a imagem do nordeste brasileiro na literatura de cordel - SIMELP

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a imagem do nordeste brasileiro na literatura de cordel - SIMELP
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela,
Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLT 55 – Narrativas em Língua Brasileira: estudo de oralidade e escritas.
NARRANDO O NORDESTE: A IMAGEM DO NORDESTE BRASILEIRO NA
LITERATURA DE CORDEL
Lucie Costa ŠAFRÁNKOVÁ1
RESUMO
Apesar de se tratar de uma região diversificada, o Nordeste brasileiro costuma ser retratado, tanto
na literatura como na mídia, como uma região pobre e atrasada, habitada pelo povo simples,
conservador e supersticioso. Uma das fontes que ao mesmo tempo cria, sustenta e espalha essa idéia
de Nordeste estereotipada é a literatura de cordel. Os temas tradicionalmente presentes na literatura
popular brasileira, como messianismo e cangaço, miséria, fome e seca, foram agenciados pelas
produções culturais eruditas, tomando-os como manifestações que revelam a essência da região. Por
não se tratar de uma manifestação esporádica ou esparsa, de acordo com os números estimados à
respeito da quantidade de títulos de cordeis editados – que podem ser calculados em milhares e
milhares de exemplares – pretendemos demonstrar, portanto, que esse gênero de literatura popular
representa um rico repositório de imagens, histórias e formas de expressão que refletem o Nordeste
assim como o vêem os próprios nordestinos, constribuindo para fixar esta imagem regional como
um contraponto ao mundo industrializado das metrópoles no Sul do país.
PALAVRAS-CHAVE
literatura de cordel; Nordeste brasileiro; poesia popular
Introdução
Quando se fala do Nordeste brasileiro, difícilmente alguém o imagina apenas como uma das
cinco regiões do Brasil, um recorte geográfico natural ou um simples espaço físico composto por
alguns estados e cidades. No mapa do Brasil e na mente dos brasileiros a região do Nordeste
representa um lugar real e imaginário, um universo de imagens, de mitos, de estereótipos e
preconceitos, que podem até não estar sempre corretos, mas que são plenamente reconhecidos e
consagrados por toda a sociedade brasileira e até pelos próprios nordestinos.
Na literatura e também nas outras formas de produções culturais eruditas brasileiras, como
teatro ou cinema, a imagem do Nordeste, apesar de se tratar de uma área imensa que abrange
espaços culturalmente e geograficamnete tão diversificados como o Recôncavo baiano, o litoral
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Universidade de Masaryk, Faculdade de Letras, Departamento de Línguas e Literaturas Românicas, Gorkého 7 , 602
00, Brno, República Tcheca, [email protected]
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela,
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pernambucano, a úmida zona da mata na parte amazônica do Maranhão, ou caatingas no sertão
cearense, costuma ser reduzida numa região ensolarada, mas ao mesmo tempo pobre e esquecida,
habitada pelo povo simples, conservador e supersticioso. A região do Nordeste frequentemente se
confunde com o espaço de sertão, porque é este o espaço que ocupa a maior parte do Nordeste e que
também foi reconhecido como o mais caraterístico da região.
Para podermos entender e decifrar este arquivo de imagens e enunciados estereotipados que
direcionam as atitudes e comportamentos da sociedade brasileira em relação ao nordestino e
dirigem, inclusive, o olhar da mídia, temos que deixar de pensar no Nordeste como numa identidade
homogênea presente na natureza e passar a considerá-lo, como se faz com as outras regiões, apenas
como uma construção imagético-discursiva, ou „...uma identidade espacial construída em um
preciso momento histórico,“ (ALBUQUERQUE, 1996). Em outras palavras, o que define a região
não são as fronteiras naturais ou políticas, mas sim os enunciados e as imagens que se repetem em
diferentes discursos e épocas e que, portanto, podem ser considerados definidores do caráter da
região e de seu povo.
É bom lembrar que aquilo que hoje chamamos de Nordeste, aquilo que tantas vezes serviu
como tema principal dos romances, filmes, pinturas ou peças teatrais, até o início do século XX não
existia. O termo Nordeste, que substituiu antiga divisão regional do país entre Norte e Sul, surgiu
apenas no final da primeira década de século XX com o simples objetivo de designar a área
periodicamente atingida por secas. E é justamente o fenômeno da seca periódica e com ele
relacionado modo de vida e mentalidade que diferencia o Nordeste do restante do país e,
principalmente, do Sul. Naquele momento os grupos políticos do Norte, inicialmente dispersos,
afundados nos seus interesses locais e particulares eram obrigados a unir-se para finalmente serem
ouvidos e poderem assim chamar a atenção maior do público e, principalmente do Estado. A série
de práticas regionalistas motivadas pelas condições particulares e problemas das províncias do
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Norte, vinculadas ao combate à seca, ao cangaço, às manifestações messiânicas junto com a
concentração dos jovens intelectuais no centro regional - no Recife - deram o início ao surgimento
de vários movimentos que tinham como objetivo a busca de solidariedade e da cultura regional.
