se uma BONECA DE PANO É GENTE, TIA NASTÁCIA É o quê?
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se uma BONECA DE PANO É GENTE, TIA NASTÁCIA É o quê?
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA SE UMA BONECA DE PANO É GENTE, TIA NASTÁCIA É O QUÊ? Shirlene Almeida dos Santos 1 Jober Pascoal Souza Brito2 Cortejando o debate A modificação das práticas de leituras, a variação no perfil do leitor adensam não só o sentido dos textos escritos no passado, mas, principalmente, a forma como se lê o passado, cujo valor se entrega às tramas que o constituíram. As inclusões, exclusões, notas de rodapé, alertas ao leitor, o controle do simbólico, as legislações de proteção à grupos minoritários excluídos da literatura e cultura tornaram-se um sitoma de uma sociedade preocupada com o imaginário, ao mesmo tempo que, controversamente, é uma grande oportunidade de discutir literatura em um país que está sempre se queixando, não se sabe se com toda razão, de que há poucos leitores e de que as pessoas leem mal. A expectativa gerada pelo texto define sua diferença e valor. Assim, a tensão entre os acontecimentos e as leituras que movem a história é um dado fundamental para pensarmos a contemporaneidade, que, como diz Giorgio Agamben (2012), busca encontrar não as luzes, mas as escuridões em meio a elas. Nesta perspectiva, somos impulsionado ao passado em meio aos lampanários da História e aos registros da literatura, intuindo que buscar as escuridões significa igualmente ficar preso a elas. Deste esforço, tomamos duas obras emblemáticas, Memórias da Emília (1936) e Histórias de Tia Nastácia (1937), ambos de Monteiro Lobato, as quais nos permitem imaginar os elementos constitutivos da prática literária deste período, bem como o contexto sociocultural desta literatura infantil que toma Emília e Tia Nastácia como imagens de um mundo dividido entre uma cultura letrada e erudita e uma cultura iletrada e popular. 1 Bacharela em Marketing pela Faculdade Estácio- FIB, licenciada em Pedagogia com Habilitação em séries inicias do ensino fundamental pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e mestranda em Estudo de Linguagens pelo Programa de pós-graduação em Estudo de Linguagens - PPGEL, UNEB. Correio eletrônico: [email protected] 2 Licenciado e bacharel em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, mestrando pela Universidade Estadual da Bahia – UNEB (Campus I), através do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, PPGEL. Correio eletrônico: [email protected] 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Será necessário, portanto, remeter ao contexto para o qual refere Terry Eagleton (2002) na reconceituação da palavra “cultura”, cujo transcurso chega à contemporaneidade, ao retomar um dos mais perspicazes pensadores do século XX, Raymond Williams ([1953] 1976), elenca os três principais sentidos modernos atribuídos a este verbete, exibindo os argumentos dos sujeitos em seus momentos históricos com vistas a impor diferentes significações, valores, prescrições e regras. O primeiro significado, iluminista, equivale à noção de civilização, ou civilidade, assinalando o reconhecimento intelectual, espiritual e material da humanidade. A cultura neste contexto, diz respeito à vida urbana, à tecnologia e ao progresso científico e ao receituário das boas maneiras, tomando a Europa como miragem. Em contrapartida, empreende-se como o paradoxo dessa relação a noção de “barbárie”, relativo ao “outro”, aos não europeus, que deverão ou deveriam ser colonizados. Caracterizada dessa forma, diz Eneida Leal Cunha (2009), essa compreensão setessentista de cultura parece muito distante de nós na contemporaneidade, quando persiste em várias dimensões da vida social até o presente, como ilustração, cita a forma como o nosso sistema de educação, ou de formação, organizam seus “valores”, como um aperfeiçoamento espiritual, “através do compartilhamento de um estoque de conhecimentos”, como um ápice da condição humana e do que melhor tem produzido a humanidade. Desta concepção derivam inúmeras expressões que caracterizam o indivíduo como um ser “inculto”, ou contemplando as palavras da personagem Emília, “burro”. Um segundo momento, quase simultâneo ao primeiro, emerge a partir de uma compreensão diferente de cultura que privilegiará não a universalidade dos atributos “civilizacionais”, mas a singularidade resultante dos costumes de cada povo. Advindo da Alemanha, esse ponto de vista apela um lugar de origem, recorre à narrativas clássicas, inventa tradições, elege mitologias como demandas de segmentos internos do próprio estado nacional. Desta perspectiva, somos projetados a ver