- Grupo Marista

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- Grupo Marista
Voo Literário
Grupo de Escrita e Leitura
Compilação de textos produzidos por alunos do Curso
Técnico Integrado ao Ensino Médio que participaram
do projeto “Voo Literário”, desenvolvido no Centro de
Educação Profissional Irmão Mário Cristóvão – TECPUC.
Organização: Prof a. Carla Gabriele Viccini Staron
Curitiba
2016
Voo Literário
Grupo de Escrita e Leitura
Direitos Autorais reservados aos autores
Permitida a reprodução desde que citada a fonte.
Voo Literário / Organização: Prof a Carla Gabriele Viccini Staron
Curitiba, PR: 2016
108 p.
Compilação de textos produzidos por alunos do Curso Técnico
Integrado ao Ensino Médio que participaram do projeto “Voo
Literário”, desenvolvido no Centro de Educação Profissional Irmão
Mário Cristóvão – TECPUC.
1. Prosa escolar brasileira – Paraná. I. Título
Sumário
Apresentação p.5
Profa Carla Gabriele Viccini Staron
Amy Gabani p.7
Correndo p.8
Saudade p.9
Autoconstituição p.11
O mundo está perdido p.12
Herança de família no cemitério p.13
WitchYgore p.21
Carta de CRYstal para WitchYGore p.22
Manuscrito de MoonSkreams p.23
Angélica Caron p.25
Vivo p.26
Dê um titulo qualquer p.31
Sinceras desculpas p.32
O restaurador p.33
Simples corretivo p.35
Questão de sobrevivência p.36
B.A.Z p.39
A hora do óbito p.40
Moribundo se foi p.42
Alma Entristecida p.43
Nova Droga da Sociedade p.44
Gabriel Moreira p.45
A gaveta p.46
Febre p.48
A máquina p.49
Moacir p.51
Thomas e o aventureiro p.52
“Dejeso” p.56
Triste Fim p.57
Igna p.59
Omissão p.60
Omissão da Realidade p.62
Leila Carneiro p.63
É mais belo lá fora... p.64
E se eu decidir que sim, pode ser muito para mim p.65
Lavratti p.67
A praça e a menina p.68
Ficção Científica p.69
Maeli Souza p.73
Às vezes um pouco nos basta p.74
Autópsia de um poeta p.75
Nataly Falavinha p.79
Metamorfose p.80
Ai ai como eu me iludo p.89
O laia p.90
Ricardo C. M. de Oliveira p.91
Ah Mar p.92
Programado para viver p.93
Vinícius Peretti p.97
Carniceiro de Passado p.98
Chuva p.101
Ícaro p.102
Infinito p.107
Minha Lua p.108
Apresentação
Profa Carla Gabriele Viccini Staron
O projeto “Voo Literário” surgiu após o pedido de um estudante. Um aluno que sabia que a literatura poderia ir muito além da sala
de aula, do estudo de obras e autores e da preparação para o vestibular. A ideia foi aceita, o caminho traçado e bastou apenas um convite
para que os jovens aparecessem, cheios de ideias, opiniões e muita
vontade de escrever.
Com o propósito de valorizar a criação artística dos alunos da
instituição, os participantes do grupo foram incentivados a compartilhar leituras, a conversar sobre produção literária e a escrever seus
próprios textos.
Portanto, em cada página desse livro, o leitor encontrará um reflexo do mundo desses jovens escritores. Sim, ele é tortuoso, repleto
de inseguranças. Mas, acima de tudo, é um reflexo da coragem desses
adolescentes. Coragem de dar voz ao que sentem através da arte, de
demonstrar que em cada vazio há uma rima, em cada sonho um verso e em cada medo uma história.
Antes que o voo literário inicie, gostaria de agradecer à Pastoral
do TECPUC e aos coordenadores dos Cursos Técnicos Integrados,
que nos acompanharam nessa caminhada.
Boa leitura!
Amy Gabani
Amanda Schlosser Gabani
Correndo
Saudade
Autoconstituição
O mundo está perdido
Herança de família no cemitério
Correndo
Amy Gabani
Correndo. Sempre correndo. Nossas vidas se resumem a corrida.
Tudo se resume a uma incansável corrida.
Corremos para não chegarmos atrasados na escola. Corremos
no intervalo para alcançarmos a melhor lanchonete. Comemos
correndo, só para podermos voltar correndo para a sala e não perdermos a aula.
Correndo. Rápido. Nossas necessidades se resumem em esperar
o tempo acabar.
Esperamos a aula acabar. Esperamos a semana acabar. Esperamos os meses, anos acabarem, para que as coisas boas cheguem
rápido.
Esperamos a sexta-feira, as férias, as festas, o aniversário. Não
queremos ter 16 anos, queremos ter 18 para dirigir e beber. Queremos ter 25 para viajar pelo mundo, dirigir e beber. Queremos ter
30 para termos dinheiro, viajar pelo mundo, dirigir e beber.
Queremos tudo, tudo rápido. Esperamos o final da aula, esperamos que o tempo dentro do ônibus passe rápido. Comemos macarrão instantâneo. Fazemos cinco minutos de esteira, porque queremos perder peso rápido.
Fazemos tudo rápido (tão rápido!) que não sabemos o que é
ser feliz. Queremos a felicidade, mas vivemos tristes, esperando o
tempo, a vida, acabar.
E então, quando você final e simplesmente não quiser que o
tempo acabe, você terá conhecido a felicidade. Felicidade nada mais
é, do que aqueles poucos segundos que você não quer que acabem
nunca. Mas são exatamente poucos. Afinal, estamos sempre correndo.
Sempre correndo.
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Saudade
Amy Gabani
Esses dias, uma amiga, que há muito tempo não via, voltou de
viagem. Encontramo-nos casualmente num shopping. Então perguntei sobre sua escola, pais e o namorado novo. Ela me perguntou
sobre a minha vida. Na hora, respondi que estava tudo bem. E seguimos nossos caminhos. Minha mente surpreendeu-me horas depois,
remoendo aquela pergunta. Ela havia perguntado se eu estava bem
e, sinceramente? Agora eu não sei ao certo.
Para falar a verdade, minha vida está ótima, mas eu não. Me
pego todos os dias relembrando alguma ideia ou momento que já
passou. Após um tempo de reflexão (e muitos textos escritos e reescritos), cheguei a uma conclusão.
Eu sinto saudade. Saudade sabe? Refiro-me àquela sensação de
que seu coração explodiu e seus pulmões foram arrancados, fazendo
com que você sinta uma dor enorme no peito, além do fato de você
não conseguir respirar.
Gostaria de saber quem inventou a saudade. Não sei se eu brigaria com esse ser ou o agradeceria profundamente. O porquê de
minha dúvida: a saudade, sim, é um saco. A saudade é uma das piores sensações que eu já senti nessa vida, mesmo que eu não tenha
sentido muita coisa até agora. Mas ela é a única prova de que aquilo
– seja o que for do que você tem saudade – existiu, e de que foi bom.
Então, como eu poderia me queixar sem agradecer? Como poderia queixar-me das melhores pessoas que conheci? Como poderia
queixar-me de ter amado?
Acredito que uma vez na vida, preciso me dar ao luxo de sentir
uma emoção forte sem questioná-la.
Sempre questionei tudo: o mundo, as questões, dúvidas, perguntas e respostas. Questiono até a mim mesma, repetida e incansavelmente. Tenho essa alma que caça por respostas e que depois as
descarta, não as achando à altura do próprio questionamento.
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Quero entender porque a saudade existe. Quero entender porque as coisas não podem continuar como eram. Quero simplesmente entender porque sinto saudade daquilo que ainda não aconteceu.
Como posso sentir saudade das amigas que ainda não deixei para
trás? Como posso sentir saudade daquele que amo se ele nunca me
amou? Por que diabos as coisas não têm respostas fáceis, clichês ou
retóricas?
Quero tudo de volta! Chega de saudade. Quero meu amor de
volta. Quero minhas amigas, minha antiga vida, e uma nova também. Quero tudo.
E não quero nada, por medo de me machucar novamente.
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Autoconstituição
Amy Gabani
Eu não sei o que falar.
Sim, há coisas em minha
mente:
sonhos tortuosos e pesadelos obscuros
discursos inacabados e
poemas despedaçados.
Mas não sei o que dizer.
E o pior: por que diabos eu
amo?
As lágrimas que ousavam
transbordar de meus olhos
E os soluços que morriam
antes mesmo de sair da minha
boca
Já desapareceram, apenas no
silêncio de um olhar.
E... Além disso, por que o
amor existe?
Aquele amor que parece nos
obrigar a dar risadas descontroladas.
Olhares fora de hora e
sorrisos bobos,
já pregados entre minhas
bochechas rosadas de vergonha...
Mas minhas dúvidas? Ah...
Minhas dúvidas, essas sim!
Permanecem nítidas em
minha mente.
Como... Por quê?
Por que diabos as flores
morrem?
Por que os sorrisos se
apagam?
Por que os olhares agora nos
fulminam?
Por que, por que, por quê?
Meu coração (pulsante)
Minha respiração (ofegante)
E minha cabeça (já perdida)
lidariam muito melhor
com tudo se o amor não
existisse.
Não seria melhor?
Não seria melhor, eu me
pergunto, se esse amor
(que já me tira as palavras)
Não existisse?
Não sei o que falar.
Aliás, sei sim:
O amor
É uma merda.
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O mundo está perdido
Amy Gabani
Odeio essas regras
Quero ser livre e voar
Não quero escrever poemas
Mas sou obrigada a rimar
Sou como um passarinho
Preso em uma gaiola
Há pressa em meu coraçãozinho
De fugir, não vejo a hora
Quero gritar e gritar
E correr sem me importar
Quero minha raiva extravasar
E não precisar mais me calar
Porém, nada posso fazer, meu amigo
Preciso apenas aceitar
O fato de que o mundo está perdido
É um mal que não posso mudar
12
Herança de família no cemitério
Amy Gabani
Dia cinzento, chuva e frio.
É assim que eu imaginava que seria quando eu fosse a algum
enterro. Eu imaginava com todos os detalhes: o céu estaria pesado
como se fosse desabar, o vento gelado do tipo que chicoteia seu rosto sem dó nem piedade. As árvores da rua estariam nuas, as folhas
caídas ao chão já há muito tempo. Aliás, as folhas já estariam duras,
daquelas que fazem um barulho quase crocante quando esmagadas
sob nossos pés. A grama do cemitério estaria barrenta, já que nossa cidade está sempre úmida. Seria um dia de outono atipicamente
gelado.
Mas não. Hoje está um dia lindo. O sol brilha tanto que meus
olhos verdes quase ardem quando tento olhar para cima. O vento
está gostoso, quase praiano. Foi justamente no momento em que eu
estava sentada na varanda com meu irmão mais novo, inspirando
aquele perfume de verão que pairava no ar, que minha mãe adentrou
a sala com um olhar apavorado.
Eu, com quinze anos, nunca havia visto uma morte de perto.
Só aquelas que nos mostram na TV. Todos na minha grande família estavam sempre bem-dispostos, saudáveis, bonitos. Contudo, no
segundo em que vi o olhar espantado da minha mãe, suas mãos se
fechando em punhos sólidos para não tremerem e seu semblante se
tornando escuro, temeroso, profundo... Tive certeza. Não é algo que
eu soubesse que ia acontecer. Mas ali, naquele segundo, eu sabia que
alguém – e, eu já imaginava alguém muito próximo – havia falecido.
Também não é como se eu soubesse o que fazer naquela hora.
Assim que minha mãe abriu sua boca e de lá saíram mares de tristeza, convertidos em palavras duras e secas – “a vovó morreu, crianças”
–, eu simplesmente levantei do chão de madeira polida e a abracei
tão forte quanto eu conseguia na hora. Afinal, eu não sabia o que
dizer. “Sinto muito”? Eu não sei se eu realmente sinto. Ela era minha
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avó, e claro que eu a amava, mas não acredito que eu tenho o direito
de sentir mais do que a minha mãe, que perdeu a sua própria.
Meu pai ligou para minhas tias e primas, minha mãe chamou
os amigos mais próximos. Todos vieram à nossa casa. Chegavam suados dentro de suas roupas pretas que, como eu também já sabia
sem nunca ter aprendido, eram para mostrar respeito ao falecido. Eu
estava encostada na porta da cozinha, olhando para todos e tentando
analisar suas expressões, como eu sempre fazia.
Minha tia Julia era a que mais me chamava atenção. Ela foi a
única que chegou e não disse uma palavra. Ela fitava todos os presentes na nossa tumultuada sala, os que choravam, os que falavam mal
da vovó Clara, os que simplesmente não sabiam o que fazer porque
haviam perdido o chão com a triste notícia. Ela analisava a todos,
como eu.
No caminho para o cemitério, todos ficaram extremamente
quietos. Acho que isso é uma regra para dias de velório. Ok, melhor
não levar em consideração, já que eu também achava que enterros
em dias feios eram uma regra.
Agora, no cemitério, outra coisa totalmente diferente do que eu
imaginava que aconteceria: a grama estava verde, linda. O céu azul
abrigava todos os tipos de passarinhos, com seus lindos gorjeios. Do
outro lado da rua, onde não pairava esse ar fúnebre, as crianças corriam e brincavam dentro de suas casas, nos seus quintais grandes
com seus brinquedos coloridos. O riso delas e o canto dos passarinhos quase me confundiram. Eu quase me senti feliz por um segundo – mas um segundo realmente muito rápido.
Saí dos meus devaneios quando meu priminho passou rápido
sobre meu pé. Como estava com um salto desnecessariamente alto,
caí um pouco para trás.
- Jorge! – repreendi em um sussurro.
Ele pareceu não notar meu incômodo, como sempre. Sua mãe,
Lorena, foi atrás dele, repetindo “tenha mais respeito, menino” algumas vezes.
O resto da cerimônia foi relativamente bem. Relativamente,
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porque eu não consegui prestar muita atenção. O dia estava muito
lindo. Não combinava com esse clima de morte. Cadê o dia cinzento,
a chuva, o frio? Estava tudo errado, não deveria ser assim. Eu não
conseguia aceitar esse irrefutável fato.
Dirigimo-nos até o meio do cemitério cheio de cruzes brancas.
Fiquei observando as cruzes, tentando distinguir uma da outra. A
pior parte de morrer deve ser virar nada além de ossos embaixo da
terra. Ninguém lembra mais de quem você era, certo? Você só é mais
uma cruz no meio de um gramado. Dezenas de pessoas pisando sobre você, todos os dias, enquanto passam para ir visitar seus parentes
e amigos.
Ninguém mais vai lembrar-se da minha avó. Linda com seus
olhos azuis e cabelos branquinhos, feliz e sorrindo. Ela será apenas
uma pilha de ossos, debaixo dessa terra. Essa ideia me fez ter ânsia.
- Alguém pode parar de evitar o assunto? – alguém da minha
família disse do nada.
Pisquei rapidamente algumas vezes, saindo do meu devaneio.
Saí de perto da cruz que marcava o túmulo dela e fui mais para perto
da minha família, que havia se mudado para baixo de uma árvore
muito horripilante (por que tudo no cemitério tem sempre que ser
tão assustador, tão... cemitério?)
- Evitar qual assunto? – mamãe perguntou. Obviamente se fazendo de desentendida.
- Vamos, Lilian, você sabe – meu pai disse baixinho.
- Qual assunto? – meu irmão perguntou.
Ignoraram meu irmão. Ele só tem cinco anos, nunca lhe diriam
nada sério.
- Concordo que já estamos prolongando muito esse assunto,
mas acabamos de sair de seu enterro – meu pai disse – vamos ter um
pouco de respeito.
- Nós temos respeito por ela – minha prima mais velha disse –
mas é um assunto que afeta a todos. Temos que discutir logo!
- Gente... – meu tio suspirou.
De que assunto eles falavam? Fechei meus olhos e procurei algo
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em minhas diversas memórias. Então, me veio uma imagem na cabeça: minha avó, mais jovem e bem bonita, num vestido preto elegante,
dando os parabéns para minha mãe. De onde veio essa lembrança?
Ah, claro. Foi no aniversário da empresa da minha família. Minha
avó criou a empresa e vendeu uma parte dela quando se aposentou
para minha mãe.
Eles estavam discutindo sobre a herança.
- Ninguém nunca discutiu por causa disso antes. Por que agora?
– meu primo perguntou - Por que temos de falar de herança?
