de unidade, de esperança e de salvação. Estabelecido
por Cristo como comunhão de vida, de caridade e de verdade, é também
por ele assumido como instrumento de redenção universal e enviado a
toda a parte como luz do mundo e sal da terra (Mt 5,13-16)” (LG 9).
Sendo um pequeno rebanho, “esse povo, permanecendo uno e único,
deve estender-se a todo o mundo e por todos os séculos, para se cumprir
o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou uma só natureza
humana e resolveu juntar em unidade todos os seus filhos que estavam
dispersos (Jo 11,52)” (LG 13). Pequeno rebanho, a Igreja de Cristo “é
impelida pelo Espírito Santo a cooperar para que o desígnio de Deus,
que fez de Cristo o princípio de salvação para todo o mundo, se realize
totalmente” (LG 17). Povo da comunhão e da missão, pela pregação
do Evangelho “a Igreja atrai os ouvintes a crer e confessar a fé, dispõe
para o batismo, liberta da escravidão do erro e incorpora-os a Cristo, a
fim de que nele cresçam pela caridade, até à plenitude (…) É assim que
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
a Igreja simultaneamente ora e trabalha para que toda a humanidade
se transforme em povo de Deus, corpo do Senhor e templo do Espírito
Santo, e em Cristo, cabeça de todos, se dê ao Pai e Criador de todas as
coisas toda a honra e toda a glória (LG 17).
Assim, a imagem de povo de Deus torna-se o ponto de partida
para o entendimento, a interpretação e a recepção de toda a teologia
e eclesiologia conciliar. Povo de Deus foi um tema propositadamente
buscado e inserido no documento sobre a eclesiologia. Desse modo, o
capítulo segundo (sobre o povo de Deus: LG 9-17) é a luz que serve para
ler o primeiro (o mistério da Igreja) e os seguintes, sobre a hierarquia
(cap. III), o laicato (cap. IV), a santidade (cap. V), a vida religiosa (cap.
VI), a caminhada da Igreja (cap. VII) e a missão de Maria na história da
salvação (cap. VIII).
Há em Lumen Gentium uma proposta de mudança histórica no
modo de se entender e viver a Igreja. Da imagem da Igreja como sociedade perfeita, apreciada desde o Concílio de Trento em sua dimensão
jurídica e institucional, passa-se para a imagem da Igreja como povo de
Deus inserido na história. Da imagem da Igreja como Corpo de Cristo,
entendida mais em sua funcionalidade e organicidade, como se pensava
nos anos imediatamente anteriores ao Vaticano II, por obra da encíclica
Mystici Corporis (1943), de Pio XII, passa-se para a imagem da Igreja
como povo de Deus, entendida em sua dialeticidade e historicidade. De
uma Igreja entendida em suas categorias funcionais, passa-se para uma
Igreja de categorias dialéticas. Começa-se a compreender a Igreja aberta,
ou seja, ainda não pronta, e por isso em continuidade com o povo de
Israel (LG 9), em relação com todos os povos e culturas (LG 13), com
as outras igrejas cristãs (LG 15), com as grandes religiões (LG 16), com
grande consideração por todos os fiéis em seu sacerdócio comum e seus
carismas específicos (LG 10-12.14), com abertura missionária (LG 17).
Enfim, uma Igreja peregrina, dinâmica, evolutiva e histórica.
Povo de Deus: pilar eclesiológico
Ao redor da grande temática do povo de Deus são também tratados temas que dele decorrem e são com ele coerentes e consequentes.
Assim, em Lumen Gentium temos em germe grandes temas que serão
tratados em outros documentos do Concílio. Daí a consideração de
Lumen Gentium e de seu conceito fundamental de povo de Deus como
pilar eclesiológico do Concílio.
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Encontros Teológicos nº 64
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Vitor Galdino Feller
Há em Lumen Gentium uma portentosa eclesiologia, com temas
germinais que serão pormenorizados nos demais documentos do Concílio. Em todo o documento, percebe-se que a grande mudança histórica
da Igreja está em deixar de considerá-la primariamente como hierarquia
(como hierarcologia, diria Congar), para tratá-la como comunidade de
crentes. A realidade originária, totalizante e globalizante da Igreja é o
povo de Deus. O alicerce de todo o edifício eclesiológico da Lumen Gentium está na condição de igualdade de todos os crentes, da ontologia ou
antropologia da graça, ou seja, o ponto de partida é a comunidade de todos
os crentes, a igualdade fundamental dos fiéis, a cidadania batismal.
A relação da Igreja com o povo de Israel, sua caminhada na história, desde Abraão até hoje, a consideração da validade da primeira aliança
de Deus com Israel, a importância desse povo para o entendimento da
essência e da missão da Igreja, são temas tratados em LG 9 e que voltam a ser mais bem aprofundados na declaração Nostra Aetate sobre as
relações da Igreja com as religiões não cristãs (NAe 4).
O sacerdócio comum dos fiéis e seu exercício segundo os três
múnus – do ensino, da liturgia e da animação pastoral – o senso da fé, o
consenso dos fiéis, a carismaticidade e a ministerialidade de toda a Igreja,
a índole secular, a dignidade e a apostolicidade dos leigos, a igualdade de
todos em Cristo, fundada na ontologia da graça, são temas que aparecem
em LG 10-12 e em no capítulo IV sobre os leigos (LG 30-38) e que irão
ser mais bem detalhados no decreto Apostolicam Actuositatem sobre o
apostolado dos leigos.
A universalidade de todo o povo de Deus, pela qual todas as pessoas e povos, cristãos de outras igrejas e membros das grandes religiões,
de um modo ou outro, pertencem à Igreja de Cristo, são temas germinais
em LG 13-17, que serão mais bem desenvolvidos no decreto Unitatis
Redintegratio sobre o ecumenismo, na declaração Nostra Aetate sobre
as relações da Igreja com as religiões não cristãs, e no decreto Ad Gentes
sobre a ação missionária da Igreja.
Assim, a sacramentalidade e a colegialidade episcopal, em balanço
com o primado papal (LG 20-23) e a dimensão do serviço dos ministérios episcopal e presbiteral nos múnus de ensinar, santificar e governar
(LG 24-29), serão mais bem aprofundados no decreto Christus Dominus
sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja e no decreto Presbyterorum
Ordinis sobre o ministério e a vida dos presbíteros.
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
O apreço à vida religiosa (LG 43-47) será tratado de modo mais
minucioso no decreto Perfectae Caritatis sobre a atualização dos
religiosos.
Todos os temas desenvolvidos nos demais documentos do Concílio
Vaticano II, tanto as outras grandes constituições sobre a divina revelação (DV), sobre a divina liturgia (SC) e sobre a relação da Igreja com
o mundo contemporâneo (GS), como os decretos sobre o ecumenismo
(UR), sobre as Igrejas Orientais (OE), sobre as missões (AG), sobre os
bispos (CD), sobre os presbíteros (PO), sobre os religiosos (PC), sobre
a formação dos seminários (OT), sobre os leigos (AA), sobre o uso dos
meios de comunicação social (IM), e ainda as declarações sobre a educação (GE), sobre a liberdade religiosa (DH) e sobre as grandes religiões
(NAe), todos esses temas encontram seu fundamento e razão de ser na
Lumen Gentium.
Povo de Deus: realidade substantiva
A categoria de povo de Deus é uma realidade globalizante,
anterior a toda diferenciação, põe a todos na ontologia da graça, na
antropologia da graça, na cidadania batismal. É o fim da perspectiva
hierarcológica da Igreja, da Igreja como sociedade desigual. Esta nova
perspectiva que ainda está a sacudir os alicerces de todo o edifício eclesial, é fácil de aceitá-la na teoria, na teologia; mas quanta dificuldade
em torná-la prática!
Um modo de vivenciar essa realidade globalizante é apreciar o
sensus fidei, a experiência da fé dos fiéis. Algo que é realidade primeira
e última e constituinte da Igreja, mas que estava soterrado. A realidade
substantiva da Igreja, onde encontramos o que é comum a todos, na
ordem da ontologia da graça – sua relação com o mistério (c. I), sua
constituição como povo de Deus (c. II), seu chamado à santidade (c.
V), sua índole escatológica (c. VII) – fundamenta outras realidades
relativas, onde estão as diferenças de carismas e funções – a hierarquia
(c. III), o laicato (c. IV), a vida religiosa (c. VI), a figura de Maria (c.
VIII). O sensus fidei, esta realidade substantiva da Igreja, é a fé que
vence o mundo (1Jo 5,4), pela qual tudo é nosso e nós somos todos de
Cristo (1Cor 3,21-23), onde ninguém é dono e dominador da Igreja (nem
Paulo, nem Apolo, nem Cefas), mas todos são servidores da comunidade
crente (1Cor 3,4-5). A comunidade crente é ação convocatória, gratuita
de Deus, é experiência de graça.
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Vitor Galdino Feller
Esta realidade substantiva do povo de Deus, esta eclesialidade
primeira, este nível da koinonia, este plano do ser-com (Agostinho:
“convosco sou cristão, isto é graça, salvação, motivo de consolo”), é
o fundamento das diferentes diakonias, serviços, no plano do ser-para
(Agostinho: “para vós sou bispo, isto é um dever, perigo do poder, motivo
de temor”). Esta realidade primeira é a resposta que temos a dar ao pelagianismo moderno da eficácia e eficiência humana, da razão desumana,
da idolatria do mercado, da moda e da mídia, do neoliberalismo excludente, do cientificismo narcisista e do domínio da tecnocracia. É com
esta realidade substancial que enfrentaremos também o pelagianismo da
autorreferencialidade da Igreja e do pastoralismo carregado de ativismo
humano sem espaço para a graça divina.
Esta realidade globalizante do povo de Deus dá sentido e ilumina
o serviço dos dirigentes da Igreja. No caso dos ministros ordenados
(bispos, padres e diáconos), mas também no caso de quem quer que
esteja à frente dos irmãos (coordenadores, ministros, catequistas,
líderes etc.) é preciso rever a forma de presidir, propondo um jeito
totalmente original e discrepante do que é normal nas sociedades humanas (“entre vós, não deve ser assim”: Lc 22,26). O sentido da fé dos
fiéis (sensus fidei) e o consenso dos fiéis (consensus fidelium), como
realidade primeira, como fonte da fé, como experiência pascal, vêm
antes da distinção entre docente e discente, vem antes do magistério,
da teologia, do planejamento pastoral.
Esta realidade primeira da graça do povo de Deus funda a liberdade de crer e de interpretar e o pluralismo teológico. Como na melhor
Tradição, o Magistério manifesta-se e usa de sua autoridade somente
quando se trata de algo do qual depende a estabilidade da Igreja, um
articulus stantis et cadentis Ecclesiae, após processo de debates, com
espaço para o sensus fidei (faro do povo) e o intellectus fidei (reflexão
teológica), evitando tomar o lugar dos fiéis e dar as coisas prontas.
É também esta realidade total e globalizante do povo de Deus que
fundamenta a primazia da Igreja local, centro em torno do qual gira toda
a eclesiologia conciliar. Pode-se afirmar que LG 26 (sobre a teologia das
igrejas locais, as dioceses) é a maior novidade da eclesiologia conciliar
e perspectiva promissora para a Igreja do futuro (Rahner). Desde o Concílio Vaticano II, a diocese não pode ser vista como distrito, uma parte
da Igreja universal, mas como a Igreja de Deus inteira acontecendo em
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
um determinado lugar, “a partir deste fundo e deste centro, e somente
dele”, “como o acontecer da própria Igreja” (Rahner).
Conclusão
Sintetizando…, em termos teológicos, pode-se afirmar que o núcleo de toda esta mudança histórica passa pela teologia da encarnação.
Como o Verbo de Deus se fez carne humana, assim a Igreja de Cristo deve
fazer-se história, deve perfazer o caminho quenótico do esvaziamento e da
pobreza, a fim de poder experimentar a graça e a beleza do encantamento
da fé no seu único Fundador, o crucificado ressuscitado.
Em termos práticos, isso implica duas atitudes. Ad extra, a disposição para o serviço. Deve-se deixar cada vez mais clara a presença
da Igreja no mundo. Não uma presença preocupada com o triunfo e o
poder, mas uma presença de profecia e serviço. Ad intra, o princípio da
colegialidade. A um mistério de comunhão corresponde um ministério
de comunhão, um ministério colegiado. “Em colégio”, “em concílio”,
“em comum” (LG 22).
O Concílio Vaticano II abriu a Igreja para o futuro. Portanto, o futuro está aberto! O retorno sincero ao Vaticano II nos ajudará a encontrar
o caminho da Igreja deste início do novo milênio.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência
do Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
Sintetizador: Jonathan Speck Thiesen Jacques*
*
Graduando do 3º ano de Teologia do ITESC.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 51-63.
Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
Debatedor: Pe. Dr. Elias Wolff
Saúdo inicialmente cada participante deste Congresso, os colegas
professores, alunos, os membros dos cursos de extensão que estão aqui.
Bem vindo Dom Demétrio;, que alegria tê-lo conosco, Professor Ramada.
Para mim, pessoalmente, é uma grande alegria ter voltado à casa, após
um ano quase-sabático, fora do mundo acadêmico; então retomo as atividades aqui no ITESC/FACASC. Parabenizo também os organizadores
do Congresso, entendendo que, de fato, a Instituição serve exatamente
para isto: para promover o debate, promover a discussão, promover um
estudo que venha aprimorar, não apenas o conhecimento do que é Igreja,
mas sobretudo o modo de viver aquilo que nós queremos aprofundar pelo
exercício intelectual que fazemos na academia.
Começo com uma frase, ou melhor, com uma constatação, do
então teólogo Joseph Ratzinger, atual Papa Bento XVI. Ele escreveu
num artigo sobre as eclesiologias da Lumen Gentium, um episódio que
aconteceu com os bispos da Alemanha, quando na época do Concílio se
perguntava qual seria o tema central, ou quais os temas sobre os quais,
de fato, o Concílio devia se debruçar. E alguém, um dos bispos da
Alemanha, apontou: Deus, Deus é o tema central. De fato, sem dúvida
nenhuma, todo o primeiro capítulo da Lumen Gentium trata de Deus, o
mistério, que o Vitor já comentou. Quer dizer: o número dois é o projeto
do Pai; o número três é a missão do Filho, que realiza o projeto do Pai
na história; o número quatro da Lumen Gentium, o Espírito Santo, que
fortalece a realização desse mistério, de tal modo que o número cinco,
então, se encaminha para o Reino. Enfim, todo o primeiro capítulo parte do mistério. E aqui é que entra o discurso da Igreja. De modo que,
a Lumen Gentium, a partir do primeiro capítulo, e em sintonia com o
segundo capítulo, Povo de Deus, trata do mistério que se encarna na
história. Assim se entende, então, sem dúvida nenhuma, a concepção da
eclesiologia, nesse contexto.
Agora, três questões, ou três elementos que eu apresentaria para
começarmos o debate. O primeiro deles (1), retomando a frase do teólogo
medieval de que “o agir segue o ser”, agere sequitur esse. Se assim é, nos
perguntamos como a Lumen Gentium, que é a tentativa de aprofundar,
explicitar, numa forma mais precisa, a natureza, a identidade e a missão
da Igreja, e aqui então a natureza, a identidade e a missão da Igreja entendida muito no espírito da comunhão, entendida no sentido de Corpo de
Cristo, Templo do Espírito Santo, e isso tudo vivido na história do povo
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Encontros Teológicos nº 64
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Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller
de Deus, então, Igreja como povo de Deus, como é que esta compreensão
tão bela, tão linda de Igreja, que aparece na Lumen Gentium, tem tanta
dificuldade para se concretizar, para ser efetivada, sobretudo nas suas
instituições da história. E aqui, Vitor, eu diria que nós constatamos, sem
dúvida nenhuma, uma disfunção institucional, na Igreja do nosso tempo,
como em muitos momentos da história. Uma disfunção institucional no
sentido de que a Igreja aponta para o Reino, a Igreja aponta para uma
realidade de comunhão e participação do povo de Deus, que por si mesmo
já suscita a possibilidade de valorização dos ministérios, dos carismas, dos
dons que o Espírito concede a cada um, na diversidade própria da ação
do Espírito. Agora, essa realidade para a qual a Igreja aponta não se faz
tão presente na sua realidade concreta, efetiva, sobretudo pela dimensão
institucional. Isso significa que, de algum modo, poucos aceitam a realidade atual da Igreja, como ela se concretiza, ali naquela comunidade
paroquial, ali naquela Igreja local diocesana. E, percebendo então o que
eu chamo de disfunção institucional, não poucos fazem com que essa
realidade acabe num descrédito, ou perca de credibilidade do conteúdo
da mensagem, uma vez que o modo de organizar se distancia daquilo
que é o essencial, o que ela poderia/deveria apresentar. Assim, então, se
relativiza o discurso feito, tanto nos documentos conciliares, como nos
documentos atuais, e não poucas vezes também nos discursos que nós
fazemos como ministros das comunidades onde atuamos.
Um segundo elemento (2), e também como consequência disso,
é a questão: como fazer hoje uma eclesiologia consequente, que significa integrar, de algum modo, essa precariedade da Igreja visível ao
testemunho do Reino de Deus no qual nós acreditamos e que fortalece a
esperança? De que maneira, mesmo nesta situação de carências institucionais, doutrinais e organizacionais, ali se manifesta o Reino de Deus?
E agora, tratando aqui do segundo capítulo da Lumen Gentium, Igreja
Povo de Deus, com o terceiro capítulo, que fala da hierarquia na Igreja,
o segundo capítulo é muito claro ao afirmar que “o conjunto dos fieis
é membro com igual direito nas diferentes responsabilidades”. Então
aqui as estruturas, sacramentais, jurídicas, instituição de governo, estão
a serviço do povo de Deus. Em função disso, a realização dos sínodos
diocesanos, dos conselhos de pastoral, conselhos de presbíteros, o
exercício do sacerdócio comum dos fieis, o sínodo dos bispos, enfim,
tudo aponta para uma corresponsabilidade na missão. Todos os cristãos
temos a mesma missão, que é pregar o evangelho, é anunciar a pessoa
de Cristo. E há uma corresponsabilidade nessa missão: não são missões
Encontros Teológicos nº 64
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
diferentes. Agora, há um exercício de responsabilidades específicas nesta
única missão, a partir da competência de cada um. Mas essa corresponsabilidade deve envolver a todos no exercício, de fato, da colegialidade
e da subsidiariedade: que as instâncias maiores respeitem as menores,
naquilo que elas tem condições de fazer por conta própria, e acolham a
contribuição dessas instâncias. Se assim entendemos, sobretudo no capítulo II da Lumen Gentium, nós percebemos, porém, atualmente, uma
eclesiologia muito mais centrada, sem dúvida, no capítulo III da mesma
Constituição. Apresenta-se, então, a constituição hierárquica de forma
muito mais precisa do que o capítulo II, naquilo que é de competência do
povo. E é muito mais operativa também: estatuto visível, organização,
designação dos responsáveis para o futuro, instâncias de governo. Hoje,
então, se de fato isso ocorre, nós percebemos uma inversão da eclesiologia
conciliar. Não apenas uma resistência ao número 12, que afirma o sensus
fidei de todo o povo: o conjunto dos fieis não pode enganar-se no ato de
fé, pela assistência do Espírito a cada um. A partir do momento em que
cada um é fiel àquilo que o Espírito lhe concede, como dom, acontece o
consensus fidelium: do bispo, ao último fiel, todos na mesma comunhão
da fé. Se há uma concentração da eclesiologia, sobretudo no capítulo
III, onde o bispo, com toda a responsabilidade que tem na missão, às
vezes torna-se isolado da comunidade dos fieis; ou o clericalismo, cada
vez mais acentuado; nós percebemos que a participação do povo, nas
instâncias de decisão pastoral, de governo, é mesmo indeterminada,
é mesmo muito frágil, de modo que fica, em não poucos ambientes,
quase que desnecessária. Então a questão que a gente se coloca é como
equilibrar, de fato, neste momento atual de revisitação do Concílio, o II
Capítulo, da Igreja Povo de Deus, com o III Capítulo, mostrando que
o elemento mais institucional, hierárquico da Igreja, é também povo, e
está a serviço deste mesmo povo de Deus.
Um terceiro elemento (3) que eu gostaria de apontar, diz respeito
à relação entre Igreja local e Igreja universal. O Documento Christus
Dominus, ao falar dos bispos, n.11, dá uma definição de Igreja local diocesana como aquela porção do povo de Deus confiada ao Bispo que, junto
com seu presbitério, na força da Palavra, da Eucaristia, da assistência
do Espírito Santo, então, apascenta, orienta. Entendemos a Igreja local
como uma diocese, ou mesmo o conjunto de dioceses de uma mesma
região, que tem características próprias, no sentido sócio-cultural, com
desafios comuns, uma cultura comum. Igreja particular parece ser uma
expressão mais querida, mais usada pelo Concílio, mas talvez menos
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller
aceita, por dar a impressão de que é parte da Igreja universal, na qual
subsiste a una e única Igreja Católica. A história mostra a Igreja local,
em regime sinodal, com um metropolita, regulamentando questões como
escolha de bispos ou sagração episcopal, divisão das dioceses, normas
canônicas, litúrgicas, disciplina do clero, disciplina do leigo, quer dizer,
houve um tempo na história em que a Igreja local tinha esta autonomia,
vivida na comunhão com outras Igrejas locais. O Vaticano II parece-me
acentuar mais a ideia da Igreja universal, como uma comunhão de Igrejas
locais. Entretanto, o número 26 afirma que em cada Igreja local a Igreja
una e única está presente. Neste ponto, parece-me necessário perceber
que há carência de alguma instância entre o exercício do ministério da
Igreja universal e o exercício do ministério da Igreja local. A força do
primado não está numa pessoa, mas na unidade dos bispos como um
todo, no sentido de colegialidade efetiva, que expressa a real comunhão
das Igrejas. Assim, a questão que eu gostaria de apresentar na relação
entre Igreja local e Igreja universal é como integrar, de modo efetivo, a
catolicidade da Igreja una na diversidade das Igrejas locais, sem fazer
da Igreja local uma mera repartição administrativa da Igreja universal,
ou seja, como integrar o ministério petrino com o ministério dos bispos,
que são sujeitos de autoridade na Igreja local; e o ministério petrino
como um fortalecimento, uma confirmação deste ministério. Pareceme que, no livro “O Novo Povo de Deus”, citado pelo conferencista,
o então teólogo Ratzinger afirmava que há possibilidade, sim, de uma
instância intermédia, entre o ministério petrino e o ministério episcopal, que estaria na criação de novos patriarcados, a exemplo das Igrejas
orientais católicas, que têm leis próprias, rito litúrgico próprio, patrimônio
teológico-espiritual próprio. Nesse mesmo livro, o teólogo falava que
não se pode aceitar na Igreja uma uniformidade do direito eclesiástico,
uma uniformidade litúrgica, e não há também necessidade de controles
das sedes episcopais como próprias do primado petrino. Parece-me que
isso não está condizendo com o ministério do exercício do governo universal na Igreja. E por essa razão, que, na Encíclica Ut unum sint, João
Paulo II convoca os cristãos do mundo todo, também não católicos, que
o ajudem a compreender e a encontrar a melhor forma de governo na
Igreja que seja um serviço para todos, no sentido de ser salvaguarda da
comunhão, da unidade por excelência, porque isso condiz, sim, com o
exercício do ministério petrino. E, por essa razão, é necessário então nós
pensarmos, cada vez mais, como fortalecer a unidade na diversidade,
tanto na Igreja universal quanto na Igreja local, na relação entre Igreja
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
universal e Igreja local, como também na ministerialidade do povo de
Deus como um todo.
São apenas estas as três questões que proponho para o debate: uma,
relativa à disfunção institucional que percebemos na Igreja institucional
que não aponta para a comunhão, para o Reino, para a participação;
uma segunda questão, que diz respeito mais à compreensão do povo de
Deus na Igreja e, portanto, uma eclesiologia que vincule, cada vez mais
explicitamente, o II e o III capítulos da Lumen Gentium; e uma terceira,
em relação à Igreja universal e à Igreja local.
Resposta do Conferencista Pe. Vitor:
Muito obrigado, Pe. Elias, pelas suas colocações. Vou refletir sobre
o que você expôs.
1. Você pergunta, a partir da frase o agir segue o ser, como é que
essa beleza da Igreja, apresentada em Lumen Gentium, pode se concretizar? Como superar a dificuldade para que se concretize essa beleza
aí anunciada? Você fala da disfunção institucional, na nossa realidade
concreta. Eu tenho para mim que, embora tenhamos que falar de Igreja,
que é o nosso tema aqui, não podemos cair numa espécie de eclesiocentrismo, ou seja, de ficar falando demais da Igreja. Porque senão, a
gente fica falando daquilo que é Instituição, etc e tal, e se esquece de
falar do mistério que está dentro da Instituição, da graça que está dentro
da nossa proposta. Tenho para mim que somos muito pelagianos. Bom,
aí eu tenho que explicar mais uma vez, porque eu já tinha falado antes
o que é pelagianismo... O pelagianismo, lá dos anos 300 para 400, foi
a proposta de um monge irlandês que achava que Deus concedeu para
o ser humano as condições para que ele, por sua própria razão, faça as
coisas sem precisar mais da graça de Deus. No fato de ter sido criado,
já tem tudo, não é preciso a graça de Deus. Santo Agostinho reagiu a
isso dizendo que nós precisamos sempre da graça de Deus para libertar
a nossa liberdade, cativa do pecado, e podermos então deixar que Deus
opere em nós. Eu entendo que, e neste ponto estou muito de acordo com
um discurso de Ratzinger já bem antes de ele ser Papa, e agora também
como Papa ele insiste muito nisso, que nós temos que dar mais crédito
para a graça de Deus, ao mistério de Deus, ao divino de Deus que está
presente em nós e que muitas vezes nós obscurecemos com nossas preocupações, por demais humanas: carreirismos, funções, títulos, cargos...
Imagino que isso não seja fácil, pois temos atrás de nós dois mil anos de
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller
história, e todos nós sonhamos assim: estar na frente, poder, homenagens etc. Aquela crítica que Jesus fez aos fariseus “a ninguém chameis
de Mestre” ainda vale para nós, hoje. Então, quando nós entramos num
“pastoralismo”, de muita ação, muita correria, muita agenda, muita sobrecarga, e eu estou falando de mim, de você, de todos nós que corremos
demais, e muitas vezes não explicitamos corretamente o porquê disso
tudo, o porquê dessa paixão, desse elã; o que nos faz mesmo estar aqui
hoje, por exemplo. Se a gente não esclarece, não deixa claro que é Deus,
tudo o que nós fazemos perde a credibilidade. Dom Murilo gostava de
citar um bispo colombiano, cujo nome esqueci, mas que dizia o seguinte: “os Santos nunca falharam em ação pastoral”. Não sei se é verdade,
mas eu acredito... Porque apresentavam Deus, testemunhavam Deus,
o mistério de Deus. Eu acho que, às vezes, ficamos muito no exterior,
também no exterior do teológico, também no exterior do eclesiológico,
também na crítica da Instituição, e com isso eu não estou desfazendo
aquilo que falei no começo (aliás, falei exatamente do mistério encarnado no povo de Deus). Então, eu acho que nós relativizamos demais a
nossa mensagem e perdemos credibilidade, quando não absolutizamos
essa verdade, quando não somos pessoas convertidas a Deus, ao Cristo,
a Jesus de Nazaré, e não à Igreja, que é sempre uma mediação. Muitas
vezes a gente corre o risco de defender a Igreja (e é claro que devemos
defender a Igreja), mas fazê-lo por causa de Jesus e, às vezes, justamente
por causa de Jesus, temos que ser críticos da mediação eclesial, críticos
de muitas maneiras como a Igreja se manifesta. Nós somos uma família,
e na família precisamos, muitas vezes, lavar roupa suja. O problema é
que a gente muitas vezes sofre demais, e se esquece de voltar sempre
às fontes primeiras...
2. Segundo ponto, a relação entre o Capítulo 2 da Lumen Gentium, Igreja Povo de Deus, e o Capítulo 3, da Hierarquia. Ou seja, uma
eclesiologia consequente, de corresponsabilidade, de colegialidade, que
supere aquela (uma) inversão que, possivelmente, esteja acontecendo,
de valorizar mais a hierarquia, e não tanto o povo. É um caminho que
nós temos que percorrer e que começa conosco, nas comunidades, nas
pastorais, nos movimentos, nas paróquias. Às vezes, a gente espera
muito que as coisas mudem a partir de cima: a partir de cima as coisas
não vão mudar! As coisas vão mudar a partir de baixo, ou seja, quando
nós começarmos a fazer a eclesiologia conciliar acontecer onde a gente
vive; quando nós começarmos a promover espaços para que os carismas,
os ministérios, os dons do povo de Deus, das pessoas, dos jovens, das
Encontros Teológicos nº 64
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
mulheres, das crianças, dos idosos, nessa diversidade toda de manifestação eclesial, que isso tudo se torne realidade, que isso tudo tenha espaço
de manifestação. Gosto muito da comparação do padre com o regente
de uma orquestra: o regente (o padre, no caso) de uma orquestra não
precisa saber tocar cada instrumento. Talvez ele não saiba tocar nenhum
instrumento. Mas ele sabe a hora que entra cada um dos instrumentos,
todos os instrumentos, pois ele rege a orquestra. Quem está à frente da
comunidade, qualquer pessoa que seja, tem que ter essa capacidade de
regência, de descobrir quais são as carências, para cobrir essas carências,
resolver essas carências com os carismas. Eu creio que o Espírito Santo
não vai deixar, não deixa faltar carismas na sua Igreja, para resolver as
carências. Nosso problema é que estamos muito apegados, às vezes, ao
que já fazemos, ao que já sabemos, então achamos que a solução para a
carência disso, daquilo, é padre! E talvez não seja o carisma que o Espírito
Santo esteja suscitando pra resolver essa carência. Pode ser que o Espírito
Santo esteja sugerindo outros carismas. Bom, recordei agora, e é uma
ideia insistente na minha cabeça, que gostaria de colocar aqui. Comblin
dizia: “será que o caminho da mudança da Igreja não vai passar pelos
leigos?” Porque ele dizia que, dos padres, não dá para esperar mais nada!
Infelizmente, quem está falando é um padre! Mas também não acredito
que a gente tenha que ser assim tão ou ... ou. Mas acreditar nos carismas
dos leigos, o que não é fácil. De manhã eu até falei, assim, rapidamente,
que nós quisemos introduzir na Arquidiocese a Escola de Ministérios, até
pode ser que fomos ousados demais e por isso houve muita reação, mas
não foi fácil. É preciso ter essa paciência histórica, o que não significa
cruzar os braços, mas é fazer acontecer: fazer acontecer nos ambientes
que nós vivemos essa colegialidade, essa corresponsabilidade. Nós
também somos membros da hierarquia, nós, padres. Não somos bispos,
mas somos auxiliares próximos, e quanta coisa a gente pode promover,
como por exemplo, um encontro como este aqui.
3. Sua terceira colocação, a relação entre Igreja local e Igreja
universal, que foi até tema de um debate teológico vivo, dinâmico, entre
Ratzinger e Kasper, dois cardeais da Igreja, alemães, porém cardeais da
Igreja romana, em Roma, porque um era da Congregação para a Doutrina da Fé e o outro era do Ecumenismo, “brigando”, teologicamente,
com artigos – um contra o outro: Ratzinger defendendo o primado da
Igreja universal e Kasper defendendo o primado da Igreja local. O que
é que vem antes? Vem antes a Igreja universal? Ratzinger dizia: primeiro a Igreja universal, numa visão mais platônica. E Kasper dizia: não,
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Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller
primeiro vem a Igreja local. A comunhão das Igrejas locais é que faz a
Igreja universal. Bem, o debate terminou, bateram palmas para os dois,
mas não sei se a gente conseguiria ter uma solução... Acho que é um
mistério de Deus! Digo não brincando, mas para teologizar mais isso,
num sentido trinitário. Na Trindade nós temos um e três: nós temos um
princípio de unidade, que é o Pai..., princípio monárquico; e um princípio
da diversidade, que não é só do Filho e do Espírito Santo, é diversidade
dos três, o princípio da sinodalidade. E isso é bem interessante, porque
aparece no número 22 da Lumen Gentium. Como não falei aqui, mas em
outras oportunidades já falei, o Concílio Vaticano II tentou responder
também à pergunta sobre o lugar dos bispos, porque o Vaticano I havia
insistido muito no lugar, na missão do Papa. [...] E o Vaticano II tentou
salientar o episcopado como sacramento, a colegialidade episcopal, e lá
no número 22 começa a dizer “os bispos são sucessores dos apóstolos
porque Jesus Cristo escolheu apóstolos... e portanto os bispos, como
colégio episcopal... mas, o Romano Pontífice detém o poder universal,
porque o Romano Pontífice é o sucessor de Pedro..., mas o governo do
Romano Pontífice deve ser equilibrado com o poder dos bispos, porque
eles também têm solicitude pela Igreja universal, mas....”, tem lá uns 4
ou 5 “mas”. Isso tudo revela a dificuldade que temos de uma ideia clara
e distinta sobre este mistério, que é o mistério da Santíssima Trindade
encarnado na Igreja, nesse princípio da unidade e da diversidade da Igreja.
Agora eu acho que, em termos práticos, o que está acontecendo é que o
princípio da unidade tem-se tornado muito forte. Concretamente falando,
o polo “monocêntrico” foi muito forte no 2º milênio e é preciso que haja
mais espaço para a diversidade, para a colegialidade dos bispos. Por que
no Sínodo dos Bispos os bispos não podem falar tudo o que queiram e
a mensagem final não é uma mensagem dos bispos, mas uma Exortação
Apostólica do Papa? Por que o Sínodo dos bispos não tem valor decisório,
mas apenas consultivo? Afinal de contas, são sucessores dos Apóstolos.
Então, este peso da unidade está ainda muito forte. Acho que ele precisa
ser mais desequilibrado com o princípio da diversidade, que nós podemos fazer acontecer entre nós, por exemplo numa diocese: o bispo é o
“monarca”, e os padres, conselho de pastoral, conselho de formadores,
conselho presbiteral, conselho administrativo, são o polo da diversidade
e podem desequilibrar muito o poder monárquico de um bispo. E a gente
poderia trabalhar mais nisso (estou falando “desequilibrar” no sentido
positivo). Assim, também, desequilibrar o poder monárquico do Diretor,
do professor numa sala de aula, do coordenador de uma pastoral. Evitar
Encontros Teológicos nº 64
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
todo o tipo de concentração e, quem está à frente, não concentrar, mas
ter essa capacidade de valorizar a diversidade.
Participação de Carlos Lucas Besen, professor.
Vou falar pouco. Não sei se todos sentiram este problema, mas eu
senti: tem a Igreja local, com o bispo, os padres, e tem as paróquias; os
diáconos, que dão assistência aos padres. Estou sentindo, ultimamente,
na Igreja, que as paróquias estão se pulverizando. Por exemplo, “eu vou
naquela paróquia porque lá o padre é ‘assado’”, “o outro é assim”, então
as paróquias estão perdendo um pouco a identidade da comunidade local,
ali, no chão. Isso é um problema que eu sinto muito. Então as pessoas,
ao invés de ficarem na sua paróquia, vão em outras. Eu não sei qual é
problema que está acontecendo, mas este é um fenômeno muito recorrente, nesse momento, na Igreja aqui local, não sei nas outras cidades.
É um ponto que eu gostaria de colocar, porque não foi abordado. Para
mim, o chão da Igreja está na Paróquia.
Participação do Pe. Valter Goedert, professor
do ITESC/FACASC.
Pe. Vitor, parabéns; Pe. Elias, muito bem. Você, Pe. Vitor, me fez
recordar duas coisas, e uma até você citou rapidamente: eu me lembro
que o professor Salvatore Marcíli, que foi professor meu em Roma e
foi perito do Concílio (na Sacrosanctum Concilium), monge beneditino,
ele nos dizia uma vez em sala de aula que, para acolher o Concílio, não
basta se adaptar, é preciso se converter. Ele tinha toda a razão. Pois se
trata de uma mudança de mentalidade e não se muda a mentalidade de
qualquer forma – cansou da roupa, troca! Ou volta à antiga, como está
acontecendo! Eu acho muito forte essa colocação dele, que já é falecido...
E também uma coisa que você lembrou, Vitor, do discurso de Paulo VI
no final do Concílio Vaticano II: a partir desse discurso, dei um encontro
em Brasília para as escolas diaconais. Acho lindo o que ele diz lá: “a
Igreja não pode ir para o mundo com medo, como se o mundo fosse um
inimigo”, como aconteceu durante tanto tempo, e você, Vitor, lembrou.
Nós, continua Paulo VI, “temos de ir para o mundo como Cristo veio
para o mundo: para se encarnar, dialogar e salvar”.
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Encontros Teológicos nº 64
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Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller
Participação do Pe. Ney Brasil, professor
do ITESC/FACASC.
Apenas duas coisas: a primeira, diante da beleza do magnífico
resumo que o Pe. Vitor apresentou da Lumen Gentium, vem à tona o
desejo de conhecer sempre mais o mistério de Deus, o mistério da Igreja.
Daí a importância de os leigos e as leigas fazerem teologia, como está
começando, um pouco por toda parte, ainda timidamente. A segunda,
para conhecerem a Igreja e conhecerem a teologia, talvez o caminho
relativamente fácil é conhecer a história da Igreja. E temos agora duas
obras de história da Igreja publicadas por um professor desta casa, Pe.
José Besen, “histórias da Igreja” muito interessantes, de cerca de 300
páginas cada uma, realmente acessíveis, e ao mesmo tempo uma introdução preciosa para a eclesiologia, através da história.
A terceira observação, é sobre a Igreja particular. A Igreja particular é um problema bastante complicado, principalmente na prática.
Mas eu, pessoalmente, penso que, do ponto de vista inclusive bíblico,
vendo as igrejas do Apocalipse, as igrejas dos Atos dos Apóstolos etc,
não se entende uma Igreja particular gigantesca, como é o caso da nossa
Arquidiocese querida, de Florianópolis, com mais de 1 milhão e meio
de habitantes atualmente...Convenhamos que é uma dimensão grande
demais para sentir-nos uma Igreja particular, visto que a Igreja particular
deveria ter dimensões menores, que possibilitassem um mais próximo
relacionamento entre o Bispo e os fiéis.
Respostas do Pe. Vitor:
Professor Carlos Lucas Besen falou das paróquias: eu não gostaria
que fosse entendido aquele princípio de unidade de que eu falei – que
o Papa exerce o princípio da unidade na Igreja universal; o episcopado,
o colegiado dos bispos exerce o princípio da diversidade – e, analogamente, na diocese, o bispo exerce o princípio monárquico da unidade
e os conselhos, presbiteral, de formadores, pastoral, administrativo
exercem o princípio da diversidade. Caros párocos: isso não vale para
a paróquia! Pároco não exerce o princípio monárquico; pároco, teologicamente falando, não é, na sua paróquia, monarca. Por quê? Porque a
paróquia, por mais que seja uma Igreja local, ela é sempre relacionada
com a Diocese. Não se pode, portanto, falar analogamente também da
paróquia. É claro que, em termos pastorais, não em termos teológicos, o
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Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II
pároco, na paróquia, também exerce o princípio da unidade. Então vamos
falar em termos pastorais, depois eu volto para os termos teológicos.
Em termos pastorais, o pároco exerce o princípio da unidade; o que tem
acontecido hoje é que nós, padres, eu me incluo também, nós, padres,
não estamos sabendo exercer o princípio da unidade. Quero ser mais
incisivo: nós não estamos sabendo exercer a autoridade, nós estamos com
medo de exercer a autoridade. Exercemos o poder, o tacape, mas não
a autoridade. Porque, para exercer a autoridade tem que ter sabedoria,
tem que ter conhecimento, tem que ter fundamentação teológica, bíblica,
principalmente espiritual, e principalmente santidade. Porque a autoridade, do latim augere, significa promover, fazer crescer, estar por baixo
para promover tudo o mais. E para isso tem que ter paciência, empenho,
sacrifício, disposição, não é? Quando você quer ser alguém igual aos
outros, colocar-se no mesmo nível dos outros, você está fugindo do seu
carisma. Então, o carisma de um pároco, ou de um vigário paroquial, é o
de alguém que tem que exercer esse princípio de unidade. [...] Quanto às
as nossas paróquias, o fato de estarem perdendo muito este centro vital,
de pastoral, de liturgia, do ministério da palavra, isso se deve também
a dois fatores, penso eu: primeiro, o fator da urbanização, onde cada um
escolhe a paróquia onde deseja ir, e isso pode esfacelar muito o modo de
as pessoas se entenderem membros da Igreja, pois vão aonde querem e
gostam, aonde podem estacionar melhor, ao padre que faz coisas mais
agradáveis, ou pela sua teologia, enfim, se pode escolher. E tem também o
fator, hoje, dos Movimentos, que também retiram as pessoas da paróquia
para oferecer uma proposta própria. Acho que devemos saber articular
isso tudo, porque eu não sou contra os Movimentos, mas penso que, em
termos de diocese, [...] o bispo deve promover a unidade entre as pastorais, os organismos, os serviços e também os Movimentos, de modo a
fazer acontecer, o melhor possível, que as paróquias descubram um modo
novo de ser paróquia, [...], por exemplo, como “rede de comunidades”.
Pe. Valter, também acho que é necessário uma conversão para
acolher o Concílio. Apreciei esta sua colocação. Porque, às vezes, a
gente fica querendo muita novidade e, como eu comecei dizendo, está
dada a resposta para as crises da Igreja, hoje: o Concílio Vaticano II
deu muitas respostas, abriu muitos caminhos, ofereceu muitas pistas.
É claro que, para isso, é preciso conversão: conversão espiritual, mas
também conversão intelectual e, como fala o Documento de Aparecida,
conversão pastoral [...]. Saiu agora, pelas Paulinas, uma nova tradução
dos documentos do Concílio Vaticano II, com todas as falas, discursos,
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller
inaugurais e finais, de João XXIII e de Paulo VI. É muito interessante
isso, também, para contextualizar o Concílio e essas falas. Sobre não
ter medo do mundo, Paulo VI disse: “A Igreja, finalmente, colocou-se
diante da grande estatura do mundo, a estatura terrível do mundo”. “O
que aconteceu?” ele pergunta: “uma oposição, um conflito, uma guerra?
Não. Um diálogo aconteceu”. E a Igreja é chamada a descobrir, você
falou, Pe. Valter, a necessidade de ela entrar neste mundo para poder
evangelizar, como fez Jesus Cristo.
Pe. Ney, acabei de dizer, claro, que o que nós estamos facilitando,
na abertura da FACASC, é exatamente este conhecimento da teologia, da
história da Igreja, que é ótimo, que é necessário para se poder entender
melhor a realidade eclesial. Em 2000 anos, a gente percebe muito bem
que só pelo Espírito Santo, e não pela força das pessoas... é que a Igreja
chegou até aqui. Quanto à nossa Igreja particular “muito grande”: bom,
vamos continuar lutando, não é Pe. Ney? Quem sabe um dia a gente
consiga fazer com que haja mais dioceses, mais pequenas Igrejas particulares, nas quais o relacionamento entre hierarquia e povo se torne
mais próximo, mais fraterno, mais evangélico.
Debatedor, Pe. Elias:
Duas palavras ainda. Primeiro ao Maestro, Carlos Lucas Besen,
lembrando que, de fato, historicamente, a organização da paróquia assumiu o modelo da sociedade feudal, que se marcava pela territorialidade,
e isso está em questão. O Documento de Aparecida compreende que o
essencial, na Paróquia é, de fato, a experiência comunitária: então, ela
é uma comunidade de comunidades, e temos que fortalecer exatamente
isto. E a Assembleia dos Bispos do Brasil no ano que vem – foi decidido na semana passada, na reunião do Conselho Pastoral Episcopal, em
Brasília – será exatamente sobre o tema da Paróquia, o que se quer como
paróquia, uma “nova paróquia”, comunidade em missão, num ambiente
cada vez mais urbano.
