Ser Q`ueqchi`: religião, identidade e conflito armado na Guatemala
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Ser Q`ueqchi`: religião, identidade e conflito armado na Guatemala
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SER Q’UEQCHI’ RELIGIÃO, IDENTIDADE E CONFLITO ARMADO NA GUATEMALA CONTEMPORÂNEA. de LORENZO GRIMALDI 2011 Ser Q’ueqchi’: religião, identidade e conflito armado na Guatemala contemporânea. Introdução Esse trabalho visa à análise de alguns dos processos sociais que levaram ao surgimento da identidade étnica Q’eqchi’ através das mudanças religiosas ocorridas nas décadas do conflito armado em Guatemala. Os dados da minha pesquisa foram recolhidos entre 2005 e 2007 em varias comunidades Q’ueqchi’es e não. Em 2005 realizei uma pesquisa em três comunidades da região do Petén no nordeste da Guatemala, durante um período de seis meses para a elaboração da Monografia para graduação em Filosofia, especialização ÉtnoAntropológica. As três comunidades que escolhi como objeto de analise se caracterizam por ter sido três formas distintas de ter vivido o conflito armado. A comunidade de Nuevo Horizonte é formada por ex-guerrilheiros das Forças Armadas Rebeldes (FAR) e seus componentes pertencem a grupos étnicos variados. Os Q’eqchi’es representam uma pequena minoria no texido multiétnico da comunidade. A comunidade de La Esperanza é formada por ex-refugiados, alguns que moraram na selva por muitos anos, outros que procuraram refugio além das fronteiras da Guatemala. Aqui também temos uma proveniência étnica variada. Os Q’eqchi’es são 15 familias em um total de 110 familias. Em fim, a comunidade de Los Olivos cujas pessoas escolheram não fugir e foram organizadas militarmente pelo exercito nas Patrulhas de Autodefesa Civil (PAC). A comunidade de Los Ulivos se formou nos anos ’80 com a migração de núcleos de parentesco pertencentes a distintas comunidades Q’eqchi’es da região de Alta Verapaz. A violência da guerra civil e a necessidade de novas terras foram as motivações preponderantes que levaram à constituição dessa comunidade. Em 2007, voltei durante um período de três meses em Guatemala, fazendo uma pesquisa sobre o estado de cumprimento dos Tratados de Paz, firmados em 1996, e sobre a situação dos movimentos sociais e indígenas. Minha analise dos Q’ueqchi’es começou a partir da observação do ritual do Mayejak na comunidade de Mojarra II. Nos dias seguintes ao ritual comecei a perguntar sobre alguns elementos do ritual que haviam capturado minha atenção e notei algumas mudanças que haviam acontecido na pratica ritual que os atores sociais relacionavam diretamente com a guerra civil. Decidi entrar neste caminho da dimensão ritualística e religiosa, para fazer uma analise das dinâmicas sociais numa situação colonial e/ou de colonialismo interno (segundo o uso que desses conceitos fazem G. Balandier e R. Cardoso de Oliveira)1. Seis anos depois posso dizer que no começo foi a atração pelo exótico que capturou minha atenção, depois foi a indignação pela injustiça histórica, pela desigualdade social, pelo estado de esquecimento em que vivem muitas comunidades indígenas frente ao Estado e pelas dinâmicas marcadamente imperialistas das políticas norte-americanas respeitos aos países latino-americanos. Assim o meu interes antropológico se constituiu desses elementos. Hoje em dia a categoria do exótico morreu e renasceu sob diferentes formas e tento ter alta minha capacidade critica em relação a ela assim como à dimensão da militância, considerando essa capacidade critica o fundamento de uma ciência que visa à maior objetividade possível. Começando da esfera ritual entrei numa analise histórica do conflito guatemalteco. O primeiro passo foi tentar entender os processos sociais acontecidos, ligando historia local e historia global, a través dos depoimentos, das longas conversas com vários atores sociais e da leitura do material disponível, seja dos arquivos históricos que das reconstruções feitas pelas comissões de direitos humanos. Muitos atores entram em cena pintando a história das comunidades em donde estava fazendo pesquisa: as comunidades Q’eqchi’es, a guerrilha, a Igreja Católica – dividida no seu