- A vovó morreu Jonathan – minha mãe falou, como se ele já
não soubesse.
- Sim, vovó morreu, eu sei – ele revirou os olhos - mas ela não
deixou herdeiros pré-determinados?
- É verdade, – minha prima disse – ela já não tinha tudo arranjado?
- Não. – meu pai respondeu – Ela ainda não havia arrumado
nada com o advogado. E foi uma morte súbita. Ninguém é capaz de
prever um infarto.
Minha prima, talvez a mais emotiva de todos nós, se afastou um
pouco e voltou a chorar.
- Mas não é fácil repartir isso? – meu primo perguntou – 50%
vai para o marido e o resto para os filhos, não é?
- União estável é considerada casamento? – uma das minhas tias
perguntou, se referindo ao relacionamento da minha avó com o namorado.
- Karina! Isso é coisa que se pergunte? – minha mãe esbravejou
com a irmã – Mas é claro que sim!
- Mas e eu? – minha prima perguntou.
- O que tem você? – indagou meu tio.
- Minha mãe nem visitava a vovó. Nenhum de vocês visitava!
Eu era uma das únicas que cuidava dela! Vocês podiam não prever
um infarto, mas ela estava bem debilitada, com gripe. Quem fazia os
chazinhos? Quem levava o café da manhã dela na cama? Nenhum de
vocês sequer a ajudou.
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- Entendo o que está querendo dizer. Infelizmente, isso não é
parâmetro algum. Você é uma neta e os netos não recebem herança,
a não ser que a Clara tivesse deixado isso no testamento – meu pai
explicou.
- Que não existe – minha mãe complementou.
Minha prima os olhou com espanto, como se eles fossem monstros:
– Vocês dizem isso somente porque vão se beneficiar! Você é
casado com uma das filhas. A Lilian já não é a gerente da empresa da
família? Por que precisam de mais dinheiro?
- Se você ganhar alguma coisa – meu tio interveio – todos os
seus quatro primos teriam que ganhar também.
- Mas isso não é justo – ela disse – Eles também não se importavam tanto com ela.
A discussão continuou, e mais acirrada do que nunca. Olhei
para trás e observei o caminho pelo qual viemos. Ele me pareceu
tão familiar. A virada entre as cruzes... Quem mais estaria enterrado
aqui? Busquei em minha mente alguma lembrança de outro túmulo
por aqui, mas nada apareceu. Não me lembrava. Tinha vontade de
sair, de procurar. Vontade de gritar, ou de sair correndo. Só não queria mais ouvir essa discussão ridícula.
-... eles nem sequer se pronunciam – ouvi minha prima dizendo,
quando eu estava prestes a sair correndo – nem devem saber o que
está acontecendo.
Essa frase me faz perder o fôlego como um soco no estômago. Então outra imagem me veio à cabeça: eu, com nove anos, um
corte profundo no braço, fazendo um curativo, sozinha. Não que eu
tivesse medo de que meus pais brigassem comigo por eu ter me machucado (bom, talvez um pouco), mas porque é assim que eu sou.
Sofro em silêncio. Eu não sou de falar, em hipótese alguma. Sofro
em silêncio, festejo em silêncio, pois acredito que ele seja precioso.
Nunca vi necessidade de me expressar, principalmente num mundo
em que as opiniões adolescentes são tão menosprezadas.
Todos sempre me acusaram de não dar bola para as coisas. Eu
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sou sempre a alienada, a que não mostra interesse. Minha opinião
não importaria nem se eu falasse. Porém, eu sei sim, o que está acontecendo. Sou quieta, não retardada!
Minhas mãos se fecharam em punhos, os nós dos meus dedos
ficaram brancos. Senti o ar voltando lentamente para meus pulmões,
a dor no estômago se dissipando enquanto minha coragem crescia.
Virei, olhei para minha prima e reparei em seus olhos. Ela não estava
triste pela nossa avó: ela só queria que eu acreditasse nisso. Sei que
ela estava muito mais preocupada com a herança do que com outra
coisa.
- Você realmente acha que a gente não sabe o que está acontecendo? Se enxerga, Lídia, você é só dois anos mais velha que eu!
Não sou tão estúpida quanto você pensa. Eu entendo muito bem o
que está acontecendo. Poucos de nós estão verdadeiramente preocupados com a vovó. Mas atrevo-me a dizer que vocês são ridículos.
Ninguém os ensinou um pouco de respeito? Sem a vovó, metade de
nós não estaria vivo! Tia Karen, você acha mesmo que o namorado
da vovó está sequer preocupado com a herança? Ele resolveu tudo
aqui, foi ele quem pagou por metade desse velório. Ele está triste,
arrasado. Já vocês? Ficam falando sobre dinheiro. Dinheiro! A vovó
não gostaria de nos ver assim. E outra coisa: ela acabou de ser enterrada. Então... Calem. A. Boca.
Pela primeira vez em muito tempo, eu falei. Não me lembro da
última vez em que tenha falado sem pensar bastante antes. As palavras saíram torrencialmente de mim, não pude evitar. Não me arrependo, entretanto, porque acho que agora todos iriam me escutar.
- Acho que você tem razão, Lídia. – minha mãe disse por fim –
Gente, ela cuidava da mamãe. Vamos dar um pouco de credibilidade
para ela.
O que?!
- Mas e os outros netos? – meu pai perguntou – Temos de ser
justos.
- O neto mais velho é o Jorge, que tem 17 anos. Além dele, só
tem eu e as crianças – Lídia falou – Guardem um pouco para eles,
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mas nós dois merecemos mais.
- Eu não quero receber nada – Jorge disse, se afastando – Isso é
uma palhaçada. Nenhum de nós merece receber dinheiro só porque
tem alguma relação sanguínea com quem morreu.
- Jorge... – minha tia o chamou, segurando seu braço para tentar
impedi-lo de ir embora.
- Me deixa, mãe – ele falou, desvencilhando-se de Karen – Isso
é ridículo. Vocês deviam ter mais respeito. Foi a mesma bizarrice
quando foi a Natália...
Jorge saiu de perto de nós. Ele entrou no primeiro táxi, batendo
a porta com força.
Foi a mesma coisa com a Natália...
Natália?
Quem é Natália?
- Mamãe, quem é Natália? – perguntei.
Minha mãe me olhou, triste. Não me respondeu: apenas se virou
para o meu irmão.
- Vamos ao túmulo da maninha?
“Maninha”? Espere! Nós temos uma irmã?
Vasculhei minha mente, procurando informações sobre alguma
irmã perdida, alguma vez que meus pais tenham mencionado algum
nome feminino com tristeza e pesar.
Meus pais e meu irmãozinho seguem por um caminho entre
as cruzes. Eles viram à esquerda na segunda cruz, à direita na nona.
Espere, eu conheço esse caminho! Sabia que tinha mais algum conhecido nosso enterrado aqui. Devíamos ter vindo aqui quando eu
era criança. Lembro do caminho como se eu sempre soubesse dele,
como se fosse uma memória antiga.
Vamos virar à direita agora. À esquerda em cinco cruzes e à
esquerda novamente no final desse corredor. Espero ansiosamente,
não sei por quê.
Chegamos perto do túmulo de Natália. Quando eu fui olhar a
data de nascimento da menina, minha tia Julia me chamou, estando
logo atrás de mim.
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- Minha flor... – ela sempre me chamava assim.
- Diga tia.
- Não olhe para esse túmulo – Julia disse. Seus olhos estavam
vermelhos e fundos, ela estava pálida, com uma expressão de horror.
- Por quê? – perguntei com minha curiosidade aumentando.
- Apenas não olhe querida – ela pediu novamente.
- Por quê?
Como ela não me respondeu, eu me virei e vi o túmulo. Ela nasceu no dia do meu aniversário. Aliás, no mesmo ano.
Será que eu tinha uma irmã gêmea? Por que nunca me contaram?
Vejo a data da morte dela. Ela morreu...
Há dois anos.
Não.
Não! Não!
Não há irmã gêmea. Nunca houve.
Minha tia suspirou atrás de mim, murmurando “eu avisei”.
- Quem é ela, mamãe? – meu irmãozinho perguntava. Seus
grandes olhos verdes (idênticos aos meus) piscando por causa da
claridade.
- Sua irmã, meu amor – mamãe enxugou as novas lágrimas – Ela
se foi no mesmo dia que sua tia.
- Elas foram para onde?
- Foram... visitar o papai do céu – meu pai disse.
- Mas se ele mora no céu, como elas chegaram lá?
- Elas – minha mãe tossiu – foram de carro.
- Elas nunca vão voltar?
- Não sabemos, – disse meu pai interrompendo – mas dizem
que, às vezes, os visitantes do papai do céu fazem visitas para os outros aqui embaixo.
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WitchYgore
André Breton Weiber
Carta de CRYstal para WitchYGore
Manuscrito de MoonSkreams
Carta de CRYstal para WitchYGore
WitchYGore
Ainda lembro aquele dia
As coisas mudaram
Minha vida parecia um mar
Em que eu me afogava
Quando você chegou
Há um segundo
Queria estar morto aqui
Queria estar morto aqui
Marcas em meu pescoço
Pois minha história
Não é de dar orgulho
Em minha cabeça uma festa
Mas ninguém foi convidado
Estava em meio ao medo
Em meio à dor
Foi como uma gota d’água
Uma lágrima me tirou...
Era o que eu tinha
Suicídio em mim
Resta ainda
Aprisionado por você
SanctaLacrymosa
Apesar disso
Depois nos perderemos
Para sempre
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Manuscrito de MoonSkreams
WitchYGore
Procure-me em seus melhores sonhos, procure-me em seus pesadelos, sempre estarei lá, mas reze, reze para não me encontrar...
Eu entrei em sua percepção, agora aproveite esse inferno, ele é
merecido? Pergunte-se.
Mostre-me o quão insano você está, mostre seu caos, farei você
fazer coisas imperdoáveis, você nem se reconhecerá. Nunca mais.
Adeus meu amor.
Manuscrito encontrado junto ao corpo de MoonSkreams, a garota suicida
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Angélica Caron
Angélica Amália Caron da Silva
Vivo
Dê um titulo qualquer
Sinceras desculpas
O restaurador
Simples corretivo
Questão de sobrevivência
Vivo
Angélica Caron
Acordei de meus pensamentos com o toque do meu celular. Minha consciência estava longe, eu estava longe... não sabia mais o que
fazer, aquele maldito estava me perseguindo e a qualquer momento
ele iria me encontrar, tinha plena certeza disso. Eu precisava me esconder, mas para onde eu iria?
- Alô? – atendi saindo daquele banheiro imundo de beira de
estrada.
- Filha, que bom que atendeu – minha mãe falou alegre.
- Mamãe, fale rápido, preciso correr, você sabe disso – ela riu do
outro lado da linha.
- Feliz aniversário! Sentimos sua falta e quando puder volte para
cá, estaremos de braços abertos.
- Ok, te amo. Já vou indo.
Desliguei o telefone às pressas e entrei no carro, coloquei meus
óculos escuros e dei partida. Minha mente vagava enquanto eu passava por estradas aleatórias, não sabia em que lugar eu pararia, como
sobreviveria, onde dormiria, eu só precisava ir o mais longe possível
de qualquer um que eu amasse, ou ele os pegaria também. Coloquei
uma música qualquer e comecei a cantarolar junto, precisava fazer
com que minha mente se ocupasse, precisava esquecer um pouco
das coisas e relaxar.
- Relaxar como querida? – Parei bruscamente o carro, ele estava
no banco do carona – Me diga, para onde você planeja ir?
- Me deixe em paz – eu disse e ele riu.
- Você sabe que eu não posso. Você precisa de mim por perto...
- Eu não preciso mais de você, você morreu, precisa me deixar
em paz.
- Você sabe que eu não morri, eu estou bem aqui, ao seu lado.
Você não pode me ignorar por tanto tempo...
Comecei a acelerar o carro, mas ele continuava ali, impregnan-
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do o ar que eu respirava. Eu estava assustada, não sabia o que fazer
ou a quem recorrer, estava completamente desesperada. Afinal, eu
sabia que ele queria me matar.
- Você sabe que não quero lhe matar meu bem.
- Pare de ler meus pensamentos! – gritei em desespero.
- Pare de falar com os outros em sua mente, isso é perturbador.
- Perturbador é ter você ao meu lado. Você morreu, precisa aceitar isso e ir para o seu lugar!
- Não – ele disse calmo e sumiu.
Estava exausta, precisava parar o carro e dormir, rodei mais um
pouco e achei um hotel barato. Peguei um quarto e tentei fechar os
olhos, porém meus pensamentos não me deixaram relaxar nem por
um segundo. Tudo o que eu pensava era nele, como isso havia começado e como iria terminar. Eu precisava acabar logo com essa maluquice e voltar para minha vida normal, voltar a acordar e ficar tranquila, sem precisar me preocupar se teria que fugir de novo ou não.
- Olá – ele estava em pé, próximo a cama.
- Posso, pelo menos, ter uma noite de sossego? – perguntei sentindo meu cérebro esquentar.
- Você sabe que não querida – sorriu de lado – você sabe que
minha alma afunda gradativamente na sua, consigo ler seus pensamentos de uma forma espetacular, consigo sentir o que você sente,
ver o que você vê. E você, muitas vezes, não sabe que eu estou aqui,
não é mesmo? Não sabe que posso, a qualquer momento, tomar posse do seu corpo, da sua mente, de você por completo? Não sabe que
a qualquer momento você vai desistir de lutar e vai me deixar consumir cada pensamento seu, seja ele bom ou ruim, produtivo ou não?
Eu vou estar com você a cada batida do seu coração, a cada puxada
de ar para seus pulmões, a cada caminhada noturna.
- Por favor, deixe-me em paz – eu chorava desesperadamente.
- Você entrou no sótão Marie, todos lhe avisaram, mas você não
deu ouvidos. – ele se sentou perto de mim – Você mexeu em minhas
coisas, queria saber mais, uma vez até disse que queria que eu revivesse. Agora estou aqui meu bem... só para você!
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- Eu era uma criança, não sabia o que estava fazendo, queria
brincar, queria alguém para brincar, você parecia gentil nas fotos,
parecia...
- Vivo. – ele terminou minha frase enxugando minhas lágrimas
e eu concordei.
- Vivo.
No dia seguinte paguei uma diária e continuei meu caminho,
precisava acabar logo com meu sofrimento, não iria me entregar tão
facilmente a um maníaco. Meu telefone tocou, mas não queria saber
quem era, muito menos atender a uma ligação nesse momento. Caiu
na caixa postal, mas continuaram ligando até que decidi atender.
- Fala...
- Marie, você precisa voltar para casa, nós sabemos como resolver as coisas – meu irmão falava desesperado do outro lado da linha.
- Fale mais sobre isso.
- Ele não está morto Marie... – por um momento eu senti meu
coração parar – ele está completamente vivo e veio aqui atrás de você,
nós pegamos seu desenho e comparamos, é ele! Nós dissemos que
não sabíamos onde você estava, mas ele insistiu e está aqui agora!
- Vocês precisam se cuidar. Precisam sair daí. Deem um jeito e
vão para outro lugar, distraiam ele, não sei! – foi quando escutei um
riso e congelei.
- Olá querida, você sabe que não farei mal algum a eles, não é?
Só volte para casa e vamos resolver tudo!
A linha ficou muda. Minha cabeça parecia que iria explodir
a qualquer momento e a única coisa que eu poderia pensar agora
era em salvar minha família, mesmo ele alegando que não iria fazer
nada, eu não confiava nem em minha própria sombra. Imediatamente mudei de direção e comecei a fazer o caminho contrário, levaria um dia para chegar a minha casa, isso se eu não dormisse. Mas
dormir agora seria um privilégio, um privilégio que eu não poderia
ter nesse momento.
No outro dia, cheguei a minha casa. Todos estavam sentados na
sala como se nada tivesse acontecido, mamãe pulou do sofá e veio
28
me abraçar, meu pai e meu irmão fizeram o mesmo, mas de repente
tudo ficou escuro e eu só escutava uma voz, a voz dele.
- Finalmente em casa, sabia que não iria me desapontar – ele
disse animado – vamos, levante-se. Todos estão ansiosos para saber
o desfecho de tudo isso.
Abri meus olhos devagar e segui suas ordens, minha família me
rodeava, pois todos estavam preocupados, inclusive ele. Minha mãe
abriu um sorriso que agiu como um calmante, eu apenas retribui.
