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Sobre Jurisdição e invasividade: uma idéia Gabriel Divan (versão bruta do artigo publicado in POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. ÁVILA, Gustavo Noronha de – Organizadores. Crime e Transdisciplinaridade. Estudos em homenagem à Ruth M. Chittó Gauer. Porto Alegre: Edipucrs, 2013). “It's the sense of touch. In any real city, you walk, you know? You brush past people, people bump into you. In L.A., nobody touches you. We're always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much, that we crash into each other, just so we can feel something” (Diálogo das cenas iniciais do filme ‘Crash’, de Paul Haggis, 2004). Professora Ruth: (muito) obrigado pela sua inquietude (contagiosa)! O dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt traz em um de seus contos, “A Pane”1, uma proposta de argumento já transformada em standard pela cultura ocidental tal um verdadeiro arquétipo de anedota ou lenda (urbana) contemporânea: a história do viajante que, diante de uma situação inusitada, é obrigado a pernoitar em algum lugarejo obscuro, um ponto totalmente imprevisto em seu trajeto original planejado. No texto, o viajante em questão é convidado, durante sua forçosa estadia no local, a se unir a um grupo de juristas aposentados que, em longos encontros noturnos, põe em prática tanto a paixão pela fina gastronomia quanto aquela por inflamados debates forenses. Eles simulam julgamentos e esgrimam idéias sobre casos hipotéticos, fazendo, cada um, às vezes de Acusador, Julgador e Defensor do “Réu”. Encorajado a participar da tertúlia, o viajante se dispõe a integrar o enredo do joguete, no papel do acusado. Na medida em que correm as horas, e o vinho, uma trama absurdamente fantasiosa movida por questionáveis nexos de causalidade obtidos através de muita construção sobre as Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Processo Penal da Universidade de Passo Fundo – RS. Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade. Advogado. 1 DÜRRENMATT, Friedrich. A Pane. O Túnel. O Cão. Trad. Marcelo Rondinelli. São Paulo: Conex, 2004. respostas fornecidas pelo indigitado trazem a público a surpreendente conclusão de que ele deve ser condenado por um homicídio que supostamente teria praticado (induzido). Ao contrário de todas as expectativas, o réu não apenas aceita a versão, como também (e eis aí o trunfo do contista), encarna de bom grado a alcunha de matador, como que em uma atitude re-significativa desesperada para dar cabo da aparente mediocridade do seu dia-a-dia. Aquele “processo” teve o condão de lhe outorgar uma representação que conferia uma miraculosa (porém falsária) aura de importância à sua vida, eis que trouxe à baila uma interpretação que o colocava decididamente no epicentro de um acontecimento marcante que em realidade ocorreu de forma visível e absolutamente alheia às suas vontades. Crendo no discurso de acusação (e dando pouco crédito à sua própria e modorrenta “Defesa”, que queria absolver-lhe justamente da única condição não-ordinária de sua pacata existência), internalizou facilmente a propositura e recebeu a “sentença” de “condenação” como quem encarna em uma nova carcaça. Encaramos a alegoria trazida por Dürrenmatt como o ápice, o símbolo extremado do bizarro que cerca a questão que aqui vai brevemente trabalhada. O cume da narrativa não parece ser seu desfecho trágico, senão o seu próprio desenvolvimento, explicitando sutilmente a forma como, gradativamente, as palavras do processo cortam a realidade como faca afiada2 e transformam-na, de fato a fórceps. Uma sentença, e o próprio desenrolar dos atos que lhes são correlatos, vão se engrenando para reorganizar o mundo em uma nova inscrição sócio-lingüística, em uma nova ordem política, a fim de justificar sua própria razão de ser e eis que, ao final, a resposta emerge (em termos de juris dictio) sempre “correta” dentro do universo ali delineado e muitas vezes desdenha, perigosamente, do próprio mundo que a cerca3. 