interior entre uma franja conservadora e outra pertencente à teologia da libertação -, os movimentos neopentecostais, os vários governos que marcaram a história do Estado-Nação guatemalteco, a CIA e o governo dos EUA entre outros tal vez menos importantes. Assim tentei estabelecer laços entre esses atores ao mesmo tempo que comecei a configurar um “campo de forças” atuantes dentro espaços e territórios em continua negociação. Entender as novas identidades nascidas desses processos foi a tentativa do meu trabalho, centrando o foco sobre as ligações entre as mudanças religiosas, a violência da guerra e os processos identidários. 1 Utilizei os dois termos porque se desde um olhar ‘nacional’ podemos falar de colonialismo interno, desde a perspectiva de alguns povos indígenas da Guatemala trate-se de situação colonial. Das ‘comunidades sagradas tradicionais’ à ‘identidade étnica’ Um dos rituais principais da religiosidade Q’ueqchi’es é o Mayejak que deriva da palavra mayej que significa oferenda. A oferenda é feita aos Tzuultaq’a, espíritos das montanhas. Esse tipo di ritual tem um caráter coletivo que envolve toda a comunidade. Sacrificar significa matar, queimar, destruir algo para alguém. Podemos pensar o Mayejak como um sistema de dádiva entre a comunidade e os Espíritos das Montanhas. Geralmente eram sacrificados animais para utilizar a sangue durante o cerimonial ou a carne para preparar a comida ritual. Essa comida vênia em parte oferecida aos Tzuultaq’a e em parte compartilhada entre as pessoas da comunidade. No Mayejak que teve oportunidade de presenciar, o ritual se desenvolveu a noite, a partir do aparecimento da primeira estrela no céu, e foi feito em parte dentro uma igreja católica e em parte fora dela num espaço ritual delimitado por quatro velas dispostas aos quatros pontos cardinais, cada uma da cor corrispondente ao seu ponto cardinal segundo a simbologia Maya: branco (norte), vermelho (este), amarelo (sul) e negro (oeste). Lembro que estas quatros cores representam as quatros variantes de cores do milho em Guatemala. Os Mayas são os ‘homens do milho’. Toda a cosmovisão Q’eqchi’ se caracteriza por varias metáforas, analogias e correspondências com o universo natural e com a planta do milho em particular. A execução do Mayejak acontece antes de semear o milho, na maior parte dos casos, mas pode acontecer em outras circunstâncias seja coletivamente que individualmente. Nesse ultimo caso temos que lembrar que a individualidade não se reduze ao individualismo, mas bem é sempre a comunidade que esta colocando em evidência o indivíduo quando consome ou realiza o Mayejak. Em todos os casos o que se espera é uma verdadeira redistribuição da oferenda feita. Esta tem que ser muito maior da dádiva oferecida. A troca permite uma relação harmônica com os Espíritos das Montanhas. A relação entre as pessoas e as montanhas é baseada na reciprocidade, cada um deve alimentar o outro e não pode consumir sem recompensar: “O Tzuultaq’a lhes fornece tudo aquilo que necessitam para viver: milho e feijão, que nascem da pele do Tzuultaq’a, madeira para cozinhar e para construir as casas, a água que sae da suas costas, o Espírito é o que da de comer aos animais, permite o crescimento das plantas medicinais para curar as doenças” (SIEBERS, 2001, p.44). Estas divindades da terra abrangem todo o território sacralizado. As montanhas representam seres vivos, os espíritos têm uma forma humana e moram em uma casa, as grutas, na profundidade das montanhas. Ao mesmo tempo as montanhas são o corpo físico do Tzuultaq’a: “as montanhas são humanizadas, cada uma tem um rosto, uma cabeça, um corpo e uma gruta da qual afirma-se que é uma boca ou um útero” (WILSON, 1995, p.54). O território sacralizado circunda a comunidade e esta faz parte desse território. Por isto Richard Wilson se refere às comunidades Q’eqchi’es, antes do conflito armado, como as “comunidades sagradas tradicionais”. A dimensão comunitária não tem que ser vista como um espaço estático e fechado, mas como uma realidade em movimento constantemente reconstruída, negociada segundo diferentes tipos de interações entre sujeitos que por motivações distintas atravessam esse espaço