Fundou se assim a idéia de uma região não só com os interesses comuns, mas também com os laços
históricos e culturais. Passo a passo esta região deixou de ser apenas uma área seca do Norte e se
tornou uma identidade econômica, social e cultural. A tarefa de estabelecer uma imagem
homogênea do Nordeste cruzou-se com o momento em que o Brasil inteiro estava à procura de uma
caraterística nacional. Os intelectuais e ecritores regionais começaram a retratar o Nordeste como
uma região tradicional que mantêm as tradições e costumes na sua forma original, considerando-se
esta região ser a única autêntica (por ser isenta de influências estrangeiras), e também a mais
caraterística do Brasil. Esta visão do Nordeste tradicionalista confirmou-se e ganhou repercussão
nacional nas obras dos novos regionalistas que formaram esta sua visão de Nordeste como resposta
ao modernismo paulistano. Os regionalistas nordestinos sentiam-se ameaçados pela progressiva
centralização do poder político, econômico e cultural no Sul, por isso voltaram-se para dentro de si,
e procuravam, o caráter, a alma e os valores dos brasileiros no passado, nas manifestações culturais,
no folclórico e no tradicional que segundo eles vagarosamente entrava em decadência. Esta visão
tradicionalista de Nordeste se baseia na antiga tensão entre o litoral e o interior, o urbano e o rural, o
moderno e o tradicional, tão caraterística para toda a cultura brasileira e representa assim o
contraponto ao industrializado meio urbano que estava se desenvolvendo no Sul do país. Uma das
fontes fundamentais de inspiração, que contribuiu para criar, espalhar e fixar as imagens,
enunciados e temas que agora compõem a idéia do Nordeste, foi a literatura de cordel.
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História da literatura de cordel brasileira e sua função
A literatura de cordel simplesmente pode ser definida como um gênero literário que abrange
todas as manifestações de origem popular que existem, em prosa2 ou verso, na forma impressa.
Chamam-na literatura de cordel pela forma como originalmente eram vendidos os livretos –
pendurados num barbante ou corda nas feiras, mercados e praças. Originalmente tratava-se de
folhetos de papel de baixo preço, tipo jornal, com as capas coloridas, muitas vezes ilustradas com
xilogravuras que representavam uma cena ou personagem principal da história narrada. O tamanho
do folheto costuma ser 11,5 x 16 cm, que é exatamente o tamanho de uma folha A4 dobrada em
quatro. E apesar de que a literatura de cordel não é coisa exclusivamente brasileira, por sabermos
que existiu em diversos países, como na França, na Espanha ou em Portugal de onde desapareceu
logo depois da divulgação do jornal no início de século XX, foi porém, no Brasil que ela ganhou
sua caraterística própria e se tornou um dos símbolos da cultura nordestina.
É importante ressaltar que no caso do Brasil não se trata de uma manifestação esporádica,
porque mesmo que a grande parte da poesia popular se tenha perdido, existe no Brasil, segundo as
mais modestas estimativas, aproximadamente 15 – 20 mil títulos de folhetos editados (LUYTEN,
1983). Desde o fim do século XIX, os poetas populares brasileiros, sobretudo nordestinos,
2
Na verdade o aparecimento da prosa popular nesta forma é muito raro no Brasil. Às vezes a literatura de cordel
engloba ainda as folhas soltas dos poemas ou canções, orações aos santos ou cartelões – folha grande de papelão
com os versos e desenhos relativos a eles que ajudam o autor a declamar a história. (LUYTEN, 1983)
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utilizavam a escrita para se comunicarem com leitores e ouvintes e pode-se constatar que, por muito
tempo, o folheto mantinha sua liderança como meio de informação nas zonas menos desenvolvidas
do interior nordestino, habitado pelos trabalhadores e camponeses, ou seja, como alguns costumam
dizer, por gente simples e humilde. Os poetas populares viajavam por fazendas, vilas e cidades
pequenas, e traziam as notícias do litoral para o povo que vivia praticamente isolado no sertão e que
não podia obter as informações do mundo senão por esta forma. O matuto nordestino se acostumou
a ouvir as histórias da literatura de cordel em suas idas às feiras, nas quais podia, além de fazer
compras e vender seus produtos, divertir-se e tomar conhecimento das mais diversas notícias.
Pode-se dizer que no Nordeste brasileiro o poeta popular desempenhava o papel de
verdadeiro líder informal da opinião pública. Os poetas naturalmente refletiam, na temática de suas
poesias e na maneira como se relacionavam com seus leitores, o ambiente em que viviam.
