brasil imperial católico e o surgimento dos cemitérios protestantes

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brasil imperial católico e o surgimento dos cemitérios protestantes
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BRASIL IMPERIAL CATÓLICO E O SURGIMENTO DOS
CEMITÉRIOS PROTESTANTES
Alexander Fajardo*
Resumo
O artigo procura traçar um histórico da formação dos cemitérios protestantes no
Brasil, juntamente com um estudo de caso sobre alguns cemitérios protestantes ao
qual o autor teve oportunidade de visitar. São eles, Cemitério dos Ingleses na cidade
de Recife, e os cemitérios paulistanos do Redentor e dos Protestantes.
Visualizaremos a forma com que foram implantados no Brasil pré-império a partir
do Tratado de Comércio e Navegação de 1810, época em que a família real
portuguesa chegava na Colônia e tinha a Inglaterra como a principal parceira
econômica. As principais cidades da época, predominantemente as litorâneas,
foram instalados os primeiros cemitérios protestantes. Após a independência do
Brasil em 1822 e com a instauração do catolicismo como sendo a religião oficial do
país, os protestantes tiveram dificuldades ao enterrar os seus mortos. Entrave este
que perdurou até o fim do reinado, sendo resolvido com a instauração da República
no Brasil quando os cemitérios passaram a ser administrados pelos municípios.
Procuraremos perceber alguns momentos deste período e o processo de
manutenção e artístico desses cemitérios.
Palavras-chave: Protestantismo, Brasil, Império, cemitérios, ingleses, religião.
Abstract:
This article tries to build up a chart about the formation of protestant cemeteries in
Brazil, using a case study about some protestant cemeteries visited by the author of
this article. He visited the English Cemetery in Recife city and two cemeteries in São
Paulo city, they are: Protestant Cemetery and Redeemer Cemetery. We are going to
see their formation in the context of pre-Empire Brazil since Navigation and
Commercial Treat in 1810. In this time the real Family arrived here and they had
England as the main economical partner. In that time the first ones cemeteries were
formed in the main cities in Brazil, especially the littoral ones. After the Brazilian
Independence in 1822 the official religion was Catholic, for that reason the
protestants had many difficulties to bury their corpses. It happened until the end of
the Empire. The solution to this problem came with the Brazilian Republic
establishment when the cemeteries started to be organized by their own cities. In
this article we are realizing these situations in this context and the artistic and
maintenance processes of the cemeteries.
Keywords: Protestantism; Brazil; Empire; Cemeteries; English People; Religion.
* Mestre em Ciências da Religião pela UMESP (2011). Professor da Faculdade Nazarena do
Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8570336484269313. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
Este artigo traça um histórico da formação dos cemitérios protestantes no
Brasil, e um estudo de caso sobre alguns cemitérios protestantes ao qual este autor
teve oportunidade de visitar1. São eles, Cemitério dos Ingleses na cidade de Recife, e
os cemitérios paulistanos do Redentor e dos Protestantes.
O avanço dos estudos acadêmicos sobre cemitérios em geral são recentes.
Exemplo disto é que em 2004 realizou-se na Universidade de São Paulo o I Encontro
Brasileiro sobre Cemitérios, organizado pelo Departamento de Geografia desta
Universidade.
O termo cemitério vem do grego koumeterion, que indica o local onde se
dormia. A apropriação do termo pelos primeiros cristãos que usaram o derivado
para o latim
ressurreição.
coemiterium, local onde dormiam
Com
a
instituição
organizada
da
seus mortos esperando a
Igreja
cristã,
os
mortos,
principalmente os de classe social elevada eram enterrados dentro do templo ou ao
seu redor, por questões políticas a prática foi encerrada, isto acaba dando espaço
para a criação dos cemitérios intramuros no formato que conhecemos hoje, os
cemitérios passam a ter uma conotação com o sagrado, e são administrados pela
Igreja Católica. (Rezende, 2007)
Entretanto, sobre a questão de não mais enterrar os mortos dentro dos
templos e os cemitérios serem considerados espaços sagrados, este processo não foi
de imediata e tranqüila transição, pois segundo Coe, (2007) em pesquisa realizada
no estado do Maranhão, na capital São Luiz, através de medidas de saúde pública
aplicada na cidade a partir de 18282, tinha um dos principais intuitos a finalização
da prática de sepultamento dentro das igrejas que difusão de doenças e surtos
epidêmicos, entretanto a população religiosa não viu com bons olhos a idéia de que
a mudança era uma questão de higiene pública.
