Padrões de diversidade e abundância nas associações de peixes

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Padrões de diversidade e abundância nas associações de peixes
Padrões de diversidade e abundância nas associações de peixes da
frente Atlântica do Concelho de Almada: evidências das alterações
climáticas?
Henrique Cabral1,2, Marina Laborde1, Nuno Lopes3, Marisa Batista1, Gilda Silva1,
Carla Azeda1, João Paulo Medeiros1, Sílvia Pedro1, Tadeu Pereira1, José Lino
Costa1, Pedro Raposo de Almeida1,4, Catarina Freitas3 e Maria José Costa1,2
(1) Centro de Oceanografia, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,
Campus da FCUL, Campo Grande, 1749-016 Lisboa. Contactos do 1º autor:
tel.: 217 500 826; fax: 217500207; e-mail: [email protected].
(2) Departamento de Biologia Animal, Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa, Campo Grande, 1749-016 Lisboa.
(3) Departamento de Estratégia e Gestão Ambiental Sustentável, Câmara
Municipal de Almada, Casa Municipal do Ambiente, Rua Bernardo Francisco
da Costa nº 42, 2800-029 Almada.
(4) Departamento de Biologia, Universidade de Évora, Largo dos Colegiais 2, 7004516 Évora.
Resumo
Portugal situa-se numa região biogeográfica de transição, onde ocorrem simultaneamente
espécies de peixes com afinidades por águas mais frias (características das zonas temperada fria
e boreal) e por áreas mais quentes (típicas das zonas temperada quente e sub-tropical). Neste
contexto, é uma região costeira particularmente interessante para avaliar alterações decorrentes
do aquecimento global. Desde 2007 que a Câmara Municipal de Almada, em colaboração com o
Centro de Oceanografia, têm vindo a promover a monitorização das associações de peixes da
frente Atlântica do Concelho. As análises foram baseadas nas capturas da pesca com arte de
xávega que é efectuada nesta zona, tendo sido efectuadas amostragens semanais durante o
período de safra desta pescaria. Foram igualmente utilizados nesta análise alguns dados
históricos referentes ao final da década de 1990. Tanto o número de espécies, como a sua
abundância, apresentaram grande variabilidade temporal a diferentes escalas, em particular
numa perspectiva interanual. As associações de peixes desta zona costeira têm sido dominadas
por um conjunto muito restrito de espécies (3 a 5), sendo as mais importantes, a sardinha, a
cavala e o carapau. Nos últimos anos, tem sido verificado um aumento do número de espécies e
abundância de peixes com afinidades por climas temperados quentes e subtropicais. No entanto,
apenas com a continuação destes estudos se poderá comprovar esta tendência e, em particular, a
existência de relações causa-efeito, uma vez que a grande variabilidade que se verifica nestas
comunidades e a influência de diversos factores ambientais podem também ser responsáveis ou
mascarar esse padrão.
Palavras-Chave
Alterações climáticas; associações de peixes; monitorização; padrões de distribuição e
abundância; zonas costeiras.
1
1. Introdução
Ao longo das últimas décadas, a temperatura média do planeta tem vindo a aumentar, sendo este
fenómeno largamente atribuído a causas antropogénicas (Levitus et al., 2001; Barnett et al.,
2005; Drinkwater, 2009). É também amplamente conhecido que estas alterações do clima
afectam tanto a abundância e a distribuição das espécies como a estrutura das comunidades
(Grebmeier et al., 2006; Hemery et al., 2008; Hunt et al., 2008; Arvedlund, 2009; Drinkwater,
2009), e que envolvem não apenas uma variável climática mas a combinação de várias (Hughes,
2000; Stenseth et al., 2003). Estas alterações são geralmente acompanhadas por outras ao nível
da biologia das populações, como por exemplo as respeitantes às taxas de crescimento,
sobrevivência e produção, tal como constataram Mackenzie et al. (2007) ao estudarem o
impacto das alteração climáticas sobre as comunidades ictíicas do Mar Báltico.
Vários estudos realizados ao longo da última década, no Atlântico Este, sugerem que a subida
global da temperatura média da água dos oceanos provoque alterações nas comunidades
marinhas, o que se traduz num desvio importante e significativo, em direcção ao Norte, do
limite biogeográfico entre as comunidades de água fria e de zonas temperadas quentes (Quero,
1998; Stebbing et al., 2002; Hemery et al., 2008).