- Está tudo bem? – meu irmão perguntou e eu balancei a cabeça
confirmando – ele estava te esperando.
- Eu sei, agora diga o que quer – falei indo em sua direção.
- Eu quero que saiba a verdade Marie, não quero esconder mais
nada de você, realmente só quero conseguir lhe ajudar – abriu um
sorriso encantador e ao mesmo tempo maníaco.
- Ajudar com o que? A destruir a si mesmo? – perguntei e ele
negou.
- Olhe as fotos Marie, assim você entenderá tudo.
Sentei novamente e peguei as fotos que estavam em cima da
mesinha de centro. Lá estava ele, com um sorriso estonteante, mas
dessa vez, ao seu lado estava uma jovem, cabelos pretos e pele bem
branca, ela era muito parecida comigo e eu não conseguia acreditar
no que via. A cada foto que eu olhava, os dois jovens pareciam mais
apaixonados e ligados, porém a última foto me fez lembrar de tudo.
- Não pode ser!
- Lembrou Marie? – ele disse e se sentou junto a mim.
- Não pode ser!
- Marie, diga o que todos precisam saber. O que você precisa
assumir!
- Eu estou morta! – finalmente tudo desapareceu e escureceu.
Acordei em um quarto com paredes brancas, estava deitada e só
escutava o barulho das gotinhas de soro caindo, eu não fazia a mínima ideia de como havia parado ali, se tudo o que havia acontecido
era somente um sonho. Alguém bateu na porta do quarto e entrou,
eu me assustei, era ele! Eu tinha certeza de que era ele!
29
- Marie Lockwood, finalmente a senhorita acordou! – ele sorriu
simpático.
- O que você quer?
- Acalme-se, sou seu médico, você saiu de um coma profundo
ontem, parece que sofreu um grave acidente de carro há seis meses
– ele disse lendo meu prontuário – bem, vou cuidar da senhorita.
Dor de cabeça, tonturas e enjoos são normais – disse olhando meus
olhos, e medindo minha pulsação.
- Então eu não morri? – olhei para ele e ele sorriu.
- Querida, ninguém mandou você mexer no sótão.
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Dê um titulo qualquer
Angélica Caron
Eu estou sem criatividade
Tentando sobreviver nessa cidade
Cidade fria e vazia
Com pessoas que me dão azia
Ninguém se importa
Todos são como portas
Que só obedecem
Abrem e fecham a todo o momento
Sem se importar com o mundo
Que ultimamente está tão imundo
Cheio de maldade e ignorância
Sem contar com a ganância
Um dia isso melhora?
Infelizmente acho que piora
Se a vida continuar assim
Só vamos dizer sim
E aceitar o rumo que tudo toma
Sem perguntar ou questionar
Para onde ou como vamos
Só seguiremos ordens e aceitaremos
Um futuro incerto sem razão
Ou emoção
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Sinceras desculpas
Angélica Caron
Desculpe-me português por matar sua gramática
Desculpe-me matemática por não querer aprender suas táticas
Peço perdão à biologia por não entender sobre a citologia
Quero me desculpar com física... Não, física não
Quero me desculpar com história por não saber sobre sua glória
Química, me desculpe, mas com você só passo no chute
Peço perdão à sociologia e filosofia por usar tanta ironia
Redação, peço perdão por ser tão sem ação
Literatura, peço-lhe que me perdoe pela falta de cultura
Desculpe-me geografia, mas não entendo sua cartografia
Inglês, desculpe, mas prefiro o francês
Os desenhos de artes são um fracasso, então me desculpe pelo meu traço
Mas obrigada professores, vocês me ensinaram valores
Não só a somar, colocar vírgula ou sobre a Segunda Guerra
A pintar, saber sobre a terra, estudar muitas células
Ensinaram-me a ser gente, usar minha mente
Para coisas do futuro que provavelmente
Eu vou usar
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O restaurador
Angélica Caron
Eu havia perdido, eu realmente havia perdido. Não conseguia
encontrar a porcaria da chave em lugar nenhum, mesmo ela estando
sempre em meu pescoço eu havia perdido. Como? Não me pergunte,
é uma coisa realmente confusa e estranha, mas no momento estou
preocupado com a polícia batendo em minha porta, ou em nunca
mais conseguir abrir a gaveta que tanto cuido.
- Achou? – minha mãe perguntou e eu pulei assustado – achou
o que estava procurando?
Eu neguei e ela saiu para me ajudar a procurar. Onde demônios
eu poderia ter perdido a chave? Eu nunca a tirei de meu pescoço, tenho certeza de que ela deveria estar em algum lugar da casa, e se não
estivesse eu estaria perdido, completamente acabado, minha vida estaria acabada. Nunca me importei com nada, de verdade, mas essa
chave guardava a coisa mais importante para mim, a única coisa com
que eu poderia realmente me importar e cuidar, mas agora ela havia
desaparecido.
- Filho, já procurou no sexto de roupa ou no lixo? – meu pai me
perguntou e eu respondi que sim – Quem sabe esteja na escola – eu
neguei e subi para meu quarto.
Eu estava realmente desesperado e triste, afinal, nunca mais
poderia abrir a gaveta, talvez a polícia bata aqui, talvez todos me
odeiem... talvez... vocês já notaram que o mundo é feito de talvez?
Mas isso não vem ao caso, agora quero somente deitar e ficar olhando incessantemente para o teto pensando no que eu guardava dentro
da gaveta.
- Psiu, abre aqui – escutei batidinhas no vidro de minha janela –
vamos eu sei que está aí.
Levantei sem pressa alguma e abri a janela, dando espaço para a
menina a minha frente entrar. Ela estava estranha, afobada, parecia
ter medo, não sei explicar.
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Eu achei, – ela disse estendendo a chave – mas vai ter que me
deixar ver o que guarda ali.
- Não – eu neguei. Preferia que ela ficasse com a chave, a saber,
o que eu guardava.
- Vamos, não deve ser nada de mais... – ela correu em direção a
minha cômoda e abriu a gaveta antes que eu pudesse evitar.
A menina virou em minha direção com lágrimas nos olhos, eu
sabia que seria assim, eu sabia que ela iria chorar.
- Eu avisei que não era para você abrir.
Ela negou e sorriu.
- Eu precisava, afinal, isso é um pedaço meu, não é? – eu concordei e ela segurou o pequeno coração em suas mãos – você cuidou
bem dele, colou, remendou, amou... – ela se aproximou e com o coração ainda em suas mãos, me abraçou – Obrigada!
Acordei suado e assustado, a chave estava em meu pescoço, estava tudo bem, mas será que isso tinha sido só um sonho? Levantei
correndo e abri a primeira gaveta de minha cômoda, encontrando
a foto que eu tanto guardava, pois queria lembrar sempre da minha
pequena flor. Por mais que tivesse ela ao meu lado todos os dias, precisava reviver minha infância e lembrar de tudo o que passamos, de
como cuidei de seu coração quebrado e de como ela sorria ao ver a
gaveta fechada, pois ela sabia que comigo seu coração estaria sempre
seguro e seria sempre amado.
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Simples corretivo
Angélica Caron
Eu não tenho mais o que pensar
O que escrever, falar, interpretar
Tudo está resolvido, esculpido, escrito
Mas como fica se?
Se um dia isso acabar, se apagar, se reescrever?
Quem vai escrever o que foi escrito?
Passe o corretivo e veja que pode ser arrumado
Porém pode ser arruinado
Prefere deixar do jeito que está?
E seus sentimentos?
Medos?
Receios?
Pense em como seria se ainda nada estivesse certo
Se nada estivesse destinado, estirado, escarrado na cara
Nós sabemos o que vai acontecer
Mas não queremos admitir e deixar sair
Não queremos deixar ir o que nos prende
O que nos desmonta, o que nos monta, o que nos acolhe
Com um abraço gentil e falso, cheio de crueldade
Como você ficaria?
Ao saber que o mundo em dois segundos já não é mais o mesmo
Você iria entender?
Se deixe levar ao menos uma vez na vida
Você tem o direito de errar, o direito de ser feliz
De passar um corretivo e reescrever ou ao menos tentar
Eu não tenho mais o que pensar?
Eu tenho o que falar, escrever e gritar
Gritar que eu respiro, que tenho vida, sentimentos e momentos
Que tenho raiva, amor, ódio
Que sou ser humano
Que posso pegar o corretivo e tentar me pintar
Apagar os erros, quem sabe os acertos também
Apertar o restart ou até mesmo o start
E viver!
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Questão de sobrevivência
Angélica Caron
Relato encontrado dentro do diário de um jovem poeta...
É uma questão de sobrevivência. Ninguém vive, todos apenas
sobrevivem e é isso que eu faço, eu sobrevivo. Deixei de viver a algum tempo e assim é melhor, não preciso me preocupar com muita
coisa, só preciso ficar no meu canto, de boca fechada e sobreviver.
O sofrimento continua instalado no meu peito. Sim, isso é clichê, mas quando você pode ter resquícios de uma pequena depressão
ou tristeza, os ataques de pânico e até a vida, não te deixam esquecer
que você pode recair. Por conta disso, o sofrimento vira o melhor
amigo, você se acostuma e o abraça, dorme com ele o trata como seu
queridinho. E você já está tão acostumado com isso, que acha legal
chorar e ficar triste.
Esse sentimento te consome e você se sente diminuído, parece
que seu mundo vai acabar a qualquer hora. Isso quando não começa
uma crise de pânico repentina no meio da noite ou do dia. Em um
minuto tudo está bem e correto, já no outro você se desespera, seu
peito aperta. Você sente medo? Pois nesse momento vai sentir. E falta
de ar? Vai parecer que você está sendo sufocado por um saco plástico. Você vai tremer e se desesperar cada vez mais, e a cada dia você
vai querer morrer por não aguentar essas merdas dentro de você.
Tudo borbulhando, corroendo e te comendo por dentro. Comendo
seu amor, seu ódio, suas opiniões, sua rebeldia, sua paciência... Você
tem seu jeito e essa merda vai acabar com ele também, vai fazer você
tentar ser quem não é, pois existe a necessidade de se encaixar em
um grupo que, com toda a certeza, não é o seu.
Essa coisa pode piorar e pode te fazer ficar fraco, sem esperança ou fé. Você vai ficar impotente, incapaz de lutar e de viver. Você
provavelmente só vai sobreviver e ficar quieto, pois ninguém precisa
saber o que essa merda faz com você não é mesmo? Então você tenta
se agarrar a algo, uma música, um texto ou até um vício. Acredite,
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quando chegar nessa parte, você está acabado, está recorrendo a algo
que vai te destruir aos poucos. E você só quer morrer, muitas vezes
vai querer que seja rápido, em outras vezes, você só vai se viciar mais
e mais para que isso acabe com seu corpo. É nesse ponto que você
continua sobrevivendo, que você coloca a merda de uma máscara na
cara e diz que está bem, pois é melhor assim não é mesmo? É melhor
dizer que está bem do que tentar explicar para alguém as coisas que
estão acontecendo com você, que estão em sua cabeça, em seu coração, em sua alma.
E agora?
Eu repito, sobreviver... Fique calado, sorria, fique no seu canto
e sobreviva.
Mas quando estiver seguro em seu quarto, com um papel e uma
caneta ou qualquer meio que possa usar para escrever, despeje tudo
que está dentro de você. Muitos ignoram e desprezam a escrita, mas
nenhum deles sabe o quão gratificante é ver algo que você escreveu
há tempos e saber que superou.
Por pior que pareça ser, caso você tenha apoiado a mão em um
papel, escreva. Despeje o que te atormenta e guarde o que te faz viver.
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B.A.Z
Beatriz de Assumpção Zardo
A hora do óbito
Moribundo se foi
Alma Entristecida
Nova Droga da Sociedade
A hora do óbito
B. A. Z.
Ele me buscou em casa, por volta das 21h00, então decidimos
aonde iríamos. Fomos a um restaurante, pedimos uma mesa e aguardamos. Lá dentro tinha um barzinho e ele pediu uma cerveja, como
sempre.
Eu o observava e estava encantada com tudo naquele homem. Já
na segunda garrafa ele começou a tirar o rótulo com uma expressão
pensativa. Estava quieto, mas sua face não transparecia em qual universo estaria mergulhado.
Comecei a puxar assunto, pois de todas as vezes que saímos
nunca tinha visto ele assim, tão calado. Ele então conversou comigo,
sobre assuntos diversos, fluiu tão bem. Eu estava contente parecia
que nos daríamos bem...
Então, seu semblante mudou. Começou a me contar uma história:
- Existe um serial killer que só mata meninas com quem ele sai.
Ele as chama para sair, leva para um lugar bacana e pede cerveja,
então começa a tirar os rótulos. Enquanto retira os rótulos, ele pensa
na forma que irá matá-la. Define todos os detalhes, se a morte será
rápida ou lenta, como irá se livrar do corpo... Quando ele para de
tirar os rótulos, é o momento que determinou todo o projeto. Ele
repete isso em várias cidades.
Ele me contou essa história para descontrair e ficou tranquilo.
Eu fiquei um tanto nervosa, uma sensação estranha passou pelo meu
corpo, não sei explicar, mas tentei não demonstrar. Acreditei que era
apenas um conto, uma lenda qualquer, de algum dos lugares pelos
quais ele já viajou.
Bebemos, rimos e conversamos sobre assuntos diversos, contamos várias histórias de nossas vidas, engraçadas e tristes, e descobrimos mais um sobre o outro. Foi bom enquanto durou.
Então ele falou que o ambiente não mais o agradava, a música
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estava chata e ele não queria mais ficar ali.
Saímos, ele me levaria para casa. Segurou minha mão e a apertou, como se me quisesse perto, bem perto. No carro colocou a mão
sobre minha coxa, não sei se ele estava em condições de dirigir, mas
não me restavam outras opções, eu tinha que confiar nele.
A história que ele me contou me deixou excitada, mas aquilo
ali já era sacanagem. Ele chegava com a mão mais perto de minha
virilha. Eu a segurei, pois não seria fácil me controlar após alguns
drinks. Já passava de 03h00 da madrugada. Então ele percebeu que
minha cabeça estava tombando para o lado, sim eu estava bêbada.
Ele entrou em uma rua deserta, ali só havia casas abandonadas.
Não entendi o motivo. Se tudo que ele me contou fosse acontecer,
aquele era o momento. Então, ele tirou um facão que estava debaixo do banco e me apunhalou no estômago. Tonta, sem reação, sem
forças, entrei em pânico. Fugir? Eu não conseguiria andar. Ele me
puxou para fora do carro, caí com o rosto no asfalto e me esfolei.
Então, me espancou como se eu fosse a criatura mais abominável do mundo. Como se não bastasse, pegou uma chave de roda
e bateu em todo o meu corpo. Eu estava de vestido, o que facilitou
o trabalho de me deixar com hematomas e sangramentos terríveis.
Tudo ardia e doía. Eu queria chorar, mas nem isso conseguiria fazer
no momento.
Achei que ele havia acabado, mas então ele pegou uma corrente
no porta luvas e me bateu como se aquilo fosse um chicote. Depois
passou a corrente pelo meu corpo apertando bastante para que o
atrito com minha pele causasse mais feridas e piorasse as demais, enfim trancou a corrente com um cadeado, fiquei totalmente retorcida
e imóvel.
Quando ele já estava ofegante e sem forças para me bater, me
jogou no banco de trás. Sentindo o rosto desfigurado e as incontáveis
feridas, fiquei ali, imóvel.
Ele foi em direção ao centro da cidade, me largou na praça em
frente ao cemitério municipal. Um ato de caridade após tanta brutalidade? Não entendi. Então a última coisa que vi foi uma Glock g25 e
atrás um relógio que marcava 04h45min. O barulho do tiro, e enfim
meu último suspiro.
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Moribundo se foi
B. A. Z.
Lágrima caída
Toque gelado
Daquele que seus olhos não mais se abrem
Um toque quente
De uma alma entristecida
A perda demonstra
Uma deprimente despedida
O vazio da presença
Fica após o último adeus
O sepultado em paz
Já deixou sua marca por aqui
Para os que em vida ainda estão
Resta honrá-lo
Com memórias positivas
Para que enfim o sorriso
Possa a lágrima substituir
Moribundo se foi
Teve a sorte de deixar
O inferno que chamamos de terra
E ficar em paz em outro lugar.
Para meu tio Alexandre que faleceu em agosto de 2014
42
Alma Entristecida
B. A. Z.
-Estou com frioChora a alma entristecida
Buscando amores
Para fechar sua ferida.
