Ser Q`ueqchi`: religião, identidade e conflito armado na Guatemala

Transcrição

Ser Q`ueqchi`: religião, identidade e conflito armado na Guatemala
 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-­GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SER Q’UEQCHI’
RELIGIÃO, IDENTIDADE E CONFLITO ARMADO
NA GUATEMALA CONTEMPORÂNEA.
de
LORENZO GRIMALDI
2011
Ser Q’ueqchi’: religião, identidade e conflito armado na Guatemala
contemporânea.
Introdução
Esse trabalho visa à análise de alguns dos processos sociais que levaram ao
surgimento da identidade étnica Q’eqchi’ através das mudanças religiosas ocorridas nas
décadas do conflito armado em Guatemala.
Os dados da minha pesquisa foram recolhidos entre 2005 e 2007 em varias
comunidades Q’ueqchi’es e não. Em 2005 realizei uma pesquisa em três comunidades
da região do Petén no nordeste da Guatemala, durante um período de seis meses para a
elaboração da Monografia para graduação em Filosofia, especialização ÉtnoAntropológica. As três comunidades que escolhi como objeto de analise se caracterizam
por ter sido três formas distintas de ter vivido o conflito armado.
A comunidade de Nuevo Horizonte é formada por ex-guerrilheiros das Forças
Armadas Rebeldes (FAR) e seus componentes pertencem a grupos étnicos variados. Os
Q’eqchi’es representam uma pequena minoria no texido multiétnico da comunidade.
A comunidade de La Esperanza é formada por ex-refugiados, alguns que
moraram na selva por muitos anos, outros que procuraram refugio além das fronteiras
da Guatemala. Aqui também temos uma proveniência étnica variada. Os Q’eqchi’es são
15 familias em um total de 110 familias.
Em fim, a comunidade de Los Olivos cujas pessoas escolheram não fugir e
foram organizadas militarmente pelo exercito nas Patrulhas de Autodefesa Civil (PAC).
A comunidade de Los Ulivos se formou nos anos ’80 com a migração de núcleos de
parentesco pertencentes a distintas comunidades Q’eqchi’es da região de Alta Verapaz.
A violência da guerra civil e a necessidade de novas terras foram as motivações
preponderantes que levaram à constituição dessa comunidade.
Em 2007, voltei durante um período de três meses em Guatemala, fazendo uma
pesquisa sobre o estado de cumprimento dos Tratados de Paz, firmados em 1996, e
sobre a situação dos movimentos sociais e indígenas.
Minha analise dos Q’ueqchi’es começou a partir da observação do ritual do
Mayejak na comunidade de Mojarra II. Nos dias seguintes ao ritual comecei a perguntar
sobre alguns elementos do ritual que haviam capturado minha atenção e notei algumas
mudanças que haviam acontecido na pratica ritual que os atores sociais relacionavam
diretamente com a guerra civil. Decidi entrar neste caminho da dimensão ritualística e
religiosa, para fazer uma analise das dinâmicas sociais numa situação colonial e/ou de
colonialismo interno (segundo o uso que desses conceitos fazem G. Balandier e R.
Cardoso de Oliveira)1.
Seis anos depois posso dizer que no começo foi a atração pelo exótico que
capturou minha atenção, depois foi a indignação pela injustiça histórica, pela
desigualdade social, pelo estado de esquecimento em que vivem muitas comunidades
indígenas frente ao Estado e pelas dinâmicas marcadamente imperialistas das políticas
norte-americanas respeitos aos países latino-americanos. Assim o meu interes
antropológico se constituiu desses elementos. Hoje em dia a categoria do exótico
morreu e renasceu sob diferentes formas e tento ter alta minha capacidade critica em
relação a ela assim como à dimensão da militância, considerando essa capacidade critica
o fundamento de uma ciência que visa à maior objetividade possível.