Pertenciam à mesma classe social, tinham os mesmos costumes, as mesmas tradições, a mesma
linguagem, tinham que enfrentar as mesmas dificuldades e era por isso que o público sentia-se tão
atraído por sua obra. Tornou-se o papel fundamental do poeta popular versar histórias, fatos,
reivindicações, críticas, queixas e aspirações do homem nordestino, ou simplesmente de tudo que o
povo pensava. Como sua sobrevivência dependia sobretudo da venda de seus poemas, o poeta
popular tratava somente dos assuntos que o povo entendia e que o interessava, refletindo assim a
realidade nordestina sob o ponto de vista de seus leitores - dos camponeses e dos matutos. Isso
também é a razão do porque a literatura de cordel é atualmente considerada ser um dos mais
fascinantes e férteis campos de estudos onde linguistas, antropólogos, historiadores, folcloristas ou
escritores se deparam com o acervo inesgotável de materiais para pesquisas. Mas todos que
trabalham com a literatura de cordel têm que ter cuidado porque o esforço dos poetas em
transformar a informação mais ao gosto popular acabava, muitas vezes, na formação de verdadeiros
mitos. Os poetas misturavam fatos com ficção, faziam anacronismos, conferiam às personagens
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poderes sobrenaturais, etc., como ocorreu, por exemplo, nos ciclos de cordel de cangaceiro
Lampião, de Padre Cícero ou também do presidente Getúlio Vargas. Assim sendo, trabalhando com
a literatura de cordel, é sempre bom lembrar que os poetas populares:
[…] optam por não usar
o seu real senso crítico
e assim omitem fatos
que comprometem os relatos
dando-lhes caráter mítico.
(FREITAS, 2005)
Ou seja, o poeta popular não é um jornalista, portanto seu objetivo não é descrever fatos reais, mas
sim vender o maior número de folhetos possível. Então, mesmo quando os poetas gostam de
proclamar a veracidade e objetividade de seus versos, nos folhetos os fatos parecem sempre mais
sensacionais, as histórias mais dramáticas, os heróis mais valentes e os desastres mais pavorosos.
Como mais uma prova podem servir os versos do poeta baiano Jotacê Freitas (2000):
[...]saibam que o bom poeta
para seu público não mente
mas pode alterar os fatos
ou em galinha botar dente.
Temas principais da literatura de cordel
Não há limite na escolha do tema de um folheto. Os temas incluem fatos do cotidiano,
episódios históricos, lendas, temas religiosos ou histórias de amor, como também existem inúmeros
folhetos que retratam as façanhas dos cangaceiros ou do suicídio do presidente Getúlio Vargas.
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Através da poesia de cordel divulgam-se os acontecimentos recentes, curiosidades ou as mais
diversas notícias que chamaram a atenção da população. Na literatura do cordel encontra-se o
retrato do Nordeste construído a partir das narrativas dos camponeses, das suas lembranças pessoais
e fatos épicos ligados com esta região misturados com os fragmentos da história. E é exatamente
esta variedade temática que faz da literatura de cordel tão fascinante arquivo de imagens do
Nordeste como existe no imaginário coletivo.
O cordel do Nordeste tradicionalista
É interessante notarmos que, apesar do cordel, como todas as manifestações folclóricas,
estar sendo constantemente modernizado e atualizado, aparece nele, ao longo do tempo, uma
variação e reatualização dos mesmos enunciados, imagens e temas que compõem esta idéia popular
de Nordeste como uma região tradicional. Como os produtores de folhetos de cordel eram e são, na
maioria das vezes, pessoas oriundas ou residentes do interior nordestino, também os folhetos
refletem a opinião matriz do público do ambiente interiorano do Nordeste brasileiro. E sendo este
meio conservador, retrógrado e resistente às mudanças tanto na política, como na religião e na
moral, a produção poética mantêm-se também nessas linhas, refletindo as idéias conservadoras,
contrárias às novas práticas, idéias e tecnologias. Este gênero da literatura popular representa,
devido as suas estruturas narrativas bem definidas e seu caráter conservador, uma forma não
moderna de expressão para apresentar uma região também não moderna. Os cordelistas de todas as
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épocas demonstram sua ideologia conservadora lamentando pelas dificuldades devidas aos
problemas econômicos, às mudanças de costumes e queixando-se dos novos modos, de tudo que já
não é mais como antigamente ou do mal-estar geral da sociedade.
