A abordagem do futuro
Transcrição
A abordagem do futuro
C a p a - E C n t r e v i s t a E duardo Bruera se formou em Medicina na Universidade de Rosário, Argentina, em 1979, onde nasceu. Fez especialização em Oncologia Médica e foi para a Universidade de Alberta,Edmonton, no Canadá, 1984, onde dirigiu Programas Clínicose Acadêmicos de Cuidados Paliativos até 1.999. Nesse ano,Dr. Bruera foi chamado para a Universidade do Texas, M. D. Anderson Cancer Center, onde tornou-se Professor em Medicina e recebeu o título F. T. McGraw Chair em Tratamento de Câncer. Atualmente, é Chair do Departamento de Cuidados Paliativos e Reabilitação em Medicina da Univesridade do Texas MDAnderson Cancer Center, em Houston. Seu principal interesse clínico é o cuidado físico e psicossocial do sofrimento dos pacientes com câncer avançado e o suporte às suas famílias. Ele desenvolveu e liderou, por 5 anos, o Programa Regional de Edmonton, o único programa que provê acesso aos cuidados paliativos para mais de 85% dos pacientes que morrem de câncer na região de Edmonton. Além disso, Dr. Bruera desenvolve programas internacionalmente. Em 1994, foi nomeado pela Organização Mundial de Saúde e a Organização Panamericana, como consultor regional em Cuidados Paliativos para a América Latina e Caraíbas. Também foi Presidente da International Association of Hospice, desenvolvendo e ajudando programas na América Latina, Índia e diferentes áreas da Europa. Nesses 20 anos, Dr. Bruera treinou centenas de médicos, enfermeiros e outros profissionais de sáude em diferentes aspectos dos cuidados paliativos. Tem mais de 700 publicações e editou dezenas de livros, já deu mais de 500 conferências ao redor do mundo. Dr. Bruera recebeu inúmeros prêmios nacionais e internacionais, incluindo o Lane Adams Quality of Life Award. A Sociedade Canadense de Cuidados Paliativos Médicos recentemente estabeleceu o “Eduardo Bruera Award” ,como um prêmio conferido na carreira de especialistas em cuidados paliativos. Os cuidados paliativos A abordagem do futuro 18 m e a n i n g | e d i ç ã o 0 0 - A n o 1 a p a - E n t r e v i s t a AG- Como você define os cuidados paliativos? EB- Os cuidados paliativos existem para ajudar o paciente e a família a viver com a maior qualidade de vida, é extensivo a pacientes com câncer e enfermidades que causam problemas, é proporcionar ao paciente viver com a maior quantidade e melhor qualidade de vida possível. Surgiram como resposta à falta de atenção da Medicina organizada e acadêmica à quem tinha enfermidades graves e progressivas. Era preciso tratar o sofrimento físico e psicossocial dos doentes e das famílias. Os cuidados paliativos auxiliam no tratamento primário da enfermidade, ajudando os oncologistas, cardiologistas, pneumologistas, enfim à todos os especialistas, em toda a trajetória da enfermidade. Não são cuidados a serem oferecidos apenas para os últimos dias de vida, podem durar meses ou anos. AG-A que você atribui a dificuldade do meio médico em compreender tais cuidados? EB- Eu acredito que o problema mais importante seja a falta de ensino nas escolas. Nós não tivemos a possibilidade de viver tudo isso nas universidades, não se ensina os domínios envolvidos nesses cuidados nas universidades de medicina, enfermagem, psicologia e outras especialidades. Por volta da II Guerra Mundial, a Medicina conseguiu, pela primeira vez, mudar seriamente a história natural da enfermidade, com os enormes êxitos verificados nas doenças infecciosas e o progresso com as técnicas cirúrgicas. Nós médicos começamos a pensar que o mais importante era isso, mudar a história natural da doença. Mas esse avanço fez-nos esquecer o nosso papel no alívio do sofrimento. E era ele que nos dava credibilidade durante milhares de anos. Os cursos de medicina colocaram então, de lado a questão do alívio e focaram apenas na eliminação da enfermidade, até que, no fim dos anos 60, princípio dos 70, um grupo na Inglaterra reagiu a isso. Não se ensina como cuidar, por isso que agora os médicos e profissionais que se encontram em posição de destaque nas universidades e hospitais, (a geração dos 40, 50, 60 anos de idade) não aprenderam a praticar os cuidados paliativos. Existe uma ignorância muito grande entre os líderes da medicina, da enfermagem e também do governo.Essa geração mais jovem já tem uma maior exposição a essa abordagem, do que realmente é cuidar. O maior problema para o desenvolvimento dos cuidados paliativos ainda é a falta de ensino; como os alunos e professores não aprenderam a também ter foco no cuidar, essa é a razão para não estarem envolvidos, simplesmente não tiveram esse tema inserido em seus curriculum. AG- Existe realmente a necessidade de uma