e se modificam reciprocamente. A pesar disso, as interações entre sujeitos não acontecem em iguais capacidades de exercer o poder uns sobre os outros. Isto implica esferas desiguais de influências, relações de poder variadas e distintos sistemas de dominação. No entanto, como veremos, existem resistências e contra-poderes que são e foram exercidos. Varios elementos permitem desde o começo evidenciar a dimensão constante de interação das comunidades Q’eqchi’es com o mundo externo: os bens sacrificados – no Mayejak que presenciei, entre muitas coisas, havia latas de Coca Cola -; o lugar de desenvolvimento do ritual – a igreja católica -; assim como as modalidades de oferecer – respeito a umas décadas anteriores à minha pesquisa já não aconteciam sacrifícios de animais considerados praticas ‘bárbaras’ pelos padres católicos. Na “comunidade tradicional sagrada”, a relação com os Tzuultaq’a é mantida pelos anciões que nos sonhos tem visões desses espíritos e aprendem suas características, caráter, sexo, em um verdadeiro processo de humanização das montanhas. As montanhas sagradas que rodeiam a comunidade são conhecidas pelos membros através da intermediação dos anciões que guiam os rituais. No meu estudo pude analisar a dinamicidade da figura do Espírito das Montanhas, que não representam uma herança pré-colombiana estática. Ao contrario, eles se formaram no curso das experiências pré-colombiana, colonial e pós-colonial. Segundo diversas fontes bibliográficas a figura dos Tzuultaq’a é descrita, antes do conflito civil, como um homem de pele branca, com barba, muito parecido aos grandes posseiros alemães que chegaram nos anos ’50-’60 em Alta Verapaz (território tradicionalmente Q’ueqchi’es). Durante o conflito começou a ser descrito como um homem com uniforme militar. Estas variações mostram a intima relação entre símbolos religiosos e símbolos da autoridade. Os Tzuultaq’a são verdadeiros símbolos da autoridade ao mesmo tempo que são símbolos religiosos. A ‘natureza’ dos T’zuultaq’a é múltipla e muda em relação a contextos específicos. Os Espíritos podem ser macho ou fêmea, bom ou mal, podem ter aparência corpórea dos conquistadores e ao mesmo tempo ter rasgos indígenas. Vou introduzindo esses elementos simplesmente para situar o leitor na realidade Q’eqchi’ sem pretensão de fazer aqui uma analise da mitologia, simbologia ou do universo ritualístico do povo Maya-Q’eqchi’. Aquilo que nós interessa é analisar os elementos de ruptura ligados a um contexto de guerra, mudança religiosa e identidaria, ao mesmo tempo que os acontecimentos históricos permitem o surgimento dos indígenas como sujeitos político que participam da arena publica para determinar aquilo que é, ou deveria ser, o Estado guatemalteco. Para introduzir o complexo “drama social” da guerra temos que ter presente a situação do Guatemala que levou ao conflito. Desde a colonização o índio foi visto como um ser que precisa ser redimido e civilizado. Índio virou sinônimo de inferioridade, de alguém que precisa ser resgatado, superado, a sua diversidade cancelada e no entanto delimitada dentro espaços específicos para evitar misturas e contágios. As culturas indígenas foram sujeitas a uma ‘hispanização’ forçosa. No inicio do século XVIII começou a aumentar o numero de pessoas de ascendência misturada que foram chamados de ‘ladinos’ ou ‘mestizos’. Alguns foram incorporados nas esferas do poder econômico, outros ficaram às margens desse poder. Durante o processo da Independência, junto com a ideologia liberal se importou também o modelo do Estado-Nação, entendendo com ‘nação’ um povo só com uma única cultura, uma língua, uma religião, um sistema jurídico: “a institucionalidade jurídica que nasceu com a Independência era excludente do mundo indígena” (Comisión de Esclarecimiento Histórico, 1999, p.8). Em 1944 um processo revolucionário terminou com a caída do ditador Jorge Ubico e levou ao inicio da chamada ‘primavera democrática’ (1944-1954) com os governos de José Arevalo e Jacopo Arbens. Em 1945 uma nova Constituição proibiu o trabalho obrigatório dos indígenas nas grandes fazendas, trabalho que variava dos 100 aos 150 dias anuais. A criação de um ‘capitalismo