Para uma população acostumada por mais de três séculos com a
prática de sepultamentos nas igrejas, os enterramentos extramuros
dos templos foi visto, ao longo principalmente da primeira metade do
século XIX, como “anti-religioso”, revelando certo desprezo para com
os finados. (2007, p.10)
Entretanto a tradição protestante no sepultar dos mortos é conflitante com a
1 A pesquisa na cidade do Recife aconteceu por meio de um intercâmbio acadêmico no período
de pesquisas do mestrado em 2010 na Universidade Católica do Recife por meio da CAPES em seu
programa Nacional de Cooperação Acadêmica – PROCAD.
2 Esta medida aconteceu a principio em todas as capitais e principais cidades brasileiras, pois
nesta data D. Pedro I assinou uma lei imperial que proibia o sepultamento no interior de igrejas e ao
seu redor, impondo as cidades o único costume de enterrar seus mortos em cemitérios.
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Igreja Católica, como observa Carvalho (2009, p.38), já em 1536 quando o
protestantismo toma conta da cidade de Genebra na Suíça, um dos primeiros atos
foi fechar capelas e igrejas onde eram realizados sepultamentos, na Alemanha na
época da reforma, diversos cemitérios foram construídos, neste sentido, luteranos
ou calvinistas são unânimes de que era inviável realizar sepultamento dentro dos
templos.
Os cemitérios também são considerados patrimônio cultural, pois carregam
em seus espaços valores que estão ligados aos bens materiais, seus aspectos são de
caráter ambiental/urbano, artístico e histórico. (Carrasco, 2009). O ponto artístico
será também um dos objetos de analise mais adiante neste trabalho.
1.
Breve levantamento bibliográfico
Como já nos referimos, as pesquisas nesta área tem sido de maior
intensidade na última década, principalmente no que se refere a pesquisas de
cunho acadêmico. Historiadores, geógrafos, urbanistas e arquitetos são em sua
maioria os que têm se debruçado sobre o tema.
Para nossas pesquisas sobre cemitérios protestantes, um dos primeiros livros
escritos sobre o assunto data de 1972, obra do historiador José Antônio Gonsalves
de Mello, que organizou o curso de pós-graduação em História da UFPE na década
de 70, escreveu sobre a História do Cemitério Britânico do Recife e da participação de
ingleses e outros estrangeiros na vida e na cultura de Pernambuco no período de
1813 a 1909. No livro Mello apresenta detalhes da formação do cemitério e
estatísticas de avanço dos sepultamentos e nome dos familiares e personalidades
em meados do século XIX.
Por sua vez, Camargo (2007), pesquisou a colônia alemã em Santos a partir
dos primeiros anos de independência do país onde em um dos capítulos se dedica
ao cemitério protestante, conhecido como o cemitério dos alemães.
O geógrafo Rezende (2007), fundador da Associação Brasileira de Estudos
Cemiteriais (ABEC), e um dos organizadores do I Congresso do Brasil sobre
Cemitérios na USP, publicou suas pesquisas sobre cemitérios em geral, incluindo
referências aos cemitérios protestantes no Brasil.
Nesta linha de pesquisa, Coe (2008) estudou o fim dos sepultamentos nas
igrejas a transição e a construção de novos cemitérios, pois o desenvolvimento
médico e a reestruturação de municípios no império não permitiam mais o
sepultamento em igrejas.
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A preservação dos artefatos ornamentais integrados a arquitetura foi
pesquisado através de um estudo de caso por Carrasco (2009) no cemitério
protestante em Joinville, conhecido como cemitério dos imigrantes.
O cemitério Evangélico de Porto Alegre foi palco de pesquisa de Carvalho
(2009), onde analisou a influência da cultura greco-romana na representação
escultural das pranteadoras e o material usado na arte funerária do Evangélico.
Todos
os
trabalhos
listam
um
percurso
dos
cemitérios
evangélicos
pesquisados, sua origem, histórico e atual estado, com isso podemos identificar
alguns pontos em comuns destes locais sagrados para a cultura protestante
nacional.