A literatura de cordel apresenta-nos o Nordeste não somente como o espaço conservador,
mas também como o lugar onde viver significa sofrer e lutar constantemente quer contra difíceis
condições climáticas, quer contra coronéis ou mais tarde políticos poderosos. Na literatura de cordel
frequentemente nos deparamos com o Nordeste retratado como um inferno terrestre, onde a seca e
os ricos são reponsáveis por todos os problemas trazendo para o povo só pobreza, fome e
sofrimento, um lugar onde as pessoas não têm escolha e vivem sob a impressão firme que a história
é sempre feita pelos outros, que o homem simples vive sempre a mesma injustiça, miséria e
discriminação, simplesmente porque nesta região, „[...] o pobre nada valia e só rico tinha valor.“
(NASCIMENTO (s/d)). O mesmo sentimento expressou nos seus versos Jurivaldo Alves da Silva
(s/d):
O Nordeste era terra
Dos coronéis e barões
Detentores do poder
E de grandes possessões
Como ocorre ainda hoje
Em muitas situações.
[…] Ao rico não interessa,
Se o pobre tem poupança
Se tem conta na bodega
Se tem uma herança
Seu poder não contagia
E o pobre é quem dança!
Já pelos títulos de alguns folhetos famosos como O salário mínimo e o aumento... da fome“
(Abraão Batista, s/d), Misérias da época (Leandro Gomes de Barros) Os horrores do Nordeste (José
Bernardo da Silva), A praga no sertão paraibano (Caetano Cosme), Só o Louco não entende e o
Cego não vê (João Ferreira da Silva) ou A invasão da carestia (Erotildes Santos da Miranda)
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podemos ver que é bastante comum mostrar o Nordeste como uma região miserável, esquecida e
marginalizada pelos poderes políticos.
Como mais um exemplo pode servir este poema de reclamação contra a carestia, isto é, o
alto custo da vida, porque com nada o povo se identifica melhor que com as lamentações e queixas
contra os políticos e o governo, onde Cuíca de Santo Amaro (s/d) expressa tal situação na Bahia dos
anos 40 com seguintes palavras:
Triste e muito triste
é nossa situação
com todas as misérias
subiram o preço do pão
arrancando ao operário
até o ultimo tostão
e um pouco mais adiante continuava-se queixando:
Como é que o operário
vive sempre noite e dia
Oprimido! Explorado!
Aqui dentro da Bahia
sem achar um protetor
para lhe dar garantias?
Das mesmas dificuldades corriqueiras e do desinteresse dos políticos fala o poeta contemporâneo
João Ferreira da Silva (s/d):
O homem pobre, hoje em dia
o que faz para viver?
A casa cheia de filhos
e não ganha pra comer
Tem que pedir ou roubar
pois o que ganha não dar
Isto alguém precisa ver..
A consciência de que o lugar do pobre sempre vai ser o mesmo e que o apoio dos poderes políticos
provavelmente nunca vai chegar, faz os nordestinos levarem as dificuldades da vida como parte do
destino e procurarem soluções noutros lugares.
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Religiosidade
Uma das possíveis saídas mostrou-se na aceitação do destino e submissão completa à ordem
divina, porque é a única que neste momento poderia-lhes ouvir, sua esperança, portanto, voltava-se
à Deus.
Na esperança de melhora
As ‚mocinha e muié‘
Velhos, jovens e meninos
Todos vão seguindo a pé
Domingo para capela
Pra rezar e acender vela
Munidos de muita fé.
(BARRETO, 2008)
De forma ainda mais complexa versejou o mesmo tema o poeta Erotildes Miranda dos Santos (s/d)
Deste jeito a pobreza
Vai marchando dia a dia
Caminhando sem parar
Prá cima da carestia
Se Jesus não socorrer
Todo pobre vai morrer
Duma noite pra um dia.
Porque do jeito que vai
Não pode mais viver
A conversa é subir
Nada fala em descer
Sobe pão, sobe farinha
Sobe ovos e galinha
Só Deus pode nos valer.
Vamos ver se o governo
que tem muita competência
pode fazer qualquer coisa
contra essa inclemência
Se ele não controlar
Nos só temos que implorar
a Divina Providência.
O desespero e a miséria conduziam as pessoas humildes do Nordeste a procurarem ajuda
não só nos santos católicos e nos milagres de Nossa Senhora, mas também nas figuras messiânicas
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de Antônio Conselheiro, Padre Cícero entre o povo conhecido como Padim Ciço, ou Frei Damião e
em suas profecias, exatamente como nos versos de Antonio Carlos de Oliveira Barreto (2008):
O sertanejo vai fazer
Pedido ao seu protetor
Seja São Roque, São Pedro
Santo Antõe, Nosso Senhor
O beato Conselheiro
Qualquer santo milagreiro
Que alivie a sua dor.
