Onde os velhos não têm vez

Transcrição

Onde os velhos não têm vez
Impressões de Leitura sobre o livro de Cormac McCarthy, "Onde
os velhos não têm vez"
Por Eliana Gagliardi
A senhora saiu de casa (aquela de janela de vidro, metade em cada
parede, coberta por uma cortina leve) e foi conhecer o lugar Onde os
velhos não têm vez. Ela queria lá chegar para ouvir McCarthy contar-lhe
sobre aquele mundo. Ela o percorreu. Espaço nada fácil, ela concluiu.
Lugar árido, desértico, fronteiriço
Ele estava sentado com os saltos das botas enterrados no cascalho da
crista do monte e examinava o deserto lá embaixo com um par de
binóculos alemães que aumentava doze vezes o objeto. (...) Bem longe ao
sul as montanhas nuas do México. As curvas do rio. A oeste o terreno de
terracota crestada das terras da fronteira. Ele cuspiu calmamente e secou
a boca no ombro da camisa de algodão.
Lugar de quase cowboys
Caminharam lado a lado pelo corredor até a seção de botas. Tony Lama,
Justin, Nocona
Você tem Larry Mahans?
Não senhor. Não temos.
Tudo bem.
(...)
Preciso de um par de jeans Wrangler.
(...)
Tem algum daqueles chapéus de vaqueiro com a aba pequena?
Temos sim. Temos um Resistol três por cento de pelo de castor e um
percentual um pouco melhor no Stetson. Acho que cinco por cento.
Deixe-me ver o Stetson. Aquela cor acinzentada.
(...)
Meias brancas?
Eu só uso meias brancas.
E roupa de baixo?
Talvez cuecas de malha.
Lugar de tráfico e violência
Voltou para o primeiro caminhão e ficou de pé olhando para a porta
aberta no lado do passageiro. Não havia buracos de balas naquela porta
mas havia sangue no assento. (...). Girou e apertou o botão da janela. O
vidro saiu da abertura estreita da porta e subiu devagar. Havia dois
buracos de balas nele e um leve borrifo de sangue coagulado na parte
inferior do vidro. Olhou para o chão. Manchas de sangue e barro. Sangue
na grama. (...). Mais adiante um homem morto e mais outro e mais outro.
E havia uma pesada valise de couro junto ao joelho de um deles. Estava
abarrotada de notas de cem dólares (...). Decerto tinha um último homem
de pé e viria buscar o dinheiro. (...) Ele travou o fecho da valise e apertou
as correias e afivelou-as e se levantou e colocou o rifle no ombro e então
pegou a valise e a metralhadora e se orientou pela própria sombra e
partiu.
Lugar de espanto
Ele tinha dezenove anos. E me disse que estava planejando matar alguém
desde quando era capaz de se lembrar. Disse que se o soltassem ia fazer
de novo. Disse que sabia que ia para o inferno. Disse isso para mim com
sua própria boca. Não sei o que pensar disso. Não sei mesmo. Achei que
nunca tinha visto uma pessoa assim e fiquei me perguntando se ele seria
de uma nova espécie.
(...)
Um tempo atrás dois garotos se encontraram um deles era da Califórnia e
o outro da Flórida. E eles se conheceram em algum lugar no meio do
caminho. E então saíram juntos viajando pelo país matando gente.
(...)
Outro dia uma mulher colocou um bebê num compactador de lixo.
Quem poderia pensar numa coisa dessas?
Lugar onde os velhos não têm vez
Li nos jornais por aqui há um certo tempo que alguns professores
encontraram uma pesquisa que foi enviada nos anos trinta para algumas
escolas do país. Tinha um questionário perguntando (aos professores)
quais eram os problemas em dar aulas nas escolas. (...). Os maiores
problemas que os professores citavam eram coisas como conversar em
sala de aula e correr nos corredores. Mascar chicletes. Copiar dever de
casa do colega. Coisas desse tipo. Então, eles pegaram um desses
formulários que estava em branco e imprimiram um punhado deles e
mandaram para as mesmas escolas. Quarenta anos depois. Bem eis que
chegaram as respostas. Drogas. Suicídio. Então penso sobre isso. Boa
parte das vezes que eu digo qualquer coisa sobre como o mundo está indo
para o inferno as pessoas meio que sorriem e dizem que estou ficando
velho.
São Paulo, 19\02\2015