a cultura no plural. Como último arremate, também do século XIX, a cultura passou a ser entendida como confinada a uma pequena e privilegiada fração de pessoas, reduzida gradualmente ao domínio das artes e significando um fator de distinção social, inclusive promovendo um distanciamento entre a Cultura e a experiência cotidiana, bem como a dissenção desta em relação com a política e às disputas sociais. No mundo contemporâneo, a noção de cultura já não encontra seu posto de segurança resguardado pelo empreendimento civilizacional iluminista, pela preservação de um Estado 2 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Nacional ou pelas elites letradas. Tornou-se sintomático o uso da palavra cultura para designar o território da instabilidade, do conflito e da disputa, conforme afirma Cunha (2009), que reconhece igualmente a dificuldade na diluição das fronteiras entre a “alta cultura” e a “baixa cultura”. Do ponto de vista do valor, diz, do valor cultural, principalmente, a hierarquia prevalece e se manifesta em diversos planos da vida social. Conseguimos ver esse “rebaixamento” na figuração do imaginário da “casa grande” e da “senzala”, o qual toma as personagens do Sítio do Picapau Amarelo em suas diferentes ocupações e atividades. Enquanto na casa de Dona Benta, Emília, Pedrinho, Narizinho ocupam um lugar de prestígio na sala, Tia Nastácia cozinha. Emília, Emília, Emília... Emilia, personagem criada por Lobato em 1920 é uma boneca de pano que tomou uma pílula falante dada pelo Doutor Caramujo e desatou a falar. Fala que nem gente, fala como criança, como adulto e também como sinhá. A personagem metaforiza o ato criativo no anseio vocal, bem como o desejo de pertencer a uma sociedade sem nenhum moralismo em que seja possível falar sem pudores, sem as chamadas “papas na língua”. Ao acobertar-se de crenças, muitas vezes de forma parcial, ora apela à imaginação do leitor em considerá-la uma criança “sem tino”, ora nos convida a percebê-la como um fluxo de consciência do próprio Monteiro Lobato. Afinal, tudo que é um interdito para os bons hábitos, uma criança pode subverter e recebe igualmente a tutela do leitor para dizer todas as “asneiras” e ser facilmente perdoada e/ou assimilada pelo humor da leitura. Emília nasce no livro Reinações de Narizinho (1920), apelido que recebera de sua amiga e companheira, Narizinho (Lúcia), neta de Dona Benta. Matriarca da família, Benta Encerrabodes de Oliveira é uma senhora de cor branca, sexagenária, que usa óculos na ponta do nariz, ela é a dona do Sítio do Picapau Amarelo, local onde seus netos Narizinho e Pedrinho vão passar as férias e onde a história acontece. Emília fora confeccionada a partir de uma saia velha, com trapos e retalhos, e foi recheada de pétalas cor de ouro de uma flor campestre chamada macela, seus olhos foram produzidos com linha preta, seus pés eram para fora e assemelhava-se a uma bruxa. A boneca foi fabricada e costurada por Tia Nastácia, personagem descrita na narração do livro como “preta e muito feiosa”. Era a cozinheira e empregada de Dona Benta. 3 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA A Tia Nastácia ilustrada nos livros infantis de Monteiro Lobato evoca a lembrança do estereótipo bastante conhecido nos Estados Unidos como Mammy, hoje em dia considerado racista, representado por uma mulher obesa de pele negra, a qual enfarda um avental e um lenço sobre a cabeça, e é uma empregada doméstica, quituteira e costureira. Este imaginário é esboçado em alguns desenhos animados antigos da Disney, bem como Os Três Gatinhos Orfãos (1935) e nos clássicos desenhos de Tom e Jerry da década de 1940 e peças publicitárias da época. (PILGRIM, 2000) Embora deva a Tia Nastácia à vida, Emília sempre deixou claro no enredo das histórias de forma bem escancarada suas concepções acerca da sua mãe-fabricante. Quando começa a falar após lançar mão da pílula falante, a boneca “destrambelhou” a falar tudo que lhe vinha na cabeça. Não falava pelos cotovelos como as mulheres em geral falavam, falava pela boca, diz ela. Dizia coisas engraçadas e filosóficas, apresentava sua superioridade intelectual em relação às mulheres uma vez que não dialogava sobre coisas vãs. Em 1936, Monteiro Lobato lança o livro Memórias da Emília. Neste volume, a boneca falante resolve registrar suas memórias através do Visconde de Sabugosa. De acordo com ela, “memórias” é a história de vida de um indivíduo desde o seu nascimento até sua morte. É algo que vai sendo escrito aos poucos até o dia em que se morre sem escrever o final, mas ela alerta: não pretende morrer, apenas finge que morre. “As últimas palavras têm de ser estas: e então morri...com