Começando da esfera ritual entrei numa analise histórica do conflito
guatemalteco. O primeiro passo foi tentar entender os processos sociais acontecidos,
ligando historia local e historia global, a través dos depoimentos, das longas conversas
com vários atores sociais e da leitura do material disponível, seja dos arquivos
históricos que das reconstruções feitas pelas comissões de direitos humanos.
Muitos atores entram em cena pintando a história das comunidades em donde
estava fazendo pesquisa: as comunidades Q’eqchi’es, a guerrilha, a Igreja Católica –
dividida no seu interior entre uma franja conservadora e outra pertencente à teologia da
libertação -, os movimentos neopentecostais, os vários governos que marcaram a
história do Estado-Nação guatemalteco, a CIA e o governo dos EUA entre outros tal vez
menos importantes.
Assim tentei estabelecer laços entre esses atores ao mesmo tempo que comecei a
configurar um “campo de forças” atuantes dentro espaços e territórios em continua
negociação. Entender as novas identidades nascidas desses processos foi a tentativa do
meu trabalho, centrando o foco sobre as ligações entre as mudanças religiosas, a
violência da guerra e os processos identidários.
1
Utilizei os dois termos porque se desde um olhar ‘nacional’ podemos falar de colonialismo interno,
desde a perspectiva de alguns povos indígenas da Guatemala trate-se de situação colonial.
Das ‘comunidades sagradas tradicionais’ à ‘identidade étnica’
Um dos rituais principais da religiosidade Q’ueqchi’es é o Mayejak que deriva
da palavra mayej que significa oferenda. A oferenda é feita aos Tzuultaq’a, espíritos das
montanhas. Esse tipo di ritual tem um caráter coletivo que envolve toda a comunidade.
Sacrificar significa matar, queimar, destruir algo para alguém. Podemos pensar o
Mayejak como um sistema de dádiva entre a comunidade e os Espíritos das Montanhas.
Geralmente eram sacrificados animais para utilizar a sangue durante o cerimonial ou a
carne para preparar a comida ritual. Essa comida vênia em parte oferecida aos
Tzuultaq’a e em parte compartilhada entre as pessoas da comunidade.
No Mayejak que teve oportunidade de presenciar, o ritual se desenvolveu a
noite, a partir do aparecimento da primeira estrela no céu, e foi feito em parte dentro
uma igreja católica e em parte fora dela num espaço ritual delimitado por quatro velas
dispostas aos quatros pontos cardinais, cada uma da cor corrispondente ao seu ponto
cardinal segundo a simbologia Maya: branco (norte), vermelho (este), amarelo (sul) e
negro (oeste). Lembro que estas quatros cores representam as quatros variantes de cores
do milho em Guatemala. Os Mayas são os ‘homens do milho’. Toda a cosmovisão
Q’eqchi’ se caracteriza por varias metáforas, analogias e correspondências com o
universo natural e com a planta do milho em particular.
A execução do Mayejak acontece antes de semear o milho, na maior parte dos
casos, mas pode acontecer em outras circunstâncias seja coletivamente que
individualmente. Nesse ultimo caso temos que lembrar que a individualidade não se
reduze ao individualismo, mas bem é sempre a comunidade que esta colocando em
evidência o indivíduo quando consome ou realiza o Mayejak.
Em todos os casos o que se espera é uma verdadeira redistribuição da oferenda
feita. Esta tem que ser muito maior da dádiva oferecida. A troca permite uma relação
harmônica com os Espíritos das Montanhas. A relação entre as pessoas e as montanhas
é baseada na reciprocidade, cada um deve alimentar o outro e não pode consumir sem
recompensar:
“O Tzuultaq’a lhes fornece tudo aquilo que necessitam para viver: milho e feijão, que nascem
da pele do Tzuultaq’a, madeira para cozinhar e para construir as casas, a água que sae da suas costas, o
Espírito é o que da de comer aos animais, permite o crescimento das plantas medicinais para curar as
doenças” (SIEBERS, 2001, p.44).