E Pe. Valter, fala-se hoje de um terceiro momento da recepção do
Concílio. Pe. Vitor apresentou dois momentos: de 1965-1985 e de 1985
até agora... Esse “terceiro momento”, não seria mais o de uma recepção
meramente jurídica, administrativa, institucional, mas exatamente uma
recepção a partir de convicções. Eu acho que isso é que faz, de fato, a
Igreja caminhar.
Encontros Teológicos nº 64
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REMINISCÊNCIAS DO VATICANO II (1)
Dom Clemente Isnard
Durante as sessões do Concílio, os bispos brasileiros, hospedados na Domus
Mariae, tinham quase cada semana uma conferência à noite, promovida por um
perito, Pe. Antônio Guglielmi1. Convidava ele para essas conferências os maiores
luminares do Concílio e, sobretudo, os mais famosos peritos. Foi assim que ouvimos
o Cardeal Bea, o Cardeal Suenens, o Arcebispo melquita Edelby, Hans Küng, Karl
Rahner, Diez Alegria, Jean Daniélou, Henri de Lubac, Yves Congar etc etc. Foi uma
verdadeira reciclagem para todos nós, que devemos agradecer ao zelo desse padre.
As conferências na Domus Mariae começaram a ser frequentadas por pessoas de
fora, Bispos ou não, e se tornaram tão conhecidas em Roma que, um dia, o Secretário
geral do Concílio, o Arcebispo Felici, se julgou no dever de esclarecer, em plena aula
conciliar, que essas conferências “não eram oficiais ou autorizadas”. Sim, não eram
oficiais, mas eram muito interessantes e proveitosas, embora fossem sempre na linha
de abertura, que não agradava ao Secretário geral. [...]
Quando se tratou, na terceira sessão, do Decreto sobre os padres, o bispo
brasileiro Dom Fernando Gomes, fez um discurso memorável, que arrancou
aplausos do plenário, aplausos que eram proibidos pelo regimento. Apesar da
proibição, relembrada mais de uma vez, grandes oradores como Máximos IV e De
Smedt, foram aplaudidos depois de suas intervenções. Fernando Gomes propunha a
rejeição do esquema apresentado, demasiado resumido, e pedia uma quarta sessão
do Concílio para o ano seguinte, que se sabia não ser do desejo do Papa. Parece
que Paulo VI desejava encerrar o Concílio em 1964, mas os Bispos viam que isso
não era possível. À medida que o Concílio prosseguia, os Bispos iam se tornando
mais maduros e livres, num bom sentido. Os aplausos a Fernando Gomes, o bispo
brasileiro que mais se distinguiu por esse discurso na aula conciliar, parecem ter
decidido a rejeição do mencionado esquema, motivando assim a redação do atual
decreto Presbyterorum Ordinis. E devem ter contribuído para a convocação da
quarta sessão em 1965.
Exemplo dessa liberdade crescente dos bispos foi o que aconteceu com
o primeiro esquema da Ad Gentes. O esquema não agradava, mas o Cardeal
Agagianian, um dos moderadores do Concílio e prefeito da “Propaganda Fide”,
desejava muito que servisse de base para as deliberações. O Cardeal obteve que
Paulo VI, na aula conciliar, falasse uma palavra em favor do esquema, dizendo que
poderia ser melhorado. Mas nem a intervenção do Papa adiantou. O esquema foi
rejeitado e, graças a isso, temos hoje o excelente decreto Ad Gentes, um dos mais
maduros do Concílio. [...]
(Excerto do capítulo “Reminiscências do Concílio”, do livro “Memórias que anunciam o
Futuro”, em homenagem a Dom Clemente Isnard, Recife, 2012, pp. 237-238)
1
Pe. Guglielmi, da arquidiocese de Florianópolis, formado no Instituto Bíblico, depois professor na
PUC do Rio e na Universidade de Juiz de Fora, faleceu em sua terra natal, Içara, em 1999.
Resumo: Dois documentos são importantes no diálogo conciliar sobre os leigos: Lumen
Gentium, que fornece o pano de fundo eclesiológico para que a questão dos leigos possa
emergir e, segundo, a Apostolicam Actuositatem, que impulsionou posteriormente o debate
nas questões que se levantam sobre os ministérios leigos, sobretudo num país como o Brasil.
Nós somos fruto de um movimento renovador, o maior talvez em toda a história da igreja.
O laicato desejava ardentemente uma maior participação na vida e missão eclesiais, e esse
desejo foi abundantemente contemplado nos documentos conciliares. O Concílio procurou
superar a definição do leigo pelo negativo, como “aquele que não é padre”, “que não é
ordenado”, e consagrou a valorização fundamental do batismo, que insere numa unidade
anterior à diversidade das funções, carismas e ministérios. Há um retorno, portanto, à eclesiologia do Novo Testamento, que apresenta todo o povo de Deus como santo e sacerdotal.
A Apostolicam Actuositatem, tratando da missão dos leigos, sublinha sua “índole secular”,
o fato de que eles são chamados, como fermento, a exercerem seu apostolado no meio do
mundo. A ministerialidade, porém, é estatuto de todo o corpo eclesial, não apenas de alguns
de seus segmentos. Entre as várias realizações do pós-Concílio, que apontam para novo
paradigma, destacam-se, entre outras, a admissão dos numerosos ministros e ministras
leigos, bem como o aumento do número e qualidade dos teólogos leigos e leigas. Entre os
desafios pendentes, o fato de que tantas comunidades não podem celebrar dominicalmente
a Eucaristia: não está na hora de repensar a questão dos ministérios?
Abstract: Two documents of the Council are important concerning the ministry of laity in the
Church: Lumen Gentium providing the reader with the ecclesiological background of all the
issues relating to this activity, and the text of Apostolicam Actuositatem which gave raise to
the debate about the performance of the tasks involved, especially in Brazil. Indeed, we are
the outcome of this innovating movement, perhaps the most influential in all the history of
the Church. In fact, the laity had already manifested its ardent desire to be actively involved
in the life and the ecclesial tasks, as it is abundantly mentioned in the documents of the
Council. Thus, it is imperative that the negative definitions of laity as “those who are not
priests”, that is, “not ordained to the priesthood”, be eliminated from the vocabulary. A positive
formulation should be adopted from now on based on the consecration and fundamental
enhancement of God’s grace bestowed in baptism. It is a much more exalted one than the
definition based merely on the diversity of functions, charismas, and ministries. Therefore,
this perspective goes back to the ecclesiology of the New Testament which presents the
people of God as a holy and priestly community of the faithful. The document Apostolicam
Actuositatem dealing with the tasks of laity in the realm of its “secular character” insists on
its matrix as an effective leaven perceived in the world through the lay apostolate. Another
topic should be treated as well which refers to the whole body of ministers being entrusted
with the duty of ministry in the Church, not just a few segments, since all the roles have a
collective practicality and co-responsibility. One of the major challenges prevailing among
the issues to be treated concerns the diminished number of Churchgoers attending Sunday
Mass and the absence of quite a few from receiving the Eucharist. There is indeed an urgent
need for radical revision in this area of ministries in the Church.
Da Apostolicam Actuositatem
aos ministérios leigos
Conferência de Maria Clara Bingemer
Auditório do ITESC, 03/09/2012, 08h
Sintetizador: Murilo Guesser
*
Graduando do 2º ano de Teologia da FACASC.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 65-72.
Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
É bom ver a teologia procurada por tantas pessoas, enfrentando
as novas grandes questões. A demanda de leigos estudando teologia,
um fenômeno interessante que entrou na academia. Os leigos trazem
perguntas diferentes, pois eles vêm de situações de vida variadas, e isso
é enriquecedor. A inserção de outras denominações religiosas estudando juntas num mesmo curso de teologia, também é fruto do Concílio
Vaticano II.
Dois documentos são importantes no diálogo conciliar sobre os
leigos: Lumen Gentium, que fornece o pano de fundo eclesiológico
para que a questão dos leigos possa emergir e, segundo, a Apostolicam
actuositatem, que impulsionou posteriormente o debate nas questões
que se levantam sobre os ministérios leigos, sobretudo num país como
o Brasil. A celebração do jubileu da abertura do Concílio nos convida
a olhar esse importante acontecimento que foi um divisor de águas no
debate eclesiológico. Lamenta-se que os jovens hoje não sintam essa
realidade da mudança eclesiológica que de fato ocorreu.
Esse Concílio, inesperada primavera, entrou com seu sopro renovador e foi sendo assimilado, ainda que com dificuldade, desde seus inícios.
Nós somos frutos de um movimento renovador, o maior talvez em toda
a história da Igreja. O papa João XXIII, na tentativa de responder a uma
demanda latente dentro da Igreja, sentiu a necessidade de renovação. O
pontífice surpreendeu o mundo, em 1959, com a convocação do Concílio.
Seu objetivo era repensar e renovar os costumes do povo cristão e adaptar
a disciplina eclesiástica às condições do mundo moderno. Havia inúmeras
questões no âmbito mundial que a Igreja não mais podia acompanhar,
considerando a velocidade das transformações, e no entanto era preciso
caminhar, dialogar com esse mundo novo. A palavra aggiornamento,
expressava o espírito e os frutos que se pretendia alcançar. Na visão
profética de João XXIII, o Concílio seria como um novo Pentecostes,
ou seja, uma profunda e ampla experiência espiritual que reconstituiria
a Igreja Católica não somente como instituição, mas como movimento
evangélico dinâmico. As estruturas já eram sólidas, o que se queria recuperar era esse sopro, esse carisma, esse movimento que parecia estar
travado. O Concílio buscou olhar o mundo com o olhar reconciliado,
atento à sua complexa realidade, não mais um mundo visto como lugar
de pecado, de onde se deve fugir para encontrar a Deus, mas o mundo
visto com seus conflitos, seus males, e no entanto amado por Deus.
66
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Maria Clara Bingemer
O Concílio foi marcado pelo aspecto positivo e participativo, não
buscando decidir apenas questões dogmáticas e teológicas, mas voltando sua atenção para problemas sociais e econômicos que interpelavam
também a Igreja, autênticos desafios pastorais que pediam uma resposta
eclesial. A Igreja conciliar propô-se usar mais de misericórdia e menos de
severidade. Isso significava ir de encontro às necessidades dos tempos.
Maior participação dos leigos
O laicato já desejava havia algum tempo uma maior participação
na vida e missão da Igreja, e esse foi um dos temas importantes dos
quais tratou o Concílio. No Concílio deu-se a explosão oficial da emergência dos leigos na Igreja e o assumir por parte do magistério da Igreja
uma teologia do laicato que já vinha sendo sistematizada por grandes
teólogos europeus. Por exemplo, Yves Congar, dominicano, escreveu
antes do Concílio o livro “Balizas para uma teologia do laicato”, que já
coloca as bases para o que vai ser a novidade que o Concílio vai trazer
e oficializar.
Os documentos conciliares vão ser pródigos em reflexões sobre
os leigos, em tomadas de posição com respeito à sua importância para a
Igreja hoje. A partir dos documentos mencionados, queremos examinar as
interpelações que eles lançam à teologia hoje. De fato, somos desafiados
a ir mais longe que a própria letra do Concílio. O Concílio fala muito e
positivamente dos leigos. Isso tem um antecedente, pois os movimentos
leigos apostólicos eram muito ativos nas décadas anteriores ao Concílio,
com destaque para a Ação Católica. Esse famoso movimento, iniciado
na França, de forte garra apostólica, no Brasil teve uma atuação marcante até inícios da década de 60. Com a vitória do golpe militar, em
1964, ficou bastante combalido, porque muitos de seus militantes, não
sentindo apoio para a sua luta em prol dos direitos humanos e da transformação da sociedade, migraram para a luta armada, e muitos foram
presos, torturados.
Tudo isso é um antecedente que chamava a atenção da Igreja para
ver a necessidade de voltar-se para a questão dos leigos, pensando uma
eclesiologia mais integrada. Nesse sentido, o Concílio procura superar a
definição do leigo pelo negativo, como “aquele que não é padre”, “não
é ordenado” etc. Sublinhando essa negatividade, criou-se no imaginário
eclesial uma visão de cidadão de segunda categoria, de menos importância. O Concílio buscará dar uma caracterização mais positiva do leigo
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
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Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
enquanto membro do povo de Deus, batizado, valorizado enquanto
membro ativo e responsável pela construção do tecido eclesial.
O Concílio proclama e consagra uma definição de Igreja na qual
a condição cristã comum, pelo sacramento do batismo, é anterior à
diversidade de funções, carismas e ministérios. O cristão é, antes de
tudo, membro da comunidade eclesial, do povo de Deus, onde todos são
membros plenos, não há cidadão de segunda categoria. Já a Igreja primitiva aprendeu de Jesus a abrir as portas a todas as classes de pessoas. O
Concílio veio afirmar que no povo de Deus todos são membros iguais, o
batismo traz em si essa dignidade, essa graça comum a todos. O batismo
não é mais visto, então, como detergente eliminador de manchas, mas
como incorporação a Cristo.
O Concílio revaloriza a comunidade, contrastando com as teologias verticalistas e hierarquizantes, em prol de uma comunidade mais
dinâmica, mais circular, onde emergem os carismas suscitados pelo
Espírito Santo para o serviço do todo da comunidade. A percepção do
leigo, na Lumen Gentium, afirma que os leigos não são súditos ou meros
servidores. (LG 32)
No Novo Testamento
O Novo Testamento é uma bela chave de leitura do laicato. Ele fala
de discípulos, cristãos, fieis, de crentes, eleitos, santos, sem distingui-los
entre leigos e não leigos. O próprio Jesus não aparece como um sacerdote,
mas um secular, sem nenhum poder oficial na sua religião. Ele questiona
a maneira inclusive como sua religião era vivida. Há uma diversidade de
ministérios no texto neotestamentário. Um só é o Espírito, mas vários
os carismas e ministérios que dele decorrem. Todavia, não se pode dizer
que a Igreja das origens fosse anárquica, ou carecesse de uma mínima
organização ou funcionasse apenas num entusiasmo ardente com os olhos
voltados para a Parusia iminente. No entanto, para as Igrejas do Novo
Testamento, todo o povo de Deus é consagrado e sacerdotal. A Ideia de
Igreja é sublinhada enquanto elemento congregacional e assembleístico
da comunidade dos crentes. A ecclesía neotestamentária é essa comunidade carismática e ministerial toda ela. O ministro é um batizado, discípulo
de Jesus, identidade fundamental, que participa da comum dignidade
cristã, ainda que exerça funções específicas como ministério. Nesse
sentido, todo cristão é ungido com a unção do Espírito, e não existem
grupos especialistas e privilegiados à parte da totalidade dos fieis.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Maria Clara Bingemer
A hierarquização se dá na virada constantiniana, nasce depois,
séculos depois. Talvez a confusão do conceito “leigo” seja marcada pela
influência do mundo grego helenístico, que remetia a “plebe”, os que
não sabem, apenas seguem. Incorporando em parte essa concepção, ao se
expandirem para o mundo, as primeiras comunidades foram absorvendo
a identificação do cristão comum com uma conotação de subordinação,
de passividade. Isso dificultou, ao longo do tempo, e dificulta até hoje,
manter a consciência da comum dignidade cristã entre os que são e os
que não são ministros ordenados. Essa condição inferior dos leigos
ao longo da história da Igreja é mais sociológica do que teológica. A
teologia que afirma existir um só povo é afetada pela sociologia que
distingue e subordina os leigos, como plebe, a um grupo que dirige e
que governa. Tais ambiguidades conceituais já são debatidas por Santo
Agostinho na sua célebre afirmação: “para vós sou o bispo, convosco
sou cristão”. Os padre conciliares percebem, com a ajuda dos teólogos
assessores, que a dicotomia falseava a revelação neotestamentária, pois
segundo esta, todos os membros são sacerdotes porque participam do
sacerdócio único de Cristo. As consequências teológicas e eclesiais dessa
dicotomia são graves, pois levam a uma desqualificação do sacerdócio
comum dos fieis, além de uma minimização da importância do batismo
em favor da consagração da Ordem e dos votos religiosos, reduzindo o
leigo a mero leigo, igreja “discente”. Segundo Congar, isso é evidente,
considerando as três posições que o leigo assumia dentro da Igreja: 1.
Sentado, recebendo a catequese que o padre transmite; 2. Ajoelhado,
assistindo à Missa celebrada de costas, 3. Com a mão no bolso para
contribuir com as missões, a quermesse... Isso é uma minimização da
vocação cristã, intolerável.
Ainda hoje, quando se fala de Igreja, facilmente atribuem-se ao
substantivo os “sufixos” padres, bispos, uma hierarquia, uma compreensão distorcida de clero, o letrado e instruído, e leigo o iletrado, sem poder
de decisão na Igreja. No entanto, o povo de Deus é a base da qual tudo
deriva e sobre a qual a própria Igreja se edifica. O batismo é sinal de
comum pertença a Cristo, selo comum de pertença ao povo de Deus.
Missão dos leigos
Ao procurar uma identificação do leigo, o Concílio o faz centrando na sua secularidade: o leigo é aquele que deve construir a cidade
dos homens, tratar do que é profano, deixando o sagrado aos cuidados
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
69
Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
do clero e dos religiosos. Nos documentos conciliares coexistem duas
eclesiologias: uma mais jurídica e outra de comunhão. Embora a segunda se tenha imposto sobre a primeira, o fato de coexistirem ambas,
tem marcada influência sobre outros temas eclesiológicos conexos. O
tema do laicato na Igreja é um deles. No capítulo IV da Lumen Gentium,
número 31, o Concílio entende pelo nome de leigos todos os cristãos,
exceto os membros da ordem sacra e do estado religioso aprovado pela
Igreja. Ainda que a definição comece de forma positiva, “todos os cristãos”, e a constituição Lumen Gentium afirme a igualdade fundamental
dos batizados do povo de Deus, sua continuação vai seguir um caminho
mais jurídico, ainda marcado pelo negativo. Isso impacta sobre a compreensão da missão do leigo. É “própria e peculiar dos leigos”, a característica secular (LG 31). Os leigos são situados no mundo, no século,
e ali está a sua missão apostólica. Ao dizer isso, a Lumen Gentium abre
uma perspectiva positiva, ainda que reforce a dicotomia entre secular e
sagrado, Igreja e mundo.
A Apostolicam Actuositatem, quando vai tratar do apostolado dos
leigos, sublinha também a índole secular do leigo, afirmando ser próprio
do estado dos leigos viver no meio do mundo e das ocupações seculares.
Eles são chamados, como fermento, a exercerem seu apostolado no meio
do mundo. Como consequência, a formação cristã do leigo acontece
na ordem temporal, assumindo como membro e testemunha da Igreja,
tornando-a presente e ativa no meio das coisas temporais. As áreas de
atuação apostólica dos leigos estão todas elas no domínio da secularidade:
as comunidades eclesiais, as famílias, a juventude, o meio social, a esfera
nacional e a internacional. Entretanto, o leigo deve trabalhar também na
Igreja (AA 10), atuação essa que é exemplificada explicitamente pela
catequese,como própria dos leigos.
Hoje é preciso assimilar o que o Concílio trouxe, para se ter coragem e ir além dele, pois é isso que o próprio Concílio desejou ao abrir
pistas aonde se possa caminhar. Essa visão conciliar do leigo trouxe
inúmeros avanços, restaurou a dignidade do leigo como parte do corpo
eclesial. Tirou-se o leigo do lugar de mero expectador da pastoral, organizada pela hierarquia, para ser participante ativo da mesma. Hoje se percebem cada vez mais importantes tendências teológicas pós-conciliares
para superar as contradições existentes entre leigo e clero, religioso e
não religioso. Um novo eixo comunidade/carismas/ministérios. A Igreja
se redescobre em sua vocação batismal englobante, na qual os carismas
são recebidos e os ministérios exercidos como serviço.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Maria Clara Bingemer
Os diferentes carismas
O Espírito Santo age em toda comunidade, organiza e suscita os
diferentes carismas para edificar o corpo de Cristo. A ministerialidade é
estatuto de toda a Igreja, e não apenas de alguns dos seus segmentos. As
próprias categorias – “leigo” e “laicato” – vão sendo superadas, relidas,
deixando de existir só como abstração negativa que pode empobrecer o
dinamismo eclesial. A eclesiologia que emerge daí é total e a laicidade
passa a ser uma dimensão de toda a Igreja. O leigo tem plena cidadania
na comunidade eclesial.
O itinerário da reflexão sobre os leigos nestes últimos cinquenta
anos levanta para nós hoje algumas questões mordentes: nos primeiros
séculos da vida cristã, a Igreja era vista na sua totalidade como proposta
e alternativa ao mundo. A carta a Diogneto relata isso. Não existiam
os especialistas do Espírito e outros dos assuntos temporais, mas sim a
novidade cristã e a sociedade que precisava ser evangelizada. A Igreja
da primeira hora não parece apresentar traços do fenômeno leigo contemporâneo, mas se compreende como um conjunto de pessoas, uma
totalidade de batizados que tem como meta fundamental o seguimento de
Jesus. Existe hoje, então, uma urgência de voltar às fontes para descobrir
as raízes do que ainda chamamos laicato.
Outra questão: as novas tendências teológicas pós-conciliares
parecem sugerir a progressiva eliminação da divisão que traz consigo
a categoria “leigo” em favor de uma eclesiologia mais totalizante, toda
ela suscitada pelo Espírito Santo e ministerial, sem dicotomias e contraposições. Por trás da sedução positiva que essa suposição traz, existe
uma suspeita: abolir a palavra não é eludir o problema! Não estaria por
trás dessa tendência o perigo de um novo tipo de clericalização, onde o
diluir do específico laical pode significar a tentativa de camuflar e deixar
intocada a espinhosa e delicada questão do poder na Igreja?
Um novo paradigma
Resultantes do movimento realizado pelo Concílio, destacaramse ao longo destas ultimas cinco décadas algumas realizações, por
parte dos leigos, que parecem apontar para um novo paradigma. Por
necessidade das circunstâncias, os cristãos leigos foram assumindo e
desempenhando ministérios e serviços que antes eram restritos apenas
aos clérigos e religiosos. Houve uma queda das vocações, uma evasão
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
71
Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
dos seminários. Por outro lado, surgiram os movimentos que descobriram
novas formas de vida consagrada, ou seja, houve importantes mudanças
no perfil ministerial da Igreja. Surgem figuras que desenham um novo
paradigma laical: essas figuras se inspiram na renovação conciliar e
dão passos audaciosos. Numa Igreja onde as vocações sacerdotais e
religiosas diminuem dramaticamente, os institutos e cursos de teologia
hoje recebem um bom número de alunos e professores leigos, sobretudo
mulheres, surgindo as teólogas leigas. Muitos prestam relevante serviço
na reflexão sobre a fé, sobre a qual podem dizer uma palavra qualificada
e solidamente sustentada, especialmente na teologia do matrimônio, e
em certos aspectos da teologia moral. Os leigos pleiteiam e obtêm graus
acadêmicos nos melhores institutos e faculdades de teologia. Estão preparados para a docência em qualquer instituição acadêmica em igualdade
de condições com os padres ou religiosos.
Outra realidade são os mestres e mestras espirituais: em contrapartida a outras épocas, ascende uma nova geração de leigos envolvidos no
atendimento espiritual dos seus irmãos e irmãs. Inúmeros leigos pregam
retiros, produzem material para oração e liturgia em diversos níveis, e é
notável o seu progresso e a ajuda que prestam nas comunidades. Existem
hoje também os leigos coordenadores litúrgicos, criando espaços com
beleza e luminosidade.
Na Conferência de Aparecida, em 2007, surgiu a questão: Como
dizer que “a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia”, com tantas
comunidades sem a possibilidade de ter a Eucaristia? Entre as propostas,
saíram duas sugestões: repensar com maior profundidade a questão do
ministérios leigos e repensar uma nova abordagem dos ex-padres casados,
dos padres que não estão exercendo o ministério. No documento final
aparece ainda o problema, mas sem a solução. Sugere-se “rezar pelas
vocações”, o que é ótimo, e foi também uma recomendação de Jesus (Mt
9,37-38). Mas não haveria outros caminhos?
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência
da Profª Maria Clara Bingemer
Sintetizador: Murilo Guesser*
*
Graduando do 2º ano de Teologia da FACASC.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 73-77.
Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
Debatedor: Pe. Ms. Pedro Paulo das Neves
Pe. Pedro Paulo: A presença de Maria Clara entre nós, sua própria
apresentação, formação, já é um sinal dos frutos conciliares, é um sinal
evidente de que o Espírito do Concílio está dando frutos, ainda que a
dicotomia não seja de todo superada ainda. No ITESC, a questão dos
leigos na graduação também teve seus dilemas. Como fazer com que
o Concílio permaneça vivo com a base laical hoje? Como entender o
ministério ordenado, dentro de uma Igreja toda servidora? Que caminho buscar para que a interpretação não acabe por ofuscar e até inibir o
espírito do Concílio? Qual o lugar da Teologia no mundo secularizado,
que se mostra apático às explicações teológicas, buscando reduzir a
vida religiosa ao espaço do privado? A posição dos que dizem que o
Concilio já passou, que já está superado... Como agir e atuar com esse
movimento de retorno ao Concílio Vaticano I atingindo os seminários,
volta ao latim, à liturgia pré-conciliar. Seria uma confusão eclesiológica
na cabeça de todo esse povo?
Maria Clara: Hoje, de fato, existe na Igreja um grupo com saudades das cebolas do Egito. O pontificado de João Paulo II centrou-se num
modelo de Igreja da Polônia, que não entendia a Igreja Latino-americana.
Os hábitos e vestimentas eram marcas de sua cultura. Outro elemento:
a vida religiosa sempre foi um orgulho da Igreja, foi de vanguarda, de
mártires, a vida religiosa é uma força muito importante, mas houve
uma retração da vida religiosa e um apoio muito forte à vida de alguns
movimentos, Opus Dei, Legionários... João Paulo II achava que esses
movimentos combateriam o secularismo latente no mundo. Tudo isso
criou uma massa crítica e se ajuntou àqueles que já não estavam contentes desde o Concílio. O que acontece é que o Concílio trouxe uma certa
democratização do sagrado, o padre não é mais um ser interplanetário.
Na Europa da cortina de ferro fazia sentido um sinal externo, mas não
é falta desses sinais que explica o esvaziamento das Igrejas. As pessoas
saem por que não encontram na Igreja aquilo que estão buscando.
Há uma rede solidária que procura relações humanas e afetuosas,
isso é essencial. Uma liturgia mais participada. O modelo pastoral paroquial ainda é rural, é preciso pensar outros modelos. Não é usando uma
batina que se irá congregar uma Igreja novamente. Essas diferenciações
vão contra o sentido do cristianismo que visa integrar a todos em igualdade. A questão da homilia, por que sempre o padre? Leigos poderiam
assumir funções assim... Essa nostalgia dos tempos de outrora que se
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência de Maria Clara Bingemer
vem reforçando não é maioria dentro da Igreja. Não aceitar o Concílio,
não integrá-lo ao modelo de Igreja contemporânea faz mal à Igreja como
um todo. Os dados do censo mostram isso.
A questão da fidelidade presbiteral, o celibato. Padres e leigos devem trabalhar juntos, ter consciência de que a Igreja é nossa, de que é uma
necessidade assumirmos a Igreja como nossa. Somos cidadãos plenos
da Igreja, é dessa consciência que sairá a Igreja do futuro. Ministérios
leigos são essenciais para a Vida da Igreja hoje. Somos responsáveis em
construir a Igreja e em certas questões os leigos têm muito mais a falar,
por viverem certas questões mais diretamente, p.ex., sexualidade, família
e todas as consequências, inclusive os que buscarão cidadania na Igreja
com dois papais, duas mamães. A nova Eclesiologia não precisa de um
terceiro Concílio, precisamos sim viver bem o que o Vaticano II buscou
apresentar e ainda não se concretizou.
Pe Valter: Feliz colocação, quanto ao ministério dos leigos. Os
ministérios leigos não são aceitos por um grupo da Igreja que tem o
poder, que está na cúpula, para os quais esses ministérios são apenas
tolerados. No último documento sobre os leigos, se diz que o leigo
exerce o ministério “como suplência”, ou seja, não se valoriza o leigo,
na dignidade do seu batismo. Ora, essa mentalidade precisa ser mudada.
Veja-se a questão das leitoras na Igreja, não podem receber o ministério
de acólito, leitor, etc. Isso anula a abertura conciliar.
Maria Clara: A Igreja hierárquica parece ter medo do leigo, medo
de que este cause sombra à hierarquia... Quando há problemas, debates,
fecham-se as portas. A solução é criar condições para que os leigos entrem nas estruturas da Igreja. No campo da Academia já está mudando.
Pessoas leigas estão nas faculdades e lecionam. Na vida paroquial é mais
problemático: tantas divisões, tantos pequenos ou grandes ciúmes. Como
é importante buscar a unidade querida por Jesus!
Pe Vitor: O Concílio Vaticano II ainda é muito novo numa caminhada de 2000 anos. Sua recepção nos primeiros trinta anos foi calorosa,
mas depois decaiu. Quem sabe agora neste jubileu, as novas gerações se
encantem com o Concílio. Os leigos são homens e mulheres da Igreja
presentes e atuantes na Igreja e são homens da Igreja presentes e atuantes no mundo. Ora, é significativa a presença dos leigos na Igreja, pois
eles dão à Igreja um rosto menos clerical, uma vivência mais normal,
mais povo de Deus, uma Igreja mais democrática, enquanto comunhão.
Os leigos dão esse rosto para a Igreja. Os leigos têm muito a contribuir
Encontros Teológicos nº 64
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Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos
na missão da anunciar e viver o Evangelho. A presença dos leigos no
mundo: como entender a índole secular, quando falamos de Igreja do
Brasil? Facilmente identifica-se a Igreja com os bispos, padres, religiosas.
Leigos falando em nome da Igreja ainda é algo novo, facilmente visto
com desconfiança. Ainda há muito medo do mundo, os leigos têm medo
de estar no mundo e nele ser presença do Evangelho.
Maria Clara: Parece que o leigo sofre mais dentro das estruturas da Igreja, parece que a hierarquia se sente invadida, perdendo o seu
terreno... O leigo também pode ser teólogo e atuar com propriedade
dentro da Igreja. A Ação Católica tinha um pouco essa visão: JUC, JEC,
os “braços da hierarquia” no mundo. É preciso resgatar o perfil laico e
apostólico da Ação Católica, que priorizava isso.
Gilson Siqueira Alves: A Apostolicam Actuositatem, n. 2, fala da
unidade da missão. Ao que nos parece, existe um embate, um conflito
entre clero e laicato. Como superar esse conflito? Na pastoral é algo
inclaro. A questão das identidades, para que a Igreja seja mais discípula,
seja mais profética, mais sal da terra...
Maria Clara: É preciso ouvir os leigos. Infelizmente a formação
presbiteral forma para falar, mandar, delegar. Não se pode ficar preso a
isso, precisamos aprender a ouvir. Escutar-se de parte a parte, leigo ouve
padre e vice-versa. Ter intimidade. A preocupação do poder é forte no
clero, apesar da insistência de Jesus no serviço, mais que no poder.
Pe Ney Brasil: Na Igreja, percebe-se fortemente a presença
feminina nos serviços pastorais, na vida comunitária. Para que essa presença aconteça também nas instâncias de decisão, para que as mulheres
tenham mais vez e voz na Igreja, é preciso que elas estudem teologia. Aí
está um caminho possível, e necessário, para chegarmos a uma unidade
maior, inclusive mais de acordo com os avanços da presença feminina
na sociedade.
Silvia Togneri: Maria é mãe da Igreja, mas as mulheres na Igreja
são servas. A mulher não pode ser apenas serva, mas ser mãe. Muitas
mulheres são as educadoras da fé, nos lares e nas comunidades. Como
valorizar devidamente esse fato?
Maria Clara: É preciso acreditar em si. As mulheres precisam
acreditar umas nas outras. Isso não é feminismo, um machismo às avessas. Os debates são antropológicos, não femininos ou masculinos. Maria
como modelo dinâmico, não apenas do eterno feminino.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Debate sobre a conferência de Maria Clara Bingemer
Prof. Ramada: Estamos vivendo a passagem de uma sociedade
moderna diacrônica, para a pós-moderna, onde tudo acontece num mesmo
instante, sincrônica. No mundo ortodoxo, a teologia é uma questão dos
leigos, porque se considera que são os leigos, por estarem envolvidos
no meio dos sinais dos tempos, que podem contribuir nesse sentido. O
que fazer nesta pós-modernidade? Como repensar os sinais dos tempos
num contexto sincrônico? Qual o papel dos leigos num mundo que se
esgota num tempo líquido?
Maria Clara: Estamos no bojo da onda dessa passagem do moderno para o pós-moderno. Na teologia trabalhamos com a revelação na
história, e numa história que se acaba já. A pós-modernidade construiu
um novo panteão de ídolos, jogadores, astros midiáticos, etc. Precisamos
suscitar os santos dos novos tempos. Aqueles que recolhem elementos da
fé, da modernidade, como experiências de Deus. Resgatar essas pessoas,
dar visibilidade. Experiências místicas fora da Instituição, mas dentro
da História.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
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REMINISCÊNCIAS DO VATICANO II (2)
Dom Clemente Isnard1
Uma das maiores alegrias da minha vida eu a tive no dia 4 de dezembro de 1963. Tendo
lutado pelo movimento litúrgico desde 1933, como membro da Ação Católica, tive a satisfação de ver
solenemente promulgada a Constituição Sacrosanctum Concilium. A compreensão da liturgia que eu
tinha já antes do Concílio e que, no Brasil, sofrera sérias contestações, estava agora proclamada por uma
constituição conciliar. Na porta da basílica de São Pedro, naquela manhã, me encontrei com o abade
Martinho Michler, também ele Padre conciliar, que havia sido o iniciador do movimento litúrgico no
Brasil e que havia sofrido calúnias e perseguições por esse motivo, e nos abraçamos com profundo
sentimento de ação de graças.
Meu aprendizado na Ação Católica e no mosteiro de São Bento me tinha preparado para a
Sacrosanctum Concilium, para a Lumen Gentium e outros documentos do Concílio. Quando, porém,
entrou em discussão um projeto que se chamava “esquema 13”, e que seria posteriormente aprovado como
Constituição pastoral Gaudium et Spes, senti que algo de diferente era proposto. Eu pensava que, depois
da Lumen Gentium, não era preciso dizer mais nada sobre a Igreja e, a princípio, não do novo projeto, que
julgava muito prolixo. Foi justamente a Gaudium et Spes que completou meu caminho de conversão: a
abertura para a presença da Igreja no mundo, para as realidades sociais iluminadas pelo Evangelho. E o
pós-Concílio, vivido na CNBB e em Medellin e Puebla, levaram adiante essa conversão.
O dia 8 de dezembro de 1965, dia do encerramento do Concílio, foi ocasião de júbilo e de
exultação. Na praça de São Pedro, a emoção igualava à do dia 11 de outubro de 1962. Só que lá era um
caminho a ser percorrido, sem previsão da chegada, e agora era a conclusão, apalpando os resultados
obtidos. À figura, agora, de Paulo VI, correspondia a de João XXIII, tendo de permeio os quatro longos
anos de trabalho do Concílio que reformou a Igreja.
Minha impressão naquele dia era que a vida da Igreja tinha um novo início, e que nela minha
vida de bispo renascia. A grande mensagem do Concílio consistia nas Constituições, nos Decretos
e nas Declarações. Mas naquele dia ecoaram ainda as belas mensagens dirigidas a vários setores da
sociedade. Eu me sentia outro. E muitos bispos brasileiros também se sentiam renovados, convertidos,
como eu. Foi assim que regressamos ao Brasil, cheios de ânimo para aplicar as decisões conciliares.
A 25 de janeiro de 1964, Paulo VI criou um Conselho para executar a sacrosanctum Concilium,
e a 29 de fevereiro nomeou os membros desse Conselho: para grande surpresa minha, meu nome estava
na lista dos nomeados. Durante os cinco anos de duração do Conselho, estive em Roma duas vezes por
ano, participando de suas reuniões. O trabalho do Conselho está registrado magistralmente no livro
“La riforma litúrgica”, de Annibale Bugnini. Quando o Conselho foi extinto e criada por Paulo VI a
Congregação para o Culto Divino, fui também nomeado para o novo órgão, onde por seis anos estive
presente, tomando na preparação de todos os novos livros litúrgicos, até a supressão da Congregação e
a consequente disponibilidade de seu secretário Arcebispo Annibale Bugnini.
Paralelamente ao andamento do Concílio, evoluía e crescia a CNBB. Em 1964 foram aprovados
em Roma novos estatutos e era eu eleito Secretário Nacional de Liturgia, cargo correspondente ao de
Presidente da Comissão Episcopal de Liturgia. [...] No Brasil, durante 24 anos, três Presidentes da
CNBB, Aloísio Lorscheider, Ivo Lorscheiter, e Luciano Mendes de Almeida, todos os três reeleitos
uma vez, garantiram a continuidade do espírito conciliar. [...] Nesta aurora do terceiro milênio, muitos
se perguntam: para onde caminhará a Igreja? Vai fechar-se sobre si mesma, como um castelo medieval,
ou vai se abrir para o mundo, numa continuidade do aggiornamento preconizado por João XXIII? O
desafio que se abre é este: o espírito do Concílio continuará inspirando os rumos da Igreja, ou o Concílio
será um corpo de leis do passado, certamente venerado e elogiado, mas desprovido de continuidade?
Será um fim de linha, ou a estrada continua?
(Excerto do capítulo “Reminiscências do Concílio”, do livro “Memórias que anunciam o
Futuro”, em homenagem a Dom Clemente Isnard, Recife, 2012, pp. 239-241.243)
1
Dom Clemente Isnard, beneditino, bispo de Nova Friburgo, RJ (1960-1994), faleceu em 24 de
agosto de 2011, como Bispo emérito.
Resumo: O autor começa, observando: Quando temos uma trilogia – Igreja,
Sociedade e Juventude – podemos escolher o centro e fazer circular em torno
dele a reflexão. Aqui, tomemos como centro a Juventude, pensando a Igreja e
a Sociedade em relação a ela. Quanto à juventude, ela é a mesma, hoje, ou é
diferente, em relação à de “outros tempos”? O fato é que ela carrega consigo duas
tendências: a explorativa e a projetiva, privilegiando a explorativa, sincrônica.
Diante disso, como trabalhar pastoralmente essa realidade juvenil? Como levar
em conta o fato de que a cultura pós-moderna vê cada vez menos diferença entre
o masculino e o feminino? Uma dificuldade, ainda, da relação Igreja-juventude
é o fato de que o jovem instintivamente é avesso à autoridade, à instituição, à
hierarquia. Há que se achar outro viés para se alcançar a mocidade.
Abstract: The author begins his exposé by focusing on the trilogy: Church, Society, and Youth, with special emphasis on the need for a central point in theological
thought. He centers on the topic of Youth and linking the thought pattern about
the Church and Society. A question to be raised concerns the identity of youth
whether it is always the same or could be different from that of “other times”.
The fact is that it implies two tendencies: already exploited or projective. When
preference is placed on one, the other is underprivileged. The question arises in
relation to the pastoral activity among young people. Awareness of basic trends in
modern culture requires that we pay attention to a particular aspect which affects
the distinction between masculine and feminine qualities but today is more and
more diffused. An additional difficulty to be taken into account in the relationship
between Church and Youth is the fact that young people are instinctively hostile
to authority, institution, and hierarchy. There is a need to find another way of
approach to enter into contact with the new generation.
Conferência: Igreja, Sociedade
e Juventude
Pe. João Batista Libânio SJ*
*
Doutor em Teologia e Professor na FAJE, Faculdade de Teologia dos Jesuítas de Belo
Horizonte, MG.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 79-87.
Igreja, Sociedade e Juventude
Boa noite! Muito feliz por falar aqui.
Quando temos uma trilogia – Igreja, Sociedade e Juventude – podemos escolher o centro e fazer circular em torno dele a reflexão. Aqui,
tomemos como centro a Juventude, pensando a Igreja e a Sociedade em
relação a ela. Assim, fica bem determinada a ótica sob a qual queremos
falar.
Comecemos, então, esta palestra, que pretende ser leve e simples.
De início, façamos esta pergunta: A juventude é a mesma ou é
diferente?
Quando o professor fizer essa pergunta a vocês, jovens, respondam
sim e não. É a melhor resposta, pois deixa o interlocutor desnorteado,
sem saber o que fazer (risos). E por que e resposta é sim e não?! Vejamos.
Cromossomicamente, a época da juventude passa, mas ela se caracteriza
por ser a mesma no que se refere aos aspectos biológicos, é uma etapa
idêntica para todos os jovens, possui uma identidade que lhe é peculiar. A diferença é que cada um a vive de maneira diferente. Portanto,
podemos dizer que os jovens não são os mesmos em sua experiência
concreta vivencial do período juvenil. O jovem é e não é o mesmo em
todas as épocas. Podemos falar sobre ele sempre, e cada vez trazendo à
tona novidades devido à sua irreverência nata.
Ainda falando da parte biológica, o cérebro do jovem, por exemplo,
desenvolve mais um lado do que o outro. Este que é menos desenvolvido
está relacionado à dimensão afetiva, e por isso ele acaba errando muito
nas suas escolhas, é facilmente enganado. É uma questão biológica, daí resultando que a sua culpabilidade em determinadas situações acaba sendo
quase nula. As pessoas mais velhas, por sua vez, olham as situações por
outro ângulo, as entendem de imediato, devido à experiência adquirida.
Na fase terminal, nosso cérebro tem uma capacidade impressionante.
Mas, voltemos nossa atenção para o seguinte: o impacto que a
cultura impinge sobre os jovens, e nesse sentido entra em jogo a Sociedade, que influencia diretamente sua maneira de se comportar. Os jovens,
por possuírem menos passado, estão amplamente abertos ao futuro e às
suas novidades. O passado tem a capacidade de nos fazer desconfiar
das coisas, porque já experimentamos. Como o jovem carece de um
número significante de experiências, isso gera uma lacuna em sua vida,
deixando-o vulnerável às artimanhas da Sociedade, justamente porque
seu passado é relativamente curto. Um exemplo concreto é o mundo da
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informática, na qual ele está mergulhado, mas que não lhe dá uma base
de referência crítica. Pois as informações transmitidas, em sua maioria,
são fragmentadas ou descontextualizadas. Portanto, antes de analisarmos a juventude e lançar sobre ela determinada conceituação, devemos
levar em conta o momento cultural que estamos vivendo. A cultura é
um fenômeno que marca o jovem, imprime-lhe uma identidade. Para
conhecê-lo é preciso tornar-se familiar à sua cultura, entrar em seu mundo, identificar-se com ela para identificar-se com ele. Depois de ter dado
esse passo, é necessário tomar distância para poder elaborar uma crítica
consistente, com conhecimento de causa, pois quem não se identifica
com a situação real e concreta não toma verdadeira consciência dos
fatos. Esse jogo de inculturação e distanciamento do mundo juvenil não
é fácil. Antes, é muito exigente e, se não for bem feito, seus resultados
podem ser desastrosos, gerando muito preconceito em relação ao universo
habitado pela juventude.
Um exemplo concreto que temos em nosso meio é o do educador
Paulo Freire. Ao realizar um trabalho junto aos camponeses do nordeste, ele deixou-se envolver pela realidade nua e concreta daquele povo.
Passou a ouvir o que eles falavam e pensavam e, ao mesmo tempo, foi
ensinando-os a também tomarem consciência da cultura na qual estavam
inseridos. Ajudou-os a perceber que tal cultura era de exploração, mas
para isso primeiro foi necessário que eles tomassem distância a fim de
poderem conscientizar-se dessa realidade. É o mesmo que, como ressaltamos acima, devemos fazer em relação aos nossos jovens.
Duas tendências
A juventude carrega consigo duas tendências: a explorativa e a
projetiva.
A tendência explorativa caracteriza-se pela busca em conhecer
as coisas por meio das experiências. E aquelas que são mais próximas
a si se mostram as mais difíceis, pois o sujeito e o objeto se relacionam
mais intimamente. Expliquemos melhor: para haver uma experiência é
necessário um sujeito que a realize e um objeto que é o foco dessa experiência. Quanto mais o sujeito presta atenção no objeto, quanto mais
se volta sobre ele e o apreende, o suga, mergulha nele, mais intensa
será a experiência e mais efeitos e conclusões dela se desprenderão.