reticências” (Lobato, 1966, pág 03). Apesar de se considerar esperta, Emília teve alguma dificuldade para escrever suas histórias iniciando-as com seis interrogações, afinal estava interrogando a si mesma. Em seguida, disse que nasceu no ano de “três estrelinhas”, na cidade de “três estrelinhas”, filha de gente desarranjada... E toda essa indefinição fora uma forma de não satisfazer os historiadores a quem ela chamava de “gente mexeriqueira”. Ainda no livro citado, a boneca solicita ao Visconde de Sabugosa que escreva suas Memórias e ele narra a viagem dos personagens do sítio ao céu e a retirada de um anjo de asa quebrada dos átrios celestes para o sítio. O livro narra em (O anjinho de asa quebrada) a forma degradante como a boneca trata Tia Nastácia ante à recusa da cozinheira em cortar as asas do anjo que Emília houvera confinado. Aborrecida, a “menina” culpa Nastácia, e chama-a de “Burrona! Negra beiçuda!” e diz que Deus a marcou com a cor. “Quando ele preteja uma criatura é por castigo. (...) Esta burrona teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. Eu 4 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA vivia insistindo. Hoje mesmo insisti. E ela, com esse beição todo: Não tenho coragem... É sacrilégio... Sacrilégio é esse nariz chato. (Lobato, 1966, p. 103- 104). Este trecho demonstra não somente uma chateação de Emília mediante a partida do amigo, mas, a sua concepção sobre Nastácia, a quem ela expõe seus traços fenotípicos associando-os a questões de baixa intelectualidade, do desprovimento de beleza e do castigo da cor produzido pelas esferas do sagrado. Essa ideologia em muito se assemelham às críticas realizadas por Gregório de Matos Guerra (1969) “à negra Margarida, que acariciava um mulato com demasiada permissão dele”. O poema reedita o mito bíblico de Can ao ver o pai, Noé, nu. O filho é condenado a ser o menor de todos os irmãos, restando-lhe o lugar de escravo da família do patriarca. Esta mitologia serve de arcabouço do racismo que teve também o poeta Gregório de Matos como um dos principais precursores: (...) Longe vá o mau agouro; tirai-vos desse furor, que o negro não toma cor, e menos tomará ouro: quem nasceu de negro couro, sempre a pintura o respeita tanto, que nunca o enfeita de outra cor, pois fora aborto, é, como quem nasceu torto, que tarde, ou nunca endireita. A nenhum cão chamais tal, Senhor ao cão? isso não: que o Senhor é perfeição, e o cão é perro neutral: do dilúvio universal a esta parte, que é desde o tempo de Noé, gerou Cão filho maldito negros de Guiné, e Egito, que os brancos gerou Jafé. Gerou o maldito Cão não só negros negregados, mas como amaldiçoados sujeitos à escravidão: ficou todo o canzarrão sujeito a ser nosso servo por maldito, e por protervo; e o forro, que inchar se quer, não pode deixar de ser dos nossos cativos nervo (...) (MATOS, 1969) 5 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Versos como estes encontram eco nas falas de Emília, redimensiona o recrudescimento do racismo, em século XIX, em que os teóricos do darwinismo racial fizeram dos atributos externos elementos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos. Lilia Schwarcz (2012) salienta que a Biologia que foi a grande ciência do referido século, com seu modelo darwinista social foi um instrumento usado para julgar povos e culturas, através do seu laboratório racial. É possível deduzir que Monteiro Lobato, como um homem de seu tempo, também comungou desta crença e usou Emília como um recurso estratégico na montagem sub-reptícia da personagem Tia Nastácia. Isso se expõe em outros personagens e situações narrativas, no entanto Lobato usa de uma certa economia para definir a quituteira, mas Emília não poupa nas palavras. Inferimos que essa bagagem de preconceitos que se expõe no texto lobatiano é uma caricatura da sociedade brasileira no pós-escravagismo. Emília diz que era feliz quando não sabia ler, pois, agora que lê jornais vê o quanto de sofrimento existe no mundo. Só no sítio ela enxerga felicidade, tal como Lobato afirmava que queria transformar o mundo no sítio. E por fim, ela revela suas impressões acerca de cada morador do sítio dizendo que Tia Nastácia é a própria ignorância em pessoa que ignora ciências e conteúdos livrescos, mas é completamente sábia na cozinha, na manipulação e preparo dos alimentos, é uma sábia nos afazeres domésticos e para remendar seu corpo quando seu recheio está fugindo de si. Eu vivo brigando com ela e tenho-lhe dito muitos desaforos - mas não é de coração. Lá por dentro gosto ainda mais dela do que dos seus afamados bolinhos. Só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boba e prestimosa nascer