Estas divindades da terra abrangem todo o território sacralizado. As montanhas
representam seres vivos, os espíritos têm uma forma humana e moram em uma casa, as
grutas, na profundidade das montanhas. Ao mesmo tempo as montanhas são o corpo
físico do Tzuultaq’a: “as montanhas são humanizadas, cada uma tem um rosto, uma
cabeça, um corpo e uma gruta da qual afirma-se que é uma boca ou um útero”
(WILSON, 1995, p.54).
O território sacralizado circunda a comunidade e esta faz parte desse território.
Por isto Richard Wilson se refere às comunidades Q’eqchi’es, antes do conflito armado,
como as “comunidades sagradas tradicionais”.
A dimensão comunitária não tem que ser vista como um espaço estático e
fechado, mas como uma realidade em movimento constantemente reconstruída,
negociada segundo diferentes tipos de interações entre sujeitos que por motivações
distintas atravessam esse espaço e se modificam reciprocamente. A pesar disso, as
interações entre sujeitos não acontecem em iguais capacidades de exercer o poder uns
sobre os outros. Isto implica esferas desiguais de influências, relações de poder variadas
e distintos sistemas de dominação. No entanto, como veremos, existem resistências e
contra-poderes que são e foram exercidos.
Varios elementos permitem desde o começo evidenciar a dimensão constante de
interação das comunidades Q’eqchi’es com o mundo externo: os bens sacrificados – no
Mayejak que presenciei, entre muitas coisas, havia latas de Coca Cola -; o lugar de
desenvolvimento do ritual – a igreja católica -; assim como as modalidades de oferecer
– respeito a umas décadas anteriores à minha pesquisa já não aconteciam sacrifícios de
animais considerados praticas ‘bárbaras’ pelos padres católicos.
Na “comunidade tradicional sagrada”, a relação com os Tzuultaq’a é mantida
pelos anciões que nos sonhos tem visões desses espíritos e aprendem suas
características, caráter, sexo, em um verdadeiro processo de humanização das
montanhas. As montanhas sagradas que rodeiam a comunidade são conhecidas pelos
membros através da intermediação dos anciões que guiam os rituais.
No meu estudo pude analisar a dinamicidade da figura do Espírito das
Montanhas, que não representam uma herança pré-colombiana estática. Ao contrario,
eles se formaram no curso das experiências pré-colombiana, colonial e pós-colonial.
Segundo diversas fontes bibliográficas a figura dos Tzuultaq’a é descrita, antes do
conflito civil, como um homem de pele branca, com barba, muito parecido aos grandes
posseiros alemães que chegaram nos anos ’50-’60 em Alta Verapaz (território
tradicionalmente Q’ueqchi’es). Durante o conflito começou a ser descrito como um
homem com uniforme militar. Estas variações mostram a intima relação entre símbolos
religiosos e símbolos da autoridade. Os Tzuultaq’a são verdadeiros símbolos da
autoridade ao mesmo tempo que são símbolos religiosos.
A ‘natureza’ dos T’zuultaq’a é múltipla e muda em relação a contextos
específicos. Os Espíritos podem ser macho ou fêmea, bom ou mal, podem ter aparência
corpórea dos conquistadores e ao mesmo tempo ter rasgos indígenas.
Vou introduzindo esses elementos simplesmente para situar o leitor na realidade
Q’eqchi’ sem pretensão de fazer aqui uma analise da mitologia, simbologia ou do
universo ritualístico do povo Maya-Q’eqchi’. Aquilo que nós interessa é analisar os
elementos de ruptura ligados a um contexto de guerra, mudança religiosa e identidaria,
ao mesmo tempo que os acontecimentos históricos permitem o surgimento dos
indígenas como sujeitos político que participam da arena publica para determinar aquilo
que é, ou deveria ser, o Estado guatemalteco.