2.
Tratado de comércio e navegação de 1810
A implantação dos cemitérios protestantes no Brasil se deu a partir da
segunda década do século XIX. Este processo ocorre com a vinda da família real
para o Brasil em 1808, com o reino de Portugal ocupado pelos franceses, ocorre a
chamada abertura dos portos para as nações amigas, sendo que a Inglaterra foi a
maior beneficiada, com isto é firmado um acordo em 1810 chamado de Tratado de
Comércio e Navegação. Os Ingleses estavam atuando em ramos de fundição,
estradas de ferro, entre outros trabalhos, com isto o artigo 12 do Tratado versava
acerca dos direitos religiosos dos ingleses que eram protestantes.
Permitir-se-á também enterrar os Vassalos de Sua Majestade
Britânica, que morrerem nos Territórios de Sua Alteza Real O
Príncipe Regente de Portugal, em convenientes lugares, que serão
designados para este fim. Nem se perturbarão de modo algum, nem
por qualquer motivo, os Funerais, ou as Sepulturas dos Mortos. Do
mesmo modo os Vassalos de Portugal gozarão nos Domínios de Sua
Majestade Britânica de uma perfeita e ilimitada liberdade de
Consciência em todas as matérias de Religião, conforme ao Sistema
de Tolerância que se acha neles estabelecidos. Eles poderão
livremente praticar os Exercícios de Sua Religião, ou particularmente
nas Suas próprias casas de habitação, ou nas Capelas e lugares de
Culto designados para este objeto, sem que se lhes ponha o menor
obstáculo, embaraço, ou dificuldade alguma, tanto agora,como para
futuro. (Tratado de 1810 in: AGUIAR, 1960: p. 141-142)
O Tratado dispõe de liberdade para os ingleses realizarem seus cultos nas
casas e terem um espaço destinado a sepultar seus mortos, entretanto a iniciativa
da criação de cemitérios ocorreu pela demanda e por situações delicadas ao
império, como foi o caso dos cemitérios de Ipanema e Recife, como veremos adiante.
3.
Primeiros cemitérios protestantes
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O primeiro cemitério protestante que se tem notícia no Brasil esta no Rio de
Janeiro, conhecido como Cemitério dos Ingleses uma chácara foi separada pelo
Príncipe Regente e incorporado aos bens da Coroa para ter o destino de se enterrar
os estrangeiros ingleses que não professavam a fé Católica. Em seu livro de
registros encontra-se o primeiro sepultamento em cinco de janeiro de 1811. (Costa,
2008)
Neste mesmo ano em fevereiro, ocorre um incidente na primeira indústria
siderúrgica do país a Real Fábrica de Ferro de São João do Ipanema, localizada nos
arredores de Sorocaba. Seus trabalhadores eram em sua maioria suecos, ligados a
Igreja Luterana. Um dos funcionários falece e é enterrado no único cemitério da
cidade, e a Igreja Católica cedeu o caixão como era costume, entretanto espalhou-se
pela cidade que o estrangeiro não era católico e sim protestante, boatos de que ele
tinha se suicidado também circularam, o resultado foi que o defunto foi
desenterrado e seu caixão foi cobrado. (Boy, 2007, Costa, 2008.) Com isso os
ânimos se acirram entre a população majoritariamente católica e os funcionários
protestantes suecos. O diretor da fábrica escreve em junho a D. João VI relatando o
incidente, em 28 de agosto a resposta vem por meio de uma Carta Régia com o
título: Sobre a Fábrica de ferro de Sorocaba da Capitania de S. Paulo destinada ao
Marquez de Alegrete, Governador e Capitão General da Capitania de S. Paulo, em
que autoriza a construção do cemitério para os protestantes, que reproduzimos com
a ortografia da época:
havendo subido á minha real presença algumas informações que
havendo morrido em Sorocaba um dos mineiros Suecos, o Director e os
outros Suecos, tieram um susto mal fundado que os prejuízos
