LENDO AS HISTÓRIAS DOS EVANGELHOS: - FNB Online

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LENDO AS HISTÓRIAS DOS EVANGELHOS:
um exemplo de Marcos 1:21-34.
Sidney de Moraes Sanches*
Resumo
Esse estudo assume que os evangelhos são uma mescla de narrativas e discursos.
A proposta desse estudo é efetuar a leitura das histórias dos evangelhos, tomando
como exemplo: Marcos 1:21-34. O objetivo é demonstrar a possibilidade, a
necessidade e os resultados quando se toma em consideração as histórias do
Evangelho como narrativas completas em si mesmas e portadoras de um discurso
autônomo em relação ao próprio Evangelho. Para tal, foi utilizado o método literário
da Análise Narrativa, que considera o potencial discursivo da narrativa em sua
própria constituição. Presente nos estudos literários em geral desde a segunda
metade do século passado, sob a denominação geral de Narratologia, a Análise
Narrativa veio a se constituir em instrumento precioso para aqueles que desejam
uma abordagem a mais próxima do texto narrativo possível e no interesse de sua
capacidade discursiva. A conclusão é que, ainda que a Análise Narrativa não tenha
adquirido uma posição relevante nos estudos bíblicos na América Latina até o
momento, ela tem muito a oferecer à leitura popular das histórias do Evangelho, em
particular, e de toda a Bíblia na sua totalidade.
Palavras-chave:
popular.
Narrativa;
Evangelho;
Análise
Narrativa;
Discurso;
Leitura
Abstract
This study assume that the gospels are a mix of stories and speeches. Their
proposal is to accomplish the reading of the stories of the gospels taking for
example Mark 1:21-34. The aim is to demonstrate the possibility, necessity and
results this stories like complete themselves and loaders of an autonomous speech
about gospel itself. For it, was made the literary method of narrative criticism, that
considers the discursive potential of stories in your own constitution. Present in the
literary studies since the second half of the past century, by name Narratology,
Narrative Analysis came to establish a precious instrument to for whom desires an
approaching that most near for to narrative text and your discursive capacity. The
conclusion is that Narrative Analysis, despite that not get a relevant position in the
biblical studies in Latin America at this moment, it have much to offer to popular
Reading of the stories of the gospels and the Bible for all.
Keywords: Story; Gospel; Narrative Criticism; Discourse; Popular Reading.
* Doutor em Teologia - FAJE (2006). Professor da Faculdade Nazarena do Brasil - Campinas
(SP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1611754323845332. E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Qualquer leitor da Bíblia se impressiona com a quantidade de histórias que
ela contém. De fato, a Bíblia é uma grande história, a história de Deus e sua
criação, nela incluída todos os seres vivos, inclusive a humanidade. A opção pelo
formato narrativo nos textos bíblicos é de tal modo explícito que deve-se atribui-lo
ao gosto das pessoas pelas histórias, desde aqueles tempos antigos até a nossa
contemporaneidade. As histórias bíblicas devem ser estudadas em si e por si
mesmas, autonomamente, enquanto constituídas de uma forma e de um discurso
próprios desse gênero literário, e não pertencente a nenhum outro. Essa proposta
de estudos vige nos estudos literários desde a segunda metade do século passado e
seus resultados foram reunidos sob a ciência da Narratologia.
Esse artigo não pretende expor essa ciência. E, sim, oferecer um exemplo de
leitura de algumas histórias do evangelho de Marcos (1:21-34), a fim de demonstrar
a possibilidade, a necessidade e os resultados positivos quando se toma em
consideração as histórias dos evangelhos como narrativas completas em si mesmas
e portadoras de um discurso autônomo em relação ao próprio Evangelho.
Tentaremos seguir o modelo de Análise Narrativa proposto por Daniel
Marguerat e testar a sua aplicação nas histórias do evangelho de Marcos citadas
acima1. Recomenda-se que o leitor tenha o texto em mãos e o leia na medida em
que acompanha o desenvolvimento da Análise. Sugere-se que ele experimente o
mesmo procedimento quanto a outra ou outras histórias bíblicas. Somente a soma
do exercício permitirá perceber o quanto a Análise Narrativa tem a oferecer à leitura
popular das histórias do Evangelho, em particular, e de toda a Bíblia na sua
totalidade, na América Latina e, em especial, no Brasil.
1.
Primeira abordagem
O Narrador conta sobre a história do “evangelho de Jesus Cristo, o Filho de
Deus”. Ela começou pela atividade batizadora de João Batista (1:7), o batismo de
Jesus por João (1:9) seguido da tentação de Jesus por Satanás por 40 dias (1:15). O
Narrador, que se apresenta totalmente fora dos eventos, mas totalmente onisciente
deles, interfere diretamente na história por meio de: referências ao texto
1
MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.
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escriturístico (1:2,3); descrição da mensagem de João (1:4); a reação das pessoas
(1:5); a descrição de suas roupas (1:6) e de sua mensagem (1:7,8). Também, no
batismo de Jesus, o Narrador interfere, por meio de: indicação do lugar de onde
Jesus veio (1:9); inserção de fenômenos extraordinários no seu batismo (1:10,11).