Morte fácil
Perda difícil
Conflito,
Onde a saída
Não mostra caminhos.
Perda lastimável
Eterna mágoa
Coração
Para sempre quebrado.
Uma criança
Procurando explicações
Do porque da crueldade humana.
Porque ele?!
Porque com ele?!
Para um amigo muito querido
26 de Dezembro de 2015
43
Nova Droga da Sociedade
B. A. Z.
Tecnologia assusta
Não é droga, mas vicia
Uso constante
VÍCIO!
Para, interage
Cadê seus amigos?
-Estão no facebook.
-Eu preciso de um abraço
Cadê seus amigos?
-Estão atrás das telas
Não são reais.
Relacionamentos superficiais
Como tese Bauman
Modernidade líquida!
Existem relacionamentos?
Não! Verdadeiros não
Não existem toques
Nem sentimentos.
A internet substituiu
Todas as formas de contato
A humanidade dos humanos
Extinguiu-se.
30 de Junho de 2016
44
Gabriel Moreira
Gabriel Moreira Cleto
A gaveta
Febre
A máquina
A gaveta
Gabriel Moreira
Eu corro e corro, e corro um pouco mais. E ainda assim não tenho tempo. O tempo está acabando, se é que eu ainda o tenha.
Meus óculos embaçam com a chuva suja do inverno, mas não
me importo mais em enxergar. Meus pés sabem muito bem para
onde devem ir, enquanto eu só tenho o desespero necessário para
motivá-los a disparar por entre becos e vielas, por atalhos e por poças de lama. Não há tempo para refletir sobre o caminho. Se devo
sujar meus sapatos ou se ando pelo lado direito da rua, onde fico a
salvo da chuva pelos toldos.
Mas agora isso não importa.
Eu só sei o que devo fazer.
A visão do vulto cinza e escuro, meu velho e decadente apartamento de estúdio, foi suficiente para encher meus pulmões de fôlego.
Estava tão perto, estava tão próximo. Daqui a pouco tempo a horrível sensação de impotência e ignorância iria embora. Eu finalmente
saberia, a poucos metros de distância, se minha vida, meu ser, minha
sanidade, poderiam continuar intactos, ou pelo menos, conservados
como estavam.
Procurei ofegante, em todos os meus bolsos, pelas chaves da
porta do edifício. Tentei encaixá-las na fechadura diversas vezes,
chave por chave. Isso quando meus dedos finos e esguios não escorregavam e minhas mãos não tremiam. Então fazia apenas o esforço suficiente para conseguir introduzir as chaves. Minhas mãos
tremiam tanto pelo frio do ambiente, quanto pela gelada sensação
de que talvez fosse tarde demais. Mas esse talvez me fez prosseguir.
E quando finalmente consegui abrir a maldita porta, disparei pelas
escadas de madeira, lance por lance. Eu sentia na pele cada segundo
perdido, como se uma estaca fina passasse entre meus músculos. A
porta do meu apartamento estava aberta.
Por puro e reles descuido eu havia me esquecido de trancá-la.
Um vizinho deveria ter entrado, remexido por entre os livros de bio-
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logia, medicina, e sabe-se lá o que mais havia em minha coleção.
Teria um apreço muito grande por eles em qualquer outra ocasião.
Naquele momento, eles eram tão inúteis como todo o universo a minha volta.
Meus olhos foram automaticamente para a velha escrivaninha.
A pequena trava brilhante da gaveta projetava uma luz nublada no
quarto escuro e, naquele momento, ela era a luz mais ofuscante do
mundo. Ainda estava fechada. Dei passos rápidos em posições totalmente abstratas. Parei. Como uma aranha, meus pés foram me
arrastando em direção a escrivaninha.
Passei por cima dos livros velhos, cambaleei de leve pelo pouco
espaço de chão de madeira que me distanciava do móvel. Com os
dedos esticados, que só não tremiam mais, devido à pressão que minha mão fria fazia na madeira, puxei e virei a trava com a mais tensa
das delicadezas. A mesma delicadeza de um cirurgião cardíaco. A
delicadeza de um dedo no gatilho. A minha própria tensão.
Com um arrasto metálico de proporções minúsculas, ouvi o
oculto sistema de varas e engrenagens por dentro da madeira da gaveta. Não havia como ter uma trava normal. Em meio segundo, que
durou uma eternidade, a gaveta se abriu.
E eu renasci.
Meu mundo voltou a existir.
Meus pulmões voltaram a funcionar.
No fundo da gaveta, pulsava. Mostrava-se vivo. Demonstrava
sua profana existência naquela gaveta. Seus milhares de detalhes simétricos me fascinavam, me deixavam apaixonado.
Estava seguro. E tal segurança me fez voltar a viver, pois as poucas horas do trabalho até ali, foram o mais insuportável dos infernos.
Meu minúsculo crime contra Deus estava ali.
Passarei minhas próximas noites, assim como todas as outras,
em claro.
O sono me foi privado há muito tempo.
Se dormir, eu sonho.
E se eu sonhar, Deus aplica sua louca fúria sobre mim.
Mas quando acordo, em meio a livros, poeira e insetos, restos de
comida e avisos de despejo, eu olho a gaveta.
E o ouço se mexer.
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Febre
Gabriel Moreira
Ama concreto, látex, cafeína e nicotina
Dona das luzes amarelas, pungentes e onipotentes
Que revelam teu rosto de menina.
Em sua presença nada mais existe
Te deixa lento, com o sangue acelerado
E você tem febre.
Não consegue deixar de correr
Atrás daquela forma esguia
Cego, quente e delirante
Você tem febre.
Quem dera se fossem bonitos
Os pensamentos que tu me desperta
Não é tão clichê quanto as muitas
Nem tão clichê quanto as outras
Não me faz bem em nenhum sentido
Me tirar da inércia é o suficiente.
A mais bela das febres
A mais vulgar das flores
O mais doce dos sorrisos
Não sei o que fazer contigo.
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A máquina
Gabriel Moreira
nós dois nos encontramos
tensões altas
foram resolvidas com olhares
concluídas com contatos
mecânicos
o que era para ser uma dança
tornou-se uma longa guerra
os beijos demoravam
banhando-se em adrenalina
e os sentimentos não estavam
mais lá
você me via como teu pai, teu amigo,
teu professor, teu ex-namorado
e eu só queria te cegar
mais e mais
você amou todas as suas decepções ao mesmo tempo
sem nunca tirar seus lábios
dos meus
e não sentiu o gosto amargo da minha saliva
e com teu corpo em meus braços
sossego, na noite fria me questiono
qual de nós
foi mais usado?
49
Moacir
Gabriel Pereira Barbosa
Thomas e o aventureiro
“Dejeso”
Triste Fim
Thomas e o aventureiro
Moacir
Há vários tipos de homens, os gananciosos, os altruístas, os
bons, os maus, os ricos, os pobres... Há homens de todos os tipos,
mas todos eles têm uma ligação: são sonhadores.
Todos os homens são sonhadores, todos têm motivações. Algumas motivações são nobres – “salvarei o mundo” ou “descobrirei
a cura de uma doença...” – outras nem tanto – “um dia vou ter um
harém” ou “serei o mais rico do mundo”.
Há desejos fúteis que nunca se realizariam, pois os homens são
fracos. Todavia, não estou aqui para relatar sonhos e frustrações de
homens, se bem que esta não é uma má ideia. Estou aqui para contar
a história de um único homem, um sonhador sofrido e de existência
repugnante, só de me lembrar dele tenho enjoos.
Demorou onze meses para tomar forma, um pouco atrasado, recebeu o nome de Phillip Joseph Edward Von Richtoffen, ou só “Phill”
para os mais íntimos e, para os mais íntimos ainda, “Ed”. Gosto de
chamá-lo de Thomas, ele tem cara de Thomas. Thomas cresceu fraco
e raquítico nunca teve amigos e sempre era motivo de piadas em
seu povoado, além de ser pequeno, magro, fraco, ter o rosto fino, ser
mudo e ter mãos pequenas e frias.
Apesar de ser mudo, Thomas podia ouvir muito bem, até demais eu diria. Passava o dia inteiro nas ruas escutando todo o tipo de
coisa, desde criminosos bolando planos, até os guardas cochichando
sobre esses planos e como iriam dar um fim ao bando de ladrões.
Mas vamos avançar um pouco no tempo... Agora Thomas é um
adulto e é aqui que esta história realmente começa.
Certa vez Thomas ouviu algo sobre um novo Deus, um Deus
benevolente e todo poderoso que castigava os maus e abençoava os
bons, soube também que foi esse Deus quem criou todas as coisas.
Thomas ficou intrigado com tamanho poder e pela primeira vez em
sua vida sentiu inveja. Então, Thomas decidiu que queria ir à igreja
52
mais próxima, mas onde ficava esta igreja? Thomas não sabia, pois
estava naquela cidade pela primeira vez, mas afinal onde Thomas estava? Ele não sabia como havia chegado ali. Abismado, ele se dirigiu
para a pessoa mais próxima e disse:
- anannaananna ana anananaananaaannanana ana.
Pobre Thomas será que havia se esquecido, também, de que era
mudo?
Então a pessoa de imediato gritou:
- É o diabo!
E correu. Thomas ficou ali, parado, sem saber o que estava acontecendo. Não demorou muito para uma multidão enfurecida correr
para cima dele. E sem que ele pudesse fazer nada, foi arrastado para
a igreja. Pensou que aquelas pessoas queriam ajudar, pois percebeu
que estavam o levando a seu destino. Quando entrou na igreja o padre estava falando algo estranho:
- Faciamque in eis ultiones magnas arguens in furore et scient
quia ego Dominus cum dedero vindictam meam super eos.
Para os leigos Ezequiel 25:17 – “E executarei neles grandes vinganças, repreendendo-os com furor; e saberão que eu sou o Senhor,
quando eu tiver exercido a minha vingança sobre eles”.
Thomas chegara bem na hora da homilia e, por ironia, a frase
caíra como uma luva para a situação. Os acólitos da igreja seriam
os vingadores e, bem, vocês podem concluir quem Thomas seria. A
multidão enfurecida foi refreada por um grito ameaçador do padre,
era um homem grande, grande em todos os aspectos. Parecia com
Golias e era de dar medo, sua voz também era grossa e amedrontadora, quiçá sedutora. Depois do berro o padre disse calmamente:
- Irmãos o que pensais que estão fazendo? Este pobre homem,
que mal fez? Eu sou a voz de Deus e Deus o quer.
Naquele momento Thomas sentiu inveja de Deus novamente,
então decidiu que iria se tornar Deus e isso, de agora em diante, o
motivaria. Faria de tudo para isso. Então, após seu batismo em uma
Epifania mais do que religiosa, Phillip Joseph Edward Von Richtoffen leu a bíblia sagrada durante três dias seguidos, o que lhe causou
53
um grande mal estar que durou mais três dias. Recuperado e agora
com uma fé inabalável Thomas decidiu se suicidar pra ir ao encontro
de Deus. Pondo seu plano em prática, foi parar diretamente no purgatório. Era uma sala muito bem iluminada, havia duas portas em
sentidos opostos. Uma era feita de nuvens e com dois anjos fofos, um
de cada lado. A outra era uma porta de elevador vermelha com um
grafite onde estava escrito “inferno”.
No centro da sala havia um juiz. Thomas era impaciente e, mesmo estando sozinho na sala, pulou como uma fera em cima do juiz,
o matando rapidamente. Os pobres anjinhos ficaram horrorizados
com tal cena, já os demônios riram. Isso, de certa forma, incomodou
Thomas. Então ele pôs um fim nos dois e entrou no elevador que magicamente começou a se mover. O elevador, por dentro, parecia um
intestino, era vermelho e pulsava, pelas paredes escorria um líquido
amarelo que deixou Thomas enojado.
Ao chegar ao inferno, Thomas ficou espantado. O lugar não era
nada parecido com o que ele tinha em mente, nada de fogo, nem
dor, era só uma sala pequena com paredes de gesso. Havia um velho
fumando um cachimbo e bebendo conhaque em uma poltrona feita
de couro humano. O velho começou a resmungar algo sobre Thomas
ser bem vindo ao inferno e que aquilo eram só as boas vindas para
a dor que ele sentiria depois, e falou que ele era Lúcifer e blábláblá.
Thomas sentiu-se irritado com o velho chato, aproximou-se dele
e lhe deu um tapa. O velho, enfurecido, começou a crescer e se transformar e um bode preto, bípede e gigante. E o velho cresceu tanto
que sua cabeça quebrou o teto de gesso. Thomas, provocativo como
sempre, começou a urinar no pé do bode e logo em seguida começou
a chutar os tornozelos da criatura, até que o monstro caiu no chão e
começou a chorar. Thomas se sentiu enganado, pensara que o Diabo
seria um ser cruel e um ótimo adversário, mas revelou-se apenas um
velho solitário.
Thomas, tomado por uma incontrolável fúria, voltou para o elevador, mas dessa vez não havia mágica nenhuma. Thomas então decidiu escalar as paredes para chegar ao purgatório, e foi o que ele fez.
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Chegando lá, se deparou com a polícia celestial interrogando
os anjos e investigando a cena do crime, Thomas passou despercebido e atravessou a porta feita de nuvens. Do outro lado havia 3000
degraus, o que era totalmente desmotivador, todavia Thomas não se
preocupou muito e em poucos segundo chegou ao topo.
Seu próximo obstáculo era um portão de ouro, mas as barras
eram muito espaçadas, o que possibilitou que Thomas passasse com
facilidade entre elas.
Ao atravessar o portão, ele encontrou uma cidade, exatamente
no centro da metrópole havia um edifício gigantesco. No exato momento em que Thomas moveu seus globos oculares para visualizar
o gigantesco edifício, percebeu que sua existência não passava do
delírio de um pobre homem, um homem que estava vivo somente
para dar vida às aventuras de Thomas.
Rufford passava seus decadentes dias escrevendo aventuras que
jamais vivenciaria e a única coisa que podia fazer era sonhar. Sonhar
e se lamentar pela repugnante vida que Deus lhe dera.
Vivia remoendo sua insignificância em um mar de melancolia,
até que um dia seu sangue escorreu pelo chão frio e não restou uma
gota sequer. Ele caiu sobre seus manuscritos. Do seu corpo magro e
fraco, saiu sua alma, que finalmente estava livre para ir de encontro
a Thomas. O personagem o esperava de braços abertos e, através de
um abraço aconchegante, Rufford e Thomas se tornaram um só. Rufford se sentia vivo e Thomas sabia que havia cumprido seu objetivo.
Enquanto Thomas era preenchido por este reconfortante sentimento, sua existência foi gradativamente desaparecendo para dar lugar
ao verdadeiro soberano do corpo que chamava de seu. Rufford agora
poderia vivenciar as histórias que passou a vida escrevendo, aventuras que sempre o reconfortaram em seu profundo sofrimento.
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“Dejeso”
Moacir
Pensar, sonhar e pensar
Sentir, amar, tocar
Faz parte do que quero
Quero mais.
Gananciosa mente
Cuidar para que tudo se vá
Ir e vir, voltar e sentir
Sorrir, olhei, acabou
Querer
Tudo quero
Você, eu, tudo
Quem será?
Reação em cadeia
Recomeço
Talvez eu
Eu?
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Triste Fim
Moacir
Já estava cansado da rotinha, acordava às 06h00, mas só levantava às 06h30. Ia para o banheiro, escovava os dentes, depois vestia
uma calça limpa e escolhia uma camisa. Então preparava o café da
manhã, pão dormido e café requentado pela terceira vez. Voltava
para o quarto e procurava os sapatos. Quando os encontrava, passava um pano e os calçava. Depois disso tudo ligava o carro, um Kadett velho e enferrujado. Chegava ao trabalho por volta das 09h30,
sempre trinta minutos atrasado. Culpa do trânsito, isso era o que ele
dizia, então passava o resto da manhã sentado em uma cadeira dura
em frente a um computador lento. Meio dia era o almoço, mas não
comia nada para não gastar seu precioso dinheiro. Às 18h00, saía
do trabalho. Em casa esquentava as sobras do jantar do dia anterior.
Depois de comer tomava banho e ia dormir, o dia seguinte seria exatamente igual.