Esta resignação com a ausência dos poderes políticos e seus desmandos produz um
pessimismo conformista que mantém a população calada mesmo diante das injustiças. Os poetas
nordestinos comentando esse fato nos seus versos, sem querer, reforçaram assim a imagem do povo
nordestino como um povo passivo, resignado e carente de atenção e ajuda que nunca chegam. A
resignação, entretanto, torna-se revolta quando surge um líder messiânico – como os acima citados
–afirmando-se portador da mensagem divina e conduz as pessoas da resignação passiva à revolta
violenta. Assim estão marcados os movimentos de rebelião mais famosos do Nordeste, dos quais
podemos citar a Guerra de Canudos e seu líder Antônio Conselheiro, sobre o qual também existem
dezenas de folhetos retratando este de todos os possíveis pontos de vista.
É necessário mencionar que estando os nordestinos acostumados a conviver diariamente
com a natureza e seu fatalismo, a sua religiosidade naturalmente interfere com o sobrenatural. Na
literatura de cordel facilmente mistura-se o fantástico e o real, o sagrado e o profano, o mundano e o
divino. Nos folhetos encontramos referências do catolicismo tradicional ao lado das mais absurdas
superstições populares. Os demônios e os santos aparecem com caraterísticas humanas e ao
contrário, as figuras de padres populares e cangaceiros famosos são venerados como santos. Os
poetas atribuem-lhes poderes sobrenaturais, poderes de profetizar e de fazer milagres, e tentam
convencer os leitores que se não mostrarem fé suficiente ou se desobedecerem as palavras de Jesus,
ou do padre divinizado, a punição na forma de seca, fome ou guerra certamente seguirá.
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Citamos aqui alguns dos inúmeros folhetos mais expressivos ligados com esta temática:
Profecias do Padre Cícero Romão até o Ano dois mil (Apolônio Alves dos Santos); O protestante
que virou urubu porque quis matar Frei Damião (Manoel Serafim); História de um crente que foi
castigado por Frei Damião (Amaro Cordeiro); A História verídica e o milagre do Padre Cícero (
Abraão Batista); A surra que o Pe. Cícero deu no diabo (António Caetano), etc.
Cangaço
Entre os ciclos temáticos mais marcantes na literatura de cordel encontra-se, sem dúvida, o
fenômeno do cangaço. O contexto que deu início ao surgimento do banditismo e os esforços do
governo para combaté-lo, serviu como tema de uma vasta produção literária, não somente da
literatura do cordel, mas também dos inúmeros textos históricos, jornalísticos e na literatura erudita.
No cordel os pistoleiros são observados com uma mistura de temor e admiração, representam o
herói verdadeiro, o vingador das injustiças feitas ao povo, o misto de criminoso e o lutador,
admirado ainda mais quando atacava os ricos para distribuir entre pobres como por exemplo
acontece no folheto Lampião – Justiceiro de Norte de João Sabino Nascimento (s/d):
E assim foi se tornando
o mais cruel bandoleiro
por uns era estimado
para outros carniceiro
mostrando espírito nobre
ajudava sempre o pobre
tomando de fazendeiro
A mesma fama acompanha também outro famoso cangaceiro, Antônio Silvino, conhecido como
protetor da família e vingador do sertão:
Tomei dinheiro dos ricos
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E aos pobres entreguei
Protegi sempre a família
Moças pobres amparei
O bem que fiz apagou
Os crimes que pratiquei.
(CHAGAS, 1954)
No ciclo do cangaço, mais do que em qualquer outro tema do cordel, vê-se o processo de
idealização e com o tempo também de mitificação das personagens. O célebre Lampião, o mais
famoso dos cangaceiros, que aterrorizou o Nordeste por mais de vinte anos, tornou-se uma
verdadeira lenda que continua viva ainda quase setenta anos depois de sua morte. E o mesmo
aconteceu com o Antônio Silvino. Os poetas chamam-nos de Rei do Cangaço, Rei do Sertão, Leão
do Norte, Rifle de Ouro, seus atos sangrentos foram quase esquecidos e os matadores
transformaram-se com o tempo em vítimas da sociedade injusta que foram levadas ao caminho do
crime por razões de honra – para vingar os nunca castigados crimes contra suas famílias.
Eu hoje podia ser
Um distinto cavaleiro
Meu pai foi assassinado
Devido a não ter dinheiro
Eu para me ver vingado
Fiquei sendo cangaceiro.
Não foi tanto por instinto
Assim por uma vingança
Porque mataram meu pai
Minha única esperança
E eu vingar sua morte
Pra mim era uma herança.