Na tentação de Jesus, o Narrador insere a ação do Espírito (1:12) e de Satanás,
além da descrição do lugar deserto onde Jesus estava (1:13). A história muda com a
prisão de João Batista. Foi quando Jesus começou a pregar (1:14). Nesse tempo,
Jesus chamou os primeiros discípulos (1:16-20). O Narrador insere o conteúdo da
pregação de Jesus e dá detalhes do chamado de Jesus aos discípulos e a sua
reação. Conforme o Narrador, a atividade de Jesus não se modifica, pois está
sempre “proclamando” e “andando”, uma atividade sem limitação cronológica. É
nela que ele encontra os pescadores, que respondem imediata e definitivamente a
ele, dando-se um rompimento no seu tempo: “No mesmo instante”; “logo os chamou
e eles o seguiram”. Outra mudança na história acontece quando Jesus entra em
Cafarnaum, e esse será uma ação repetida em outros momentos, que demarca uma
série de eventos relacionados entre si (1:21; 2:1; 3:1). Isso é mais marcante, ainda,
pois, até então, o Narrador reuniu histórias sem nenhuma relação temporal entre
elas. Agora, ele começa a agrupar essas histórias ao redor de uma ação ordenada
de Jesus.
2.
Delimitação
O Narrador não menciona quando Jesus chegou a Cafarnaum, mas fica a
impressão de certo tempo que passou até a chegada do sábado (1:21). Ele descreve
a ação de Jesus através de um contínuo movimento espacial: Jesus entra e sai da
sinagoga (1:21 e 29); ele entra na casa de Simão e André (1:29); ele sai da casa de
Simão e André (1:34). Esse entra-e-sai é combinado com a passagem do dia: a
sinagoga pela manhã; a casa de Simão e André pela tarde; a saída da casa de André
e Simão.
O personagem principal é Jesus, e, desde o relacionamento com ele, outros
atores aparecem. Em Cafarnaum entram Jesus e seus novos discípulos. Na
sinagoga, estão Jesus e seus frequentadores, com ênfase a um homem. Na casa de
Simão e André, são nomeados os quatro discípulos, e ênfase é dada à sogra de
Pedro. Fora da casa de Simão e André estão todo o povo da cidade, com destaque
para todos os doentes e endemoninhados. A narrativa pressupõe a entrada de
Jesus na casa de Simão e André e sua saída de madrugada para a oração (1:35) e
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para a viagem por toda a Galileia (1:39).
A ação de Jesus é em benefício ou em favor das pessoas que aparecem com
necessidades específicas: os frequentadores da sinagoga para serem ensinados; o
homem possesso de um espírito impuro para ser libertado; a sogra de Pedro com
febre para ser restaurada; os muitos doentes de diversas enfermidades e demônios
para serem curados. Suas ações são inteiramente bem sucedidas, e todos os que
dele se aproximaram tiveram suas necessidades atendidas.
3.
O enredo
São três micronarrativas ligadas umas às outras pela referência ao mesmo
tempo (um dia) e ao mesmo lugar (Cafarnaum) e à ação de um único personagem:
Jesus. São elas:
1:21-28 – o ensino e o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum (a mais extensa)
1:29-31 – a cura da sogra de Pedro
1:32-34 – a cura de muitos doentes e a expulsão de muitos demônios
Cada micronarrativa segue um padrão de intriga:
Narrativa
Situação
Nó
inicial
Ação
Desenlace
transformadora
Situação
final
1:21-28
21,22
23,24
25
26
27
1:29-31
29
30
31a
31b
31c
1:32-34
32a
32b,33
34
-
-
Reunidas, elas formam uma intriga unificante (macronarrativa): um dia de
Jesus em Cafarnaum. Trata-se de um complexo narrativo sequencialmente
construído que possui a sua própria intriga, a qual engloba e ultrapassa a intriga
das unidades menores. A integração das micronarrativas nesse complexo global
demonstra o percurso da leitura que o Narrador sugere a seu leitor. Neste caso, a
intriga tem caráter revelatório, pois deseja apresentar quem é Jesus, aquele que faz
uma série de curas no dia de sábado, ainda que apresente a resistência que Jesus
oferece à sua publicidade. Jesus aparece como alguém dotado de um ensino
diferenciado e de um poder extraordinário que disponibiliza ambos às multidões. A
fonte de ambos está nos relatos anteriores: o batismo, com a revelação do Pai e a
descida do Espírito explicam o poder e a missão; a vitória sobre a tentação de
Satanás explica todas as demais vitórias no enfrentamento contra os demônios; a
retomada mais ampla da pregação de João Batista e o chamamento dos discípulos
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explica a direção que Jesus mesmo imprime aos eventos antecedentes. Tudo isso
reunido move Jesus a Cafarnaum e para as ações subsequentes. É claro que isso
está, provavelmente, oculto dos presentes na sinagoga de Cafarnaum, mas é de
conhecimento pleno dos demônios via o enfrentamento anterior com Satanás. O
que soa curioso em toda a macronarrativa é o impedimento de Jesus a que eles
falem e o denunciem. Jesus quer o silêncio quanto às fontes da sua missão e do
seu poder. Por isso, a manutenção da admiração da multidão: O que é isto? Para
facilitar a abordagem às três narrativas episódicas, preferimos oferecer um quadro
sinótico ou uma visão de conjunto de todas elas. Então, acompanhe-o abaixo.
4.
Os Personagens
1:21-28
Esse primeiro momento se trata de um inventário dos personagens: quem
são eles, como aparecem na história e qual a relação estabelecida entre eles.
A história tem a Jesus e o homem possesso como protagonistas, atuando
individualmente. Claro, há uma dificuldade em encaixar o espírito impuro, se deve
ser considerado à parte, como um terceiro protagonista, ou vinculado ao homem
que ele possuía. Como personagem coletivo temos os presentes na sinagoga. Eles
são secundários, mas não são apenas figurantes, pois testemunham o evento do
ensino e do poder de Jesus e fazem a ligação entre ele e o ensino dos escribas que
completam com a afirmação de uma autoridade distinta deles. Portanto, eles são
um carimbo autenticatório do significado do evento narrado. A nota do Narrador
não deixa claro se é a mesma multidão que divulgará a fama de Jesus por toda a
Galileia. Pode se tratar de uma prolepse, uma antecipação de uma ação anônima
que aconteceu depois do evento e como ampliação do testemunho da multidão. Algo
como: e todo mundo ficou sabendo do que aconteceu naquele dia na sinagoga. A
referência aos escribas, feita pela multidão, os torna simples figurantes da
narrativa, porém, servem de reforço para o efeito do ensino e do poder de Jesus.
