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ARTIGO ORIGINAL
MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PORTUGUESES (1974/2011) E OS «ERROS
MÉDICOS»
Lígia Gaspar Ernesto
Farmacêutica. Estagiária do Departamento Regulamentar
do Laboratório Medinfar – Produtos Farmacêuticos, SA
Resumo
Objetivos: (i) Caracterizar qualitativa e quantitativamente a presença de «erros médicos» nos meios de
comunicação social não especializados portugueses. (ii) Comparação com relatórios oficiais nacionais
sobre «erros médicos».
Métodos: Estudo qualitativo e quantitativo com determinação de frequências, recorrendo-se à pesquisa
eletrónica para identificação de notícias relatando casos de «erros médicos» ocorridos em Portugal.
Resultados: Analisaram-se 210 casos publicados entre 1974 e 30 de junho de 2011. O número de casos de
«erros médicos» nos meios de comunicação social portugueses tem vindo a aumentar, sobretudo na última
década. Os médicos são o grupo profissional mais visado nas notícias (64 por cento dos 309 profissionais
envolvidos). No que respeita aos doentes, a frequência mais elevada de casos registou-se no grupo etário
dos mais idosos (50), imediatamente seguido pelo grupo mais jovem (48). Relativamente às instituições, o
número mais elevado de casos de «erros médicos» registou-se nos hospitais (163). Dentre estes, o Hospital
de Santa Maria foi o que registou maior número de casos (11). As regiões de saúde mais populosas registaram
um número mais elevado de casos de «erros médicos» na imprensa e também de reclamações dos utentes
em 2010. As áreas médicas com maior número de casos foram a urgência (47), a obstetrícia (43) e a cirurgia
(41). O erro de diagnóstico foi a situação mais frequente nos meios de comunicação social. Registaram-se
42 condenações por negligência, que se concentraram sobretudo a partir de 2005. A Justiça demorou em
média 7,8 anos a decidir os 33 casos de «erros médicos» noticiados em que foi possível identificar a data do
acontecimento e da sentença.
Conclusões: Os resultados do presente estudo são concordantes com os dados de relatórios oficiais
nacionais sobre «erros médicos». É necessária maior investigação nesta área, sobretudo ao nível da influência dos
meios de comunicação social na formação de opiniões sobre a segurança clínica dos doentes.
Palavras-chave: Meios de comunicação social não especializados, qualidade em saúde, segurança do
doente, erros médicos, negligência médica, eventos adversos.
Abstract
Objectives: (i) Qualitative and quantitative characterization of the presence of «medical errors» in not
specialized Portuguese media. (ii) Comparison with official national reports on «medical errors».
Methods: Qualitative and quantitative study including determination of frequencies. Electronic search
was used to find news about «medical errors» that occurred in Portugal.
Results: 210 cases that took place between 1974 and June 30, 2011 were analyzed. The number of cases of
“medical errors” in the Portuguese media has been increasing, especially in the last decade. Doctors are the
professional group most targeted in the news (64% of 309 professionals who were involved). In relation to
patients, the highest frequency of cases was registered in the older age group (50), immediately followed
by the youngest group (48). For institutions, the highest number of cases of “medical errors” was recorded
in the hospitals (163). Among these, the Hospital of Santa Maria registered the highest number of cases
(11). The most populous health regions registered the highest number of cases of “medical errors” in the
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press and also the highest number of complaints of health users in 2010. The medical areas with the highest
number of cases were Urgency (47), Obstetrics (43) and Surgery (41). The most common situation in the
media was the diagnostic error. We identified 42 condemnations for negligence, which occurred mainly
after 2005. In the 33 cases where it was possible to identify the date of the event and the sentence, it was
found that justice took an average of 7.8 years to make a decision.
Conclusions: The results of this study are in agreement with data from official national reports on “medical
errors”. Further research is needed in this area, particularly in terms of the influence of media in forming
opinions about the clinical safety of patients.
Keywords: Non-specialized media, health quality, safety of patients, medical errors, medical negligence,
adverse events.
Introdução
8
A temática dos «erros médicos» é frequentemente
abordada nos diferentes meios de comunicação social.
De acordo com dados do Eurobarómetro, 84 por cento
dos portugueses referiram ler ou ouvir frequentemente notícias sobre «erros médicos», situando-se a média
europeia nos 78 por cento1.