Por exemplo: alguém atravessa o jardim e então lhe perguntam: o que
você viu? Não sei, o que aconteceu!? – é a resposta. E o porquê dessa
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resposta? Porque não olhou, não sentiu o objeto, não o experimentou.
Cito ainda um missionário espanhol que trabalhou na China, e escreveu
um livro sobre controle emocional. Ele nos ajuda a experimentar mais
profundamente a realidade que nos circunda e sugere como exercício ficar
à janela e olhar para uma árvore, depois, deter-se numa única folha da
árvore e movimentar o dedo em riste para ver qual será sua experiência
de árvore. Será totalmente diferente. Portanto, há uma fase forte da juventude marcada pelo fator experiência, que se encerra em um momento
concreto e definido, circunstancial.
Mas, há também a tendência projetiva. Essa é marcada pelos
sonhos, projetos, utopias, desejos, enfim, pela realidade futura, por isso
projetiva, que se lança. É a capacidade ilimitada de sonhar que o jovem
tem em si. Ela tem o aspecto positivo, pois fomenta a criatividade do
jovem e o faz não permanecer passivo diante da realidade. Porém, pagase o preço do sacrifício das relações experimentais, uma vez que tudo é
lançado para o ainda não, em detrimento do agora. Fernando Gabeira,
em seu livro Que é isso companheiro?, faz uma comparação que clareia
bem essa tendência projetiva. Ele fala de um jovem universitário que
participa do sequestro do embaixador e, quando em plena missão, em
meio àquela tensão geral, ele olha para praia e vê as mulheres, percebe
que não está vivendo o momento presente, preocupando-se apenas com
o futuro e, então, decide recuperar o tempo perdido.
A década de 60 é marcada fortemente por essa tendência projetiva,
devido aos grandes ideais surgidos então. A vida religiosa também padeceu disto, muitos foram os consagrados e as consagradas que deixaram o
colégio para ir morar nas favelas, passando necessidades, por vezes extremas, em nome de um idealismo, sacrificando o momento presente.
Hoje o que temos é a primazia da tendência explorativa sobre a
projetiva. A juventude hodierna só tem o gozo do presente e carece de
sonhos, ocupa-se apenas com o momento presente. Um francês, João
Claude Guillebald, faz uma abordagem da juventude a partir do que ele
chama de a “tirania do prazer” e analisa a passagem da geração de 60
para as de hoje, cada vez com menos sonhos, menos ideais.
Os espanhóis de Madri criaram este epitáfio: “As flores as queremos já e não no funeral”. Da voz de Renato Russo ecoa ainda hoje este
refrão: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...”.
Falando em amanhã, certo jornalista perguntou a um jovem: o que você
vai fazer daqui a dez anos? Ironicamente, responde o jovem: não sei
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nem o que vou fazer amanhã... (risos). Esses fatos refletem a juventude
da sociedade moderna, para a qual só existe o presente. De certa forma,
isso dá a impressão de que a história acabou, e há até o livro de um americano intitulado O fim da história. Quando se perde a noção de história,
a ética entra em crise, porque os fundamentos, que são históricos, desmoronam. Será que há uma resposta para essa ênfase no momentâneo?
Talvez, ao olharem para o passado, nossos jovens se decepcionem com
alguns fatos negativos que o marcaram, tais como o nazismo com Hitler,
os demais totalitarismos, as guerras mundiais, as grandes revoluções
sociais e ideológicas que não deram muito certo, a crise de 89... e ao se
deparar com os políticos de hoje – que maravilha! (risos), a decepção é
total. A mediocridade da política não provoca o desejo pelo futuro. Os
jovens da revolução de 68, em uníssono, repetiam “é proibido proibir”
e, voltando-se aos professores, confessavam “vocês nos envelhecem”.
Esse amálgama de eventos históricos pode ser justificação para a hostilidade da juventude para com a história e os faz querer viver somente
do presente, tendendo à dimensão explorativa.
A pastoral da juventude
Desdobram-se, diante disso, algumas questões: como trabalhar
pastoralmente essa realidade juvenil? Como lidar com alguém que só
vê diante de si o momento presente? Como levá-lo a perceber que no
presente estão as raízes do futuro, dum futuro em projeto?
Talvez o primeiro passo seja ajudar nossos jovens a criarem fantasias e estimulá-los a usarem sua criatividade. Essas duas características,
tão fortes entre os poetas e os romancistas, estão em crise, empobrecendo
a experiência vivencial do jovem de hoje. O lugar da fantasia foi substituído pelo campo do imagético, cujo poder de influência na formação da
personalidade do jovem é tremendo. O jogo de imagens faz com que o
jovem se torne passivo diante da realidade na qual está inserido, pois não
lhe permite pensar no que vê. No mundo do imagético, entram em choque
dois conceitos: o de imagem e o de símbolo. Ambos comportam mundos
diferentes, cada qual com suas peculiaridades, porém, o mundo da imagem
existe em detrimento ao mundo do simbólico. Vejamos o porquê.
A imagem tem a capacidade em apresentar ao jovem uma realidade tal, de modo tão forte, que paralisa o seu pensar, não permite que
ele reflita sobre aquilo, que ele aplique o seu senso crítico, pois acaba
sendo levado pela emoção, pelo sentimento. É o que fazem, por exemEncontros Teológicos nº 64
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plo, os jornalistas: exploram os temas a partir de imagens fortes, cenas
chocantes, geralmente de violências, de crimes, que acabam tendo um
caráter mais apelativo do que educativo. Importa mais a capa do juiz do
que suas ideias... (risos). As novelas caminham este mesmo trilho, não
servem para estimular o pensar, apenas para entreter a atenção do telespectador, usando de imagens que, passadas rapidamente, acabam gerando
uma cultura da imagem, do passageiro, do fútil, sem nenhuma espécie
de senso crítico. A imagem faz parar o pensamento, bloqueia nossas
emoções, agarra nossa afetividade. Nossos jovens vivem numa enxurrada
constante de imagens, gastam tempo e dinheiro com imagens.
Por outro lado, temos o mundo dos símbolos, que vêm na contramão do imagético. Os símbolos, segundo Paul Ricoeur, levam-nos a
pensar, a refletir sobre aquilo que representam, aquilo que significam,
aquilo que eles unem, aquilo que está oculto neles. Diante de uma realidade simbólica, somos provocados a pensar as mais variadas coisas,
uma vez que os símbolos nos fazem reagir, não nos deixam passivos,
indiferentes. O símbolo tem uma força que a imagem não contém. Por
exemplo, se estou andando e encontro o semáforo no vermelho, logo eu
paro, pois o significado que está por trás do vermelho é o de advertência.
Mas, para alguém que recebe um buquê de rosas vermelhas, a reação será
outra, o significado do vermelho nesse caso será diferente. O que abre a
mente não são conceitos, mas símbolos. Portanto, quanto mais imagens,
menos símbolos. Os símbolos se explicam por si e educam, carregam
consigo uma dimensão antropológica. Se virmos no altar duas crianças
com velas acesas tendo a Palavra no meio, essa simbologia representa a
inocência que carrega a Palavra. Isso é educação por meio da simbologia.
Se, ao iniciar um encontro, pedirmos para um jovem desenhar no quadro
um símbolo que represente a expectativa deles para o encontro e depois
perguntarmos aos demais jovens o que representa ou significa aquele
símbolo, as respostas serão as mais diversas, ainda que o símbolo seja o
mesmo. O mundo dos símbolos é vasto, possui uma diversidade muito
rica, e rebate em cada um de formas variadas.
Esse dois universos, o da imagem e o do símbolo, nos permitem
pensar numa antropologia que brota do mundo jovem. Se pensarmos o
jovem de dez anos atrás, estaremos falando de outro tipo de jovem que
não este de hoje. Se retrocedermos ainda mais no tempo, chegando à
década de 60, por exemplo, a abordagem será ainda outra. Aqueles jovens
“da vanguarda” não tinham uma preocupação com o corpo como se tem
hoje, não se importavam muito com o que vestiam, com o que estava
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na moda. As academias naquela época não tinham vez no mercado. Por
outro lado, a leitura dos clássicos era comum, a interação com o mundo
da política e a indignação com as ditaduras, a luta em prol de grandes
ideais, era o que ocupava os jovens de outrora. O corpo era a expressão
da presença do jovem no mundo, na sociedade, era a força da sua vocação, representava a exterioridade do jovem como extensão de uma causa
interna mais forte, um ideal. Hoje, a dimensão corporal significa uma
presença meramente exterior, um culto à superficialidade, um objeto da
ideologia mercadológica que endeusa o corpo, fazendo dele o escopo
do campo econômico, em torno ao qual giram os demais campos. Essa
cultura do externo reflete a não profundidade das relações, a liquidez dos
valores que se anunciam como sendo verdadeiros, a troca do fundamental
pelo passageiro, do essencial pelo contingente, do absoluto pelo relativo.
O místico da sociedade pós-moderna é aquilo que aparece – o estético;
não aquilo que significa – o ético. Chegar à sétima morada da caminhada
mística é impensável, mas chegar ao teto do shopping é facílimo.
Cultura pós-moderna
A cultura pós-moderna vê cada vez menos diferença entre o masculino e o feminino. O rapaz está cada vez mais feminino, esteticamente
falando (vaidade), e a moça se aproxima cada vez mais do universo
masculino, devido à emancipação social, política, econômica, trabalhista
etc, conquistada por elas. Quando as diferenças diminuem, crescem as
frustrações, pois se perdem os referenciais. Cria-se uma confusão interna, uma espécie de esquizofrenia da identidade. Isso gera uma mudança
psicológica no jovem pós-moderno, que se evidencia quando fazemos
uma comparação com aqueles jovens de outras épocas. Eles tinham introjetados em si padrões interiores, valores, normas, princípios... Seus
exemplos eram os pais, os professores, os padres, os literatos, os mais
velhos. Hoje, esses modelos não servem mais de inspiração, devido ao
universo de informações que se desdobram diante deles e que os fazem
autodidatas em todas as áreas. Porém, esse aprendizado por conta própria
carece de experiência e gera certa deficiência em termos de maturidade.
A arte de aprender de nossos jovens é confundida com a arte da informação. O Google é a principal fonte de informação que o jovem tem à sua
disposição, mas não tem a capacidade de o levar ao conhecimento, ao
aprendizado. Ele prolifera ideias diarreiamente difundidas por aí (risos).
A informação googleana é objetiva e simplória, não dá nada além daquilo
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que se pede, não é capaz de contextualizar um fato, de fazer ligações
interdisciplinares, de purificar os conteúdos, de oferecer um conhecimento crítico etc. Não ensina a pensar. Por exemplo, ao procurarmos
alguma coisa sobre Hitler, o máximo que a informação on line conseguirá
oferecer são dados informativos objetivos. Não ensinará a pensar o que
foi o nazismo, quais suas verdadeiras origens, quais seus efeitos a curto
e longo prazo para a humanidade, que ligações podem ser feitas entre
o nazismo e outros fatos históricos da época, o que a psicologia tem a
dizer sobre a figura de Hitler, enfim.
Aprender é uma arte dialética, assim como ensinar também o é. O
aprender consiste em receber uma informação, perceber o que há de valor
em si, o que há de verdade, em que realidade esta informação se insere,
o que tem de positivo e negativo, de verdadeiro e de falso. E sobre esses
dados, produzir uma análise crítica. O maior desafio que encontramos,
em meio a esse emaranhado de informações ao qual a juventude está
exposta, é o de conseguir ensiná-la a adquirir essa capacidade crítica.
Afirmar o positivo (+/ + = +) e negar o negativo (- /- = +).
(Três saberes: matemático, linguístico e filosófico. Só foi abordado
o matemático, e de forma breve. Há, portanto, uma lacuna neste ponto
do texto).
Relação Igreja – juventude
Por fim, queremos trazer um dado que emerge da relação Igreja
– Juventude. O jovem tem dificuldade com autoridade, e por isso não
conseguiremos, enquanto Igreja, entrar no mundo da juventude por meio
do autoritarismo. Essa característica presente historicamente na Igreja
sempre faz referência à instituição, à hierarquia, ao poder. No diálogo
com o universo jovem, isso acaba sendo um empecilho. O jovem só
recorre à instituição quando precisa dela para se defender; quando é
para viver, ele prescinde de sua presença. Há de se achar outro viés para
alcançar a mocidade.
O jovem, por natureza, quer estar no centro, e a cultura moderna
contribui imensamente para este centrismo. Recorrendo à mitologia grega, fazemos três comparações: os jovens da década de 60, tantas vezes
evocados por nós nesta conferência, os comparamos a Prometeu, conquistador, corajoso, comprometido. Por sua vez, a juventude hodierna, a
comparamos a Sísifo: carrega a pedra e, quando chega lá em cima ela cai,
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João Batista Libânio, SJ
ou seja, está sempre andando em círculos. Prepara-se para o vestibular e
cai, e assim por diante. Sua característica é acostumar-se ao cotidiano.
Há ainda, Narciso, que representa uma juventude que só olha para si.
Encontros Teológicos nº 64
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Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Bioética
Especialização
Justificativa e Objetivo Geral
Reconhecendo a bioética como um campo importante no mundo
científico atual e visando aprofundar o conhecimento nesta área, a
Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC) oferece o Curso de
Pós-Graduação Lato Sensu em Bioética – Especialização.
O objetivo geral deste curso é dar aos agentes das profissões
biossanitárias e jurídicas, bem como a outros profissionais de áreas
afins, os instrumentos para adquirir um maior conhecimento científico
e prático no campo bioético.
Período do Curso
Outubro de 2013 a Outubro de 2014
Estrutura do Curso
O Curso será divido em duas grandes partes, cada qual com 4 (quatro)
módulos, divididos do seguinte modo:
Primeira parte:
• Aula inaugural – Prof. Pablo Requena.
• Introdução. A pesquisa em bioética – 40h/aula.
• Direitos e Deveres dos pacientes – 40h/aula.
• Direitos e Deveres dos profissionais sanitários – 40h/aula.
• A ética das profissões biomédicas. Comitês éticos assistenciais –
40h/aula.
Segunda Parte:
• Problemas éticos do enfermo crônico e do fim da vida – 40h/aula.
• Ética biomédica da sexualidade e da reprodução humana – 40h/
aula.
• Ética das aplicações genéticas e biotecnológicas – 40h/aula.
• Ética da investigação biomédica – 40h/aula.
• Módulo de conclusão:
• Apresentação dos trabalhos acadêmicos – 40h/aula.
Informações
• www.facasc.edu.br
• [email protected]
• Fone: (48) 3234-0400
Debate sobre a Conferência
do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ
Sintetizadores: Ismael Weiduschath
e Fernando Steffens*
*
Graduandos do 2º ano de Teologia da FACASC.
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Ano 28 / número 1 / 2013, p. 89-95.
Igreja, Sociedade e Juventude
Debatedor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi
A minha saudação carinhosa a todos, de modo particular, ao Pe.
João Batista Libânio, que nos presenteou com sua brilhante apresentação.
Quero dizer que tenho sido muito elogiado em minhas falas, não pelo
conteúdo, mas pela brevidade. (risos). Meu objetivo central será costurar
a trilogia apresentada pelo Pe. Libânio (Igreja-Sociedade-Juventude) com
o fenômeno da comunicação, cuja repercussão é forte na sociedade atual
e, além disso, é minha área de especialização.
Abro a reflexão com um mito grego: O canto das sereias. Ulisses
saiu com os seus jovens marinheiros a navegar (hoje grande parte da
juventude encontra-se “navegando”) nos mares bravios e, num dado
momento, eles se encontram com as sereias. Seduzidos pelo canto das
sereias, os marinheiros se deixam lançar para os braços delas. Apavorado com a situação emergente, Ulisses começou a amarrar seus jovens
marinheiros, e depois até ele mesmo, ao mastro do seu navio...
O filme Piratas do Caribe retrata o mito em questão de uma forma instigante. Nele, a Igreja é representada por um padre, o que conota
segurança e credibilidade. Até o padre, porém, sempre firme, num dado
momento é também seduzido pela sereia e cai em seus braços.
Sereia eletrônica
Com isso quero dizer o seguinte: a mídia é a sereia eletrônica.
A trilogia – Sociedade, Juventude e Igreja – é seduzida por esta sereia.
Sedução por conta da linguagem da multimídia e da interatividade digital.
Frente a isso, cabe perguntar-se: é o modelo midiático realmente o modelo
de evangelização? Será que não é preciso retomar o modelo evangélico
tradicional, isto é, olho no olho, mão a mão, coração a coração? Sinto
uma tentação tímida em afirmar que, desde o momento em que a Igreja
passou a ser seduzida por essa sereia, seus marinheiros começaram a se
atirar para fora da barca de Pedro. A última estatística do IBGE revela
que 9% de marinheiros caíram fora desta barca.
Isso não quer dizer que sou contra o uso da mídia. Usá-la faz
bem, ser usado por ela faz mal e gostar de ser usado pela mídia é o fim.
Isto, por sua vez, podemos ilustrar com os padres terceirizados. Creio
que precisamos amarrar nossos navegadores, particularmente os jovens,
ao mastro de uma catequese sólida e mistagógica (a mística aqui no
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Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ
seu verdadeiro sentido). A nossa catequese, infelizmente, parece estar
reproduzindo uma imagem de escola, o que faz perder de vista a questão mistagógica. É importante também resgatar a Tradição de Jesus de
Nazaré, como nos pede o Concílio Vaticano II.
Os jovens são incansáveis navegadores no oceano da web, embarcados na diversidade de mídias. São seduzidos pelo consumismo, pelo
hedonismo, pelos ídolos midiáticos, pelas modas e modismos, enfim,
pela cultura da morte. Aliás, a morte virou espetáculo e diversão. Por
exemplo: presenteiam-se certas crianças com brinquedos de matar.
A mídia também é responsável por outro aspecto que eu chamo de
cultura miojo. Uma cultura assinalada pelo imediatismo e, por isso, não
se consegue aprofundar quase nada. Por exemplo: Hoje, há educadoras
no Jardim que não conseguem contar uma história para as crianças até
o fim, porque estas não têm mais a paciência de ouvir. Outro exemplo
é a pesquisa rápida pelo site de busca Google, colocando em crise um
conhecimento adquirido por leituras mais complexas ou, mesmo, visitas
às bibliotecas.
Os sonhos, influenciados por esta cultura, são também marcados
pela importância do aqui e agora. A tal problemática Pe. Libânio fez excelente referência em sua exposição, quando disse que na pós-modernidade
acena-se unicamente com o presente.
No que diz respeito ao mundo da educação, faço um breve apontamento. Enquanto os estudantes estão com ideias do século XXI, os
professores estão com a mentalidade dos séculos XX ou XIX. Ora, na
Igreja também não é assim? Eis, portanto, um desafio. Uma das saídas é
talvez somar os dois saberes: o tecnológico dos jovens com o vivencial
dos professores.
A mídia e os atributos de Deus
É necessário ainda destacar a vinculação existente entre a mídia
e os atributos de Deus. Assim como temos os atributos de Deus, como
onipotência, onipresença, onividência e onisciência, também de outra
forma, eles estão presentes no campo da mídia. Uma vez se dizia que a
mídia era o quarto poder. Não. Ela é o poder. Onipresença, quer dizer,
ela está em toda a parte e lugar. Basta perguntar quem que está com seu
celular ou notebook aqui na sala. O olho da mídia que tudo vê se refere à
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Igreja, Sociedade e Juventude
onividência. O “santo Google” que tudo sabe nos faz lembrar o atributo
da Onisciência.
Diante desses atributos de Deus na mídia, não estaria aqui uma
nova forma de idolatria? Não é verdade que todo ídolo exige sacrifício?
E os jovens vivem segundo esses códigos de comportamento. A exterioridade torna-se valor absoluto. Impera a cultura do corpo. Se os jovens
são os mais facilmente enganados, como o senhor disse, Pe. Libânio, não
seriam eles as vítimas mais frágeis da mídia, ainda mais que ela trabalha
com o poder de imagem?
Pois bem. Outro ponto sobre o qual faço referência diz respeito à
relação estrita entre a mídia e a Igreja. Em geral, as pessoas reproduzem
no serviço de pastoral o que veem nas mídias. A mídia e o modelo de
Igreja estão em crescente processo de veiculação. Prova disso é o florescer
dos devocionismos, da lógica do espetáculo e do mercado, e o predomínio da imagem de um Deus milagreiro, nos meios de comunicação.
Sob esse prisma, desdobra-se outra problemática referente à mídia e a
crise de identidade. Por exemplo: ao sintonizar uma determinada rádio,
a pessoa que escuta não sabe se é um padre ou um pastor quem fala, pois
o discurso é o mesmo.
Ora, é possível evangelizar com a lógica do espetáculo e da imagética? Por que tanta resistência em evangelizar sem ser igrejeiro? Por
que tanta dificuldade com a pastoral urbana se o cristianismo nasceu
nesse contexto? Qual o lugar da Tradição na Pastoral da Juventude? Ou
ainda, no contexto contemporâneo, como fazer Pastoral da Juventude?
Por fim, no mundo pontuado pela imagética (imagens que bloqueiam o
pensamento), pela sonoridade (casamento perfeito entre imagem e som),
como comunicar o invisível e o inaudível para esta juventude?
Pe. Libânio:
Agradeço a reflexão desenvolvida pelo Pe. Nandi.
Como a minha maneira de pensar é dialetizar, todos esses problemas apresentados, oriundos principalmente de uma cultura da imagética e da comunicação, eu procuro olhar para onde há alguma coisa de
evangelizável. O não evangelizável é muito claro! Foi mencionado pelo
debatedor e, por isso, nem preciso reforçar.
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Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ
Certa vez li o livro de um inglês chamado A armada do papa. Ao
ler esse livro, pude perceber a genialidade de três grandes movimentos
no que diz respeito à dinâmica, não ao conteúdo. A partir dessa leitura,
inventei uma palavra chamada “círculos concêntricos adstringentes”.
O autor do livro diz que quando Chiara fazia alguns vídeos e os
distribuía para o mundo inteiro, milhões de pessoas assistiam. Posteriormente, pensou-se em criar um grupo menor e que se reunissem fisicamente uma vez por ano. Tal sonho se concretizou e surgiram as grandes
Mariápolis. Em seguida, se cogitou em criar um grupo menor e que se
reunissem a cada mês. E, por fim, se chegou à criação de um grupo mais
reduzido e que se reunissem a cada semana. Assim, se tinha um grupo
bem coeso e convicto, engajado e comprometido. A evangelização pelo
mundo da mídia é início, mas não é evangelização ainda.
Essa história mostra a passagem que precisamos fazer, da superficialidade midiática para o mínimo de aprofundamento. Depois, um
grau maior de aprofundamento. Logo depois um pouco maior, e assim
por diante. Portanto, se nós trabalharmos com esta dinâmica do pouco,
acredito que teríamos alguma resposta positiva. Os grupos menores são
os que vivem o evangelho de forma mais vigorante, mas não é a única
possibilidade. Há muitas maneiras de viver pelo menos uma dose mínima
de cristianismo.
A pedagogia de Jesus nos ajuda a entender tal questão. Quando
Jesus conversa com aquela mulher samaritana que tinha cinco maridos
– não cabe aqui estudar a exegese do texto – à qual se revela como o
Messias, ele não pede para ela entrar em um convento, apenas lhe diz a
verdade sobre os cinco maridos. Também quando outra mulher foi surpreendida em adultério, Jesus só pergunta se alguém a tinha condenado e,
não a condenando ele também, despede-se dela dizendo-lhe apenas: “Não
peques mais!” Já no caso do jovem rico que cumpria os mandamentos,
Jesus lhe exige mais, mas o jovem não aceitou a proposta.
Trata-se da pedagogia do passo seguinte. É preciso perceber que
a única exigência do evangelho é sair do lugar de onde estamos para
um passo seguinte. E mais: só a própria pessoa pode dar esse passo; não
adianta ser imposto por pressão externa. Assim, teremos bom futuro no
campo da pastoral. Pergunte a si mesmo: o que posso propor a mais do
que a simples atitude estética e emocional?
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Igreja, Sociedade e Juventude
Pe. Siro:
Desejo fazer a união de algumas ideias advindas da reflexão do Pe.
Nandi e do Pe. Libânio. Quanto ao mito das sereias, ressalto um detalhe
importante. Ulisses mandou a tripulação selar os ouvidos com cera de
abelha, e mandou que o amarrassem ao mastro, com as mãos para trás.
Os marinheiros surdos impulsionaram o navio na direção das sereias.
Impedidos de escutar o seu canto não eram seduzidos e, consequentemente, não se afogariam. É interessante lembrar que apareceu Morfeu,
e cantou mais belamente que as sereias. Sendo assim, foram elas que se
afogaram no mar. Devemos ter um canto melhor para cantar. Em nosso
caso, é o Evangelho inserido no mundo de hoje que vai afogar as sereias.
Como será? É uma luta...
Pe. Pedro Paulo Alexandre:
Hoje o conhecimento teológico está muito acessível. Existem
diversos meios para se estudar Teologia. Isso tem despertado em nossos
jovens um maior amor à Igreja. Sinto que hoje temos uma juventude,
apesar de tudo, marcada pela fidelidade. Como nossos jovens e nossos
padres jovens podem ser realmente fieis ao Magistério, sem abafar o que
é próprio da nossa Igreja local?
Dom Demétrio:
Tantas coisas profundas que nos fazem pensar. Isso é muito bom.
Não sei se captei bem, mas a imagem bloqueia a reflexão. No que diz
respeito à Liturgia, é preciso deixar de encher de imagens para aumentar
os símbolos. Afinal, as parábolas de Jesus eram simbólicas e estas desencadeavam um processo de reflexão. Como superar o imaginário em
nossa Liturgia? Como valorizar mais o símbolo, para que nossa Liturgia
seja verdadeira e que possa conseguir atingir nossos os maiores de uma
verdadeira evangelização?
Pe. Libânio:
A raiz da palavra “fidelidade” é fé. Fé é entrega de si mesmo a
Deus Pai e aos irmãos. Esta é a fidelidade radical. Qualquer fidelidade
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Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ
fora disso é formalismo. Jesus critica bastante uma fidelidade obcecada
pela lei e pelos costumes.
Cito, por último, uma frase bela do Cardeal Martini: “Agora, na
minha idade, quando me perguntam alguma coisa, eu procuro pensar o
que Jesus diria ou faria.” Portanto, não se trata especificamente do que a
norma ou a regra diz. O importante é notar aquilo que Jesus diria a partir
do que nós conhecemos do Evangelho. É essa a nossa vocação.
Professor Ramada:
Imagino que, por causa da voz, Pe. Libânio não teve condição de
ressaltar a importância da etimologia das palavras “jovem” e “juventude”,
pois, segundo Jung, a etimologia é um caminho que leva a pessoa da
palavra ao símbolo. Fidelidade ao Evangelho, a meu ver é importante,
pois esta vai constituir o caminho para que fiquemos enraizados onde
Deus nos chama.
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Curso de Pós-Graduação em Estudos Bíblicos
Lato Sensu – Especialização
Justificativa e Objetivo Geral
A Bíblia está sendo redescoberta. Cada vez mais ela desperta o interesse da sociedade em
geral. Muitas pessoas engajadas em serviços eclesiais, em organizações e movimentos
populares, em instituições de ensino ou mesmo inseridas em outros espaços, manifestam
o desejo de aprofundar o conhecimento da Bíblia, tanto em seu aspecto histórico-literário
como na metodologia de leitura e interpretação e também como fonte de mística e de
espiritualidade. A Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC), ao promover este
curso, deseja acolher as expectativas destas pessoas, visando, especialmente, a
capacitação de agentes pastorais das diversas igrejas cristãs.
Período do Curso
Outubro de 2013 a Abril a Novembro de 2014.
Estrutura do Curso
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BLOCO I: Introdução ao Estudo da Bíblia:
Introdução ao Estudo da Bíblia e Linha do Tempo (30 h/a)
Geografia e Arqueologia Bíblicas (15 h/a)
Noções de Hebraico Bíblico (15 h/a)
Metodologia de Leitura e Interpretação de Textos Bíblicos (15 h/a)
Metodologia de Estudo, Pesquisa e Elaboração de Trabalho Científico (15 h/a)
BLOCO II: História e Literatura do Primeiro Testamento:
Formação do Povo de Israel - Êxodo e Tribalismo (15 h/a)
Monarquia e Profetismo (15 h/a)
Exílio da Babilônia (15 h/a)
Pós-Exílio e Sapienciais (15 h/a)
Intertestamento e Ambiente Neotestamentário (15 h/a)
Noções de Grego Bíblico (15 h/a)
BLOCO III: História e Literatura do Segundo Testamento:
Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos (30 h/a)
Escritos Joaninos (15 h/a)
Escritos Paulinos (15 h/a)
Cartas Católicas e Pastorais (15 h/a)
Apocalíptica e o Apocalipse (15 h/a)
BLOCO IV: Temas Bíblicos:
Bíblia e Ecologia (15 h/a)
Bíblia, Etnias e Diversidade Religiosa (15 h/a)
Bíblia e a Questão de Gênero (15 h/a)
Cristologias Bíblicas (15 h/a)
A Bíblia na História da Igreja (15 h/a)
Seminário sobre as Monografias de Conclusão de Curso (15 h/a)
Informações
• www.facasc.edu.br
• [email protected]
• Fone: (48) 3234-0400
Resumo: O propósito do artigo, que se concentra na questão hermenêutica, está expresso
no título da Introdução: continuidade, rupturas e espírito do Concílio. Advertindo contra
o perigo de “matar o espírito do magistério conciliar com a arma de sua própria letra”, o
autor começa estudando a Gaudium et Spes como instrumento epistêmico, ressaltando a
dimensão constitutiva do último documento do Concílio, uma “Constituição”. Mostra também
suas “repercussões epistêmicas”, e discute o alcance e valor teológico da ação pastoral no
terreno doutrinário. Situando a GS cinquenta anos depois, o autor distingue entre “doutrina
social” e “dimensão social da doutrina católica”, considera a GS uma “semente plantada na
terra”, e apresenta o conceito de “sinais dos tempos como marco epistêmico”, contrapondoos aos “sinais de Deus como marco teológico”. Apresenta ainda o espírito do Vaticano II
como suporte epistêmico da relação entre Deus e o seu Povo, e reforça a necessidade de
considerar a episteme de Jesus de Nazaré, um judeu do seu tempo. Finalmente, depois de
considerar a intimidade de Deus no íntimo do ser humano, formula a sua conclusão: não é
possível reduzir a GS a um piedoso conjunto de conselhos pastorais. Os desafios lançados
por essa Constituição conciliar têm um longo caminho a percorrer.
Abstract: The main objective of this article is to analyze the hermeneutic approach which
is expressed in the title of its introduction: continuity, rupture, and the spirit of the Council.
One should be aware of a sense of caution against the danger of “killing the spirit of the
counciliar teaching with its own letter”, as the author starts his study of the document Gaudium
et Spes (GS) as an epistemic instrument, laying stress on the constitutive dimension of the
last document of the Council, which is defined as a “Constitution”. He shows forth its “epistemic repercussions” and discusses the ambit and theological value of the pastoral activity
as regards the doctrinal area. Looking back at GS fifty years after its publication, the author
distinguishes between “social doctrine” and the “social dimension” of the Catholic doctrine,
he considers GS as a “seed planted in the soil” and presents the concept of the “signs of
the time as an epistemic mark of reference”, as a counter position to the “signs of God as
a theological stamp”. Similarly, he presents the spirit of Vatican II as an epistemic support
of the relationship between God and his People, and reinforces the need to consider the
episteme of Jesus of Nazareth, as a Jew of his time. Finally, after considering the intimacy
of God in the innermost kernel of the human being, he advocates in the conclusion that it is
not possible to reduce GS as a pious monograph of pastoral advice. The challenges raised
by this counciliar Constitution still have a long way to go until they are fulfilled.
O desafio hermenêutico
da Gaudium et Spes
Daniel Ramada Piendibene*
*
O autor é Mestre em Sociologia e Ciências Políticas, Montevideo, Uruguay, 1971;
Mestre em teologia, Fribourg, Suíça, 1985; foi Professor no ITESC, Florianópolis, e
na PUC, Curitiba, 1988-1992; Diretor do ITESC, 1988-89; é Embaixador do Uruguay
junto à Santa Sé, residindo em Roma desde inícios de 2012.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 97-136.
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
Introdução: Continuidade, rupturas e espírito
do Concílio
Parece-me oportuno começar esta exposição situando o ponto
em que se encontra atualmente o debate sobre o alcance do Concílio
Vaticano II em geral, e da Gaudium et Spes em particular. Desde alguns
anos, em diversas manifestações do Magistério alude-se explicitamente
a uma correta hermenêutica dos documentos do Vaticano II. Os quarenta e cinco anos de seu encerramento e, agora, os cinquenta anos de
sua abertura, voltaram a colocar sobre a mesa uma pretendida diferença
entre as chamadas, respectivamente, Hermenêutica de continuidade
e Hermenêutica de descontinuidade ou da ruptura1. Sem pretender
julgar as intenções dos que defendem uma ou outra dessas posições, a
distinção, em si mesma, se parece muito com um paralogismo de falsa
oposição. Com efeito, em algumas instâncias canônico-administrativas
da estrutura do governo eclesiástico central se acentua, com ênfase, que
existe uma correta hermenêutica dos documentos conciliares que exclui
outras leituras, desviantes ou incorretas. Essa leitura deve basear-se no
texto deixando de lado o contexto ou a história que levou à formulação
documental que recebemos. Mais ainda. Apartando-se da complexidade
que o próprio Bento XVI assume em fins de 2005, não são poucos os que
advertem contra o perigo de postular um espírito do Concílio2.
Do ponto de vista da teologia parece-me mais adequado distinguir
– sem contrapor – ambos os métodos. Em última instância, um poderia
definir-se como hermenêutica formalista, com o risco do reducionismo,
e o outro como hermenêutica contextual que, sem negar o produto documental final, procura entender as legítimas novidades incorporadas
no processo histórico de formação do texto. Todos sabem, e seria uma
aberração jurídica negá-lo, que qualquer texto normativo se baseia em um
espírito, um conjunto de intenções, com os quais o legislador pretende
98
1
O próprio Bento XVI o havia feito em várias ocasiões, antes e depois de seu duplo
ministério romano – Prefeito e Papa. O pronunciamento mais expresso teve lugar no
advento de 2005, isto é, poucos meses depois de assumir o pontificado. Diante da
Cúria romana contrapôs dois tipos de hermenêuticas que chamou de ruptura e de
reforma. O discurso, equilibrado e rico, vai bastante além das simplificações reducionistas que lhe atribuem de forma equivocada – quando não oportunista – alguns de
seus intérpretes. (cf. http://www.vatican.va/holy_father /benedict_xvi/speeches/2005/
december/documents/hf_ben_xvi_spe_20051222_roman-curia_sp.html).
2
Em que pese às leituras redutivas, o então Bispo de Roma não só fala de um espírito
do Concílio, mas até fundamenta a necessidade de revivê-lo.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Daniel Ramada Piendibene
enfrentar as situações que o levaram à sua intervenção. A tal ponto isso
é inegável, que o espírito do legislador tem sido sempre uma das regras
da interpretação jurisprudencial. Os documentos do Concílio, além de
sua expressão formal, têm uma história que revela o caminho que levou
ao texto aprovado que mostra quais as formulações que os Padres conciliares descartaram por julgá-las inadequadas ao espírito e à intenção
da Assembleia. De um ponto de vista puramente epistêmico – e a hermenêutica é uma operação epistêmica – continuidade e ruptura não são
antinômicas, mas só estão em níveis diferentes. O método antinômico
que exclui o contrário – confundindo o âmbito de aplicação das regras
da lógica formal ao projetá-las sobre processos histórico-diacrônicos –
este, sim, é incompatível com a tradição.
É impossível negar que na hermenêutica doutrinal da Igreja Católica o princípio calcedônio de “distinguir sem separar”3, constitui um
são antídoto e previne, ao mesmo tempo, contra os reducionismos e os
absolutismos. Assumir a complexidade do processo de formação de uma
doutrina permite conservar o espírito que vivifica sem menosprezar sua
expressão mediatizada pela letra. Para que a letra não mate, o espírito deve
ser cuidadosamente recordado e evocado. Desse modo, não se desnaturaliza a expressão escrita da doutrina, por redução a uma pura fórmula
enunciativa. Em todo caso, obriga sempre a discernir a novidade dentro
da continuidade. A substituição de um modelo ou paradigma conceitual,
que durante algum tempo tenha sido necessário para sustentar o discurso
dogmático, não cancela a continuidade, mas antes a enriquece, porque
mostra os aspectos emergentes que permitem atualizar a expressão do
mistério dando nova vida à tradição multissecular4. A ruptura significa
descartar os odres velhos para conservar o vinho novo.
Pôr a salvo a tradição como operação dinâmica e complexa de
recepção, entrega e transmissão de um depósito, supõe entender que
em cada Concílio Ecumênico houve um antes e um depois. Na primeira
metade do século XX, por exemplo, falar de “história do dogma” era
3
Sem confusão, sem mudança, sem divisão, nem separação.
4
O processo de quebra de paradigma ou modelo, como estrutura prévia e subjacente
à lógica do discurso, produz-se no mais das vezes por insuficiência do seu alcance
instrumental para incluir corretamente as variáveis conceituais que devem associar-se
na descrição ou explicação de um fenômeno. Nesse plano não se trata de verdade ou
falsidade, mas sim de aptidão ou coerência funcional e inclusiva na hora de levar em
conta os elementos causais, cada vez mais numerosos e complexos, que concorrem
tanto para os processos históricos como para sua contrapartida de decodificação
cognitiva.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
99
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
equivalente a ruptura. Mas o Concílio assumiu a historicidade como
princípio e, desse modo, rompeu com o costume de enunciar a fé em
termos formais de exclusão (anathema sit – seja anátema). Não creio que
o tenha feito para agradar ao cidadão secular5, mas porque entendeu que
as formas de conceber o homem e a sociedade mudaram, tornaram-se
mais complexas e mais ricas, tanto como a própria realidade do conhecimento humano. Esta preocupação de entender o espírito do tempo, que
João XXIII descreve com a formulação evangélica de sinais, constitui
uma ruptura epistêmica. Há um antes e um depois, como o houve em
Niceia, Éfeso, Calcedônia, ou Trento. Renunciar ao espírito do Concílio
como marco hermenêutico; renunciar a incluir a intenção manifesta dos
Padres de renovar a metodologia da expressão e da ação, ou não querer
levar em conta o contexto no qual se geraram os textos, significa um
tipo de ruptura qualitativamente mais grave do que a que põe o acento
nas novidades. Significa autoexcluir-se da vontade dos Padres em nome
de uma fidelidade abstrata, não à tradição da Igreja, mas a uma forma
não poucas vezes contingente de enunciá-la. Como disse, os Concílios
ecuménicos são acontecimentos da história da Igreja que marcam um
ponto de inflexão. Aqueles que, querendo emular com o inefável Cardeal
Alfredo Ottaviani6, definem o sentido e destino da Igreja pelo semper idem
porão, logicamente, o acento na continuidade doutrinal – imutável quanto
a seu objeto – dizendo que o Concílio não acolheu nenhuma pluralidade.
O preço que se paga por esta posição é julgar as rupturas, empíricas,
como desvio, e a discrepância, como anátema. Numa palavra, estarão
confundindo um nível formal de expressão contingente com a realidade
total. Corre-se assim, ao mesmo tempo, o risco de matar o espírito do
Magistério conciliar com a arma de sua própria letra.
Primeira parte: A Gaudium et Spes como
instrumento epistêmico
Nos últimos dez ou quinze anos, para não dizer nos quarenta e
sete que passaram desde que se promulgou a Gaudium et Spes, frequentemente se argumenta que este escrito do Magistério extraordinário da
Igreja, novo e excepcional de muitos pontos de vista, não tem o mesmo
alcance ou projeção doutrinal que as demais Constituições emanadas do
100
5
Parafraseando Harvey Cox.
6
Um homem cuja fidelidade a seus princípios e, sobretudo, cuja santidade de vida,
está fora de toda discussão.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Daniel Ramada Piendibene
mesmo Concílio. Mediante uma distinção excludente entre o dogmático e
o pastoral – antinomia por contraposição que não fizeram nem quiseram
os Padres conciliares – atribui-se à Gaudium et Spes uma espécie de status
teológico de menor valor. Nessa perspectiva, afirmar seu caráter pastoral
equivale a postular que seu conteúdo não deve ter maiores repercussões
na área dogmática7.
Estou convencido de que esta visão não só é injusta em relação
à vontade do Concílio Vaticano II, mas ainda induz em erro do ponto
de vista estritamente doutrinal. Porquanto, por sobre todas as coisas,
significa desvirtuar mediante distorção redutiva o alcance de um ato do
Magistério – inspirado pelo Espírito Santo e garantido pela comunhão
do Colégio episcopal com o Sumo Pontífice – que assume a densidade
dos novos tempos como terreno a ser explorado e evangelizado a partir
da sua própria complexidade e pluralidade8.
Como disse, o argumento não é novo. Aparece aqui e ali, nos
primeiros anos do pós-Concílio, geralmente sob a intenção de evitar presumíveis desvios no âmbito dogmático. Entretanto, nos últimos lustros,
essa visão parece dominar como uma espécie de cânon exegético para a
correta interpretação do magistério conciliar. Os que assim raciocinam
esquecem ou escondem que, apesar das propostas em contrario, Gaudium
et Spes é uma Constituição de mesmo título que as outras três. Que foi
querida como tal pelo Concílio em comunhão com o sucessor de Pedro
e aprovada por dois mil e trezentos e nove (2.309) Padres que representaram, no momento culminante da Assembleia, nada menos que noventa
e sete por cento (97%) do Colégio Episcopal presente na aula conciliar9.
Um Colégio Episcopal heterogêneo em idades, tendências, regiões de
proveniência, culturas e funções eclesiásticas10.
7
O conceito de contraposição deve ser entendido como choque de antinomias, mais
além da simples distinção. A distância que há entre distinguir e separar é a mesma
que faz a diferença entre um tipo de dialética de integração, á maneira de Hegel, e a
dialética da exclusão (antinômica), própria das variantes mais radicais do paradigma
materialista.
8
Isso me faz lembrar aquela afirmação tão clara e radical de Jesus sobre o pecado
contra o Espírito Santo. O único que não tem perdão nem nesta vida nem na outra,
porque atribui a Deus algo que em realidade vem do Maligno.
9
Por honradez intelectual restrinjo-me à percentagem “estatisticamente menos favorável”, porque, se deixarmos de lado as abstenções e os placet juxta modum (3%),
tomando como dissenso apenas o número de non placet (sete votos em quase quatro
mil), chegamos à aprovação de 99,7%, isto é, apenas 0,3% de não aprovação.
10
Vale a pena perguntar se esta surpreendente unidade na heterogeneidade não constitui um argumento de infalibilidade, por obra do Espírito Santo, mais patente e forte
Encontros Teológicos nº 64
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
Sublinhar ou enfatizar que se trata de um documento prevalentemente pastoral – quase se diria exclusivamente pastoral – para eludir
suas opções teóricas de base, equivale a julgá-lo como uma espécie de
amontoado de conselhos práticos, circunstanciais ou ocasionais, cujo
valor principal se limitaria ao tempo que o produziu e cuja vigência
permaneceria circunscrita à atualidade ou obsolescência dos problemas
que motivaram sua redação. Assim se subestima o valor dogmático da
metodologia doutrinal que nos propõe, olvidando-se que, por mais que repugne aos adversários esse modelo teológico, a Gaudium et Spes também
é vinculante em termos de opções teóricas11. Uma teologia que incorpora
a realidade fenomênica de uma sociedade em constante crescimento,
complexificação e desenvolvimento, como ponto de partida do discurso
sobre Jesus e Deus, seu Pai, é algo mais do que um esboço implícito. É
uma opção lícita e, de certo modo, como já disse, vinculante.
O Senhor da história chama os cristãos de cada nova geração a
darem sua resposta no tempo que lhes toca viver. A Gaudium et Spes
inaugura a doutrina epistêmica do tempo da complexificação da história
humana pelo aumento exponencial das relações intersubjetivas no plano social. Seria muito míope crer que, insistindo em um discurso que
ignora essa complexidade, seja possível cancelar seus desafios e evitar
suas consequências.