preta como carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há essas diferenças de cor. Se houvesse, como havia de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas? (Lobato, 1966, pág.145). Quando Monteiro Lobato iniciou seus escritos na década de 20, há pouco o Brasil havia extirpado a escravidão, seus escritos não eram voltados para os negros que em sua maioria não eram alfabetizados e ainda não se entendia o porquê de alguém nascer negro, dessa grande incompreensão a maior barbárie mundial se configurou que é a escravidão. Até hoje no século XXI as histórias procuram responder a querela sobre a negritude. Emília ao ver Nastácia como empregada, com seu local socialmente marcado enxergava nitidamente que sua cor determinava sua intelectualmente, posição e valor, logo sua cor era um defeito, embora bondade não lhe faltasse. Emília não poderia compreender como sua fruta preferida pode ser preta e torna-se preterida. Emília embora admita de uma forma pitoresca gostar de Nastácia não pode deixar isso nítido nos seus discursos, pois, a raça e a etnia demarca uma fronteira entre os povos. Stuart Hall (2006) 6 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA aborda que se trata de um conjunto frouxo pautado em questões físicas como cor da pele, textura dos cabelos etc.; que se configura como marcas simbólicas usadas para diferenciar socialmente um grupo do outro. E o termo frouxo é usado de forma proposital por Hall para definir que elementos físicos, assim como a forma de falar daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) não são substanciais para definir um grupo de indivíduos e suas posições. E assim, Emília encerra suas memórias alegando ter contado tudo que sabia, afirmando que disse asneiras e suas opiniões filosóficas sobre o mundo e os moradores do sítio. Deixou um até logo para o respeitável público e findou dizendo que se eles gostaram das suas memórias está ótimo e se não gostaram nos deseja pílulas e assim tem dito. O livro Memórias da Emília é dividido em uma segunda parte que narra o momento em que Dona Benta reúne seus netos para contar-lhes a história de Peter Pan, no momento que todos estão reunidos para ouvir a história Tia Nastácia da cozinha pede que Dona Benta aguarde que ela termine de lavar a louça uma vez que também almeja ouvir a história, Dona Benta aguardou, mas, não sem antes ouvir a indignação de Emília que afirmava não saber para que uma cozinheira queira saber a história de Peter Pan. No decorrer da história tia Nastácia interrompe Dona Benta informando que só ouviu falar de fadas em histórias que não são reais, mas Emília ordena que ela se cale, pois, só entende de cebola, alho, vinagre e toucinho que uma fada jamais apareceria para ela, uma vez que fada não aparece para gente preta. “Eu se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda...”. (Lobato, 1966, pág.166). Esta fala de Emília impulsiona posteriormente a partir da década de 1970 uma busca exacerbada por novas representações, afinal a contemporaneidade irá reivindicar elementos mágicos, a imaginativos e fantásticos que nunca estão associados ao negro. Por que para o negro não há magia? A contemporaneidade irá reivindicar, revogar esses lugares socialmente demarcados de casa grande e senzala que mesmo após a abolição permaneceram. Embora Dona Benta sempre interpele a boneca exigindo respeito aos mais velhos neste caso ela vai além da exigência e explica a boneca que no sítio todos sabem que Nastácia só é preta por fora, pois ela possui muito pigmento preto. Reforçando o estereótipo de preto de alma branca, mostrando que é possível apesar do seu confinamento de cor, ter bons sentimentos. Todos os dias durante a contação de história Tia Nastácia notava que sua sombra estava diminuindo, como se um rato a estivesse roendo e embora Narizinho dissesse que sombra era algo sem valor, Nastácia explicava que se ela não tivesse sombra poderia ser queimada viva, como se ela 7 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA fosse uma feiticeira tal como fizeram com Joana D’ Arc (chamada de Joana do Arco por Nastácia). Emília intrometeu-se no diálogo informando que o mundo persegue os que são mais que os outros, mas que Nastácia não seria perseguida por era menos, menos até na sombra. Um fato interessante das interpelações de Emília é a não atitude de Nastácia que jamais questiona, aceita sua condição, a personagem é como a sua sombra, sem projeção. Nastácia nunca se defende ou ainda não se vê atacada, Kabengele Munanga (1988) explicita que somente quando o indivíduo estuda sua própria história pode tirar dela o benefício moral e necessário para reconquistar seu lugar no