Em um esquema actancial, Jesus é mostrado como inteiramente dono das
ações da história, portanto seu sujeito, e a multidão e o possesso são os objetos de
suas ações. Pelos relatos anteriores, sabe-se que o Pai e o Espírito estão por trás
das ações de Jesus, como destinadores, e Jesus que atua é o destinatário. O
espírito impuro serve como o oponente a Jesus, pois investe contra ele, enquanto
que a multidão atua como coadjuvante, uma vez que coopera com Jesus em sua
admiração e testemunho.
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Afora suas ações e reações, os personagens são construídos sem nenhuma
indicação peculiar, sendo totalmente despidos de qualquer traço de personalidade.
A complexidade está ligada às suas ações: Jesus ensina e repreende o espírito
imundo; o espírito imundo se dirige a Jesus violentamente, aos gritos e depois
desaparece; o possesso deixa de ser possesso; a multidão reage com admiração
perante o ensino e o exorcismo de Jesus. A história, assim, é uma mescla entre o
que mostra e o que diz. Acerca de Jesus e do possesso, ela mostra somente. Quanto
ao espírito impuro ela mostra e diz. Acerca da multidão, essa apenas diz de sua
admiração e surpresa, nada representando para além disso. Ao fim da ação de
Jesus, simplesmente todos desaparecem e Jesus prossegue para a próxima ação
em outro lugar.
O ponto de vista do Narrador ou a focalização é oferecida em dois
comentários dos presentes na sinagoga, nos quais é ressaltada a autoridade do
ensino de Jesus, confirmada pela derrota do espírito imundo. Jesus é portador de
um ensino com autoridade, por isso é novo? A focalização é totalmente externa,
como uma câmera que filma toda a história. Ela é realizada dentro de um prédio e
somente os presentes saberiam o que aconteceu ali dentro. No entanto, o leitor
observa à distância todo o acontecimento. O leitor sabe até mais porque tem acesso
aos relatos anteriores que o preparam para o acontecimento que segue. Contudo,
ele ignora a atividade dos escribas e o modo como a fama de Jesus se divulgou
posteriormente por toda a região da Galileia, até mesmo o que representa toda essa
região e, então, a importância desse fato. A história conduz à empatia com a
admiração dos presentes na sinagoga e o Narrador leva o leitor à mesma posição
junto com a multidão. Talvez, até dirigindo a sua ação consequente de falar
também do acontecimento admirável. As falas não são narradas pelo Narrador, mas
inseridas na história na forma de diálogos diretos, o que acentua o tom dramático
da história. Desse modo, o Narrador se coloca como totalmente externo a todo o
acontecimento.
1:29-31
A história menciona alguns personagens individuais: Jesus, a sogra de
Simão, Tiago e João, Simão e André. Também indica um personagem coletivo que
faz o papel de cordão: os que falaram dela a Jesus, a menos que se refira a algum
personagem individual já mencionado, os discípulos de Jesus. Jesus é o
protagonista, enquanto que a sogra de Pedro e esses últimos são personagens
secundários, enquanto que os discípulos apenas figuram na história. Nada é
acrescentado sobre nenhum dos personagens, sendo todos planos, exceto a
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informação acerca de Simão: ele possuía uma sogra que morava em Cafarnaum,
logo Pedro era casado e tinha uma família.
Do ponto de vista actancial, Jesus é o sujeito possuidor do poder que a sogra
de Simão, o objeto, carece para ser curada. Pelo relato anterior, entende-se que
Deus é o destinador desse poder do qual Jesus é o destinatário. Os que falam da
mulher a Jesus são os adjuvantes e não se observa algum personagem que se
oponha à cura da mulher na história. A história não indica que Jesus foi à casa da
sogra de Simão no intuito de curá-la, sendo uma ação inteiramente circunstancial.
Também, o Narrador não afirma que os que falaram dela a Jesus o fizeram no
interesse de que ele a curasse, sendo que a iniciativa de Jesus é totalmente pessoal.
O Narrador aponta para um traço fundamental da mulher após a cura: a iniciativa
em servir aos visitantes.
De novo, Jesus é mostrado por suas ações e menos por sua descrição. Ele é
construído como alguém que ouve sobre a mulher doente, se aproxima dela e
ajuda-a a se levantar segurando pela mão - um ato de força que levanta a mulher
da cama. A sogra de Simão é construída como possuída de uma febre – um calor
muito forte que a fez deitar-se, impossibilitada de fazer qualquer coisa. O estímulo
de Jesus faz a febre passar e acontece uma mudança em sua indisposição: ela
passa a trabalhar na casa. Quanto aos discípulos, ainda que figurantes na história,
o Narrador os reinsere de novo com Jesus após o evento da sinagoga de Cafarnaum,
onde a presença deles é omitida. Eles são a companhia de Jesus. E, possivelmente,
havia mais pessoas na casa além de Jesus, seus discípulos e a sogra de Pedro, mas
nada é dito a respeito.
A história relata uma reunião familiar e totalmente ocasional, mas que
parece elaborada pelo Narrador sob medida para a manifestação do poder de Jesus.
