LENDO AS HISTÓRIAS DOS EVANGELHOS: - FNB Online
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81 LENDO AS HISTÓRIAS DOS EVANGELHOS: um exemplo de Marcos 1:21-34. Sidney de Moraes Sanches* Resumo Esse estudo assume que os evangelhos são uma mescla de narrativas e discursos. A proposta desse estudo é efetuar a leitura das histórias dos evangelhos, tomando como exemplo: Marcos 1:21-34. O objetivo é demonstrar a possibilidade, a necessidade e os resultados quando se toma em consideração as histórias do Evangelho como narrativas completas em si mesmas e portadoras de um discurso autônomo em relação ao próprio Evangelho. Para tal, foi utilizado o método literário da Análise Narrativa, que considera o potencial discursivo da narrativa em sua própria constituição. Presente nos estudos literários em geral desde a segunda metade do século passado, sob a denominação geral de Narratologia, a Análise Narrativa veio a se constituir em instrumento precioso para aqueles que desejam uma abordagem a mais próxima do texto narrativo possível e no interesse de sua capacidade discursiva. A conclusão é que, ainda que a Análise Narrativa não tenha adquirido uma posição relevante nos estudos bíblicos na América Latina até o momento, ela tem muito a oferecer à leitura popular das histórias do Evangelho, em particular, e de toda a Bíblia na sua totalidade. Palavras-chave: popular. Narrativa; Evangelho; Análise Narrativa; Discurso; Leitura Abstract This study assume that the gospels are a mix of stories and speeches. Their proposal is to accomplish the reading of the stories of the gospels taking for example Mark 1:21-34. The aim is to demonstrate the possibility, necessity and results this stories like complete themselves and loaders of an autonomous speech about gospel itself. For it, was made the literary method of narrative criticism, that considers the discursive potential of stories in your own constitution. Present in the literary studies since the second half of the past century, by name Narratology, Narrative Analysis came to establish a precious instrument to for whom desires an approaching that most near for to narrative text and your discursive capacity. The conclusion is that Narrative Analysis, despite that not get a relevant position in the biblical studies in Latin America at this moment, it have much to offer to popular Reading of the stories of the gospels and the Bible for all. Keywords: Story; Gospel; Narrative Criticism; Discourse; Popular Reading. * Doutor em Teologia - FAJE (2006). Professor da Faculdade Nazarena do Brasil - Campinas (SP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1611754323845332. E-mail: [email protected] SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 82 INTRODUÇÃO Qualquer leitor da Bíblia se impressiona com a quantidade de histórias que ela contém. De fato, a Bíblia é uma grande história, a história de Deus e sua criação, nela incluída todos os seres vivos, inclusive a humanidade. A opção pelo formato narrativo nos textos bíblicos é de tal modo explícito que deve-se atribui-lo ao gosto das pessoas pelas histórias, desde aqueles tempos antigos até a nossa contemporaneidade. As histórias bíblicas devem ser estudadas em si e por si mesmas, autonomamente, enquanto constituídas de uma forma e de um discurso próprios desse gênero literário, e não pertencente a nenhum outro. Essa proposta de estudos vige nos estudos literários desde a segunda metade do século passado e seus resultados foram reunidos sob a ciência da Narratologia. Esse artigo não pretende expor essa ciência. E, sim, oferecer um exemplo de leitura de algumas histórias do evangelho de Marcos (1:21-34), a fim de demonstrar a possibilidade, a necessidade e os resultados positivos quando se toma em consideração as histórias dos evangelhos como narrativas completas em si mesmas e portadoras de um discurso autônomo em relação ao próprio Evangelho. Tentaremos seguir o modelo de Análise Narrativa proposto por Daniel Marguerat e testar a sua aplicação nas histórias do evangelho de Marcos citadas acima1. Recomenda-se que o leitor tenha o texto em mãos e o leia na medida em que acompanha o desenvolvimento da Análise. Sugere-se que ele experimente o mesmo procedimento quanto a outra ou outras histórias bíblicas. Somente a soma do exercício permitirá perceber o quanto a Análise Narrativa tem a oferecer à leitura popular das histórias do Evangelho, em particular, e de toda a Bíblia na sua totalidade, na América Latina e, em especial, no Brasil. 1. Primeira abordagem O Narrador conta sobre a história do “evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus”. Ela começou pela atividade batizadora de João Batista (1:7), o batismo de Jesus por João (1:9) seguido da tentação de Jesus por Satanás por 40 dias (1:15). O Narrador, que se apresenta totalmente fora dos eventos, mas totalmente onisciente deles, interfere diretamente na história por meio de: referências ao texto 1 MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 83 escriturístico (1:2,3); descrição da mensagem de João (1:4); a reação das pessoas (1:5); a descrição de suas roupas (1:6) e de sua mensagem (1:7,8). Também, no batismo de Jesus, o Narrador interfere, por meio de: indicação do lugar de onde Jesus veio (1:9); inserção de fenômenos extraordinários no seu batismo (1:10,11). Na tentação de Jesus, o Narrador insere a ação do Espírito (1:12) e de Satanás, além da descrição do lugar deserto onde Jesus estava (1:13). A história muda com a prisão de João Batista. Foi quando Jesus começou a pregar (1:14). Nesse tempo, Jesus chamou os primeiros discípulos (1:16-20). O Narrador insere o conteúdo da pregação de Jesus e dá detalhes do chamado de Jesus aos discípulos e a sua reação. Conforme o Narrador, a atividade de Jesus não se modifica, pois está sempre “proclamando” e “andando”, uma atividade sem limitação cronológica. É nela que ele encontra os pescadores, que respondem imediata e definitivamente a ele, dando-se um rompimento no seu tempo: “No mesmo instante”; “logo os chamou e eles o seguiram”. Outra mudança na história acontece quando Jesus entra em Cafarnaum, e esse será uma ação repetida em outros momentos, que demarca uma série de eventos relacionados entre si (1:21; 2:1; 3:1). Isso é mais marcante, ainda, pois, até então, o Narrador reuniu histórias sem nenhuma relação temporal entre elas. Agora, ele começa a agrupar essas histórias ao redor de uma ação ordenada de Jesus. 