"A Europa em Bom Português", por Manuel Malheiros

Transcrição

"A Europa em Bom Português", por Manuel Malheiros
Diário do Minho
SÁBADO, 27 de setembro de 2014
ETC.
www.diariodominho.pt
31
A Europa em bom português
Transcrito e adaptado do boletim da língua portuguesa
nas instituições europeias
Vindaloo, multiculturalismo
e nossa vinha-d’alhos
uma leitura de Identity and Violence e um acto de contrição em
postfácio
Sen tem razão no exemplo, mas
não está correto quando associa as
batatas, ou seja, quando caracteriza
o «vindaloo» pela associação de vinho e batatas.
Um artigo crítico no «Wall Street Journal» despertou a minha atenção para o
livro de AmartyaSen, Identity and Violence.
É possível que os vegetarianos façam «vindaloo» só com batatas, mas aí
já estamos, em pleno, na tese de Sen
sobre identidade e liberdade.
O Prof. Sen analisa no seu livro a relação entre «identidade» religiosa e violência, demonstrando como uma visão
monolítica da religião enquanto identidade única, dominante e exclusiva, é errada e perigosa.
No seu livro, o ilustre economista
e prémio Nobel argumenta, e com razão, que mais importante que preservar
um multiculturalismo, que mais não é
que monoculturalismo plural, é garantir a cada pessoa a possibilidade de fazer escolhas racionais dentro da diversidade cultural sem ficar presa a uma
identidade.É poder fazer «vindaloo» com
carne ou com batatas ou com os dois
elementos se assim o desejar, sem receio da ira de qualquer cozinheiro ou
crítico culinário fundamentalista. É poder assumira sua identidade religiosa
ou outra mas sem que isso prejudique
a liberdade de escolha de outros aspetos culturais ou religiosos nema sua integração noutros grupos em função dos
seus interesses pessoais.
AmartyaSen, que ganhou em 1998 o
Prémio Nobel da Economia, publicou,
além da obra em questão, outras obras
como On Ethics and Economics (1987),
Development as Freedom (1999), Rationality and Freedom (2002), The Argumentative Indian (2005).
Em Identity and Violence (2006Sen
argumenta que o conflito e a violência são
sustentados hoje, como no passado, pela
ilusão de uma única identidade.
O mundo é, frequentemente, apresentado como uma federação dereligiões ou
de culturas ou de civilizações, ignorando-se a relevância de outros elementos,
relações e situações: classe, género, línguas, ciência e política.
A sua acertada crítica das estreitas visões comunitaristas insiste, pelo contrário, na importante diferença entre Multiculturalismo e Monoculturalismo Plural, ou seja, na diferença entre interação e isolamento dos grupos e das relações, invocando-se, erradamente, o direito à diferença e à preservação
das “identidades” para justificaro isolamento.
Neste momento, porém, quero referir-me a um aspeto linguístico-cultural. No desenvolvimento das suas teses sobre o
multiculturalismo, AmartyaSen dá como exemplo o «vindaloo».
Recorda que foram os portugueses que levaram para a Índia o
piripíri (chili) e considerando como exemplo do carácter multicultural da cozinha inglesa o «vindaloo», Sen escreve:
«… as the name indicates, carries the immigrant memory
of combining wine with potatoes» [Nota: «aloo» significa batata em hindi.]
Aqui o autor vai depressa demais (aliquando dormitat
Homerus…)
O Google ensina que «The King ofcurries, thefieryhotvindalooisofPortugueseorigin» e oferece uma receita onde não
há «potatoes».
Na verdade o «vindaloo», prato tão apreciado em todos
os restaurantes indianos de todos os países, é o filho da
nossa «vinha-d’alhos» que foi à Índia e voltou miscigenada nesse «curry».
A vinha-d’alhos leva, basicamente, vinho, alho, louro, colorau e vinagre.
O «vindaloo» (anglo-indiano), a esses ingredientes, junta, pelo menos, coentros (sementes esmagadas), cardamomo, cravo-de-cabecinha, gengibre, pimenta preta, mostarda
e cebola. Ambos, originalmente, antes de serem molhos, são
uma marinada para carne.
Há aqui, é certo, uma interpenetração de cozinha portuguesa, indiana e inglesa, pois o «curry» «vindaloo» é um
desenvolvimento inglês da cozinha indiana.
O livro de AmartyaSen, exaltando a
liberdade de pensamento, a racionalidade e a apreciação
crítica das religiões e das culturas, é obra dum humanista defensor da liberdade de pensar e de agir para um
melhor mundo possível.
Posfácio:
Tenho de fazer aqui um ato de contrição. Há efetivamente um «vindaloo» com batatas. Pouco tempo depois
de ter enviado o artigo, o meu filho Jorge, geógrafo de
profissão, levou-me a um restaurante indiano, simples,
nos Olivais em Lisboa e na ementa do restaurante lá estava «vindaloo de batatas». Confirmei com o chefe e era
mesmo um prato vegetariano! Posteriormente, pesquisando melhor, até encontrei no Google uma receita com a
designação «Potato Aloo Vindaloo Recipe».
AmartyaSen tinha razão, quem dormia o sono da ignorância era eu. Mea culpa! Aqui vai, tardio embora, o meu
pedido de desculpas ao ilustre professor e aos leitores.
Manuel Malheiros
Antigo funcionário do Tribunal de Justiça
Artigo publicado n.º 23 d’«a folha», o boletim da língua portuguesa nas instituições europeias, http://ec.europa.eu/translation/bulletins/folha/folha23.pdf
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