Jesus não diz, todavia, uma palavra de cura, e a associação é direta entre seu gesto
de erguer e sustentar a mulher em pé e a febre deixa-la subitamente. Do ponto de
vista do Narrador, ele coloca o leitor dentro da família de Simão e essa interioridade
introduz certa empatia entre o leitor com a história. Ele é levado a simpatizar com a
febre de uma mulher idosa e com o interesse de Jesus em curá-la. Não há nenhum
diálogo, sendo que o Narrador prefere manter o leitor à distância, apenas
mostrando as falas. Que o Narrador deseja ir direto ao ponto, deixando detalhes de
lado, é afirmado continuamente por sua escolha no uso da expressão adverbial: E,
logo, que sugere a ideia de ir direto ao ponto, constante em todo esse primeiro bloco
narrativo. Dessa maneira, o leitor é conservado externo a todo o acontecimento. Do
ponto de vista do leitor, ele fica totalmente alheio aos detalhes do evento. As ações
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requerem maior conhecimento da situação social familiar para que se faça uma
leitura mais proveitosa da história. Muito fica por conta de que o leitor faça a
complementação intuitivamente desde sua própria experiência.
1:32-34
A história apresenta a Jesus, exclusivamente, como único personagem
individual, sendo todos os demais coletivos divididos em quatro grupos: os que
trazem os doentes e endemoninhados, e ambos os grupos. No momento da expulsão
dos demônios, esses assumem uma personalidade própria, pois querem falar e
Jesus os impede. Jesus é o protagonista e os que trazem os doentes e
endemoninhados, estes e os demônios, são secundários. Todos da cidade é
figurante, mas atua como testemunha do que Jesus faz.
No estudo actancial, Jesus é o sujeito que recebe todos os doentes e
endemoninhados e os cura. Estes, são o objeto da sua cura que o buscam para esse
fim. Eles são ajudados por outros que os trazem até o lugar onde Jesus está. Não
há oponentes à ação de Jesus ou à cura dos doentes e endemoninhados, exceto os
demônios que resistem a Jesus e são silenciados por ele. De novo, é preciso
retornar ao batismo de Jesus para identificar o destinador, que é Deus, e o
destinatário, que é Jesus, que recebe de Deus o poder/fazer as curas e expulsões
de demônios, bem como o saber/fazer o bem às pessoas. Não há nenhum traço
descritivo a mais para nenhum dos personagens. São todos simples e planos. Isso
se percebe na preferência do Narrador em usar o advérbio todos (todos os doentes e
endemoninhados / toda a cidade). E, também, no advérbio muitos (muitos doentes
/ muitos demônios), e no pronome pessoal genérico para os demônios eles (eles
falassem / eles sabiam).
O personagem principal, Jesus, é mais mostrado que contado. Ele é
construído como disponível: trouxeram-lhe e ele atendeu a muitos; poderoso: curou
muitos doentes e expulsou e silenciou muitos demônios. A descrição de Jesus leva
o Narrador a apresenta-lo como um grande herói que realiza um feito extraordinário
em favor da massa, o que leva o leitor à pena desta e à admiração e simpatia para
com o feito de Jesus.
Como no caso da cura da sogra de Pedro, o Narrador não aponta para
nenhum sentimento em Jesus: compaixão ou misericórdia. Ele apenas reage à
procura da massa disponibilizando seu poder de cura e expulsão de demônios. O
Narrador deixa uma intriga para o leitor quanto à proibição de Jesus a que os
demônios falem: pois sabiam quem ele era. Contudo, essa informação é dada
somente aos leitores, pois os que testemunharam a expulsão dos demônios e o
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silenciamento de Jesus não sabiam a razão pela qual ele fazia isso, talvez
associando como complemento da ação de expulsão. Então, Jesus é alguém mais
do que aquele feito dá a conhecer, mas o Narrador nada acrescenta ao leitor a
respeito da identidade oculta de Jesus. Fica a questão: o que os demônios sabiam
acerca de Jesus que a massa não sabia, que Jesus sabia que eles sabiam, mas que
não queria que a massa soubesse, mas que o Narrador faz questão que o leitor
saiba de tudo isso, ainda que não satisfaça a necessidade do leitor? É uma bela
estratégia narrativa. Ainda, curiosamente, o Narrador não destaca o efeito que o
feito de Jesus deve ter provocado na massa: a admiração e divulgação por toda a
parte. Depois, ele dá uma informação adicional quando aponta para o dia seguinte,
quando todos voltaram a procurar a Jesus (1:37). Por fim, o Narrador dá uma nota
curiosa. A indicação de que todos procuraram a Jesus e que muitos foram
atendidos por ele, mas não todos os que o procuraram coloca um limite à ação de
Jesus e leva o leitor a especular uma série de razões para que isso tenha
acontecido: falta de tempo, dificuldade de aproximação, preferência de Jesus? Se
assim foi, não foram esses que deixaram de ser atendidos que o procuraram no dia
seguinte? O Narrador omite qualquer diálogo ou fala, exceto a referência à fala dos
demônios que é silenciada por Jesus. O Narrador trabalha com uma informação
temporal que pode ser significativa mas requer do leitor um conhecimento
extrahistória: o fato da população procurar a Jesus após o pôr do sol, possível
referência ao fim da observância do Sábado, permitindo que se carregassem
doentes e endemoninhados até Jesus. O evento é totalmente externo ao leitor,
sendo ele apenas uma testemunha da história pela leitura.
5.
O Cenário
1:21-28
O Narrador fornece a informação de que era um sábado e do hábito dos
habitantes de Cafarnaum de ir à sinagoga nesse dia, ainda que não haja indicação
do período do dia, se manhã, tarde ou noite. Isso fica por conta do conhecimento
que o leitor tenha desse hábito observado entre os judeus ou sendo ele mesmo um
frequentador da reunião de sábado na sinagoga. A sinagoga tem mais importância
na narrativa do que a cidade de Cafarnaum. Ele não faz menção ao interior da
sinagoga em seus aspectos físicos, apenas cita uma das funções exercidas nela e
que Jesus estava praticando: ele ensinava. De fato, é mais do que isso: Jesus
expunha sua doutrina. Mas, fica oculto ao leitor o que Jesus ensinava, exceto pela
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referência aos presentes: Jesus ocupava um lugar que era dos escribas, os quais
também tinham sua doutrina. De novo, o leitor fica sem a informação acerca de
quem são os escribas e qual é sua doutrina. Assim, lhe escapa o impacto do
elemento comparativo feito pelo comentário maravilhado dos presentes: o ensino
com autoridade, de Jesus. Exceto pelo fato de que a comparação é feita entre o
ensino espontâneo de Jesus e o ensino a partir das cópias de textos dos escribas.