populares dos habitantes os consideravam com horror visto serem
herejes, ordeno-vos que tenhais particular cuidado em persuadir tanto
ao Director como aos mais Suecos, que respeitando elles como devem a
nossa santa religião, e praticas da mesma, podem estar seguros que
ninguem os hade inquietar nas sua praticas rligiosas, que fizerem
particularmente em suas casas, e que não só hei de manter tudo a que
a tal respeito lhes mandei prometter pelo contracto que com elles se
celebrou, a que estou obrigado pelos tratados que ultimamente celebrei
com a Gram Bretanha, mas que conheço muito os meus reaes intresses
e de minha coroa, para que deixe de fazer observar fiel e
religiosamente tudo o que sabiamente tenho ordenado a semelhante
respeito, e que a vós muito vos encarrego de novo por esta minha carta
régia de cuidares e vigiares na fiel observancia de tão essenciaes
objectos tendo sempre vossos olhos abertos para evitares qualquer
mau effeito, que possa resultar dos prejuizos de povos, que mais por
ignorancia do que por fins sinsitros podem em tal materia fazer-se a si
e a o Estado um grande mal, levados de um mal entendido zelo
religioso, e contrario aos principios da nossa santa religião. Tambem
vos encarrego o cuidares em que ahi se estabeleça e cosnerve emboa
ordem um terreno que sirva de cemiterio aos Inglezes e Sueccos, e em
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geral aos que não forem membros da nossa santa religião, permittindolhes tambem que nas suas casas particulares e sem fórma de Igreja
possam reunir-se para o culto particular que dirigem ao Ente
Suppremo, e no qual vigiareis não possam jámais ser inquietados pelos
habitantes do paiz, o que muito vos hei por recommendado. (Coleção
de Leis do Império do Brasil - 1811 , Página 95 Vol. 1 – Publicação e
grafia original)3
Com isto acontece a fundação do primeiro cemitério luterano do Brasil e o
segundo chamado protestante. Diversos outros cemitérios se seguiram, os
primeiros principalmente em capitais litorâneas São Luiz (1817), Recife (1819),
Santos (1846), Joinville (1851), Porto Alegre (1856), São Paulo (1858). Em sua
maioria, os cemitérios protestantes têm sua arquitetura simples, despida de
grandes obras suntuosas, enriquecida pela ornamentação vegetal que circula seus
túmulos. (Carrasco, 2009, p.33).
Caso curioso acontece na cidade de São Paulo em 1841, ainda na falta de um
cemitério protestante, o professor Julius Frank, de origem alemã, era docente de
História, Filosofia e Geografia no Curso anexo da Academia do largo de São
Francisco, hoje conhecida como Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. Por uma forte gripe, o professor veio a falecer. Como era protestante, seu
corpo não poderia ser sepultado no cemitério católico da cidade. Uma iniciativa dos
alunos, o sepultaram em um dos pátios do colégio. Até hoje pode ser visitado seu
mausoléu, que fica justamente em frente à sala que Frank ministrava suas aulas,
segundo nos informa Campos Neto (2003)
4.
Igreja Católica o Estado e questões jurídicas
Nesta primeira metade do século XIX a presença dos protestantes em terra
brasileira ainda era restrita aos imigrantes que vinham a trabalho enviado por
países da Europa, as missões protestantes ainda não havia estabelecido raízes e
não dava seus frutos brasileiros. Entretanto, mesmo após a chegada de
missionários enviados pelas igrejas norte-americanas e europeias, os protestantes
ainda tiveram problemas acerca das leis que vigoravam no país, não somente sobre
sepultamento, como batismo de crianças e casamentos, isto ocorria principalmente
pelo fato de a Igreja Católica ser a religião oficial do estado, como bem observou
Mendonça.