democrático’ era a tentativa declarada dos novos governos, a pesar disso, o setor empresarial do pais e estrangeiro entrou em conflito com os novos governos pela questão da reforma agrária. Esta previa o exproprio de terras deixadas a latifúndio. Em particular essa reforma atingiu os interesses da United Fruit Company (UFC) que tinha concessões de terras do passado governo Ubico. Sócios da UFC eram membros do governo Eisenhover. Assim a CIA com o apoio dos ditadores caribenhos organizou a intervenção armada contra a ameaça ‘comunista’ presente em Guatemala. Em 1954 o golpe de Estado culminou com a renuncia de Arbens e a instauração do governo militar de Castillo Armas. A reforma agrária foi anulada, as terras tiveram que ser devolvidas aos antigos posseiros e o anticomunismo foi institucionalizado virando uma pratica de terror e de intensa persecução aos lideres dos movimentos sociais. Esses acontecimentos históricos levaram uns anos mais tarde, em 1960, ao nascimento dos primeiros fogos guerrilheiros e ao inicio do conflito armado. Desde 1960 até 1996 o conflito armado chegou às aldeias Q’ueqchi’es de diferentes formas. No começo uma das estratégias de contra-guerrilha era aquela dos assassinatos planejados, cujas vitimas foram as pessoas com capacidade de agregar a comunidade, curandeiros, xamãs, catequistas entre outros. As conseqüências mais dramáticas do conflito chegaram nos anos ’80-’82, com os governos de Lucas Garcia e Rios Montt, quando foi planejada e executada a política da terra arrasada (segundo a teoria maoísta de tirar a água ao peixe). Inteiras comunidades acusadas de ter alguma relação com a guerrilha foram exterminadas, outras que tiveram maior sorte foram organizadas militarmente pelo exército. Em alguns lugares foram criadas aldeias modelos aonde vinham juntadas varias pessoas. Foi criada a instituição da Patrulha de Autodefesa Civil (PAC), onde todos os homens foram armados para a ‘presumida’ defesa da própria comunidade contra ‘os terroristas subversivos’ - segundo a propaganda do exercito. Nessas décadas muitas comunidades migraram desde Alta Verapaz (lugar histórico dos Q’ueqchi’es) para o Petén (meu lugar de investigação). Durante o conflito os Q’ueqchi’es foram soldados do exercito, guerrilheiros, refugiados dentro ou fora do país, guardas armadas das próprias comunidades, etc.. Múltiplas foram as formas de ter vivido o conflito. Desde os anos ’70 e sob as indicações do Conselho Vaticano II, uma grande campanha de evangelização foi lançada nos territórios Q’ueqchi’es. O equilíbrio ‘sincrético’ criado no curso de anos foi considerado inaceitável. Os cultos relacionados á terra tinham que ser extirpados de uma vez. Assim foi criada pelos padres e missionários católicos a figura do ‘catequista’. Geralmente homem, não ancião, com boa capacidade de falar espanhol, entusiasmado pela palavra de Cristo, escolhia o caminho de levar esta palavra no coração da sua comunidade, ajudar o padre nas suas funções, fazer as orações, manter e custodiar a Igreja. Os catequistas foram umas figuras muito importantes que minaram a autoridade dos anciões. Segundo Richard Wilson foram eles os que permitiram a formação de uma identidade étnica: “As pessoas falam de se mesmas como pertencentes a uma localidade, uma comunidade ou um município. O Q’ueqchi’ era simplesmente a língua falada e a palavra Q’ueqchi’ indicava mais uma capacidade lingüística do que uma etnicidade. A igreja católica utilizou em seus cursos o conceito de ‘o Queqchi’’, para significar valores e características culturais compartilhadas, que na realidade podiam mudar. Uma identidade étnica baseada na língua, que no passado foi débil, foi potenciada, sem duvida, com muita força” (1995, p.196). A identidade étnica não existia antes do conflito. Seguramente na sua criação jogaram um papel muito importante os catequistas. Mas tem outros elementos que tem que tomar em conta. Em primeiro lugar as formas, mencionadas antes, de ter vivido e sofrido o conflito armado, tiveram um papel muito importante. Estas formas levaram na maior parte das pessoas um sentimento de perca e de afastamento dos territórios e formas de vida em que haviam nascido. É a partir da