Ele pode apenas dar crédito ao testemunho deles. O Narrador descreve o evento de
modo factual, dando-lhe uma orientação que define como o leitor deve visualizá-lo e
interpretá-lo. A inserção da história da expulsão do demônio é curiosa porque
sugere que um ambiente como o da sinagoga abriga a presença de uma pessoa na
qual se abriga o espírito impuro. A pessoa é um lugar onde ele está que acrescenta
um drama à história aparentemente plácida de Jesus ensinando em um ambiente
de silêncio cheio de admiração. O espírito impuro interrompe essa ordem e afronta
o ensino de Jesus. O impuro tanto pode se referir ao lugar onde ele está: a sinagoga
é um lugar santo para Deus, e um espírito não limpo ou purificado não poderia
estar ali, ou também à natureza da impureza: a imoralidade, ou ainda à impureza
do próprio homem: ele não estava adaptado ao lugar devido a não praticar os
rituais purificadores requeridos. A referência do Narrador à Galileia, e não a
Cafarnaum, que seria o impacto mais imediato, faz com que se veja ambas as
histórias como produzindo uma repercussão para além dos limites da cidade,
inserindo Jesus imediatamente no ambiente político e geográfico da região na qual
Cafarnaum faz parte.
1:29-31
A construção do cenário pelo Narrador permanece arquitetônico, pois Jesus
sai da sinagoga e entra na casa de Simão e André, sem nenhuma referência
temporal. Ele economiza na descrição do ambiente físico, mencionando apenas uma
cama onde estava deitada a sogra de Simão. O evento caracteristicamente factual
tende a valorizar o serviço da mulher que pode ser a função de preparar a
alimentação em um lar.
1:32-34
Acontece o inverso nesta história, quanto à anterior, pois há menção pela
primeira vez a um tempo: a noite, imediatamente após o pôr do Sol. O Narrador
constrói o cenário com a chegada até a casa de Simão de gente que traz pessoas
possuídas por todo tipo de males e por demônios, que ficou do lado de fora, à porta
da casa. Não há descrição física do ambiente mas, certamente, o Narrador aponta
para o lugar escuro e sua relação com o ambiente tomado pelos doentes,
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endemoninhados e os apelos dos que os traziam. A ação de Jesus, de caráter
totalmente factual, indica que o povo recebia o benefício da ação de Jesus. A
construção do cenário como um povo totalmente tomado por doenças e ações
demoníacas e de Jesus como o libertador pela sua ação de curar e expulsar remete
o leitor a um tempo que engloba um grande período de trevas, acentuado pelo fato
do evento ter acontecido durante a noite, a escuridão, e ressalta a Jesus como
aquele que rompe esse tempo trazendo em sua presença a cura e expulsão das
trevas. Há uma reconstrução monumental e simbólica do cenário.
6.
O Tempo Narrativo
1:21-28
A história é narrada de modo a combinar o tempo e o evento ocorrido. As
cenas sucedem umas às outras sem pausas ou interrupções, exceção aos dois
comentários que os presentes fazem e suspende o tempo. No primeiro (22), o
Narrador descreve a sua reação e explica o porquê (“...e todos se maravilharam”).
No segundo (27), o Narrador retoma a mesma reação dos presentes (“...e todos se
maravilharam”) e de novo explica o porquê. Ambos têm a ver com a didaquê de
Jesus. Ao final, o Narrador acrescenta um sumário descrevendo como Jesus ficou
famoso por toda a Galileia, vinculada ao evento ocorrido. Serve também como uma
prolepse, pois o Narrador antecipa para o leitor a repercussão futura do evento e a
seguir retorna ao tempo narrativo. Desde que o evento não é contado uma outra
vez, ele assume o caráter temporal de uma narrativa única ou singular.
1:29-31
A narrativa ocorre de modo a sugerir uma concordância entre o evento e o
tempo da sua realização. Há um sumário que acelera a narrativa e determina o seu
fim relativo ao período de serviço da mulher curada. O Narrador se utiliza de uma
elipse ao não mencionar o que ocorreu entre a cura da mulher e o período da noite,
quando Jesus realiza novos atos milagrosos.
1:32-34
A narrativa se move ao ritmo temporal de uma ordem normal do
acontecimento. Depois, ela se acelera na forma de um sumário, no qual em um
tempo que não se sabe quanto foi, Jesus cura os portadores de males e os
possuídos por demônios. De novo, o Narrador trabalho com uma elipse, a seguir,
pois não menciona o que acontece depois desse evento, indo direto para a
madrugada quando Jesus se levanta para orar (35).
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7.
A Voz Narrativa
1:21-28
Há três intervenções explícitas do Narrador que se posiciona externamente
ao evento, junto com o leitor, visando induzi-lo a se posicionar favoravelmente a
Jesus na história. Nas duas primeiras, seus comentários e explicações acerca da
reação dos presentes na sinagoga, que ficam maravilhados com a doutrina e com a
autoridade de Jesus (22,27) e, depois, seu sumário quanto à fama de Jesus que se
espalhou pela região da Galileia (28). Ao colocar o diálogo entre Jesus e o espírito
impuro, o Narrador insere o leitor diretamente na história.