(CHAGAS, 1954)
São incontáveis os folhetos que descrevem as verdadeiras ou inventadas histórias de valentões,
bandidos ou pistoleiros famosos, que além de já mencionado Lampião e sua companheira Maria
Bonita e Antônio Silvino contam as aventuras de Lucas de Feira, Jesuíno Brilhante ou dos últimos
cangaceiros Corrisco e Dadá. Mas poucas descrevem os cangaceiros como assassinos perversos
segundo o fez João Martins de Athayde (s/d) neste folheto, escrito poucos anos depois da morte do
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Lampião, onde ele narra o drama da última luta do bandido e mostra também a sua opinião à
respeito de seus admiradores:
O cangaceiro é doente
É um indivíduo anormal
Recebendo influência
Do ambiente social
Com justiça e instrução
É difícil um Lampião
Cair na trilha do mal.
[...] Também não está direito
Ter pena dele demais
Dizer que eles são heróes
Como muita gente faz
Cadéia para esta gente
Com tratamento decente
Em prisões especiais.
O capítulo do cangaço não se encerrou com a morte de seus protagonistas, ao contrário, a
partir daquele momento os poetas populares literalmente podiam abrir as asas de sua imaginação e
começar a inventar novas histórias, algumas baseadas nos velhos folhetos ou na realidade histórica,
outros completamente ficcionais, ampliando assim, cada vez mais o mito do cangaço. Entre dezenas
de títulos que se preocupam não somente com a vida e morte do bandido, mas principalmente de
sua vida após a morte, podemos agora mencionar alguns que se tornaram clássicos na literatura de
cordel: A chegada de Lampião no Inferno (José Pacheco); A chegada de Lampião no Céu (Rodolfo
Coelho Cavalcante); A briga do Antônio Silvino com Lampião no Inferno (José Costa Leite); A alma
de Lampião faz Misérias no Nordeste (Franklin Maxado); O grande debate que teve Lampião com
São Pedro (José Pacheco) ou A Grande briga de Lampeão com a moça que virou cachorra
(Rodolfo Coelho Cavalcante), etc.
A religiosidade e o cangaceirismo são sem qualquer dúvida os traços considerados mais
caraterísticos e dominantes do Nordeste. Assim, por exemplo, descreve o sertanejo Darcy Ribeiro
(2007):
O sertanejo arcaico carateriza-se por sua religiosidade singela tendente ao
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messianismo fanático, por seu carrancismo de hábitos, por seu laconismo e
rusticidade, por sua predisposição ao sacrifício e a violência. Suas duas formas
principais de expressão foram o cangaço e o fanatismo religioso.
Estes temas, que também estão entre os mais recorrentes na literatura de cordel, costumam ser
interpretados pelos historiadores e antropólogos como o resultado da seca e da incapacidade dos
poderosos em resolver este problema. Contudo, enquanto à população do Sul explicava estes
fenômenos pela violência e fanatismo natural do povo do Nordeste, para os próprios nordestinos
estes movimentos representavam apenas uma das possíveis formas de resistência à dura realidade.
Nas personagens dos cangaceiros vêem os poetas, da mesma forma que no caso dos santos
milagreiros e padres populares, os porta-vozes dos pobres e sofridos, perseguidos e mal
interpretados e observa-se uma forte tendência na literatura de cordel em mitificar os cangaceiros do
mesmo modo como o fazem com as figuras messiânicas, transformando-os em verdadeiros heróis
populares, idealizados por sua audácia, força e justiça, mesmo que para muitos estes possam parecer
apenas criminosos foras-da-lei e fanáticos.
A imagem do cangaceiro como homem forte, valente e destemido ajudou a formar outra
caraterística do nordestino. Além de ser representado nos folhetos como homem pobre, indolente e
sem iniciativa, com a mesma frequência aparece neles a imagem de homem de caráter forte, valente
e resistente que não recua frente a qualquer obstáculo social ou natural, que não desiste fácilmente,
semelhante à que observou nos seus versos Antonio Carlos de Oliveira Barreto (2007a):
O trem que me conduziu
Diluiu se na estação
Não há passagem de volta
Pra retornar ao sertão
Sem asas para voar
Sem sonhos para sonhar
Vou seguindo essa missão.
E na selva de cimento
Já não sou anjo de luz
Junto aos animais falantes
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
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Eu vou carregando a cruz
Sou mais um na multidão
Perdido na contramão:
O destino me conduz.
Mas não me entrego porque
sertanejo é mais que forte
é raio rasgando céu
muito mais que o vento-norte
semente de luz plantada
todo desafio da estrada
de quem nunca teme a morte.
Por outro lado, muitas vezes esta mesma imagem gera um preconceito geral acerca do nordestino
que além da caraterística acima mencionada o marca como um tipo de bárbaro primitivo que
somente consegue resolver problemas com violência e agressividade.