Para introduzir o complexo “drama social” da guerra temos que ter presente a
situação do Guatemala que levou ao conflito. Desde a colonização o índio foi visto
como um ser que precisa ser redimido e civilizado. Índio virou sinônimo de
inferioridade, de alguém que precisa ser resgatado, superado, a sua diversidade
cancelada e no entanto delimitada dentro espaços específicos para evitar misturas e
contágios. As culturas indígenas foram sujeitas a uma ‘hispanização’ forçosa. No inicio
do século XVIII começou a aumentar o numero de pessoas de ascendência misturada
que foram chamados de ‘ladinos’ ou ‘mestizos’. Alguns foram incorporados nas esferas
do poder econômico, outros ficaram às margens desse poder.
Durante o processo da Independência, junto com a ideologia liberal se importou
também o modelo do Estado-Nação, entendendo com ‘nação’ um povo só com uma
única cultura, uma língua, uma religião, um sistema jurídico: “a institucionalidade
jurídica que nasceu com a Independência era excludente do mundo indígena” (Comisión
de Esclarecimiento Histórico, 1999, p.8).
Em 1944 um processo revolucionário terminou com a caída do ditador Jorge
Ubico e levou ao inicio da chamada ‘primavera democrática’ (1944-1954) com os
governos de José Arevalo e Jacopo Arbens. Em 1945 uma nova Constituição proibiu o
trabalho obrigatório dos indígenas nas grandes fazendas, trabalho que variava dos 100
aos 150 dias anuais.
A criação de um ‘capitalismo democrático’ era a tentativa declarada dos novos
governos, a pesar disso, o setor empresarial do pais e estrangeiro entrou em conflito
com os novos governos pela questão da reforma agrária. Esta previa o exproprio de
terras deixadas a latifúndio. Em particular essa reforma atingiu os interesses da United
Fruit Company (UFC) que tinha concessões de terras do passado governo Ubico. Sócios
da UFC eram membros do governo Eisenhover. Assim a CIA com o apoio dos ditadores
caribenhos organizou a intervenção armada contra a ameaça ‘comunista’ presente em
Guatemala.
Em 1954 o golpe de Estado culminou com a renuncia de Arbens e a instauração
do governo militar de Castillo Armas. A reforma agrária foi anulada, as terras tiveram
que ser devolvidas aos antigos posseiros e o anticomunismo foi institucionalizado
virando uma pratica de terror e de intensa persecução aos lideres dos movimentos
sociais. Esses acontecimentos históricos levaram uns anos mais tarde, em 1960, ao
nascimento dos primeiros fogos guerrilheiros e ao inicio do conflito armado.
Desde 1960 até 1996 o conflito armado chegou às aldeias Q’ueqchi’es de diferentes
formas. No começo uma das estratégias de contra-guerrilha era aquela dos assassinatos
planejados, cujas vitimas foram as pessoas com capacidade de agregar a comunidade,
curandeiros, xamãs, catequistas entre outros.
As conseqüências mais dramáticas do conflito chegaram nos anos ’80-’82, com
os governos de Lucas Garcia e Rios Montt, quando foi planejada e executada a política
da terra arrasada (segundo a teoria maoísta de tirar a água ao peixe). Inteiras
comunidades acusadas de ter alguma relação com a guerrilha foram exterminadas,
outras que tiveram maior sorte foram organizadas militarmente pelo exército. Em
alguns lugares foram criadas aldeias modelos aonde vinham juntadas varias pessoas. Foi
criada a instituição da Patrulha de Autodefesa Civil (PAC), onde todos os homens
foram armados para a ‘presumida’ defesa da própria comunidade contra ‘os terroristas
subversivos’ - segundo a propaganda do exercito.