Não é enterrando o talento, para guardá-lo sem riscos de perda,
que se transmite fielmente o depósito, menos ainda negando a singularidade do presente e qualificando de “relativismo” o que na realidade é
complexidade plural. Para enfrentar esse reducionismo metodológico e
que qualquer consenso obtido ao preço da exclusão das discrepâncias. A autoridade
doutrinal da metodologia teológica do Concílio deriva imediatamente desta espécie de
milagre, esquecido ou voluntariamente ocultado nos anos seguintes, quando começou a aplicar-se uma política de ostracismos na hora de convocar peritos e censurar
supostos rebeldes ou “dissensionários”, para usar um neologismo que evita o termo
“dissidente”.
11
102
Quando digo vinculante não proponho a exclusão dos que não pensam como, em seu
tempo, pensaram os Padres conciliares. A Gaudium et Spes vincula porque obriga
a respeitar a perspectiva que a mesma Igreja assumiu, como marco teológico, e o
compromisso de desenvolver suas consequências. Afirmo, sim, a inclusão da complexidade no método que ampliou as regras hermenêuticas da teologia mediante a
incorporação do fenômeno social como variável passível de reflexão e juízo, também
teológico. Assumo o diálogo – em pé de igualdade – entre a Igreja e o mundo como
enriquecimento à contribuição da Igreja ao serviço do mundo. Assumo o risco da pluralidade de opiniões no seio de uma sociedade que se pensa a si mesma sem outorgar
à doutrina eclesiástica um caráter vinculante no terreno de sua própria autonomia.
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
o consequente menosprezo doutrinário, é necessário ir à raiz das coisas
e esboçar, pelo menos, três linhas de raciocínio:
a) Intenção magisterial dos Padres conciliares
b) Estatuto epistêmico da metodologia da Gaudium et Spes
c) Alcance e valor teológico do discurso doutrinário subjacente
a partir das premissas da ação pastoral
1.1 A dimensão constitutiva da Gaudium et Spes
O documento sobre as relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo poderia ter sido concebido como uma Declaração. Entretanto,
o Concílio o quis sob a forma de uma Constituição. Que significa este
caráter explicitamente buscado pelo Colégio conciliar, em comunhão
com Pedro? E em que aspectos é juridicamente vinculante? Se algo não
se pode negar é que os Padres conciliares, todos formados na disciplina
eclesiástica anterior aos anos 60, para além de suas diversidades, têm
em comum um sólido conhecimento das regras canônicas.
No âmbito jurídico – e o estatuto de um documento marca sua
intenção normativa – distingue-se entre atos declaratórios e atos constitutivos. Uma declaração reconhece do ponto de visto formal uma realidade
ou fato precedente, cujas consequências normativas explicita ou resgata
o jurista. Um ato constitutivo é aquele que, a partir do imperium de quem
tem poder para isso, provoca ou gera um fenômeno institucional e/ou
normativo novo. Cria uma realidade fática não preexistente, e a cria com
alcances jurídicos. Em nosso caso, constitui uma realidade doutrinal e
prática que orienta e delimita os termos da relação entre a Igreja e o
mundo contemporâneo. Aqui há um ponto de inflexão. Não é procedente
falar de ruptura antinômica, porque não se está negando nenhum valor
ou doutrina anterior. Mas, sim, é necessário falar de constitutividade e,
nesse contexto, de novidade, de descontinuidade criadora, quase diria,
de ontogênese. Vetera sed nova.
Mas há mais. Constitucionalmente falando, seu alcance pastoral
não é concebido em detrimento de seu alcance doutrinal. Pelo contrario.
O caráter constitutivo da doutrina eclesiológica da Gaudium et Spes a
coloca em pé de igualdade e em linha de projeção complementar com
relação à teologia da Lumen Gentium. Se não é lícito ler Gaudium et
Spes em contraposição a Lumen Gentium (e a Dei Verbum!), tampouco
é lícito ler Lumen Gentium com exclusão de Gaudium et Spes, nem
Encontros Teológicos nº 64
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
colocar a segunda em posição doutrinalmente subordinada à primeira.
A longa história do célebre “Esquema XIII” só ratifica o alcance destas
afirmações.
Portanto, ao optar pela forma constitucional, os Padres conciliares
introduzem um elemento novo na doutrina eclesiológica. Concebem que,
doravante, a missão da Igreja passa pelo diálogo de igual para igual com
o mundo contemporâneo, e instituem a categoria “sinais dos tempos”
– perscrutar os sinais dos tempos – como o instrumento a desenvolver
para manter apta, na história, nesse diálogo, a comunidade eclesial. A
vocação pastoral da Igreja, muito mais que uma função, é uma dimensão. Eleva a racionalidade, a alteridade coletiva, ao estatuto de categoria
epistêmica, de ratio teológica. Os Padres conciliares acolhem a missão e
o diálogo com o mundo – plural e exterior a ela – como nota constitutiva
do mistério da Igreja.
1.2 Repercussões epistêmicas da Constituição
Gaudium et Spes
Até o momento, tenho utilizado o termo episteme insistentemente,
sem dar-me ao trabalho de definir o alcance e significado que lhe atribuo12.
Na segunda parte desta exposição abordarei o ponto com um pouco mais
de detalhe. Por enquanto baste dizer que me refiro aos pressupostos que
orientam a lógica de incorporação e comunicação do conhecimento
através de um sistema pré-consciente ou meta-racional de associação
de conceitos e representações com referência à visão do mundo e aos
valores consensuais para uma sociedade ou civilização13.
No parágrafo anterior sustentei e provei que o caráter constitucional da Gaudium et Spes projeta consequências doutrinais no terreno da
eclesiologia. Aludi, também, à evolução histórica do “Esquema XIII”.
O longo caminho percorrido pelas sucessivas redações, até alcançar o
status de textus denuo recognitus, não pode desconhecer-se como chave
104
12
Os ouvintes que acompanharam minha trajetória docente no ITESC e nesta revista
“Encontros Teológicos” podem consultar as apostilas da época ou alguns artigos
relativos às balizas do pensamento teológico, como, por exemplo, “Para além do
paradigma de Hegesipo” (in “Canto da Palavra”, ITESC, Florianópolis, 2005, pp. 111176) e “Dimensões epistemológicas na economia da Revelação e Verbum Domini”,
in “Encontros Teológicos” n.59 (2011/2), pp. 55-84.
13
Configuração do saber de uma época, na perspectiva de Foucault, ou paradigma, na
de Feyerabend, Kuhn, Toulmin e, de certo modo, Lakatos.
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
hermenêutica. Um exemplo: inicialmente o documento começava pelas
palavras “Gaudium et Luctus”, mas um grupo de Padres observou que
a intenção do Concílio era estabelecer um diálogo de reconciliação
com os valores positivos do mundo contemporâneo. Começar falando
de “gozo e dor”, para além da legitimidade dessa formulação dialética,
não caracterizava o acento que João XXIII quis dar explicitamente ao
Concílio14. A esperança, no limite da utopia, representava uma aspiração
maior e um eixo de compreensão da cultura contemporânea. A versão
seguinte mudou a ordem dos fatores, alterando o produto15.
Estabelecido o status e valor doutrinais da Constituição, quero
deter-me agora em outro aspecto fundamental. O caráter vinculante
de sua metodologia teológica. Com efeito, Gaudium et Spes também
apresenta um aspecto normativo em termos de epistemologia teológica.
Isto pode dizer-se de duas maneiras, que não só não se excluem, mas
sim conformam uma totalidade hermenêutica circular: Seu caráter
pastoral traduz uma opção epistêmica e, ao mesmo tempo, suas opções
epistêmicas – logicamente anteriores à formulação propositiva textual
– convertem a ação pastoral em lugar teológico. Não qualquer lugar
teológico, mas sim o seu ponto metodológico inicial. Tomar como
ponto de partida do discurso teológico a realidade fenomênica, coletiva,
quer dizer, interativa e social, significa fundar o método doutrinal no
discernimento da ação divina no tempo, mutante, das circunstâncias
históricas. A ação, pastoral, converte-se em parte e instrumento do
processo cognitivo e, ao mesmo tempo, em categoria doutrinal: os
sinais de Deus se descobrem ao perscrutar os “sinais dos tempos”.
Buscar e encontrar a vontade de Deus absoluto no mistério do tempo
contingente significa reconhecer que o homem conhece e se conhece
na dimensão de profundidade transcendente a partir das respostas
imanentes alinhavadas através do trânsito histórico. Gaudium et Spes
é constitutivamente epistêmica porque é pastoral, e é constitutivamente
pastoral porque assume a dimensão histórica e social do conhecimento
como ponto de partida do descobrimento da vontade de Deus.
14
São célebres as palavras mediante as quais tomou distância dos profetas da desgraça,
despojando-se de um tipo de magistério condenatório, inadequado, a seu juízo, em
ordem à missão evangelizadora do momento. Se aqui não há uma chave hermenêutica
sobre o espírito do Concílio, onde deveríamos buscá-la?
15
Por isso, Paulo VI, na alocução pública da sessão de encerramento, acentuou que o
Concílio quis, expressamente, transmitir uma mensagem “deliberadamente otimista”
sobre o ser humano e a sociedade.
Encontros Teológicos nº 64
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
1.3 Alcance e valor teológico da ação pastoral
no terreno doutrinário
A esta altura cabe perguntar: de que ação pastoral fala o Concílio?
Precisamente da ação pastoral de descobrir e proclamar o mistério divino
manifestado no povo de Israel, plenamente revelado naquele homem israelita chamado Jesus, reconhecido, por acolhimento da obra do Espírito,
como mistério de encarnação do Verbo eterno que se fez homem, que se
fez ação histórica mediante gestos e palavras, especialmente pela morte
em sua natureza humana e a ressurreição gloriosa.
Se formos consequentes com a metodologia teológica da Gaudium
et Spes, devemos admitir, como base discursiva, que Jesus, o Deus feito
homem, tomou sua natureza humana, imanente, precisamente no contexto
cultural de um povo cuja episteme deriva da memória histórica, não da
especulação abstrata. Com efeito, o Pai eterno, em sua infinita sabedoria
e bondade, dispôs que Israel fosse a matriz cultural do Verbo divino,
quer dizer, a base e, sobretudo, a estrutura epistêmica para veicular em
linguagem humana a plenitude da revelação. Assim, entre outras muitas
maravilhas, escolheu Abraão, do qual formou um povo com quem celebrou uma Aliança, libertou-o da escravidão genocida, deu-lhe a conhecer
no deserto a sua força, sua misericórdia e seu amor salvífico, entregou-lhe
uma terra santa como herança, pelos profetas foi manifestando-lhe sua
intimidade, resgatou-o do cativeiro e, chegada a plenitude dos tempos,
mediante o poder do Espírito, cobriu com o poder de sua sombra a uma
humilde jovem de Nazaré na Galileia, em cujo seio aninhou o Salvador.
Ora bem, todos esses santos têm um elemento comum: uma episteme
baseada na memória histórica, que se traduz em imagens arquetípicas,
como experiência gravada na natureza humana no nível de psique profunda. O homem Jesus veio aos seus em um Povo no qual o processo do
autoconhecimento é como um subproduto de ação e reflexão. Ação de
resposta à iniciativa divina, e de memória que busca atualizar em cada
geração a fidelidade a uma Aliança chamada a gravar-se, como reflexo,
no coração de seus escolhidos.
A teologia pastoral da Gaudium et Spes, através da lógica epistêmica implícita no discernimento dos sinais dos tempos – que para o
discípulo de Jesus se convertem em sinais de Deus - devolve ao método
hermenêutico sua dimensão bíblica: buscar e encontrar a vontade divina
no terreno da ação histórica concebida ao mesmo tempo como memória,
vocação, resposta e missão.
106
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
A modo de primeiras conclusões
Visto desta perspectiva não é, precisamente, douta ignorância, mas
ignorância indouta, ou, no melhor dos casos, “ignorância invencível” por
obstinação culposa, pretender que por ser uma Constituição pastoral, a
Gaudium et Spes tem menor valor dogmático. Seu valor doutrinal deriva,
justamente, da adequação harmônica ao método de teologizar próprio
da matriz antropológica que o Pai dispôs como suporte epistêmico do
Verbo encarnado.
Segunda Parte: O Concílio Vaticano II
cinquenta anos depois
Acabamos de mostrar que a Gaudium et Spes possui uma dimensão teórica que impede por antecipação qualquer tentativa de reducionismo doutrinal. É um texto magisterial de primeira ordem ainda
na área dogmática16, em primeiro lugar porque supõe uma revisão no
terreno dos pressupostos epistêmicos implícitos ao trabalho teológico;
e mais profundamente porque determina, também e por orientação
expressa dos Padres conciliares,17 a incorporação nesse âmbito das regras do conhecimento atual, tais como se formulam a partir dos novos
métodos e descobertas das ciências históricas, filosóficas, linguísticas,
psicológicas e sociais.18
16
Quase ousaria dizer, “sobretudo na área dogmática”, pelas consequências que sua
orientação epistemológica acarreta para o trabalho de pesquisa do teólogo, tanto
como do pastor.
17
GS 62: Ainda que a Igreja tenha contribuído muito para o progresso cultural, mostra,
contudo, a experiência que, devido a causas contingentes, a harmonia da cultura
com a doutrina nem sempre se realiza sem dificuldades. Tais dificuldades não são
necessariamente danosas para a vida da fé: antes, podem levar o espírito a uma
compreensão mais exata e mais profunda da mesma fé. Efetivamente, as recentes
investigações e descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos
problemas, que implicam consequências também para a vida, e exigem dos teólogos
novos estudos. Além disso, os teólogos são convidados a buscar constantemente, de
acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma
mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo.
18
Pode parecer contraditório dizer “e sociais”, porque de fato a história, a filosofia, a
psicologia etc., são por definição e, ao mesmo tempo, ciências do espírito e ciências
sociais. Mas decidi deixar a frase dessa forma, para sublinhar a dimensão social
de qualquer conhecimento humano, mesmo o teológico, na hora de ser formulado
mediante a linguagem. É verdade que a fé é uma virtude infusa, mas sua expressão
mediante a linguagem teológica é feita por homens que, epistemologicamente falando,
são filhos de uma história vivida em sociedade.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
107
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
Nesta segunda parte, pretendo analisar as consequências da Gaudium et Spes no terreno da teologia e no âmbito específico da doutrina
social da Igreja.19 A primeira coisa a sublinhar é que foi o último documento promulgado pelo Vaticano II. Adquiriu oficialmente o estatuto de
Constituição, isto é, regra de orientação da fé, em fins de 1965.20 Este fato
não deve ser desprezado ou esquecido porque significa, de um lado, que
é o fruto mais maduro do trabalho dos Padres e, de outro, que constitui
uma espécie de síntese e testamento doutrinal do Concílio. Hoje, quase
cinquenta anos depois, continuamos a estudá-la. Não se trata, apenas, de
uma tarefa acadêmica ou erudita, mas, sobre tudo, de um ato vital para o
Povo de Deus que peregrina nesta fase da história. Sublinho, nesta fase.
A Gaudium et Spes inaugura uma nova modalidade no magistério da
Igreja. Abre uma porta específica, ou uma janela para entrar o “ar fresco”
que vem da sociedade, como disse João XXIII, que foi o primeiro Papa
do século XX a falar da necessidade de um “pôr em dia” a doutrina no
que refere à sua forma de apresentação aos homens do nosso tempo.
Sua célebre expressão italiana aggiornamento virou vocábulo universal.
A Gaudium et Spes acolheu o desafio. Aquilo que João XXIII disse na
homilia de abertura do Concílio21, a Constituição Pastoral o incorporou
no texto com que se encerraram os trabalhos doutrinários, determinando
assim que a intenção do Pontífice fosse textual e explicitamente acolhida
pelo magistério extraordinário. Com efeito, na homilia de inauguração
do Concílio o Papa Roncalli dissera:
O espírito cristão, católico e apostólico, do mundo inteiro, espera um
progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências; é
necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente
respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do «depositum fidei»,
108
19
No final, vou incluir um resumo e algumas pistas de leitura que faltou desenvolver
na palestra por causa dos limites do tempo de exposição. Não se trata de um resumo – ou “apenas” de um resumo – mas, quando mister se faz, vou sublinhar alguma
palavra-chave, importante para os Padres conciliares, que aparece como novidade
desta Constituição, por vontade explícita daqueles que a elaboraram.
20
07 de dezembro de 1965, último dia do Concílio.
21
Homilia Gaudet Mater Ecclesia, de 11 de outubro de 1962. AAS 54 [1962] 792. Opportet ut haec doctrina certa et immutabilis, cui fidele obsequium est praestandum,
ea ratione pervestigetur et exponatur, quam tempora postulant nostra. Est enim aliud
ipsum depositum Fidei, seu veritates, quae veneranda doctrina nostra continentur,
aliud modus, quo eaedem enuntiantur, eodem tamen sensu eademque sententia.
http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii­_spe­
19621011_opening-council_lt.html.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Daniel Ramada Piendibene
isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação
com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido
e o mesmo alcance.22
A Gaudium et Spes, quatro anos depois, incorpora o desejo de
João XXIII sob a forma de texto normativo:
[...] os teólogos são convidados a buscar constantemente, de acordo
com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a
forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu
tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra
o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido
e significado.23
E ainda acrescenta:
Na solicitude pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente, não
apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências
profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os
fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta.24
2.1 Doutrina social e dimensão social
da doutrina teológica
Costuma-se dizer que a Rerum Novarum de Leão XIII inaugura a
Doutrina Social da Igreja. A esta altura do desenvolvimento do discurso
social católico, não interessa discutir se, do ponto de vista técnico, tal
pensamento deve ser considerado como doutrina sociológica formal
22
Versão em português: http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/
documents/hf_j-xxiii_spe_19621011__opening-council_po.html.
23
GS 62: Etenim scientiarum, necnon historiae ac philosophiae recentiora studia et
inventa novas suscitant quaestiones, quae sequelas pro vita quoque secumferunt
et etiam a theologis novas investigationes postulant. Praeterea theologi, servatis
propriis scientiae theologicae methodis et exigentiis, invitantur ut aptiorem modum
doctrinam cum hominibus sui temporis comunicandi semper inquirant, quia aliud est
ipsum depositum Fidei seu veritates, aliud modus secundum quem enuntiantur, eodem
tamen sensu eademque sententia. http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documentns/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_lt.html. Versão em
português: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/
vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html.
24
Id. In cura pastorali non tantum principia theologica, sed etiam inventa scientiarum
profanarum, inprimis psychologiae et sociologiae, satis agnoscantur et adhibeantur,
ita ut etiam fideles ad puriorem et maturiorem fidei vitam ducantur.
Encontros Teológicos nº 64
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109
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
ou não. O uso da expressão doutrina social terminou legitimando suas
pretensões teóricas. Acredito, porém, que seja intelectualmente mais
preciso dizer que o magistério social da Igreja católica, anterior à Mater et Magistra e à Gaudium et Spes, contém uma série de propostas de
base teológica sobre a responsabilidade pessoal (e/ou grupal) e sobre as
virtudes morais do individuo, no âmbito coletivo da sociedade. Trata-se
de uma teologia moral projetada sobre a convivência entre pessoas e
grupos individualmente considerados. A realidade social, porém, ainda
é imaginada como fenômeno – somatório – de agrupação dos indivíduos. Nessa perspectiva, finalmente, a sociedade é apenas um conjunto
de indivíduos mutuamente relacionados e unidos por laços jurídicos de
direitos e obrigações. Porém, para termos doutrina social, propriamente
falando, é necessário que o discurso sobre a sociedade assuma seu objeto
como uma totalidade autônoma e complexa em vez de pensá-la como
epifenômeno subsidiário de uma totalidade metafísica ou natural.25
Agrade ou não agrade a alguns porta-vozes da autoproclamada hermenêutica de continuidade – frequentemente imaginada como expressão
perfeita e linear de uma verdade filosoficamente pura e incontaminada
de historicismos – quem provocou a quebra de paradigma foi João
XXIII.26 Com efeito, a Mater et Magistra, publicada durante o período
de preparação do Concílio, é o primeiro documento do magistério que
considera a sociedade como uma totalidade autônoma com leis próprias,
isto é, como uma estrutura ou fenômeno cuja lógica de funcionamento
ultrapassa a simples adição de partes. Para falarmos em forma didática,
mesmo se, de um ponto de vista individual, todos os membros de uma
sociedade ou grupo social se comportarem de modo eticamente justo – e
até virtuoso – no conjunto se poderia perpetuar um sistema portador de
consequências injustas, porque a unicidade do fenômeno como totalidade
estrutural é logicamente anterior ao funcionamento das partes.
110
25
As encíclicas e pronunciamentos pontifícios entre 1891 e 1961 contêm diferentes
elementos oriundos da ciência sociológica, conforme o desenvolvimento desta para
cada época, mas a dimensão social do conhecimento e a sociedade como fenômeno e
objeto autônomo de estudo não entra no sistema de pensamento que funda o discurso
magisterial. A Mater et Magistra será a primeira peça interdisciplinar do magistério
pontifício onde a doutrina moral incorpora a ciência específica do social.
26
Insisto. Aqui há uma confusão perversa. Imaginar a continuidade como ausência de
rupturas ou de conflitos, mesmo que seja na base epistêmica das interpretações,
equivale a excluir, pouco importa se intencionalmente ou não, a complexidade plural
como contexto de conhecimento e proclamação da Palavra de vida.
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
A partir de João XXIII, a doutrina da Igreja assume que as relações
sociais constituem um campo autônomo, que cada dia tem maior impacto
sobre a vida humana, e que a evolução das relações intersubjetivas no
terreno coletivo constitui um fenômeno complexo, que ultrapassa a conduta individual das pessoas. Torna-se evidente que a interação humana
e as relações sociais formam um objeto específico de conhecimento. O
magistério entra, assim, na era da complexidade sistêmica das ciências
humanas, como disciplinas que buscam entender a realidade empírica a
partir dos fenômenos.
O processo aberto pela Mater et Magistra conduz a um novo nível
de interdisciplinaridade. Em rigor, não existe doutrina social sem uma
ciência específica do social, e não existe ciência sem uma avaliação�����
����
crítica do conhecimento. Aqui temos uma hermenêutica de maturidade. A
Gaudium et Spes será encarregada de assumir tal desafio epistêmico. A
perspectiva que busca no discernimento dos sinais dos tempos o ponto de
partida gnosiológico para descobrir a ação e a vontade de Deus no trânsito
da peregrinação terrena, opera a atualização da forma como é pensada
a fé da Igreja no contexto sincrônico da teoria social do conhecimento,
e na perspectiva diacrônica do devir histórico.
No capítulo anterior, falei de um antes e um depois. De Kant a Hegel e de Hegel aos diversos modelos de existencialismo, de positivismos
e/ou de materialismos, os fenômenos históricos e sociais se convertem
em ponto de partida do discurso gnosiológico.27 O Concílio assume a
complexidade dos fenômenos como um initium fidei do sistema teológico.
Eis a quebra de paradigma que, do ponto de vista dogmático, permite e
legitima a Gaudium et Spes, tanto através de suas opções analíticas como
mediante a teologia dos sinais dos tempos.
Os textos dos concílios proclamam a fé e orientam o rumo do
discurso teológico. É nesse sentido que se tornam, para além de uma
27
Não é este o momento para mostrar o caminho que o pensamento europeu e ocidental percorre desde o início do processo de emancipação das ciências humanas de
sua tutela metafísica ou teológica. Apenas uma nota ao pé de página: É impossível
entender a pós-modernidade (ou alta modernidade) sem aceitar que o pensamento
da modernidade não é bom ou é ruim per se. É um dado da realidade e uma consequência da complexificação das relações sociais que provoca mutações no processo
epistêmico. Rejeitar esse fato equivale a rejeitar nossa vocação e missão hoje. Pena
não termos nascido no Egito das cebolas metafísicas. Mas o Senhor nos chama neste
deserto – caótico para alguns – de pluralidades e relatividades!
Encontros Teológicos nº 64
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111
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
declaração, a regra constitutiva na forma específica de “vinculação”.28
Caráter vinculante significa que o documento mostra a forma como se
expressa a fé da Igreja a fim de que seus membros a recebam a título de
mediação correta para proclamar o mistério de Deus revelado através
da Palavra. É uma ruptura com a fé tradicional da Igreja? Obviamente
não! Trata-se da incorporação dos elementos epistêmico-diacrônicos da
teoria social do conhecimento, dentro da base do discurso dogmático.
Quarenta anos depois, apenas começamos a ver a dimensão espantosa
deste desafio científico-teológico.
2.2 Gaudium et Spes como semente na terra
(nisi granum frumenti)
A multiplicação das informações, característica da sociedade contemporânea, isto é, aquelas que circulam em tempo real ou são disponibilizadas nas enciclopédias e bibliotecas eletrônicas, exige das ciências do
conhecimento um tipo aprofundado de discernimento. A dimensão social
e intersubjetiva da formação dos conceitos e das categorias analíticas é
um fenômeno que abrange, embora através de modalidades específicas,
todas as áreas do conhecimento humano. Nesse sentido, tanto as doutrinas
sociais como as meta-sociais, incluindo a teologia, supõem no processo
de formação de seus discursos, pressupostos e chaves implícitas de incorporação, formulação, interpretação e leitura. Tais regras ou recorrências
constantes estão relacionadas com modelos estáveis de categorização
(por abstração) e hierarquização (por associação valorativa).
Na teologia católica, entre a segunda metade do século XIX e o
pontificado de João XXIII, para além de nuances casuísticas ou funcionais sem a menor importância teórica (apesar de muito sublinhadas
hoje pelos defensores da hermenêutica de continuidade lineal), o marco
teórico predominante no campo dogmático, incluída a eclesiologia, foi
invariavelmente de base metafísica, de corte neoescolástico e, ainda, com
pretensões disciplinarias. Sublinho: estou falando em marco teórico, isto é
da lógica subjacente ao discurso doutrinário. A metafísica neoescolástica
28
112
Lex credendi. O primeiro passo do cristianismo emergente em direção da diferenciação
religiosa em relação ao judaísmo matriz, foi a mudança das regras legais no tipo de
vínculo com a comunidade. Do povo judeu se faz parte pelo sangue e pela circuncisão, é uma pertença étnica. Para ingressar, porém, no caminho dos messianistas é
necessário assumir, como lei, uma regra de confissão: a fé em Jesus ressuscitado.
Trata-se de uma pertença doutrinal, confessional. A fé publicamente confessada virou
norma de comunhão e limite institucional.
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
não chegou a ser definida como dogma de fé29, mas, de fato, foi apresentada e até imposta como “o” ou único marco filosófico verdadeiramente
compatível com a fé. Um marco que, na prática, era o limite conceitual
para os teólogos de confissão católica. A metafísica escolástica permitia o
acesso à verdade, uma espécie de formulação eterna de fé, formalmente
plena e situada por cima e para além da contingência histórica.
O Vaticano II, acolhendo a dimensão temporal do conhecimento,
mudou essa perspectiva e abriu o pensamento teológico para a complexidade. Aqui temos, então, a primeira novidade ou descontinuidade
doutrinal acontecida com o advento da Gaudium et Spes. Eis o ponto que
deve ser focado na hora de avaliar a mudança de perspectiva operada.
Eis, ainda, por que é indispensável mostrar a orientação fundante e não
apenas declaratória de nossa Constituição, a fim de captar, em sua devida
dimensão, o desafio que, através do Magistério, o teólogo deve honrar.30
Pois precisamente nesse terreno, a sua teologia fornece elementos que
permitem ultrapassar uma falsa contraposição entre teologia e ciências
sociais, entre verdade e ideologia,31 entre dogma e relatividade, entre
sincrônico e diacrônico ou entre horizontal e vertical.
29
Embora, de parte de muitos durante a primeira metade do século XX, vontade não
tenha faltado!
30
Hoje, na teologia acadêmica europeia, especialmente aquela vinculada a movimentos
de perfil institucional, voltamos a escutar falar muito em Verdade, assim com maiúscula.
Verdade, como uma espécie de absoluto para além do espaço e do tempo. Tal Verdade, pretende-se incontaminada de ideologias ou sistemas sociais de pensamento, e
voltaria a ser a expressão formal definitiva e mais adequada para pensar a teologia.
Não apenas, mas também a sua base, sua tarefa central e seu ponto de chegada.
31
O contrário de verdade, nessa ótica, seria ideologia ou “relativismo”. A imensa maioria
dos cidadãos do continente americano não entende a ideologia como visão destorcida
da realidade por interesses egoístas. Ele pensa diferentemente, porque vive outra
experiência. Acostumado mais do que a protagonizar, a padecer o egoísmo exógeno
de terceiros; acostumado a ser geralmente vítima de interesses estrangeiros e a sofrer
as consequências do egocentrismo dos poderes coloniais e neocoloniais e do pecado
que se reproduz nas relações humanas de interação coletiva, filho da escravidão,
sabendo que sua vida é um segundo movimento no concerto da história que outros
escrevem desde cinco séculos atrás, percebe a realidade com a perspectiva de quem
a enxerga de fora. Seu presente é deficitário, como o era no Israel do pós-Exílio.
Precisa de um futuro diferente, imagina-o, e busca a maneira de lá chegar. Precisa
do tempo histórico para desenvolver a solução de problemas crônicos e sempre
postergados. Para as sociedades centrais, o passar do tempo significa um risco de
desestabilização. Uma ameaça. Um perigo. O reflexo é conservar, buscar que as coisas
não mudem mas apenas transcorram sem maiores alterações. Nosso homem, em
contrapartida, precisa do tempo como condição de possibilidade para dar respostas
próprias a decisões tomadas por terceiros, inclusive em seu nome. Assim, vive ou
experimenta o conhecimento, mas como visão parcial, sempre perfectível e sempre
condicionada pela situação. Sabe que os interesses egoístas existem. É vítima deles.
Encontros Teológicos nº 64
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113
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
Estou convencido de que numerosas confusões podem ser evitadas
se tivermos o cuidado de mostrar que os mesmos fatos ou textos tradicionais são passíveis de análise sob diferentes perspectivas – em realidade
níveis – que mais se complementam do que se contradizem. Em nosso
caso, isto significa tornar explícitos os marcos epistêmicos envolvidos na
abordagem e na análise, porque mesmo a mediação doutrinal do dogma
eclesial não é isenta das regras que acompanham a complexidade.
Proponho agora três enquadramentos conceituais e, ao mesmo
tempo, vitais: primeiro, o marco epistêmico como suporte precedente
ao discurso conceitual, não importa se este tiver por objeto a fé religiosa
ou outra área. É o que se chama de “pressupostos de fé antropológica”.
Trata-se daquela base logicamente anterior a toda aproximação analítica,
que é irreversivelmente subjacente a qualquer tentativa de fazer ciência,
mesmo teo-lógica. Num segundo momento, a análise entra no terreno
específico da fé religiosa, isto é, no marco teológico que inclui – duplamente – o epistêmico. Enfim, veremos o contexto histórico, o espírito do
tempo do Concílio Vaticano II e da Gaudium et Spes, que é seu produto
final e, provavelmente, mais maduro e mais explícito. Um fruto que vai
além dos sinais dos tempos e exige ser lido e acolhido como um sinal de
Deus, como uma manifestação do Espírito de Deus que temos a obrigação
de reconhecer no magistério pastoral dos Padres conciliares. Este marco
é o mais difícil e controvertido, porque não foi expresso por extenso.
Os Padres o apontam em diversos momentos, mas sem fazer dele uma
construção formal. Nós, porém, somos obrigados a acolhê-lo, porque
está intrinsecamente pressuposto na letra do Concílio.
Por último, antes de concluir esta introdução à segunda parte, vejase até que ponto a distinção entre sinais “dos tempos” e sinais “de Deus”
constitui um salto analítico de dimensões vinculantes. É a passagem do
nível de leitura sociológico – que pressupõe una fé antropológica – ao
nível teológico, da interpretação que assume as bases epistêmicas da fé
antropológica, projetando-as num âmbito de fé especificamente religioSabe que a busca de uma verdade absoluta não pode esquecer a situação relacional
– relativa – de qualquer episteme. Por isso, entende a ideologia apenas como visão
contextual e limitada pela posição geográfica, temporal, social, cultural, a partir da
qual os homens vivem e tentam dar conta da sociedade, dar sentido a suas vidas no
pessoal e no coletivo. A verdade absoluta, imutável, que nega o tempo – mesmo se
a negação seja apenas instrumental – pode ser um postulado formal, uma premissa
provisória na lógica dos meios, mas não é um fim.
114
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
sa.32 Eis o espírito do Concílio que manifesta a docilidade dos Padres
ao Espírito de Deus.
2.2.1 O conceito de Sinais dos Tempos
como marco epistêmico
Qual a lógica conceitual da Gaudium et Spes no nível dos suportes epistêmicos precedentes ao discurso? Quais seus pressupostos, não
importa se estes tiverem por objeto a fé religiosa ou outra área? Eis o
que se chama de nível de fé antropológica.
De um ponto de vista técnico, as ciências sociais do conhecimento descrevem o enquadramento subjacente ao discurso e seus níveis
de estruturação doutrinal, como marcos epistêmicos.33 Já disse que a
expressão “marco epistêmico” se refere ao conjunto de opções gnosiológicas, teóricas e metodológicas, filosóficas e práticas, pressupostas a
qualquer elaboração intelectual, e que a fundamentam como suporte de
sua lógica interna. Sua parte estrutural define-se, normalmente, como
“marco teórico”.
Aqui, na América Latina, até alguns anos atrás, quando se abria
qualquer exposição filosófica ou teológica, era um procedimento docente típico tornar explícitos os pressupostos teóricos. Esta prática de
reconhecimento da contingência e provisoriedade do trabalho acadêmico no plano do conhecimento científico é também, no fundo, um ato
de humildade intelectual. Atualmente, porém, poucos autores dão-se
ao trabalho de explicitar suas opções teóricas, o que, a meu ver, pode
constituir uma mudança de rumo e, igualmente, uma claudicação. Estaríamos aceitando sem discutir, isto é, por submissão intelectual ou por
32
Não se trata de sociologia horizontal e teologia vertical. Isso é uma simplificação
canalha ou, pior ainda, falsidade epistemológica (para evitarmos falar em burrice ou
oportunismo ideológico de restauração de uma filosofia essencialista, identificada a
priori com metafísica). Trata-se de um nível enterrado, isto é, pressuposto e inerente
a qualquer construção, mas não visível, e dois níveis visíveis que são todos, ao
mesmo tempo, verticais e horizontais: o sociológico, que assume a historicidade do
conhecimento e analisa a lógica dos tempos, e o teológico, que acrescenta o sensus
fidei específico e explícito da revelação, sempre para aqueles que aceitamos a Palavra de Deus como dom comunicado no contexto da temporalidade, isto é, na história
de Israel – de Abraão e Jesus de Nazaré – e na História como categoria inerente à
manifestação do Verbo, da Palavra, no Tempo. Eis a complexidade que deve assumir
o discurso teológico, muito especialmente nesta fase pós-moderna.
33
Dependendo da abrangência de seu objeto, serão chamados de modelos ou
paradigmas.
Encontros Teológicos nº 64
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
simples ignorância de nossa tradição local, que existe um pensamento
puro, uma filosofia essencial, apresentada em termos de superioridade
última. Esse fundamento teórico de uma metafísica da verdade – como
suporte último do conhecimento ou como raiz primeira de todo discurso
verdadeiro – finalmente postula a desnecessidade da mediação epistêmica no terreno da teologia, isto é, não se precisa da epistemologia como
ciência do conhecimento em sua dimensão social. Tal metafísica formal
pretende fornecer um conjunto de regras infalíveis mais aptas, per-se,
para conhecer as verdades da fé no nível dogmático. A teologia pastoral
tentaria traduzir tais verdades numa linguagem mais popular, ou mais
adaptada aos homens de nosso tempo.
Eis um tipo de enfoque que frequentemente está por trás quando
se postula que, sendo a Gaudium et Spes uma Constituição pastoral
– subentendido, “não dogmática” – tem menor valor doutrinal que as
Constituições dogmáticas. A intenção básica e a dimensão pastorais
da Gaudium et Spes não é, porém, uma concessão de barateamento da
doutrina para que o povo, quem sabe ignorante ou menos cultivado em
teologia, possa participar das verdades eternas. Ao contrário, é o primeiro
passo doutrinário, sim, sublinho, doutrinário, do Magistério da Igreja,
tendente a encarar o desafio da complexidade. É uma opção deliberada
de mais de dois mil e trezentos bispos reunidos sob a assistência do Espírito Santo34 e que, na docilidade ao Divino, provocaram uma quebra
de paradigma no nível epistêmico, tão vinculante para a teologia quanto
a letra mesma dos documentos.
34
116
Sem que mediassem critérios humanos, funcionais, ideológicos ou políticos, de
afinidade, ou de coincidência filosófica, na pré-seleção dos candidatos teoricamente
mais aptos para declarar a verdadeira fé. No Vaticano II não houve ausências, fora
aquelas, ínfimas, derivadas de uma opção para não comparecer ou para negar o
assentimento de fé como foi o caso Lefebvre. Não houve exclusão de pastores, como
as que vieram depois, quando foi a vez de interpretar a doutrina e impor linhas de
pensamento redutivas, e até contrárias ao espírito dos Padres, fosse através dos
instrumenta laboris, fosse mediante os eleitos e, sobretudo, mediante os marginalizados só pela decisão disciplinar da autoridade central. A nova política de seleção
por afinidade, tal como aconteceu em diversos eventos magisteriais dos anos oitenta
e noventa, bem como na primeira metade da década que inaugurou este século,
parece bem estranha ao acontecimento Vaticano II. No Concílio dos anos 60, não
houve pessoas vetadas, ao contrário, os vetados antes do início viraram peritos
(“sessentismo”?). Houve, sim, comunhão, docilidade ao Espírito e uma impressionante unanimidade de coração e pensamento dos quase dois mil e quatrocentos
bispos de todo o mundo, vindos de diferentes regiões, línguas e culturas, com as
mais diversas idades, tradições e tendências teológicas. Se o digitus Dei non est
hic, será que a digitação humana passou a ser manifestação carismática? Quem
sabe. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Daniel Ramada Piendibene
Mas escutemos, agora, a voz do texto constitucional. Depois de
proclamar que:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de
hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também
as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos
de Cristo [GS-01],
esclarece-se o marco que será objeto de consideração:
O Concílio Vaticano II [...] tem, portanto, diante dos olhos o mundo dos
homens, ou seja a inteira família humana, com todas as realidades no
meio das quais vive; esse mundo que é teatro da história da humanidade
[...] [GS-02]
O ponto de partida é o fenômeno. Está duplamente sublinhado.
Primeiro, porque o Concílio abre sua análise no terreno da experiência
social, acentuando, como caso concreto, a predileção pelos pobres e todos
os que sofrem. Em seguida, porque enquadra a inteira família humana
e o mundo, não como categorias analíticas abstratas, mas como âmbito
histórico de vida da humanidade. A busca de sentido, tarefa tradicional
da filosofia especulativa, agora começa no acontecer histórico:
Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo
momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho;
para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração,
às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e
da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e
compreender o mundo em que vivemos [GS-04].
A realidade em suas dimensões vivenciais, sociais e históricas,
sendo o ponto de partida do discurso de fé, é a fortiori o ponto de partida do conhecimento, o locus epistêmico. Tal marco gnosiológico supõe
igualmente uma perspectiva fenomênico-diacrônica. O conhecimento
como sentido da realidade – no caso dos cristãos, nada mais nem nada
menos que a descoberta da presença e a vontade de Deus – começa com
a análise e o discernimento dos acontecimentos no seu processo de desenvolvimento temporal.
No teatro da história, praticamente nada acontece por geração
espontânea. As quebras de modelos, como as mudanças e os fatos que as
provocam, se inscrevem em processos coletivos. Interessa destacar agora
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
a mudança no paradigma da filosofia, que ocorre entre Kant e Hegel.35 O
primeiro, assenta as bases formais que fornecem ao discurso sobre o universo empírico uma consistência própria, autônoma, na área gnosiológica.
Não há necessidade de convocar premissas teológicas – exógenas – dentro
do objeto de estudo. A realidade empírica, em seu nível, vira passível de
um conhecimento completo, sem necessidade de ultrapassar os limites
epistêmicos de sua própria consistência e autonomia. Na seguinte geração, Hegel acrescenta um novo salto qualitativo, propondo e praticando
a inversão do processo discursivo no âmbito do conhecimento. O ponto
de partida do discurso filosófico será a multiplicidade dos fatos históricos. A realidade coletiva, incorporada em chave diacrônica mediante o
método da observação e agrupação dos fenômenos sociais por indução
associativa, chega a ser o primeiro insumo para conhecer o espírito de
uma época ou fase da história no cenário da vida social.36 Tal espírito do
tempo (Zeitgeist) se manifesta, por exteriorização, no universo cultural
coletivo das sucessivas civilizações.37
Não é o momento de entrar aqui nas consequências da filosofia
hegeliana na evolução doutrinal da dogmática cristã. Para isso segue – a
modo de excurso – uma breve nota no fim deste capítulo. O que interessa
aqui é destacar que a mudança no método da filosofia europeia de Kant a
Hegel preparou o terreno para a recuperação da gnosiologia semítica de
perscrutar os sinais dos tempos como marco de conhecimento da vontade
divina no tempo da história, e como chave para aprofundar o sentido da
Palavra de Deus na vida do Povo da nova Aliança.
Baste para fechar estas observações a expressão explícita do problema epistêmico que a Gaudium et Spes deixa em aberto, sem propor
velhas receitas:
118
35
Hoje parece mentira, mas a doutrina católica demorou mais de um século para aceitar a mudança de paradigma no pensamento moderno como alternativa intelectual
legítima, mesmo no plano da interlocução filosófica. Modernidade foi sinônimo de
maldade sacrílega e desvio satânico, por parte de seus cultores.
36
É importante notar que, na teologia católica, o pensamento de Hegel demorou mais
de um século a deixar de ser suspeito (cf. infra, o Excurso).
37
Nos últimos anos, desde 2007, o termo Zeitgeist passou a ser utilizado num projeto
cultural desenvolvido como série de filmes documentários, divulgados gratuitamente
na rede, sobre a situação social e financeira no mundo desenvolvido e a utopia de
uma sociedade capaz de funcionar sem dinheiro. O líder do movimento, Peter Joseph,
vive nos Estados Unidos.
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A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas
e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra.
Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e [...] seus modos de
pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo
que podemos já falar de uma verdadeira transformação social e cultural,
que se reflete também na vida religiosa. [...] descobrindo gradualmente
com maior clareza as leis da vida social [...]. Aumenta o intercâmbio
das ideias; mas as próprias palavras, com que se exprimem conceitos
da maior importância, assumem sentidos muito diferentes segundo as
diversas ideologias. [GS-04]
E também:
A actual comoção dos ânimos, e a mudança das condições de vida, estão
ligadas a uma transformação mais ampla, a qual tende a dar o predomínio, na formação das mentes, às ciências matemáticas e naturais, e as
que tratam do próprio homem [...]. Esta mentalidade científica modifica
amplamente a cultura e os modos de pensar, de uma maneira diferente
do que no passado. 38 [GS-05]
Excurso: O pensamento filosófico de Hegel na teologia
A primeira pontualizaçao importante a se fazer, para evitar
equívocos à teologia católica, é definir o objeto do pensamento
hegeliano. O discurso de Hegel é filosófico. Nunca interessou ao
filósofo entrar na área da teologia. Mais ainda, por diversas vezes
afirmou o contrário. Tentou, sim, uma metafísica idealista do acontecer temporal, mas sempre permanecendo dentro dos limites de
seu objeto filosófico e, como bom alemão, foi completamente fiel
a suas premissas inteclectuais; sem falhas. Assim, dizer que sua
visão é “panteísta” demonstra ignorância e absurdidade. Significa
projetar na filosofia do autor um nível estranho a suas intenções
e argumentos. Hegel nunca entrou no mérito teológico da terceira
pessoa da Trindade. Em todo caso, desde uma teologia que ele não
quer praticar, sua iniciativa poderia ser catalogada como panteofania.