2. Delimitação O Narrador não menciona quando Jesus chegou a Cafarnaum, mas fica a impressão de certo tempo que passou até a chegada do sábado (1:21). Ele descreve a ação de Jesus através de um contínuo movimento espacial: Jesus entra e sai da sinagoga (1:21 e 29); ele entra na casa de Simão e André (1:29); ele sai da casa de Simão e André (1:34). Esse entra-e-sai é combinado com a passagem do dia: a sinagoga pela manhã; a casa de Simão e André pela tarde; a saída da casa de André e Simão. O personagem principal é Jesus, e, desde o relacionamento com ele, outros atores aparecem. Em Cafarnaum entram Jesus e seus novos discípulos. Na sinagoga, estão Jesus e seus frequentadores, com ênfase a um homem. Na casa de Simão e André, são nomeados os quatro discípulos, e ênfase é dada à sogra de Pedro. Fora da casa de Simão e André estão todo o povo da cidade, com destaque para todos os doentes e endemoninhados. A narrativa pressupõe a entrada de Jesus na casa de Simão e André e sua saída de madrugada para a oração (1:35) e SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 84 para a viagem por toda a Galileia (1:39). A ação de Jesus é em benefício ou em favor das pessoas que aparecem com necessidades específicas: os frequentadores da sinagoga para serem ensinados; o homem possesso de um espírito impuro para ser libertado; a sogra de Pedro com febre para ser restaurada; os muitos doentes de diversas enfermidades e demônios para serem curados. Suas ações são inteiramente bem sucedidas, e todos os que dele se aproximaram tiveram suas necessidades atendidas. 3. O enredo São três micronarrativas ligadas umas às outras pela referência ao mesmo tempo (um dia) e ao mesmo lugar (Cafarnaum) e à ação de um único personagem: Jesus. São elas: 1:21-28 – o ensino e o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum (a mais extensa) 1:29-31 – a cura da sogra de Pedro 1:32-34 – a cura de muitos doentes e a expulsão de muitos demônios Cada micronarrativa segue um padrão de intriga: Narrativa Situação Nó inicial Ação Desenlace transformadora Situação final 1:21-28 21,22 23,24 25 26 27 1:29-31 29 30 31a 31b 31c 1:32-34 32a 32b,33 34 - - Reunidas, elas formam uma intriga unificante (macronarrativa): um dia de Jesus em Cafarnaum. Trata-se de um complexo narrativo sequencialmente construído que possui a sua própria intriga, a qual engloba e ultrapassa a intriga das unidades menores. A integração das micronarrativas nesse complexo global demonstra o percurso da leitura que o Narrador sugere a seu leitor. Neste caso, a intriga tem caráter revelatório, pois deseja apresentar quem é Jesus, aquele que faz uma série de curas no dia de sábado, ainda que apresente a resistência que Jesus oferece à sua publicidade. Jesus aparece como alguém dotado de um ensino diferenciado e de um poder extraordinário que disponibiliza ambos às multidões. A fonte de ambos está nos relatos anteriores: o batismo, com a revelação do Pai e a descida do Espírito explicam o poder e a missão; a vitória sobre a tentação de Satanás explica todas as demais vitórias no enfrentamento contra os demônios; a retomada mais ampla da pregação de João Batista e o chamamento dos discípulos SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 85 explica a direção que Jesus mesmo imprime aos eventos antecedentes. Tudo isso reunido move Jesus a Cafarnaum e para as ações subsequentes. É claro que isso está, provavelmente, oculto dos presentes na sinagoga de Cafarnaum, mas é de conhecimento pleno dos demônios via o enfrentamento anterior com Satanás. O que soa curioso em toda a macronarrativa é o impedimento de Jesus a que eles falem e o denunciem. Jesus quer o silêncio quanto às fontes da sua missão e do seu poder. Por isso, a manutenção da admiração da multidão: O que é isto? Para facilitar a abordagem às três narrativas episódicas, preferimos oferecer um quadro sinótico ou uma visão de conjunto de todas elas. Então, acompanhe-o abaixo. 4. Os Personagens 1:21-28 Esse primeiro momento se trata de um inventário dos personagens: quem são eles, como aparecem na história e qual a relação estabelecida entre eles. A história tem a Jesus e o homem possesso como protagonistas, atuando individualmente. Claro, há uma dificuldade em encaixar o espírito impuro, se deve ser considerado à parte, como um terceiro protagonista, ou vinculado ao homem que ele possuía. Como personagem coletivo temos os presentes na sinagoga. Eles são secundários, mas não são apenas figurantes, pois testemunham o evento do ensino e do poder de Jesus e fazem a ligação entre ele e o ensino dos escribas que completam com a afirmação de uma autoridade distinta deles. Portanto, eles são um carimbo autenticatório do significado do evento narrado. A nota do Narrador não deixa claro se é a mesma multidão que divulgará a fama de Jesus por toda a Galileia. Pode se tratar de uma prolepse, uma antecipação de uma ação anônima que aconteceu depois do evento e como ampliação do testemunho da