1:29-31
Sutilmente, nessa segunda história, o Narrador acrescenta ao que já
informou quanto ao poder de Jesus para ensinar e expulsar o espírito impuro, o
seu poder de curar. Desse modo, sub-repticiamente, ele adiciona essa informação
ao leitor, fazendo aumentar a sua admiração por Jesus.
1:32-34
O impacto sobre o leitor atinge seu clímax quando o Narrador acrescenta a
terceira narrativa, na qual Jesus é mostrado curando todos os males das pessoas e
expulsando os demônios que as possuem. Ele amplia para a massa aquilo que
Jesus já fizera por dois indivíduos. Ao mesmo tempo, seu comentário de que todos
procuraram a Jesus, mas apenas muitos foram curados por ele, aponta como uma
advertência para o leitor.
8.
A construção do leitor pela história
Estamos iniciando a tarefa da interpretação das histórias. O primeiro ponto é
observar que tipo de leitor é assumido por elas. A partir de agora, suporemos que
as três histórias de Marcos 1:21-34 foram de tal modo entrelaçadas pelo Autor
implícito a ponto de conformar uma única narrativa total, uma macronarrativa.
Nesta, o Autor constrói um leitor-modelo ou leitor-ideal, aquele capacitado ou
adequado a fazer a leitura das histórias e obter a compreensão daquilo que elas
comunicam a ele. Identificado o leitor-modelo, o leitor atual deve se conformar a ele,
de modo a fazer o mesmo percurso narrativo que ele fez e chegar às mesmas
conclusões que o Autor implícito gostaria que ele tivesse chegado. Verificaremos, a
seguir, que balizas são oferecidas ao leitor-modelo.
Temporalmente, há uma sequência narrativa que insere uma história dentro
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da outra até que se forme uma totalidade, ou uma história completa, inteira. Ela é
marcada ou sinalizada tanto pelo uso do conectivo E, logo, quanto pela repetição do
movimento de Jesus (ele entra e sai de vários lugares).
Contudo, o uso mais frequente é a repetição das mesmas ações de maneira
crescente até atingir um clímax. Pela repetição das mesmas ações de forma
crescente, o Autor consegue realizar um impacto convincente e ao mesmo tempo
exortativo perante o leitor. Igualmente, pela repetição da mesma proibição de Jesus
aos demônios para que não dissessem sua verdadeira identidade, ele a reafirma
perante o leitor: Jesus nazareno é o Santo de Deus que veio fazer o juízo contra os
males e os demônios que escravizam as pessoas. Não fica claro como e o quanto
essa ação desafiadora de Jesus é resposta a uma condição presente das pessoas e
que as põe em espera de um tempo libertador de Deus, um tempo do juízo final.
As três histórias, e as mesmas em conjunto, fluem naturalmente, não
deixando espaços brancos ou gaps ou não-ditos que requeiram do leitor algum
exercício explicativo. Entretanto, ficam duas questões por responder. A primeira é
acerca do ensino de Jesus na sinagoga. Sabe-se, apenas, que os presentes ficam
maravilhados com ele quando o comparam com o ensino costumeiramente recebido
dos escribas. É importante dizer que o verbo ensinar e ensino é mais do que o ato,
mas refere-se ao seu conteúdo. Há algo elaborado por Jesus que o leitor fica
totalmente alheio ao que se trata e gostaria muito de ter compreendido. Que o Autor
tenha omitido essa informação, talvez se justifique no fato de que ele o descreve
abertamente mais adiante, e o tenha reservado para esse momento, na polêmica
direta entre Jesus e os escribas dos fariseus, nos capítulos 2 e 3. A intenção do
Autor na omissão ao conteúdo do ensino e mesmo a ausência de oposição nas três
histórias introdutórias tem a ver com a surpresa com que todos são apanhados
pelas ações de Jesus, sendo necessário um tempo para que uma contradição
comece a ser articulada, o que acontecerá mais tarde. A segunda é a respeito do
conhecimento que o espírito impuro e os demônios têm de Jesus: o nazareno ou
nazoreu e o Santo de Deus. Visto que o Narrador não é claro quanto à origem dessa
identidade para Jesus, e como esse enfrentamento se limita a essas histórias
iniciais, o leitor-modelo fica sem saber como resolver a questão.
Sendo as primeiras ações de Jesus, elas servem de introdução ao
conhecimento do personagem que é o principal da história do evangelho. Elas
servem de molde para o que o leitor deverá esperar para o restante da história.
Então, essa é a função dessas primeiras histórias e da história como um todo:
Fornecer uma identidade inicial para Jesus de modo que oriente o leitor na
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continuidade do que ele vai contar, alimentando a sua capacidade de previsão.
Talvez, então, o Autor irá mexer com a previsão do leitor-modelo, visto que o
sucesso inicial termina com a crucificação de Jesus, exatamente o oposto do
antecipado pelo leitor à vista das primeiras histórias. Essa é a intriga do evangelho,
esse é o segredo que é desvendado. Ainda, as duas primeiras histórias são
condicionais para a previsão quanto ao que acontecerá na terceira. Para o leitormodelo há duas hipóteses: Jesus enfrentou um espírito impuro, na sinagoga, e
curou a febre da sogra de Simão, em sua casa, seria ele capaz de enfrentar um
número maior de demônios e ainda curar todo e qualquer mal? Se ele foi capaz de
fazer em casos isolados, por que não faria em casos coletivos? A terceira história
satisfaz inteiramente a expectativa do leitor e é confirmada pelo sumário a seguir,
que informa que Jesus foi por toda a Galileia expulsando os demônios.