Mas o outro dia foi diferente, já não aguentava mais viver dessa
forma e como tinha certeza de que nunca iria reverter sua situação,
decidiu que iria se suicidar. Então, bolou um plano. Chegaria à empresa em que trabalhava depois do almoço e, quando seu chefe fosse
lhe dar uma bronca, estouraria seus miolos. Queria que sentissem
seu desespero e toda sua dor e que depois de sua morte, tivessem
pena e se arrependessem por tudo que o fizeram passar, por não terem sido mais atenciosos e afáveis. Estava determinado e assim dormiu. No meio da noite, um mosquito estranho entrou em sua boca
e seguiu para a garganta, lugar da picada fatal. De imediato o pobre
homem levantou da cama e teve seu triste fim.
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Igna
Henrique Döring Ignaszewski
Omissão
Omissão da Realidade
Omissão
Igna
Em uma tarde cinzenta e morta, encontro-me sentado em um
balanço, num bosque mórbido, ainda mais putrefato que o dia. As
horas passam lentamente e os pensamentos e divagações vem e vão
assim como a brisa gélida que me atinge, afasto o cabelo que cobre
minha visão. Olho ao meu redor e reparo que sou a única alma humana ali presente. Isso não me surpreende, pois está prestes a escurecer e o clima está péssimo.
Pergunto a mim mesmo o que estava fazendo ali, sentado em
um bosque vazio. A resposta surge rapidamente e eu espero... Aguardo por uma luz ou talvez um sinal, qualquer espécie de motivação
que me faça levantar dali, respirar fundo e seguir em frente com minha irrelevante vida, apenas conformado Esse momento não parece
estar próximo, mas mesmo assim eu espero.
Incrível como o único lugar que me trazia conforto e abrigo era
aquele bosque, porém a solidão me visita três vezes mais, tornando o
dia ainda mais melancólico. O vazio me contamina, corroendo tudo
o que me torna humano – meus sentimentos, sentidos e minha esperança – no entanto, eu aguardo.
O tempo vai passando, ele parece retardar a chegada da noite, eu
observo a delicadeza das árvores, dos pássaros e o aroma das belas
tulipas, os pequenos detalhes da calçada de pedra.
Faz parte de minha natureza desejar a morte, pois não consigo
lembrar como é amar, não me recordo como é me sentir acolhido,
uma vez que nunca mais serei especial para alguém. Em minha casa,
meus familiares se reúnem para jantar sem mim, minha presença é
irrelevante na escola, assim como minha estadia passageira no plano
terrestre.
Uma vez que fui abandonado por todos e por mim mesmo, meu
interior é consumido e eu não pertenço mais a mim mesmo. Presenciei meu amor se dissolver em um poço de ódio, melancolia e inse-
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gurança. Não sou capaz de me reerguer, pois a crueldade humana me
derruba. E com os pés atados e os olhos vendados, eu me arrasto pela
longa e penosa existência.
A guerra contra a sociedade enfraquece todo ser humano, somos todos obliterados por ela. Uma guerra perdida, fadada ao fracasso. Já lutei para tornar a vida mais agradável para mim e para os
meus, assim consegui perceber que a vida é uma sentença de sofrimento e sempre será, pois nós a fizemos assim.
Coisas que nos afastam de nosso real propósito, obrigações, dinheiro, política, moda. Enquanto a arte existe para aliviar esse pesadelo que é viver em sociedade, aliviar nossas mágoas e afastar a
miséria da alma.
A escolha não é fácil, minha rebelião é outra agora. É um atentado contra a vida, contra a existência. Escolho ser livre da vida, algo
que a compreensão humana não alcança, desapareço na humanidade
e ressurjo no cosmos, morto fisicamente e mais vivo do que nunca
espiritualmente. Não me sinto mais encarcerado a moral alguma e
sim conectado diretamente com o universo.
Exausto da flagelação mental que sempre me forçou a seguir as
vias mais penosas, vejo que a escuridão é linda, mas cheias de infortúnios. Começos e recomeços, equívocos, ilusões, paixões perdidas,
no submundo nada disso me aflige.
Feliz será aquele que encontrar a cura para essa doença chamada
humanidade, o maior tumor que já existiu. Não paramos de devastar
a nossa casa, a natureza que inocentemente nos forneceu tudo para
que nossa vida fosse possível. Somos, hoje, o maior arrependimento
da natureza, por culpa de nosso ódio e egoísmo.
As correntes enferrujadas do balanço onde estou sentado me
chamam, cogito enrolá-las em meu pescoço. É tudo o que me resta
por hora, só assim serei eternizado ou talvez esquecido na eternidade.
61
Omissão da Realidade
Igna
Vivo no passado
E esse é meu inferno
No longo e inclemente inverno
Penando no sofrimento eterno
Na solidão eu hiberno
Posso lhe mostrar aquilo que você não vê
Pois a arte de morrer
É a qual devo recorrer
Fria e imutável é minha essência eterna
Efêmera como a existência
Silenciosa é minha jornada ao abismo
Há esquecimento em meu olhar
Banhado a lágrima rancorosa
De natureza impiedosa
Menosprezado no submundo
E esquecido no profundo salão da depressão
62
Leila Cristina
Weschenfelder Carneiro
É mais belo lá fora...
E se eu decidir que sim, pode ser muito para mim
É mais belo lá fora...
Leila Cristina Weschenfelder Carneiro
Garota aprende que a vida é muito mais bela que a janela da
sala pode demonstrar
Que os monstros do armário estão à solta ao nosso redor
Que as loucuras mais insanas, são mais sensatas que o comodismo
É inútil pensar que estar aprisionada possa te levar a algum
lugar
O estranho é mais amigo que as certezas de si mesmo
E a decisão, ah, esta é uma dura tarefa para os covardes
Que nem sabem se riem ou choram
Que amanhecem sem adormecer e dormem em meio ao caos
A sentinela está atenta a tudo que se passa, é um vigia esperando a aurora
E enquanto isso sua sombra está mais em movimento que você!
Garota é simples o que vos digo
Ouça atentamente o meu conselho
Sua vida não precisa estar enterrada em sentimentos vultosos
Aprecie quão sublime pode ser a brisa suave que acalenta a sua
face
O nascer do sol pode ser uma dádiva ou somente mais um dia
Não desperdice suas virtudes e sacuda a poeira debaixo de seus
pés
Desapegar-se exige esforço, caso contrário seria fácil fazê-lo
Mas é certo que tudo começa com um primeiro passo
Olhe para o horizonte a sua frente e me diga simplesmente
Sem migalhas ou farturas, é ou não é muito mais belo lá fora?
64
E se eu decidir que sim, pode ser muito para mim
Leila Cristina Weschenfelder Carneiro
Em um belo dia deparei com algo que me espantou, uma vez
que minha vida seguia um curso muito bem delineado. Havia rompido algumas barreiras que me prendiam e resolvi arriscar o novo,
abrir-me para o diferente, o que por vezes causa espanto, mas também guarda surpresas maravilhosas.
Observando todas as esferas da minha vida, tirando alguns pequenos impasses, tudo ia bem. Eu teria todos os motivos para apenas
agradecer em silêncio e viver plenamente, saboreando as delícias de
alcançar meus sonhos. Seria muito belo se fosse verdadeiro, mas não
era.
Quando se decide alcançar os sonhos, ao preço do que tiver que
ser pago, é preciso atentar-se para as pedras que estão dispostas pelo
caminho. Algumas são mais altas, mais pesadas, pontiagudas. E há
aquelas lisas com muitos pedregulhos soltos. Não importa a escolha
do caminho, é preciso ter coragem para enfrentar.
Durante o percurso da minha jornada, deparei-me com muitas
pessoas que deixaram marcas, que floresceram sentimentos e saudades, raivas e tristezas, felicidades e decepções. Amores que por
vezes eram correspondidos, mas que em outras vezes não, que geraram dores profundas ou simplesmente aconteceram para ocupar
um espaço naquele lugar chamado lembrança. E há ainda os casos
mal resolvidos que se perderam ao longo de meu caminhar, que fingi
apagar ou esquecer, mas sim, eu bem sei o quanto àquela dor pode
ser cruel quando resolve acordar.
É fato que toda decisão tem um peso, porém mais pesado e doloso é o não decidir. Abster-se de sofrer é como construir um belo
navio e deixá-lo sempre atracado no porto, ou um avião digno de
aplausos tecnicamente arquitetônicos, mas que serve apenas para
demonstração, perdendo assim aquilo que seria a sua principal utilidade. Por vezes construímos coisas inúteis, perdemos tempo com
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ocupações infundadas e isso em nada difere do reflexo de nossos
relacionamentos.
É confortável manter-se de olhos fechados, cegar aquilo que intrinsecamente ofusca a alma, mas permanecer nesse conforto pode
ser catastrófico. Como é possível dizer sim com o coração e não com
a razão? Essa dúvida me persegue por longos anos e ainda que eu
tenha feito as duas escolhas por diversas vezes, hoje me encontro tão
perdida como da primeira vez.
A experiência nos amadurece, nos molda e nos fortalece, mas de
nada serve sem uma palavra: decisão. Decidir chegar, ficar ou partir.
Decidir amar, odiar, esquecer, eternizar. Decidir que o preço que se
paga às vezes é alto demais quando se troca um não por um sim, e a
culpa de não ter ao menos tentando é ainda mais avassaladora.
É um desperdício pensar que as respostas de todas as perguntas caem do céu quando sabemos que cada um traz dentro de si as
próprias respostas, e que nos movemos pelos questionamentos e não
pelas certezas. Mais grave ainda é o sofrimento, quando gerado pelo
descuido de não ter sido sensível às coisas mais simples. A perspicácia de direcionar um olhar para onde todos olham e deixar no canto
um tesouro escondido.
E se eu decidir que sim, pode ser que seja muito pra mim, mas
esse muito pode ser o meu tudo e se esse tudo for amor, seguirei
amando sim.
66
Lavratti
Lucas Lavratti
A praça e a menina
Ficção Científica
A praça e a menina
Lavratti
Ah, mais um dia que chego cedo...
Tornou-se rotina depois que a conheci. Não faz sentido nenhum
chegar tão cedo nessa praça, já que minha aula é no mesmo prédio
em que ela estuda, e só são separadas por cinco minutos. Mas, mesmo assim, eu espero.
Sei que ela só passa por essa praça por conveniência, correndo
com o almoço em uma mão e a mala na outra. Sentada no banco, ela
tira o pote com o pouco almoço que preparou há uma ou duas noites.
Então, eu levanto do meu banco de concreto e vou até o dela, que é
um banco de madeira, velho, mas inteiro. Já perdi as contas de quantas vezes repetimos isso. Sentados um ao lado do outro, nossos corpos congelam nesse frio. Exceto meu braço esquerdo e o direito dela,
minha perna esquerda e a direta dela. Um carinho aqui, outro ali,
parecemos mais um casal do que os estranhos que realmente somos.
“Suas mãos são pequenas, cabem nas minhas”— falo com minha mão junto a dela.
“Uhum”— responde ela, deixando cair suavemente sua cabeça
em meu ombro, apertando meu braço, meu coração e me aquecendo
por inteiro.
Sempre a mesma cena, até que nosso horário chega. Cada um
entra em sua sala.
Eu pensava nela e acreditava que ela também pensava em mim.
Mas ela não veio ontem, nem hoje, e não dará as caras amanhã.
Quando entro na sala, meu suspiro é logo surpreendido.
“E aí, como estão as coisas com ela? “— me perguntam de perto
da janela.
“Ah ela foi para o Japão”— respondo com um sorriso no rosto.
Se eu me desfizesse desse sorriso, não teria forças para continuar vindo aqui. Almoçando no mesmo banco da praça. Chorando
escondido pela mesma paixão.
68
Ficção Científica
Lavratti
Como toda manhã, acordei.
Olhando para esse teto quase branco, minha cabeça não parava,
pois havia dormido pouco durante a noite. Decidi levantar e, apesar
de estar em cima da hora, me apressei e peguei minha carona a tempo.
Sentado no fundo desse ônibus velho, já com o piso de borracha
desgastado e rachado pelo frio congelante do inverno, percebi algo
inquietante, algo anormal.
O motorista não estava ao volante, observando bem, nem volante tinha no transporte. Assustado, gritei, tentando avisar aos outros
passageiros, mas eles não se importavam com o berreiro. Então, para
me acalmar, um menino disse que era normal, que não deveria me
preocupar com essas coisas. Ignorei sua tentativa de me explicar o
que estava acontecendo e, na parada seguinte do ônibus, saí correndo. Meu relógio apitava, eram nove horas. Atrasado, resolvi voltar
para casa.
Enquanto voltava para minha modesta casa de paredes amareladas, percebi que estava voltando para o trabalho. Virei para trás e
tentei voltar para casa, mas sem sucesso. Após uma ou duas quadras
estava novamente na direção do escritório. Tentei sair do caminho,
mas estava cada vez mais próximo do escritório. Ao meu lado corria
um homem de jaleco branco, olhei para sua manga e a segurei com
a ponta dos dedos, como uma criança perdida. Recuperando meu
fôlego, subi meu olhar e pude perceber como os anos haviam maltratado o rosto desse senhor. Perguntei a ele onde estávamos, mas a
única resposta que recebi foi um olhar sério, como se pedisse para
eu me calar. Soltei sua manga, desviei o olhar, e então voltei a fugir
da realidade.
A cada volta que dava naquele bairro me sentia mais cansado,
então decidi parar. Talvez para pensar num plano, talvez porque estava com sede. Do outro lado da rua avistei um café, decidi entrar,
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mas não consegui. Ao passar pela porta, me deparei com um lugar
totalmente diferente. Voltei pela porta, entrei novamente, e outro
ambiente apareceu em minha frente.
“Quem sabe assim eu consigo chegar em minha casa”. Foi esse
pensamento que dominou minha mente, então coloquei o plano em
prática: entrar e sair pela porta freneticamente até voltar para casa.
Deu certo.
Finalmente em casa, fui com calma até o quarto. Passando pela
porta entreaberta do banheiro, vi de relance uma figura que não reconheci. “Um ladrão!” pensei imediatamente. Corri até meu quarto, peguei o abajur e me preparei para defender minha vida. Após
alguns minutos, o silêncio tomou a casa então decidi espiar o banheiro, talvez pudesse pegar o ladrão de surpresa. Mas não havia
ninguém. Devolvi o abajur e fui lavar meu rosto. Abri a torneira,
molhei as mãos e lavei a minha face. Quando levantei o rosto e olhei
no espelho, não me vi. Vi outro homem. Lavei meu rosto novamente
e ao observar meu reflexo no espelho, vi um segundo homem. Como
havia dormido pouco, achei que o cansaço estivesse mexendo comigo. Então, resolvi me deitar e descansar um pouco.
Acordei sentindo como se não tivesse dormido um minuto sequer, não me lembrava de nada, só sabia que estava atrasado para
pegar minha carona, tinha que correr se quisesse chegar a tempo.
Sentado no fundo desse ônibus meio velho, já com o piso de
borracha desgastado e rachado do frio congelante do inverno, percebi algo inquietante, algo anormal.
Como? Estava repetindo o mesmo dia! Quantas vezes será que
acordei e corri para cá? Ou será que essa é a primeira vez? Não sabia
responder... Não era possível.
Assustado, gritei, tentando avisar aos outros passageiros, mas
eles não se importavam com o berreiro. Então, para me acalmar, um
homem de jaleco branco disse para eu não me preocupar com essas
coisas. O ignorei, e na parada seguinte do ônibus, saí correndo passando por uma poça d’água.
Quando olhei para baixo, vi no reflexo alguém que não conhe-
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cia. Corri para casa, passando por portas e mais portas. Algumas
dessas portas já estavam abertas e, enquanto corria, eu espiava e via
do outro lado delas mundos diferentes, com naves, aliens, planetas e
luas. Ao longe avistei uma porta familiar, era a porta de minha morada. Só a porta, sem a casa, sem o tapete de entrada, sem o batente.
Parei na frente e lentamente abri. Havia uma sala, idêntica à sala da
minha casa. Entrei e me sentei no sofá velho, também igual ao meu.
Respirei um pouco e pensei “essa é minha casa”. Algo óbvio para
um observador, mas não para mim. Olhado as paredes percebi o que
estava acontecendo. Eu não existia, nem minha casa, nem o ônibus,
nem aquele velho de jaleco. Quem disse “Penso logo existo” não se
referia a mim, nem a ninguém que eu fosse encontrar aqui.
Essas portas pelas quais passei são histórias a serem contadas
e, consequentemente, a minha também é. Não sei meu nome, nem
como minha face é, mas sei que não tive infância, nem pais, nem memória alguma do meu passado. Sou um personagem recém-nascido.