2 “O juízo do juiz, não o das partes, facit ius, o que quer dizer, vincula, ou seja, determina através do mecanismo de direito, a conduta alheia. Depois que o acusador conclui que o imputado é culpado e o defensor que ele é inocente, o mundo segue como antes; mas quando, pelo contrário, uma ou outra coisa é o juiz quem diz, o mundo muda, porque, entre outras coisas, o imputado, se era livre, é capturado, ou vice-versa, se estava detido é posto em liberdade”. CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. Tradução de Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2004. v. 4, p. 66 3 BARATTA, Alessandro. “La vida y el laboratório del derecho. A propósito de la imputación de responsabilidad en el proceso penal” in Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho. Universidad de Alicante, n. 05, 1988, p. 277. Na esteira desse alerta, qualquer propositura que pretenda desenvolver paralelos entre ética e Processo Penal encontrará um vasto campo de trabalho, não obstante a consciência necessária de que os obstáculos presentes na empresa superam, sensivelmente, em densidade, a própria proporção do objeto de estudo (hipóteses de questionamento cruzado entre uma e outro). Desde que passamos a admitir (com SOUZA) a necessidade de uma guinada conceitual da proposição ética na direção de uma preocupação fundamental com a alteridade (sobretudo no sentido de assumir a relevância do encontro com o outro e sua inapreensibilidade e irredutibilidade como momento cume da própria ética, enquanto fundamento de qualquer viabilidade das relações humanas4), porém, as chances de o cruzamento idealizado frutificar em otimização prática se mostram plausivelmente mais sombrias. Partindo-se de uma premissa que extrema (propositalmente) os termos da idéia, tem-se que ambos, ética e Processo Penal, são desde logo, incompatíveis radicalmente: ou se tem uma idéia mitigada (ao ponto da deliberada falsidade) da experiência do encontro, ou se percebe que o festival de hipóteses procedimentalmente orquestradas do Processo é (e sempre será) qualquer coisa, menos diálogo. Cabe pensar, diante de tal constatação, quando, ou, melhor ainda, onde poderia haver manifestação ética genuína (ou resquício de uma), em meio ao Processo Penal, qual a amplitude de sua verificação e no que ela consistiria (ou teria condições de consistir), de fato. O rito processual, sob esse viés, é estratégia limitadora positivada utilizada para a descomplexificação e solução politicamente eleita para a (proposta enquanto tal) resolução de um dito caso-penal5 (sendo o próprio crime, tanto fático como o termo correlato de sua denominação, uma impostura legal que inibe tendencialmente qualquer 4 SOUZA, Ricardo Timm de. Uma introdução à ética contemporânea. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004, p. 103. 5 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989, p. 149. Referimos-nos à terminologia usada pelo autor, ainda que não concordemos com sua visão de “acertamento” do “caso-penal” enquanto objeto do processo. Vide, para tanto, LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 e GUASP DELGADO, Jaime. “La pretensión procesal” in Estúdios Jurídicos. ARAGONESES ALONSO, Pedro (Coord). Madrid: Vivitas, 1996. traço de legitimidade do ato supostamente praticado, lhe secando de possibilidades comunicativas que não aquela do signo da atitude antijurídica). É o não-encontro por excelência, tomando-se por base para a experiência ética a necessária inexistência de limitadores e de ferramentas de absorção que procuram livrar o choque da alteridade de sua tensão natural. É a anti-matéria do encontro, tendo-se em vista a quantidade de traduções às quais os entes de todas as ordens vão submetidos. Teatro, disputa, jogo por excelência6, o Processo tem nesse rol de pré-estabelecimentos, nesse amontoado de ordens e apuros conceituais, nessa coleção de rígidas formas, seu suposto trunfo contra as nefastas possibilidades concretas advindas da ausência dos próprios (ao se entender o formalismo processual-penal também enquanto garantia, regra do jogo). Resta dizer que a jurisdicionalização dos fatos do mundo (quiçá a jurisdicionalização penal dos mesmos que ganha revival teórico a partir do final dos anos 70 do século passado7) não só não é realmente saída tão eficaz e necessária quanto a lógica racionalista pressupunha, como dela brotam efeitos inibidores mais nefastos (ou tão nefastos) quanto a expansão de um punitivismo é também. Em