multidão. Algo como: e todo mundo ficou sabendo do que aconteceu naquele dia na sinagoga. A referência aos escribas, feita pela multidão, os torna simples figurantes da narrativa, porém, servem de reforço para o efeito do ensino e do poder de Jesus. Em um esquema actancial, Jesus é mostrado como inteiramente dono das ações da história, portanto seu sujeito, e a multidão e o possesso são os objetos de suas ações. Pelos relatos anteriores, sabe-se que o Pai e o Espírito estão por trás das ações de Jesus, como destinadores, e Jesus que atua é o destinatário. O espírito impuro serve como o oponente a Jesus, pois investe contra ele, enquanto que a multidão atua como coadjuvante, uma vez que coopera com Jesus em sua admiração e testemunho. SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 86 Afora suas ações e reações, os personagens são construídos sem nenhuma indicação peculiar, sendo totalmente despidos de qualquer traço de personalidade. A complexidade está ligada às suas ações: Jesus ensina e repreende o espírito imundo; o espírito imundo se dirige a Jesus violentamente, aos gritos e depois desaparece; o possesso deixa de ser possesso; a multidão reage com admiração perante o ensino e o exorcismo de Jesus. A história, assim, é uma mescla entre o que mostra e o que diz. Acerca de Jesus e do possesso, ela mostra somente. Quanto ao espírito impuro ela mostra e diz. Acerca da multidão, essa apenas diz de sua admiração e surpresa, nada representando para além disso. Ao fim da ação de Jesus, simplesmente todos desaparecem e Jesus prossegue para a próxima ação em outro lugar. O ponto de vista do Narrador ou a focalização é oferecida em dois comentários dos presentes na sinagoga, nos quais é ressaltada a autoridade do ensino de Jesus, confirmada pela derrota do espírito imundo. Jesus é portador de um ensino com autoridade, por isso é novo? A focalização é totalmente externa, como uma câmera que filma toda a história. Ela é realizada dentro de um prédio e somente os presentes saberiam o que aconteceu ali dentro. No entanto, o leitor observa à distância todo o acontecimento. O leitor sabe até mais porque tem acesso aos relatos anteriores que o preparam para o acontecimento que segue. Contudo, ele ignora a atividade dos escribas e o modo como a fama de Jesus se divulgou posteriormente por toda a região da Galileia, até mesmo o que representa toda essa região e, então, a importância desse fato. A história conduz à empatia com a admiração dos presentes na sinagoga e o Narrador leva o leitor à mesma posição junto com a multidão. Talvez, até dirigindo a sua ação consequente de falar também do acontecimento admirável. As falas não são narradas pelo Narrador, mas inseridas na história na forma de diálogos diretos, o que acentua o tom dramático da história. Desse modo, o Narrador se coloca como totalmente externo a todo o acontecimento. 1:29-31 A história menciona alguns personagens individuais: Jesus, a sogra de Simão, Tiago e João, Simão e André. Também indica um personagem coletivo que faz o papel de cordão: os que falaram dela a Jesus, a menos que se refira a algum personagem individual já mencionado, os discípulos de Jesus. Jesus é o protagonista, enquanto que a sogra de Pedro e esses últimos são personagens secundários, enquanto que os discípulos apenas figuram na história. Nada é acrescentado sobre nenhum dos personagens, sendo todos planos, exceto a SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 87 informação acerca de Simão: ele possuía uma sogra que morava em Cafarnaum, logo Pedro era casado e tinha uma família. Do ponto de vista actancial, Jesus é o sujeito possuidor do poder que a sogra de Simão, o objeto, carece para ser curada. Pelo relato anterior, entende-se que Deus é o destinador desse poder do qual Jesus é o destinatário. Os que falam da mulher a Jesus são os adjuvantes e não se observa algum personagem que se oponha à cura da mulher na história. A história não indica que Jesus foi à casa da sogra de Simão no intuito de curá-la, sendo uma ação inteiramente circunstancial. Também, o Narrador não afirma que os que falaram dela a Jesus o fizeram no interesse de que ele a curasse, sendo que a iniciativa de Jesus é totalmente pessoal. O Narrador aponta para um traço fundamental da mulher após a cura: a iniciativa em servir aos visitantes. De novo, Jesus é mostrado por suas ações e menos por sua descrição. Ele é construído como alguém que ouve sobre a mulher doente, se aproxima dela e ajuda-a a se levantar segurando pela mão - um ato de força que levanta a mulher da cama. A sogra de Simão é construída como possuída de uma febre – um calor muito forte que a fez deitar-se, impossibilitada de fazer qualquer coisa. O estímulo de Jesus faz a febre passar e acontece uma mudança em sua indisposição: ela passa a trabalhar na casa. Quanto aos discípulos, ainda que figurantes na história, o Narrador os reinsere de novo com Jesus após o evento da sinagoga de Cafarnaum, onde a presença deles é omitida. Eles são a companhia de Jesus. E, possivelmente, havia mais pessoas na casa além de Jesus, seus discípulos e a sogra de Pedro, mas nada é dito a respeito. A história relata uma reunião familiar e totalmente ocasional, mas que parece elaborada pelo Narrador sob medida para a manifestação do poder de Jesus. Jesus não diz, todavia, uma palavra de cura, e a associação é direta entre seu gesto de erguer e sustentar a mulher em pé e a febre deixa-la subitamente. Do ponto de vista do Narrador, ele coloca o leitor dentro da família de Simão e essa interioridade introduz certa empatia entre o leitor com a história. Ele é levado a simpatizar com a febre de uma mulher idosa e com o interesse de Jesus em curá-la. Não há nenhum diálogo, sendo que o Narrador prefere manter o leitor à distância, apenas mostrando as falas. Que o Narrador deseja ir direto ao ponto, deixando detalhes de lado, é afirmado continuamente por sua escolha no uso da expressão adverbial: E, logo, que sugere a ideia de ir direto ao ponto, constante em todo esse primeiro bloco narrativo. Dessa maneira, o leitor é conservado externo a todo o acontecimento. Do ponto de vista do leitor, ele fica totalmente alheio aos detalhes do evento. As ações SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 88 requerem maior conhecimento da situação social familiar para que se faça uma leitura mais proveitosa da história. Muito fica por conta de que o leitor faça a complementação intuitivamente desde sua própria experiência. 