Folheto dos poetas migrantes
Quando falamos do Nordeste, não podemos esquecer do grande número daqueles que,
oprimidos pela seca, tentaram pegar o destino em suas próprias mãos, revoltaram-se contra tudo e
todos e quando não se juntavam aos grupos de bandidos ou seguidores de um dos profetas
populares, abandonavam sua terra natal e mudavam-se para outros lugares onde a vida parecia ser
mais fácil. Os motivos dos retirantes relata em seu folheto „Três conselhos sagrados“ o poeta
baiano, Marco Haurélio (2006):
Descreverei neste enredo
O drama de um retirante
Que deixou sua família
Devido à seca incessante
Indo procurar trabalho
Em uma terra distante.
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[...] Tendo perdido a lavoura
E morrido a criação,
Ele chamou a mulher
E lhe disse: Coração,
Vou-me embora pra São Paulo
Procurar colocação.
E porque a mulher não parece gostar da idéia, ele a explica assim, como coisa do Destino:
Ele dise: - Minha prenda
Nossa vida é uma estrada
E o Destino nos obriga
A fazer caminhada
No final, a recompensa
Aos que lutam é ofertada.
Os folhetos dos poetas que por alguma razão tinham que deixar a vida na roça e mudaram-se
para cidade ou mesmo para outro estado, têm em comum o fato, de que apesar de todas as misérias,
injustiças e sofrimentos, o Nordeste parece-lhes o melhor lugar para viver. Este Nordeste aparece
como um espaço idealizado, metafórico, um espaço que representa a saudade como confessa em
seus versos Aécio Alves de Freitas (2005):
E assim eu encerrei
minha fase interiorana
Prá Salvador me mudei
essa metrópole baiana
dei adeus à minha terra
deixando a atrás da serra
com uma saudade insana
Muitos anos se passaram
A saudade se aplacou,
As coisas se acomodaram,
Uma, porém, não mudou
A roça na qual nasci,
Mantém-se bem viva, aqui
Comigo, por onde eu vou.
Quando nós nos encontramos,
Meu irmão sempre falou:
A roça todos deixamos,
Mas ela não nos deixou.
Teima em permanecer
No peito, ara o prazer
De quem sempre a amou.
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Pois o nordestino verdadeiro sempre confessa, mesmo já naturalizado na cidade, que o lugar dele é
no sertão e àquele lugar nada se iguala, como versejou recentemente outro poeta baiano, já há
muitos anos residente em Salvador, Antonio Carlos de Oliveira Barreto (2007b):
Vivo na cidade grande
Mas não deixo de sonhar
com paisagem das caatingas
e das noites de luar
Neste louco desamparo:
o sertão é o meu lugar
Pode chover ouro em pó
Nada faltar no meu lar
O luxo todo do mundo
Dinheiro esbanjar
Eu não nego a ninguém
O sertão é o meu lugar.
E sendo caipira-urbano
Nunca deixo de sonhar
Vou rodar o mundo inteiro
Com o meu cordelizar
Mas vou morrer no sertão
Pois ali é o meu lugar.
Ao contrário as cidades grandes costumam ser descritas como lugares cheios de perigos:
Seus pais disseram – Meu filho
Por lá não vá te perder
Salvador é uma cidade
Difícil de se viver
Os prédios são muito altos
Têm também muitos assaltos
Fazendo o povo correr.
(SILVA, 2005)
E assim fala de São Paulo no folheto „Panvermina e Zabelê nas quebradas do sertão“ outro baiano,
Jotacê Freitas (2005):
[...] Ir pra São Paulo é tolice
Mesmo que leve uma cesta
De dinheiro e de riqueza
Aquilo é terra bissexta.
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O povo não vive em paz
É um corre-corre danado
O nordestino ao chegar
Fica longo empregado
Mas quando for perceber
Está sendo explorado.
E pensa logo em voltar
Pois foi assim que vivi
Exilado do meu povo
Nem conto como sofri
Por isso estou de volta
Eu peno mas sou feliz.
Nos versos dos poetas migrantes o Nordeste transforma-se num lugar que parece estar no passado,
onde tudo é sólido e tranquilo, onde tudo permanece imutável – a terra, as plantas, os animais, o
modo de vida simples e humilde - é o lugar para o qual todos querem voltar.
Queixas à moral feminina
Outro tema frequente, que aparece na literatura de cordel de todas as épocas e que reflete o
caráter tradicionalista dos poetas mesmo como dos seus leitores, usado para demonstrar o declínio
do mundo antigo e de seus valores, é o escandaloso comportamento dos jovens e a moda feminina.
Já Leandro Gomes de Barros, o pioneiro do cordel no Brasil, nas primeiras décadas do século XX
no folheto „As cousas mudadas“ lamentava assim:
Hoje se vê uma moça
Ninguém sabe se é rapaz
Anda com calça e chapéu
Pouca diferença faz,
Vê se até calças de velhos
Com brigalhas para traz.