mundo moderno. Durante toda a narrativa de Dona Benta os comentários de Tia Nastácia eram preteridos e Emília a todo tempo estava à espreita tentando ridicularizar a empregada sem projeção, como na vez que Dona Benta contou sobre o capitão gancho Emília tentou construir um gancho para ganchar “o beição” de Nastácia. Outra situação usada para ridicularizar Nastácia foi quando dona Benta ensinou a seus netos uma palavra nova, informando que é necessário aprender linguagem de gente simples e das pessoas pedantes para não passar por bobo e sim rir como um sábio, Pedrinho por sua vez utiliza a nova palavra em um diálogo com Tia Nastácia e todos riem diante do desconhecimento do significado e Dona Benta reafirma aos seus netos a vantagem do saber. Ao final da história, Visconde descobre que Emília é que vinha furtando a sombra de Tia Nastácia a quem o escritor informava que a cada sumiço tinha seu beiço ainda mais caído. Emília devolve sua sombra devidamente costurada, remendada. Tia Nástácia é o quê? Na hora que o sol se esconde E o sono chega O sinhozinho vai procurar Hum...Hum...Hum... A velha de colo quente Que canta quadras Que conta história para ninar Hum...Hum...Hum... Sinhá Nastácia que conta estória Sinhá Nastácia sabe agradar Sinhá Nastaciá que quando nina Acaba por cochilar Sinhá Nastácia vai murmurando Estórias para ninar (Zeca Pagodinho/Domínio Público) 8 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Em 1937, Monteiro Lobato publica o livro Histórias de Tia Nastácia, outra obra onde fica nítida a impressão de Emília sobre Nastácia, bem como a leitura das outras personagens sobre a cozinheira. A trama inicia-se com um incômodo de Pedrinho ao ler um jornal e se deparar com a palavra folclore. Ao descobrir com Dona Benta que se trata das “histórias do povo”, percebe que Tia Nastácia é este “povo”, tratado como “o outro” na narrativa. Resolve conhecer suas histórias. Este livro é uma coletânea de histórias contadas por ela. De inicio, é interessante analisar como os suportes são colocados com distinção, o suporte do conhecimento de Pedrinho é o jornal, pois, pertence a uma cultura letrada e erudita e Nastácia é o “povo” que usa como suporte elementos da tradição oral. O “nós” e o “outro” ficam impressos na narrativa de tal forma que nos direciona ao contexto inicial a que nos reportamos as significados de “cultura”. Embora o livro tenha começado demarcando diferenciação entre cultura letrada e popular, percebe-se um empenho, ainda que mal executado, em se debruçar sobre as histórias deste “outro”, tratado como “folclórico” e alegórico, que também traduz na sua bagagem impressões de gênero, etnia e a violência sofrida no apagamento da própria história e assimilação da história do colonizador, mas a forma de contar preserva memória dos griôs africanos. Através de Nastácia, somos reportados ao contexto das culturas negras que, conforme apresenta Kabengele Munanga (2005), enraíza uma educação envenenada pelos preconceitos, em cujas estruturas psíquicas foram acidentadas e afetadas pela escravidão. Essa memória negra cumpre ritos, aciona mitologias, contribui para o adensamento da formação das culturas populares, tomadas a posteriori como fragmentos de uma identidade nacional. A primeira história intitulada O bicho Manjaléu, trata de um irmão que sai em busca de suas três irmãs vendidas à contragosto do pai, levando consigo três elementos mágicos, uma bota “que o bota em qualquer lugar”, uma carapuça que “o encarapuça” e uma chave que “abre qualquer porta”. Nesta procura, o irmão encontra suas três irmãs, agora princesas e casadas com os reis de Peixes, de Carneiro e de Pombo e, por fim, ele mesmo acaba casando-se com a rainha de Castela que lança mão da sua chave para libertar uma fera, o Manjaléu, que vivia aprisionado na masmorra do castelo. Para matá-lo e salvar a rainha, o irmão, agora também príncipe, precisa encontrar a vida do Manjaléu que jazia no fundo do mar, onde estava um caixão e dentro dele uma pedra, dentro dela um pombo retentor de um ovo, em cuja vela se apagada mataria o Manjaléu. A história finaliza com a morte da fera mediante intermédio dos presentes mágicos. 