Eu acrescentaria de caráter sincrônico. Isto é: a busca, pelo conhe38
Hodierna animorum commotio et in vitae condicionibus immutatio cum ampliori rerum transmutatione connectuntur, qua efficitur ut in mentibus efformandis scientiae
mathematicae et naturalres vel de ipso homine tractantes [...]. Haec mens scientifica
rationem culturalem modosque cogitandi aliter quam antea fingit.
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
cimento humano imanente, das manifestações históricas da “Ideia”
ou “Espírito absoluto” como reflexo – simbólico e mediatizado – do
espirito comum à natureza humana, no desenvolvimento diacrônico
da realidade temporal. Na melhor das hipóteses, a manifestaçao
do Espírito absoluto seria o reflexo, no nivel filosófico, de um plano
divino, a-priori excluido do objeto da disciplina que Hegel pratica.
Hegel jamais identifica a Idéia com a pessoa do Espírito Santo, nem
sequer no plano da especulação filosófica. O problema é que a
perspectiva pneumo-teofânica foi objeto de diversos sistemas, desde
Montano a Joaquim de Fiore e seus herdeiros. Por isso, a teologia
católica sempre ficou com um pé atrás, quando alguns teólogos ou
líderes carismáticos pretenderam identificar suas intuições com a
encarnação ou manifestação empírica do Espírito Santo. A tradiçao
dogmática protestante, especialmente nos casos de Tillich, Moltmann
e Pannenberg, para citar apenas os mais conhecidos, não teve dificuldades em assumir a intuição filosófica hegeliana como base de
trabalho na área teológica. Voltando a Hegel, o que sim podemos
afirmar é que, a partir do método histórico indutivo, a Fenomenologia do Espírito devolveu à filosofia europeia aquela perspectiva do
pensamento semita que sustenta a lógica epistêmica do povo de
Israel, desde Abraão a Jesus de Nazaré. O conhecimento – ainda no
nivel só imanente – é uma incorporação indutiva e diacrônica, cujo
ponto de partida reside na memória dos fenômenos históricos vividos
pelo(s) Povo(s). No caso de Israel, inclui, mediante uma dialética de
respostas presentes e lembranças históricas, a busca da vontade do
Senhor e do sentido da caminhada coletiva, em fidelidade à Aliança
que parte da iniciativa divina de eleição. Por último, uma breve nota
sobre o alcance da lógica dialética: apenas assinalar que a dialética
hegeliana: a negação – antítese, não significa destruição antinômica,
mas incorporação, dir-se-ia, sincrônica, numa ótica funcional. No
sistema hegeliano, a lógica da manifestação, como processo dialético, deve entender-se em termos de uma sucessão diacrônica de
exteriorizações, onde o autoconhecimento do espírito absoluto se
processa através dos povos e suas construções jurídicas, filosóficas e culturais. O “espírito” se conhece a si mesmo por integração
inclusiva do novo, como processo de superação das carências
epistêmicas precedentes. A negação não opera como aniquilação do
contrário, mas como momento de superação sequencial de formulações anteriores (teses), que, como consequência da aparição de
novos fenômenos, resultam insuficientes e passam a ser criticadas
(antíteses) por suas carências.
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2.2.2Os Sinais de Deus – no contexto dos sinais
dos tempos – como marco teológico
Os meios de comunicação colocaram o pensamento humano, e
a doutrina cristã, na segunda metade do século XX, frente ao conhecimento da diversidade cultural e a pluralidade de valores ao longo do
planeta. Assim, ao lado do marco gnosiológico essencialista, que opera
por redução hierárquica do múltiplo mediante submissão ao uno – o que
exige a aceitação prévia de um juízo implícito de valor (seus críticos
falam de ocultação) – abre-se caminho à busca de sentido mediante o
discernimento dos valores evangélicos, no contexto da multiplicidade
dos fenômenos históricos como determinantes categóricos na dinâmica
social de formação e atualização do conhecimento. O conceito de sinais
dos tempos, eixo principal, senão vertebral, das linhas de sentido da
Gaudium et Spes, aparece como um instrumento exegético apropriado à
complexidade de um novo cenário conceitual e de existência eclesial.
No contexto da historicidade do conhecimento, a Gaudium et
Spes introduz uma distinção que passou relativamente desapercebida
na teologia sistemática. Os sinais dos tempos, vinculados ao marco
epistêmico da teoria social do conhecimento, conforme a Constituição,
servem como plataforma para descobrir os sinais de Deus. A afirmação
do Magistério conciliar é que Deus se manifesta através dos fenômenos
históricos. O espírito do tempo constitui um indicador na tarefa coletiva
de discernir a vontade de Deus na situação presente. O alcance desta
opção doutrinal fica patente:
O Povo de Deus, movido pela fé com que acredita ser conduzido pelo
Espírito do Senhor [...] esforça-se por discernir, nos acontecimentos, nas
exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens
de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de
Deus. [GS-11]
É oportuno assinalar aqui outra mudança de rumo, neste caso de
atitude, mas que constitui um leitmotiv de toda a Constituição. O respeito
e a pluralidade. A Igreja, descrita nessa ocasião – mais uma vez e não
por acaso – como Povo de Deus, realiza seu discernimento – juntamente
com os homens de hoje – participando de igual para igual nos trabalhos
inerentes à cidade terrena [GS-43]. Com eles compartilha a tarefa de
pensar a realidade: discernir os acontecimentos. A responsabilidade
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
de construir a sociedade: as exigências. E os valores que orientam as
opções: as aspirações.
Se colocarmos esta afirmação (GS-11) no contexto do parágrafo que conclui o proêmio (GS-03) o texto atinge outra profundeza
epistêmica:
O Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus [... manifesta] a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família
humana, na qual está inserido, [...] estabelecendo com ela diálogo sobre
esses vários problemas [... assim] oferece ao gênero humano a sincera
cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal [...]
Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objectivo:
continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo, que
veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para
julgar, para servir e não para ser servido. [GS-03]
A atitude que preside o discernimento é de solidariedade, respeito,
amor, diálogo, cooperação. O objetivo é imanente, histórico: instaurar a
fraternidade universal. Mas não se trata de dominar mediante a espada
do poder temporal – nenhuma ambição terrena – senão de testemunho,
compaixão e serviço. O discernimento da vontade Deus se processa num
âmbito coletivo – o sujeito ativo do conhecimento é o Povo de Deus – e
também plural, isto é, o Povo de Deus é povo entre povos. Por último, é
interativo, o que significa, na linguagem da epistemologia, conhecimento
social. A construção da fraternidade universal, sendo um valor necessário
e irrenunciável, e permanecendo a tarefa essencial à vocação e à missão,
do ponto de vista epistêmico constitui também um meio que transcende
sua consistência própria. É o caminho histórico de busca e conhecimento
da vontade de Deus.
Do ponto de vista teológico, a distinção entre sinais dos tempos e
sinais de Deus no contexto de uma sociedade complexa e plural, preserva,
de um lado, a autonomia do temporal, sua consistência própria como âmbito de conhecimento, mas, por outro lado, distingue, sem separar, uma
dimensão de presença divina que se manifesta no íntimo da criação.
Em ambos os níveis, temos pressupostos gnosiológicos específicos. O conhecimento imanente supõe opções baseadas em valores
(axiológicas), cuja validade não é verificável no plano estritamente
secular ou empírico. Eis um tipo de fé, secular, que não ultrapassa o
122
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nível estritamente antropológico39. O fundamento último dos paradigmas
como conjunto de operações cognitivas de incorporação dos dados da
realidade fenomênica – mediante adjudicação de valor – descansa numa
lógica interna de sentido relacional, que exige a aceitação de premissas
autovalidantes.
A doutrina católica que se expressa na teologia não foge desta
regra, nem poderia. Os dogmas, ainda os mais abstratos, descansam
em premissas e pressupostos filosóficos. A Gaudium et Spes alarga este
procedimento, incorporando na reflexão teológica a dimensão social de
todo conhecimento. Isto não significa que a teologia seja apenas uma
ciência social. A relação entre teologia e ciências sociais é mais complexa.
Acontece que a dimensão social de qualquer tipo de conhecimento está
presente, também, na formação do discurso teológico. Assim, não seria
errado afirmar que a teologia, enquanto disciplina tributária de seu tempo
histórico, também possa ser catalogada, in aliqua parte, como ciência
social. A sua construção doutrinal, porém, guarda uma relação diversa
com muitos elementos comuns à gnosiologia geral, porque inclui um
nível específico de complexidade epistêmica. Aceita a densidade própria
deste nível – distinguir sem divorciar – a partir do contexto diacrônico,
a tarefa de discernimento se projeta para um âmbito diferenciado: a
descoberta de vontade de Deus como resposta humana à sua iniciativa
amorosa e salvífica.
Em resumo, o discurso religioso como elaboração teológica stricto
sensu, pressupõe a fé antropológica como estrutura epistêmica. A dimensão interativa e intersubjetiva do conhecimento histórico, compartilhado
com o resto da sociedade plural, ultrapassa o terreno estritamente metodológico e se torna uma construção doutrinal e um âmbito sistemático
para descobrir a transcendência divina, como alteridade sincrônica, no
desenvolvimento da experiência diacrônica.
A distinção entre os sinais dos tempos e os sinais de Deus, da
Gaudium et Spes, constitui uma novidade doutrinal no magistério constitucional da Igreja: ela abre o caminho para uma teologia das realidades
históricas, cuja epistemologia é muito mais correspondente à perspectiva
epistêmica semita, escolhida pelo Pai para conformar o modo de conhecimento humano do Filho em sua natureza encarnada. Eis o último ponto
desta segunda parte.
39
Juan Luís Segundo chamava esses pressupostos de plano da fé antropológica.
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
2.2.3O espírito do Vaticano II como suporte epistêmico
da relação entre Deus e seu Povo
2.2.3.1 O contexto que não vemos no texto
O que estamos fazendo aqui? Estamos buscando uma capacitação
específica para dar melhor resposta a uma vocação, isto é, a um chamado
cuja iniciativa, pensamos, seja de origem divina. Mais do que pensamos,
confessamos. Por isso estamos juntos esta noite, neste nosso caro ITESC,
porque acreditamos, mais ou menos, nas mesmas coisas. Cuidado. Digo
“mais ou menos” não porque nossa fé seja um “mais ou menos”. Não!
É porque cada um, confessando o mesmo Pai, o mesmo Cristo morto e
ressuscitado, e confessando que fomos chamados a sermos suas testemunhas pela resposta ao Espírito, mediante nosso assentimento, cada um
entende sua resposta à vocação a partir de uma visão do mundo que lhe
é própria, pessoal, mesmo se formada no âmbito do coletivo social que
temos recebido desde antes de sair do ventre materno e buscamos mudar
com nossos atos cada dia que passa. Eis o mais ou menos. Recebemos
a fé segundo uma situação de vida que envolve a intercomunicação, o
aprendizado por meio da interação na base de categorias para a incorporação de conceitos e, ainda, se não bastasse tão complicada simplicidade, é uma situação que envolve e induz valores transformando-se no
decorrer do tempo e dentro do espaço que nos tocou como pátria. Voilà!,
diz o francês.
Assim, os que participamos deste Congresso Teológico, em princípio, temos uma fé comum. Estamos aqui porque buscamos aprofundar
seu alcance e suas exigências. Porém, trata-se de um ponto de partida ao
mesmo tempo homogêneo e heterogêneo. Estamos reunidos em nome de
nosso Deus, em nome de Jesus de Nazaré morto e ressuscitado, constituído Senhor e ungido de Israel, ou seja, Messias, Cristo. Confessamos uma
fé idêntica, mas cada um a vive em consonância com a sua experiência de
Deus e a sua história particular. Dentro dessa história situa-se o Concílio
Vaticano II, como acontecimento que atualizou a forma de interpretar as
exigências da fidelidade à Palavra de Deus no mundo atual.
Muita coisa tem mudado desde que começou o Concílio Vaticano II até hoje. Os contextos de convivência na sociedade têm sofrido
simplesmente mutação. Não mais existem. Não sobrou nada! Ao ponto
que, para explicar aos mais jovens a razão de muitas frases da Gaudium
et Spes terem sido finalmente aprovadas como hoje as lemos, temos que
124
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contar histórias da vida quotidiana dos Padres conciliares que eram óbvias
a eles, mas hoje poucos conhecem. Então, onde fica a contextualidade
como elemento hermenêutico?
Precisamente no impacto que a Gaudium et Spes recebeu da sociedade e o impacto que os Padres conciliares provocaram, através do povo
cristão na evolução da sociedade e da Igreja. Aqui é necessario fazer uma
pequena distinção conceitual. Contextualidade aponta ao mesmo tempo,
pelo menos, para dois campos semânticos: um externo e outro interno.
Ambos, estão sempre mútua e interativamente relacionados. O primeiro
é o ambiente social e cultural de vida dos protagonistas do Concílio.
O segundo é o conjunto de supostos comuns no terreno doutrinal que
a Gaudium et Spes desdobra e projeta. É precisamente neste segundo
campo que se produz a principal consequência teológica.
O marco teológico, o marco daquela fé religiosa agora assumida,
professada e confessada, é o enquadramento que coloca os fatos de nossa
história no nível da vontade divina, no nível do plano de Deus na minha
vida pessoal, na vida da comunidade que me rodeia e me conforma, e
na sociedade e no tempo que Deus escolheu para me chamar à vida.
Em nosso caso, entre outras coisas, o século XXI, com suas quebras
de paradigmas discursivos40. É o marco último de sentido da revelação,
nas circunstâncias presentes e cambiantes de nossas existências. “Marco
teológico” significa explicitar quais os elementos que privilegiamos na
hora de interpretar esse patrimônio comum que é a Palavra de Deus cuja
proclamação se atualiza na história. É o desenvolvimento do marco de
fé no terreno da doutrina.
Santo Inácio de Loyola, um santo moderno para tempos pósmodernos, ao começar os Exercícios Espirituais, propõe o que ele chama
Princípio e fundamento. Antes de entrar nessa verdadeira ginástica do
espírito que são os Exercícios, ele pára, a fim de explicitar seu marco
epistêmico. Ali apresenta, como método permanente, como lógica subjacente a toda a sua teologia, a exigência e a técnica, de focalizar (contemplar) sempre o central, aquilo que é essencial em relação ao resto.
Porque o resto é resto! O resto é acessório. O Princípio e fundamento
ensina a distinguir entre a finalidade última de nossa vida, que nunca
deve perder-se como eixo e foco – amar e servir em tudo a Deus – dos
40
Sem contar os quebra-cabeças da teologia de alguns professores, como quem vos
fala, e os quebra-quebras dos protestos que herdamos daqueles anos 60, que foi o
decênio do Concilio e de Medellín.
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
meios para chegar a tal fim. Os meios são indiferentes porque subordinados ao amor de Deus41.
Em sociologia, e assim aproveito para mostrar aquilo que disse
bem no início das diferentes leituras para um mesmo fato, esse procedimento, técnico, se chama descobrir ou estabelecer a variável principal
para focalizá-la, e colocar as demais variáveis como variáveis acessórias.
Vejam como o que eu disse sobre sinais de Deus nos sinais dos tempos
aqui ganha sua consistência dogmática. Em nosso caso o ponto central,
a variável principal, é a vontade de Deus. O núcleo central é Ele. Nós
somos resposta, interlocutor que responde a uma iniciativa, nós somos
um segundo momento, somos consequência, epifenômeno derivado,
em certo modo deuterosis42. Ele é o fim. Nós e nossas circunstâncias
históricas, nossos desejos e projetos, são subordinados, porque estão na
ordem dos meios. É Ele que constitui o centro. Nós, em contrapartida,
somos resposta, estamos em posição excêntrica. Mas, como pessoas
humanas, como natureza humana, para falar na linguagem dogmática
da cristologia de Calcedônia, somos seres no tempo. Conhecemos em
perspectiva diacrônica, e aqui esse nós passa a querer dizer, também, nós
como Igreja. A Igreja! Aqui temos uma chave epistêmica da Gaudium et
Spes que se projetou na eclesiologia43.
Vejam que aqui não estamos tratando dos pressupostos metodológicos da revelação nem sobre a influência teórica da Dei Verbum na
evolução dos outros documentos conciliares. Desde uma perspectiva
de fé católica, a partir do Concílio Vaticano II e como consequência de
suas orientações disciplinares na área doutrinal, passou a ser perfeitamente legítimo convocar a história, a sociologia do conhecimento, a
psicologia arquetípica e as ciências humanas como elementos diferentes,
126
41
A inferência inaciana diz respeito aos meios. É algo assim como uma apaixonada inferência. Educar o desejo, suprimir, pelo amor ao fim último, o apego ao fim imediato,
contingente, histórico, estratégico ou tático, é deixar que o amor de Deus eduque o amor
humano. Um amor do Deus revelado no homem Jesus e encarnado no próximo.
42
Deutérosis (hebraico: Mishná) O termo aqui se entende no sentido da Didascalia
apostolorum: “Segunda parte”, isto é, derivação e resposta. Cf. Marcel Simon, Le
Christianisme antique et son contexte religieux, Vol. II. Art. The ancient Church and
Rabbinical Tradition; pp. 379-ss.
43
A única forma histórica de em tudo amar e servir a Deus é amando e servindo aos
irmãos, porque são imagem, semelhanças e sacramento de Jesus, o Filho de Deus
que nos revelou o amor do Pai. A Igreja está a serviço da sociedade, do homem,
fora do centro epistêmico. Só é plenamente fiel e capaz de autoconhecimento se,
contemplando o amor de Deus ao homem, ela aceita ser a sua escrava e servidora.
Antropocentrismo? Não! Cristo-centrismo, isto é: irmão-centrismo.
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mas convergentes ao discurso da “fé que busca entender” e proclamar
a Palavra.
Uma leitura histórica ou sociológica, por exemplo, da história de
Israel ou da pregação de Jesus, não significa, de ofício e irreversivelmente,
uma visão redutiva ou desviada no plano teológico. Da mesma forma
que, durante séculos, convocamos a filosofia platônica ou aristotélica
como instrumento auxiliar da pesquisa teológica, hoje podemos, e de
certa forma devemos, convocar as ciências humanas em sua interdisciplinaridade para entender melhor a humanidade do Povo de Israel e do
próprio Jesus, nascido, por vontade do Pai, no seio da história daquele
Povo e dentro da matriz gnosiológica própria da cultura semítica, com
sua tradição epistêmica “não filosófica” mas diacrônica.44
2.2.3.2 A episteme de Jesus de Nazaré, o homem israelita
Chegamos, assim, ao último ponto desta segunda parte.
Ficou estabelecido que a Gaudium et Spes, ao incorporar a dimensão social e histórica do conhecimento no âmbito da doutrina, mediante a categoria epistêmica dos “sinais dos tempos”, recupera para o
discurso dogmático a perspectiva gnosiológica que é própria da cultura
israelita, isto é, que constitui o contexto de vida e pensamento de Jesus
de Nazaré.45
A historia de Israel está como que duplamente inserida na natureza humana do Verbo encarnado.46 Primeiramente, porque o modo de
conhecimento próprio do Povo da Aliança opera a partir de uma matriz
diacrônica. Até onde sabemos, é o único caso nas culturas antigas. Jesus,
como natureza encarnada, conhece, humanamente falando, mediante um
relacionamento de conceitos que se incorporam ao conjunto de sentido
por memória, lembrança, narração, e atualização da história na situação
presente. Não é qualquer história. É uma história de respostas pessoais e
coletivas de um grupo humano (Povo) que ficou unidade conceitual como
44
Cf. Neher, André. La no filosofía hebrea; em Historia de la Filosofía, s-XXI, T. I, pp.
Xxx. Íd. Concepto del tiempo y de la historia en la cultura judía, em Las culturas y el
tiempo, Salamanca, 1979, pp 169-190.
45
E também dos discípulos da Igreja primitiva, isto é, da geração apostólica.
46
Digo o Verbo Encarnado, para falar numa linguagem mais familiar a todos, mas, para
ser consequente com nossa perspectiva epistémica, deveria dizer a Palavra (dabar)
Encarnada (basar + nefesh), vindo a nós numa embalagem epistêmica semítica.
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
resposta a uma eleição, a uma Aliança.47 São pessoas que conhecem a
realidade e se conhecem a si mesmas a partir de um ponto de referência
exterior. Um modelo de referência, “relativo-a”, exógeno.
Em segundo lugar, porque os mecanismos particulares do conhecimento humano de cada unidade cultural e linguística, no decorrer
dos séculos, vira estrutura sincrônica, matriz arquetípica no nível das
imagens primordiais.
O processo epistêmico semítico está constituído por estas duas
chaves de sentido no coletivo do grupo israelita: Alteridade. Isto é, conhecimento por auto-identificação a partir de um primeiro movimento
externo – e no caso do Povo da Aliança, oriundo de um Senhor transcendente ou totalmente Outro – que lhe confere identidade como Povo de
Deus. E historicidade. Isto é, incorporação diacrônica. Sentido do tempo
como variável principal, dentro do sentido da realidade.
Em resumo. Alteridade, que determina uma percepção essencialmente relacional e derivada em relação com a esfera do Absoluto transcendente, mais intimidade, porque o Senhor que fala desde a história, fala
no mais íntimo do coração do homem, da pessoa. Imprime sua iniciativa
de amor e salvação nos níveis arquetípicos da identificação profunda.
Finalmente, historicidade. O conhecimento de Deus, que em Jesus atinge
a plenitude, se processa humanamente como memória, anamnese, de um
Senhor que foi e é Pai misericordioso ao longo de toda a história de Israel.
Eis o que Jesus mostra aos discípulos de Emaús. Eis o que determina uma
perspectiva diacrônica, onde o tempo presente faz sentido em relação à
experiência vivida pelo coletivo ao longo dos séculos.
Para o Jesus histórico, perscrutar nos sinais dos tempos os sinais de
Deus é um mecanismo espontâneo, próprio da cultura que o Pai escolheu
com berço epistêmico da revelação. A Gaudium et Spes também constitui
um retorno às fontes do ponto de vista da gnosiologia. Que consequências doutrinais apresenta esta novidade – tradicionalíssima – no terreno
dogmático? Será apenas uma dica pastoral? Sim e não. Sim, porque a
vida pastoral passa a ser uma dimensão do conhecimento teológico. Não,
porque o movimento epistêmico que parte da realidade fenomênica não
pode ficar, apenas, como uma dica que permanece na superfície. Deve
ir ao nível profundo, inclusive das imagens arquetípicas.
47
128
Aliás, também não é qualquer história. É uma história de salvação.
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Em segundo lugar, porque os mecanismos particulares do conhecimento humano de cada unidade cultural e linguística, no decorrer
dos séculos, viram estrutura sincrônica, matriz arquetípica no nível das
imagens primordiais.
O processo epistêmico semítico está constituído por estas duas
chaves de sentido no coletivo do grupo israelita: Alteridade. Isto é, conhecimento por auto-identificação a partir de um primeiro movimento
externo – e no caso do Povo da Aliança, oriundo de um Senhor transcendente ou totalmente Outro – que confere identidade como Povo de
Deus. E historicidade. Isto é, incorporação diacrônica. Sentido do tempo
como variável principal, dentro do sentido da realidade.
2.2.3.3 A intimidade de Deus no íntimo do homem:
Illum oportet crescere
Como exemplo da interdisciplinaridade que a Gaudium et Spes
inaugurou na teologia sistemática, gostaria de fazer um pequeno exercício de leitura sincrônica da experiência de Deus no coração da pessoa
humana. Vocês lembram que falamos duas coisas: Que a dimensão
sincrônica do conhecimento mostrava como as experiências históricas
chegam a ser imagens primordiais e que os fenômenos podiam ser lidos
desde diferentes níveis, sem divorciar por contraposição antinómica o
antropológico do teológico. Eis um ponto que pode ser lido a partir das
duas perspectivas.
Tinha preparado um exemplo de leitura teológica que integra a
experiência de Santo Agostinho, quando descreve Deus como o mais
íntimo da minha intimidade, com o ponto de ancoragem e passagem que
constitui o arquétipo de centro para o inconsciente coletivo, na perspectiva que Jung descreve como Selbst ou Self. O mais íntimo equivale ao
coletivo: o ponto onde, para que Deus cresça, o ego deve diminuir.
Aqui, infelizmente, tenho uma pequena discrepância, bem que só
aparente ou semântica, com uma coisa que o Padre Libânio disse ontem.
Pena que não esteja aqui para compartilhar esta nuance. Se nós somos
resposta, somos segundo momento, somos dêutero-phainomai, então:
É necessário que Ele cresça e eu diminua. É necessário que Ele ocupe
o espaço central em minha existência histórica, que Ele seja meu foco,
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
o sentido permanente e último de meus projetos e desejos48, o objeto
de meus desvelos, o grande amor de minha vida e, assim, como por
acréscimo, que minha tendência espontânea ao egocentrismo, diminua.
O que acontece é que, quanto mais cresce Deus em nosso centro, quanto
mais espaço Ele ocupa em nosso ser, em nossa alma, em nossas decisões
e intenções, em nossa vida quotidiana e escondida, sem querer e sem
sequer nos darmos conta, aí sim, mais nós crescemos. Aqui entramos
no terreno do mistério da gratuidade divina. E isto também é dialética,
a dialética da alteridade, da presença divina, da comunhão. Mistério de
santidade. É necessário que Ele cresça e eu diminua, porque se Ele cresce,
nós nos convertemos em melhores instrumentos de sua ação. Claro que
crescemos! Por acréscimo, como epifenômeno.
Espero poder mostrar que sempre é possível visualizar os fenômenos e processos desde diferentes chaves de leitura. Desde una chave
epistêmica, secular, científica, esta dialética é muito boa, profundamente
sadia para a pessoa. Jung a descreve como Princípio de individuação:
Quanto mais o homem aprende a distinguir entre seu ego como posição
excêntrica (como fora do centro, isto é, auxiliar) e o centro da alma –
self – como eixo real do que acontece nele, quanto mais o homem as
percebe como instâncias diferentes, como fronteira, como lugar onde a pessoa transcende seu ego
centrípeto, mais invulnerável se torna ao desequilíbrio, à depressão e, paradoxalmente também, à
esquizofrenia. Eu sempre faço um desenho – gosto
muito de desenhos nas palestras – que representa
um relógio de areia. É um símbolo, analógico, do
funcionamento de nossa pessoa.
Assim vemos como, quanto mais se desce
da parte de cima, aberta, luminosa, para a profundidade, mais parece estreitar-se e ficar fechada a
profundeza. É como se estivermos para chegar a
um ponto de estrangulação. Porém, na parte mais
48
130
A posmodernidade de Inácio de Loyola reside, precisamente, em sua antropologia, que
ensina a educar o desejo: ensina que o desejo é passível de educação, de exercitação.
Algo que parece tão selvagem, espontâneo e incontrolável como o desejo, pode ser
educado, domesticado, orientado para aquilo que é mais conforme com nosso fim
último, não pela submissão do desejo à razão, mas pelo enquadramento no amor de
Deus como centro, eixo e sentido. O reto sentir precede o reto pensar. A ortofrônesis
precede epistemicamente tanto a ortodoxia como a ortopráxis.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Daniel Ramada Piendibene
estreita, mais difícil de visualizar, existe uma passagem onde o relógio
se abre para outra parte, para outra dimensão. Para uma profundeza que
desde a parte superior é impossível ver. O ponto de passagem funciona
como ponto de ancoragem na raiz da espécie, no coletivo. O que Jung
chama de inconsciente coletivo.
Agora, se o mesmo fenômeno se visualiza ou se enxerga desde a
experiência mística, é nesse ponto, nesse lugar que Agostinho chama “o
mais íntimo de minha intimidade” (chave ainda epistêmica antropológica,
arquetípica, da psicologia profunda), é ali que aparece a condição de possibilidade para discernir a presença do sagrado. Para escutar sua voz.
O âmbito onde antropologicamente se opera a passagem do
pessoal para o coletivo é a condição de possibilidade para o homem se
tornar capaz de chegar a ser o que Rahner chamou ouvinte da Palavra,
do chamado, da voz do Senhor (chave epistêmico-teológica). Mesmo
fenômeno, diferente paradigma analítico. Os níveis analíticos, quando
bem distinguidos, não se contradizem, se complementam.
Eis o marco da nossa antropologia teológica: o homem é capaz de
dialogar com Deus, é “capaz de Deus”, capax Dei, e nessa capacidade
repousa ou consiste sua condição de segundo momento, sua potencialidade, livre, de dar a resposta. Deus vem em Primeiro. O homem vem
depois. O homem recebe seu ser de Deus, isto é, ele “chega a ser” como
resultado de um ato de outro que o chama à vida, um ato, aliás, de amor
pessoal. Deus chama a cada um por seu nome: Abraão, sai de tua terra! e
o homem responde: aqui estou. Se o homem é historicamente responsável
de seus atos, é porque antes disso é antropologicamente respondente,
capacitado para responder. Na visão bíblica, a resposta humana acontece
no interior de uma relação descrita como Aliança, e essa Aliança não é
um elemento contingente ou acréscimo acidental. Na matriz do homem, a
relação de resposta à proposta de Aliança que Deus lhe oferece, faz parte
essencial de seu ser. Assim, ele recebe sua existência de outro, a recebe
desde fora. Mas só fica constituído, completo, quando decide responder
aceitando sua parte na relação de Aliança, quando a iniciativa de fora é
reconhecida e internalizada, porque esse fora só pode ser experimentado
dentro, no mais íntimo de seu interior.
Mas cuidado, que isto é muito lindo quando se diz assim, em
abstrato: Ah que bonito! Que coisa mais mística! Deus nos fala aqui
dentro, na intimidade. Porém, mesmo se Deus chama a cada um de nós
por seu nome, pessoalmente, não nos chama individualmente, como diz
Encontros Teológicos nº 64
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
o Concílio49: chegar a ser homem, mediante a entrada numa relação de
Aliança, tem uma dimensão coletiva! Não fomos chamados cada um
para si, mas para formarmos um povo; um Povo santo, porque de fato
já fazemos parte de um povo. Em certo sentido, fomos povo antes de
sermos indivíduo. Nascemos no seio de um povo, de uma família, de
uma realidade temporal, de uma história que reflete no profundo de nossa estrutura arquetípica. Somos pessoas históricas. Porém não somente
pessoas históricas em abstrato, somos o fruto dessa história. Vivemos
no século XXI, no Brasil, em Santa Catarina, na América Latina, num
mundo onde cada ano o conhecimento duplica aquilo que era conhecido
no ano anterior.
Quando nos chamou? Neste momento, em tempos de posmodernidade; em tempos de fragmentação; em tempos de dissolução do método
discursivo do conhecimento; no pós-guerra fria. Aí vem a Gaudium
et Spes. Para que nos chamou? Para sermos santos como Ele é Santo,
para tornar-nos santos, para chegarmos a ser santos em cada momento,
santificados pelo acolhimento de sua vontade. Recebemos a fé, que se
atualiza mediante a tradição, para virarmos resposta. Somos a resposta do
homem no tempo da história e na comunhão dos valores que confessamos
e tentamos praticar, todos os que acreditamos na ressurreição de Jesus.
Marco de fé, que vem através da escuta (fides ex auditu), da interlocução, da alteridade em comunhão, em sociedade. Marco teológico,
de reflexão da fé que busca entender (fides quærens intellectum) para
virar resposta em santidade: marco de ação que permita a projeção das
palavras, atitudes e obras do dabar divino. De Jesus, o Nazareno. Aqui
é onde o marco epistêmico se transforma em marco teológico, mediante
uma atualização permanente dos valores revelados em e através da Palavra e que exige, de forma inerente, irrenunciável, a análise da situação,
complexa e em permanente mutação. O homem conhece a partir de sua
história, de sua situação coletiva. Conhece, mediante a incorporação dos
dados empíricos a uma base de sentido que é irrenunciavelmente social
e diacrônica.
Assim, o marco teológico exige, ao mesmo tempo, um marco de
estrutura axiológica. É fé que se expressa em valores, em atitudes, em
respostas de amor ao Amor primeiro. É fé que se projeta, se transforma
em obra, “as obras da fé”, se expressa na vida prática – práxis – e tenta
49
132
GS 3xx.
Encontros Teológicos nº 64
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Daniel Ramada Piendibene
permanecer em sintonia com a vontade do Pai, com a santidade do Pai,
ao ponto de transformar as estruturas de convivência para que cheguem a
ser melhores cada dia, melhores meios e também veículos e instrumentos
compatíveis com os valores revelados em Jesus.
Conclusão
Perscrutar os sinais dos tempos como metodologia teológica
pressupõe admitir – e incorporar – a mudança de paradigma nas regras
da filosofia que, a partir de Hegel, inverte o método dedutivo para tomar
a realidade empírica, fenomênica, como ponto de partida do processo
epistêmico e, consequentemente, do discurso filosófico (initium). Nessa
operação há algo mais do que uma concessão dos Padres conciliares ao
pensamento moderno ou uma adaptação a seu espírito. Há, primeiro, uma
tomada de consciência sobre a complexidade da tarefa discursiva em sua
dimensão diacrônica. O conhecimento humano nasce em um contexto de
temporalidade e história, isto é, de sociedade e interatividade subjetiva.
Não são elementos a isolar ou subordinar em altares da eternidade do
discurso ou de sua validez formal, meta-temporal; antes, formam parte
estrutural, ou então, substancial, do conhecimento humano. Mas há
também um segundo elemento, especificamente teológico. Refiro-me ao
marco doutrinal unitário que, como já disse, preside a hermenêutica de
Gaudium et Spes, Dei Verbum, e Lumen Gentium. Trata-se de uma relação
entre revelação como Palavra de Deus na história e o discernimento da
vontade divina que atualiza essa revelação no momento presente.
A volta às fontes estabelece o primado da Palavra. Propor os sinais
dos tempos como lugar teológico de discernimento da vontade de Deus na
história supõe a aceitação da dupla dimensão epistêmica: antropológica
e teológica. Equivale a aceitar a autonomia da realidade temporal como
âmbito que possui uma consistência própria, mesmo do ponto de vista
gnosiológico e, ao mesmo tempo, assumir essa consistência como estrutura de entendimento da revelação. A Gaudium et Spes recupera assim a
perspectiva semítica do conhecimento. Há uma episteme humana, aquela
que precede – por anterioridade lógica – a episteme teológica. Sinais dos
tempos e sinais de Deus, sem confusão nem separação.
Em Israel, a memória de sua história multissecular opera como
base de decodificação do presente. Esse é o parâmetro de conhecimento.
O Povo da Aliança foi o primeiro coletivo cultural a induzir ou elaborar
um método gnosiológico diacrônico. Aí está a sua originalidade. Essa
Encontros Teológicos nº 64
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O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
prática supõe – ou gera através do tempo – uma estrutura epistêmica
estável, que dota de conteúdo simbólico (anámnesis), os núcleos profundos, e imagens primordiais, próprias da espécie. É uma dinâmica
gnosiológica de exteriorização e interiorização por memória, discernimento e resposta50.
Do mesmo modo como, num marco teológico sacramental, a
anámnesis vai muito além de uma nuda commemoratio, no marco epistêmico israelita a memória histórica se converte em estrutura sincrônica
de conhecimento por decodificação da experiência diacrônica. Dito de um
modo mais bíblico, a recordação viva da história da relação de Deus com
seu Povo passa a estar gravada na lógica dos filhos de Israel – a fortiori
em Jesus e seus discípulos – como imagens primordiais ou arquetípicas
próprias da episteme cultural do coletivo semita.
Por último, a episteme bíblica apresenta um segundo elemento,
que só posso mencionar fugazmente: a alteridade. O homem israelita
descobre e conhece seu próprio mistério não de dentro, mas de fora, ou
seja, saindo de si mesmo. Conhece sua origem, seu destino e o sentido
de sua vida como um segundo momento e em referência, dialogal, ao
Deus totalmente outro. Descobre sua intimidade na exterioridade de uma
história que é situação e resposta. Chamado – iniciativa divina – e discernimento, que desemboca em assentimento. Agora temos a totalidade
dos elementos em sua inteira complexidade e força.
Assim, entramos no terreno da plenitude da revelação. Não podemos esquecer que essa particularidade, simultaneamente temporal e
arquetípica, está inscrita na natureza humana individual do Jesus histórico
e seus discípulos (minha Igreja)51. O aspecto diacrônico afunda suas
raízes na história de Israel como igualmente na história de Jesus – um
homem culturalmente nascido no contexto antropológico da episteme
israelita – e na história das testemunhas da vida, pregação, morte, e
ressurreição do Mestre. O aspecto sincrônico reside nas estruturas estáveis de decodificação, gerais para a espécie humana, e específicas dos
núcleos simbólicos da episteme israelita. É a ciência contemporânea
que deve estudar a fundo esse aspeto, para chegar a um conhecimento
mais completo das premissas antropológicas da revelação. Aqui está
134
50
Esse é o conteúdo da profecia de Jeremias (Jr 31,33-34) sobre a internalização da
Aliança no coração dos homens e mulheres de Israel.
51
Mt 16,18: ekklêsía moû. A expressão aparece também em Qumran, na boca do Mestre
de Justiça, o que demonstra sua origem semita (Cf. Casciaro, J.M., “El concepto de
Ekklesía en el Antiguo Testamento”, Est. Bibl. 25 [1966], 317-348 e 26 [1967] 5-38).
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Daniel Ramada Piendibene
uma tarefa teológica para o nosso tempo, que teria sido impensável sem
os pressupostos teológicos da Gaudium et Spes e seu marco doutrinal
unitário, em consonância com as outras Constituições.
Esta proposta magisterial transcende a teologia pastoral. Melhor
dizendo, pressupõe que o discernimento dos sinais de Deus nos sinais
dos tempos – eixo e centro da vida pastoral – ensina o cristão a buscar
e encontrar a vontade divina à maneira de Jesus. Com efeito, o modelo
de conhecimento do Verbo, a Palavra Eterna, no nível de sua natureza
encarnada, parte da base – epistêmica – de que o Senhor de Israel se
manifestou gradualmente no contexto de uma história de salvação, para
revelar sua vontade amorosa. É a interioridade Deus oferecida ao ser
humano, na profundidade do seu mistério relacional. O conhecimento do
mistério divino, nós o recebemos porque acolhemos, pela fé, uma Palavra
escutada (fides ex auditu). Entretanto, esta Palavra, que nos apresenta a
intimidade do Senhor de Israel, possui chaves de interpretação inscritas
em um modelo humano de conhecimento histórico diacrônico, que se
desdobra em um nível epistêmico mais profundo, arquetípico e sincrônico. É uma história de salvação e coparticipação. Responsabilidade
diacrônica e alteridade sincrônica. O Verbo Eterno – Dabar ha‘Olam
­– feito homem no seio do Povo escolhido por seu Pai para nele dar-se a
conhecer, manifestou plenamente o mistério de sua intimidade, por assim
dizer, numa embalagem epistêmica. Devemos conhecer suas regras para
conhecer melhor o Pai e, finalmente, a nós mesmos.
De modo por vezes intuitivo e por vezes explícito, a Gaudium et
Spes se torna um signo de maturidade gnosiológica para a teologia como
elaboração doutrinal, stricto sensu. Não só o espírito do Concílio, mas
a letra da Gaudium et Spes exigem do teólogo que saia do seu cômodo
universo de certezas formais no plano enunciativo, para discernir, buscar
e encontrar a vontade de Deus, no tempo que lhe toca protagonizar. O
Magistério, constitutivo da Gaudium et Spes, o enfrenta, enquanto ouvinte da Palavra, isto é, como receptor participante de um depósito vivo
(testemunha) e como protagonista de seu anúncio no tempo em que foi
chamado à vida, a incorporar o método fenomênico no marco de sua inteligência da fé. Esta exigência é inerente à sua vocação. Com efeito, se
o homem, na revelação israelita, gravada na matriz epistêmica de Jesus,
se constitui e conhece enquanto deutero-fenômeno, segundo momento,
resposta que desvela o mais íntimo de seu ser, o cristão de hoje deve
aprender a discernir, nos sinais dos tempos, aqueles sinais de Deus que
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
135
O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes
mostram sua Vontade sempre e somente na incerteza das cambiantes
circunstâncias temporais.
Creio que reduzir a Gaudium et Spes a um piedoso conjunto de
conselhos pastorais é, no melhor dos casos, um ato de miopia intelectual.
Diacronia e sincronia, memória e anámnesis, vocação e assentimento,
intimidade e alteridade, episteme humana semítica e conhecimento teológico. Sinais dos tempos e Sinais de Deus. As consequências doutrinais,
as repercussões dogmáticas e a dimensão epistêmica da Gaudium et Spes
são desafios, que têm ainda um longo caminho pela frente.
E-mail do Autor:
[email protected]
136
Encontros Teológicos nº 64
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Resumo: Esta síntese da conferência original apresenta uma visão de conjunto
do Concílio, desde o contexto da sua convocação. Passa pelas várias fases da
sua recepção, até o momento atual, insistindo em que o Concílio “despertou em
nós a alegria de Deus”. É preciso, pois, estar atentos a que essa alegria “não seja
estragada”. Comenta o sínodo de 85, celebrando os 20 anos do encerramento
do Concílio, bem como o discurso de Bento XVI em 2005, por ocasião dos 40
anos. Reflete sobre a “renovação na continuidade” e sobre os novos desafios, de
modo especial a questão de Deus em nossa época de crescente secularização.
E formula a esperança de que a Igreja, num mundo inseguro, se torne de novo
bússola e sinal de encorajamento para a humanidade.
Abstract: A synthetic conspectus of the original conference dealing with the
Vatican Council is a major contribution of this article which also takes into account the context since its convocation. In a retrospective view of the various
phases of its reception until today its focus is the theme of “the joy in God” which
was inflamed in us by the Council. Therefore we need to be careful that his joy
be spared from being spoiled. An additional comment on the Synod of 1985,
celebrating twenty years of the conclusion of the Council, inserting as well the
discourse delivered by the Pope Benedict XVI in 2005, on the occasion of forty
years since its final date. The author provides us with some fruitful thoughts on
the “renovation of its continuity” and points out new challenges especially on the
question of God raised in our time amidst growing secularization. A new hope is
needed for the Church confronted by trends of insecurity undermining the life in
the surrounding world so as to offer new guidelines and become a major source
of encouragement for human kind.
Um concílio a caminho1
Despertou em nós a alegria de Deus:
não deixemos que no-la estraguem
Walter Kasper*
*
O Cardeal Walter KASPER é Presidente emérito do Pontifício Conselho para a promoção da unidade dos cristãos.
O artigo foi publicado no L’OSERVATORE ROMANO, ed. semanal em português, em
data de 21-04-2013, pp. 12-13. É uma síntese da intervenção inaugural do Cardeal
WALTER KASPER no Congresso Internacional dedicado a “João XXIII e Paulo VI, os
Papas do Vaticano II”, em Bergamo, nos dias 12 e 13 de abril p.p. Os subtítulos são
da nossa redação.
1
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 137-145.
Um concílio a caminho
Era a época da guerra fria. Um ano antes do início do concílio, foi
construído o muro de Berlim e, durante o período da primeira sessão, o
mundo, por causa da crise de Cuba, encontrou-se à margem do precipício
da guerra atômica. Hoje, cinquenta anos depois, vivemos num mundo
globalizado, completamente diferente e em rápida transformação, com
novos questionamentos e desafios renovados. A fé optimista no progresso
e o espírito do encaminhar-se a novos confins já passaram há muito tempo.
Para a maior parte dos católicos, as mudanças postas em movimento pelo
concílio fazem parte da vida quotidiana da Igreja. No entanto, aquilo que
hoje experimentam não é o grande arranque, nem a primavera da Igreja
que nessa época esperávamos, mas é ao contrário uma Igreja com um
aspecto invernal, que manifesta evidentes sinais de crise.
Para quantos conhecem a história dos vinte concílios reconhecidos como ecumênicos, isto não constituirá uma surpresa. Os tempos
pós-conciliares foram quase sempre turbulentos. Mas o Vaticano II
representa um caso particular. Diversamente dos concílios precedentes,
não foi convocado para eliminar doutrinas heréticas ou para reparar um
cisma; não proclamou qualquer dogma formal nem sequer tomou deliberações disciplinares formais. João XXIII tinha uma perspectiva mais
ampla. Viu perfilar-se uma nova época, ao encontro da qual caminhou
com otimismo, na confiança inabalável em Deus. Falou de um objetivo
pastoral do Concílio, referindo-se a uma atualização, a um «devir hoje»
da Igreja. Não se visava uma adaptação banal ao espírito dos tempos,
mas o apelo a fazer com que a fé falasse nos dias de hoje.