perspicaz olhar sobre alguns aspectos da teia social contemporânea, BAUMAN suscita o fato de que sentimentos como o de pertença comunitária foram tão deteriorados que, no mundo de hoje, só são vivificados com força a partir de momentos críticos e/ou traumáticos. Seria, para o autor polonês, uma marca da nossa era, o esfacelamento de certas plataformas ditas modernas como, por exemplo, o conceito (tão próprio de um estado unitário do ponto de vista jurídico-político e social) de interesse comum. Mais: seria marca indelével do nosso cotidiano o assombro com a fatídica ausência de caracteres que remetam à segurança, no sentido de estabilidade(s) em suas várias acepções: afetiva, mercadológica, ecológica, epistemológica, entre outras. Por isso, situa que certos momentos-limite da vida em sociedade são, tristemente, os 6 Cf. CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. Trad. Douglas Dias Ferreira. Campinas: Bookseller, 2003, 2 ed. 7 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia crítica. Madrid: Siglo Veinteuno de España Editores, p.219. únicos capazes de fazer retornar um tipo de utopia de um verdadeiro sentimento de sociedade enquanto comunidade dotada de interesses convergentes. Mais: desvelado, aí, o triste fato de que nosso conceito de liberdade não atingiu as raias da ética pensada para uma dignidade das pessoas, uma vez que segue preso a um padrão que evoca a Mônada leibniziana e algumas fórmulas liberais-individualistas típicas de pensadores do século XVIII. Pensamos em impor nossa liberdade ao outro (definindo, como no clássico chavão, onde uma inicia e a outra cessa), mal-disfarçando que uma sociedade verdadeiramente plural e digna deve necessariamente partir para uma conceituação semelhante do que (re)significaria a liberdade8. Em exemplo certeiro, BAUMAN identifica um manifesto populacional de um distrito inglês contra a soltura de um temido suposto meliante detido como uma amostra típica de que nichos da dita segurança perdida e simulacros de uma sociedade una são verdadeiros aglutinadores sociais efêmeros, quando comparados à praxe (anti)comunitária do cotidiano atual (própria de uma realidade que o próprio autor batizou de “líquida” em vários de seus escritos)9. Sob o signo do que procurou chamar de unsicherheit10, BAUMAN trata desse vazio de estabilidades (no tríduo de ambivalências que nomeia como “segurança incerta”, “certeza dúbia” e “garantia insegura”) e mostra como a busca por elas acaba retroalimentando um comportamento social que vai, aos poucos, sendo programado para atender a anseios de individualismo, e ao mesmo tempo, celebrando “ocasiões especiais” da conceitual comunidade apenas em momentos em que isso parece conveniente a uma racionalidade acovardada e preconceituosa: perdido numa era de incertezas, o homem moderno se adapta sem desenvoltura ao mundo de hoje e busca alento em situações que evocam uma ilusória possibilidade de existência sem confrontos nem atritos. É preciso revitalizar esse sentimento de pertença, sem, logicamente, contudo ser tributário a nostalgias aprisionantes (retrato de um saudosismo inaceitável quanto a uma 8 SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, especialmente pp. 55-58. 9 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, pp. 17-18. 10 BAUMAN, op. cit., pp. 24-55, especialmente. ordem perfeita que jamais existiu – e nem deve existir11), nem partidário de uma realidade caótica repleta de supostas benesses resultantes de uma completa ausência de qualquer tipo de regras – uma falsa visão de dois pontos tais como “extremos opostos”. Parecem, portanto, inegáveis quanto à sociedade contemporânea as premissas de que (I) ela é totalmente carente de manifestações comunitárias espontâneas e evidentes que se permeiem em práticas cotidianas12 e (II) ela procura, em regra, de forma desvirtuada, satisfazer exclusivamente em momentos emergenciais sua necessidade de comunhão de sentidos e valores. Nesse viés, a “certeza” de “segurança” (jurídica) ocupa papel de destaque em uma função analgésica que toma para si não só o “monopólio da violência”, como uma fatia gigantesca das próprias relações sociais que a ela, violência, estão invariavelmente atreladas e nela não tem um elemento perturbador, mas, um profícuo ingrediente-base. Atualmente, muitos pesquisadores ligados a uma apropriação sociológica das ciências jurídicas procuram estabelecer conexões entre o direito, as criminalizações por ele operadas e as práticas sociais cotidianas para demonstrar a existência de uma espécie de ponto de saturação social13 quanto à verticalidade (descrita por ZAFFARONI et. al.14) da gestão das situações sociais em detrimento da horizontalidade que caracterizaria a 11 BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 51. 