Nessas décadas muitas comunidades migraram desde Alta Verapaz (lugar histórico dos
Q’ueqchi’es) para o Petén (meu lugar de investigação). Durante o conflito os
Q’ueqchi’es foram soldados do exercito, guerrilheiros, refugiados dentro ou fora do
país, guardas armadas das próprias comunidades, etc.. Múltiplas foram as formas de ter
vivido o conflito.
Desde os anos ’70 e sob as indicações do Conselho Vaticano II, uma grande
campanha de evangelização foi lançada nos territórios Q’ueqchi’es. O equilíbrio
‘sincrético’ criado no curso de anos foi considerado inaceitável. Os cultos relacionados
á terra tinham que ser extirpados de uma vez. Assim foi criada pelos padres e
missionários católicos a figura do ‘catequista’. Geralmente homem, não ancião, com
boa capacidade de falar espanhol, entusiasmado pela palavra de Cristo, escolhia o
caminho de levar esta palavra no coração da sua comunidade, ajudar o padre nas suas
funções, fazer as orações, manter e custodiar a Igreja. Os catequistas foram umas
figuras muito importantes que minaram a autoridade dos anciões.
Segundo Richard Wilson foram eles os que permitiram a formação de uma
identidade étnica:
“As pessoas falam de se mesmas como pertencentes a uma localidade, uma comunidade ou um
município. O Q’ueqchi’ era simplesmente a língua falada e a palavra Q’ueqchi’ indicava mais uma
capacidade lingüística do que uma etnicidade. A igreja católica utilizou em seus cursos o conceito de ‘o
Queqchi’’, para significar valores e características culturais compartilhadas, que na realidade podiam
mudar. Uma identidade étnica baseada na língua, que no passado foi débil, foi potenciada, sem duvida,
com muita força” (1995, p.196).
A identidade étnica não existia antes do conflito. Seguramente na sua criação
jogaram um papel muito importante os catequistas. Mas tem outros elementos que tem
que tomar em conta. Em primeiro lugar as formas, mencionadas antes, de ter vivido e
sofrido o conflito armado, tiveram um papel muito importante. Estas formas levaram na
maior parte das pessoas um sentimento de perca e de afastamento dos territórios e
formas de vida em que haviam nascido. É a partir da reelaborarão desses sentimentos
que os catequistas puderam articular um discurso de pertencimento étnico dentro de um
contexto onde identidades locais, relacionadas ao culto das montanhas, foram quase
destruídas pela guerra e pelos movimentos católico e neopentecostal (a difusão deste
ultimo foi apoiada em particular modo durante o governo de Rios Montt fiel da Igreja
Evangélica ‘O Verbo’).
C. Geertz na sua definição de religião mostra três aspetos fundamentais com que
cada sistema cultural precisa lidar e que representam elementos críticos para os seres
humanos: os limites analíticos, os limites na introspecção moral e os limites na
resistência à dor. Para isto, ‘a religião como sistema cultural’ oferece um sistema de
símbolos que permitem manter essas dimensões dentro de limites suportáveis e mais
que tudo inteligíveis (GEERTZ: 1989).
O assassinato de guias espirituais, a fuga nas montanhas e o afastamento de todo
aquilo que representava um verdadeiro sistema simbólico levaram muitas comunidades
Q’ueqchi’es a viver num espaço de incerteza constante sobre as próprias vidas. Essa
situação é chamada de espaço da morte por Taussing no livro Cultura do terror, espaço
da morte (TAUSSING, 2005, p. 78-79). O espaço da morte pode ser pensado como um
espaço limite, um espaço de transformação radical onde a vida se encontra em situações
extremas de perigo do ponto de vista psicofísico e emocional.
Esse ‘espaço’ de extrema vulnerabilidade diretamente relacionado com as
condições de vida do conflito armado não é um elemento superficial na formação da
identidade étnica Q’eqchi’. Ao mesmo tempo devemos introduzir outro elemento
sumamente importante na determinação dessa identidade particular que é ligado ao
nascimento e desenvolvimento do Movimento Indígena em Guatemala.