As zonas costeiras são consideradas das mais importantes económica e ecologicamente devido
ao papel crucial que desempenham no funcionamento dos ecossistemas do planeta. Estas zonas
apresentam uma importância extrema para os juvenis dum conjunto alargado de espécies de
peixes, sendo, por isso, consideradas como áreas de viveiro naturais. Nestas áreas, onde a
produtividade biológica é muito elevada, os juvenis podem beneficiar duma grande
disponibilidade de alimento, da existência de condições favoráveis ao crescimento e dum
reduzido número de predadores. A manutenção dos mananciais de recursos pesqueiros depende
em larga medida da conservação destas áreas de viveiro.
O estudo recentemente realizado por Goberville et al. (2010) revelou uma grande sensibilidade
dos ecossistemas costeiros face às alterações climáticas, e sugere que o clima pode influenciar
fortemente o ambiente costeiro e actuar em sinergia com outras pressões antropogénicas no
sentido de alterar o estado e o funcionamento do ecossistema e dos serviços que o mesmo
proporciona. Também Heath (2005) verificou importantes alterações no funcionamento da rede
trófica dos peixes do Mar do Norte, e aponta igualmente como causa uma combinação de
factores como a pesca e o clima.
Embora os impactos antropogénicos directos sobre as componentes física, química e biológica
estejam largamente documentados, a sua potencial influência na variabilidade climática é menos
conhecida (Goberville et al., 2010). A aquisição desta informação é essencial para aumentar a
capacidade preditiva e, deste modo, melhorar e adaptar as políticas de gestão.
Neste contexto, e para que se possam considerar as alterações climáticas graduais a grandeescala e não apenas as oscilações climáticas regionais, é essencial a realização de estudos de
longa duração, espacialmente diversificados, que avaliem estes impactos. A nível nacional, há já
alguns trabalhos que abordaram este aspecto em diferentes contextos e locais (Cabral et al.,
2001; Henriques et al., 2007; Martinho et al., 2009; Vinagre et al., 2009; Baptista et al., 2010).
No presente trabalho, foram monitorizadas as associações de peixes da frente Atlântica do
Concelho de Almada, através do estudo da pesca com arte de xávega, procurando avaliar as
diferenças nos padrões de distribuição e abundância de espécies de peixes que poderão estar
relacionadas com as alterações climáticas. Esta arte de pesca é uma actividade frequente nesta
zona da costa, onde estão presentes muitas espécies de peixe com elevado interesse comercial,
verificando-se, no entanto, uma escassez de trabalhos científicos sobre esta pescaria, em
particular os necessários para avaliação dos seus impactos no meio marinho e para a sua gestão
local. Neste contexto, surgiu o desenvolvimento de um estudo desta actividade, no âmbito do
protocolo celebrado entre a Câmara Municipal de Almada (CMA) e o Centro de Oceanografia
2
da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (CO-FCUL), inserido no Plano Municipal
do Ambiente – Almada 21, instrumento local de planeamento e gestão ambiental (CMA, 2009,
2010).
2. Metodologia
2.1. Área de estudo
A área de estudo localiza-se a Sul de Lisboa, nas praias da Costa de Caparica, Concelho de
Almada (Figura 1). Esta zona caracteriza-se por ser uma área costeira arenosa, situada na
adjacência meridional da embocadura do estuário do Tejo.
Figura 1. Área de estudo da pesca com arte de xávega na frente Atlântica do
Concelho de Almada.
2.2. Características da arte
A xávega pode ser definida como uma arte de pesca com rede envolvente arrastante de alar para
a praia. É constituída por um saco, na região central, prolongado por duas asas (mangas ou
alares), nos extremos das quais estão presos os cabos de alagem (cordas ou chicotes). Este tipo
de pesca consiste no cerco de uma determinada área junto à costa, a partir de uma embarcação
que sai da praia, afasta-se da costa e coloca a rede em semi-círculo, voltando à praia. A rede é
alada para a praia com recurso à força mecânica de aladores adaptados a tractores (Martins et
al., 1999).
3
Todas as xávegas que operam nas praias da área de estudo apresentam características muito
semelhantes, cujo padrão é: comprimento dos cabos de alagem - 1500 m; comprimento das asas
- 300 m; comprimento total do saco - 16 m. As asas compreendem ainda os claros (mais
próximo dos cabos de alagem), com malhagem de 500 mm, e as alcanelas (mais próximo do
saco), com malhagem de 20 mm. A malhagem do saco é igualmente de 20 mm (Figura 2). As
embarcações utilizadas na arte de xávega têm comprimentos da ordem dos 7 metros.
Figura 2. Esquema de uma rede de xávega.