12 “A característica essencial da modernidade foi sem dúvida ter ‘domesticado’ o homem, ter racionalizado a vida em sociedade. Inútil voltar às análises feitas nesse sentido. No entanto, não ressaltamos o suficiente que essa ‘curialização’ conduziu a uma assepsia da vida social. Isto mesmo é o que chamei de ‘violência totalitária’: um corpo social totalmente desresponsabilizado que perdeu seus modelos, seus mecanismos de defesa, e que se tornou incapaz de resistir às agressões internas ou externas. Essa é uma sociedade sem riscos que perde a sede de viver e que perde também a capacidade de lutar contra esse risco maior que é o tédio”. MAFFESOLI, Michel. O instante eterno. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Trad. Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003, p. 140. 13 “A sociedade está sujeita a mudanças de natureza muito variada, algumas condicionadas por circunstâncias externas e outras originadas dentre seu próprio seio. Nisso se assemelha a um organismo vivo. Essa mobilidade torna inevitável que os esquemas baseados em normas rígidas se afastem, cada vez em medida mais expressiva, das realidades sociais onde essas normas devem ser aplicadas”. NOVOA MONREAL, Eduardo. O direito como obstáculo à transformação social. Trad. Gerson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sério Antônio Fabris Editor, 1988, pp. 28-29. 14 “(...) a história da legislação penal é a história de avanços e retrocessos no confisco dos conflitos (do direito lesionado da vítima) e da utilização desse poder confiscatório, bem como do enorme poder de controle e vigilância que o pretexto da necessidade de confisco proporciona, sempre em benefício do soberano ou do senhor. De alguma maneira, é a história do avanço e do retrocesso da organização corporativa da sociedade (Gessellschaft) sobre a comunidade (Geminschaft), das relações de verticalidade (autoridade) sobre a horizontalidade (simpatia), e nessa história a posição da vítima e o grau de confisco de seu direito sempre constituíram o barômetro definitório” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Volume 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 385. primazia do fato mundano (culturalmente recepcionado) em face de sua roupagem jurídica, e não o contrário. No mesmo sentido acima descrito, vêm os aportes de FERRELL, no que diz respeito ao fato de que a busca por assepsia social é um problema em si. Quanto à apropriação temática do urbanismo “situacionista” proposto por Ivan Chtchelgov, em 1953, descreve o sociólogo estadunidense: Sofisticando a crítica Situacionista, Raoul Vaneigen conclui de forma similar, identificando o tédio como um dos grandes horrores da vida moderna. “A terra prometida será o reino da morte pacífica”, escreveu em The Revolution of Everyday Life. “Chega de Guernicas, chega de Auschiwitzes, chega de Hiroshimas (...) Bravo! Mas e quanto a essa impossibilidade de viver, esta sufocante mediocridade, essa ausência de paixão (...)? Que ninguém diga que são detalhes menores ou questões secundárias (Vaneigem, 2001, p. 35). Quando tais textos foram expostos nas paredes de Paris, em 1968, essa tonalidade permaneceu. “Nós não queremos um mundo onde a garantia de não morrer de inanição traga o risco de morrer de tédio”, dizia um grafite15. Por todos, e sintetizando de maneira ímpar a questão, um dos mais recentes trabalhos de BAUMAN, ao se perfilar no mesmo sentido, ao criticar a necessidade mercadologicamente explorada de “segurança”, fazendo com que enxerguemos “a vida lá fora” como exclusivamente “perigosa e imprevisível”, fomentando uma espécie de clausura voluntária e high-tech16. Não esqueçamos de BRUCKNER e seu perspicaz conceito de infantilização da vida do homem atual17, preso (paradoxalmente) a um mundo que oferece velocidade(s) e liberdade(s) supostamente infinita(s) e por isso mesmo incapaz de conviver com interdições, negações e até mesmo contraposições. Somos, em muitos aspectos, levados a crer que nossa identidade transita entre arquétipos de verdadeiros “filhos” e/ou “vítimas” do mundo em que vivemos, inábeis no 15 FERRELL, Jeff. “Tédio, Crime, e Criminologia: um convite à criminologia cultural”(Trad. Salo de Carvalho. ) in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 82. Jan./Fev. 2010, p. 342. 