Numa sociedade tradicional em que a Igreja Católica controlava
3 Disponível
original e na íntegra em PDF no site da Câmara dos
http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/Colecoes/Legislacao/LegimpB3_26.pdf#page=4
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Deputados
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todos os atos da vida – pelo menos os mais cruciais como casar,
nascer e morrer -, a presença de protestantes, em número razoável
nas décadas de 1860 e 1870, veio causar grande transtorno e
provocar polêmicas agudas em que os liberais, e até mesmo
conservadores, estes ao menos por razões humanitárias, tomaram a
defesa dos protestantes. A resistência católica ao reconhecimento do
casamento protestante, do batismo de seus filhos e do sepultamento
de seus mortos em cemitérios controlados pela Igreja – aliás, os
únicos – criou soluções jurídicas e circunstanciais constrangedoras
para os governantes. Impossível não reconhecer o casamento
protestante. Os pastores acabaram sendo autorizados a fazê-los e a
efetuar os batismos, o que significava o registro civil das pessoas. A
secularização dos cemitérios demorou, obrigando os protestantes a
construírem os seus próprios. (1990:77)
O sepultamento dos protestantes nesta época acaba sendo protagonista de
alguns entraves entre o estado e a Igreja Católica que apesar de não se dona dos
cemitérios públicos detinha sua total administração, em 1869 ainda se havia
entraves neste sentido, como relatou Vieira (1980, p. 270), de que um construtor da
estrada de ferro do Rio de Janeiro chamado David Sampson se suicidará em 29 de
outubro de 1869. O padre local de Sapucaia não autorizou o sepultamento do
trabalhador, pois além de ter se suicidado, era protestante. O diretor da estrada
apelou para o Estado, pois a obra era feita pelos protestantes e devia continuar, o
Conselho de Estado estipulou que os cemitérios teriam que ser franqueados a
pessoas de qualquer confissão religiosa, questionando o conceito de caridade e
tolerância civil e religiosa da Igreja Católica. Esta demanda resultou no ano
seguinte uma resolução assinada pelo Ministro do Império de que a negação de
sepultamento constituía em perseguição, injúria e aflição à família do falecido.
Porém, apesar da resolução, em muitos cemitérios pelo Brasil ainda era negada a
sepultura de não católicos.
Somente a partir da República com a instituição de um Brasil laico, Igreja e
Estado tornam-se instituições autônomas. Funções até então realizadas pela Igreja
passam a ser atribuídas ao Estado. Através de sua primeira Constituição, a
República reconhece como válido apenas o casamento civil e os cemitérios passam
obrigatoriamente à administração municipal.
5.
Cemitério dos Ingleses em Recife
Recife sendo uma cidade portuária e uma das mais movimentadas províncias
da colônia recebia diversos trabalhadores ingleses que se beneficiando do Tratado
de Comércio e Navegação de 1810, que vinham à cidade para ampliar o comércio e
indústria. Como expõe Mello (1972, p.12) apenas em novembro de 1813, que com o
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intenso movimento de ingleses na cidade, o ministro inglês enviou uma carta ao
Príncipe Regente D. João informando do inconveniente que estava ocorrendo com a
morte dos ingleses em Recife, os cadáveres estavam sofrendo a indecência de serem
sepultados nas praias, juntos com os escravos que não eram batizados. Com isto
solicita a intervenção para que seja destinado um terreno para o sepultamento
digno dos vassalos britânicos. Dom João ordena ao Governador e Capital General
da Capitania de Pernambuco que demarcasse e comprasse um terreno que seria
entregue aos ingleses para fins de sepultamento.
Em 1814 ao ter em mãos a propriedade do terreno no bairro de Santo Amaro
medindo 120 palmos de frente e 200 de fundo, o ministro inglês mandou murar o
terreno, entretanto o governo havia desapropriado o terreno de uma chácara de um
proprietário local, que depois quis cobrar o terreno dos ingleses. Todavia o cemitério
não foi utilizado de imediato, pois se necessitava de que a Igreja Anglicana enviasse
da Inglaterra para Pernambuco um capelão para reger a vida espiritual dos ingleses
e também realizar os ofícios fúnebres, tal acontecimento veio ocorrer apenas em
1819. As anotações do capelão sobre batismos casamentos e atos fúnebres vieram a
ser registrado a partir de 1821, sendo que o primeiro sepultamento registrado foi de
uma criança em dois de junho de 1822.
A tabela abaixo nos mostra o movimento dos registros através dos anos.
Ano
Enterros
Ano
Enterros
Ano
Enterros
1822
5
1831
5
1841
13
1823
2
1832
11
1842
25
1824
4
1833
5
1843
14
1825
12
1834
7
1844
16
1826
3
1835
10
1845
10
1827
8
1836
15
1846
11
1828
5
1837
16
1847
07
1829
10
1838
9
1848
12
1830
7
1839
11
1849
17
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13
1840
16
1850
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Podemos notar pela tabela que a média de sepultamento por ano era em
torno de uma dezena, entretanto no ano de 1850 ocorre um salto vertiginoso no
número de pessoas sepultadas, isso se deve pela terrível epidemia que ocorreu em
Recife neste ano. Com isso o cemitério teve sua primeira ampliação após
negociações e intermediações com o estado e os proprietários de terras.