2.3. Amostragem
Para a caracterização das capturas da pescaria com xávega nas praias do Concelho de Almada,
foram efectuadas campanhas de amostragem semanais, de modo a monitorizar as capturas em
marés mortas e marés vivas, tendo sido amostrados, no mínimo, 8 lances por mês (4 por tipo de
maré). O período de amostragem corresponde ao período de actividade regular desta arte, ou
seja, entre os meses de Abril e Outubro, de 2007 a 2009.
Em cada lance, foi retirada uma sub-amostra e identificados, contados e pesados todos os
indivíduos das várias espécies presentes.
Para cada lance, registaram-se ainda factores ambientais que poderão ter influência nas
capturas: amplitude da maré, fase lunar, estado do mar, direcção do vento, temperatura da água
à superfície, temperatura média diária do ar, distância da costa a que cada lance foi realizado e
duração do mesmo.
2.4. Análise de dados
Para cada espécie capturada foram determinados a biomassa e o número de indivíduos médios
por lance, a frequência de ocorrência (percentagem de lances em que foi capturada).
4
Para identificar e avaliar possíveis padrões de distribuição das várias espécies em função de
variáveis ambientais, foi realizada uma Análise Canónica de Correspondências (CCA) com
recurso ao programa Canoco 4.5. Nesta análise foram utilizados os valores de abundância das
espécies com frequência de ocorrência igual ou superior a 10%. As variáveis ambientais
consideradas foram a amplitude da maré, a ondulação (altura média da vaga), a temperatura da
água, a temperatura do ar (média diária) e o tempo de pesca. Nesta análise, foram utilizados os
dados relativos ao número médio de indivíduos por lance, das várias espécies, estimados para
2009.
Foi também avaliada a variação inter-anual (1999, 2007, 2008 e 2009) das espécies de peixes
capturadas com a arte de xávega, através da análise gráfica da distribuição destas espécies de
acordo com os seus grupos biogeográficos, de forma a verificar a influência das alterações
climáticas na sua distribuição e abundância. Os dados referentes a 1999 foram obtidos pela
análise do trabalho de Cabral et al. (2003). A determinação dos grupos biogeográficos e a
classificação das respectivas espécies de acordo com este factor foram adaptados a partir do
estudo de Henriques et al. (2007), tendo a informação original sido complementada recorrendo
ao Fishbase.
3. Resultados e discussão
A cavala, Scomber japonicus (Houttuyn, 1782), a sardinha, Sardina pilchardus (Walbaum,
1792), e o carapau Trachurus trachurus (Linnaeus, 1758) representaram a grande maioria das
capturas da arte de xávega na área de estudo (mais de 90% da biomassa capturada). As recolhas
elevadas de cavala, sardinha e carapau, tanto em biomassa como em número de indivíduos,
devem-se sobretudo ao facto destas serem espécies pelágicas com comportamento gregário, o
que faz com que a sua captura seja habitualmente rentável, apesar do seu valor comercial ser
médio e variável ao longo do ano. Para além de constituírem a maioria do pescado obtido, estas
espécies são capturadas na quase totalidade dos lances efectuados, tendo frequências de
ocorrência superiores a 85%.
Das restantes espécies analisadas, destacam-se pela sua importância económica nesta pescaria, o
robalo, Dicentrarchus labrax (Linnaeus, 1758), a lula-vulgar, Loligo vulgaris (Lamarck, 1798),
e o sargo-legítimo, Diplodus sargus (Linnaeus, 1758).
De entre os factores ambientais analisados, aquele que maior influência teve nas capturas foi a
estação do ano. A cavala e o carapau mostraram diferenças significativas na sua abundância ao
longo das estações.
Analisando o diagrama resultante da Análise Canónica de Correspondências (CCA) (Figura 3),
pode-se verificar que todos os factores avaliados afectam acentuadamente as capturas das
espécies mais frequentes. Uma vez que a maioria dos factores analisados estão directamente
relacionados com a sazonalidade, pode-se concluir, da análise global do diagrama, que a
dinâmica espacial e temporal dos padrões de abundância destas comunidades de peixes é
afectada pela elevada variabilidade sazonal que caracteriza os ambientes costeiros desta região
biogeográfica (Fiúza et al., 1982), tal como foi evidenciado para algumas espécies em que
foram detectadas diferenças estatisticamente significativas entre as várias estações.
A amplitude de maré, estando directamente relacionada com o ciclo lunar, realça o papel deste
na distribuição das espécies, apesar da sua fraca influência em termos de biomassa total por
lance. Num diagrama deste tipo, as espécies que ocorrem frequentemente durante todo o ano e
em todos os locais tendem a ocupar a zona central, sendo que as espécies que ocorrem
sobretudo sob determinadas condições se destacam, aparecendo no diagrama mais afastadas do
centro. A análise do diagrama da CCA, mostra ainda que os factores de temperatura parecem
induzir a captura de maior número de espécies.