16 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2009, p. 55. 17 “É tempo de afirmar que esse mundo constituído pela expansão do presente é também um mundo de inovações constantes, inovações que implicam o reconhecimento da imprevisibilidade e da incapacidade dos modelos ou sistemas deterministas darem conta das projeções do futuro. Num mundo onde as inovações são constantes e as certezas efêmeras, não se pode conferir crédito aos determinismos e aos objetivos calculados”. SILVEIRA, Mozart Linhares da. “Educação Intercultural e pós-modernidade” in Revista Mal-Estar e subjetividade. Ano/Vol. 3 n. 1. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, p. 159. trato com conflitos/negativas e “indefesos” diante dessa avassaladora “insegurança”, acostumados a “fendas” ou curtos-circuitos temporais que alimentam nossos anseios18. Não se pode olvidar, igualmente, que ao tratar (de modo idealizado) a aplicação das leis que compõem o sistema penal como solução redentora para os conflitos19, se está ignorando que se trata de uma operação implementada num modelo analítico de uma faceta artificial de uma situação mundana, obtida mediante classificações legais impostas sobre um fato (cuja existência se quer comprovar como ocorreu). Ou, para LARRAURI, mais incisiva (comentando um dos pontos centrais do pensamento abolicionista): “el delito no tiene una realidad ontológica, lo que denominamos delito son conflictos sociales, problemas, catástrofes, riesgos, causalidades (...) pretender tratarlos con el derecho penal significa incrementar el problema en vez de solucionarlo”20. É (mais do que) hora de os mecanismos jurídicos tributarem um pouco de atenção ao mundo como ele é21. Do estreito ponto de vista de onde nos cabe falar – o olhar do processualista (penal) – parece necessário que se pense (anarquismo?) em freios para o confisco jurisdicional das relações sociais, ou mecanismos legais que elevem a franquia dos juízos de prelibação processual aos níveis que o custo do confisco estatal das relações do mundo mereça. 18 BRUCKNER, Pascal. “Filhos e Vítimas: o tempo da inocência”, in MORIN, Edgar, PRIGOGINE, Ilya (org.) A Sociedade em Busca de Valores. Lisboa: Piaget, 1996, p. 56. 19 HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução (da 2a edição alemã, revista e ampliada) de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2005, p. 365. 20 LARRAURI, La Herencia..., p. 199. 21 Conforme AZEVEDO e BASSO: “No tocante a outro aspecto, ou seja, à corrosão crescente sofrida pelos direitos fundamentais em razão das políticas de segurança pública hodiernamente adotadas, baseadas no controle punitivo, percebe-se que a segurança pública, ao contrário do que se pensa, é tema muito mais ligado às políticas públicas do que ao Direito, podendo efetivar-se, tão somente, por meio daquelas. Do mesmo modo que, dependendo da opção feita em termos de política pública, os direitos fundamentais sofrerão maior ou menor golpe”. Ou seja: a própria apreensão jurídico-penal “monocromática” dos fatos conflitivos vem a se mostrar “antijurídica” na medida em que, não raro ela própria causar acinte ante ao leque de direitos fundamentais conforme a carta constitucional, podendo (e devendo) haver a “proteção” e a resguarda dos direitos fundamentais (entre eles a dignidade da pessoa humana e suas decorrência no “leque de liberdades” ou de imposições negativas de ingerência) sem qualquer resquício de intervenção estatal processual e mesmo criminalizante. AZEVEDO, R. G., BASSO, M. “Segurança Pública e direitos Fundamentais” in Direito e Justiça. Revista da Faculdade de direito da PUCRS Volume 34, n. 2, jul/dez. 2008. Porto Alegre: PUCRS, pp. 25-28. A atuação