mudança já na universidade? EB- Eu acredito que seja muito importante essa mudança nas Universidades, mas é como a história do ovo e da galinha, se não existem modelos de tratamento dos pacientes muito estruturados, acaba sendo muito difícil separar a teoria da prática, ensina-se somente a teoria. É necessário que haja um progresso no desenvolvimento de programas nos maiores hospitais do Brasil, como já existem no Instituto de Câncer, Hospital A.C Camargo, Santa Casa, Hospital da Unicamp, em hospitais-escola, para que a o aluno possa ter esse ensino integrado.Eu acredito que vocês, no Brasil, tenham grandes centros e os pacientes e familiares devem se perguntar o porquê desses centros não terem unidades de cuidados paliativos para ajudá-los com as enfermidades sérias. Devemos perguntar aos dirigentes dos hospitais e das universidades de medicina o porquê e deixá-los saber que é necessário existir tais serviços para que se eduque a geração futura. AG- Os serviços no Brasil ainda estão muito aquém do necessário. Existe uma dificuldade muito grande, porque o próprio paciente ainda não sabe requerer esse tipo de assistência. A relação médico-paciente ainda é muito distante no Brasil e o paciente acaba por não requerer tais direitos porque não tem conhecimento e os serviços não se desenvolvem como poderiam. Você teria algum país-modelo ou serviços modelos no desenvolvimento de programas. Seriam os os EUA, Europa, Canadá? Quem mais teria um modelo ideal de serviço a ser seguido? m e a n i n g | e d i ç ã o 0 0 - A n o 1 19 C a p a - E EB- Provavelmente, os países que estão mais desenvolvidos, seriam: o Canadá, onde a grande maioria recebe cuidados paliativos. Lá existe um modelo de ensino para médicos, enfermagem, psicólogos, etc no nível universitário. E também os países escandinavos, como: Suécia, Dinamarca, Noruega, que têm modelos muito desenvolvidos em cuidados paliativos. Já aqui nos Estados Unidos, temos lugares onde tais cuidados são muito integrados, como aqui no MD Anderson, que é o maior hospital de câncer dos Estados Unidos, mas tal desenvolvimento não é geral, em alguns lugares tem uma proporção maior e em outros, muito menor. Isto acontece porque o sistema de saúde no Canadá e na Escandinávia é somente um. É muito mais fácil modificar todo o sistema junto; já nos Estados Unidos não existe um sistema único de saúde, por isso também, as diferenças são grandes em cada lugar. AG- Em uma entrevista sua, você comenta que o médico e/ou serviço que se opõe ao uso da morfina e outros opiáceos seria imoral? No Brasil, houve uma aumento do uso, devido a educação dos médicos, mas ainda está aquém do que deveria ser o ideal, ainda existe muito temor por parte dos médicos, profissionais de saúde e preconceito por parte de pacientes e familiares. EB- É correto, mas a morfina existe como analgésico há mais de 200 anos, foi criada na Alemanha. A maioria dos opiáceos que utilizamos para dor, existe há mais de 100 anos! Portanto, não existe realmente nenhuma justificativa para os médicos, farmacêuticos e enfermagem não conhecerem bem como utilizar tais opióides para o tratamento da dor. A dor ocorre em mais de 80% dos pacientes com câncer e é controlável com o uso de opióides que temos acesso. É um problema ético também, quando os profissionais de saúde desconhecem e não aceitam o uso desses medicamentos para o tratamento da dor. A maior razão do porquê não haver a aceitação é porque nas Universidades não lhes foi ensinado como utilizá-los, principalmente nos hospitais-escola, onde se deveria ensinar. Antes, a morfina , por exemplo era utilizada apenas nas últimas horas de vida. Muitas pessoas pensavam até que essa era a causa da morte. Na verdade, era utilizada só nesta altura, porque havia muito pouca e a utilização era limitada. Hoje, sabemos que podemos utilizar esses medicamentos durante anos, com segurança, quando se sabe prescrevê-los. O mais importante é fazer com que essa nova geração conheça muito bem esses manejo, esses tratamentos. AG- Que tipo de abordagem, em cuidados paliativos deve ser utilizada além dos medicamentos? 