9 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Emília relutando em acolher e ser convencida pela história contada pela cozinheira, disse que o folclore é bobo e que “o povo é idiota” e se sente avançada intelectualmente para sua idade, “uma isca por fora e filósofa por dentro”. Melhor mesmo, diz a boneca, seria conversar com Sócrates ao invés de ouvir as histórias de Tia Nastácia. Narizinho concorda dizendo que após ouvir histórias como Peter Pan de J. M Barrie tornouse mais exigente e não era qualquer história que a satisfaria. Pedrinho, por sua vez, alega ter gostado da história, pois, ela é um referente da “mentalidade do povo”. O que podemos observar nesta primeira história é o uso de elementos mágicos, que remetem às histórias clássicas com reis, princesas e castelos. O uso da repetição, como recurso metodológico, em muito se relaciona à forma como as tradições orais adequaram o modelo de contação de histórias. Em Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi (2001), diz que optou por um padrão inspirado na forma dos poemas dos babalaôs africanos, com o uso de versos livres e linguagem sincrética, procurando sempre manter um conteúdo original de como foi ouvido. Por isso, os mitos recorrem ao aspecto mais mnemônico da sonoridade e da repetição. A falta de maiores elementos na história contada por Nastácia e a forma oral como é contada em muito se relacionam à descrição de Prandi. No entanto, esta característica opera de forma contaminada para os personagens do Sítio, embora se verifique que as narrativas remetem mais ao contexto europeu do que propriamente à África, o que é bastante sintomático para as condições as quais foram submetidos os povos advindos deste continente. Outra história do livro, O sargento verde conta a história de uma moça que é pedida em casamento, no entanto a donzela era afilhada de Nossa Senhora e é avisada pela santa de que este homem é o “cão” (o diabo) disfarçado e lhe ensina uma forma de, após o casamento, fazê-lo explodir e retornar ao inferno de onde saiu. Assim a moça o fez. Em seguida ela cavalga para outro reino onde resolve cortar seus cabelos, vestir-se de verde e fingir-se de homem, oferecendo-se se ao exército deste novo reino como sargento. No decorrer da trama, o sargento ganha a simpatia do rei por seus serviços e tornar-se alvo do desejo da rainha que, diante da sua recusa, impõe-lhe vários feitos. O sargento conta com a ajuda do seu cavalo mágico que orienta como passar por cada prova, sua última prova seria libertar uma princesa que, após liberta, revelar-lhe-á o segredo do sargento verde (que na verdade trata-se de Lucinda). No final da narrativa Lucinda aparece usando trajes femininos, o seu cavalo revela-se um príncipe e casa-se com a princesa que fora libertada. O rei por sua vez, casa-se com Lucinda e castiga a rainha lançando-a nos campos amarrada a dois bravos burros e a narrativa finda informando-nos que houve grande festa no reino. 10 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Emília, chateada, retruca informando que esta história é ainda mais boba que a primeira, não possui sentindo algum e parece que a história era outra e quem foi contando ao longo do tempo foi se atrapalhando e a história foi ficando “sem pé e a cabeça”. Esse argumento demonstra a total inapetência da personagem, e poderíamos aqui também replicar para a vivência de Monteiro Lobato para entender as histórias coletadas pelas tradições orais, que, conforme descreve Prandi (2001), vale-se de seu aspecto sincrético, em vista da assimilação decorrente de várias mitologias que se embargaram em uma única história. Dona Benta explica que “a história do povo” não é igual às histórias deles, que são histórias escritas e fixas, já as populares, por ser valerem da repetição, vão sendo adulteradas ao longo do tempo. Mesmo diante da explicação de Dona Benta, Emília reafirma que essas mudanças na história do povo só as deixam “idiotas”, de tal modo que se um sábio fosse estudá-las também se tornaria “idiota”. Em vista disso, usa Hans Christian Andersen e Lewis Carroll como referências elementares para um suposto modelo de narrativa. Patrícia de Pinho (2004) afirma que os diversos elementos utilizados como seus mecanismos de identificação, definem fronteiras que excluem os “outros” e incluem o “nós”. “Nós” são aqueles que tem um passado comum e europeizado em sua fundamentação; os “outros” são aqueles que não são reconhecidos nestes valores tradicionais. Os grupos étnicos marginais figuram, portanto, como os limites e fronteiras que atesta processos de formação de identidades sociais que tomam a Europa como modelo. A princesa ladrona é outra história descrita no livro de Tia Nastácia, ela narra a história de três irmãos que saem pelo mundo em busca de aventuras, os dois primeiros escolhem partir recebendo do seu pai muito dinheiro e pouca benção e no caminho são enganados por uma princesa que lhes rouba seu dinheiro e jogam-nos na masmorra comento alface e couve respectivamente, o último irmão sai em busca dos dois primeiros escolhendo pouco dinheiro e muita benção sendo assim, no caminho recebe de Nossa Senhora três presentes mágicos e embora ele