Estou preso nessa ficção cientifica, onde portais me levam para casa
e os ônibus não têm motoristas.
Tentei fugir, e novamente me encontro aqui, quase na hora de
sair de casa... Mas sair para onde? Sair para continuar essa história
que não foi escrita por mim? “Não. Essa história não vai ser escrita”
eu grito para as paredes. Decidi que essa história não irá para onde
o autor quer. Levanto-me, vou até a cozinha e puxo um garfo que
está em cima da mesa. Tudo além da cozinha desaparece. Acho que
o autor desistiu de domar meu personagem. Não resta nada, nem
história para contar, nem para viver. Tiro a tampa da tomada, e lá
coloco o garfo de metal. Minhas últimas palavras formam uma piada
sarcástica e ruim: “Uau! Que final eletrizante!”
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Maeli Souza
Maeli Pereira de Souza
Às vezes um pouco nos basta
Autópsia de um poeta
Às vezes um pouco nos basta
Maeli Souza
Elas vêm, elas vão
Um pouco sutis,
Às vezes não
Elas surgem, elas atraem
Um pouco leves
Às vezes apenas pesadamente caem
Elas acariciam, elas ordenam
Um pouco maléficas
Às vezes segregam
Elas julgam, elas sugerem
Um pouco ingênuas
Às vezes diferem
Elas guiam, elas aconselham
Um pouco inusitadas
Às vezes nos abraçam
Trazem paz
Às vezes guerra
Um pouco peculiares
Elas se completam
Palavras
Um pouco doces
Às vezes amargas
É magnífico
O poder das palavras
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Autópsia de um poeta
Maeli Souza
Algumas horas haviam passado. Algor mortis, o coração havia desferido seus últimos batimentos vagarosamente, o oxigênio
das células já não se fazia presente, parando assim, a corrente
sanguínea. A temperatura tinha decaindo com o passar dos ponteiros do relógio, de maneira lenta e ritmada.
A pele já fria, aos poucos perdia a sua coloração, palor mortis, tornando exóticos os lábios arroxeados. A elasticidade já não
era a mesma, os músculos tornavam-se rijos, rigor mortis. Com
a força da gravidade, o sangue que antes vagueava pelas veias e
artérias, agora jazia nos membros inferiores do poeta, causando-lhe descolorações ao toque, livor mortis.
O legista olhava cada parte do cadáver minuciosamente, tal
acontecimento era para si, de tamanha singularidade que não vinham palavras à mente para descrever. Causa da morte: poética
excessus syndromis. A famosa, porém rara, síndrome do esforço
poético excessivo. A síndrome causava fadiga, indisposição mental e física, variações de humor seguidas de alucinações, gagueira
psicogênica, narcolepsia e fobia social. Algumas suspeitas foram
notificadas com o passar dos anos, poetas e escritores que apresentavam sintomas, procuravam ajuda a fim de recuperar-se.
Com tamanha euforia diante dessa excentricidade, o legista
organizava sobre a sua bandeja metálica os equipamentos necessários para realizar o seu trabalho com afinco. Seguia sempre a
mesma ordem, bisturi, tesoura, pinças, afastadores, porta-agulhas, grampos, fios, e por fim, a serra elétrica.
Tomando uma lufada de ar, o legista se preparava para realizar as próximas etapas da autópsia. Apesar de ser um cadáver,
com cuidado e indolência, ele soltou a pele, músculos e tecidos
com auxílio do bisturi, após efetuar a incisão em forma de Y passando pelo osso esterno até o osso púbis.
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Após um súbito e inusitado pensamento, o legista recolocou
os tecidos, músculos e pele do defunto no lugar e por uma razão
desconhecida, ostentou uma audácia sem igual: examinaria o cérebro do poeta em primeiro lugar. Trocando o bisturi de lâmina
móvel pelo de lâmina fixa, ele fez uma incisão passando por trás
da orelha, através da testa, chegando até a outra orelha, dando
assim uma volta. Afastou o couro cabeludo do crânio, em dois
retalhos, e com o auxílio de uma serra elétrica fez um corte sobre
o mesmo, criando uma tampa e tornando possível examinar o
cérebro exposto.
Sua respiração tornou-se descompassada, ao passo que, diante de seus olhos, através do corte feito no crânio, propagavam-se
feixes de luz das mais variadas cores e tons. Vermelho, azul, amarelo, lilás, cinza, verde, ciano, marrom, âmbar, amêndoa, branco,
carmesim, caqui, púrpura e turquesa.
Tal acontecimento era inenarrável, sua boca escancarou-se,
mas não emitiu som algum. Seus olhos sobressaltados contemplavam o irreal, suas pernas fraquejaram e de sua mão a serra
elétrica foi ao chão, quebrando-se em várias partes. Inefável era
tal peripécia.
Os feixes coloridos transformavam-se em diversas formas no
ar, flores, ramagens, desfiladeiros de água cristalina, pássaros,
nuvens, pedras, cristais, formando a mais bela paisagem já vista pelo homem. Em alguns décimos de segundo, o legista pode
contemplar diante de si, a vista de um pequeno pedaço do tão
sonhado paraíso, antes que o mesmo se dissipasse de forma tão
rápida, semelhante à de como surgiu.
Sua respiração ainda descompassada, os olhos saltados diante de tal demonstração de beleza e seu coração batendo freneticamente com tanta adrenalina correndo por suas veias. Então,
quebrando o silêncio que tomava o local, ouviu-se com clareza o
som do tão conhecido toque de sinos. Era o seu despertador.
Aos poucos e com certa dificuldade, Dr. Duke abriu os olhos
e deparou-se com feixes de luz. Mas para sua desilusão eram os
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primeiros raios de sol que transpassavam a janela, saudando-o
com um novo dia. Sentado na beira de sua cama, seus olhos demoraram a se acostumar com a vista da parede branca a sua frente. Os resquícios das vivas cores que se espalhavam pelo cômodo
ao se esvair do corte feito no crânio do poeta, ainda dançavam
diante de seus olhos. O acontecimento do sonhos estava cravejado em sua mente.
Entre suas sobrancelhas um vinco estava formado, demonstrando a confusão de pensamentos em que se encontrava no momento. Em toda sua vida jamais vira algo tão excepcional, era
um misto de mistério e magia, com um toque de uma insana
realidade.
Boa parte de sua vida foi dedicada à leitura, mas os livros folheados por suas mãos cansadas nunca foram de fato compreendidos. Os poemas traziam consigo um enigma, sentimentos em
sua mais profundidade eram transpassados por meras palavras,
o que nunca fora parte da compreensão de Duke.
Questionava-se constantemente, como era possível tanto ser
expresso por um poeta sem que o próprio tivesse sentido tamanhas dores e incertezas. Mas esse sonho lhe trouxe respostas, e
tudo se resumia a apenas uma palavra: alma.
Sim, a alma. Nela há tantas bagagens, carregadas de todos os
sentimentos existentes, dos mais obscuros aos mais puros. E essa
era a verdade incontestável. Não sabia se de vidas passadas ou de
outro mundo, apenas que sentia. E muito.
Pode, então, compreender a imensidão de pensamentos,
ideias e sonhos que um poeta carrega dentro de si. Finalmente
tomou consciência de como é possível um poeta descrever outro mundo por detrás de suas pálpebras, transmitindo em meras
palavras a beleza superior que há na vida. De tal atributo, raras
pessoas podem usufruir, afinal, magnitude como essa, remetida
pelos anjos como um presente, faz-se única e especial.
Dr. Duke, ainda sentado na beira da cama, esticou o braço
a fim de desligar o despertador. Então ouviu as três batidas na
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porta que o fizeram levantar, seguidas de um bom dia e um aviso
para tomar as medicações após o café da manhã. Trocou de roupa e depois de fazer sua higiene matinal, seguiu para o refeitório
com os demais pacientes do Hospital Psiquiátrico Lincoln.
O dia passou e o sonho não saiu de seus pensamentos. Ao
cair da noite, quando retornou para seu quarto, correu até sua
escrivaninha de canto, tirou de dentro da gaveta seu diário e
então, com uma certeza ávida, exclamou ao escrever nas folhas
amareladas: quero ser um poeta!
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Nataly Falavinha
Nataly Mariana Falavinha
Metamorfose
Ai ai como eu me iludo
O laia
Metamorfose
Nataly Falavinha
Meu amor me espera, mas não posso sair. A chave da gaveta em
meu pescoço me tortura, mas ainda não posso abrir. Não saber o que
tem naquela gaveta é no mínimo incômodo, mas como vovó dizia no
bilhete, só posso abrir no dia 1º de outubro. Daqui a dois dias. Não
sei exatamente como me sinto agora, ter recebido o bilhete me fez
sentir como se ela estivesse aqui novamente. O agora se resume em
um misto de confusão e ansiedade.
Distraio-me por um instante. A chuva lá fora cai na terra trazendo de volta o cheiro das minhas botas vermelhas (daquelas que
se usa para pular em poças de lama), quando eu corria pelo bosque
perto da casa da vovó. A fogueira com meus amigos imaginários e
Kevin, o vizinho. As danças estúpidas que fazíamos em volta dela.
Meu casaco de flores rosas e amarelas que quase sempre cheirava
fumaça e cachorro molhado.
Escuto um pássaro cantando ao longe, quase rindo, zombando
de minha existência. Ah a minha existência, se eu fosse um pássaro
também zombaria. Dezoito anos e a mediocridade me define. Meus
pais morreram quando eu tinha onze anos em um acidente aéreo
na Rússia. Nunca fui do tipo de criança que tinha muitos amigos,
sempre preferi ficar deitada na grama, observando os maravilhosos
efeitos da miopia nas folhas das árvores, ao invés de passar meu tempo com o grupinho de meninas ou qualquer outro. Até porque eles
também nunca me aceitaram.
Só consigo pensar em abrir logo a gaveta, queria mesmo poder
abri-la agora, mas isso desrespeitaria o desejo da minha avó. Talvez
Dona Marina só tenha planejado esse mistério todo para animar minha vida depois de ter me deixado assim. Não faz sentido, ela sabia
que eu sempre fui ansiosa demais, não brincaria comigo desse jeito.
Casaco preto ou casaco vermelho? Casaco vermelho. Usar cores
teoricamente alegres em dias cinzentos, meio que funciona da mes-
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ma forma que dar um sorriso para alguém estranho. Apesar de um
sorriso-resposta ser uma coisa rara, talvez melhore o dia de alguém.
Em dias como esses, a grande maioria só escolhe um lugar confortável para ler um livro e tomar um café. Em dias assim também se pode
encontrar o verdadeiro amor. Assim como planejar um suicídio poético. Toda possibilidade deve ser considerada.
Pego meu casaco vermelho, calço meu All Star azul e saio. Estela
está me esperando no Café do Jardim, no centro da cidade. Vinte
minutos de bicicleta, trinta e cinco de ônibus. A chuva cessou, vou de
bicicleta, apesar de o tempo nublado avisar que pode voltar a chover
a qualquer momento.
Pedalo rápido. O céu começa a abrir, há raios de luz iluminando
maravilhosamente a estrada e as árvores ainda molhadas. É como se
eu tivesse passado de um canal da tevê analógica para um daqueles
filmes de altíssima resolução que passam nas televisões das lojas.
Chego ao café. O sol já se mostra e dá à cidade um tom de laranja maravilhoso. O café, cuja fachada foi sugestivamente pintada de
verde e coberta com bougainville rosa. Prendo a bicicleta num poste
de luz de frente para a vitrine.
Entro ainda ofegante, e a vejo apoiando o queixo na mão esquerda, e com a direita segurando Coração de tinta, um de seus livros
favoritos. É como se tudo nela estivesse em perfeita harmonia, de
seu cabelo bagunçado ao seu jeans rasgado, acompanhado de uma
camiseta azul e sua jaqueta de couro preta.
Enquanto ando em direção a ela, Estela se levanta com um sorriso no rosto e me abraça forte como sempre faz. Sento-me em frente de Estela, ao lado oposto da mesa redonda de ferro antigo com
desenhos arabescos. Peço um cappuccino com canela e Estela um
expresso duplo. Ela falando sobre as suas aulas de história da arte e
desenho e sobre como sua semana tinha sido exaustiva. Coço meus
olhos e volto a repousar as mãos sobre a mesa. Ela segura minhas
mãos com carinho e diz “são só dois dias, meu bem”, sua voz é o tipo
de melodia que agrada e transforma instantaneamente qualquer angústia em paz plena.
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Terminando o café, peço uma tarte tatin de maçã para viagem
e saímos para minha casa, para uma clássica maratona de nossos
filmes favoritos, acompanhados da tarte, pipoca amanteigada, caramelizada e suco de abacaxi.
O telefone toca e me mexo devagar. Estela dorme no meu peito
e eu realmente não queria levantar. É Kevin, o vizinho. Quando morava no centro com meus pais, visitávamos a vovó de vez em quando,
mas com a morte dos meus pais, fui morar com minha avó na fazenda e a partir daí brincava com Kevin quase todos os dias, o dia todo,
então praticamente crescemos juntos.
No telefone, ele não parecia bem. Sua voz estava trêmula e ele
não conseguia pronunciar as palavras sem gaguejar. No fundo só ouvia barulhos de coisas batendo e alguns gritos. Seu pai sempre foi
um homem grosseiro, talvez por isso Kevin o odiasse, mas ele não
gostava de falar sobre isso. Eu falei para ele se acalmar e me contar o
que estava acontecendo, até que finalmente disse: “Bia, preciso que
venha aqui. Preciso da sua ajuda”.
Não sei se acordo Estela e peço para que ela vá comigo ou se
vou sozinha. Não quero colocá-la em risco. Enquanto eu escrevia em
um pedaço de envelope velho que já iria voltar, ela abriu os olhos e
começou a insistir em ir comigo. Estela é do tipo que sabe me convencer de qualquer coisa que ela queira, e eu, do tipo que demora em
perceber que fui manipulada.
Chegamos à casa do Kevin. Uma casa consideravelmente imensa. Apesar de morar só com seu pai desde sempre, a casa tinha oito
quartos, dos quais no mínimo cinco nunca tinham sido usados.
Mas Domingos, o pai de Kevin sempre achou importante mostrar
o quanto tinha. Bati na porta azul de madeira e no mesmo instante
Domingos a abriu. “Olha só quem nos dá a honra de uma visita!”,
ele disse gritando com um tom irônico, “o casal favorito da velha
mais odiável que o mundo já teve o desgosto de hospedar”. Ele estava
com um bafo insuportável de álcool e eram apenas 11h da manhã.
“Eu vim para falar com o Kevin, me poupe”, a mão gelada de Estela
segurando a minha com força suficiente para quebrar uma casca de
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uma noz. Entrei, mesmo sem convite, e chamei Kevin. Ele veio com
um roxo no olho e um corte acima da sobrancelha esquerda. Eu não
queria mais ficar ali, queria levar ele e Estela para casa. Seu pai continuou a gritar “Meu amado filho! Veio se juntar a nossa festa!”. Era
extremamente perceptível o ódio nos olhos de Kevin, fitava Domingos como se o único sentimento restante por ele fosse o desprezo, e
esse tivesse simplesmente reduzido os vinte e dois anos de relação ao
momento em que Domingos perdeu a razão, o que é altamente compreensível, no meu ponto de vista, além do fato de que Domingos
sempre foi abusivo e violento.
Pedi para Domingos se acalmar. Ele foi até a cozinha e então
pude falar para Kevin ir fazer as malas. Ele, em choque, não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Estela disse para que tentássemos o fazer sair de perto e então poderíamos chamar a polícia e sair
daquele lugar, o que era nossa melhor opção.
Enquanto ele não voltava, Estela saiu para pegar seu celular que
deixou em casa. Kevin foi para o quarto pegar suas coisas para irmos
embora. Domingos voltou da cozinha com uma garrafa de whisky e
dois copos. Começou a falar de maneira menos assustadora, encheu
um dos copos e me deu. “Não é nada pessoal, sabe? Meu problema
sempre foi com sua família, principalmente sua avó, não você”.
Deixou seu copo na mesa de centro e foi andando cruzado, prestes a cair, ao banheiro que ficava no fim do corredor. O banheiro era
revestido com um papel de parede florido nas cores verde e marrom, ao lado do quarto de Kevin. Olhei pela janela da sala e vi Estela
chegando. Ela entrou e já foi discando o número da polícia, quando
ouvi um barulho no corredor, semelhante ao de uma bola de boliche
quando cai no chão. Meu coração acelerou e comecei a suar frio.