Uma análise dos principais tópicos focados pela imprensa australiana relativos a assuntos médicos demonstrou que a «negligência médica/erros médicos»
constitui o tópico mais frequente, com uma representação de 9 por cento2.
Segundo Northcott3, 48 por cento dos inquiridos num
estudo declararam que a sua informação sobre os «erros
médicos» se baseava maioritariamente no que tinham
visto, lido ou ouvido na televisão, jornais ou rádio.
Os meios de comunicação social assumem-se como
importantes geradores de opinião, capazes de induzir modificações na utilização dos serviços de saúde,
influenciar os comportamentos e decisões individuais
em matéria de saúde, as práticas de saúde e a política de saúde3-5. Deste modo, é de esperar que a forma
como os meios de comunicação social relatam os casos de «erros médicos» influencie a génese da opinião
pública no que respeita à qualidade das instituições de
saúde e do desempenho dos seus profissionais.
Em 2010, Mira e col6 concluíram que os doentes internados num hospital espanhol que declaravam ter
tido conhecimento de notícias sobre «erros médicos» na imprensa eram os que acreditavam ter maior
probabilidade de sofrer um «erro médico».
Contudo, apesar da enorme visibilidade dos «erros médicos» nos meios de comunicação social e do impacto
destas notícias na opinião pública, verificou-se a quase
inexistência de literatura que caracterizasse a abordagem à temática dos «erros médicos» feita pelos meios
de comunicação social e avaliasse a possível relação
com a perceção individual de qualidade em saúde.
Além disto, os estudos elaborados até aqui debruçaram-se essencialmente sobre a análise da linguagem
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e conteúdo da notícia, das imagens gráficas associadas à notícia e das palavras que mais aparecem nos
títulos6-10.
Assim sendo, o objetivo deste trabalho foi caracterizar qualitativa e quantitativamente a referência a
«erros médicos» nos meios de comunicação social não
especializados portugueses, comparando a realidade
patente na comunicação social com relatórios oficiais
nacionais sobre «erros médicos».
Métodos
Procedeu-se à identificação de notícias relatando
supostos casos de «erros médicos», «negligência médica» e «eventos adversos». Foram tidas em consideração as definições de «negligência médica», «evento
adverso» e «erro médico» dos autores Hartwell11, Thomas e col12 e do IOM13, respetivamente. Incluíram-se
também os casos de roubo de bebés de maternidades,
incêndios em instituições de saúde, nascimentos em
ambulâncias e suicídio de doentes em meio hospitalar. Por uma questão de simplificação, ao longo do
presente trabalho os casos identificados serão genericamente designados por «erros médicos».
Para a recolha de notícias efetuou-se uma pesquisa
recorrendo ao motor de busca Google, utilizando as
seguintes palavras-chave: «erro(s) médico(s)»; «negligência médica»; «hospital»; «queixa»; «denúncia»;
«homicídio». As diferentes palavras-chave foram
combinadas entre si. Utilizaram-se ainda as equações de pesquisa «roubo e bebé e hospital»; «incêndio
e hospital»; «nascimento e ambulância»; «suicídio e
hospital». A escolha das palavras-chave e equações
de pesquisa reflete o vocabulário mais utilizado pelos
meios de comunicação social portugueses nas notícias relacionadas com a temática em estudo e teve por
objetivo selecionar os termos mais eficientes na identificação do maior número possível de casos.
A pesquisa foi efetuada entre 8 de maio de 2010 e 1 de
agosto de 2011, utilizando o português como idioma.
ARTIGO ORIGINAL
Resultados
Recolheram-se 186 notícias divulgadas por meios de
comunicação social não especializados portugueses,
nas quais foram identificados 210 casos de «erros médicos». De notar que algumas das notícias relatavam
mais do que um caso.
O número de casos publicados tem vindo a aumentar,
sobretudo na última década. Os «erros médicos» começaram a surgir com maior regularidade nos meios
de comunicação social após os anos 1990. Contudo, o
maior crescimento registou-se após o ano de 2001. A
partir de 2002 assinalaram-se valores sempre superiores a dez casos em cada ano, sendo o ano de 2010 o que
apresentou o maior número de casos (26). Salientase o facto de o aumento do número de «erros médicos» nos meios de comunicação social portugueses
ser acompanhado pelo aumento número de reclamações no Serviço Nacional Saúde (SNS). Comparou-se
a evolução do número de «erros médicos» nos meios
de comunicação social com o aparecimento de novos
meios de divulgação de notícias, como os canais de televisão privados, SIC (1992) e TVI (1993), e dos canais
de notícias, SIC Notícias (2001), RTP N (2004) e TVI
24 (2009)15. A Internet, cuja utilização em Portugal se
iniciou por volta de 199416, veio também aumentar o
volume de dados e informação disponível (Figura 1).