A ampla maioria dos Padres conciliares entendeu essa ideia. Quis
atender aos pedidos dos movimentos de renovação bíblica, litúrgica,
patrística, pastoral e ecumênica, que surgiram entre as duas guerras mundiais; começar uma nova página da história com o judaísmo, repleta de
dificuldades, e entrar em diálogo com a cultura moderna. Foi o projeto
de uma modernização que não queria nem podia ser modernismo.
Uma minoria influente opôs uma resistência obstinada a essa
tentativa da maioria. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, estava fundamentalmente da parte da maioria, mas procurou empenhar a minoria e,
em sintonia com uma antiga tradição conciliar, alcançar uma aprovação,
na medida do possível, por unanimidade, dos documentos conciliares,
num total de 16. Conseguiu, mas foi preciso pagar um preço. Em muitos
pontos foi preciso encontrar fórmulas de compromisso em que, muitas
138
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Walter Kasper
vezes, as posições da maioria se encontram imediatamente ao lado daquelas da minoria, pensadas para as delimitar.
Desse modo, os textos conciliares têm em si mesmos uma enorme
potencialidade conflituosa; abrem-se a uma recepção seletiva em ambas
as direções. Que rumo indica a bússola do Concílio e para onde conduz o
caminho da Igreja católica, no século XXI ainda tão jovem? Permanece
assente na confiança crente de João XXIII, ou percorre a direção oposta,
rumo a estéreis atitudes de defesa?
Três fases da recepção
Podem-se distinguir três fases da recepção, até aos nossos dias.
Antes de tudo, a primeira fase da recepção entusiasta. Karl Rahner, logo
depois de ter regressado do concílio, numa conferência em Munique,
falou de «começar pelo princípio». Mas permaneceu cautamente céptico
naquilo que se referia ao futuro. Outros foram mais além e quiseram
deixar de lado aquilo que consideravam elementos da tradição levados
ao concílio como acessórios, fruto de comprometimento e, como Hans
Küng, com um salto de quase dois mil anos de história da Igreja, interpretaram a doutrina da Igreja de maneira totalmente renovada, começando
a partir da Sagrada Escritura.
A reação não se fez esperar por muito tempo. E veio não só da
parte do arcebispo Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal de São Pio
X, por ele mesmo fundada, mas também da parte de teólogos que, durante o concílio, tinham sido incluídos entre os progressistas (Jacques
Maritain, Louis Bouyer e Henri de Lubac). Diversamente de Lefebvre, eles não criticaram o concílio em si mesmo, mas criticaram a sua
recepção. Com efeito, nas primeiras duas décadas depois do concílio,
houve um êxodo de numerosos sacerdotes e religiosos; em muitos
âmbitos verificaram-se o declínio da prática eclesiástica e movimentos
de protesto por parte de sacerdotes, religiosos e leigos. O Papa Paulo
VI falou de uma «fumaça de Satanás», que teria entrado através de
alguma fenda no templo de Deus.
Ainda hoje alguns críticos consideram o Vaticano II, no contexto
da história da Igreja, como um desastre e como a maior calamidade dos
tempos modernos. Mas representa um curto-circuito considerar que tudo
o que aconteceu depois do concílio ocorreu também por causa do mesmo
concílio. Os críticos desconhecem as tendências de amplo alcance que
Encontros Teológicos nº 64
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Um concílio a caminho
agiram já antes do concílio e que conheceram uma aceleração notável
nas sublevações sociais ligadas ao protesto dos jovens e dos estudantes
em 1968. Depois de 1968, as tendências emancipadoras tiveram efeito
também em âmbitos eclesiásticos. Durante o concílio, progressistas foram
os verdadeiros conservadores, que queriam renovar a tradição antiga; em
seguida, tomaram a palavra progressistas de um novo gênero, que não
se orientavam tanto segundo a tradição mais antiga, quanto ao contrário
segundo os «sinais dos tempos» e que queriam interpretar o Evangelho
com base na mudada situação social.
O Sínodo episcopal extraordinário de 1985, vinte anos depois do
encerramento do concílio, deu início à terceira fase da recepção conciliar.
O Sínodo tinha como tarefa realizar um balanço. No entanto, consciente
da crise, não quis unir-se ao difundido coro de lamentações. Falou de
situação ambivalente na qual, para além dos aspectos negativos, havia
também bons frutos: a renovação litúrgica, que levou a uma maior acentuação da Palavra de Deus e a uma participação mais vigorosa por parte
de toda a comunidade celebrante; a participação e cooperação fortalecidas
dos leigos na vida da Igreja; as aproximações ecumênicas; as aberturas
ao mundo moderno e à sua cultura; e muitos outros frutos.
O Sínodo de 85
Fundamentalmente, o Sínodo ressaltou o fato de que a Igreja, em
todos os concílios, é sempre a mesma e que, por conseguinte, o último
concílio deve ser interpretado em relação a todos os outros. Com esta
regra hermenêutica, o Sínodo tornou-se o ponto de cristalização da terceira fase da recepção, relativa ao magistério. O primeiro passo oficial da
recepção foi a reforma litúrgica; principalmente, foi a introdução do novo
Missal, que tinha entrado em vigor no primeiro Domingo do Advento de
1970. Esta reforma foi acolhida com gratidão pela ampla maioria, mas
também encontrou críticas, em parte por motivos teológicos e, parcialmente, também porque alguns já sentiam saudades da sacralidade e da
estética do rito em uso até então.
Os documentos conciliares não permaneceram letra morta. Caracterizaram a vida nas dioceses, paróquias e comunidades religiosas,
mediante a renovação da liturgia, uma espiritualidade que se distinguia
por uma conotação bíblica mais acentuada e pela participação dos
leigos, estimulando o diálogo ecumênico e inter-religioso. O Concílio
foi recebido positivamente, em particular pelos novos movimentos
140
Encontros Teológicos nº 64
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Walter Kasper
espirituais que surgiram nos anos setenta, os quais trouxeram à luz
de uma maneira renovada a multiplicidade dos carismas e a vocação
universal à santidade.
Nem sequer a recepção oficial permaneceu inerte. Em parte, ultrapassou o concílio nas reformas litúrgicas, nas quais o concílio ainda
seguia o latim como normal língua litúrgica e não se falava de uma
celebração orientada para o povo. O mesmo é válido para as indicações
sociais e éticas do Papa João Paulo II, a propósito da prática da liberdade
religiosa mediante a anulação de concordatas que entravam em conflito
com ela e, finalmente, em relação à «política» dos direitos humanos, com
a qual João Paulo II ofereceu uma contribuição essencial para a derrota
das ditaduras comunistas da Europa Oriental. É importante mencionar
também a sua carta encíclica sobre o ecumenismo, Ut unum sint (1995),
que aprofundou as enunciações ecumênicas do concílio, promovendo-as
com energia. Tudo isso transformou positivamente, sob diversos aspetos,
a face da Igreja, tanto no seu interior como na sua imagem externa. O
ecumenismo, outro tema importante, deu bons frutos, mais do que se
esperava na época do concílio.
Uma Igreja que se fundamenta no mainstream social torna-se, em
última análise, supérflua. Não se torna interessante, se é ornamentada
com elementos que não lhe pertencem, mas sim, se faz valer a causa
que lhe é própria de modo credível e convincente, e se manifesta como
contraforte à opinião pública predominante. Cinquenta anos depois da sua
inauguração, ainda há ocasião para se ocupar, de maneira aprofundada,
dos textos conciliares, para deles haurir os tesouros ainda inesgotáveis
que neles se encontram. Naturalmente, não se pode mitificar o concílio,
nem se deve reduzi-lo a algumas frases de efeito. Não se pode nem sequer
utilizá-lo como uma pedreira de onde extrair o material para desejadas
teses individuais. É necessária uma hermenêutica conciliar, ou seja, uma
interpretação meditada.
Os textos conciliares
Ponto de partida devem ser os textos conciliares, cuja
interpretação deve ser feita segundo as regras e os critérios universalmente reconhecidos para a interpretação dos concílios. É
necessário extrair o sentido de cada afirmação com cautela, da
história da redação, muitas vezes complexa; em seguida, é preciso
Encontros Teológicos nº 64
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Um concílio a caminho
inseri-la no conjunto, diversificado e rico de tensões, de todas as
afirmações conciliares; novamente, é necessário entender isso no
complexo de toda a Tradição e do seu desenvolvimento histórico,
assim como da recepção entretanto obtida. Enfim, cada uma das
afirmações deve ser interpretada, no contexto da hierarquia das
verdades, a começar pelo seu centro cristológico. A recepção sob
a direção e a moderação do Magistério, constitui uma questão que diz
respeito a todo o povo de Deus.
Bento XVI – renovação na continuidade
Um importante indício ulterior foi oferecido pelo Papa Bento XVI,
num discurso dirigido aos cardeais e aos colaboradores da Cúria romana,
pro­nunciado no dia 22 de Dezembro de 2005, por ocasião do quadragésimo aniversário do encerramento do concílio. Assim ele introduziu a fase
mais recente do debate a respeito da interpretação do mesmo concílio,
es­clarecendo que o consenso não deve ser apenas sincrônico (relativo à
Igreja contemporânea), mas também diacrônico (a respeito da Igreja em
cada época). Opôs entre si duas her­menêuticas: a da descontinuidade e da
ruptura, que ele rejeitou, e a «da ­reforma e da renovação». As pala­vras
do Papa foram muitas vezes interpretadas de modo unilateral, dei­xando
de considerar que ele não contrapôs, como muitos chegaram a afirmar,
a hermenêutica da desconti­nuidade à hermenêutica da continuidade. O
Sumo Pontífice falou de uma hermenêutica da reforma e da «renovação
na continuidade» da Igreja.
O termo “reforma” é, no conjunto da Tradição medieval, um
termo fundamental e um desafio que se volta a propor continuamente.
Re­forma não significa só a necessária adaptação prática de parágrafos
se­parados ‘a novas circunstâncias’. Quem fala de reforma pressupõe
que subsistam deficit e disfunções que tornam necessário referir-se a
tradições mais antigas, esquecidas, de modo particular aos primórdios
apostólicos, renovando-os de manei­ra criativa.
O discurso do Papa sobre a reforma e a renovação na continuidade reflete uma concepção viva da Tra­dição que, se as argumentações
fundamentais são seguidas por conse­quências práticas, poderia voltar a
fazer arder de novo o fogo do concí­lio, ou seja poderia, na continuida­de,
trazer novamente o impulso ino­vador do concílio.
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Encontros Teológicos nº 64
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Walter Kasper
Qual renovação?
Perguntemo-nos: como pode ma­nifestar-se tal renovação, e para
on­de pode levar o caminho sucessivo? Como aplicar a herança dos Papas
João XXIII e Paulo VI nos dias de hoje? Não disponho de um progra­ma
global. No entanto, posso men­cionar apenas alguns pontos de vis­ta. Em
primeiro lugar, o concílio atendeu, de modo crítico-construtivo, a pedidos
importantes da mo­dernidade. Hoje, meio século mais tarde, da idade moderna pudemos passar para a pós-moderna. Muitas das antigas questões
voltam a apre­sentar-se de modo renovado; tam­bém muitos dos ideais do
iluminis­mo são hoje novamente postos em questão. A fé no progresso,
que ha­via nessa época, assim como a con­fiança na razão, foram abaladas.
Isso não significa que o concílio deixou de ser atual. A Igreja deve levar
a sério as interrogações legítimas da idade moderna. Deve defender a
fé, quer contra o pluralismo e o relati­vismo pós-modernos, quer contra
as tendências fundamentalistas que se afastam da razão.
Segundo desafio: na era pós-mo­derna, é aquele que provém não só
do nosso mundo ocidental seculari­zado e relativista, mas do hemisfério
sul, ou seja, o desafio da pobreza da grande maioria dos homens. O Papa
Francisco, com a sua opção por uma Igreja pobre para os pobres, já nolo recordou. E fê-lo em continuidade com o Vaticano II, que na Lumen
Gentium, numa parte muitas vezes es­quecida do seguimento de Jesus, que
por nós se fez pobre, e da pobreza e simplicidade apostólica da Igreja.
Neste sentido, o Papa Francisco des­de o primeiro dia do seu pontificado
ofereceu a sua interpretação, diria profética, do concílio, e deu início a
uma nova recepção. Ele mu­dou a nossa agenda: em primeiro lugar, agora,
os problemas do hemis­fério sul. Isto leva a um terceiro ponto: devemos
reconhecer que a si­tuação da Igreja mudou desde os tempos do concílio.
No início do sé­culo passado, um quarto dos católi­cos do mundo vivia
fora da Europa; hoje, um quarto deles vive na Euro­pa e mais de dois
terços dos católi­cos do mundo vivem no hemisfério sul, onde a Igreja
está a crescer. No nosso mundo globalizado, a Igreja tornou-se uma Igreja
mundial e uni­versal, de modo novo. Portanto, o problema da unidade e
da multipli­cidade salta aos olhos de modo absolutamente novo.
Igreja, mistério de comunhão
O concílio concebeu a Igreja co­mo uma communio, ou seja, como
participação na comunhão trinitária e como unidade na multiplicidade.
Encontros Teológicos nº 64
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Um concílio a caminho
Sem dúvida, a unidade no ministério petrino constitui um bem excelso e
um verdadeiro dom do Senhor para a sua Igreja; uma recaída na menta­
lidade da Igreja nacional não seria, no nosso mundo globalizado, abso­
lutamente capaz de indicar o cami­nho para o futuro. No entanto, aceitar
um centro não significa aceitar um centralismo transbordante. Já em
1963, o então jovem teólogo Joseph Ratzinger chamava a atenção para
o facto de que a unida­de no ministério petrino não deve ser necessariamente entendida como uma unidade administrativa, mas deixa espaço a
uma multiplicidade de formas administrativas, discipli­nas e litúrgicas.
João Paulo II, na carta encíclica Ut unum sint (1995), exortou a meditar
sobre novas for­mas de exercício do primado. Bento XVI retomou pelo
menos duas vezes esta frase. Por conseguinte, foi deve­ras significativo
que o Papa Francis­co tenha feito referência ao bispo de Roma que preside
na caridade, fa­mosa afirmação de Inácio de Antio­quia. Ela é de importância funda­mental, não só para a continuação do diálogo ecumênico,
principalmente com as Igrejas ortodoxas, mas tam­bém para a própria
Igreja católica.
Quarto ponto de vista. O problema da unidade na multiplicidade
au­menta na questão da liberdade de cada ser humano e do cristão indivi­
dualmente. Hoje em dia fala-se mui­to da individualização da nossa so­
ciedade. O problema apresenta-se também na Igreja. Estas problemáti­cas
levantam-se para muitos cristãos e pastores, sobretudo no que se refe­re
às questões éticas.
A questão de Deus
O último ponto é o mais impor­tante: a questão de Deus. Já o concí­
lio incluiu o ateísmo, nas suas várias modulações, entre as questões mais
sérias desta época. Esta situação, a partir de então, aumentou de modo
dramático. O problema de hoje é que, para muitas pessoas, Deus já não
representa um problema, ou seja, pa­rece que já não é um problema, e
que a sua existência já não tem qual­quer interesse. Hoje o problema é a
indiferença. Em tal situação, não podemos preocupar-nos somente com
os efei­tos sociais, culturais e políticos da fé, considerando a fé em Deus
como uma premissa óbvia. Não é suficien­te nem sequer preocupar-se
apenas com as questões de reforma interna da nossa Igreja; elas são
interessan­tes unicamente para os insiders. As pessoas lá fora, no «átrio
dos gen­tios», levantam outras interrogações: de onde venho e para onde
vou? Por que e para qual finalidade existo? Por que o mal, por que o
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Encontros Teológicos nº 64
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Walter Kasper
sofrimento no mundo? Por que devo sofrer? Como posso encontrar a
felicidade? Onde encontrar alguém que esteja perto de mim, que me
entenda, me conforte e me infunda um pouco de esperança?
Não devemos falar de uma trans­cendência vaga, mas temos o dever
de falar concretamente do Deus que, em Jesus Cristo, se revelou como
Deus conosco e para nós, do Deus infinitamente misericordioso que nos
espera, que em cada situação nos oferece uma nova oportunidade e a
quem na oração nós podemos dizer: «Abá, Pai!». Devemos falar sobre a
misericórdia de Deus, daquela mise­ricórdia, que é – como disse o Papa
Francisco – o nome do nosso Deus.
Conclusão
O caminho encetado pelo concílio não terminou. A rica herança que
os dois Papas, João XXIII e Paulo VI, nos deixaram, ainda não findou.
De­vemos percorrê-lo com paciência mas também com determinação e
coragem e, não obstante tudo, com hilaritas, alegria interior. Como disse Esdras ao povo de Jerusalém: «A alegria do Senhor é a vossa força»
(Neemias 8,10). O con­cílio despertou a alegria por Deus, pela fé e pela
Igreja. Antes de tudo, é necessário voltar a despertá-la den­tro de nós, a
fim de que ela possa entusiasmar também os outros. A alegria é contagiosa. Sem dúvida, cada um de nós é apenas uma pe­quena luz. Também
o movimento de renovação pré-conciliar começou com alguns indivíduos
e pequenos grupos. Na renovação pós-conciliar não será diversamente.
No entanto, se não deixarmos que estraguem a nossa alegria, então um
dia ela po­derá ser transmitida aos outros. Po­derá fazer com que a Igreja,
num mundo que se transforma de modo rápido e se sente profundamente
in­seguro, se torne de modo novo bús­sola e sinal de encorajamento.
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Resumo: O artigo mostra como a história dos 40 anos do ITESC coincide com a dos 50 anos
do início do Concílio. Observa como os Bispos de Santa Catarina, em 1972-73, ao criarem
o ITESC, estavam todos inspirados pelas propostas conciliares. Pouco antes, em 1970, fora
criado o Regional Sul IV da CNBB, abrangendo as dioceses do Estado, então em número
de sete. Procurava-se, também, pôr em prática as propostas da Conferência de Medellin, de
1968 e, em muitos setores da pastoral, aderia-se ao Método da “criatividade comunitária”. O
Diretor do ITESC, P. Bratti, optou decididamente pela eclesiologia do Vaticano II, surgindo
daí um conflito entre ortodoxia e ortopraxia. Em 1976 é criado o Diretório Acadêmico dos
estudantes. O longo pontificado de João Paulo II deixou marcas na evolução do ITESc. Na
década de 90 criaram-se os “Seminários Teológicos” das várias dioceses, com exceção
de Chapecó. Em 1978 conseguiu-se o reconhecimento dos estudos do ITESC pela Santa
Sé, com a concessão do Bacharelado eclesiástico através da Faculdade de Teologia da
Companhia de Jesus. Finalmente, o Bacharelado civil, pelo MEC, em 2011-2012. No final
do artigo, uma “visão de conjunto”, abrindo perspectivas de esperança.
Abstract: The author is pointing to the fact that the period of 40 years of ITESC coincides
with 50 years since the beginning of the Council. He then lets us know that the bishops
of Santa Catarina, in 1972-73, were inspired by the ideals of the Council by creating the
ITESC, the theological school established in Florianópolis. In fact, just before that date, in
1970, the ecclesial organization, named Regional Sul IV of CNBB was founded, known as
the national conference of Catholic bishops in Brazil, integrating seven dioceses of the State
of Santa Catarina. It was an attempt to put into practice the objectives of the Conference of
Medellin held in 1968. In many sectors of the pastoral activity the method of “communitarian
creativity” was adopted. The director of ITESC was the late Father Paulo Bratti who put to
full use the ecclesiology of Vatican II, causing a conflict between orthodoxy and orthopraxis.
In 1976 was created the Academic Organization of the student body of ITESC. The lengthy
pontifical reign of Pope John Paul II left a decisive marc of the evolution of ITESC. In the
decade of the nineties, several “diocesan seminaries” were created in Florianópolis. In
1978 an important event took place by the recognition of the academic status of ITESC
by the Holy See in Rome granting the degree of Bachelor in theology through its affiliation
with the theological school of the Jesuits. Finally, the Ministry of Education of the Brazilian
State Department authorized ITESC to grant the academic degree of Bachelor of theology
in 2011-2012. In the conclusion of the article a wider perspective opens up to the reader by
promising a future of even greater achievements.
ITESC – 40 ANOS
O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
José Artulino Besen*
*
O autor é especialista em História da Igreja, Professor emérito do ITESC, e Pesquisador da FACASC.
Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013, p. 147-174.
ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Em 1973, num pequeno edifício no bairro Pantanal, defronte à
Universidade Federal de Santa Catarina, tinha início o INSTITUTO
TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA, o ITESC. Presentes à Missa
de inauguração: o arcebispo de Florianópolis, Dom Afonso Niehues;
o bispo de Tubarão, Dom Anselmo Pietrulla; Pe. Agostinho Petry
(hoje bispo de Rio do Sul); o primeiro professor e diretor, Pe. Paulo
Bratti; e os primeiros alunos, das dioceses de Florianópolis, Rio do
Sul, Lages e Tubarão.
Os primeiros professores: Pe. Paulo Bratti, Pe. Francisco de Sales
Bianchini, Pe. Eloy Guella, SJ, Pe. Waldomiro O. Piazza, SJ, Nereu do
Vale Pereira, Pe. Ney Brasil Pereira (a partir de agosto), aos quais, no ano
de 1974, se uniram Pe. Orlando Brandes e Pe. José Longen. Realizavase, em fim, o desejo acalentado desde a década de 50 do século XX, de
formar em Santa Catarina os presbíteros que nela trabalhariam, criando
uma identidade eclesial no Estado catarinense.
Já se tinha concretizado a decisão do Concílio de Trento (século
XVI), de cada diocese ter seu seminário, norma repetida por São Pio X
em 1907, com a Encíclica Pascendi Dominici Gregis: se não cada diocese, ao menos criar seminários provinciais. Com a criação do bispado
de Florianópolis, em 1908, o primeiro bispo, Dom João Becker, sentiuse obrigado a buscar abrigo no Seminário “Conceição”, dos Padres da
Companhia de Jesus, em São Leopoldo. Criar um seminário não era o
mais difícil, mas, como ter professores e formadores? Para a formação
filosófica e teológica, os seminaristas foram matriculados nos Seminários maiores de São Leopoldo, RS, Mariana, MG, São Paulo, SP e no
Pontifício Colégio Pio latino americano de Roma e, a partir de 1934,
no Pio brasileiro.
Na década de 50, já eram 4 as dioceses: Florianópolis, Joinville,
Lages e Tubarão, e os bispos se preocupavam com a dificuldade de
formar seus padres. Uma janela abriu-se em 14 de março de 1954, com
a inauguração do Seminário Maior Nossa Senhora da Conceição em
Viamão,RS, que contou com a colaboração dos católicos catarinenses.
Estava habilitado a receber seminaristas das dioceses gaúchas e catarinenses, em sua imensa estrutura com capacidade de abrigar 250 filósofos
e 250 teólogos.
Evidente que era solução provisória, pois havia dificuldades
na convivência dos jovens dos dois Estados e divergências entre as
orientações das Igrejas diocesanas. Entre 1960 e 1965, a diocese
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Encontros Teológicos nº 64
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José Artulino Besen
de Joinville preferiu enviar os seminaristas maiores para cursarem
teologia em Friburgo, na Suíça, tanto por razões de seriedade acadêmica como por facilidade econômica, pois as bolsas cobriam todas as
despesas. Aproximadamente uma dezena seguiu esse caminho. Bem
formados, com doutorado, prestaram grande ajuda à Universidade
Federal de Santa Catarina e, especialmente, na fundação da Universidade de Blumenau.
Os ventos de renovação eclesial, pastoral, formativa, que convergiram no Concílio do Vaticano II (1962-1965), apresentaram novos
desafios. Além disso, o clima de contestação em Viamão forçou os bispos
catarinenses a nova solução: em 1964, os seminaristas maiores foram
encaminhados para o Seminário Maior Rainha dos Apóstolos, em Curitiba
e, no ano seguinte, foi inaugurado o PAULINUM, seminário maior da
Igreja catarinense naquela capital, com o nome prestando homenagem ao
apóstolo Paulo e ao papa Paulo VI. Foram tempos fecundos de busca de
caminhos teológicos, pastorais e formativos, sob a orientação generosa
e paciente dos padres Osmar Pedro Müller, Afonso Paulo Guimarães,
Paulo Bratti e Evaristo Debiasi. Passo seguinte, após tantas andanças e
experiências, foi crer na possibilidade e necessidade de um Seminário
teológico em Santa Catarina. Nascia em Florianópolis, em 1973, o Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC.
Episcopado catarinense
Era mais difícil a tomada de decisões por parte dos bispos,
pois a prática pastoral isolava cada um em sua diocese. A Igreja se
constituía em unidades estanques, embora com isso tenha começado
a mudar a partir de 1952 quando, por incentivo de Dom Giovanni
Montini (depois Paulo VI) e a coordenação eficiente e carismática
de Pe. Hélder Câmara, nasceu no Rio de Janeiro a Conferência nacional dos bispos do Brasil, a CNBB. Dom Hélder, eleito bispo em 3
de março de 1952, foi secretário geral até 1964. Em 1977, a sede da
CNBB foi transferida para Brasília, DF.
Num território vasto como o brasileiro, foi sumamente positiva
a criação dos Regionais da CNBB. Em nosso Estado, passamos a pertencer ao Regional Sul I, a partir de São Paulo, depois ao Sul II, a partir
do Paraná, seguindo ao Sul III, com o Rio Grande do Sul. Entretanto,
em 18 de março de 1969, quando do 1º Encontro do Episcopado de
Santa Catarina (agora acrescido das dioceses de Chapecó, Rio do Sul e
Encontros Teológicos nº 64
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Caçador), dom Afonso Niehues, arcebispo de Florianópolis, manifestou
interesse na criação de um Regional próprio em Santa Catarina. A idéia
foi bem recebida por todos, e provocou o envio de uma solicitação para
que a CNBB, em sua Assembléia Regional, aprovasse a criação do novo
Regional ainda naquele ano. Tudo foi muito rápido, pois a intermediação
era do Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara. O pedido foi apreciado
pela Comissão Central da CNBB que, em 28 de setembro do mesmo ano
enviou o deferimento da solicitação, nomeando o novo Regional como
“CNBB Regional Sul 4”.
Durante a Assembléia do Regional Sul 3 (Rio Grande do Sul e
Santa Catarina), realizada em Lages entre 16 e 23 de novembro, foram
dados os primeiros passos práticos para a criação do novo Regional.
E, já no primeiro dia útil de 1970, aconteceu a instalação da CNBB
Regional Sul 4. Dom Afonso foi eleito seu presidente, o que se repetiu
sucessivamente até 1986. A primeira sede do Regional foi num prédio
cedido pela Arquidiocese, no centro de Florianópolis. A partir de 1995,
passou a funcionar junto ao ITESC, no bairro Pantanal.
A unidade afetiva e pastoral do episcopado
catarinense
A Província eclesiástica de Santa Catarina, que corresponde ao Regional Sul IV da CNBB, foi constituída em 1927, com a
arquidiocese de Florianópolis e as dioceses de Lages e Joinville.
Chegou ao ano 2000 com 10 Igrejas particulares: Florianópolis,
Lages, Joinville, Tubarão, Chapecó, Rio do Sul, Caçador, Joaçaba,
Criciúma e Blumenau.
Foram duas as realidades que convergiram, tanto na criação do
Regional e sua pastoral orgânica, como na do Instituto Teológico de
Santa Catarina. Em primeiro lugar, a atuação colegial, prudente, humilde
e respeitosa de Dom Afonso Niehues, Arcebispo. Por mais difíceis que
parecessem os conflitos, a ponderação serena de Dom Afonso encontrava
ponto de equilíbrio, caminhando devagar, mas sabendo onde se queria
chegar. Em segundo lugar, o que é muito importante, a estabilidade dos
bispos em suas dioceses, delas sendo pastores até a renúncia pela idade
canônica de 75 anos, o que prevaleceu até 2000. Para se ter uma idéia,
levando em conta o tempo trabalhado na Igreja de SC, foram estes os
anos de permanência: Dom Afonso Niehues – 33 anos, Dom Honorato
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
José Artulino Besen
Piazzera – 21 anos, Dom Oneres Marchiori – 32 anos, Dom Gregório
Warmeling – 37 anos, Dom José Gomes – 30 anos, Dom Anselmo Pietrulla – 26 anos, Dom Osório Bebber – 11 anos, Dom Tito Buss – 31
anos, Dom Henrique Muller – 24 anos, Dom Orlando Dotti – 7 anos,
Dom Luiz Colussi – 13 anos. Isso permitiu o encaminhamento e amadurecimento das grandes diretrizes pastorais, e tornou realidade a amizade
fraterna dos senhores bispos e foi decisivo para a fundação do ITESC e
a constituição do patrimônio da entidade mantenedora, a Fundação Dom
Jaime de Barros Câmara.
Uma grande primavera na Igreja
Era esse o panorama eclesial em 1973, ano natalício do ITESC:
oito anos de encerramento do Concílio, cinco da Conferência de Medellín, 10 anos de pontificado de Paulo VI. A Igreja Universal vivia as
alegrias e esperanças do Vaticano II, enquanto que a América latina estava
mergulhada nos anos de chumbo das ditaduras militares, catequizadas
na norte-americana Doutrina de Segurança Nacional.
O episcopado latino-americano, reunido em Medellín e inspirado
pelo Paulo VI, revelou em toda a sua verdade o rosto de pobreza do povo
latino americano. Os pastores zelosos estavam decididos a trabalhar pela
libertação de seus povos, mas os regimes de força pouco a pouco foram
mostrando seu rosto insensível frente ao pobre, mas sensível ao capital
internacional, para cuja defesa não hesitavam em recorrer à prisão, à tortura, à censura, ao assassinato. Os bispos brasileiros tinham o privilégio
de lideranças firmes, proféticas e corajosas, à frente da CNBB, mas Dom
Hélder Câmara, a grande alma da CNBB, estava proibido de ser citado
nos MCS desde 1968.
Paulo VI, o grande papa do século XX, sofria no corpo e na alma os
dramas da Igreja, uma instituição que, levada pelo entusiasmo conciliar,
queria caminhar depressa e, ao mesmo tempo, carregava em seu ventre
saudosistas e tradicionalistas inseguros, tendo de caminhar lentamente
para não perder alguns filhos nas freadas ou aceleradas, o que era visto
como indecisão ou medo do Concílio.
Todos os bispos catarinenses de 1973 participaram do Concílio,
o que foi causa de grande unidade eclesiológica e comunhão diocesana, alimentando criativamente a Pastoral de Conjunto. Ao final do
Concílio, assim se expressou Dom Afonso na Rádio Vaticana: “Aqui
Encontros Teológicos nº 64
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
viemos como príncipes, e retornaremos como despojados pastores a
serviço do povo”. Dom Gregório Warmeling, de Joinville, com outros
bispos, assinou o Pacto das Catacumbas, comprometendo-se a uma
vida e estruturas despojadas. Deixou de residir no Palácio episcopal,
para mágoa de muitos joinvillenses. Com a maioria desses grandes
bispos já na paz do Senhor, podemos dizer, sem fazer exceções, que
foram dedicados pastores, humildes, despojados, sem outro projeto
do que o bem de seus rebanhos e de seus padres. Viveram intensamente a colegialidade de que falou o Concílio e, depois, o conjunto
das Conferências latino americanas.
O método da Criatividade Comunitária
Entre 1969 e 1978, o episcopado e coordenações de pastoral
assumiram como método de organização pastoral a “Criatividade
Comunitária”, método de organização comunitária baseado nos
14 Sistemas de Antônio Müller, da USP e adaptado por Waldemar
Gregori: Parentesco, Saúde, Manutenção, Lealdade, Lazer, Viário,
Educacional, Patrimonial, Produção, Religioso, Segurança, PolíticoAdministrativo, Jurídico, Precedência. O que era para ser um método
pedagógico, transformou-se numa quase ideologia, colocando o homem no centro, mas um homem libertado de dependências, inclusive
dos “recheios” religiosos e da cruz.
Padre Paulo Bratti, então ainda lecionando em Curitiba, alertou
o episcopado paranaense sobre essa redução da fé cristã, analisando
o Método em artigo publicado no SEDOC com o título “Fé cristã
e justificação pela fé”. Vindo para Florianópolis, não se furtou a
colocar-se fora da unanimidade entusiasmada e, diante dos bispos e
dos Coordenadores de Pastoral, acusou com veemência a Waldemar
de Gregori de anunciar um panteísmo imanentista. Nunca foi perdoado pela coragem profética e foi marginalizado do Regional Sul IV,
que não mais o convidou para nada. O ITESC foi mal visto por isso:
acusavam-no de oferecer apenas “recheio teológico”.
A história encarregou-se de dar-lhe razão quando da grande crise em
que se viram envolvidas as Congregações das Irmãs Catequistas Franciscanas,
Irmãzinhas da Imaculada Conceição e da Divina Providência, tendo essa última
passado por dolorosa Visita canônica que em 1978 terminou com a exclusão
de mais de 90 Irmãs, que constituíram a “Fraternidade Esperança”.
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Encontros Teológicos nº 64
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José Artulino Besen
O Instituto Teológico e as dioceses – riqueza e conflito
Na Igreja catarinense, havia três anos constituída em Regional
Sul IV da CNBB, vivia-se a tensão entre ortodoxia e ortopraxia,
entre reflexão teológica e reflexão pastoral, entre o presbítero pastor
e o sacerdote da tradição. Se pudéssemos pessoalizar, citaríamos três
nomes que, por estarem na eternidade, já dispensaram os manuais
de teologia: em Florianópolis, Dom Afonso Niehues sonhava com
uma Igreja aberta aos problemas do mundo mas fiel à tradição; em
Joinville, Dom Gregório Warmeling era o protótipo do homem livre, para quem o importante era experimentar novos caminhos sem
medo de errar e recomeçar (“valeu a experiência”, o que denota sua
confiança na Providência); em Chapecó, Dom José Gomes não tinha
dúvidas: suas ovelhas prediletas eram os camponeses, os índios, os
caboclos, os excluídos da sociedade.
Se a primeira década do ITESC foi mais centrada no binômio
teologia-pastoral, a segunda década, a de 80, foi vivida nas opções da
Conferência do Episcopado em Puebla (1979): os jovens, a família,
os pobres, desses renovando-se a opção preferencial formulada em
Medellín, em 1968. Foram os pobres, e a marginalização que os gera,
o grande campo de amadurecimento e conflito no Instituto Teológico.
De modo até agressivo, os alunos perguntavam: por que estudar “dogmas”, se o povo pede pão? A ação pastoral é quase identificada com
ação social. Se o Concílio oferecia a imagem de um presbítero pastor,
Puebla parecia exigir um presbítero agitador.
Simultaneamente, a vida pastoral recebe outro método – ou
espírito – a Renovação Carismática Católica, com toda a atração que
exerce sobre as massas tanto no campo católico quanto no competidor
Pentecostalismo evangélico. A eleição de João Paulo II, em 1978,
representou aquilo que se denominou “retorno à grande disciplina”.
O clima da pós-modernidade triunfante que anuncia a civilização do
hedonismo e das aparências provocou o surgimento de um novo tipo
de presbítero: o apreciador das liturgias faustosas, o sonho de ser
“padre popstar”. As lutas por uma sociedade justa e fraterna perdem
o lance animador, não por influência do ITESC, mas do ambiente
donde surgem as novas vocações.
Encontros Teológicos nº 64
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
O ITESC – início humilde e desapego eclesial
A primeira Ata do Instituto Teológico de Santa Catarina foi
redigida por Ademar P. de Faveri, em 1o de dezembro de 1972, e assim
começa: “No dia primeiro de dezembro de mil novecentos e setenta e
dois, reuniram-se no Arcebispado Metropolitano, em Florianópolis,
das quatorze às dezessete e trinta horas, os senhores Dom Afonso
Niehues, Pe. Paulo Bratti, Pe. Francisco de Sales Bianchini, Pe.
Waldemiro Otávio Piazza e Pe. Eloy Guella, para fazerem deliberações a respeito do funcionamento do Curso de Teologia do Instituto
Teológico de Santa Catarina, no próximo ano de mil novecentos e
setenta e três”. Na reunião seguinte, de 17 de fevereiro de 1973, “foi
feita a comunicação de que os senhores Bispos do Regional Sul IV, em
reunião realizada no dia dez de janeiro do presente ano, houveram
por bem oficializar a criação do ITESC e nomearam para Diretor e
Vice-Diretor, respectivamente, Pe. Paulo Bratti e Pe. Evilásio Volpato”, este, da diocese de Tubarão.
Ficou decidido que as aulas teriam início no dia 8 de março de
1973, dia do início do ano letivo na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, e que o Instituto promoveria “duas semanas teológicas
anualmente”. Tendo em conta o fato consumado, Dom Afonso Niehues
construiu pequeno prédio, de dois andares, no Pantanal, abrigando
os primeiros alunos e as primeiras aulas. Foi denominado “Convívio
Emaús”. Hoje, ampliado, é o Seminário Teológico da arquidiocese de
Florianópolis. As aulas eram ministradas na parte da tarde e funcionavam
em salas cedidas por Convênio pela UFSC. Sem custo.
A sexta reunião aconteceu já nessa sede do Instituto, em 5 de maio
1973. Na espiritualização, Dom Afonso “lembrou a responsabilidade
dos membros do ITESC, pois dele depende o futuro da Igreja em Santa
Catarina”. O Arcebispo repetiu muitas vezes essa frase, especialmente
nos momentos de maiores dificuldades.
A partir de 25 de fevereiro de 1975, as Atas passaram a ser redigidas pelo Pe. Ney Brasil Pereira, recém-chegado de Roma onde,
no Pontifício Instituto Bíblico, recebeu o título de Mestre em Exegese
bíblica. Continuando no dedicado magistério, Pe. Ney simboliza o entusiasmo e a memória histórica do Instituto, não se deixando levar nem
pelo desânimo, nem pelos modismos.
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Encontros Teológicos nº 64
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José Artulino Besen
No terceiro ano de funcionamento do ITESC, o número de alunos
previstos para o início do semestre: 10 no terceiro ano, 5 no segundo, e 13
no primeiro. Destes, 7 eram seminaristas diocesanos, 4 freis capuchinhos,
e duas irmãs da Divina Providência. Em 1980, o ITESC passou a contar
com os seminaristas do PIME. A diversidade de origem, e a presença de
leigos, enriqueceu a comunidade acadêmica.
Em 5 abril daquele ano, 1975, foi inaugurada e ocupada a nova
sede do Instituto, propriedade da Fundação Dom Jaime de Barros
Câmara, entidade mantenedora, nome que prestava homenagem e reconhecimento ao primeiro reitor do Seminário Menor de Azambuja,
primeiro cardeal catarinense e colaborador na criação do Regional
Sul IV. Tinha alojamentos individuais para 25 seminaristas e hoje
sedia o Regional e seus organismos pastorais. Nesse mesmo ano,
Dom Afonso fez construir outro edifício, à Rua Arno Hoeschel,
para o Regional e residência dos professores do ITESC. No tempo
devido, passou a patrimônio da Fundação.
Na seqüência da organização estrutural do Instituto, em 1979
foi inaugurado o edifício-sede do Seminário Maior Catarinense e no
qual hoje funciona o Instituto Teológico de Santa Catarina. Construído
com recursos oriundos da venda do PAULINUM de Curitiba, e com
ajuda da arquidiocese alemã de Köln, foi dividido em alas onde teriam
residência os seminaristas, idealmente cada grupo diocesano com seu
assistente, tendo um Reitor geral. Comuns eram refeitório, capela, área
de lazer e biblioteca.
Permanecia aberta a pergunta: que título e em que nível de reconhecimento os estudantes receberiam ao terminar o curso de teologia?
Uma possibilidade, depois concretizada, foi a assinatura de Convênio
com a Faculdade de Teologia Cristo Rei, de São Leopoldo, dos padres
jesuítas. Sendo essa transferida para Belo Horizonte, houve continuidade na concessão do título eclesiástico de Bacharel, reconhecido pelas
Universidades católicas. Deve ser lembrada, aqui, a contínua presença
da Companhia de Jesus no ITESC, tanto contribuindo com professores
como com a titulação.
Igualmente era desejável a criação de uma Revista teológica,
que receberia as contribuições de professores e de alunos. Após muitas
discussões e propostas surgiu, em 1986, por iniciativa do 2º Diretor, Pe.
Hélcion Ribeiro, a Revista ENCONTROS TEOLÓGICOS que, até os
dias atuais, não sofreu interrupção.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Partida prematura de Padre Paulo Bratti
Na madrugada de 15 de maio de 1982 aconteceu o inesperado:
com apenas 46 anos de idade, no vigor de sua produção teológica,
falecia Padre Paulo Bratti, até essa data Diretor do Instituto. Por
suas qualidades pessoais, espirituais e de liderança, tanto no Instituto
como na Capital, deixou um vazio não preenchido. A Igreja catarinense lhe deve o reconhecimento por sua dedicação e generosidade
na condução do barco em momentos difíceis. Pe. Paulo perdoava
generosamente as críticas, as maledicências: era um homem reconciliado consigo e que vivia intensamente a intimidade com o Senhor.
De tal modo era fiel a seu ministério, que os alunos o apelidavam
de “o Presbítero”.
Pe. Paulo desejava publicar, em livro, alguns dos seus muitos
textos saídos na imprensa local. Pe. José Artulino Besen, professor de
História da Igreja, apresentou material já reunido para esse livro com
46 dos mais de 100 artigos deixados. Com o estímulo de Pe. João Evangelista Martins Terra, SJ, saiu pelas Edições Loyola, com o título “A Fé
no Desterro”.
O retrato de Pe. Paulo está belamente traçado nos três artigos a ele
dedicados na revista ENCONTROS TEOLÓGICOS, por ocasião do 10o
aniversário de seu falecimento: “Paulo Bratti – peregrino do Absoluto”,
do Dr. Paulo Leonardo Medeiros Vieira; “Paulo Bratti – ‘um pecador
que Deus amou’”, de Pe. Ney Brasil Pereira; e “Padre Paulo Bratti –
presbítero da Igreja”, do Pe. José Artulino Besen.
Assumiu como Diretor do ITESC o Vice-Diretor Pe. Orlando
Brandes, e para esse cargo foi escolhido Pe. Valter Maurício Goedert.
No ano de 1982 o primeiro ex-aluno foi nomeado professor: Pe. Siro
Manoel de Oliveira.
O ITESC – Seminário-Pastoral-Academia – DACIT/DAT
Retornemos aos inícios do Instituto Teológico, para alguma notícia
sobre sua vida interna, tantas vezes conflituosa, no que se refere à ligação
Seminário-Pastoral-Academia-Diretório acadêmico.
Logo no início, em 1973, ficou estabelecido que os seminaristas
teriam orientação de prática pastoral dois sábados por mês, e que essa
orientação seria dada pelo Pe. Evilásio Volpato, coordenador de pasto-
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Encontros Teológicos nº 64
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José Artulino Besen
ral da diocese de Tubarão. Além disso, fariam um sábado por mês uma
manhã cultural e uma manhã de espiritualidade. Dos sábados à tarde aos
domingos à tarde se dividiriam pelas paróquias vizinhas, auxiliando na
pastoral. Foi muito fecundo esse serviço às paróquias e comunidades,
especialmente no acompanhamento dos jovens.
Pe. Evilásio insistia, e com ele os coordenadores diocesanos,
que o objetivo do ITESC era “não apenas a formação de pesquisadores, mas de pastores”. Pe. Evilásio externava o desejo de “maior
entrosamento entre ITESC e CNBB. Os alunos do ITESC, uma vez
que estão se preparando para atuar na Igreja de Santa Catarina, deverão estar mais avisados das linhas de ação do Regional”. As coordenações pastorais do Regional e das dioceses queriam uma teologia
pragmática, que ensinasse o agir pastoral, sem perder muito tempo
com a dogmática e uma exegese muito científica. Para eles, o ITESC
deveria ser uma alavanca da modernidade pastoral, uma escola de
presbíteros que soubessem agir, organizar, planejar.