1:32-34 A história apresenta a Jesus, exclusivamente, como único personagem individual, sendo todos os demais coletivos divididos em quatro grupos: os que trazem os doentes e endemoninhados, e ambos os grupos. No momento da expulsão dos demônios, esses assumem uma personalidade própria, pois querem falar e Jesus os impede. Jesus é o protagonista e os que trazem os doentes e endemoninhados, estes e os demônios, são secundários. Todos da cidade é figurante, mas atua como testemunha do que Jesus faz. No estudo actancial, Jesus é o sujeito que recebe todos os doentes e endemoninhados e os cura. Estes, são o objeto da sua cura que o buscam para esse fim. Eles são ajudados por outros que os trazem até o lugar onde Jesus está. Não há oponentes à ação de Jesus ou à cura dos doentes e endemoninhados, exceto os demônios que resistem a Jesus e são silenciados por ele. De novo, é preciso retornar ao batismo de Jesus para identificar o destinador, que é Deus, e o destinatário, que é Jesus, que recebe de Deus o poder/fazer as curas e expulsões de demônios, bem como o saber/fazer o bem às pessoas. Não há nenhum traço descritivo a mais para nenhum dos personagens. São todos simples e planos. Isso se percebe na preferência do Narrador em usar o advérbio todos (todos os doentes e endemoninhados / toda a cidade). E, também, no advérbio muitos (muitos doentes / muitos demônios), e no pronome pessoal genérico para os demônios eles (eles falassem / eles sabiam). O personagem principal, Jesus, é mais mostrado que contado. Ele é construído como disponível: trouxeram-lhe e ele atendeu a muitos; poderoso: curou muitos doentes e expulsou e silenciou muitos demônios. A descrição de Jesus leva o Narrador a apresenta-lo como um grande herói que realiza um feito extraordinário em favor da massa, o que leva o leitor à pena desta e à admiração e simpatia para com o feito de Jesus. Como no caso da cura da sogra de Pedro, o Narrador não aponta para nenhum sentimento em Jesus: compaixão ou misericórdia. Ele apenas reage à procura da massa disponibilizando seu poder de cura e expulsão de demônios. O Narrador deixa uma intriga para o leitor quanto à proibição de Jesus a que os demônios falem: pois sabiam quem ele era. Contudo, essa informação é dada somente aos leitores, pois os que testemunharam a expulsão dos demônios e o SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 89 silenciamento de Jesus não sabiam a razão pela qual ele fazia isso, talvez associando como complemento da ação de expulsão. Então, Jesus é alguém mais do que aquele feito dá a conhecer, mas o Narrador nada acrescenta ao leitor a respeito da identidade oculta de Jesus. Fica a questão: o que os demônios sabiam acerca de Jesus que a massa não sabia, que Jesus sabia que eles sabiam, mas que não queria que a massa soubesse, mas que o Narrador faz questão que o leitor saiba de tudo isso, ainda que não satisfaça a necessidade do leitor? É uma bela estratégia narrativa. Ainda, curiosamente, o Narrador não destaca o efeito que o feito de Jesus deve ter provocado na massa: a admiração e divulgação por toda a parte. Depois, ele dá uma informação adicional quando aponta para o dia seguinte, quando todos voltaram a procurar a Jesus (1:37). Por fim, o Narrador dá uma nota curiosa. A indicação de que todos procuraram a Jesus e que muitos foram atendidos por ele, mas não todos os que o procuraram coloca um limite à ação de Jesus e leva o leitor a especular uma série de razões para que isso tenha acontecido: falta de tempo, dificuldade de aproximação, preferência de Jesus? Se assim foi, não foram esses que deixaram de ser atendidos que o procuraram no dia seguinte? O Narrador omite qualquer diálogo ou fala, exceto a referência à fala dos demônios que é silenciada por Jesus. O Narrador trabalha com uma informação temporal que pode ser significativa mas requer do leitor um conhecimento extrahistória: o fato da população procurar a Jesus após o pôr do sol, possível referência ao fim da observância do Sábado, permitindo que se carregassem doentes e endemoninhados até Jesus. O evento é totalmente externo ao leitor, sendo ele apenas uma testemunha da história pela leitura. 