jurisdicional (e sua faceta inexorável de garantia da qual não abrimos mão por inteiro) possui um efeito colateral infantilizador: ao procurar, como no infeliz epíteto das democracias recentes, “judicializar” o mundo na crença de uma ligação direta entre os bons anseios e valores constitucionais e sua implementação (artificial), estamos na verdade em um refluxo que, atrelado à lógica moderna do saneamento (ainda que pretensamente, agora, bem intencionados), procura conter o novo e o inesperado em amarras tranqüilizantes, como asseverou GAUER22, tantas e tantas vezes. A atuação decorrente de uma postura (“democraticamente”) invasiva da jurisdição, que visa um ativismo esclarecido23, e/ou constitucionalmente compromissório, não apenas gera e abre margem para ativismo(s) indesejado(s) como também desconsidera (mormente no caso dos processos criminais) que a própria atuação jurisdicional, mesmo que não-viciada, por vezes é nefasta. Na visão que ora esboçamos (escorados fundamentalmente em Zaffaroni) de horizontalidade, é necessário conceber os conflitos sociais interindividuais como algo que não deve ser legado à jurisdição de forma precípua, como forma de estímulo à criação e revitalização de sentimentos e práticas horizontais que deveriam ser o mecanismo de controle original dos fatos em sociedade. O poder estatal deve não apenas ter atitudes tendentes a gerir situações limítrofes e/ou de grande relevância social (atuação seletiva em face de ultima ratio), como, e principalmente, em nosso ver, fortalecer vínculos e dinamismos sociais através da deliberada não-atuação. Evitar a judicialização de conflitos e situações sociais até as fronteiras de uma inércia então inaceitável parece ser a única forma de preservar uma série de valores democráticos que são, ironicamente, literalmente esmagados quando a jurisdicionalidade chega para “resolver” o problema de forma “legítima” e “segura”. Dentre essa noção, é necessário ponderar sobre o quanto de não-invasividade o conflito 22 “A modernidade disciplinou não apenas os homens, mas todas as coisas que pudessem estar fora do lugar. Mary Douglas refere que o reconhecimento de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em ameaça, assim as consideramos desagradáveis e as varremos vigorosamente, pois são perigos em potência. Nesse processo de limpeza, os perigos são semi-identitários. A modernidade criou essa compulsão, esse desejo irresistível de ordem e segurança. O mundo perfeito, utopia dos iluministas, seria totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações”. GAUER, Ruth. A fundação da norma. Para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: Edipucrs, 2011, p. 78. 23 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do Processo. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2005. pode impor à sua classificação penal e processual-penal pelas agências oficiais. Fundamentais, pois as noções (direito material) de Ofensividade24 e o instituto (direito processual) da Justa Causa para a ação penal, no instante em que parecem eficazes limitadores, além de categorias que, mesmo endógenas à lógica jurídica, funcionam como instrumento de (auto) crítica da atuação do sistema. Importante referir que, nesse intuito, é fundamental que, conscientes da necessidade de limitar ao estrito mínimo imprescindível a atuação do sistema penal (valorização, enfim, do vilipendiado princípio de intervenção mínima), a Justa Causa para a ação penal seja critério de avaliação político-criminal25 (poder-se-ia dizer política processual criminal) das situações colocadas frente à jurisdição. Rejeitamos, pois, uma idéia clássica de justa causa como (mero e inócuo) critério conformador de outras considerações exclusivamente dogmáticas, tal e qual o (caduco) trio liebmaniano das ditas “condições da ação”26. É, igualmente, fundamental, a admissão de que é necessária uma nova postura frente à atuação jurisdicional, que não apenas aja refreando a absorção de conflitos cotidianos com base em critérios como sua qualidade bagatelar (por exemplo), mas como nítido, admitido e militante contrafluxo. Uma jurisdição que devolva às partes a pretensão de resolução judicial de certos conflitos como um alerta às mesmas para que passem a assimilar