Segurei firme a mão de Estela e começamos a andar em direção ao
banheiro. Kevin estava parado, parecia uma estátua. Em suas mãos
um cinzeiro de prata que fazia parte da prataria da família, coberto
de sangue. O cinzeiro caiu no momento em que Estela falou com a
voz trêmula e falha “Kevin”.
Domingos estava caído no chão de barriga para baixo. O sangue
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escorrendo por seu pescoço, sujando sua camisa xadrez verde e o
tapete debaixo dele. “Não esteja morto. Não esteja morto. Por favor,
não esteja morto”. Estava morto. Nós três e um morto. Como isso
foi acontecer? Droga, eu sabia que não devia ter levantado da cama.
Maldito telefone. Maldito Domingos. Se tivesse chegado mais cedo,
talvez isso não tivesse acontecido. Se tivesse passado mais tempo
com Kevin essa semana, talvez tivesse evitado essa tragédia.
“Temos que dar um jeito nisso”, Kevin disse, tirando a camisa
suja e usando para limpar o sangue do chão, quase robótico, não
expressava nenhuma emoção, nada. Acelerado, acendeu a lareira da
sala e começou a queimar tudo o que podia. Estela olhou para mim
ainda sem entender o que estava acontecendo, mas disse “tem uma
olaria há uns quarenta minutos daqui, e hoje a fábrica está fechada,
com sorte podemos achar o forno aceso”. Nunca pensei que fosse
ouvir isso dela. Nunca pensei que ela, um dia, teria que dizer algo
assim. A ficha ainda não caiu. O que diabos está acontecendo com a
nossa vida? O que diabos aconteceu com Kevin?
Eu e Estela pegamos todos os sacos de lixo que achamos para
cobrir o corpo. Eu pedi para Kevin que fosse buscar a caminhonete
da minha avó. Enrolamos o corpo com os sacos e depois no tapete
do corredor. Tão frio. De alguma maneira, já era, nada além de um
monte de partículas compactadas.
O colocamos no porta-malas. Kevin não tinha nenhuma expressão no rosto. Ele não olhou para o corpo do pai sendo colocado no
carro. Olhou para suas mãos. Olhou para o chão, mas para o pai,
não. Eu não sei se deveria falar alguma coisa, a gente não aprende
como agir nesses momentos, em nenhum lugar, com ninguém. Só
acontece.
Foram quarenta minutos, mas pareceram horas. Ninguém foi
capaz de pronunciar uma só palavra. Desci do carro para abrir o portão da fábrica que estava fechada. O portão tinha um tipo de trava
que eu não poderia abrir com um alicate então acelerei a caminhonete para derrubar. Estacionei ao lado da olaria e respirei fundo. Estela estava acelerada e extremamente preocupada, pude ver em seus
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olhos que poderia sair dali, correndo, a qualquer momento. Segurei
seu rosto com as duas mãos e disse, olhando em seus olhos, que não
precisava se preocupar, que daríamos um jeito, que tudo ficaria bem.
Quando eu não tinha certeza se isso aconteceria de fato.
Olhei pelo espelho retrovisor e vi Kevin abrindo o porta-malas,
corremos para ajudá-lo. Minhas mãos tremiam e eu na realidade não
sentia mais nada além de um calafrio em todo meu corpo. Kevin, que
antes estava sem reação alguma, agora chorava desesperadamente.
Gritava como se tivesse uma adaga cravada em seu corpo. Isso está
acabando comigo. Não sei o que dizer ou fazer, então só continuei ali
para segurá-lo se fosse cair.
Vendo a fumaça subir, Kevin só gritava, mas agora nós estávamos o abraçando, ele apertando meu braço e minhas costas como
se quisesse atravessá-los com as unhas. Apesar de sabermos, desde
o início, que ele estava morto, e de que nada poderia mudar o que
aconteceu, ainda tínhamos, no fundo, a esperança de que Domingos
simplesmente acordasse. Ou pelo menos nós acordássemos de um
terrível pesadelo.
Ali estávamos nós três, um assassinato e uma chave. De alguma
maneira, tirando de lugares desconhecidos, motivos para nos recompor. Olhei para Kevin e percebi nos seus olhos o alívio, o sentimento
de estar livre de toda aquela dor e sofrimento, apesar da culpa e do
arrependimento. Kevin adormeceu deitado no meu colo enquanto
Estela dirigia de volta para casa. O sol nascendo me distraiu e por um
momento deixei de pensar no que tínhamos feito. Por um momento
me encontrei pensando em nada, além de como eram lindas as cores
espalhadas nas nuvens ao nascer do sol. Como eram lindas refletidas
no rosto e nos cabelos da Estela, segurando um punhado de cabelo
no alto da cabeça com a mão esquerda, com seu braço apoiado na
janela e a mão direita no volante. Seus dentes segurando parte de seu
lábio inferior, enquanto olhava fixamente para a estrada.
Entramos em casa e a única coisa que eu queria era tomar um
banho e depois um café quente perto da lareira, como eu fazia com a
vovó depois de um dia ruim. Existem momentos na vida, nos quais
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a única coisa que você quer é que deixem de existir. Você quer acordar, e o maior problema do seu dia ser o seu macarrão instantâneo
queimado, ou a ração do seu gato ter acabado, e você estar sofrendo
de preguiça excessiva. Eu queria que só por um dia, eu pudesse ficar
à toa, na minha cama, sem coisas para fazer ou problemas para resolver. Queria que a gaveta da vovó fosse a única coisa na minha mente.
A gaveta da vovó.
Enquanto Estela e Kevin descansavam no meu quarto, fui até o
quarto da vovó para abrir a gaveta. A penteadeira continuava guardando as joias, maquiagens e perfumes da Dona Marina, sempre tão
vaidosa e com um cheiro tão... de avó. Difícil descrever. Tirei a chave
presa a um cordão no meu pescoço e coloquei na fechadura. Minha
mão tremendo levemente e eu suando frio. Uma, duas, três voltas.
Abri a gaveta e lá estava. Uma carta, algumas fotos e dois casulos de
lagartas que provavelmente deveriam fazer parte da surpresa, mas
apodreceram antes de qualquer coisa. Minha avó era com certeza, a
criatura mais poética e romântica que já conheci, e como as lagartas
mortas podem concordar, a sua intenção era sempre a melhor, mesmo que suas tentativas não tivessem êxito.
Peguei a carta e sentei-me na poltrona para ler. Respirei fundo
e abri o envelope quebrando o selo fechado com o sinete favorito de
vovó, com o desenho de uma rosa.
“Minha querida, desculpe por não ter te falado isso enquanto
estávamos juntas, mas nunca soube como te olhar nos olhos e falar o
que tenho para dizer. Espero que tenha gostado das borboletas. Coloquei-as na gaveta para que representassem a união e o isolamento.
Com elas, meu bem, posso comparar você e Kevin. Colocados nesse
mundo para viverem juntos, mas separados pela crueldade do destino.
Antes de qualquer coisa, quero te pedir para que tenha empatia,
não julgue a decisão tomada por mim ou por sua mãe nesse trajeto.
Quando sua mãe ainda morava comigo, antes de conhecer seu
pai, teve um relacionamento duradouro com um garoto que eu sempre julguei insuficientemente bom para ela. Domingos era sete anos
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mais velho que sua mãe na época e já mostrava suas garrinhas desde
o começo. Eu sempre soube as verdadeiras intenções daquele menino, mas sua mãe sempre foi teimosa como uma mula. E lá foi ela.
Depois de cinco meses de namorico, Amanda estava chorando no
quarto. Quando a vi, com a cara toda inchada, já sabia que o que ia
inchar, também, era a barriga.
Sua mãe engravidou aos 18 anos e a única coisa que eu pude
fazer foi apoiar o relacionamento dos dois. Kevin nasceu e com ele
nasceu outra personalidade de Domingos, que antes era malandro,
mas muito carinhoso com sua mãe. Ele começou a ser grosseiro e
abusivo.
Certa vez, sua mãe veio bater na minha porta às três horas da
madrugada, com um arranhão na bochecha e o olho roxo. No mesmo momento liguei para a polícia. Ao chegar a casa, os policiais
apenas disseram que não podiam interferir em brigas domésticas.
Amanda não voltou para casa com Domingos, então eu fui buscar
Kevin. Domingos começou a nos ameaçar, e disse que se alguém tentasse tirar o Kevin de lá, ele mataria o bebê e Amanda.
Foi aí que entrou seu pai. Quando Amanda foi para a cidade,
buscar ajuda para recuperar Kevin, conheceu seu pai. Até você nascer, ele tentou encontrar meios para conseguir a guarda do Kevin,
mas como Amanda saiu de casa, foi considerado abandono. Depois
eu decidi que moraria ao lado do Kevin e cuidaria dele enquanto estivesse viva, então achamos melhor não aumentar essa briga. Quando vocês começaram a se aproximar, eu tive medo, mas vocês sempre
tiveram um carinho muito especial um pelo outro. Hoje me arrependo por não ter lutado com todas as minhas forças pela guarda dele.
Teríamos sido uma família muito mais feliz. Talvez sua mãe ainda
estivesse viva. Talvez tudo tivesse sido diferente.
Agora que você sabe disso, quero pedir que você seja para o Kevin, tudo o que nós não fomos. Uma família. Quero que vocês encontrem um no outro o amor que precisam para continuar. O apoio
que precisam. Quero que vocês continuem como sempre foram. Que
assumam a responsabilidade de serem irmãos. E principalmente,
87
que me perdoem por demorar tanto para contar.
Gostaria de ter mais tempo com vocês, e Estela, minha linda,
espero que você continue se encaixando tão perfeitamente nessa família, que mesmo pequena e meio desestruturada, possa ser o seu
porto seguro.
Sempre irei amar e cuidar de vocês, onde quer que eu esteja.
Com amor,
Sua avó, Marina”.
Desci correndo, entreguei a carta para Estela e fui comprar chocolate. Como me sinto? Correndo para comprar chocolate. Aposto
duas barras que em dez minutos vou acordar e tudo isso não vai ter
passado de um sonho.
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Ai ai como eu me iludo
Nataly Falavinha
Não me elogie
Teu elogio é lixo
Lixo tóxico
Intoxica-me
Machuca-me
Não me toca
Se minha roupa te provoca
Não me olha
Se meu corpo te excita
Não me cita
Na sua conversa de bar
Você se mostra muito macho
Quando me mostra
Eu exposta
Ou ela
Não me olha
Não olha ela
Seu olhar humilha
Seu olhar destrói
Não fala
Sua palavra dói
Não me procura
Tua presença me atormenta
Me esquece e me liberta
Dessa sua prisão
Dessa sua pressão
Pura repetição
Dessa cultura
Dessa alienação
Onde eu sou só carne
E você sem emoção.
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O laia
Nataly Falavinha
Todo mundo olha
Ninguém realmente vê
O sistema exige perfil de tevê
Se tu não trabalha, é vagabundo
Fica a mercê do mundo
Tem que trabalhar pra não morrer
Pra trabalhar tem que ter experiência
Pra ter experiência tem que trabalhar
Humano é lento, dá trabalho
Vamos automatizar
Robô é mais prático
Mais insensível
É portátil
É retrátil
Cabe no bolso
Cabe na mão
Guarda no bolso
Guarda o desgosto.
Guarda seus gostos
Guarda quem você olha
Guarda quem você não vê.
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Ricardo C. M. de Oliveira
Ricardo Chicona Marques de Oliveira
Ah Mar
Programado para viver
Ah Mar
Ricardo C. M. de Oliveira
De mar ah, mar,
Ah, mar até encontrar,
Na corrente de ah mar.
Sigo ah, mar,
Sem saber onde,
Em busca de ah, mar.
Profundo é ah, mar,
Lá em seu lar,
Para sempre ah, mar.
No mar lá estar,
E nele ah, mar,
Até o mar deixar.
Dele vou ah, mar,
Junto dela estar,
De mar ah, mar.
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Programado para viver
Ricardo C. M. de Oliveira
Fui programado para viver, não possuo memórias nem função
principal, objetivo: viver.
Mas o que seria viver? O que encontro em minhas pesquisas,
não são fatos, muito menos respostas exatas, sou um robô, preciso de
respostas, teorias não fazem minhas engrenagens funcionarem, sou
fruto da ciência, uma genuína máquina... Para viver?
Minha localização atual: me encontro sentado em um banco
numa espécie de parque, logo a frente uma rua pavimentada. Colher
informações será o primeiro passo para a conclusão do meu objetivo
– viver.
Minhas pesquisas indicam que viver é demonstrar sentimentos,
é sentir dor, tristeza, alegria... Dentre outras muitas coisas que me
parecem secundárias no ato de viver.
Sentimento é um verdadeiro atraso, olho para mim, não sinto
dor e não preciso de alegria, nem de tristeza para conclusão do meu
objetivo.
Um grito, logo ao meu lado, olho e encontro um ser humano
muito pequeno comparado aos outros. Uma criança. De seus globos
oculares, também conhecidos como olhos, escorrem água, talvez estejam com defeito. Lógico que não tenho esse problema, de meus
olhos nunca escorrerá líquido, mas porque essa criança está assim?
Algo deve estar errado.
Uma mulher se aproxima da criança, abraça o pequeno ser e diz
que tudo ficará bem, que não precisa chorar... Chorar? Ficará bem?
Suponho, pelas minhas pesquisas, que esse tal choro esteja ligado
com um dos sentimentos conhecidos como tristeza, e o ato dessa
mulher... Demonstra outro sentimento. Será amor? Ora isso é muito
primitivo, é por isso que os humanos não são tão evoluídos como eu.
Há muitas diferenças entre nós. Mas por que isso me parece tão
interessante?
93
Com mais atenção, e de outra forma começo a observar as pessoas. Enquanto olho para homens, mulheres, crianças e idosos sinto
algo encostar-se em minha perna. Olho para o chão e vejo sentada
uma criatura muito curiosa, mais uma miniatura de ser humano, um
bebê. Ele olha para mim e sorri, eu o cumprimento da mesma forma
e pergunto o que ele está fazendo ali, se estaria perdido. Logo um
homem aparece, pega o bebê no colo, pede desculpas pelo incômodo
e diz que as crianças são muito curiosas. Sobre o ombro do homem,
mais uma vez aquele filhote me olha, sorri, acena e diz com uma voz
engraçada: “tchau robozinho”. Retribuo o aceno e digo adeus.
Curioso, não consigo explicar as ações de uma criança, pelo que
parece eles são movidos pela curiosidade, pequenas criaturas que expressam grandes alegrias. Mais uma vez me deparo com sentimentos, parece que eles não são tão insignificantes assim, estão presentes
na vida de todos. Mas então, por que eu fui privado disso? Não tenho
sentimentos, sou só um robozinho.
Escuto um forte barulho, uma colisão entre dois veículos a alguns metros de distância de onde estou. Dois homens, um de cada
veículo, saem e começam a gritar. Irritados, um coloca a culpa no
outro. É evidente que aquilo foi um acidente, ninguém tem culpa de
nada. Mas os seres humanos são realmente primitivos, é obvio que
com paciência e diálogo o problema poderia ser resolvido com facilidade, como são imperfeitos!
Mas vejamos o que eu ganhei com a minha perfeição? Nada!
A cada dia, percebo o quanto a vida é curiosa, como as pessoas são
repletas se sentimentos e cheias de vida. Alegria, tristeza, angústia,
felicidade... Elas choram, sorriem e vejo que todos esses sentimentos são representações das imperfeições que possuem. Algo que um
robô como eu, não precisa se preocupar em adquirir, até porque não
é possível. Minha programação é viver, fui feito para isso, viver.
Meu criador deve ter se esquecido de que sou uma máquina,
não tenho data de nascimento e se repararem corretamente, minha
existência será eterna. Não posso sorrir, não posso chorar, não sinto
dor, mas também não sinto a felicidade. Portanto, a vida é um pre-
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sente que não me foi dado.
Algo estranho, curioso, realmente peculiar, já é fato: eu não vivo.
Porém, nada me impede de observar as imperfeições da vida alheia,
o que a faz tão especial e única.
Reprogramar meu objetivo? Fora de questão. Agora eu observo
a vida.