Os homens de hoje só querem
Mulher para trabalhar
A mulher da casa é ele,
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Faz tudo que ela ordenar
Para ser ama de leite
Só falta dar de mamar.
Outro poeta pernambucano, Tomaz de Assis, no folheto Começou o fim do mundo (1976) da década
de setenta aponta os maiores escândalos da época com estas palavras:
O escândalo está demais
Do céu já desce o castigo
Fome, guerra em toda parte
O mundo inteiro em perigo.
A desgraça continua
A mulher mostra na rua
A barriga e o umbigo.
Não tem escândalo maior
Do que seja a minisaia
Essa miséria se estende
Da praça ao banho de praia
O mundo perde o sorriso
E o céu está dando aviso
Pois o desmantelo ensaia.
E somente há alguns anos atrás o poeta Antonio Alves da Silva no folheto A moda de hoje em dia,
não é como antigamente (2003) mostrava sua semelhante preocupação assim:
É por isso que afirmo
Para nossa amada gente
Que a moda de hoje em dia
Não é como antigamente
Na verdade isso me assusta
Mulher usa saia justa
Com tecido transparente.
O tecido de algodão
Agora está desprezado
Porque a moça só quer
Usar shortinho apertado
Ou calça justa de malha
Pois assim ela se espalha
Fazendo o seu rebolando.
E no final do folheto ele conclui:
[...] Antigamente uma jovem
Aos seus pais obedecia
Toda família era unida
Desenlance não havia
Porém hoje a juventude
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Perde a paz e a saúde
Por causa da rebeldia.
Toda mocinha rebelde
Só vive fazendo alarde
Não atende pai nem mãe
Numa atitude covarde
E por causa da pendenga
Vai terminar feito quenga
Igual a Bela da Tarde.
Quer dizer, segundo o poeta popular a mudança de costumes e de valores morais faz com que os
jovens sejam cada vez mais desobedientes e que, claro, antigamente tudo era diferente e melhor.
Conclusão
Neste trabalho tentamos demonstrar quais são algumas das mais marcantes imagens do
Nordeste presentes na literatura de cordel e de como esse arquivo contribuiu por um lado para
manter vivas as tradições, as crenças, a cultura, a religiosidade e o pensamento da região, nos
permitindo revisitar o passado a partir da continuidade de seus temas no presente e, por outro lado,
como tal gênero literário criou e ajudou a reforçar uma série de estereótipos negativos acerca da
região e da sua gente.
Como já foi dito, no cordel atual aparecem as mesmas imagens que antigamente, os
cordelistas continuam falando da vida do pobre, do messianismo e do cangaço, queixam-se dos
políticos e dos novos modos e apesar de poder parecer que a imagem que eles nos oferecem
aproxima-se cada vez mais de uma caricatura, nas páginas do cordel o sertão continua sendo o
melhor lugar para se viver. A imagem do Nordeste que sobrevive no cordel, retomada pela literatura
erudita e principalmente pela mídia, faz com que as pessoas oriundas das demais regiões do Brasil
ou mesmo do exterior, continuem vendo o Nordeste como uma região tradicional, folclórica,
habitada pelo povo pobre e primitivo, mas também religioso e resistente. A literatura de cordel hoje
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perde um pouco de sua função original, pois desde que foi descoberta como manifestação folclórica,
tem abandonado o seu papel de difusor de notícias para uma população carente de informação e se
torna cada vez mais alegórica, voltada mais aos intersses turísticos do que aos locais, mas que
continua nos mostrando o Nordeste assim como existe no imaginário coletivo, isto é, o Nordeste de
cabras valentes, de bandidos, de santos, de coronéis, de milagres, dos crimes, das pragas e do sertão
mítico.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE JR., Durival Muniz de: A invenção do Nordeste e outras artes, São Paulo 1996.
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________________. O sertão é o meu lugar. Salvador 2007b
________________. Xilogravura e cordel nas andanças do sertão, Salvador 2008.
BARROS, Leandro Gomes de: As Cousas Mudadas. Recife s/d.
CHAGAS BATISTA, Francisco das: O interrogatório de Antônio Silvino. Juazeiro do Norte, 1954.
RIBEIRO, Darcy in DEBBS, Silvie: Cinema e literatura no Brasil. Os mitos do sertão: emergência
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FREITAS, Aécio Alves de: A capital da Bahia, afinal sem fantasia. Salvador 2005.
FREITAS, Jotacê: As dentes da galinha. Salvador 2000.
______________.: Panvermina e Zabelê nas quebradas do sertão. FUNCEB. Salvador 2005
HAURÉLIO, Marco: Os três conselhos. Salvador 2006.
LUYTEN, Joseph M. : O que é a literatura popular, São Paulo 1983.
NASCIMENTO, João Sabino: Lampião – Justiceiro do Nordeste. Recife s/d
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