Neste Cemitério dos Ingleses está sepultado o general José Ignácio de Abreu e
Lima um dos maiores revolucionários da América Latina. Nascido no Recife, em
seis de Abril de 1796. Seu pai, José Ignácio Ribeiro de Abreu e Lima, foi um dos
idealizadores da Revolução Republicana de 1817, o mais importante movimento na
tentativa de separação de Brasil de Portugal, entretanto foi preso e condenado a
morte na Bahia. Abreu e Lima, também acusado de ter aderido à revolução foi preso
na Bahia e condenado a morte. Escapa da prisão e foge para os Estados Unidos, e
depois para a Venezuela onde integra como voluntário, os exércitos de Simon
Bolívar.
Abreu e Lima chegou a alcançar o posto de general nas forças venezuelanas.
Participou, com Bolívar, das várias batalhas que levaram à libertação da Colômbia,
Venezuela, Equador, Peru e Bolívia. Com a morte do libertador Simon Bolívar,
Abreu e Lima regressou ao Brasil, fixando-se no Recife, onde se dedicou a escrever
vários livros. O General apesar de católico ficou conhecido por divulgar pelos
jornais da cidade a ideia de liberdade religiosa para espíritas e protestantes, isto lhe
causou a inimizade com o clero católico, que respondeu ao general pela imprensa,
em meio a troca de farpas via jornais, Abreu e Lima adoece e morre. O bispo com
isso proíbe o sepultamento do general no cemitério católico alegando que ele era
maçom e defensor dos protestantes. O Cemitério dos Ingleses acolheu o corpo de
Abreu e Lima, e seus familiares para lembrança do acontecido escreveram em sua
sepultura:
Aqui jaz o cidadão brasileiro general José Ignácio de Abreu e Lima,
propugnador esforçado da liberdade de consciência. Faleceu em 8 de
março de 1869. Foi-lhe negada sepultura no Cemitério Público pelo
bispo Francisco Cardoso Ayres. Lembrança de seus parentes.
Atualmente o Cemitério dos Ingleses em Recife permanece o dia todo fechado,
seus portões são abertos apenas para visitas de familiares ou visitas agendadas,
como foi o caso deste autor. Seus muros estão revestidos de cerca elétrica. Toda a
segurança atual foi devido a invasões noturnas onde foram roubadas lápides de
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bronze e utensílios feitos de prata para ornamentação dos túmulos. Em nossa
visita, podemos notar uma arquitetura simples em sua maiores os túmulos são
apenas ornamentados com flores. Os que tinham artisticamente uma ornamentação
escultural traziam apenas as cruzes anglicanas, encontramos em todo o cemitério
apenas duas esculturas artísticas de anjos.
6.
Cemitério Protestante de São Paulo
Em 1845 em São Paulo foi criado próximo ao parque da Luz, o Cemitério dos
Imigrantes, aonde chegou a receber o sepultamento de alguns protestantes, mas o
cemitério foi logo desativado para alargamento das vias municipais. Uma comissão
municipal estudava criar um cemitério municipal, e em 1855, o engenheiro Carlos
Frederico Rath, que administrava o cemitério no bairro da Luz, sugeriu o Alto da
Consolação como o local mais interessante para a criação do novo cemitério
municipal. Sendo assim, em 1858 foi inaugurado o Cemitério da Consolação, sendo
que uma parte do local, com entrada na rua Sergipe foi separada para
sepultamento dos acatólicos, neste mesmo ano foram realizados os primeiros
sepultamentos também no Cemitério dos Protestantes. Conforme registrou Flávio
Magalhães (S/D.p.18) a proposta da comissão foi de que:
Que o terreno que fica aquém do cemitério se destine para cemitérios
de indivíduos de religiões diferentes, com 28 braças na frente e no
fundo, e nos lados com a mesma extensão de fundo do cemitério
geral, fazendo os interessados os fechos e mais obras necessárias.