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Vinícius Peretti
Carniceiro de Passado
Chuva
Ícaro
Infinito
Minha Lua
Carniceiro de Passado
Vinícius Peretti
A noite desnudava seu vestido de nuvens para revelar o céu estrelado. Devo confessar, com um corpo pontilhado de estrelas cujo
brilho ultrapassa o brilho da lua, a noite estava encantadora, no ápice da juventude. Antônio Garisbaldi, ou como o chamavam, Garis,
aproveitava essa esplêndida visão do universo enquanto o verão
permitia, embora, creio eu, de forma pouco elegante. Durante seis
dias da semana Garis fazia o trabalho de lixeiro numa companhia
multimilionária de coleta de lixo, no período noturno, obviamente.
O apelido provindo do sobrenome sempre rendia piadinhas lá, algumas bem engraçadas, entretanto a graça vinha mesmo quando ele
falava que completara o ensino superior duas vezes, uma no curso
de psicologia, outra no curso debiologia. Risadas seguidas de risadas suscitavam na roda de conversa. Ora, diferente da opinião dos
eruditos e mesmo dos colegas, o homem possuía uma perspectiva
incomum desse humilde trabalho de lixeiro. No completo segredo
recolhia, além de ordinários restos, sonhos desprezados e jogados
fora pelas pessoas, quer dizer, os objetos portadores de tais sonhos.
Deixando os rodeios de lado, Garis via em certos objetos do lixo uma
inspiração invisível a olhares ordinários, não consigo traduzir nas
palavras a dimensão dos sentimentos gerados no interior do homem,
poderia perder horas descrevendo, ainda assim descreveria uma impressão incerta.
Na primeira semana do emprego ele guardou um rádio antiquíssimo perdido no meio dos sacos de sobras orgânicas. Ao chegar a casa, um barraco escondido num fim de mundo qualquer,
Garis tragou todas as memórias nele contido, a alegria e a tristeza
que um dia fizeram parte da vida do rádio. As gargalhadas, as efusões impressas nele pelas vozes dos locutores, bem como as lágrimas
derramadas na sua frente pelos parentes quando o dono morreu. E
trouxera também uma bola rasgada por cair no arame farpado. Dela
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jogou o futebol que os meninos da rua jogaram. Chutou-a, gritou,
fez gol, comemorou e brigou. Nesses breves instantes viajava através
dos sonhos num prazer supremo, seu corpo dançava misturando felicidade e delírio, coisa de outro mundo. Garis perdia-se em gestos
exóticos, como se estivesse eufórico, exaltado. Caso alguém o visse
nesse estado ufano, sussurraria “Nossa... ficou biruta”. Tudo em volta diminuía e tornava-se insignificante, dos distúrbios interiores à
hipócrita sociedade, nada o perturbava durante sua felicidade tão
curta quanto infinita.
A ânsia crescia a cada dia conforme tragava mais emoções da
miríade de objetos coletados. Bolsas, sapatos, brinquedos, televisão,
retratos, cadeiras, computadores, papéis e diversas quinquilharias
mais. Tamanha ânsia resultou na despensa do trabalho, pois atrasos
frequentes e a distração constante devido a procura por novos materiais de felicidade, motivaram a empresa. Uma vez desempregado,
Garis viu-se distante da fonte de prazer. Antes era fácil, montava no
caminhão, separava algumas coisas de valor, depois levava para casa
sem grandes dificuldades. Porém agora de que maneira montaria no
caminhão de lixo sem estar na qualidade de lixeiro? Para saciar sua
vontade, começou ele a vasculhar as lixeiras na procura por lixos
significantes. Muniu-se de um saco preto e partiu destrinchando os
diversos bairros, ora, a sua experiência como lixeiro permitiu um
extenso conhecimento acerca das ruas. Nas andanças um sofá rasgado apareceu no caminho. Quase morreu de cansaço ao carregar por
cinco quilômetros até sua casa, mas conseguiu fazê-lo entrar no barraco. Isolado, Garis sentiu o doce perfume da mulher que sentava ali,
tal cheiro revelou sua aparência. Uma bela jovem de cabelos curtos e
negros... olhos acinzentados feito tempestade...assistia novela todos
os dias... e perdeu-se divagando por entre as miudezas achadas fora
e dentro do sofá.
Anos desenrolaram-se nesse ciclo, não me pergunte a maneira
pela qual ele sobrevivia, nem eu sei. Vagueava nas ruas, achava algo
inspirador, desvendava os sonhos escondidos. No entanto chegou a
um ponto em que Garis enjoou de revirar lixeiras buscando prazeres
99
repetidos, o tempo arrancara boa parte da graça de consumir memórias. Jogou-se, portanto, nas ruas, a observar o mundo e suas sutilezas, e dedicava imensa parte de atenção às pessoas. Aquele velho
narigudo segurava o celular de um jeito tão curioso, sentiu o impulso
de roubá-lo para descobrir quais sonhos continham o aparelho. Não
demorou muito tempo, Garis seguiu o velho, lambendo os beiços,
sentiria aquela velha felicidade alucinada de novo. Quando pôs a
mão no celular para roubá-lo, fitou os olhos do velho: lampejavam
medo. Aquilo era novo, uma série de engrenagens puseram-se a funcionar na mente de Garis, o júbilo não estava retido nos objetos nos
quais sugava a vitalidade. Contrariamente à sua concepção inicial,
a alegria não era proporcionada pelo objeto em si, mas pelas ideias
nele imbuídas por alguém. Não satisfeito, o homem desejava mais,
queria sentir prazeres de maior intensidade. Então, com pensamentos insaciáveis sobrevoando a cabeça, sequestrou o velho e o guardou
no armário da cozinha — agora poderia ter uma fonte ilimitada de
emoções e sonhos dentro de casa.
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Chuva
Vinícius Peretti
Estou chovendo por dentro
Chuva rascante e gelada
Chuva apenas, sem trovoadas
Tampouco gemido de vento
Estou chovendo por dentro
Sem ter por onde fugir a água
Dos olhos escorre a mágoa
Mal suportam o tormento
101
Ícaro
Vinícius Peretti
Era uma vez um homem. Havia acabado de entrar no seminário, nem cabelos brancos possuía. Na juventude traçara um plano
de vida: almejava tornar-se padre, bispo, e quem sabe, papa. Porém,
a partir deste ponto o plano perdia-se nos devaneios. O homem recém-apresentado louvava os livros tanto quanto louvava a Deus, devorava-os, palavra por palavra, até restar apenas os frangalhos dos
capítulos. Devido a um bom acaso, dentro do seminário onde vivia existia uma modesta biblioteca, composta de obras variadas, na
maioria, religiosas.
— Pode parecer blasfêmia, mas um pedaço do Paraíso está aqui
na biblioteca. — falava nos momentos a sós.
Certo dia, explorando os cantos obscuros desse lugar, achou um
pequeno livro esmagado no canto da prateleira mais distante. As páginas amarelas e delicadas indicavam o quão velho era o estado do
livreto. O título, meio apagado, estampava:
Ícaro
O homem estranhou o título, Ícaro é um nome famoso na mitologia grega. Pouco proveito tirou de tentar elucidar a dúvida de
qual relação o nome possuía com as escrituras cristãs. Folheou-o,
portanto, cheio de curiosidade, pois poderia ser algum texto sacro
perdido ou esquecido, algum documento de um clérigo célebre. Na
primeira página lia-se:
Aqui está registrada uma história que não conveio aos santos do
passado encaixar na Bíblia.
Ávido, prosseguiu a leitura das páginas seguintes, destrinchando a narrativa de modo a satisfazer seu entusiasmo. Ora, descobertas
102
não surgem todos os dias, sobretudo as que ninguém ousou procurar. De início assemelhava-se a uma história bíblica comum, à exceção de que se tratava da vida de um anjo — o fato causou um franzir
de cenho no homem. E que exemplo de anjo! Operava milagres de
olhos vendados numa devoção de tirar o fôlego, trabalho digno do
profundo respeito dos superiores. Curou muitos idosos das moléstias da vida, perdeu a conta da quantidade de demônios derrotados,
sem mencionar as inúmeras proezas heroicas. Já o consideravam
santo no mundo humano e demônio no mundo dos demônios. O escolhido Dele será? Seria de extrema dificuldade definir anjo melhor.
Encaminhava-se uma bela história com um fim divino, no entanto, o homem ficou chocado quando a partir da metade tomou um
caminho diferente. O Anjo começou a agir de maneira estranha, um
curioso fogo despertou em seu peito, uma inquietação de curiosidade insaciável. Desejou, no Paraíso, voar acima dos limites definidos
por Deus, atingir o infinito celestial, o Trono, ilícito a mensageiros
comuns. Bateu as asas um tantinho além do permitido, só um pouquinho, quem sabe Ele nem notaria.
Ao observar de perto a audácia do servo, a voz de Deus Pai Todo-Poderoso retumbou grave pelas veredas do firmamento:
— Anjo meu, voe baixo, não eleve tuas asas a tão alto plano.
Obediente, o anjo encurtou a distância entre ele e o chão. Dali
a pouco, o Anjo novamente elevou-se, superando a altitude anterior.
Outra vez, observando de perto a audácia de seu servo, a voz de Deus
Pai, Todo-Poderoso, retumbou grave pelas veredas do firmamento:
— Anjo meu, voes baixo, não eleves tuas asas a tão alto plano.
Obediente, o Anjo encurtou a distância entre ele e o chão. Seguiu-se desta maneira durante incontáveis eras. O Anjo erguia voo, e
Deus ordenava-lhe o oposto:
— Anjo meu, voes baixo, não eleves tuas asas a tão alto plano.
Cansado da proibição eterna, o Anjo proclamou a si:
— Não seguirei a ordem de meu Pai. Por que tenho de segui-la
cegamente, sem explicações? Quem é Ele para mandar em mim? Por
que ele me diz para voar baixo? Será que esconde algo lá em cima?
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Mas é claro! O segredo da vida, a verdade por detrás da criação, a
verdade do mundo, devem estar escondidas sobre Seu colo. Eis o
motivo de querer-me podar o voo.
E lá foi o Anjo, a atingir níveis coibidos às habilidades angelicais.
Observando de perto a audácia de seu servo, a voz de Deus Pai, Todo-Poderoso, retumbou grave pelas veredas do firmamento:
— Anjo meu, voe baixo, não eleve tuas asas a tão alto plano.
Em vez de seguir a vontade do Pai, retorquiu firme:
— Não meu Pai, eu voarei mais alto.
Subiu, subiu e subiu, ascendeu veloz no oceano de nuvens.
Transpôs o limite imposto como uma flecha atravessa o alvo. Durante a jornada crescente, no rumo para o infinito celestial, sentimentos
ultra dimensionais cruzavam o caminho do Anjo. Descobriu novas
cores, novos formatos, novas belezas. De repente, obteve patamares
fantásticos de compreensão do universo, os saberes preencheram as
lacunas da mente, soube resolver equações matemáticas jamais imaginadas, conheceu o nome de trás para frente das menores partículas, aprendeu a tocar cada instrumento e compreender cada idioma.
Tantas ideias adentraram e brigaram na consciência do Anjo que a
loucura serviria de elogio. Vislumbrou e sentiu o cosmos à visão onipresente do Pai, todos os objetos concentravam-se num só ponto,
permitindo a contemplação da totalidade.
Continuou a subir, sobrevoando as bordas do infinito, saindo do
mundo conhecido. O Paraíso transfigurou-se numa torrente de vórtices multicoloridos, memórias incongruentes atravessaram apressadas a sanidade, o espaço esticava e contraía, acompanhando o passo
delirante da distorção temporal. As mãos derretiam, os pés sumiam,
a cabeça girava. Futuro e passado tornaram-se um único dragão de
duas cabeças, cujo fogo transcendia a essência do presente.
— Avante! Avante! Avante! — berrava o Anjo embebido no caos
sinfônico. — Para a verdade! Para a verdade!
E a verdade encontrava-se relativamente perto, a somente três
paixões de distância. No fim das contas, depois de galgar o céu até o
cume, o Anjo atingiu um local onde as coisas encarnavam a perfei-
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ção, nada sujeitava-se a errar, tampouco possuir imperfeições. Vislumbrou a imagem do Pai delinear-se suave — um homem velho,
dotado de diversas marionetes e de uma trompa gigantesca. Notou
também a tristeza de Seu semblante. A voz não reverberou como de
costume, saiu-lhe sussurrada, de tom decepcionado.
— Anjo meu, tu me desobedeceste, apesar do aviso contínuo.
Voastes alto demais para um mero anjo. Dói-me a alma ver minhas
criaturas, minhas próprias criaturas, desobedecendo a palavra incontestável. Não existe motivo para Eu existir se fazem o que bem
entendem, não necessitam de mim. Talvez merecesse a morte, caso
ela deseje uma alma bem gorda, caso não, jogo-me no abismo do
esquecimento. — lágrimas marejaram os olhos de Deus quando suspirou isto. — Já não bastou teu infame irmão… agora tu. Filho meu,
há de ser punido. Tomo-te as asas e expurgo-te do Paraíso. Vá, sê
livre antes do Meu funeral.
Sem esforços a vontade celestial cumpriu-se, em pleno voo as
asas do Anjo sumiram. Desfeita a capacidade de navegar no vento,
iniciou-se a queda. Enquanto a subida trouxera a euforia da descoberta, revelara com todas as letras do alfabeto a verdade, a descida
despertou o desespero de despencar.
Arcanjo Miguel tinha visto-o cair do infinito desde o princípio,
aliás, quem não tinha visto? A estrela decadente rasgou o céu do Paraíso de cima para baixo indo de encontro ao chão. Uma explosão
brilhante logo iluminou as veredas universo.
— Um anjo pode morrer? — perguntou-se assustado.
Quis verificar de perto a situação do irmão. Soturnamente, a
resposta era afirmativa. Embora o corpo permanecesse inerte no
centro da cratera produzida pelo impacto, o rosto do anjo desfalecido irradiava um sorriso de mil sóis, o maior e mais bonito gesto de
felicidade capaz de ser produzido por qualquer espécime de criatura,
viva ou morta, sacra ou profana. Tal beleza atraiu diante do cadáver
angelical todos os anjos existentes, os quais formaram um círculo
iluminado ao redor da cratera de impacto. Querubins ajoelharam-se
admirados, tamanho o deslumbre provocado. Cânticos de glória de-
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clamados pelas vozes dos Serafins encheram os ares. O paraíso parou
e voltou seus olhos àquele sorriso magnífico, que brilhava ao mesmo
tempo melancólico e belo.
Após demorar-se em admirar a cena, Miguel enfim disse:
— Seja o que este anjo tenha feito para morrer, valeu cada instante.
O estudante de teologia fechou o pequeno livro e permaneceu
na quietude da biblioteca durante longas horas.
106
Infinito
Vinícius Peretti
Às vezes, no espanto,
Ao lado do amigo,
Rosto bem querido,
Penso no quanto
Um pedaço meu
Mora nessa pessoa,
Onde livre voa
Num perpétuo céu
Feito com sorrisos.
Pousados nas nuvens,
Lá, altos, sobre os cumes,
Imersos num infinito,
Brincamos, dois pássaros,
Largamos do mundo,
Forjando um profundo
Laço de amor raro.
Nem cem, nem mil raios
Conseguem quebrá-lo,
Quem dirá o intervalo
Em que agora caio.
No alegre momento,
Hora sem tormentos,
Jamais se imagina
Um fim dividido.
Calmo, diz o amigo:
“Não acaba, quem liga?”
Mas quando isso some
Todo um mundo tomba.
O tempo vem, e ondas
Carregam os nomes.
Restam só saudades
Então, na memória
Pequenas histórias
De doce amizade
Perdidas nas tantas
Subidas, descidas,
Perdidas na vida.
No final das contas,
Descubro já idoso,
Que paixão e alegria
Angústia, medo e ira
Acontecem como
Os choros sofridos,
São sempre poemas
Dos mesmos problemas.
Deve-se, por isso
Prosseguir caminho
Pois o maior alívio
Dessa vida horrível
É não estar sozinho.
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Minha Lua
Vinícius Peretti
Eu disse: desejo a lua
(vãs foram minhas palavras)
Quero do rosto a brancura
Alívio da hora macabra
Pois respiro dela a noite
Com seus raios de beleza única
Sobre o rosto de foice
E a lhe guardar, suas súditas
Quem sabe, talvez um dia
Minha mão toque sua mão
O peito na janela espia
Até que dos céus desçam
Nesse drama sem fim
A lua tão distante brilha
Brilha distante de mim
... jamais poderei senti-la
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