Muitos dos movimentos rurais que nasceram nos anos ’70, em pleno conflito
armado, foram criados exclusivamente pelos povos Mayas. Caracterizaram-se por a
presencia de novas reivindicações junto a aquelas tradicionais de terra, credito,
aberturas dos mercados, melhores preços para os produtos do campo, melhores salários
etc. Essas novas reivindicações prefiguraram aqueles que nos anos ’80 se tornariam os
direitos específicos do povo Maya.
No novo contexto de participação indígena foram realizados três seminários
nacionais entre 1974 e 1976 em Tecpán, Quiché e Quetzaltenango, convocados pelo
Coordinamento Nacional Indígeno. Pela primeira vez se falou de preocupação pelas
culturas indígenas e de unificação do povo Maya. Muitas das reflexões foram sobre
questões de identidade em relação à luta armada. Os seminários e a consolidação desses
movimentos indígenas levaram ao nascimento de novos lideres. Entre os dirigentes se
encontravam maestros, promotores sociais, técnicos, intelectuais, ativistas e dirigentes
políticos que se expressavam a nível comunitário, regional e nacional. O trabalho deles
contribuiu a uma revalorização positiva da cultura Maya, difundindo um sentimento de
orgulho de ser indígena, promovendo uma re-apropriação das próprias raízes, a defesa
dos interesses e nascimento de uma identidade baseada em características próprias, uma
identidade positiva e não somente negativa como alteridade respeito ao ‘ocidental’. O
‘ocidental’, o estrangeiro, o não índio, também se criou juntamente com o
desenvolvimento dessas identidades estreitamente ligadas ao conceito de cultura.
Adam Kuper, em Cultura: a visão dos antropólogos, mostra como nos usos
contemporâneos o termo ‘cultura’ represente um aspeto importante na determinação das
identidades étnicas. Os movimentos sociais fundamentados em identidade étnica são os
que “exibem maior tendência de invocar a cultura para motivar ação política” (KUPER:
2002). Um estudo de Wallace de Deus Barbosa sobre a étnogênese do grupo étnico
Pipipã no nordeste do Brasil mostra como o nascimento do grupo acontece por
separação de outro grupo étnico, os Kambiwá. O conflito entre as duas facções pode ser
reconduzido a duas noções nativas do conceito de ‘cultura’, uma baseada na ‘tradição’,
muito mais fechada às influências externas, e outra mais ‘moderna’ ou ‘pragmática’ que
se mostra mais aberta às influências externas, confiando na capacidade de adaptalas às
estratégias sócio-políticas do grupo étnico. Existem duas tendências através das quais
“identidades em via de constituição, kambiwás ou pipipãs buscam uma definição de
seus patrimônios culturais (materiais e imaterias) específicos” (WALLACE, 2003,
p.144). Estas auto-representações são ligadas ao nascimento dos ‘direitos dos índios’
que estimulam a criação de um patrimônio cultural nativo exclusivo para seu
reconhecimento como grupo étnico.
Voltando a Guatemala podemos ver como a situação de guerra foi o catalisador
dos movimentos indígenas onde dirigentes políticos tiveram um papel fundamental em
criar - a partir de elementos existentes! – uma imaginação coletiva ligada à identidade
indígena em geral e étnica em particular. Analisando os movimentos indígenas nos
países centroandinos, o antropólogo Ramón Pajuelo Tevez mostra como: “as lutas
indígenas do presente não são tanto o resultado da permanência de identidades
indígenas – isto é, da suposta continuidade de rasgos prehispanicos a pesar do
transcorrer do tempo – mas bem de processos contemporâneos, recentes, de
‘reinvenção’ de ditas identidades e culturas” (PAJUELO TEVEZ, 2007, p.24).
Fenômenos contemporâneos que levam ao surgimento de mobilizações étnicas.