As escolhas não eram fáceis para nenhuma instituição teológica no
Brasil: poucos eram os manuais que expressavam a teologia do Concílio,
poucos eram os professores aptos para uma teologia eminentemente
pastoral. Nos períodos de transição, alguns são afoitos, até simplificando
os problemas e desafios, e outros, mais tímidos.
Essa realidade já se fizera presente no início, na discussão sobre o
Currículo do ITESC: os padres do Regional e Coordenadores de Pastoral (Pe. Osmar Pedro Muller, Pe. Evilásio Volpato, de modo particular)
pensavam num Currículo sem disciplinas específicas de Teologia, mas
estendido pelos 14 Sistemas da Criatividade Comunitária. A teologia/
religião era vista como recheio intelectual. Os bispos catarinenses, porém,
fizeram uma opção, norteadora até hoje da vida acadêmica do ITESC:
uma teologia séria, renovada, aberta à formação de presbíteros pastores.
Renovação dentro da tradição.
Para evidenciar essa opção, fizeram uma escolha muito concreta:
o Pe. Paulo Bratti, catarinense de Orleães, professor de teologia em
Curitiba e Reitor do PAULINUM. Sua formação teológica tinha acontecido em Roma, durante o Concílio, onde tinha escutado com interesse
e proveito os grandes bispos e peritos. Bebera do poço da renovação
conciliar. Humanamente rico, Pe. Bratti sabia acolher o novo e rejeitar o
novidadeirismo, sabia dialogar com a oposição sem acumular amargura.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Fino diplomata no relacionamento humano, tinha noção da distância que
devia percorrer ou dos passos que deveria retroceder.
Pe. Paulo tinha muito nítida a preocupação com a grande tradição
da Igreja católica de ter padres bem formados espiritual e teologicamente,
padres capazes de dialogar com a cultura e não padres triunfalistas arrotando presumidos modernismos. Sofreu incompreensões, marginalização,
mas não deixou de orientar o ITESC no caminho de uma profunda e
atual formação teológica.
Como estava programada a primeira visita oficial dos Bispos
de Santa Catarina ao seu Instituto Teológico em 17 de junho de
1975, Pe. Bratti sugeriu a formação de um grupo de trabalho para a
redação dos objetivos do ITESC, levando em conta a “tensão entre
pastoralistas e teólogos”. Quanto a esses objetivos, Pe. Bratti e Pe.
Brandes apresentaram uma proposta por escrito, logo submetida aos
outros professores. No debate, observou-se o seguinte: 1) evitem-se,
na redação, os termos de conotação emocional, p. ex., antiintelectualismo, pragmatismo, e os “ismos” em geral; 2) levem-se em conta
as possibilidades da metodologia indutiva, também na Teologia,
procurando-se partir da realidade; 3) que haja integração com os
objetivos do Regional Sul IV; 4) que professores e alunos tomem
consciência da necessidade do estudo aprofundado, para a obtenção
do imprescindível conteúdo teológico; 5) que se favoreça a integração
com a Universidade, tirando-se as conseqüências da presença física
do ITESC no campus universitário. Quanto à Pastoral Universitária,
viu-se a sua necessidade de fazer um planejamento.
Os problemas e soluções são diferentes, mas interdependentes.
Um bocado das tensões entre a Academia e a Pastoral se alimentavam
de outra tensão: o conflito entre o ITESC-Seminário e a Academia. Na
reunião de 29 de setembro de 1975, foi questionado se a “atmosfera”
da casa-seminário era realmente de estudo. Constatou-se que “há conscientização nesse sentido, mas falta intensidade, perde-se tempo: ‘o dia
começa tarde e termina cedo’; as críticas são feitas à base de slogans ou
rótulos, faltando o aprofundamento; o clima é de dispersão; os alunos
criticam, mas não levam a sério a própria crítica...”.
Pe. Bratti, querendo amenizar esse quadro um tanto negativo, deu
o testemunho de quem convive continuamente com os alunos, como
seu Reitor, dizendo que “neles nota sinceridade, esforço, espírito crítico
sincero”. Mas Pe. Orlando Brandes, retrucando ao depoimento, observou
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que não se trata de defender a situação antes criticada, mas de procurar
soluções objetivas, concretas, para os vários pontos.
Assim, pela primeira vez numa Ata, focalizou-se o problema
que, anos depois, ia ser equacionado com a separação entre as duas
Instituições: o ITESC-Academia e o ITESC-Seminário. O aluno não
distinguia entre professores e formadores que, em alguns casos, eram
os mesmos, e entendiam certas aulas como repreensão por seu comportamento em casa.
Diretório acadêmico dos estudantes – buscas e contrastes
Para conduzir o diálogo dos alunos entre si e apresentar suas
aspirações à Academia, falava-se na necessidade de um diretório
acadêmico que também representasse o ITESC junto à Universidade.
Após idas e vindas, em 9 de agosto de 1976, a assembléia dos alunos
concretizou o Diretório Acadêmico do Instituto de Teologia-DACIT,
depois alterado para DAT.
A 26a reunião do Colegiado, em 19 de novembro de 1976, contou pela primeira vez com a representação do Diretório Acadêmico
na pessoa do seu Presidente, o aluno Agenor Brighenti. O DACIT,
através do Presidente, apresentou uma “carta aos estudantes” fazendo
uma enquete e propondo um debate sobre os estudos do ITESC no
ano de 76. Comunicou também a adesão do DACIT ao manifesto dos
outros Diretórios da UFSC contra a continuidade da prisão política
do Prof. Marcos Cardoso Filho. A propósito, Pe. Bratti observou que
“essa participação, certamente elogiável, deveria estar condicionada
a um entendimento prévio com a Diretoria do Instituto, dada a característica especial do DACIT”.
Outro conflito foi motivado pelo fato de o DACIT ter sido copromotor da visita de Fernando Gabeira à UFSC, tratando-se de um
“marxista considerado amoral e perigoso”. Vivia-se nos anos de chumbo
do regime militar, e todo questionamento à ordem constituída era visto
como esquerdismo, comunismo. Nesses conflitos, Pe. Paulo enfrentava
as críticas de diversos padres catarinenses, que suspeitavam de sua presumida simpatia pela direita
Em 1977, o citado Presidente do DACIT, Agenor Brighenti, propôs uma nova metodologia de trabalho acadêmico no ITESC, a partir da
enquete realizada entre os alunos no ano precedente: “o professor não
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
ensina, mas é companheiro na pesquisa, na qual todos se empenham...
Daí, a ausência de aulas expositivas...” Seguiu-se animado debate, com
muitos questionamentos dos professores, sintetizados na ata. Brighenti
insistiu no fato da insatisfação dos alunos. Pe. Bratti sugeriu um confronto entre a proposta do DACIT e o recente documento da Santa Sé
sobre a formação teológica (“A formação teológica dos futuros sacerdotes” - 1976). Na revisão do primeiro semestre, em junho de 1976, o
representante do primeiro ano, José Fritsch, mencionando a “falta de
motivação” e o “descontentamento com a metodologia”, disse que “há
muita vontade de ‘fazer teologia’, mas os professores não correspondem...”. O descontentamento continuou e, na reunião do Conselho de
outubro do mesmo ano, o representante do 1o ano, José Lino Buss, disse
que, “dos professores, alguns dão apostila, mas lêem; outros não dão,
e torna-se difícil acompanhá-los; alguns bancam ‘donos da verdade’ e
não aceitam o diálogo”.
Esse período, difícil porque a época era difícil também nas outras
instituições universitárias, que exigiam diálogo, abertura, consciência
social e, no caso específico do ITESC, uma Igreja livre de imposições
teológicas, se estenderá até o final da década de 80, com a separação
entre comunidade seminarística e comunidade acadêmica. A Ata de 25
de abril de 1978 reporta mais severas contestações, não muito objetivas:
Pedro Damásio “falou da sensação de esterilização, diante de métodos
primários de exposição e de verificação, do desligamento da realidade...”
E José Fritsch, presidente do DACIT, chega a dizer: “A gente era ativo,
estava evoluindo dinamicamente, e aqui involui, perde o ânimo. Se nada
funciona aqui no ITESC, então algo de profundo deve ser mudado”.
No dia 23 de novembro de 1978, houve uma reunião extraordinária dos professores com os senhores Bispos de Joinville e Chapecó,
respectivamente, Dom Gregório Warmeling e Dom José Gomes. Ambos
encontravam-se em visita ao ITESC em nome do Regional, e ouviram
também os alunos. Concluindo a ata, o secretário anotou que “esse encontro apenas chegou a tocar na chaga, a qual poderia ser resumida no
seguinte: há um fosso entre professores e alunos, e vice-versa, difícil de
transpor. De outro lado, o ITESC, como obra necessária da Igreja em
Santa Catarina, e com estes recursos humanos que temos (estes professores, não outros; estes alunos, não outros) deverá vencer, pelo diálogo
e o esforço mútuo, coadjuvado pela graça de Deus, esta situação que se
apresenta como um verdadeiro impasse”.
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Nas reuniões seguintes, os comentários são mais moderados e
objetivos permanecendo, porém, o problema: que teologia? que tipo de
padre? qual o lugar do social na formação e no ministério?. Pe. Bratti, até
para animar os professores nesse ambiente não amistoso, insistia em que
“um professor de Teologia é antes de tudo confessor da Fé: confessor é
também o que sofre humilhações pela fé”. Pe. Orlando Brandes lembrava
que a teologia do ITESC parecia não estar respondendo à preocupação
dos alunos com o social. Apontou algumas falhas essenciais, a seu ver: a)
da parte dos professores, falta de conteúdo teológico, e falta de conteúdo
‘libertário’, isto é, de Teologia da Libertação; b) da parte dos alunos, falta
de assumirem o seu dever de estado, por causa do ‘contexto fácil’ e dos
preconceitos com que já vêm para a Teologia.
Em 1979, a Igreja latino americana celebrou a Conferência geral
em Puebla, no México. Retomando as opções de Medellín (1968), o
tom do enfoque social na pastoral foi acentuado, marcando as alegrias
e tristezas do período.
Em julho de 1982, Pe. Orlando relatou algo sobre o Encontro da
Organização dos Seminários e Institutos Filosófico-Teológicos do BrasilOSIB em Brasília, de que participara e donde colheu esses temas que são
os mesmos em todo o Brasil: as reflexões sobre o “tipo de Padre”, para que
“tipo de Igreja”, prevalecendo o conceito de Igreja ministerial, portanto,
do Padre-ministro, servidor do povo de Deus. Na Teologia ensinada, vários Institutos optam decididamente pela Teologia da Libertação. Pe. Ney
referiu-se também ao Encontro nacional de Liturgia, em Belo Horizonte,
marcado por uma grande preocupação pela inserção da Liturgia no social,
mas sem qualquer alusão aos documentos da Santa Sé. Pe. Debiasi, referindo-se a um Encontro de formadores do Clero, no Paraguai, mencionou
a insegurança e o pluralismo das diretrizes na formação do Clero. Pe. Ney
observou que, “dentro desse pluralismo, é preciso manter a identidade do
nosso Instituto: seriedade e fidelidade à Igreja”.
A última reunião do ano de 1982, em 7 de dezembro, contou com
a presença do sr. Arcebispo, Dom Afonso, e de Mons. Valentim Loch,
recém-nomeado Reitor do Seminário do ITESC. Pela sua história de
vida, pela respeito recebido no meio do clero catarinense, Mons. Valentim foi julgado o nome adequado para assumir a reitoria. Dom Afonso
comunicou também que Pe. Evaristo Debiasi fora nomeado Orientador
Espiritual do Seminário.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Mesmo com toda a sua boa vontade, Mons. Valentim não conseguiu apaziguar o ambiente inteerno, pois julgava que ainda poderia
pedir silêncio, pontualidade, estudo... Logo reconheceu a dificuldade e,
a partir de 1984, a reitoria foi assumida pelo Pe. Nilo Buss, da diocese
de Tubarão e aluno da primeira turma do ITESC. Os problemas tornaram-se mais serenos ao em 1988/1989, quando se separou o ITESC do
Seminário, cada diocese tendo os alunos em seminário próprio e com
formador próprio.
João Paulo II e a grande disciplina
O ITESC viveu 25 anos sob o pontificado de João Paulo II (19782005), o papa que veio do Leste. É difícil não se cair na injustiça ao
se fazer uma avaliação desses 25 anos woytilianos. Alguns preferem
o refrão “esse Papa só fez retroceder”; ou então, “esse Papa colocou a
Igreja nos eixos”. Se isso fosse verdade, o Espírito seria descartável e a
Igreja estaria na mão voluntariosa de um ser humano. Houve, de fato,
um retrocesso no sentido de viver grandes utopias sociais. Com a queda
do Muro de Berlim e o colapso do Império soviético (1989-1990), a
governança global mergulhou no neo-liberalismo, onde o que conta é o
capital financeiro, o verdadeiro agente administrativo do mundo.
Para conhecer melhor a realidade da formação presbiteral no
Brasil, João Paulo II promoveu o envio de visitadores apostólicos para
os seminários, cujo fruto mais vistoso e doloroso foi o fechamento do
Instituto Teológico do Recife – ITER e do Seminário Regional do Nordeste – SERENE, em 1989. Eram as duas jóias da coroa de Dom Hélder
Câmara, o qual sentiu a decisão de seu sucessor a partir de 1985 como
punhalada pelas costas.
Em 1988, também os seminários catarinenses e o ITESC receberam
a visita na pessoa de Dom Ivo Lorscheiter, bispo de Santa Maria, RS,
homem sumamente aberto. Na ocasião da visita, encontrou o ambiente
meio conturbado, como acontece periodicamente com as instituições
formativas. Nas entrevistas com alunos e professores, Dom Ivo captou
essa insatisfação e incluiu-a no Relatório entregue à Santa Sé. Evidente
que os problemas foram contornados ficando, porém, a notícia. Quando,
em março de 1991, Dom Eusébio Oscar Scheid,SCJ assumiu como arcebispo de Florianópolis, disse que, entre seus trabalhos, um seria “pôr
a casa em ordem”, por casa entendendo-se o ITESC. Para surpresa sua,
não havia casa desarrumada.
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Encontros Teológicos nº 64
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José Artulino Besen
Os Seminários Teológicos catarinenses
Em 1988 foi desativado o Seminário que, no mesmo prédio, congregava diferentes dioceses, causa de diversos conflitos, pela mistura de
vida comunitária e academia, como analisamos antes. Em vez de um único
grande seminário regional, optava-se por seminários diocesanos, com a
opção de morar em residências simples, nas periferias de Florianópolis.
Um medo: ser alienado; um sonho: ser libertador. É claro que o binômio
não funciona por não ter lógica, mas motivou as opções sérias de muitos
itesquianos em seu posterior atuar pastoral. A redemocratização de 1984, a
maioridade dos Movimentos populares, dos partidos, sindicatos, mostrou
que a Igreja não é dona da justiça social, mas motivadora, fermento na
massa, humilde servidora dos pobres, apoiando os movimentos populares.
Sem uma profunda espiritualidade, sem uma séria reflexão teológica,
pouco fará o presbítero por um mundo novo.
A partir de 1994, as aulas passaram da UFSC às atuais dependências do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, onde antes
funcionava o grande Seminário, e na parte da manhã. Alguns alunos
reclamaram da perda de contato com a Universidade, mas, de fato, a
Universidade não tinha mais salas à disposição. A anterior convivência
seminário-academia tinha a vantagem da troca de experiência, mas a
desvantagem da mistura dos “humores” com a identificação professorformador.
A questão das Ordenações diaconais e presbiterais alcançou uma
qualidade maior. No sistema anterior, os bispos ordenavam sseminaristas
sem muito levar em conta a opinião dos padres e formadores. Com cada
Diocese tendo seu Seminário e Reitor, ficava melhor a qualidade da formação e da informação aos Bispos, que levam em conta os escrutínios
encaminhados pelo Reitor.
Também foi decidido que os Bispos não aceitariam ex-seminaristas, decisão unânime mas não unívoca, pois um bispo diocesano é
livre em suas escolhas. Aqui se percebe a conseqüência de experiências
feitas e a mudança do perfil do episcopado catarinense. O perigo nesse
processo é a dificuldade maior da transparência na formação: sabendo
estar sendo cobrado para a ordenação, o seminarista assume, mesmo não
concordando, uma espécie de convivência pacífica, para ser ordenado.
Depois de ordenado, pode surpreender negativamente. Evidente que essa
nota vale para alguns casos apenas.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Cronologia dos Seminários teológicos
Assim aconteceu a fundação dos seminários teológicos, diocese
por diocese.
Diocese de Florianópolis: Em 1989 estabeleceram-se dois grupos:
um, pequeno, no Morro da Mariquinha-Monserrat, e a maioria, no atual
prédio do Regional Sul IV. Dom Afonso sentiu muito essa realidade
nova, que aceitou como sofrimento pelo seu áureo jubileu presbiteral. A
partir de 1999, todos foram transferidos para o novo edifício “Convívio
Emaús”.
Diocese de Lages: Em 1976, os seminaristas residiam num edifício
da Fundação, depois adquirido pela diocese. Com a construção da nova
casa, a partir de agosto de 2008 a Diocese de Lages passou a contar com
uma residência ampla, o “Seminário Dom Honorato Piazzera”.
Diocese de Chapecó: Devido às distâncias e a uma especial orientação teológica, em 1990 Dom José Gomes e seu presbitério decidiram
manter seus seminaristas no território da diocese, optando pelo ITEPA,
o vizinho Instituto Teológico de Passo Fundo, RS. Uma opção que de
certo modo frustrou a intenção primordial do ITESC, destinado a todas
as dioceses catarinenses.
Diocese de Caçador: Em 1989 foi inaugurado o “Seminário Teológico São José”, no bairro Pantanal, bem perto do ITESC.
Diocese de Joaçaba: Criada em 1975, ainda não possui seminário
próprio, tendo sido acolhida pela diocese de Lages. Dom Henrique Muller, OFM, primeiro bispo, no decorrer do tempo enviava os seminaristas
para União da Vitória, PR, pois não concordava com a linha teológica
do ITESC.
Diocese de Tubarão: Em meados de abril de 1989, saiu do Seminário o primeiro grupo, que se estabeleceu em uma casa no bairro Pantanal;
em seguida, outro grupo estabeleceu-se no Ribeirão da Ilha; um terceiro
grupo, num apartamento, na Trindade. Durante as férias de julho de 1989
foram iniciados os trabalhos de construção do que viria a ser o primeiro
Seminário Teológico da Diocese de Tubarão, instalado modestamente na
Serrinha. Em 1998 foi inaugurado o “Seminário Teológico de Tubarão –
SETT” em terreno da Fundação e situado atrás do ITESC.
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Encontros Teológicos nº 64
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José Artulino Besen
Diocese de Criciúma: Criada em 1998, seus estudantes residiam
junto com os seminaristas da Diocese de Tubarão. O “Seminário Teológico Bom Pastor” foi inaugurado em agosto de 2003.
Diocese de Joinville: Em 1988, os estudantes foram morar numa
casa no Morro do Horácio e, em seguida, na residência do Pe. Vilmar
Adelino Vicente, no bairro Santa Mônica. Em 2001 foi inaugurado
o “Seminário Teológico Nossa Senhora de Guadalupe”, nos altos do
Pantanal.
Diocese de Rio do Sul: Em 1989, os seminaristas ocuparam residência na Rua São Marcos, no bairro Carvoeira. A partir do ano 2000,
têm o Seminário Teológico na Trindade.
Diocese de Blumenau: Criada em 2000, seus seminaristas residiam
com os de Joinville. Em 2009, foi inaugurado no bairro Santa Mônica o
“Seminário Diocesano de Teologia da Mãe de Jesus”.
Inicialmente vista com suspeita, a história dos seminários teológicos diocesanos revelou-se positiva para a vida do ITESC. Outro
ponto: a idéia inicial era posicionar os seminários em locais pobres, nas
periferias de Florianópolis. Posteriormente foi constatada e assumida a
melhor localização nas proximidades do ITESC.
O Seminário Filosófico Catarinense
No dia 26 de agosto de 2012 o Seminário Filosófico de Santa Catarina – SEFISC festejou os 30 anos de criação jurídica. Mas, sua história
concreta tem início antes, e não se confunde com a fundação oficial.
Desde a criação do ITESC, em 1973, Dom Afonso Niehues, arcebispo
de Florianópolis, falava aos bispos catarinenses da oportunidade de se
encontrar um caminho colegial também para a Filosofia, pois a Santa Sé
recomendava estudos filosóficos.
O caminho colegial já estava acontecendo desde 1969, quando as
dioceses catarinenses deixaram de enviar para Curitiba (PAULINUM)
os seminaristas que concluíram o 2º Grau. Optou-se, então, por cada
Diocese deixá-los em seu território, cursando uma faculdade de Ciências
humanas, na falta de Filosofia. A arquidiocese de Florianópolis, concretamente, deixou-os residindo em Azambuja. Os Padres dehonianos, de
boa vontade os matricularam em seu Curso filosófico, ainda no velho
Convento. Isso em 1970.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Com o início do ITESC, pouco a pouco se percebeu a carência de
formação filosófica naqueles seminaristas que estudavam em faculdades
públicas. Era questão de enfrentar o desafio de um Filosofado catarinense. Ao mesmo tempo, Pe. Orlando Maria Murphy, SCJ, de saudosa
memória, tinha criado em Brusque um curso de extensão da Fundação
Universidade Regional de Blumenau-FURB. Assim, na parte da manhã
os seminaristas estudavam Filosofia no Convento e, à noite, cursavam
disciplinas complementares na FURB-Brusque. Pe. Orlando, grande
dinamizador dos estudos em Brusque, e que foi Reitor da FURB, em
1973 fundou a FEBE, Fundação Educacional de Brusque, hoje UNIFEBE. Com isso, resolvia-se o problema de os seminaristas não terem um
curso reconhecido.
Em 1978 Dom Afonso retornou ao assunto com os bispos catarinenses. Passo concreto, Dom Tito Buss, bispo de Rio do Sul, pediu que
a arquidiocese acolhesse seus seminaristas em Azambuja. E assim, em
1979 chegaram 5 seminaristas riosulenses para o Seminário de Azambuja.
Assistente da comunidade de Filosofia era o Pe. José Artulino Besen, que
também lecionava na FEBE. Essa vinda estava condicionada à construção
de um prédio, na cidade, para a residência dos filósofos. Pe. Orlando se
entusiasmou, deu início à construção desse prédio em 1979 mesmo, onde
hoje é a sede da Faculdade São Luís. Mas, não foi possível concluí-lo.
Os bispos – com exceção de Tubarão – já contavam com essa
solução e, agora, o que fazer com os seminaristas em 1980? Dom Afonso promoveu a adaptação do dormitório dos menores no Seminário de
Azambuja, que foi dividido, recebendo sala de reuniões e 7 quartos de
bom tamanho, e ainda havia vagas no terceiro andar.Assim, em 1980
chegaram a Azambuja mais estudantes: 7 de Chapecó, 5 de Lages, 3 de
Joinville, 8 de Rio do Sul, 3 de Caçador. No total, eram 36 estudantes
de Filosofia, tendo como assistente o Pe. José Artulino Besen. Não foi
nada fácil trabalhar com seminaristas de mentalidades e formação bastante diferenciada, não havia estatuto formativo, enfim, tudo foi feito
com boa vontade.
Nesse mesmo ano de 1980, Dom Afonso, Pe. Vito Schlikmann
(reitor de Azambuja) e Pe. José Artulino Besen procuraram terrenos em
Brusque, e terrenos que facilitassem a locomoção para a FEBE. Finalmente foi encontrado um que pareceu o melhor, em Santa Teresinha, de
propriedade de Walmor Vecchi. A construção dos blocos teve início sob
orientação de Dom Gregório Warmeling e supervisão de Pe. Agostinho
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Encontros Teológicos nº 64
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Staehelin, pároco em São João, Itajaí. Pe. Orlando, percebendo que a
construção não iria vingar tão cedo, em 1981 recebeu numa ala do antigo
Colégio Santo Antônio os seminaristas de Lages e Joinville, que deixaram
Azambuja por falta de espaço. Ele mesmo se encarregou da formação,
auxiliado pelo Pe. Pedro Canísio Rauber, reitor do Convento SCJ.
A construção do Seminário andou rápido, para alegria dos senhores bispos. E, em 1982, a casa foi inaugurada com a chegada de novos
seminaristas e os que estavam no antigo Colégio Santo Antônio e em
Azambuja. O primeiro reitor foi o Pe. Alcido Kunzler, da diocese de
Chapecó, heróico batalhador. Dom Tito pediu que seus seminaristas
continuassem em Azambuja, o que aconteceu até 1983.
Posteriormente, os padres dehonianos criaram seu próprio filosofado reconhecido pelo MEC, a Faculdade São Luiz, onde foram matriculados os seminaristas residentes no SEFISC. A Faculdade São Luiz,
iniciada no ano 2000, foi autorizada pelo MEC em 2004 e credenciada
em 2005. Os seminaristas diocesanos deixaram a FEBE e passaram a
freqüentar essa Faculdade, que oferece estudos filosóficos completos.
ITESC – Faculdade reconhecida
Desejo do episcopado catarinense, e dos padres e seminaristas, era
que os estudos teológicos ou tivessem reconhecimento oficial ou oferecessem um título aos formados. Desde o início havia essa preocupação.
Lembro que em 1959, na criação da UFSC, Dom Joaquim Domingues
de Oliveira endereçara consulta ao Reitor João Ferreira Lima a respeito
de a Universidade Federal abrigar o curso de Teologia. A resposta foi
negativa pois, no Brasil, uma entidade pública não pode subvencionar
determinada religião ou Igreja, devido à separação Igreja-Estado.
Pouco mais de duas semanas após a aprovação do ITESC, na
reunião de 19 de dezembro de 1972, compareceu o Prof. Nereu do
Vale Pereira, que aceitou a incumbência de estudar o regimento e a
oficialização do Instituto. Ele entraria com o processo no Conselho
Estadual e também no Conselho Federal de Educação, para verificar
a possibilidade do reconhecimento. Enquanto isso, Pe. Francisco de
Sales Bianchini, Professor na UFSC, ficou encarregado de conseguir
da Universidade uma sala de aula para o nascente curso o que, felizmente, se conseguiu.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Em 5 de maio de 1973, Pe. Paulo Bratti, Diretor, deu notícia
da audiência que Dom Afonso Niehues e ele tiveram com o Reitor da
UFSC, visando a “agregação do ITESC” à Universidade. Nesse sentido,
foi entregue ao Reitor “um processo com mais de trinta páginas”... Na
reunião seguinte do Colegiado, realizada em 26 de junho, o próprio Arcebispo, Dom Afonso, comunicou que o pedido de “agregação” à UFSC
fora indeferido pela Comissão Consultiva da Universidade. Em vista
disso, haviam sido tomadas providências para novo pedido, em forma
de convênio com a UFSC.
No ano seguinte, Pe. Francisco de Sales Bianchini, professor
e Chefe de Departamento na UFSC e Relações Públicas do Instituto
com a UFSC, comentou que o “convênio” com a Universidade estava
em andamento, pois as salas eram cedidas sem a formalização de um
documento que garantisse a cessão. As aulas do ITESC, ministradas
no ano anterior numa sala do Campus pela manhã, passaram a ser
ministradas à tarde, por conta do espaço disponível. O Convênio
ITESC-UFSC foi assinado em 23 de dezembro de 1974 e vigorou até
1994. Comentou-se que as vantagens eram poucas, comparadas com
as que se previam para os primeiros projetos, sucessivamente reelaborados (Cursos de extensão, intercâmbio, pastoral). Entretanto, é já
alguma coisa, e o ITESC recebia assim um primeiro reconhecimento
oficial, embora incipiente.
A presença dos itesquianos no Campus da UFSC representava mais
um sonho de presença ativa do que a realidade de simples presença física.
Os estudantes universitários se unem e reúnem por áreas de interesse, o
mesmo acontecendo com os estudantes de teologia. Concretamente, no
início da década de 1980 houve uma presença mais ativa do Diretório
Acadêmico-DAT junto à UNE e à UDCE, patrocinando causas de direitos humanos e de liberdade. Era presidente do DAT Serenito Moretti,
da diocese do Rio do Sul.
Reconhecimento dos estudos
Quanto ao reconhecimento junto a uma Universidade Pontifícia,
em 1976 Pe. Afonso Birk, jesuíta e professor no ITESC, ficou encarregado de fazer as devidas sondagens. Pe. Birk tinha sido o primeiro e
último capelão da UFSC e fora excluído no início dos anos de chumbo
da ditadura militar, em 1968. Convém lembrar a presença amiga dos
padres jesuítas tanto como professores ordinários como para ministrar
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cursos intensivos. Aqui podemos citar o Pe. João E. Martins Terra, Pe.
Francisco Taborda e o Pe. Luís Stadelman.
Foi essa presença, com a intermediação do Colégio Catarinense,
que, na reunião de 30 de abril de 1976, levou a se falar no “diploma”
a ser conferido aos alunos que concluíssem o curso com todos os requisitos (tesina e exame “de universa”), e decidiu-se conferir o título
de Bacharel em Teologia com a possível agregação à Faculdade dos
Jesuítas de São Leopoldo, RS, ou mesmo à da PUC do Rio. Aliás, Prof.
Celestino Sachet, consultado, informou que, segundo informação do Pe.
Vasconcelos, “ainda não há clima, no Conselho Federal de Educação,
para o reconhecimento oficial do curso de Teologia”. Mas que, aqui, está
surgindo a possibilidade de a UFSC organizar o curso de pós-graduação
em Filosofia com a opção da Teologia, possibilidade a ser verificada
pelo ITESC. Isso foi muito sonhado e com muita seriedade: um curso de
Teologia e de Ciências da Religião. Foram feitas gestões junto a UFSC
e a FURB, mas sem sucesso.
Na reunião dos professores, no dia 21 de fevereiro de 1978, Pe.
Bratti comunicou que fora feito oficialmente o pedido de agregação
do ITESC à Faculdade Teológica do Cristo Rei, de São Leopoldo, RS:
o documento, assinado no dia 30 de janeiro pelo Sr. Arcebispo Dom
Afonso e pelo Diretor da Faculdade, já tinha sido encaminhado a Roma,
para a sua esperada aprovação. Em 5 de maio de 1978, a 27ª reunião do
Conselho Departamental começou com a notícia de que “a direção da
Faculdade de Teologia dos Jesuítas, de São Leopoldo, concordava com
a nossa afiliação a eles. Para isso, os professores deverão entregar logo
a documentação referente ao seu currículo acadêmico e aos programas
dos seus cursos”.
Em 1981, a Faculdade de São Leopoldo foi transferida para
Belo Horizonte, onde se estabeleceu o novo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, antes projetado para Brasília. É a
essa Faculdade Teológica, dos jesuítas, que o ITESC se afiliou. A cada
final de ano acadêmico, um professor da Companhia de Jesus vem
ao ITESC para participar da banca examinadora dos estudantes que
terminaram os estudos. Nos primeiros anos, os alunos não demonstravam muito interesse em obter o Bacharelado. Com o tempo, porém,
viu-se o quanto valia esse título, especialmente nas Universidades
européias, pois era (e é) conferido por uma Faculdade da Companhia
de Jesus. Atualmente os bispos catarinenses exigem o título para a
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
admissão às Ordens sacras. Deve-se aqui salientar a boa fama que o
ITESC conserva junto a Belo Horizonte, fruto da seriedade de seus
professores e alunos e de seu currículo.
A Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC
Desde 1975, o ITESC se fez promotor da iniciação bíblicoteológica para os leigos, oferecendo-lhes cursos noturnos, geralmente
no início da semana. Ao mesmo tempo, estabeleceu convênio com
Movimentos populares validando e acompanhando cursos pastorais por
eles oferecidos.
Permaneceu, porém, o projeto de uma Faculdade reconhecida pelo Governo, projeto sempre complicado pelo espírito laico/
laicista dos Conselhos estaduais e federal de Educação, o que não
acontece em países europeus, que mantêm Cursos de Teologia em
suas Universidades. Isso mudou, no Brasil, quando o Conselho
Nacional de Educação afinal reconheceu a existência dos Cursos de
Teologia. Em 1999, esse Conselho emitiu o Parecer 241, que dava
a possibilidade de os cursos de teologia serem autorizados e reconhecidos pelo MEC. O curso de Teologia dos Padres dehonianos em
Taubaté, SP, foi o primeiro a ser reconhecido, em 2001. Conforme
a lei, o credenciamento dá-se após 4 anos de funcionamento e de
acompanhamento pelo MEC.
O ITESC passou a trabalhar pelo reconhecimento de seu curso,
conforme desejo desde sua fundação. Foi sob os períodos de Direção de
Pe. Vilmar Adelino Vicente (1999-2002), Pe. Agenor Brighenti (20032005) e Pe. Vitor Galdino Feller (2005- ...) que foi iniciado e continuado
o processo de documentação, projetos e preenchimento de exigências para
o reconhecimento do Curso de Teologia como Faculdade. Foram muitas
as exigências, tanto em nível acadêmico como de instalações.
Após muito trabalho, recomeços e perseverança, veio a notícia
esperada: A FACULDADE CATÓLICA DA SANTA CATARINAFACASC foi credenciada pelo Ministério da Educação, pela Portaria n.
1.823, de 30 de dezembro de 2012, publicada no Diário Oficial da União
em 02 de janeiro de 2012. Assim, já em fevereiro de 2012 foi promovido o processo seletivo (vestibular) e a grade curricular foi adaptada às
novas exigências.
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Sua mantenedora é a Fundação Dom Jaime de Barros Câmara.
Os alunos que passarem pelo processo seletivo e concluírem o curso,
receberão o bacharelado em Teologia e, paralelamente, continuarão
a receber o bacharelado eclesiástico pelo ITESC. Isso foi muito importante: a insistência de conservar a ligação com os Padres jesuítas e
seu Curso em Belo Horizonte porque, desse modo, os estudantes que
preenchem os requisitos recebem o duplo Bacharelado: eclesiástico
e civil. Talvez se gaste tempo e recursos com burocracia, o que se
constitui tradição em solo brasileiro, mas vale a pena.
Com essa etapa do reconhecimento da FACASC, o ITESC
ingressa numa nova fase, coroando 40 anos de trabalho dos senhores
bispos, diretores, professores e alunos. Como antes, são oferecidos
cursos de pós-graduação nos meses de férias, agora, porém, com reconhecimento oficial.
Creio ser justo, nesta altura da história, citar os nomes dos Diretores do ITESC. Com competência e muita paciência tornaram possível
o caminho formativo do clero catarinense e de tantos leigos e leigas que
freqüentaram seus cursos:
– Pe. Ms. Paulo Bratti (1973-1982)
– Pe. Ms. Orlando Brandes (1982-1984)
– Pe. Dr. Hélcion Ribeiro (1985-1986)
– Pe. Ms. Ney Brasil Pereira (1987)
– Prof. Daniel E. Ramada Piendibene (1988-1º. semestre de
1989)
– Pe. Dr. Vitor Galdino Feller (2º. semestre de 1989-1993)
– Pe. Dr. Manoel João Fran­cisco (1994-1998)
– Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente (1999-2002)
– Pe. Dr. Agenor Brighenti (2003-2005)
– Pe. Dr. Vitor Galdino Feller (2005- ...).
À sua firmeza e dedicação o ITESC deve a perseverança aos ideais
dos fundadores de 1973.
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
Uma visão de conjunto
Os 40 anos do ITESC podem ser lidos através de quatro contextos
da vida na Igreja e da Igreja no Brasil, que não são excludentes, mas
indicam acentuação:
1. O Concílio Vaticano II (1962-1965) – eclesiologia do Povo
de Deus, da comunhão. No Brasil – e no Paulinum-ITESC – a
preocupação com o pastoreio, os problemas psicológicos das
pessoas: o padre deve ser um pastor e um psicólogo.
2. Conferências de Medellín e de Puebla (1968 e 1979) – opção
preferencial pelos pobres: a ação do padre deve ser orientada
para o “povo”. O padre deve ser um agente de transformação
social.
3. João Paulo II e a Nova Evangelização: retorno à vida interna
da Igreja, à grande disciplina, à eclesiologia. O padre deve ser
um agente do sagrado e da instituição.
4. O êxodo rural, a urbanização (87%) e os movimentos católicos
e pentecostais. A preocupação com a perda de fiéis, com dados
estatísticos. Há uma modernização da pastoral, mas que não
consegue superar o substrato rural: procissões, devoções, novenas, santos. Chama a atenção a origem urbana das vocações,
especialmente das classes mais humildes.
Nossa época é marcada pela busca do religioso, do sentimento
do divino, mas pouco pela busca da fé. Numa época de poucos ideais,
como o é a pós-modernidade, o grande mal é a falta de fé, representada por três males na vida da Igreja clerical: estetismo invasivo
(confunde-se celebração litúrgica com cerimônias, paramentações,
clericalização dos ministérios leigos), verbalismo (confunde-se o
anúncio da Palavra que salva com estrelismo de pregadores popstar
cuja espiritualidade é inversamente proporcional ao tamanho dos
sermões e cujo sucesso é medido pelas “conversões” e milagres) e
moralismo (a comunidade das Bem-aventuranças, como deve ser a
Igreja, é substituída pela comunidade dos 10 Mandamentos, da moral
reduzida a preceitos de ordem sexual, com casuísticas para demarcar
o campo do pecado como se ainda houvesse cristãos interessados
nessas recomendações). Contra o espírito ecumênico e do diálogo
inter-religioso, percebe-se retorno ao fechamento denominacional, à
acentuação de que somente a Igreja católica tem a verdade.
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Encontros Teológicos nº 64
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Nossa época é revolucionária, de pouca memória, de rapidez de
técnicas, do subjetivismo, mas também da busca da subjetividade, de
pessoas em busca de sentido para suas vidas, de uma fé madura, escolhida. É época que oferece aos padres e evangelizadores o grande dom
de anunciar a Cruz redentora e a Palavra que dá vida. Como todas as
épocas, esta também é de evangelização, nova, como todas.
Escreveu o Pe. Adolfo Nicolas Pachón, superior geral dos Jesuítas:
“A nova evangelização tem início com a descoberta do que Deus fez no
povo. Isso antes de dizer o que eu quero ou o que eu penso que Deus
quer dizer. Não nos esforçamos bastante para descobrir o que Deus fez
no povo e nos povos. Deus está trabalhando antes que nós cheguemos.
Já está trabalhando. Isso vale tanto para as missões no Oriente como
para o trabalho com o povo.
Nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas
casas religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta,
os nossos ritos e os nossos hábitos são pomposos. O padre Karl Rahner
usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas:
“Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas, que muitas vezes
me assola uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas
das cinzas, de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar,
devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias
de generosidade como o bom samaritano?”.
Perguntaram ao Cardeal Carlo Martini, SJ: Que instrumentos o senhor aconselha contra o cansaço da Igreja? Ele
respondeu: Conversão, Palavra, Sacramentos. Reconhecer os
próprios erros, restituir a Bíblia ao católicos, oferecer o acesso aos
Sacramentos, pois têm poder de cura. Se limitarmos a recepção dos
Sacramentos aos que estão “em dia”, estaremos privando os doentes
da cura e libertação. A Igreja é mãe e quer a saúde de seus filhos.
“Antes da Comunhão, nós rezamos: “Senhor, eu não sou digno...”.
Nós sabemos que não somos dignos [...]. O amor é graça. O amor é
um dom. A questão sobre se os divorciados podem comungar deve ser
invertida. Como a Igreja pode ajudar, com a força dos sacramentos,
aqueles que têm situações familiares complexas?
Encerrando: o Clero catarinense, hoje, realiza o que Dom Afonso
falara há 40 anos: é o futuro tornado presente da Igreja catarinense. Santa
Catarina pode se orgulhar de seus padres, de sua qualidade humana e pastoral. O ITESC/FACASC não tem fôrma: nele há lugar para a formação
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ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012
de um padre segundo o coração de Jesus, padre líder comunitário, e lugar
para um padre de barrete, batina e residindo num mundo que não mais
existe. Os professores e orientadores sempre deixaram campo à liberdade,
ao pluralismo. Há 40 anos Dom Afonso Niehues e os bispos de Santa
Catarina falavam do ITESC como futuro da Igreja catarinense. Agora
podemos dizer que o futuro sempre permanece, mas já fundamentado
num rico passado e presente.
Endereço do Autor:
ITESC, cx postal 5041
88040-970 Florianópolis, SC
Email: [email protected]
Fontes:
Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina, Cúria Metropolitana,
Florianópolis.
Livro de Atas do ITESC, compilado pelo Pe. Ney Brasil Pereira para o
período de 1973-2003.
Besen, José Artulino: Padre Paulo Bratti – Presbítero da Igreja. Florianópolis, Revista ENCONTROS TEOLÓGICOS, n. 12 (1992/1), pp.
29-41.
Arquivo pessoal do autor.
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Encontros Teológicos nº 64
Ano 28 / número 1 / 2013
Crônicas
O Cardeal Carlo Maria Martini (In memoriam)1
Maurice Gilbert*
À tarde de sexta feira, 31 de agosto de 2012, pelas 15.15, na enfermaria do Aloysianum de Gallarate, perto de Milão, o cardeal Martini,
que tinha recusado todo tipo de refinamento terapêutico, retornou à Casa
do Pai. Uma voz doce e forte extinguiu-se na Igreja, e o mundo inteiro,
inclusive Israel, tomou consciência desse fato com pesar e um imenso
reconhecimento.
Quem aqui escreve esteve próximo a ele durante quarenta e cinco
anos e viveu a seu lado por dois períodos, de 1967 a 1979, em Roma e,
depois, de 2002 a 2008, em Jerusalém, quer dizer nos anos mais férteis
do biblista, e nos primeiros anos do arcebispo emérito, durante os quais
ele se defendia corajosamente contra a enfermidade, o Parkinson, que
finalmente o levou.
Trinta e cinco anos na Companhia de Jesus
Seu percurso foi linear, no sentido ascensional. Nascido em Turim, em 15 de fevereiro de 1927, ele entrou para a Companhia de Jesus
na mesma cidade, em 29 de setembro de 1944. Frequentou o currículo
clássico de então, mas não fez a regência como escolástico, passando
diretamente da filosofia à teologia. Desses estudos, não guardava muito
boa lembrança. Estava-se ainda longe do Vaticano II. Entretanto, ele
havia descoberto o pensamento do Pe. Joseph Maréchal, o metafísico
de Louvain, graças a um de seus discípulos, André Hayen, cuja tese
tratava da Intencionalidade em São Tomás. Quanto à teologia, para sair
do ensino esclerosado que recebeu em Chieri, às portas de Turim, ele
confessou que depois teve de recomeçar tudo, e o Concílio lhe trouxe
o que procurava.
* Maurice GILBERT é jesuíta, professor emérito do Pontifício Instituto Bíblico, especialista
dos livros sapienciais, atualmente reside no Luxemburgo.
1
Crônica, publicada na RIVISTA BIBLICA da Associação Bíblica Italiana, ano 40 (2012),
n. 3, pp. 435-441, traduzida do francês por Ney Brasil PEREIRA.
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Crônicas
Ordenado presbítero em 13 de julho de 1952, com vinte e cinco
anos, coisa rara entre os jesuítas, completou a formação normal que a
Companhia oferece a seus membros. Destinado a ensinar a Escritura, de
1954 a 1956 frequentou o Pontifício Instituto Bíblico de Roma, conseguindo a Licença em ciências bíblicas. Esses foram os anos em que o Pe.
Stanislas Lyonnet publicava trabalhos renovadores na exegese paulina.
Martini revelou-se um aluno extraordinariamente brilhante, e foi com o
Pe. Lyonnet que redigiu sua monografia sobre a 2ª carta aos coríntios.
Mas não prosseguiu no Instituto Bíblico. Pensando que, se ele
fizesse um doutorado no Instituto, não voltaria mais para Turim, seu
Provincial enviou-o a fazer um doutorado em teologia na Gregoriana.