5
A maioria das espécies consideradas na análise de ordenação distribuiu-se pela zona superior do
diagrama. A captura de espécies como a choupa, Spondyliosoma cantharus (Linnaeus, 1758), o
caranguejo-pilado, Polybius henslowi (Leach, 1820), o robalo, a dourada, Sparus aurata
Linnaeus, 1758, a corvina, Argyrosomus regius (Asso, 1820), a boga, Boops boops (Linnaeus,
1758), e a lula-vulgar está relacionada com temperaturas mais elevadas. Estas espécies parecem
também estar mais ligadas a períodos de amplitudes de maré mais baixas. Já espécies como o
pregado, Scophthalmus maximus (Linnaeus, 1758), a cavala e a pescada, Merluccius merluccius
(Linnaeus, 1758), ocorrem preferencialmente com amplitudes de maré mais elevadas, menores
temperaturas e também menor ondulação (Figura 3).
0.6
A lula-bicuda-comprida, Alloteuthis subulata Lamarck, 1798, o sargo-legítimo e a cabra-debandeira, Chelidonichthys obscurus (Linnaeus, 1758), aparecem na zona mais inferior do
diagrama, mostrando alguma relação com amplitudes de maré mais baixas e com menores
temperaturas.
Temp. água
Temp. Ar
Taínha fataça
Biqueirão
Choupa
Ling.areia
Polvo
Robalo
Corvina
Sargo safia
Boga
Dourada
Ondulação
Lula vulgar
Carta imperial
Sargo Sen.
Peixe agulha
Sardinha
Besugo Peixe rei
Taínha garrento
Sarda
Faneca
Língua
Cabra cab.
Salema
Choco
Savelha
Galeota menor
Peixe aranha
Tempo pesca
Cavala
Pregado
Carang. pil.
Rodovalho
Carapau
Pescada
Lula bicuda
-1.0
A. maré
Sargo vulgar
Cabra bandeira
-0.6
1.0
Figura 3. Diagrama de ordenação da Análise Canónica de Correspondências, apresentando as
relações entre a abundância das espécies ( ) com mais de 10% de frequência de ocorrência em 2009
e as variáveis ambientais ( ) (A. maré - amplitude da maré; Ondulação - altura média diária das
ondas; Temp. Água - Temperatura média diária da água; Temp. Ar - Temperatura média diária do
ar). Os dois eixos canónicos apresentados explicam 66,6% da variância correspondente à relação
espécies-ambiente.
6
Outro aspecto cuja análise é de grande importância, tendo em conta a influência da temperatura
na distribuição das espécies, relaciona-se com a variação inter-anual das espécies capturadas.
Estudos recentes apontam para a existência de alterações na resposta fisiológica e
comportamental das espécies às condições ambientais como consequência das alterações
climáticas, respostas essas que afectam a sua distribuição (Santos et al., 2007). Sendo a costa
portuguesa uma zona biogeográfica de transição, nela habitam espécies com afinidades quer
com climas temperados quentes, quer com climas temperados frios, de facto, muitas das
espécies têm o seu limite de distribuição Norte ou Sul nas nossas águas (Henriques et al., 2007;
Santos et al., 2007). Neste sentido, é de esperar que o aumento da temperatura média das águas
costeiras leve ao aparecimento gradual ou aumento da abundância de espécies com afinidades
com os climas temperado quente ou tropical e uma diminuição do número ou abundância das
espécies com afinidades com o clima temperado frio.
Analisando as figuras 4 e 5, pode-se verificar que o número total de espécies capturadas pela
arte de xávega na área de estudo tem tido uma tendência crescente, embora pouco acentuada e
correspondente a ocorrências esporádicas das tradicionalmente menos comuns. Verificaram-se
também alterações na biomassa média recolhida por lance de espécies com afinidade a
diferentes tipos de clima. É ainda de salientar o facto de em 2008 não terem ocorrido nas
amostras espécies com afinidades com o clima temperado frio, como Platichthys flesus
(Linnaeus, 1758) e Ciliata mustela (Linnaeus, 1758), que foram capturadas em anos anteriores,
embora em 2009 a primeira tenha voltado a ocorrer. Estes resultados estão de acordo com um
estudo realizado no estuário do Tejo (Cabral et al., 2001), que demonstra uma diminuição
abrupta da abundância destas duas espécies ao longo dos anos desde 1979, podendo por isso ser
um indicativo do efeito das alterações climáticas nas zonas costeiras.