Enfim, o Autor implícito predispõe o leitor-modelo para uma atitude de
admiração e respeito pelo personagem que é Jesus, até de temor. Ele o insere junto
com a multidão na sinagoga, quando afirma duas vezes que ela fica maravilhada. E
estimula o leitor ao dizer que, provavelmente esse espanto levou a multidão a falar
de Jesus em toda a região da Galileia, ficando ele famoso antes mesmo que
estivesse fisicamente presente e atuante nela. As duas histórias subsequentes
somente reforçam esse impacto no leitor, levando-o a imaginar Jesus como alguém
superpoderoso, um tipo de herói libertador do povo, pois o beneficia em suas
necessidades insuperáveis, pois, afinal, nada pode ser feito contra males e
demônios. Desse modo, o Autor também ressalta no leitor o temor quanto à
condição da época, na qual doenças e demônios povoam o cotidiano da massa,
deixando-a à mercê de suas ações, levando à sensação da escuridão e do medo e do
abandono, até mesmo de Deus. O Autor não coloca assim, mas a lógica
antecipadora das histórias levará a massa a pensar que Jesus é o Libertador de
Deus dos últimos tempos, tão ansiosamente esperado: o Messias. As dores e
aflições da massa conduzem o leitor à identificação própria com ela e também com
suas angústias e esperanças.
Contudo, é evidente que as histórias requerem do leitor um conhecimento
mais amplo e extratextual dependendo do quanto ele se encontra distante delas,
espacial e temporalmente. Esse conhecimento enciclopédico requer do leitor-modelo
informação quanto a: geografia da região da Galileia, em especial, da cidade de
Cafarnaum; a prática religiosa e cultural da guarda do sábado; o costume religioso
de frequentar a sinagoga e seu lugar como centro de ensino ou de doutrina dos
escribas; o elemento mais constrangedor para o leitor moderno: o espírito impuro e
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os demônios que possuem as pessoas e as controlam terrivelmente e o
enfrentamento que Jesus faz deles com autoridade completa e única da fala; termos
atribuídos a Jesus como: nazareno ou nazoreu e Santo de Deus. Os dois títulos, um
indicando a sua identificação humana e o outro a sua identificação divina. De
algum modo, o Autor supõe que o leitor-modelo seja capaz de construir hipóteses
quanto à fonte desse conhecimento. Seja devido acompanhamento que os demônios
fizeram da vida de Jesus até aquele momento. Seja remetendo o leitor-modelo ao
início de tudo, quando Jesus foi batizado e, a seguir, tentado por Satanás no
deserto. Este sabia que ele era o filho de Deus e o tentou com base nesse raciocínio.
Os demônios sujeitos a Satanás obtiveram dele ou tinham acesso, tal como ele, a
essa identificação de Jesus e a exploraram no enfrentamento dele. Isto deixa a
história subsequente mais intrigante, pois leva o leitor-modelo a imaginar como
esse enfrentamento continuará e quem vencerá no final.
As três histórias, e a história em seu conjunto, são formatadas por um pacto
de leitura firmado entre o Autor e o seu leitor-modelo: “Conjunto de convenções
pelas quais o narrador programa a recepção do texto pelo leitor e circunscreve o ato
de leitura” (p. 154).
Esse se forma nas histórias anteriores a estas. Ele é
estabelecido desde o prólogo: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de
Deus” (1:1). É a essa história que o Narrador dará acesso ao leitor na medida em
que efetua a sua leitura. Por princípio, o Narrador se refere ao começo do evangelho
quanto à sua origem, as histórias iniciais, como tudo começou, uma espécie de:
“Era uma vez...” Evangelho é equiparado, portanto, à história de Jesus. A
identidade primeira de Jesus é confirmada pelas histórias da predição de João
Batista (1:7,8), pelo batismo (1:9-11), pela tentação (1:12,13) e pelo resumo da
pregação de Jesus: o reinado de Deus é chegado (1:15). Então, o leitor-modelo já lê
as três histórias preparado por essas histórias fundantes. Jesus Cristo, o Filho de
Deus e o reinado de Deus oferecem a moldura na qual se fará a leitura das histórias
do evangelho.
Assim, nenhuma das histórias é difícil ou impossível à leitura do leitormodelo, independente do conhecimento enciclopédico que ele possua. Claro que
este o aproximaria do Autor implícito e das condições espaciais e temporais,
culturais, das mesmas. Todavia, a introdução fornecida pelo Autor com as
primeiras histórias é suficiente para que o leitor-modelo tenha condições de se
orientar nas narrativas seguintes e na história do evangelho como um todo.
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9.
A reconstrução da história pelo leitor
Conforme a primeira orientação, o leitor das histórias deve se amoldar ao
leitor-modelo pressuposto pelo Autor implícito. Ele deve se deixar construir pelas
histórias desde o pacto de leitura com ele firmado. Seguindo a tarefa da
interpretação da(s) história(s), temos que investigar a maneira pela qual o leitor
toma posse delas em função da sua própria narrativa, individual e coletiva. Como
ele, o leitor, lê as histórias em sua própria vida? De que modo o leitor atribui
sentido à história lida? Que significados o leitor encontra na história lida e em que
medida esses dependem de sua própria história?
De início, há um processo de compreensão das histórias pelo leitor2. Esse
processo já está em andamento desde que o leitor começou a ler a história.
Imediata e intuitivamente, o leitor começa a buscar em seu depósito de informações
e experiências de vida, enfim, em suas próprias histórias, recursos e estratégias
para a compreensão da história que lê. A partir do mapeamento desses recursos ele
promove uma estratégia de antecipação e correção da leitura que está a fazer. Ele
conecta pontos de contato ativados pela história com suas próprias histórias. Ele
também percebe discrepâncias, lacunas e ignorância quanto aos elementos
desconectados entre a história que lê e as suas mesmas. Talvez precise ir além da
história a fim de aumentar os pontos de compreensão e diminuir os de
incompreensão, entrar no mundo do Autor e do Texto para discernir para si mesmo
a língua e linguagem, o gênero e o mundo da história que lê.