certas situações inerentes à vida e procurar, para elas, soluções relacionais longe da esfera judiciária. Uma jurisdição, por fim, que rejeite (literal e figurativamente) ações penais como 24 MANTOVANI define uma das facetas do princípio da ofensividade como uma espécie de medidor (baricentro) de um direito penal constitucionalizado e, por isso “vinculante”: “Perché il principio di offensività possa esplicare la sua piena funzione político-garantista occorre che esso costituisca, prima ancora, che canone di interpretazione, innanziutto canone di costruzione legislativa delle fatispecie criminose”. MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: CEDAM, 2002, pp. 82-83. Cf. D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 25 “Quando se fala em justa causa, está se tratando de exigir uma causa de natureza penal que possa justificar o imenso custo do processo e as diversas penas processuais que ele contém. Inclusive, se devidamente considerado, o princípio da proporcionalidade visto como proibição de excesso de intervenção pode ser visto como a base constitucional da justa causa”. LOPES JR., op. cit., pp. 364-365. 26 “Reafirmamos nós que a justa causa não constitui condição da ação, mas a falta de qualquer uma das apontadas condições da ação implica falta de justa causa: se o fato narrado na acusação não se enquadrar no tipo legal; se a acusação não tiver sido formulada por quem tenha legitimidade para fazêlo e em face de quem deva o pedido ser feito; e, finalmente, se inexistir o interesse de agir, faltará justa causa para a ação penal”. ASSIS MOURA, Maria Thereza Rocha de. Justa Causa para a Ação Penal. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 221. espécie de estímulo ou magistério para que – em respeito à dignidade humana – procure criar na comunidade não o “abandono” (a crítica pusilânime dos puristas), mas o sentimento de que uma sociedade só será mais humana no instante em que as pessoas se reconheçam horizontalmente enquanto tal. E esse reconhecimento passa pela gama de conflitos sociais que podem e devem ser estimulados à composição social para fora dos muros do Tribunal, enquanto espécie de “pai zeloso” da comunidade27, cujo ideal de proteção termina por vezes atrofiando os caminhos do acaso, do inesperado, do choque, do trauma (tão necessário, por vezes), rectius, da vida. Vivenciamos hoje a ressaca de um ideal de postura jurisdicional que é abrangente ao nível de impedir que a sociedade produza anticorpos para os atritos do mundo. Conceitos como o da (ausência de) Proporcionalidade por “deficiência” (untermassverbot), muitas vezes escorados na “necessidade” de se “proteger” valores constitucionais, os aniquilam no reverso da moeda, uma vez que excluem do âmbito de discussão o quanto de “liberdade” ou de “dignidade” pode haver uma resolução de problemas para fora ou para além da tutela (o termos diz mais do que aparenta) judicial. Rejeitar a tutela de algumas das situações mundanas que precisam caminhar com as próprias pernas sem a gama tremenda de conseqüências e efeitos colaterais do uso da máquina punitiva parece, a nosso ver, a atitude mais nobre que um judiciário comprometido com a - verdadeira - mudança social pode tomar. O sonho de certas posturas conferidas à lógica processual (que inflam o papel “democrático” da jurisdição enquanto “responsável” por “manter a paz” no seio social) segue ilustrando uma realidade onde o medo de um caos que jamais foi documentado de fato faz com que a própria crença se mantenha em pé: o punitivismo mais obscuro e o garantismo mais libertário se encontram, tristemente, ameaçando com o dedo em riste quanto à obrigatoriedade de não serem relegados em prol de uma barbárie que (iludamo-nos) já pode ser o que há, aqui e agora. 27 DIVAN, Gabriel Antinolfi. Decisão Judicial nos Crimes Sexuais – o julgador e o réu interior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, especialmente pp. 167-178. Cf., igualmente, CARVALHO, Amilton Bueno de, O Juiz e a Jurisprudência: um desabafo crítico. In: BONATO, Gilson (Org.). Garantias Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 9. É fato que uma existência sem alarmes e sem surpresas significa, sem dúvida, mais a mortificação completa do que propriamente a paz.