20 C n t r e v i s t a m e a n i n g | e d i ç ã o 0 0 - A n o 1 EB- Os cuidados paliativos ajudam a avaliar porque os pacientes se sentem mal. Quais são os sintomas mais importantes? Físicos e psicossociais. Não somente os sintomas físicos como: a dor, dispnéia, náuseas, vômitos, fadiga, mas também os psicossociais envolvidos no sofrimento; como tristeza, angústia, solidão, problemas de convivência com a família, problemas econômicos e espirituais que existem, que acompanham uma enfermidade séria. O manejo do sofrimento em todos os níveis é o foco dos cuidados paliativos; o manejo para alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual. Esse é o dia-a-dia de uma equipe de cuidados paliativos: desenvolver um trabalho conjunto para identificar quais os problemas de cada paciente e trabalhar juntos para melhorar cada um desses problemas. Fazemos uma avaliação dos problemas mais importantes de cada paciente e depois intervimos para aliviar tal problema. AG-O que seria então um atendimento de excelência? EB- Um atendimento ideal deve ter uma equipe ideal. O médico deve ser bem treinado em cuidados paliativos, assim como a enfermagem, psicólogos, assistente sociais, assistentes espirituais, terapeutas ocupacionais para ajudarem com os recursos disponíveis em cada âmbito, a enfrentar a doença. Os cuidados ao paciente que sofre de uma doença crônica recai sobre toda a família, tais familiares devem estar integrados nessa assistência, essa é a melhor maneira de ajudar o paciente. A equipe ideal para desenvolver o atendimento de excelência trabalha junto com o paciente e a família. AG-O ideal não seria que o paciente e a família fossem incluídos desde o momento do diagnóstico. Qual seria o momento ideal para inserir os pacientes nesses cuidados? EB-O momento ideal é quando o paciente se identifica, como tendo o diagnóstico de uma doença grave, já nesse momento do diagnóstico é importante acessar o paciente e a família, porque a partir desse momento, não só a vida do paciente será modificada, mas a vida de toda a família. Nós pedimos permissão para falar com a família o mais rápido possível, claramente. Acompanhamos quando o paciente não se sente bem e quando a doença começa a progredir, mas também, quando o paciente se sente muito bem; porque apesar de estar bem, recebeu um diagnóstico de uma doença grave, o que causa um impacto muito grande na família. Estar junto da família é ajudar muito o paciente a viver melhor e enfrentar a enfermidade. AG-O paciente então deve ser incluído na assistência desde o início para que seja oferecida uma assistência eficaz, integral e contínua? EB- Exatamente. Nós, no MD Anderson, recebemos os pacientes e já somos recrutados a começar a ver tais pacientes também. Tais pacientes que chegam aqui no hospital com um prognóstico mais avançado e específico, nós iniciamos o contato e passamos a acompanhá-los, quase que ao mesmo tempo em que o grupo de tratamento primário. Acompanhamos cada um deles durante os tratamentos e um membro de nossa equipe já fala com a família. Explicamos todo o processo, é muito importante. Quando o paciente chega, já nos conhece, quando ainda sua enfermidade está controlada e ele/a ainda está bem. Esse é o momento. AG- Sim, discutimos sempre que esse seria o ideal de assistência, acontece que em algumas instituições, essa continuidade não acontece. É muito importante que ele esteja integrado desde o início, nesse momento, forma-se o vínculo com a equipe. EB- Sim, pois se o paciente e a família se sentem bem, o sofrimento é menor, o nível de sofrimento é reduzido. Não há mais dor, nem dispnéia, nem ansiedade, nem tristeza, nem depressão, a p a - E n t r e v i s t a mas os serviços de cuidados paliativos podem estar presentes em um papel secundário também; serem chamados, quando necessário. O grupo primário pode controlar bem os sintomas, mas é importante que possamos medir o sofrimento, através dos sintomas para podermos ajudá-los efetivamente. A transição dos cuidados curativos para os paliativos será, de fato, mais difícil, porque todos queremos viver o máximo de tempo possível, na esperança da cura. Mas se tais cuidados forem integrados desde o início da doença, os médicos dos dois grupos podem trabalhar e conjunto. Até porque o paciente pode já estar em grande sofrimento antes. Então, o grupo paliativo vai-se tornando mais importante do que o outro, à medida que a doença progride. Não é uma visão derrotista, sabemos que temos uma retaguarda, se precisarmos dela. AG- Diante desse percurso tão importante para o paciente, por que, na sua opinião, há resistência do governo, principalmente na América Latina, em implantar tais modelos, já que há redução nos custos também? EB- Eu acredito que a maior resistência na América Latina é advinda da necessidade de conhecer melhor tais cuidados. A mesma coisa acontece nos Estados Unidos, onde a geração de líderes, a maioria dos de Chefes de Serviços e professores não aprendeu os cuidados paliativos quando deveria, no entanto, essa situação já começa a se modificar em alguns países, como Argentina, Uruguai, Chile. O que acontece é que, como não foram treinados e, quando não conhecemos bem um problema, tendemos a nos afastar dele. As seguradoras privadas e também as Organizações Não - Governamentais começam a