No caso da Guatemala e dos Q’eqchi’es isto foi possível paralelamente a outros
dois processos relacionados igualmente ao conflito: primeiro a instauração de um
espaço emotivo de extrema vulnerabilidade que chamamos de espaço da morte; a
existência desse espaço é relacionada à destruição das identidades anteriores baseadas
nas “comunidades sagradas tradicionais” por parte da violência do conflito, ao
abandono dos lugares de nascimento, ás condições extremas de precariedade vividas na
selva, à perca de um sistema de referência baseado na religião. Ao mesmo tempo o
trabalho dos catequistas depois do Conselho Vaticano II foi de incrível importância na
mudança das antigas estruturas de poder gerontacráticas, na disponibilização de um
novo universo simbólico e no apoio dos movimentos indígenas na criação de um
sentimento de resgate da tradição, da cultura Q’eqchi’, contribuindo à criação da
identidade étnica.
Conclusão
A partir de uma pratica ritual e passando por um contexto de guerra foi possivel
enxergar uma rede de processos sociais e culturais que contribuíram a uma mudança
identidária significativa no mundo indígena guatemalteco. O surgimento da identidade
étnica Q’eqchi’ foi relacionado a três dinâmicas principais, as três ligadas ao conflito:
a. Surgimento do Movimento Indígena e papel dos novos lideres na criação de uma
nova imaginação sobre as categorias de comunidade, cultura, nação.
b. Particular contexto emotivo, denominado ‘espaço da morte’ e caracterizado pela
destruição de um universo simbólico religioso relacionado a identidade
comunitarias e ás duríssimas condições de vida durante o conflito que pude
relatar a través da minha pesquisa de campo entre os Q’eqchi’es.
c. Papel dos catequistas nas comunidades Q’eqchi’es depois do Conselho Vaticano
II.
Outros fatores provavelmente tiveram uma importância na construção de novos
processos identidarios durante e pós conflito. Minhas capacidades e disponibilidades de
tempo e dados permiteram analisar alguns fatores sem a pretenção de exaurir a
multicasualidade que pode levar ao acontecimento dos eventos sociais.
REFERÉNCIAS BIBLIOGRAFICAS
COMISIÓN DE ESCLARECIMIENTO HISTÓRICO (CEH-Guatemala). Informe:
Guatemala memoria del silencio. Ciudad de Guatemala: CEH, 1999.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
_____________. Nova luz sobre a antropologia. Jorge Zahar: Rio de Janeiro. 2001.
_____________. O futuro das religiões. Folha de São Paulo. 2006.
KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
MAUSS, Marcel. Antropologia e sociologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
PAJUELO TEVEZ, Ramón. Reinventando comunidades imaginadas: movimentos
indígenas, nación y procesos sociopolíticos en los países centroandinos. Lima: IFEA
– IEP Instituto de Estudios Peruanos. 2007.
SIEBERS, Hans. Tradición, modernidad y identidad en los Q’eqchi’es. Cobán:
Centro Ak’kutan, 2001.
TAUSSING, Michael. Cultura del terrore, spazio della morte. In: Fabio Dei (Org.).
Antropologia della violenza. Roma: Meltemi editore. 2005.
WILSON, Richard. Ametralladoras y espiritus de la montaña: los efectos culturales
de la represión estatal entre los Q’eqchi’es de Guatemala. tr. Sp. Cobán: Centro
Ak’kutan, 1995.
_______. Comunidades ancladas: identidad e historia del pueblo Maya-Q’eqchi’.
tr. Sp. Cobán: Centro Ak’kutan, 1994.
_______. Resurgimiento maya en Guatemala. tr. Sp. Cobán: Centro Ak’kutan, 1999.
WALLACE, de Deus Barbosa. Pedra do encanto: dilemas culturais e disputas
políticas entre os Kambiwá e os Pipipã. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria /
LACED, 2003.

Documentos relacionados