5. O Cenário 1:21-28 O Narrador fornece a informação de que era um sábado e do hábito dos habitantes de Cafarnaum de ir à sinagoga nesse dia, ainda que não haja indicação do período do dia, se manhã, tarde ou noite. Isso fica por conta do conhecimento que o leitor tenha desse hábito observado entre os judeus ou sendo ele mesmo um frequentador da reunião de sábado na sinagoga. A sinagoga tem mais importância na narrativa do que a cidade de Cafarnaum. Ele não faz menção ao interior da sinagoga em seus aspectos físicos, apenas cita uma das funções exercidas nela e que Jesus estava praticando: ele ensinava. De fato, é mais do que isso: Jesus expunha sua doutrina. Mas, fica oculto ao leitor o que Jesus ensinava, exceto pela SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 90 referência aos presentes: Jesus ocupava um lugar que era dos escribas, os quais também tinham sua doutrina. De novo, o leitor fica sem a informação acerca de quem são os escribas e qual é sua doutrina. Assim, lhe escapa o impacto do elemento comparativo feito pelo comentário maravilhado dos presentes: o ensino com autoridade, de Jesus. Exceto pelo fato de que a comparação é feita entre o ensino espontâneo de Jesus e o ensino a partir das cópias de textos dos escribas. Ele pode apenas dar crédito ao testemunho deles. O Narrador descreve o evento de modo factual, dando-lhe uma orientação que define como o leitor deve visualizá-lo e interpretá-lo. A inserção da história da expulsão do demônio é curiosa porque sugere que um ambiente como o da sinagoga abriga a presença de uma pessoa na qual se abriga o espírito impuro. A pessoa é um lugar onde ele está que acrescenta um drama à história aparentemente plácida de Jesus ensinando em um ambiente de silêncio cheio de admiração. O espírito impuro interrompe essa ordem e afronta o ensino de Jesus. O impuro tanto pode se referir ao lugar onde ele está: a sinagoga é um lugar santo para Deus, e um espírito não limpo ou purificado não poderia estar ali, ou também à natureza da impureza: a imoralidade, ou ainda à impureza do próprio homem: ele não estava adaptado ao lugar devido a não praticar os rituais purificadores requeridos. A referência do Narrador à Galileia, e não a Cafarnaum, que seria o impacto mais imediato, faz com que se veja ambas as histórias como produzindo uma repercussão para além dos limites da cidade, inserindo Jesus imediatamente no ambiente político e geográfico da região na qual Cafarnaum faz parte. 1:29-31 A construção do cenário pelo Narrador permanece arquitetônico, pois Jesus sai da sinagoga e entra na casa de Simão e André, sem nenhuma referência temporal. Ele economiza na descrição do ambiente físico, mencionando apenas uma cama onde estava deitada a sogra de Simão. O evento caracteristicamente factual tende a valorizar o serviço da mulher que pode ser a função de preparar a alimentação em um lar. 1:32-34 Acontece o inverso nesta história, quanto à anterior, pois há menção pela primeira vez a um tempo: a noite, imediatamente após o pôr do Sol. O Narrador constrói o cenário com a chegada até a casa de Simão de gente que traz pessoas possuídas por todo tipo de males e por demônios, que ficou do lado de fora, à porta da casa. Não há descrição física do ambiente mas, certamente, o Narrador aponta para o lugar escuro e sua relação com o ambiente tomado pelos doentes, SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 91 endemoninhados e os apelos dos que os traziam. A ação de Jesus, de caráter totalmente factual, indica que o povo recebia o benefício da ação de Jesus. A construção do cenário como um povo totalmente tomado por doenças e ações demoníacas e de Jesus como o libertador pela sua ação de curar e expulsar remete o leitor a um tempo que engloba um grande período de trevas, acentuado pelo fato do evento ter acontecido durante a noite, a escuridão, e ressalta a Jesus como aquele que rompe esse tempo trazendo em sua presença a cura e expulsão das trevas. Há uma reconstrução monumental e simbólica do cenário. 6. O Tempo Narrativo 1:21-28 A história é narrada de modo a combinar o tempo e o evento ocorrido. As cenas sucedem umas às outras sem pausas ou interrupções, exceção aos dois comentários que os presentes fazem e suspende o tempo. No primeiro (22), o Narrador descreve a sua reação e explica o porquê (“...e todos se maravilharam”). No segundo (27), o Narrador retoma a mesma reação dos presentes (“...e todos se maravilharam”) e de novo explica o porquê. Ambos têm a ver com a didaquê de Jesus. Ao final, o Narrador acrescenta um sumário descrevendo como Jesus ficou famoso por toda a Galileia, vinculada ao evento ocorrido. Serve também como uma prolepse, pois o Narrador antecipa para o leitor a repercussão futura do evento e a seguir retorna ao tempo narrativo. Desde que o evento não é contado uma outra vez, ele assume o caráter temporal de uma narrativa única ou singular. 1:29-31 A narrativa ocorre de modo a sugerir uma concordância entre o evento e o tempo da sua realização. Há um sumário que acelera a narrativa e determina o seu fim relativo ao período de serviço da mulher curada. O Narrador se utiliza de uma elipse ao não mencionar o que ocorreu entre a cura da mulher e o período da noite, quando Jesus realiza novos atos milagrosos. 1:32-34 A narrativa se move ao ritmo temporal de uma ordem normal do acontecimento. Depois, ela se acelera na forma de um sumário, no qual em um tempo que não se sabe quanto foi, Jesus cura os portadores de males e os possuídos por demônios. De novo, o Narrador trabalho com uma elipse, a seguir, pois não menciona o que acontece depois desse evento, indo direto para a madrugada quando Jesus se levanta para orar (35). SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 92 7. A Voz Narrativa 1:21-28 Há três intervenções explícitas do Narrador que se posiciona externamente ao evento, junto com o leitor, visando induzi-lo a se posicionar favoravelmente a Jesus na história. Nas duas primeiras, seus comentários e explicações acerca da reação dos presentes na sinagoga, que ficam maravilhados com a doutrina e com a autoridade de Jesus (22,27) e, depois, seu sumário quanto à fama de Jesus que se espalhou pela região da Galileia (28). Ao colocar o diálogo entre Jesus e o espírito impuro, o Narrador insere o leitor diretamente na história. 1:29-31 Sutilmente, nessa segunda história, o Narrador acrescenta ao que já informou quanto ao poder de Jesus para ensinar e expulsar o espírito impuro, o seu poder de curar. Desse modo, sub-repticiamente, ele adiciona essa informação ao leitor, fazendo aumentar a sua admiração por Jesus. 