utilizar-se de modelos de cuidados paliativos porque o custo operacional é muito mais baixo do que se esses mesmos pacientes fossem vistos por outras especialidades, com a vantagem ainda de oferecer uma melhor assistência ao paciente e a família. Começa a acontecer uma transformação, um maior entusiasmo em relação aos cuidados paliativos porém, a questão problemática é que os cuidados paliativos não foram gerados em grandes centros médicos e sim, em centros comunitários. Na Inglaterra e um pouco, no Canadá, tais cuidados foram gerados em grandes universidades e tiveram a oportunidade de mostrar seu valor nos trabalhos comunitários; também os cuidados paliativos não têm ajuda da indústria farmacêutica e da indústria tecnológica, que geram os postos acadêmicos, nem das carreiras acadêmicas e hospitalares, obtém essa ajuda. Não recebem o olhar da indústria farmacêutica e por essa razão, não têm a capacidade de influenciar o pensamento que existe em relação aos medicamentos e tecnologia das indústrias. É por m e a n i n g | e d i ç ã o 0 0 - A n o 1 21 C a p a - E n t r e v i s t a isso que acredito, que o progresso dos cuidados paliativos é muito mais lento do que o de novas drogas e intervenções nas especialidades médicas, pois é um progresso contínuo, em cada ano existirão mais serviços, mais educação. Eu sou muito otimista em relação a isso, é um processo que tem sido lento, mas acho que os pacientes e as famílias terão cada vez mais acesso aos cuidados paliativos. Há um grande entusiasmo. Será este o futuro da Medicina. As mais importantes universidades estão organizando seus departamentos de cuidados paliativos. Mas ainda é uma matéria pioneira, só estará devidamente ramificada quando todos os estudantes tiverem que aprender, no programa normal de Medicina, a falar com os pacientes e tratar o sofrimento. AG-Existe no MD Anderson um interesse crescente dos jovens médicos? EB- No MD Anderson, todos os jovens oncologistas têm a obrigação de fazer o rodízio e atender os pacientes em cuidados paliativos. Isto não acontece em todos os centros americanos, mas já começam a implantar essa permanência obrigatória nas unidades de cuidados paliativos. Nós também temos o treinamento de especialistas. Temos 5 médicos, que a cada ano, tornam-se especialistas em cuidados paliativos. Eles irão ajudar na implantação desses cuidados e divulgação dos mesmos no resto do país. Eu acredito que exista progresso, ainda que sem ordem, mas há progresso no desenvolvimento dos cuidados paliativos em geral. AG-O que fez com que você, como investigador, buscasse esse caminho em sua profissão, trocar o interesse somente pela cura e focar no alívio do sofrimento. O que essa escolha lhe trouxe como médico e como ser humano? Foi compensador? EB- Sim, para mim, é muito gratificante ajudar os pacientes e os familiares em um momento muito difícil da doença. Quando os cuidados paliativos realmente começam; compreendemos que todos, os médicos, os enfermeiros, toda a equipe e a família vamos morrer algum dia por algum motivo e, sabemos também que não podemos modificar isso. O final da vida não é uma situação fácil e agradável, todos nós vamos sofrer psicológica, física e espiritualmente no final de nossas vidas. Os cuidados paliativos podem melhorar muitíssimo a quantidade do sofrimento. Para mim, não é um desafio apenas, mas uma satisfação poder melhorar e aliviar um sofrimento desnecessário. Todos nós vamos sofrer, é inevitável, mas muito desse sofrimento é evitável e tratável. Fico muito contente e é muito gratificante, quando podemos evitar algum sofrimento. 22 m e a n i n g | e d i ç ã o 0 0 - A n o 1 AG -É muito utilizado esse conceito de morte digna. O que seria uma morte digna? EB- Não gosto muito desse termo morte digna, o que temos é uma vida digna, independente, livre de sofrimento até que chegue a hora de nossa morte. AG- Qual mensagem você daria para os médicos e outras especialidades? O que poderia melhorar? EB- Acredito que nos últimos anos, temos aprendido muitíssimo como ajudar os pacientes, quando a enfermidade progride, infelizmente nossa geração, não teve acesso a esses conhecimentos, mas que a nova geração de médicos busque conhecer como cuidar ou procure algum especialista que os ajude. Nos cuidados paliativos, a taxa de decepção profissional é muito baixa. Claro que deve- se continuar a investigação sempre e o caminho para a cura, mas investir a vida em um tratamento que faz toda a diferença é altamente compensador. Com a vivência em cuidados paliativos, a carreira dos jovens médicos será muito mais fácil, a possibilidade de lidar com os sintomas, com a fadiga e o burn-out será muito mais efetiva e gratificante, como tem sido para mim.