também tenha perdido seu dinheiro e sido jogado na masmorra para comer couve por toda vida como seus dois irmãos, ele pôde fazer uso dos seus presentes mágicos e assim conseguiu engabelar a princesa, casando-se com ela e convencendo-a a libertar seus cativos. Esta história também finda com grande festa no reino e Nastácia remata a narrativa dizendo: “Entrou por uma porta, saiu por um canivete; manda o rei meu senhor que me conte sete”. (Lobato, 1995, pag.23) Emília ficou indignada com mais esta história queria compreender o que era “contar sete”, mas, Nastácia não sabia e defendia-se apenas dizendo que repassava as histórias tal como sua mãe, 11 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Tiaga lhes contou. A boneca criticava os contadores de histórias populares que falavam sobre coisas desconhecidas e idiotas. De modo, que até um sábio que se debruçasse sobre estas narrativas também se tornaria débil, pois, para ela tais narrativas servem apenas como um estudo da ignorância do povo, não são histórias engraçadas e sim, narrativas bárbaras das quais ela não gostava. Todo desconforto de Emília em relação à Tia Nastácia é convertido em questões raciais. A escrita de Lobato ainda que remeta a um pensamento da sua época e seja fruto do seu meio, é de cunho preconceituoso e estereotipado, onde Emília pode ser considerada a personificação do seu racismo. Na história A Moura Torta, Nastácia conta a história de três irmãos pobres que o pai lhe presenteia com melancia e lhes orienta como deve partí-la os dois primeiros não obedecem e o último parte a fruta conforme orientação do pai encontrando dentro dela uma bela moça, esta moça é alvo da inveja da Moura torta que a transforma em um pombo. A Moura valendo-se de suas mentiras casa-se com o rapaz e vai morar com ele em um castelo, ao final da trama o feitiço é descoberto e desfeito e a Moura é castigada, A história finaliza com a descrição de uma festa no reino. Diante desta narrativa a boneca afirma: “Essa história — disse Emília — começa bastante bem e vai bem até certo ponto. Depois derrapa como automóvel na lama. O tal moço era um coitado que só possuía uma melancia. De repente está num palácio, e sem mais aquela vira rei....”(Lobato, 1995, pág 39) Nas histórias seguintes, Emilia afirmava que o povo não tinha fineza no trato com as narrativas, não tinha delicadeza como Oscar Wilde. Na história de João e Maria indignou-se com as mudanças das histórias, pois, julgava que o conto era de Andersen e o povo o encheu de personagens pretos. A história O bom diabo conta sobre um príncipe que ao descobrir que sua sina é morrer enforcado viaja para conhecer o mundo no caminho depara-se com uma capela destruída e resolve consertá-la, restaurando inclusive a imagem de São Miguel com o diabo, pintando o diabo mesmo a contra gosto do operário que fez a reforma. Trabalho concluído o príncipe segue viagem e vítima de um engano e condenado a morte pela forca. São Miguel na capela avisa ao diabo que se ele está restaurado foi devido ao rapaz e o diabo então vai salvá-lo por gratidão. Esta foi uma das poucas histórias que Emília gostou devido à camaradagem do santo com o diabo, Pedrinho por sua vez associou a narrativa aos estudos darwinistas, pois o diabo foi bom devido a influência do meio. 12 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Nastácia não gostou das crianças ter olhado o cão com bons olhos para ela cão é cão, sua maldade é fixa. Emília no final das contas gostou do diabo ter sido comparado ao cão, ela viu nisso um elogio. Emília ao longo das narrativas fora afirmando que o povo não tinha criatividade, imaginação, e parecia que só possuía uma história a qual ia contando de mil formas possíveis, dando a entender que o povo narrava às histórias em ciclo, onde escolhia um tema que poderia ser raposa, pássaro, príncipes e princesas e tentava esgotá-lo. Pedrinho lamentava que as histórias do povo fossem assim e alegava cansaço diante de tanto ciclismo. A cada história que Tia Nastácia ia contando Emília ia avaliando, em uma das histórias ela deu nota 05 para a narrativa e zero para o final. Ela dizia que a nota zero é por que não há perdão para burrice. No decorrer do livro Dona Benta conta suas histórias, narrativas de vários países como a Pérsia, Rússia dentre outros, e estas narrativas foram bem recebidas por todos que enxergavam nelas beleza, cultura e tons poéticos. As histórias contadas por Nastácia não são narrativas do material folclórico, conforme ilustra Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999) estas histórias nem sempre são brasileiras por vezes são narrativas que utilizam como recurso o acervo europeu, ou provém