1:32-34 O impacto sobre o leitor atinge seu clímax quando o Narrador acrescenta a terceira narrativa, na qual Jesus é mostrado curando todos os males das pessoas e expulsando os demônios que as possuem. Ele amplia para a massa aquilo que Jesus já fizera por dois indivíduos. Ao mesmo tempo, seu comentário de que todos procuraram a Jesus, mas apenas muitos foram curados por ele, aponta como uma advertência para o leitor. 8. A construção do leitor pela história Estamos iniciando a tarefa da interpretação das histórias. O primeiro ponto é observar que tipo de leitor é assumido por elas. A partir de agora, suporemos que as três histórias de Marcos 1:21-34 foram de tal modo entrelaçadas pelo Autor implícito a ponto de conformar uma única narrativa total, uma macronarrativa. Nesta, o Autor constrói um leitor-modelo ou leitor-ideal, aquele capacitado ou adequado a fazer a leitura das histórias e obter a compreensão daquilo que elas comunicam a ele. Identificado o leitor-modelo, o leitor atual deve se conformar a ele, de modo a fazer o mesmo percurso narrativo que ele fez e chegar às mesmas conclusões que o Autor implícito gostaria que ele tivesse chegado. Verificaremos, a seguir, que balizas são oferecidas ao leitor-modelo. Temporalmente, há uma sequência narrativa que insere uma história dentro SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 93 da outra até que se forme uma totalidade, ou uma história completa, inteira. Ela é marcada ou sinalizada tanto pelo uso do conectivo E, logo, quanto pela repetição do movimento de Jesus (ele entra e sai de vários lugares). Contudo, o uso mais frequente é a repetição das mesmas ações de maneira crescente até atingir um clímax. Pela repetição das mesmas ações de forma crescente, o Autor consegue realizar um impacto convincente e ao mesmo tempo exortativo perante o leitor. Igualmente, pela repetição da mesma proibição de Jesus aos demônios para que não dissessem sua verdadeira identidade, ele a reafirma perante o leitor: Jesus nazareno é o Santo de Deus que veio fazer o juízo contra os males e os demônios que escravizam as pessoas. Não fica claro como e o quanto essa ação desafiadora de Jesus é resposta a uma condição presente das pessoas e que as põe em espera de um tempo libertador de Deus, um tempo do juízo final. As três histórias, e as mesmas em conjunto, fluem naturalmente, não deixando espaços brancos ou gaps ou não-ditos que requeiram do leitor algum exercício explicativo. Entretanto, ficam duas questões por responder. A primeira é acerca do ensino de Jesus na sinagoga. Sabe-se, apenas, que os presentes ficam maravilhados com ele quando o comparam com o ensino costumeiramente recebido dos escribas. É importante dizer que o verbo ensinar e ensino é mais do que o ato, mas refere-se ao seu conteúdo. Há algo elaborado por Jesus que o leitor fica totalmente alheio ao que se trata e gostaria muito de ter compreendido. Que o Autor tenha omitido essa informação, talvez se justifique no fato de que ele o descreve abertamente mais adiante, e o tenha reservado para esse momento, na polêmica direta entre Jesus e os escribas dos fariseus, nos capítulos 2 e 3. A intenção do Autor na omissão ao conteúdo do ensino e mesmo a ausência de oposição nas três histórias introdutórias tem a ver com a surpresa com que todos são apanhados pelas ações de Jesus, sendo necessário um tempo para que uma contradição comece a ser articulada, o que acontecerá mais tarde. A segunda é a respeito do conhecimento que o espírito impuro e os demônios têm de Jesus: o nazareno ou nazoreu e o Santo de Deus. Visto que o Narrador não é claro quanto à origem dessa identidade para Jesus, e como esse enfrentamento se limita a essas histórias iniciais, o leitor-modelo fica sem saber como resolver a questão. Sendo as primeiras ações de Jesus, elas servem de introdução ao conhecimento do personagem que é o principal da história do evangelho. Elas servem de molde para o que o leitor deverá esperar para o restante da história. Então, essa é a função dessas primeiras histórias e da história como um todo: Fornecer uma identidade inicial para Jesus de modo que oriente o leitor na SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 94 continuidade do que ele vai contar, alimentando a sua capacidade de previsão. Talvez, então, o Autor irá mexer com a previsão do leitor-modelo, visto que o sucesso inicial termina com a crucificação de Jesus, exatamente o oposto do antecipado pelo leitor à vista das primeiras histórias. Essa é a intriga do evangelho, esse é o segredo que é desvendado. Ainda, as duas primeiras histórias são condicionais para a previsão quanto ao que acontecerá na terceira. Para o leitormodelo há duas hipóteses: Jesus enfrentou um espírito impuro, na sinagoga, e curou a febre da sogra de Simão, em sua casa, seria ele capaz de enfrentar um número maior de demônios e ainda curar todo e qualquer mal? Se ele foi capaz de fazer em casos isolados, por que não faria em casos coletivos? A terceira história satisfaz inteiramente a expectativa do leitor e é confirmada pelo sumário a seguir, que informa que Jesus foi por toda a Galileia expulsando os demônios. Enfim, o Autor implícito predispõe o leitor-modelo para uma atitude de admiração e respeito pelo personagem que é Jesus, até de temor. Ele o insere junto com a multidão na sinagoga, quando afirma duas vezes que ela fica maravilhada. E estimula o leitor ao dizer que, provavelmente esse espanto levou a multidão a falar de Jesus em toda a região da Galileia, ficando ele famoso antes mesmo que estivesse fisicamente