reelaborarão desses sentimentos que os catequistas puderam articular um discurso de pertencimento étnico dentro de um contexto onde identidades locais, relacionadas ao culto das montanhas, foram quase destruídas pela guerra e pelos movimentos católico e neopentecostal (a difusão deste ultimo foi apoiada em particular modo durante o governo de Rios Montt fiel da Igreja Evangélica ‘O Verbo’). C. Geertz na sua definição de religião mostra três aspetos fundamentais com que cada sistema cultural precisa lidar e que representam elementos críticos para os seres humanos: os limites analíticos, os limites na introspecção moral e os limites na resistência à dor. Para isto, ‘a religião como sistema cultural’ oferece um sistema de símbolos que permitem manter essas dimensões dentro de limites suportáveis e mais que tudo inteligíveis (GEERTZ: 1989). O assassinato de guias espirituais, a fuga nas montanhas e o afastamento de todo aquilo que representava um verdadeiro sistema simbólico levaram muitas comunidades Q’ueqchi’es a viver num espaço de incerteza constante sobre as próprias vidas. Essa situação é chamada de espaço da morte por Taussing no livro Cultura do terror, espaço da morte (TAUSSING, 2005, p. 78-79). O espaço da morte pode ser pensado como um espaço limite, um espaço de transformação radical onde a vida se encontra em situações extremas de perigo do ponto de vista psicofísico e emocional. Esse ‘espaço’ de extrema vulnerabilidade diretamente relacionado com as condições de vida do conflito armado não é um elemento superficial na formação da identidade étnica Q’eqchi’. Ao mesmo tempo devemos introduzir outro elemento sumamente importante na determinação dessa identidade particular que é ligado ao nascimento e desenvolvimento do Movimento Indígena em Guatemala. Muitos dos movimentos rurais que nasceram nos anos ’70, em pleno conflito armado, foram criados exclusivamente pelos povos Mayas. Caracterizaram-se por a presencia de novas reivindicações junto a aquelas tradicionais de terra, credito, aberturas dos mercados, melhores preços para os produtos do campo, melhores salários etc. Essas novas reivindicações prefiguraram aqueles que nos anos ’80 se tornariam os direitos específicos do povo Maya. No novo contexto de participação indígena foram realizados três seminários nacionais entre 1974 e 1976 em Tecpán, Quiché e Quetzaltenango, convocados pelo Coordinamento Nacional Indígeno. Pela primeira vez se falou de preocupação pelas culturas indígenas e de unificação do povo Maya. Muitas das reflexões foram sobre questões de identidade em relação à luta armada. Os seminários e a consolidação desses movimentos indígenas levaram ao nascimento de novos lideres. Entre os dirigentes se encontravam maestros, promotores sociais, técnicos, intelectuais, ativistas e dirigentes políticos que se expressavam a nível comunitário, regional e nacional. O trabalho deles contribuiu a uma revalorização positiva da cultura Maya, difundindo um sentimento de orgulho de ser indígena, promovendo uma re-apropriação das próprias raízes, a defesa dos interesses e nascimento de uma identidade baseada em características próprias, uma identidade positiva e não somente negativa como alteridade respeito ao ‘ocidental’. O ‘ocidental’, o estrangeiro, o não índio, também se criou juntamente com o desenvolvimento dessas identidades estreitamente ligadas ao conceito de cultura. Adam Kuper, em Cultura: a visão dos antropólogos, mostra como nos usos contemporâneos o termo ‘cultura’ represente um aspeto importante na determinação das identidades étnicas. Os movimentos sociais fundamentados em identidade étnica são os que “exibem maior tendência de invocar a cultura para motivar ação política” (KUPER: 2002). Um estudo de Wallace de Deus Barbosa sobre a étnogênese do grupo étnico Pipipã no nordeste do Brasil mostra como o nascimento do grupo acontece por separação de outro grupo étnico, os Kambiwá. O conflito entre as duas facções pode ser reconduzido a duas noções nativas do conceito de ‘cultura’, uma baseada na ‘tradição’, muito mais fechada às influências externas, e outra mais ‘moderna’ ou ‘pragmática’ que se mostra mais aberta às influências externas, confiando