do folclore ibérico tendo sido transmitidas desde a colonização. Lobato procura através dessas narrativas recuperar o estatuto oral da literatura, através da adoção de um estilo coloquial, de que estão ausentes a erudição e a preocupação com a norma gramatical. As narrativas contadas por Nastácia é, portanto, contrafações do conto de fadas europeu, que não absorvem peculiaridades locais, nem incorporam elementos das demais culturais, como a negra ou a indígena. O caráter oral das narrativas lobatianas também pode ser justificado pelo fato de a formação escolar infantil no Brasil ter se tornado obrigatória após a década de 1930, até então prevalecia os relatos dos escravos e amas de leite que cuidavam das crianças, logo não é por acaso que em 1937 Lobato lança o livro História de Tia Nastácia. Conforme Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999), Lobato estrutura tais narrativas com ingenuidade, falta de inventividade dos textos, inverossimilhança, pobreza de enredo e expõem as características do narrador de forma deveras pejorativa para alcançar o que ele chama de narrativa de procedência oral do povo. Nas duas obras apresentadas Memórias da Emília (1936) e História da Tia Nastácia (1937), Lobato apresenta o povo como um grupo sem cultura, sem leitura que conta a história de gente 13 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA ignorante e vão as adulterando. Nastácia por sua vez embora conte as suas histórias não se posiciona diante das criticas recebidas, pois, como Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999) explicitam: “Tia Nastácia, é a doméstica sem qualquer autoridade no reino de Dona Benta”. (Zilberman e Lajolo, 1999, pág. 73). A religiosidade é outro fator marcante nas relações entre Nastácia e Emília, no livro Memórias da Emília, Nastácia recusa-se a cortar as asas do anjo e no livro Histórias de Tia Nastácia não lhe agrada o fato de Emília gostar de uma história que atribui bondade ao diabo. José Roberto Penteado (1997) afirma que Nastácia foi escrava liberta de Dona Benta, tornando-se sua empregada. Lobato foi criticado pelo Padre Sales, por criar uma personagem negra, pobre e analfabeta católica ainda que de forma caricatural e supersticiosa. Penteado (1997) explicita que Nastácia é religiosa enquanto o resto do grupo permanece como acredita o Padre Salles, ateu. Embora na trama seja possível observar que Dona Benta também é católica, uma vez, que possui um oratório em sua casa, todavia Dona Benta comunga da sua fé de forma diferente de Nastácia, pois, enxerga no fanatismo religioso um grande mal. Nastácia, nome da babá do filho de Lobato, de acordo com Penteado (1997), é apresentada como pobre, analfabeta, sem possibilidade de ascensão social, sofrendo uma condição de racismo e inferioridade e estas questões são tratadas com naturalidade, afinal, trata-se de fatos que aconteciam em seu tempo. Se o debate racial não fazia parte do discurso lobatiano para Penteado (1997) Lobato propôs ideias avançadas para o seu tempo uma vez que mostrou fatos que após a escravidão o Brasil quis ocultar, questionou o casamento e posição da mulher, afinal a própria Emilia era uma boneca divorciada, um avanço para seu tempo. Defendeu a possibilidade de o indivíduo ser agnóstico e levou a sério os temas de espiritismo e espiritualismo, enxergando no candomblé uma manifestação cultural e filosófica valiosa deixada pelos negros. E desta religião de matriz africana ele se vale dos artifícios de contação de história. Monteiro Lobato foi um homem do seu tempo e o quis retratá-lo, mostrando a cultura popular e as representações do negro do jeito que podia e sabia e deu a Emília a liberdade de falar tudo o que pensa, lhe deu o direito de ser a Independência ou Morte! E mesmo diante das acusações de que a boneca era seu inconsciente em ação ele defendia-se afirmando: “Ela é tão inteligente que nem eu seu pai, consigo domá-la. (...) Fez de mim um “aparelho”, como se diz em linguagem espírita. (...) Emília que hoje me governa, em vez de ser por mim governada”. (Lobato, 1955, pág. 341) 14 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS 22 a 26 de Setembro de 2014 Salvador – BA Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius N. Honesko. Chapecó: Argos, 2012. MATTOS, Gregório de. Obras Completas. Edição de James Amado. Salvador: Ed. Janaína, 1969, p. 909 CUNHA. Eneida leal. A emergência da Cultura e a crítica cultural. Cadernos de Estudos Culturais. Campo Grande, MS, v. 1, n. 2, p. 73-82, jul/dez. 2009. EAGLETON, Terry. A cultura em crise. In: A ideia de Cultura. Lisboa: Temas e Debates, 2002. p. 49. 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