presente e atuante nela. As duas histórias subsequentes somente reforçam esse impacto no leitor, levando-o a imaginar Jesus como alguém superpoderoso, um tipo de herói libertador do povo, pois o beneficia em suas necessidades insuperáveis, pois, afinal, nada pode ser feito contra males e demônios. Desse modo, o Autor também ressalta no leitor o temor quanto à condição da época, na qual doenças e demônios povoam o cotidiano da massa, deixando-a à mercê de suas ações, levando à sensação da escuridão e do medo e do abandono, até mesmo de Deus. O Autor não coloca assim, mas a lógica antecipadora das histórias levará a massa a pensar que Jesus é o Libertador de Deus dos últimos tempos, tão ansiosamente esperado: o Messias. As dores e aflições da massa conduzem o leitor à identificação própria com ela e também com suas angústias e esperanças. Contudo, é evidente que as histórias requerem do leitor um conhecimento mais amplo e extratextual dependendo do quanto ele se encontra distante delas, espacial e temporalmente. Esse conhecimento enciclopédico requer do leitor-modelo informação quanto a: geografia da região da Galileia, em especial, da cidade de Cafarnaum; a prática religiosa e cultural da guarda do sábado; o costume religioso de frequentar a sinagoga e seu lugar como centro de ensino ou de doutrina dos escribas; o elemento mais constrangedor para o leitor moderno: o espírito impuro e SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 95 os demônios que possuem as pessoas e as controlam terrivelmente e o enfrentamento que Jesus faz deles com autoridade completa e única da fala; termos atribuídos a Jesus como: nazareno ou nazoreu e Santo de Deus. Os dois títulos, um indicando a sua identificação humana e o outro a sua identificação divina. De algum modo, o Autor supõe que o leitor-modelo seja capaz de construir hipóteses quanto à fonte desse conhecimento. Seja devido acompanhamento que os demônios fizeram da vida de Jesus até aquele momento. Seja remetendo o leitor-modelo ao início de tudo, quando Jesus foi batizado e, a seguir, tentado por Satanás no deserto. Este sabia que ele era o filho de Deus e o tentou com base nesse raciocínio. Os demônios sujeitos a Satanás obtiveram dele ou tinham acesso, tal como ele, a essa identificação de Jesus e a exploraram no enfrentamento dele. Isto deixa a história subsequente mais intrigante, pois leva o leitor-modelo a imaginar como esse enfrentamento continuará e quem vencerá no final. As três histórias, e a história em seu conjunto, são formatadas por um pacto de leitura firmado entre o Autor e o seu leitor-modelo: “Conjunto de convenções pelas quais o narrador programa a recepção do texto pelo leitor e circunscreve o ato de leitura” (p. 154). Esse se forma nas histórias anteriores a estas. Ele é estabelecido desde o prólogo: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus” (1:1). É a essa história que o Narrador dará acesso ao leitor na medida em que efetua a sua leitura. Por princípio, o Narrador se refere ao começo do evangelho quanto à sua origem, as histórias iniciais, como tudo começou, uma espécie de: “Era uma vez...” Evangelho é equiparado, portanto, à história de Jesus. A identidade primeira de Jesus é confirmada pelas histórias da predição de João Batista (1:7,8), pelo batismo (1:9-11), pela tentação (1:12,13) e pelo resumo da pregação de Jesus: o reinado de Deus é chegado (1:15). Então, o leitor-modelo já lê as três histórias preparado por essas histórias fundantes. Jesus Cristo, o Filho de Deus e o reinado de Deus oferecem a moldura na qual se fará a leitura das histórias do evangelho. Assim, nenhuma das histórias é difícil ou impossível à leitura do leitormodelo, independente do conhecimento enciclopédico que ele possua. Claro que este o aproximaria do Autor implícito e das condições espaciais e temporais, culturais, das mesmas. Todavia, a introdução fornecida pelo Autor com as primeiras histórias é suficiente para que o leitor-modelo tenha condições de se orientar nas narrativas seguintes e na história do evangelho como um todo. SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 96 9. A reconstrução da história pelo leitor Conforme a primeira orientação, o leitor das histórias deve se amoldar ao leitor-modelo pressuposto pelo Autor implícito. Ele deve se deixar construir pelas histórias desde o pacto de leitura com ele firmado. Seguindo a tarefa da interpretação da(s) história(s), temos que investigar a maneira pela qual o leitor toma posse delas em função da sua própria narrativa, individual e coletiva. Como ele, o leitor, lê as histórias em sua própria vida? De que modo o leitor atribui sentido à história lida? Que significados o leitor encontra na história lida e em que medida esses dependem de sua própria história? De início, há um processo de compreensão das histórias pelo leitor2. Esse processo já está em andamento desde que o leitor começou a ler a história. Imediata e intuitivamente, o leitor começa a buscar em seu depósito de informações e experiências de vida, enfim, em suas próprias histórias, recursos e estratégias para a compreensão da história que lê. A partir do mapeamento desses recursos ele promove uma estratégia de antecipação e correção da leitura que está a fazer. Ele conecta pontos de contato ativados pela história com suas próprias histórias. Ele também percebe discrepâncias, lacunas e ignorância quanto aos elementos desconectados entre a história que lê e as suas mesmas. Talvez precise ir além da história a fim de aumentar os pontos de compreensão e diminuir os de incompreensão, entrar no mundo do Autor e do Texto para discernir para si mesmo a língua e linguagem, o gênero e o mundo da história que lê. Depois, acontece