Esse doutorado, terminado em 1959, estudava O problema histórico da
Ressurreição nos estudos recentes (AnGr 104). Durante o verão de 1959,
participou da 36ª caravana organizada pelo Instituto Bíblico na Terra
Santa. Foi então que correu um grave perigo no poço de El Gib, a antiga
Gabaon: esse episódio foi comentado em seu livro Verso Gerusalemme
(Milão 2002).
De retorno a Turim, fez parte do corpo dirigente do teologado
dos jesuítas em Chieri; foi Superior dos escolásticos, bibliotecário, e
professor de teologia fundamental. No mesmo ano de 1959, Pe. Ernesto
Vogt2 sucedeu ao Pe. Augustin Bea, futuro cardeal, como Reitor do Instituto Bíblico. Ele me comentou que achava Martini mal aproveitado em
Chieri. E que fora pessoalmente falar com o Padre Geral John Janssens,
a fim de pedir-lhe que fizesse Martini voltar ao Bíblico, o que de fato
aconteceu em agosto de 1962.
Durante o ano acadêmico de 1962-63, Martini completou, sempre
brilhantemente, o programa do curso preparatório ao doutorado. E passou o ano acadêmico seguinte, 1963-64, em Münster, na escola de Kurt
Aland. Foi lá que o especialista nos Atos dos Apóstolos, E.Haenschen,
lhe fez notar o aparecimento do papiro Bodmer XIV, contendo uma parte
importante dos evangelhos de Lucas e de João. Haenschen fez-lhe notar
a semelhança entre o texto desse papiro e o do Códice Vaticano: assunto
para uma tese de crítica textual, imediatamente assumido por Martini,
primeiro na forma de dissertação. Logo em seguida, pôs-se a trabalhar
2
176
Jesuíta alemão, que nas décadas de 40 e 50, com muito sucesso, lecionou Exegese
Bíblica no Seminário Maior de São Leopoldo, RS. Ainda no Brasil, publicou a sua
preciosa tradução dos SALMOS, com comentário, terminada em 1947 e publicada
pela LEB (Liga de Estudos Bíblicos) em 1951, em São Paulo, na col. “Arma Lucis”,
Publicações da PUCSP.
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Crônicas
na redação da sua tese doutoral, que defendeu no Bíblico em 12 de maio
de 1965, com o título: Il problema della recensionalità del codice B alla
luce del papiro Bodmer XIV (AnBib 26, Roma, 1966). Nessa tese ele
demonstrou que o Códice Vaticano apresenta um texto dos evangelhos
já fixado cerca do ano 200, mais próximo das origens cristãs do que se
pensava. Nesse meio tempo, ele havia preparado uma nova edição do
Novum Testamentum Graece et Latine do Pe. Augustin Merk. Em 1968,
publicou as cartas de Pedro tais como estão no papiro Bodmer VIII, que
a Biblioteca Vaticana acabava de receber. Entende-se então por que, no
mesmo ano de 1968, Martini passou a integrar a comissão ecumênica que
editava The Greek New Testament, sob a coordenação de Kurt Aland.
Sua vida ia tomar, entretanto, outra direção. Em 10 de dezembro
de 1967, foi eleito decano da faculdade bíblica do Instituto. Por ocasião
da ebulição estudantil de maio de 68, ele tomou a iniciativa de convidar
os estudantes do Instituto a participarem da reforma de seus estatutos;
no mesmo mês, Paulo VI acabava de publicar suas Normae quaedam,
com diretivas para tal reforma. Ninguém se espantou então quando, em
7 de outubro de 1969, ele foi nomeado reitor do Instituto. E nesse cargo
permaneceu até 26 de julho de 1978.
Durante seu longo reitorado, Martini mostrou do que era capaz:
discernimento e criatividade, doçura e firmeza, audácia e atenção fraterna, abertura ao mundo e uma arte consumada de governo. Renovou
os edifícios do Instituto em Roma e também em Jerusalém, pois era o
responsável por ambas as sedes. Ele é quem teve a ideia de pedir à Hebrew University of Jerusalem que oferecesse um programa especial aos
estudantes do Instituto, programa que ainda continua, com satisfação de
ambas as partes: foi esse o primeiro contacto direto entre as duas instituições acadêmicas, dependendo, uma, do Estado de Israel e a outra, da Santa
Sé. Contactos ecumênicos no Oriente como no Ocidente; comunicações
em congressos internacionais, propagando um vivo interesse pelo uso da
Escritura na vida da Igreja, segundo o que recomendava o capítulo VI da
constituição Dei Verbum do Vaticano II; ao mesmo tempo, numerosas
sessões de exercícios espirituais bíblicos sobre os evangelhos, publicando
posteriormente seu conteúdo. Quanto a comentários exegéticos, escreveu
só o dos Atos dos Apóstolos, publicado em 1970.
Os últimos meses do seu reitorado o deixaram esgotado, à beira
da depressão, segundo o que me confiou em abril de 1978, quando o
Padre Geral Pedro Arrupe propôs para ele o reitorado da Universidade
Gregoriana, o que de fato sucedeu em setembro daquele ano; foi, aliás,
Encontros Teológicos nº 64
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Crônicas
uma das últimas decisões de Paulo VI. Na Gregoriana, Martini desfrutava de grande autoridade moral, a tal ponto que em certo momento
foi incluído numa lista de vítimas potenciais das Brigadas Vermelhas.
Entre suas realizações nesse novo posto, é preciso destacar a criação do
Conselho dos decanos das faculdades, a fim de fazer o reitor sair de um
certo isolamento que ele havia sentido no Bíblico.
Tudo balançou em dezembro de 1979. No começo do mês, voltando com ele de uma reunião na Cúria Generalícia dos jesuítas, disse-lhe
que, a meu ver, a sua carreira científica estava chegando ao fim, e que seria
bom editar uma boa coletânea dos seus melhores artigos. Curiosamente,
ele concordou na hora. É a origem do volume intitulado La Parola di
Dio alle origini della Chiesa (AnBib 93, Roma, 1980), título escolhido
por ele. Fiz a apresentação desse volume em La Civiltà Cattolica 132
(1981), 462-469. No dia 15 de dezembro, João Paulo II veio à Gregoriana
e ao Bíblico. Na Gregoriana, a saudação ao Papa foi proferida pelo reitor
Martini, inspirando-se no v. 26 do Salmo 118: “Bendito o que vem em
nome do Senhor”. Normalmente, a saudação deveria ser feita pelo Padre
Geral, mas o Vaticano tinha requerido essa inversão protocolar; havia
já alguma coisa no ar, e o abraço caloroso que o Papa deu ao reitor no
momento da saída foi um presságio. Alguns dias mais tarde, Martini
soube que estava sendo pensado para a sé arquiepiscopal de Milão. O
Cardeal Wojtyla o conhecia desde 1972. Martini foi consultar seu padre
espiritual, Pe. Michel Ledrus, e o Padre Geral; ambos acharam a proposta
excelente. Entretanto, Martini, talvez um pouco inseguro, obteve uma
audiência do Papa, a quem abriu o coração lealmente, argumentando
que, entre outras coisas, como professo da Companhia de Jesus, havia
feito voto, em 2 de fevereiro de 1962, de jamais aceitar uma prelatura, a não ser que a obediência o obrigasse. No final da conversa, João
Paulo II confirmou a nomeação e Martini aceitou. Em 29 de dezembro,
a notícia tornou-se oficial e Martini deixou logo o seu cargo de reitor.
Alguns dias mais tarde, me segredou: “Você sabe, até que me agrada
ser bispo”. O Papa o ordenou na basílica de São Pedro, em 6 de janeiro
de 1980. Um detalhe que ainda guardo desse dia: para a cerimônia, ele
engraxou bem seus sapatos, mas, quando se prostrou para a Ladainha
dos Santos, sua irmã, que não estava longe, observou que suas meias
estavam furadas... Martini foi sempre sóbrio e pobre. Ele o demonstrou
a seguir, em Milão.
Ainda uma lembrança. Alguns dias após sua ordenação episcopal,
voltávamos de L’Aquila, onde o bispo local lhe havia oferecido um
178
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Crônicas
banquete como forma de agradecimento pelo apoio que ele dera ao
Studio Biblico Teologico Aquilano. Paramos no caminho para abastecer,
e enquanto o motorista o fazia, Martini me disse que estava pensando
em reunir os jovens de Milão no Duomo (a Catedral), para ajudá-los
a descobrir a Escritura e lhes mostrar o caminho da oração. De fato,
chegando a Milão em 15 de fevereiro, ele começou, um mês mais
tarde, a realizar seu projeto. Como se sabe, foi um enorme sucesso, a
ponto de atrair junto ao arcebispo cinco ou seis mil jovens, cada mês,
durante vários anos.
Vinte e dois anos e meio na Sé de Milão
O biblista que João Paulo II havia escolhido pessoalmente para a
Sé de Milão estava preparado, e ia demonstrá-lo rapidamente. Não era
só um especialista em crítica textual do Novo Testamento, mas também
– suas intervenções escritas e orais o tinham revelado – um homem de
Deus que se situava na linha do capítulo VI da Dei Verbum: tal era mesmo
seu projeto pastoral fundamental.
Se tinha dado provas da sua capacidade de governar, Martini era
também um homem de diálogo, não só com os que ele devia dirigir,
mas igualmente nos meios ecumênicos, como com os representantes do
judaísmo. Poliglota, podia dialogar com cada um, e a sua palavra, sempre
compreensível e de rara segurança, tocava os jovens, os seminaristas
romanos, os pobres aos quais havia servido na comunidade de Santo
Egídio. Era também um mestre espiritual: já havia dado os exercícios
espirituais a comunidades religiosas, a partir de cada um dos evangelhos,
que ele situava em um itinerário espiritual preciso:
“A primeira etapa é a do catecumenato, que se pode pôr em
relação com o evangelho de Marcos, o evangelho da ‘iniciação
catecumenal’. A segunda etapa é a da ‘iluminação’ ou do batismo, em relação com o evangelho de Mateus, o ‘evangelho da
Igreja’, porque ele contém tudo o que é necessário para inserir
o novo batizado na comunidade. A terceira etapa é a da ‘evangelização’ ou do testemunho, em relação com o evangelho de
Lucas e os Atos dos Apóstolos, nos quais está contido tudo o que
contribui para a formação do evangelizador. A quarta etapa é
a do ‘sacerdócio’ ou do ‘cristianismo adulto’, em relação com
o evangelho de João, porque ele contém o que pode educar
para a maturidade da fé, para o ‘sacerdócio’ cristão” (Bibbia
e vocazione, Brescia, 1983, cap. 3).
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Crônicas
Sensível, Martini punha-se à escuta do outro com simplicidade.
Com uma calma imperturbável, ao menos aparentemente, ele compreendia as situações difíceis e podia restabelecer a paz ou reconduzir cada
um ao bom caminho. Tinha escolhido como lema episcopal uma frase
de São Gregório Magno: pro veritate adversa diligere, “pela verdade,
amar a adversidade”. Diante das dificuldades e mesmo das oposições,
aprendeu a aceitá-las e mesmo a amá-las, mesmo atendo-se ao que, nas
suas escolhas, ele considerava ser verdadeiro. Firmeza no essencial,
suportando pacientemente o que pudesse contrariá-lo.
Audacioso, a ponto de provocar, escreveu logo uma carta pastoral
a seus diocesanos, sobre A dimensão contemplativa da existência. Ele
sabia que falava diretamente a esses milaneses tão ufanos de sua característica industrial, e foi bem acolhido.
Homem livre, e entretanto disposto a servir, disse-nos um dia, no
Instituto Bíblico, pouco depois de sua posse em Milão: “Para um jesuíta, a responsabilidade episcopal não deveria prolongar-se além de uma
quinzena de anos, o tempo de dar o melhor de si”. Ficamos surpresos,
mas, coerente consigo mesmo, ele apresentou sua demissão a João Paulo
II em 1995. Evidentemente, o Papa não a aceitou.
Em apenas três anos de episcopado, durante os quais se empenhou
com toda a força da sua juventude, ele havia conquistado a confiança
e o respeito dos milaneses, e do Papa. Quando, em 2 de fevereiro de
1983, João Paulo II lhe entregou o barrete cardinalício, a diocese de
Milão publicou uma brochura in-quarto de cinquenta páginas, intitulada: Carlo Maria Martini, Cardinale Arcivescovo di Milano, 2 Febbraio
1983. Esse fascículo continha cerca de vinte depoimentos sobre a ação
do arcebispo em todos os ambientes de sua enorme diocese e, em cada
página, fotografias o mostravam em plena ação.
Em seu último livro, Il Vescovo, aparecido em dezembro de 2011,
escreveu: “No mundo contemporâneo e pós-moderno, não encontro só
conotações negativas. Pelo contrário, parece-me um mundo que obriga
a ser sério nas intenções e ações” (p. 90). Confissão importante do que
ele vivia diariamente.
Nesse mesmo livro, pouco volumoso, tão denso de sua longa experiência e no entanto acessível a todos, há também um capítulo no qual
ele explica como o episcopado não consiste antes de tudo em governar,
mas em proclamar o Evangelho:
“Parece-me que, acima de tudo, se deve apresentar a figura do
bispo como um servidor da Palavra de Deus. Durante a ordenação, é colocado sobre a sua cabeça o livro dos Evangelhos. É um
belíssimo símbolo: significa que ele deve ter o Evangelho dentro
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Crônicas
de si mesmo e portanto ser um Evangelho vivo. Ele se lhe submete
em todo sentido: sua palavra deve fazer repercutir o Evangelho
e cada gesto seu deve ser uma realização do Evangelho. Eis porque é útil que ele se pergunte, acima de tudo, antes de qualquer
ação ou pregação: ‘Quid hoc ad Evangelium?’ Isto é: ‘O que
estou para fazer ou dizer, que relação tem isso com o anúncio do
Evangelho?’” (pp.38-39).
Em 22 de maio de 2002, três meses e meio antes de se tornar
emérito, Martini encontrou-se com os estudantes do Instituto Bíblico,
entretendo-se com eles sobre “a importância da Escritura na vida daquele
que crê”. Depois de ter aludido a todo o trabalho de pesquisa sobre os textos bíblicos que ele mesmo havia realizado no Instituto, reafirmou como
o capítulo VI da Dei Verbum tinha continuado a inspirar o seu ministério
da Palavra em Milão, especialmente o n. 25 do texto conciliar, que resumiu assim: “Todo cristão deve adquirir uma familiaridade orante com a
Escritura”. Enquanto bispo, ele o havia experimentado em três campos,
que ficam como lembranças indeléveis de sua atividade pastoral:
1. A Escola da Palavra para os jovens. Lembrei acima que esse
projeto lhe veio em mente, apenas ordenado bispo. A centenas,
milhares de jovens, ele ofereceu uma abordagem da Escritura
a partir do texto. Seu método comportava três etapas: a lectio,
para compreender verdadeiramente o texto e acolhê-lo naquilo
que ele diz realmente. Depois, a meditatio, consistindo em
deixar-se penetrar por uma apreensão interior e uma acolhida
em profundidade. Enfim, a contemplatio, voltando-se para o
Senhor para louvá-lo e suplicar.
2. Os exercícios espirituais. Martini deu tantos, comentando
figuras bíblicas maiores, como José, filho de Jacó, posto em
paralelo com Inácio de Loyola – retiro dado aos jesuítas da
Califórnia – ou os acontecimentos fundadores da vida do Senhor, como a Transfiguração, ou ainda textos com oa 1ª carta de
Pedro, que ele havia estudado de modo crítico. Seguia sempre
o método de Inácio de Loyola, do arrependimento à oferta de
si para seguir o Senhor mais de perto.
3. Mesmo a Cátedra dos não crentes, que reuniu certa de duas mil
pessoas em seus últimos anos em Milão, nasceu desta palavra
do descrente do Sl 14,1: “Deus não existe”. O bispo adentrava
um caminho “inquietante”, no sentido forte da palavra, como
repetia: tratava-se de escutar atentamente quais as razões pelas
quais os descrentes se diziam tais, para fazê-los depois dialogar
com os crentes, ele mesmo apresentando as conclusões. Diálogos
graves, sérios, e sobretudo respeitosos de uns e de outros.
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Crônicas
Sendo útil recordar algumas das atividades do cardeal milanês,
eu assinalaria o dia em que as Brigadas Vermelhas lhe entregaram as
armas. Lembraria também que, de 1987 a 1993, esse poliglota presidiu
o Conselho das Conferências Episcopais Europeias; e, nessa condição,
com a Conferência das Igrejas da Europa e a seu pedido, ele participou
da organização, em Basileia, do primeiro Encontro Ecumênico Europeu
desde o século XVI; o tema era “A justiça e a paz”, partindo do texto do
Sl 85,11: “Justiça e Paz se abraçarão”; foi ele quem falou por primeiro
e, no fim, formulou as conclusões desse Encontro que reuniu mais de
700 participantes. Enfim, ele estava em Jerusalém no dia 1º de fevereiro
de 1994, no encontro de mais de 500 Líderes religiosos numa sociedade
secularizada; falou na primeira noite do congresso e traçou o retrato do
líder religioso: servo, mais que chefe, sempre confiando em Deus que
salva a humanidade, portanto, homem de oração, cheio de esperança e
de paz. Era seu próprio retrato.
Para saber mais sobre suas atividades e relações pessoais em
Milão, pode-se ler algumas coletâneas de testemunhos publicados após
sua partida. Penso nos seguintes: Luisa Bove, Carlo Maria Martini.
Una voce nella città, Saronno, 2003; Damiano Modena, Carlo Maria
Martini. Custode Del Mistero nel cuore della città, Milano, 2005; Marco
Vergottini et al., Affinchè la Parola corra. I verbi di Martini, Milano,
2007; Giuliano Vigini (ed.), Carlo Maria Martini. Incontro al Signore
risorto, 2 vols., Milano, 2007: excertos das melhores páginas do cardeal,
tiradas dos numerosos exercícios espirituais dados por ele.
Volta por dez anos para a Companhia
Tendo tomado posse, na Sé de Milão, o seu sucessor, o cardeal
retirou-se para o Instituto Bíblico de Jerusalém. Ele esperava terminar
seus dias na Cidade Santa e aí ser sepultado. No centro de seu brasão
episcopal, havia colocado três corações: as três cidades que amava,
Roma, Milão, Jerusalém. Chegando aí em setembro de 2002, após
alguns anos teve de retornar para a Itália, pois sua enfermidade necessitava de mais cuidados.
Em Jerusalém, mergulhou mais intensamente na oração e no
silêncio, mesmo atendendo a alguns pedidos de exercícios espirituais.
Em 2007, não se sentiu mais em condições para dá-los a um grupo de
padres milaneses que ele havia ordenado dez anos antes; pediu-me que
o substituísse, o que fiz, um pouco preocupado, sobre o tema de “Jesus
Sabedoria” a partir da Bíblia. Ele confessou-me não ter jamais pensado
nesse tema. No fim do retiro, ele os recebeu e percebi então como ha-
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via sido um pai para seus padres, uma experiência, disse-me ele, que a
Companhia de Jesus não conhece.
Em Jerusalém, dedicou-se ao hebraico moderno, que conseguiu
conhecer suficientemente para poder celebrar a Eucaristia também nessa
língua. Foi assim que celebrou diante de um grupo de estudantes judeus
da Universidade Hebraica, desejosos de conhecer o mistério cristão.
Retornou à crítica textual. Em Roma, o Vaticano desejava refazer a
edição do papiro Bodmer contendo as duas cartas de Pedro. Martini pensou que seria fácil: acreditava ter-se escrito pouco sobre o assunto depois
da primeira edição de 1968. Aceitou que eu investigasse as bibliografias
recentes e eu lhe mostrei uma dezena de trabalhos que ele desconhecia e
que levou em conta. Em 2003, publicou então sua nova versão das Beati
Petri Apostoli Epistolae ex Papyro Bodmeriana VIII Transcriptae. Introductio, Textus et Apparatus. João Paulo II mandou que se oferecesse um
exemplar aos cardeais vindos a Roma para celebrar o 25º aniversário de
sua eleição ao pontificado, mas esqueceu-se de enviar um ao autor-editor,
que finalmente recebeu-o do bibliotecário da Vaticana.
Havia outro projeto de critica textual, o de analisar as notas marginais do Códice Vaticano, com a esperança de aí se encontrar alguns
indícios da história anterior do manuscrito. Mas a tarefa era grande
demais, e ele não a pôde concluir.
Excepcionalmente, Martini aceitou o doutorado honoris causa da
Universidade de Belém e, depois, da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Em janeiro de 2008, esta última organizou um colóquio interconfessional
sobre a “Intercessão”. O cardeal deu uma conferência pública sobre o
assunto: tratou-o com profundidade e, diria, com a autoridade de quem
sabe do que está falando. Foi impressionante.
Durante os cinco anos e meio que passou em Jerusalém, ele precisava ir a Roma a cada quatro meses. Tinha, portanto, um alojamento
reservado com os jesuítas de Galloro, nos Castelli romani. Quando teve
de deixar definitivamente Jerusalém, por razões de saúde, partiu sobre
a ponta dos pés. Foi em 27 de março de 2008. Cheguei tarde demais
para saudá-lo: muito emocionado, provavelmente decidira evitar as
despedidas.
Tendo retornado a Galloro, teve de deslocar-se logo para a comunidade dos jesuítas idosos, em Gallarate, perto de Milão. Apesar da perspectiva de aí terminar sua vida, ele estava satisfeito por estar novamente
na sua diocese e, ao mesmo tempo, numa casa da Companhia.
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Crônicas
CRÔNICAS DA FACASC E DO ITESC
Aula Inaugural e início das aulas
A Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC) e o ITESC
(Instituto teológico de Santa Catarina) retomaram suas atividades acadêmicas no dia 14 de fevereiro. Na parte da manhã houve a aula inaugural sobre “Juventude e Igreja em Santa Catarina”, desenvolvida pela
Coordenação da Pastoral da Juventude de Santa Catarina, nas pessoas de
Uilian Dalpiaz e Rodrigo Szymanski. Neste ano que a Igreja do Brasil
dedica à juventude e no qual acontece, em julho, no Rio de Janeiro, a
Jornada Mundial da Juventude, a FACASC quer estar antenada com
este grande sinal dos tempos que é a presença, a vocação e a missão dos
jovens na Igreja e no mundo. Ainda na parte da manhã houve o coquetel
de acolhida dos 27 estudantes do 1º. Ano do curso de bacharelado em
teologia, com todos os estudantes, funcionários, formadores e professores
e, por fim, a celebração eucarística de abertura do ano acadêmico, o 41º
do ITESC e 2º da FACASC. A parte da tarde foi dedicada à recepção dos
estudantes do 1º. Ano, aos quais foram apresentados dados importantes
da vida da FACASC e do ITESC: história, objetivos, dados do regimento,
infraestrutura, direção e administração, núcleos e Diretório Acadêmico.
“Ao acolher a toda a comunidade acadêmica da FACASC e do ITESC,
a direção deseja que todos – professores, alunos e funcionários –, confiantes no Deus de nosso passado, de nosso presente e de nosso futuro,
tenhamos um abençoado e proveitoso Ano Acadêmico de 2013” diz Pe.
Vitor Feller, diretor da Instituição.
Pós-graduação em juventude, religião e cidadania
Teve início no dia 1º de fevereiro o curso de pós-graduação (especialização lato sensu) em “Juventude, religião e cidadania” oferecido
pela FACASC. Participam do curso um total de 38 alunos, a maioria
jovens, provenientes de todo o Estado catarinense e de outras partes do
país. Na primeira etapa os participantes trataram sobre Metodologia da
Pesquisa, Teologia da Libertação, Aspectos históricos, socioculturais e
teológicos da juventude, e Juventude e diálogo inter-religioso: matrizes
culturais e religiosas do Brasil. Os estudantes retornarão, na segunda etapa, durante a primeira quinzena de julho para tratar dos seguintes temas:
Psicopedagogia e metodologia do trabalho com a juventude, Direitos
humanos e direitos da juventude, Sociologia da Religião e da Juventude,
Organizações e Movimentos Juvenis. A coordenação do curso está a cargo
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Crônicas
de Pe. Gilberto Tomasi, Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela
PUC, São Paulo. O curso foi concebido, segundo ele, com o objetivo
de “capacitar jovens para o exercício da cidadania, para a proposição e
defesa de políticas públicas em favor da juventude, para a urgência de
reunir jovens em grupos e em redes de comunhão e de comunicação, na
busca de solução para seus problemas cotidianos e estruturais”.
Formação continuada dos professores da FACASC
Nos dias 20, 21 e 22 de fevereiro de 2013 os professores da FACASC (Faculdade Católica de Santa Catarina) se reuniram para a formação continuada do Corpo Docente. Esta é a primeira etapa formativa
do ano. No primeiro dia, 20/02, o tema centrou-se no sentido da CPA
(Comissão Própria de Avaliação): relação com o SINAES e INEP, aspectos avaliados pela CPA, relação da CPA com os gestores da FACASC
etc. No segundo dia, 21/02, os professores receberam treinamento para
a utilização do sistema UNIMESTRE – um sistema integrado de gestão
educacional, que possibilita acesso ao Plano de Ensino, ao Diário de
Classe (com inserção de conteúdos, notas e frequências), à Avaliação
Institucional e à interação entre professores e alunos como também entre
os diversos organismos da Instituição. O terceiro dia, 22/02, foi dedicado
às políticas de ensino, pesquisa e extensão. A formação permanente e
sistemática dos professores é uma prática da FACASC que dá continuidade à prática que já havia sido consagrada pelo ITESC. A próxima
etapa da formação continuada do Corpo Docente deverá acontecer nos
dias 14 a 16 de agosto.
Cursos de extensão na FACASC
A Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC – tem a função
de oferecer formação teológica nos diversos níveis. Dando continuidade
aos Cursos de Extensão oferecidos pelo ITESC desde sua fundação, a
FACASC assumiu, desde 2012, a formação de lideranças nas áreas:
teológica, bíblica, litúrgica, catequética e de canto e música litúrgica.
Quer desta forma colaborar com uma resposta efetiva aos apelos e indicativos dos diversos documentos da Igreja, que insistem na formação
adequada e contínua dos fiéis leigos e leigas, que muito contribuem na
evangelização das comunidades eclesiais. O Documento de Aparecida
pede que todas as instâncias da Igreja favoreçam a seus membros um
itinerário de formação. Em consonância com a teologia do Concílio
Vaticano II e sua eclesiologia da comunhão, a Igreja do terceiro milênio
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Crônicas
deverá ter, cada vez mais, um rosto marcadamente laical, onde leigos e
leigas desempenham suas funções, fazendo transparecer o rosto do Povo
de Deus, todo ele sacerdotal, régio e profético, e também carismático
e ministerial. Na fidelidade à sua missão, contando com a competência
de seus professores e outros colaboradores convidados, a FACASC
oferece, às segundas-feiras à noite, diversas oportunidades para que os
membros das paróquias e comunidades, dos movimentos e pastorais, dos
organismos e serviços eclesiais da Grande Florianópolis, mantenham-se
atualizados em sua formação teológico-bíblico-pastoral. Neste ano de
2013, esses cursos tiveram início na noite do dia 25 de fevereiro, com
uma exposição geral sobre o tema da Campanha da Fraternidade, desenvolvido pelo Pe. Josemar da Silva, responsável pelo Setor da Juventude
da Arquidiocese de Florianópolis. Além desses cursos oferecidos em sua
sede, a FACASC se dispõe a certificar cursos de formação de lideranças
dados por dioceses e paróquias, pastorais e movimentos da Igreja catarinense. Para tanto, é preciso que esses cursos se adequem ao regulamento
dos cursos de extensão da FACASC.
Visita dos bispos catarinenses
A FACASC e o ITESC (Instituto Teológico de Santa Catarina) receberam, na manhã do dia 27 de fevereiro, a visita dos bispos catarinenses,
primeiros responsáveis por ambas das instituições. Após a celebração
eucarística, os bispos reuniram-se com os estudantes. Na ocasião, os
estudantes levantaram questionamento sobre a atual matriz curricular da
FACASC, que contempla carga horária muito reduzida na disciplina dos
Evangelhos Sinóticos em relação à anterior matriz curricular do ITESC.
Na segunda parte da manhã, os bispos encontraram-se com os professores.
Os bispos foram informados, entre outros temas, sobre a implantação
do programa de bolsas de estudo, a política de pesquisa e de iniciação
científica, a criação da Associação Paulo Bratti e sobre a aquisição do
sistema UNIMESTRE de gestão acadêmica. O diretor Pe. Vitor Galdino
Feller comunicou aos bispos o número de estudantes matriculados e pediu
apoio no sentido de incentivarem suas dioceses e paróquias no envio de
lideranças para fazer um dos cursos oferecidos pela FACASC, seja de
graduação, pós-graduação ou extensão. Na sequência, a direção também
verbalizou as carências da Instituição destacando a necessidade de mais
professores e de uma maior valorização dos mesmos. No sentido das
carências o diretor também assuntou sobre as necessidades de reformas
no prédio. A questão levantada anteriormente pelos estudantes a respeito
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da carga horária dos Evangelhos Sinóticos foi trazida pelos bispos na
reunião com os professores. O professor Celso Loraschi, coordenador do
curso de teologia, disse que a observação é procedente e, completando,
o diretor lembrou que, ainda este ano, terá início a revisão da matriz
curricular do curso de teologia da FACASC.
Pe. Ney termina sua participação na Pontifícia Comissão Bíblica
No dia 12-04, com a audiência concedida pelo Santo Padre
Francisco aos 20 membros da Pontifícia Comissão Bíblica, encerrouse a participação do Pe. Ney Brasil Pereira, professor do ITESC, nesse
organismo da Santa Sé, para o qual ele foi nomeado em 2001, pelo papa
João Paulo II. A nomeação vale por um período de 5 anos, durante o
qual a Comissão se reúne uma vez por ano e debate um tema, proposto
pela Congregação da Doutrina da Fé. A nomeação pode ser confirmada
para um segundo período de 5 anos, o que aconteceu com Pe. Ney,
confirmado na Comissão por Bento XVI, em 2008. O tema do primeiro
turno, 2002-2007, foi “Bíblia e Moral”, que resultou num documento
com esse título, publicado em 2008 (aqui no Brasil, por Ed. Paulinas,
2009, em tradução do original italiano pelo Pe. Ney). Para este segundo
turno (2009-2013), o tema foi “Inspiração e Verdade da Bíblia”, tema
pedido pelo Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, em 2008, e
mencionado na Exortação Apostólica Verbum Domini, de Bento XVI
em 2010. Os trabalhos da Comissão resultaram num documento com
esse título, o qual, porém, ainda deve ser aprovado pela Congregação
da Doutrina da Fé, para, então, ser traduzido e publicado.
A Pontifícia Comissão Bíblica é um organismo criado em 1903
pelo Papa Leão XIII, como uma Comissão de Cardeais, naturalmente
assessorados por peritos em exegese bíblica. Após o Vaticano II , a Comissão foi reformulada por Paulo VI, em 1971, transformando-se em
órgão consultivo da Congregação da Doutrina da Fé, e sendo constituída
não mais por Cardeais, mas por 20 exegetas de vários países, nomeados
diretamente pelo Papa. Da Comissão agora cessante faziam parte 3
italianos, 2 franceses, 2 alemães, 2 americanos, 2 espanhois, 1 mexicano,
1 argentino, 1 brasileiro (Pe. Ney), 1 nigeriano, 1 indiano, 1 coreano, 1
polaco, 1 irlandês, e 1 maltês.
A audiência, concedida na “Sala dos Papas”, no Palácio Apostólico
do Vaticano, começou com uma saudação ao Santo Padre pelo Arcebispo
Gerhard Müller, atual Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
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Ele referiu-se à maneira como a Comissão abordou o tema proposto,
“Inspiração e Verdade da Bíblia”, sem deixar de enfrentar alguns dos
mais prementes desafios que encontra a leitura bíblica. Assim, a questão
da verdade histórica e, também, a da violência de certos textos.
O discurso do Papa Francisco, breve, como aliás têm sido assim as suas
alocuções, insistiu na unidade entre a Escritura e a Tradição. Disse, textualmente: “Exatamente porque o horizonte da Palavra Divina se estende para além
da Escritura, é necessária, para compreendê-la adequadamente, a constante
presença do Espírito Santo, que guia à “plena Verdade” (cf. Jo 16,13).
É preciso colocar-se na corrente da grande Tradição que, sob a
assistência do Espírito Santo e a orientação do Magistério, reconheceu os
escritos canônicos como Palavra dirigida por Deus ao seu povo, e jamais
cessou de meditá-los e de neles descobrir suas inexauríveis riquezas.”
Sua palavra final, diretamente aos membros da Comissão, referiuse a Nossa Senhora: Ela, “modelo de docilidade e obediência à Palavra de
Deus, vos ensine a acolher plenamente a riqueza inexaurível da Sagrada
Escritura, não só através da pesquisa intelectual, mas na oração e em
toda a vossa vida de crentes, sobretudo neste Ano da Fé. Assim, o vosso
trabalho verdadeiramente contribuirá a fazer brilhar a luz da Sagrada
Escritura no coração dos fiéis.”
II Jornada Brasileira de Estudos Patrísticos no Exterior
Conforme previsto no calendário, aconteceu em Roma no dia 07
de maio pp., no Pontifício Instituto Oriental, sessões vespertinas, e no
Pontifício Colégio Pio Brasileiro, sessão noturna, a II Jornada Brasileira
de Estudos Patrísticos no Exterior, coordenada pelo nosso Professor
de Patrística, Pe. Dr. Edinei da Rosa Cândido.
Foi uma ocasião oportuna para socialização de trabalhos acadêmicos e atualização acerca da pesquisa patrística desenvolvida por
estudantes brasileiros no exterior. Com a fundação da ABEPatri – Associação Brasileira de Estudos Patrísticos todos esperam encontrar um
espaço para trabalho de conjunto entre patrólogos e interessados pelos
Estudos Patrísticos no Brasil.
O evento contou com a participação de mais vinte estudantes
brasileiros dos programas de Mestrado e Doutorado das pontifícias
universidades romanas e antecipou-se ao XLI “Incontro di Studiosi
dell’Antichità Cristiana”, ocorrido entre os dias 9 e 11 de maio pp., no
Instituto Patrístico Augustinianum.
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NOTÍCIAS DO REGIONAL SUL 4 – CNBB
CIMI Sul lança caderno contra PEC que ameaça terras indígenas
O caderno “PEC 215: ameaça aos direitos dos povos indígenas,
quilombolas e meio ambiente” foi lançado pelo Conselho Indigenista
Missionário Regional Sul 4 na aldeia Morro dos Cavalos na Grande
Florianópolis, dia 23 de abril. Objetivo do organismo, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, é debater as implicações dessa
Proposta de Emenda à Constituição.
O missionário Clovis Brighenti explicou que os parlamentares
pretendem “ter o poder de demarcar não só as terras indígenas mas, também, as áreas quilombolas e de conservação, como reservas florestais”.
Para ele, a PEC “é uma das ameaças mais contundentes aos direitos dos
povos indígenas”.
Um trecho do caderno diz que “passar a responsabilidade da demarcação das terras aos deputados é o mesmo que dizer que os indígenas
não possuem o direito originário”, pois, se aprovada PEC, as homologações dependerão de negociações políticas. Atualmente a competência é
do Poder Executivo. Brighenti afirmou que é necessário pressão para que
parlamentares não aprovem a proposta. Para isso, o caderno relaciona os
nomes e correios eletrônicos dos deputados federais de Santa Catarina,
Rio Grande do Sul e Paraná.
A recente criação de um colegiado composto de dez deputados
e de representantes das comunidades indígenas para discutir questões
relacionadas às demarcações, entre elas a PEC 215, é tido como resultado
do protesto realizado em Brasília no dia 16. Centenas de índios ocuparam vários espaços da Câmara e, inclusive, o plenário da Casa, durante
sessão. A cacique Eunice Antunes contou que, inicialmente, o objetivo
não era entrar no Congresso.
– Aconteceu uma coisa muito forte nesse dia. Deus colocou a sua
mão naquele momento. Íamos só fazer um ritual na frente [do Congresso],
mas de repente a porta se abriu – contou. Ela acredita que a força dos
povos indígenas unidos pode “enterrar a PEC” porque, agora, “eles [os
deputados] terão que pensar bastante [antes de aprová-la]”.
O lançamento do caderno foi acompanhado por lideranças da comunidade, professores e estudantes das universidades federal e estadual
de Santa Catarina, além de representantes de pastorais sociais da Igreja
Católica. Na ocasião, também aconteceu o lançamento do livro “A terra
que volta ao verdadeiro dono”, que conta a história das aldeias Guarani
ao logo do litoral catarinense.
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Crônicas
CNBB Sul 4 homenageia empresa que transportou símbolos da
JMJ em SC
O grupo de empresas responsáveis pelo transporte e logística da
Peregrinação da Cruz da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Santa
Catarina recebeu um troféu em acrílico, oferecido pelo Regional Sul 4
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A entrega aconteceu na
manhã do dia 26 de março, em Itajaí.
Diante dos funcionários, os proprietários José Salvelino Dalçóquio
e Cícero Humberto Ferrari receberam o agradecimento do presidente do
regional, arcebispo Dom Wilson Tadeu Jönck. Na entrega, o prelado afirmou que não é possível retribuir o “grande favor que a empresa prestou
para a Igreja em Santa Catarina”. Ele também lembrou que esta “foi uma
contribuição muito importante para a JMJ”, prevista para acontecer no
Rio de Janeiro, em julho.
O secretário-executivo do regional, Ademir Freitas, lembrou que
o Conselho Regional de Pastoral “foi unânime ao avaliar positivamente
o uso do caminhão”. Uiliam Dalpiaz, coordenador regional da Pastoral
Juvenil lembrou que o evento é raro e “daqui a 50 anos poderemos olhar
para a história e lembrar o que vocês fizeram”.
Cícero, responsável pela Ferrari Logística, disse que, “além de ter
sido uma honra, esse trabalho foi emocionante”, ao recordar momentos
do qual participou. Ele também ressaltou a importância do trabalho
realizado por Alexandre da Silva, funcionário encarregado pela operacionalização logística da empresa. Um troféu extra foi entregue ao
padre Josemar Silva. Foi sua a iniciativa de contactar os empresários
para disponibilizar um veículo adequado para o transporte da Cruz e do
Ícone de Nossa Senhora.
Os suportes construídos pelos funcionários permitiram que os
símbolos fossem transportados montados e visíveis. Todos os custos,
incluindo o combustível, foram doados pelas duas empresas. Em Santa
Catarina, o caminhão percorreu 6.116 quilômetros e consumiu 848 litros
de diesel. O caminhão também atuou no Paraná, em que 898 litros de
combustível foram consumidos em 5.472 quilômetros.
“Cruz do Ano Santo”, “Cruz do Jubileu”, “Cruz Peregrina” ou
“Cruz dos Jovens”, é uma cruz de 3,8 metros. Após a Semana Santa de
1.983, o Papa João Paulo II deu-a aos jovens do Centro Juvenil Internacional São Lourenço, em Roma. Desde então, tem sido levada para as
jornadas mundiais, em várias partes do mundo. Desde 2003, por iniciativa do mesmo Papa, ela está sendo acompanhada pelo ícone de Maria
(Quadro de Nossa Senhora).
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Crônicas
Mais um livro do Pe. Valter
GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição Litúrgica do Concílio Vaticano II: A Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo,
Editora Ave-Maria, 2013, 144 p.
Citamos a Introdução do autor: “Por ocasião dos cinquenta anos
do Concílio Vaticanno II, muitas publicações vêm refletindo sobre os
diferentes aspectos da reforma conciliar, todas elas pertinentes e valiosas.
O Concílio propôs uma fonte inesgotável de elementos fundamentais
da ávida da igreja no diálogo com a pós-modernidade, que precisam ser
continuamente aprofundados diante da nova evangelização.
O livro que ofereço aos agentes de pastoral tem por objetivo
retomar temas importantes da Constituição Litúrgica Sacrosanctum
Concilium, visando a uma melhor compreensão das orientações conciliares no tocante à celebração do mistério pascal de Jesus Cristo. Como
ação de Cristo e de seu Corpo, que é a Igreja, a liturgia constitui ‘uma
ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo título e grau, não
é igualada por nenhuma outra ação da Igreja’.
Espero contribuir para que possamos não somente redescobrir as
riquezas que o Concílio nos deixou como herança, mas também tirar
desse tesouro ‘coisas novas e velhas’ (cf Mt 13,52).”
Do Prefácio, escrito pelo prof. Carlos Martendal: “Ler o que Pe.
Valter escreve a respeito da Sacrosanctum Concilium é perscrutar o documento conciliar com um novo olhar, com um entendimento que vai
superando as dificuldades e descobrindo os benefícios presentes e futuros
que a nova norma da Igreja traz para nossas celebrações. [...] Quanto
mais entendermos a ação litúrgica de que participamos, mais poderemos
alimentar-nos dela, transformando a nossa vida. Compreenderemos para
amar e amaremos para compreender, suscitando em nossos corações ‘um
novo fervor, um novo amor, como que um novo espírito’ (Paulo VI). E,
assim, daremos glória a Deus e nos santificaremos. Isso também será
possível graças a este excelente livro.”
O livro se estrutura em quatorze pequenos capítulos: 1. A liturgia
no Concílio Vaticano II. 2. Princípios gerais da reforma litúrgica. 3. A
liturgia, momento histórico da salvação. 4. Liturgia, celebração do mistério pascal. 5. Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo. 6. Sacerdócio
ministerial e sacerdócio comum dos fiéis. 7. Participação na liturgia. 8.
Pastoral litúrgica. 9. O mistério eucarístico. 10. Os sacramentos. 11. Os
sacramentais. 12. A Liturgia das Horas. 13. O ano litúrgico. 14. Música
sacra e arte sacra.
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Crônicas
Tese doutoral sobre o ITESC
KRETZER, Altamiro Antonio. Catolicismos em disputa: Discursos teológicos em confronto no ITESC – Instituto Teológico de Santa
Catarina (1973-2003). Florianópolis, 2013, 336 p. Tese (Doutorado).
Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Santa
Catarina.
Resumo: A Tese centra-se na análise do Instituto Teológico de
Santa Catarina, ITESC, criado em 1973. O momento histórico em que
se dá tal criação coincide com a década seguinte ao Concílio Vaticano
II e as disputas relativas às diferentes leituras dos textos do Concílio
referentes à formação sacerdotal, à maneira de se estudar e fazer teologia,
enfim, quanto ao jeito de ser-Igreja e ser-cristão. Diante dessa realidade
em efervescência, o bispado catarinense decide retirar seus seminaristas
do Seminário gaúcho de Viamão, apelidado por muitos de “Seminário
Vermelho”, em virtude de atitudes contestatórias em relação à Ditadura
Militar e a proximidade de muitos dos seus alunos da UNE.
Ao buscar identificar os discursos teológico-filosóficos produzidos
por uma intelectualidade católica nas décadas que se seguiram ao Concílio
Vaticano II, este trabalho reflete sobre as relações de poder em jogo no
mercado simbólico da construção de subjetividades e de discursos que
permeiam as relações sociais na história, de modo especial no interior
do próprio Instituto Teológico.
Para tanto, são analisadas as relações de poder estabelecidas entre
os intelectuais (teólogos, estudantes de teologia) e a hierarquia da Igreja
Católica, as relações de poder estabelecidas entre os próprios intelectuais,
entre estes e a comunidade leiga, assim como também entre os estudantes
de teologia e seus formadores.
Estão em jogo, portanto, as intrincadas relações entre os sujeitos
individuais e entre estes e as instituições. Catolicismos em disputa retrata, portanto, o embate entre discursos contrários e, às vezes, também
contraditórios, no interior da Igreja Católica e, de modo mais particular,
no interior do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC.
Títulos dos três capítulos nos quais se estrutura a Tese: 1. Catolicismos: entre a unidade pretendida e a pluralidade existente. 2. Um mercado
de trocas simbólicas e linguísticas: a Revista Encontros Teológicos. 3.
Discursos teológicos e práxis: conflitos e acomodações.
A Tese, orientada pelo Prof. Dr. Rogério Luiz de Souza, foi julgada
e aprovada em sua forma final, em 26-03-2013, para obtenção do título
de Doutor em História Cultural.
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