Loïe Fuller Mariani_Performatus

Transcrição

Loïe Fuller Mariani_Performatus
Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014
ISSN 2316-8102
LOÏE FULLER A PARTIR DO QUINTO VOLUME
DO LIVRO FIGURAS CONTEMPORÂNEAS:
TIRADAS DO ÁLBUM DE MARIANI
Angelo Mariani
Benjamin J. Falk, Retrato de Loïe Fuller, 1892
Ela dançou “como as sacerdotisas da Índia, como as nubianas das
cataratas, como as bacantes da Lídia, semelhante a uma flor agitada pela
tempestade. De suas orelhas os brilhantes saltavam; dos seus braços, pés e
vestido jorravam centelhas invisíveis!”. Assim Salomé no aclamado livro de
Gustave Flaubert; assim, em nossos dias, Loïe Fuller nos palcos dos music halls.
E os séculos renascem no ritmo dos seus passos, nas lendas antigas, no ciclo
celeste das estrelas, no prestígio dos tecidos e das pedras preciosas, no milagre
do arco-íris e da libélula!
Primeiro, um fundo de sombra e uma sala escura; no palco surge Loïe,
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semelhante a uma borboleta em repouso; logo em seguida ela abre as asas, as
antenas despontam, afloram os véus; a borboleta é uma flor brilhante com
pétalas perenes; um vento passa agitando a flor, e a flor, subitamente, torna-se
mulher, torna-se fada, torna-se lampejo, torna-se luz! Depois, tudo se acalma. E
começam as danças, ora lascivas, ora hieráticas ou orientais, ora antigas ou
fantásticas, seguindo o capricho fugaz dos pés leves e delicados. O poema das
linhas unido ao poema das cores se acentua; formas que são nuances, nuances
que são chamas, chamas que são prismas. Em seguida, tudo se apaga. E
recomeça a dança humana, frívola, lenta ou grave, conforme o gesto
dispensado.
Senhorita Loïe Fuller assemelha-se à dançarina de Tânagra, com seus
véus sutis e curvas graciosas. Nas dobras do seu vestido fluido incendeiam-se
ouro e verde, tons pálidos e sombras vermelhas, assim como na dança das
Panateneias. Em seguida, ela é Salomé. Por fim, um compasso lento, rítmico e
harmonioso expande-se em círculos; uma pavana de Watteau num décor
dourado de outono sucede às danças sagradas da Bíblia; e o ritmo retoma, roda,
gira, rodopia, descrevendo estranhas elipses, sinuosas curvas, inflama-se,
dissipa-se, renasce, cresce e morre, tal como a chama multicolorida que um
sopro brusco apaga!
Onde foi que senhorita Loïe Fuller – colorista como Monticelli ou Albert
Besnard, elegante como Rosita Mauri, poetisa como o bardo mais inspirado –,
onde foi que ela encontrou o segredo dessas danças divinas? A própria Fuller
nos conta. Na Catedral de Notre-Dame, ainda assombrada, ao que parece, pelo
espectro da bailarina cigana Esmeralda, ela entrou num dia de retiro e
melancolia. Naquela hora, o sol fulgurante iluminava as maravilhosas rosáceas;
e nos ladrilhos onde rezavam os fiéis, o prisma dos vitrais abriu subitamente em
cores, nimbando a cabeça da jovem dançarina. Surpresa, ela tirou um lenço e
deleitou-se a levantá-lo em direção às emanações multicoloridas; e o pequeno
lenço branco pareceu-lhe de um tecido magnífico. Curiosa como se diante de um
pássaro raro de penas azuis, ou de uma flor caprichosa, ela desejou esquadrinhar
os reflexos vivazes e, no silêncio recolhido do templo, levantou insensivelmente,
com gestos perscrutadores, o pequeno lenço branco nos raios solares. Um
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sacristão, espantado, apareceu nesse momento e pediu educadamente para que
a moça se retirasse; ele pensou decerto que ela sofresse de alguma perturbação
mental e não foi rude com ela. Mas a senhorita Loïe Fuller não estava sofrendo
de algum tipo de demência: ela acabava, pelo contrário, de descobrir o segredo
das danças de cores. A partir daí, vimo-la, para nossa alegria, se apresentar no
Folies Bergère. Foi ela, frágil libélula, que por sua vez encantou Chicago e Paris, e
é a abelha a zumbir alegrias e sonhos.
Através dela, os poetas, surpresos, descobriram novos mundos, os
pintores, horizontes nunca vistos, e os músicos, extraordinárias escalas
cromáticas: as danças de Loïe Fuller seduziram, enfeitiçaram, provocaram um
feérico incêndio de tons, linhas, ritmos, graças incomparáveis.
Artista consumada, é a própria Loïe Fuller que prepara as suas danças;
ela orienta o ritmo, cuida do corte e do acabamento dos seus trajes. Este ano
nos reserva surpresas. Senhorita Loïe Fuller quer aproveitar a Exposição
Universal para encantar os povos. Ela quer que todos aqueles que vierem a Paris
daqui a alguns meses voltem deslumbrados com tamanho esplendor, e que a
nossa capital, representada por ela, figure realmente, para todos, como a Cidade
das Luzes.
Senhorita Loïe Fuller não é só uma artista consumada, de uma expressão
facial intensa, de um estonteante virtuosismo como dançarina; ela também é
uma moça inteligente, tão modesta quanto encantadora, apaixonada por sua
arte, acolhedora e boa. Na Europa como na América seu sucesso foi colossal. Em
todos os lugares surgiram imitadoras; contudo, nenhuma delas conseguiu
igualá-la, nenhuma teve tanta elegância, tanto charme nem tanta singular
beleza. Retirada em sua residência em Passy, onde as mais altas personalidades
parisienses têm a honra de serem ali recebidas, a senhorita Loïe Fuller, afável
com todos, adora conversar sobre esta cidade de Paris que ela ama e a qual, por
sua vez, lhe retribui.
Junte a tudo isso uma trabalhadora obstinada, uma incansável
pesquisadora. Roger Marx, Jean Lorrain, Georges Rodenbach e muitos outros
celebraram-na, em verso ou em prosa, como sendo a própria personificação da
arte por excelência, dessa arte que é, a um só tempo, cadência, paleta e ritmo, e
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que inclui todas as matizes do Belo. O Velho Mundo, fascinado por essa jovem
fada, dela guardou a visão intensa. Para ele, a Loïe criou festas luminosas.
Diante desse velho Myrddin, a jovem Viviane dançou.
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Entre as centenas de celebridades que deram apoio público ao Vin
Tonique Mariani, um vinho tônico parisiense feito por meio da infusão de folhas
de coca em álcool, estavam a atriz e líder revolucionária irlandesa Maud Gonne, a
atriz Sarah Bernhardt e a dançarina Loïe Fuller, que escreveu:
Caro amigo,
“Meu reino” para uma cabeça de Shakespeare – uma língua de Molière –
uma caneta de Dumas para louvar nosso Mariani! Não é vinho, é o sustento do
lar da alma! Vamos, então, aprender não o seu abuso, mas o seu uso. Deixe o
lema da “Casuars”. Guia-nos “temperança em todas as coisas”.
Loïe Fuller
PARA CITAR ESTE TEXTO
MARIANI, Angelo. “Loïe Fuller a partir do Quinto Volume do Livro ‘Figuras
Contemporâneas: Tiradas do Álbum de Mariani’”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014. ISSN: 2316-8102.
Tradução de Fernando L. Costa
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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