Depois, acontece um processo de recepção das histórias pelo leitor. Ele
reconhece as ideias, os valores, as convicções, as propostas, os apelos emanados da
história. Nesse momento, a subjetividade do leitor não corre livre e desenfreada.
Desde o pacto de leitura firmado com o Autor implícito e a identificação com o
leitor-modelo por ele construído, o leitor constrói para si mesmo o entendimento da
história.
Em grande medida, isso depende do quanto o leitor interage com a história
lida, isto é, dialoga com ela. Supondo a metáfora do diálogo, para que ele aconteça é
necessário que autor-texto-leitor coincidam nos pontos que estão além da superfície
da história, sendo ela apenas a ponta do iceberg (o explícito) de uma imensa massa
de vivências subjacentes a ela (o implícito)3. De algum modo, então, o mundo ou
contexto da história e o mundo ou contexto do leitor da história devem coincidir
2 KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender. Os sentidos do texto. São
Paulo: Contexto, 2006.
3 KOCH, ELIAS, 2006, p. 59.
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para que haja o seu entendimento, tal qual se dá em uma conversa. A recepção da
história, portanto, é tudo o que leitor mobiliza para determinar para si do que ela se
trata, do seu sentido, do que ela significa para ele.
Nessa tarefa, o leitor depende ainda do que pode reconhecer ou não de
outras histórias presentes na história que examina. Chama-se esse processo de:
intertextualidade. As histórias dos evangelhos estão prenhes das histórias da Bíblia
hebraica, estando nelas presentes ou simplesmente pressupostas. Elas tanto
podem ser explicitamente indicadas ou implicitamente sugeridas. Cabe ao leitor
desde a memória constituída saber-fazer a devida correlação e a atribuição do papel
e dos novos sentidos que elas assumem nas histórias dos evangelhos.
Também é preciso que o leitor reconheça o suficiente o uso da história em
um discurso específico, isto é, de que modo: o conteúdo, o propósito, os recursos
empregados e o modo de compor a história se combinam para que ela não apenas
venha a existir, mas para que sirva a algum fim no meio onde existe. Assim, as
histórias dos evangelhos são um gênero que serve a um discurso: o testemunho de
Jesus e, por isso, mesmo são testemunhas de Jesus. Elas são sobreviventes de um
tempo em que Jesus atuou e reunidas servem à preservação e divulgação da sua
memória.
Por fim, há o efeito das histórias na vida do leitor. As histórias são histórias
de Jesus, testemunham a seu respeito e tem um impacto na vida do leitor, o seu
testemunho contamina ou compromete o leitor. Elas produzem admiração ou
espanto no leitor em função do que Jesus faz e pela maneira como as pessoas nas
histórias são beneficiadas por ele. Elas intrigam o leitor a partir do questionamento
acerca do porquê e do como Jesus ser assim e poder fazer as coisas que fez. Elas
geram expectativa no leitor, pois Jesus parece ser mais do que revela, em especial
nas declarações dos demônios por ele silenciadas. Jesus não é apenas uma pessoa,
mas uma pessoa de certo modo de acordo com o testemunho das histórias.
O testemunho das histórias quanto a Jesus pode incutir no leitor um
respeito, uma atenção, uma veneração particular por ele. Também pode gerar o
esforço por conhecer melhor as origens de Jesus, um interesse em entender melhor
de onde ele veio e porque faz as coisas que faz. Ainda, pode começar um processo
cognitivo de compreensão de Jesus do modo como ele é, e que pode colocar o leitor
no caminho da fé nele, Jesus começa a se tornar significativo para o leitor. E, por
fim, o leitor prossegue na leitura do evangelho em busca de novas histórias que
ampliem os três esforços anteriores.
O testemunho das histórias sobre Jesus pode levar além da admiração pelas
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suas ações para vê-lo como um modelo de proximidade, disponibilidade e cuidado
junto àqueles que sofrem de males e opressões de toda sorte no mundo do leitor.
Também, pode gerar a busca por maior conhecimento de Jesus que o coloque no
caminho da fé, isto é, de uma identificação e adesão pessoal a ele que resulte, por
sua vez, em um pacto transformador de sua vida no mundo, moldando-a e às suas
ações de modo a corresponder cada vez mais semelhantemente a ele. Ele entrou no
caminho do seguimento de Jesus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O uso dos instrumentos dispostos pela ciência da Narratologia, como todo
ferramental, serve para enquadrar quaisquer outras histórias dos evangelhos, e,
portanto, podem ser aplicados a todas as demais histórias. O bom uso deles, por
melhor que favoreçam a análise das histórias, não deve limitar o seu estudioso a
seu uso instrumental.
Como já foi dito, a análise das histórias dos evangelhos tende a valorizá-las
enquanto portadoras de um discurso próprio que testemunha da pessoa e da
missão de Jesus proposta no Evangelho. Autossuficientes como são, elas favorecem
a identificação imediata do seu leitor desde a sua própria condição de vida, isto é,
elas ajudam a reconstruir a história do leitor a partir da recuperação de sua
memória de vida ativada pela leitura das histórias dos Evangelhos.
REFERÊNCIAS
BAL, Mieke. Narratology. Introduction to the Theory of Narrative. Toronto:
Toronto University Press, 1997.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender. Os sentidos do
texto. São Paulo: Contexto, 2006.
MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação
à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.
POWELL, Mark Allan. What is Narrative Criticism? Minneapolis: Fortress Press,
1990.
PRINCE, Gerald. Dictionary of Narratology. Nebraska: University of Nebraska
Press, 1989.
REUTER, Yves. A Análise da Narrativa. O texto, a ficção e a narração. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2002.
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