na capacidade de adaptalas às estratégias sócio-políticas do grupo étnico. Existem duas tendências através das quais “identidades em via de constituição, kambiwás ou pipipãs buscam uma definição de seus patrimônios culturais (materiais e imaterias) específicos” (WALLACE, 2003, p.144). Estas auto-representações são ligadas ao nascimento dos ‘direitos dos índios’ que estimulam a criação de um patrimônio cultural nativo exclusivo para seu reconhecimento como grupo étnico. Voltando a Guatemala podemos ver como a situação de guerra foi o catalisador dos movimentos indígenas onde dirigentes políticos tiveram um papel fundamental em criar - a partir de elementos existentes! – uma imaginação coletiva ligada à identidade indígena em geral e étnica em particular. Analisando os movimentos indígenas nos países centroandinos, o antropólogo Ramón Pajuelo Tevez mostra como: “as lutas indígenas do presente não são tanto o resultado da permanência de identidades indígenas – isto é, da suposta continuidade de rasgos prehispanicos a pesar do transcorrer do tempo – mas bem de processos contemporâneos, recentes, de ‘reinvenção’ de ditas identidades e culturas” (PAJUELO TEVEZ, 2007, p.24). Fenômenos contemporâneos que levam ao surgimento de mobilizações étnicas. No caso da Guatemala e dos Q’eqchi’es isto foi possível paralelamente a outros dois processos relacionados igualmente ao conflito: primeiro a instauração de um espaço emotivo de extrema vulnerabilidade que chamamos de espaço da morte; a existência desse espaço é relacionada à destruição das identidades anteriores baseadas nas “comunidades sagradas tradicionais” por parte da violência do conflito, ao abandono dos lugares de nascimento, ás condições extremas de precariedade vividas na selva, à perca de um sistema de referência baseado na religião. Ao mesmo tempo o trabalho dos catequistas depois do Conselho Vaticano II foi de incrível importância na mudança das antigas estruturas de poder gerontacráticas, na disponibilização de um novo universo simbólico e no apoio dos movimentos indígenas na criação de um sentimento de resgate da tradição, da cultura Q’eqchi’, contribuindo à criação da identidade étnica. Conclusão A partir de uma pratica ritual e passando por um contexto de guerra foi possivel enxergar uma rede de processos sociais e culturais que contribuíram a uma mudança identidária significativa no mundo indígena guatemalteco. O surgimento da identidade étnica Q’eqchi’ foi relacionado a três dinâmicas principais, as três ligadas ao conflito: a. Surgimento do Movimento Indígena e papel dos novos lideres na criação de uma nova imaginação sobre as categorias de comunidade, cultura, nação. b. Particular contexto emotivo, denominado ‘espaço da morte’ e caracterizado pela destruição de um universo simbólico religioso relacionado a identidade comunitarias e ás duríssimas condições de vida durante o conflito que pude relatar a través da minha pesquisa de campo entre os Q’eqchi’es. c. Papel dos catequistas nas comunidades Q’eqchi’es depois do Conselho Vaticano II. Outros fatores provavelmente tiveram uma importância na construção de novos processos identidarios durante e pós conflito. Minhas capacidades e disponibilidades de tempo e dados permiteram analisar alguns fatores sem a pretenção de exaurir a multicasualidade que pode levar ao acontecimento dos eventos sociais. REFERÉNCIAS BIBLIOGRAFICAS COMISIÓN DE ESCLARECIMIENTO HISTÓRICO (CEH-Guatemala). Informe: Guatemala memoria del silencio. Ciudad de Guatemala: CEH, 1999. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. _____________. Nova luz sobre a antropologia. Jorge Zahar: Rio de Janeiro. 2001. _____________. O futuro das religiões. Folha de São Paulo. 2006. KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC, 2002. MAUSS, Marcel. Antropologia e sociologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. PAJUELO TEVEZ, Ramón. Reinventando comunidades imaginadas: movimentos indígenas, nación y procesos sociopolíticos en los países centroandinos. Lima: IFEA – IEP Instituto de Estudios Peruanos. 2007. SIEBERS, Hans. Tradición, modernidad y identidad en los Q’eqchi’es. 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