Observando a figura 4, verifica-se que a maioria das espécies capturadas são tipicamente de
climas temperados. No entanto, ocorreu um aumento do número de espécies com afinidades
subtropicais de 1999 para os anos amostrados na década seguinte (de 6 para 8 espécies em 2007
e 2008 e 14 em 2009), assim como um aumento de 17 espécies, em 1999, com afinidades
temperadas quentes, para 23 em 2009. As espécies típicas de climas temperados sofreram um
declínio de 28 em 1999, para 22 em 2007, voltando a subir nos anos seguintes e atingido
novamente as 28 espécies em 2009. Estes resultados podem estar associados à grande
variabilidade das capturas com a arte de xávega.
A análise da respectiva variação da biomassa capturada por lance (Figura 5), mostra que existe
um aumento significativo da biomassa de espécies com afinidades tropicais no ano de 2009,
comparativamente aos anteriores. Para este aumento na biomassa, contribuiu sobretudo o
sarrajão, Sarda sarda (Bloch, 1793), que apesar de ter uma baixa frequência de ocorrência
apresentou uma elevada biomassa num só lance. A mesma tendência de incremento verificou-se
para as espécies com afinidade por climas temperados quentes. Neste grupo, aumentaram
sobretudo as biomassas de sargo-do-Senegal, Diplodus bellottii (Steindachner, 1882), de
rodovalho, Scophthalmus rhombus (Linnaeus, 1758) e galeota-menor, Ammodytes tobianus
Linnaeus, 1758.
No entanto, quando se dispõe de dados para um período relativamente curto de tempo, é de
extrema importância ter em conta a distinção entre as alterações climáticas graduais a grandeescala e as oscilações climáticas regionais, que podem ocorrer em escalas de tempo inferiores a
um ano, com grande influência ao nível das comunidades (Henriques et al., 2007). Uma das
oscilações mais importantes para a nossa costa é a Oscilação do Atlântico Norte (OAN), que
ocorre com a variação da pressão atmosférica a sul e a norte da Europa, provocando a alteração
periódica da direcção do vento e das correntes marítimas superficiais predominantes, podendo
existir anos predominantemente quentes (vento e correntes de sul, OAN negativa) e anos
predominantemente frios (vento e correntes de norte, OAN positiva) (Henriques et al., 2007).
7
90
80
Número de espécies
70
60
subtropical
Euritérmico
50
Temperado frio
Temperado quente
40
Oceânico
Temperado
30
20
10
0
1999
2007
2008
2009
Figura 4. Variação do número de espécies capturadas na área de estudo, de acordo com as suas
afinidades com o tipo de clima.
100%
90%
80%
Biomassa.lance-1
70%
Tropical
60%
Euritérmico
Temperado frio
50%
Temperado quente
Oceânico
40%
Temperado
30%
20%
10%
0%
1999
2007
2008
2009
Figura 5. Variação da proporção de biomassa média por lance das espécies capturadas na zona
de estudo, de acordo com as suas afinidades com o tipo de clima.
8
4. Considerações finais
Os resultados obtidos após o terceiro ano consecutivo de monitorização da pesca com arte de
xávega na frente atlântica do Concelho de Almada reforçam algumas das conclusões obtidas nos
anos anteriores. O presente estudo tem permitido efectuar uma caracterização das associações
de peixes desta zona costeira, evidenciando o seu papel como área de viveiro para muitas
espécies, na sua maioria com grande importância comercial.
A caracterização da actividade da pesca tem permitido obter estimativas do esforço de pesca,
das capturas e das rejeições. Os resultados têm revelado que o esforço de pesca é essencialmente
função das condições do estado do mar. Tem-se verificado uma grande variabilidade nas
capturas, a qual é devida sobretudo às condições ambientais e suas variações de curto prazo,
bem como ao comportamento gregário de muitas das espécies dominantes nas capturas. Apesar
de serem alvo de pesca muitas espécies de peixes, um conjunto mais reduzido (3 a 5 espécies)
representa a esmagadora maioria da biomassa capturada.
A constituição duma série temporal de dados sobre a pesca com esta arte de pesca, a qual
permite caracterizar as comunidades de peixes desta zona costeira, constitui um instrumento
valioso na identificação e avaliação de impactos decorrentes das alterações climáticas. Nos
últimos anos, tem sido verificado um aumento do número de espécies e abundância de peixes
com afinidades por climas temperados quentes e subtropicais. No entanto, apenas com a
continuação destes estudos se poderá comprovar esta tendência e, em particular, a existência de
relações causa-efeito, uma vez que a grande variabilidade que se verifica nestas comunidades e
a influência de diversos factores ambientais podem também ser responsáveis ou mascarar esse
padrão.
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