um processo de recepção das histórias pelo leitor. Ele reconhece as ideias, os valores, as convicções, as propostas, os apelos emanados da história. Nesse momento, a subjetividade do leitor não corre livre e desenfreada. Desde o pacto de leitura firmado com o Autor implícito e a identificação com o leitor-modelo por ele construído, o leitor constrói para si mesmo o entendimento da história. Em grande medida, isso depende do quanto o leitor interage com a história lida, isto é, dialoga com ela. Supondo a metáfora do diálogo, para que ele aconteça é necessário que autor-texto-leitor coincidam nos pontos que estão além da superfície da história, sendo ela apenas a ponta do iceberg (o explícito) de uma imensa massa de vivências subjacentes a ela (o implícito)3. De algum modo, então, o mundo ou contexto da história e o mundo ou contexto do leitor da história devem coincidir 2 KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. 3 KOCH, ELIAS, 2006, p. 59. SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 97 para que haja o seu entendimento, tal qual se dá em uma conversa. A recepção da história, portanto, é tudo o que leitor mobiliza para determinar para si do que ela se trata, do seu sentido, do que ela significa para ele. Nessa tarefa, o leitor depende ainda do que pode reconhecer ou não de outras histórias presentes na história que examina. Chama-se esse processo de: intertextualidade. As histórias dos evangelhos estão prenhes das histórias da Bíblia hebraica, estando nelas presentes ou simplesmente pressupostas. Elas tanto podem ser explicitamente indicadas ou implicitamente sugeridas. Cabe ao leitor desde a memória constituída saber-fazer a devida correlação e a atribuição do papel e dos novos sentidos que elas assumem nas histórias dos evangelhos. Também é preciso que o leitor reconheça o suficiente o uso da história em um discurso específico, isto é, de que modo: o conteúdo, o propósito, os recursos empregados e o modo de compor a história se combinam para que ela não apenas venha a existir, mas para que sirva a algum fim no meio onde existe. Assim, as histórias dos evangelhos são um gênero que serve a um discurso: o testemunho de Jesus e, por isso, mesmo são testemunhas de Jesus. Elas são sobreviventes de um tempo em que Jesus atuou e reunidas servem à preservação e divulgação da sua memória. Por fim, há o efeito das histórias na vida do leitor. As histórias são histórias de Jesus, testemunham a seu respeito e tem um impacto na vida do leitor, o seu testemunho contamina ou compromete o leitor. Elas produzem admiração ou espanto no leitor em função do que Jesus faz e pela maneira como as pessoas nas histórias são beneficiadas por ele. Elas intrigam o leitor a partir do questionamento acerca do porquê e do como Jesus ser assim e poder fazer as coisas que fez. Elas geram expectativa no leitor, pois Jesus parece ser mais do que revela, em especial nas declarações dos demônios por ele silenciadas. Jesus não é apenas uma pessoa, mas uma pessoa de certo modo de acordo com o testemunho das histórias. O testemunho das histórias quanto a Jesus pode incutir no leitor um respeito, uma atenção, uma veneração particular por ele. Também pode gerar o esforço por conhecer melhor as origens de Jesus, um interesse em entender melhor de onde ele veio e porque faz as coisas que faz. Ainda, pode começar um processo cognitivo de compreensão de Jesus do modo como ele é, e que pode colocar o leitor no caminho da fé nele, Jesus começa a se tornar significativo para o leitor. E, por fim, o leitor prossegue na leitura do evangelho em busca de novas histórias que ampliem os três esforços anteriores. O testemunho das histórias sobre Jesus pode levar além da admiração pelas SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015, 98 suas ações para vê-lo como um modelo de proximidade, disponibilidade e cuidado junto àqueles que sofrem de males e opressões de toda sorte no mundo do leitor. Também, pode gerar a busca por maior conhecimento de Jesus que o coloque no caminho da fé, isto é, de uma identificação e adesão pessoal a ele que resulte, por sua vez, em um pacto transformador de sua vida no mundo, moldando-a e às suas ações de modo a corresponder cada vez mais semelhantemente a ele. Ele entrou no caminho do seguimento de Jesus. CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso dos instrumentos dispostos pela ciência da Narratologia, como todo ferramental, serve para enquadrar quaisquer outras histórias dos evangelhos, e, portanto, podem ser aplicados a todas as demais histórias. O bom uso deles, por melhor que favoreçam a análise das histórias, não deve limitar o seu estudioso a seu uso instrumental. Como já foi dito, a análise das histórias dos evangelhos tende a valorizá-las enquanto portadoras de um discurso próprio que testemunha da pessoa e da missão de Jesus proposta no Evangelho. Autossuficientes como são, elas favorecem a identificação imediata do seu leitor desde a sua própria condição de vida, isto é, elas ajudam a reconstruir a história do leitor a partir da recuperação de sua memória de vida ativada pela leitura das histórias dos Evangelhos. REFERÊNCIAS BAL, Mieke. Narratology. Introduction to the Theory of Narrative. Toronto: Toronto University Press, 1997. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. POWELL, Mark Allan. What is Narrative Criticism? Minneapolis: Fortress Press, 1990. PRINCE, Gerald. Dictionary of Narratology. Nebraska: University of Nebraska Press, 1989. REUTER, Yves. A Análise da Narrativa. O texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. SANCHES, Sidney de Moraes. Lendo as histórias do Evangelhos. p. 81-98. INTEGRATIO, v. 1, n. 1, jan. - jun. 2015,