No
inicio
se
juntaram
os
luteranos,
anglicanos
e
posteriormente
presbiterianos para a criação de uma associação para administrar o local, com a
arrecadação das igrejas, foi construído um muro que cercou todo o cemitério para
que houvesse privacidade para os eternos hóspedes. A grande maioria dos
sepultamentos neste cemitério foi realizada por luteranos, entretanto para os
presbiterianos o cemitério guarda os principais fundadores da igreja, sendo que o
primeiro missionário e fundador do presbiterianismo em solo brasileiro, Ashbell
Green Simonton esta sepultado nele.
No início a condição de acesso ao local era difícil, pois não existiam estradas
boas para o local, isso resultou em uma reclamação na prefeitura em 1962. Nesta
queixa era relatado o quão difícil era para os protestantes levaram os cadáveres
para serem enterrados, pois devido ao péssimo estado do caminho, principalmente
em épocas de chuva. (Magalhães, s/d. p.21)
Visitamos este local no dia de finados de 2010, o cemitério atualmente realiza
sepultamento de pessoas de todas as religiões, a arquitetura tumular é feita de
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diversos formatos, desde os mais simples até os majestosos. Entretanto a
ornamentação é em sua maioria realizada com flores e grama, o local é mantido
sempre limpo por diversos funcionários que trabalham para a Associação que ainda
hoje é responsável por este local e por mais 4 cemitérios, incluindo o Cemitério do
Redentor que com o esgotamento das sepultaras em 1919 no Cemitério dos
Protestantes e a impossibilidade de expansão do mesmo, foi comprado um terreno
na avenida doutor Arnaldo e com a autorização do município, em 1922 foi
inaugurado o segundo cemitério destinado aos protestantes em São Paulo, que
ganhou o nome de Cemitério do Redentor.
Abaixo uma lista de alguns dos principais nomes do presbiterianismo que
estão sepultados neste cemitério.
Ashbell Green Simonton (1833-1867) – missionário fundador da IPB,
primeiro pastor da I. P. do Rio de Janeiro. William Dreaton Pitt (1828-1870) –
comerciante inglês, primeiro presbítero da Igreja de São Paulo, ordenado pastor em
1869. José Manoel da Conceição (1822-1873) – ex-sacerdote, primeiro ministro
evangélico brasileiro, ordenado em 1865. Eduardo Carlos Pereira (1855-1923) –
pastor da I. P. de São Paulo, fundador da Igreja Presbiteriana Independente. Vicente
do Rego Themudo Lessa (1874-1939) – primeiro historiador do presbiterianismo
brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o Brasil colônia, com a chegada da família real ao país e o catolicismo
como religião do reinado, a demanda por cemitérios protestantes se formou, devido
aos primeiros estrangeiros britânicos que vieram trabalhar no país, seja no Rio de
Janeiro, Recife ou Ipanema, ou estivesse um grande número de estrangeiros de
confissão protestante, se fazia necessário a autorização de D. João para a criação
dos cemitérios.
Esta pratica continuou após a independência do Brasil, agravada pelo
catolicismo ter sido considerada religião oficial do país, sendo assim novamente os
protestantes teriam que procurar por seus direitos acerca do sepultamento de seus
mortos. Com a vinda de missionários protestantes a partir da segunda metade do
século XIX, a população de protestantes começa a aumentar, juntamente com o
embate com o estado para as necessidades de regulamentação de batismos,
casamentos e ofícios fúnebres. Casos de constrangimentos ocorreram neste período,
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como citamos no decorrer do texto, a liberdade religiosa chega apenas com a
proclamação da República em 1890, onde o estado e a Igreja Católica não mais
caminhavam de mãos dadas, o país se torna laico, e os protestantes, neste quesito,
não tiveram maiores problemas quanto ao sepultamento, pois a partir de então
todos os cemitérios passaram a ser administrados pelos municípios.
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dos
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http://www.luteranos.com.br/articles/13364/1/Primeiro-Cemiterio-EvangelicoLuterano-no-Brasil-/1.html Publicado em 12/6/2009 – acessado em 08/03/ 2011
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http://www.acempro.com.br/unidade_detalhe.cfm?id=2
http://www.ipb.org.br/portal/artigos-e-estudos/414-o-cemiterio-dos-protestantesde-sao-paulo
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FAJARDO,
Alexander.
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