Efetuou-se uma análise das datas de publicação das
186 notícias identificadas (Figura 2), verificando-se
que na globalidade os meses que registaram um maior
volume de notícias foram: abril (23), janeiro (22), dezembro (21) e fevereiro (19). O mês de setembro foi o
que registou o menor número de notícias (seis).
Figura 1 – Evolução do número de casos de «erros médicos»
nos meios de comunicação social portugueses (1974 - 30
junho 2011) e do número de reclamações
no Serviço Nacional de Saúde (2002-2010)14. Aparecimento
de novos meios de divulgação de notícias15,16
nº de casos de erros médicos nos meios de comunicação social
nº de reclamações no Serviço Nacional de Saúde
30
14
60000
52.779
39.652
20
40000
37.043
29.422
30000
26.228
23.769
20.380
10
50000
20000
nº de reclamações
49.197
46.414
nº de pessoas
Selecionaram-se todos os casos ocorridos em
Portugal entre 1974 e 2011, em todos os tipos de instituições de saúde, quer públicas quer privadas, e que
deram origem a notícias em meios de comunicação
social não especializados, incluindo programas de
televisão, rádio, imprensa escrita, sites e blogues. Em
relação ao ano de 2011, considerou-se como ponto de
corte o dia 30 de junho.
Sistematizou-se a informação relatada em cada caso,
organizando-a numa folha de cálculo de acordo com
as seguintes categorias: ano do acontecimento; data
de publicação da notícia; situação; tipo de instituição;
nome da instituição; distrito; área médica; género e
idade do doente; outcome (morte ou dano); processo
judicial; principais profissionais envolvidos.
Posteriormente, procedeu-se ao tratamento da informação com cálculo de frequências e percentagens e
elaboração de gráficos.
10000
0
1974
1996
1990
SIC
1992
Internet
1994
0
Ano
2001
SIC Notícias
2001
2006
RTP N
2004
2011
TVI 24
2009
TVI
1993
Figura 2 – Distribuição do número de notícias de casos
de «erros médicos» por meses do ano (N=186)
Na totalidade dos 210 casos, estiveram envolvidos
309 profissionais de saúde (Figura 3): 198 médicos, 46
membros de direção (incluindo ministros da Saúde,
diretores de hospitais, centros de saúde e laboratórios), 42 enfermeiros, nove outros tipos de profissionais (incluindo auxiliares de ação médica, seguranças,
profissionais do serviço de alimentação e de manutenção das instalações de saúde, entre outros), oito
bombeiros/técnicos de ambulância de emergência
(TAE), quatro farmacêuticos e dois técnicos de diagnóstico e terapêutica (TDT).
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Figura 3 – Profissionais mais visados nas notícias
de casos de «erros médicos» (N=309)
Figura 5
– Número de casos de «erros médicos» noticiados
por tipo de instituição (N=210)
NA=Informação não disponível
10
Efetuou-se a distribuição dos doentes visados nas
notícias sobre «erros médicos» pelos seguintes grupos etários: 0-14 anos; 15-24 anos; 25-39 anos; 40-54
anos; >55 anos (Figura 4). Verificou-se que o grupo
etário correspondente aos indivíduos mais idosos
(>55 anos) registou a frequência mais elevada nas
notícias, com 50 casos, imediatamente seguido pelo
grupo correspondente aos indivíduos mais jovens
(0-14 anos), com 48 casos.
Figura 4 – Distribuição dos doentes visados nas notícias
sobre «erros médicos» de acordo com a sua classe etária
(N=217)
NA=Informação não disponível
O número mais elevado de casos de «erros médicos»
divulgados nos meios de comunicação social registou-se nos hospitais (144 hospitais públicos, 11 privados e oito sem informação quanto ao carácter público
ou privado), seguindo-se-lhe as clínicas privadas e os
centros de saúde (Figura 5).
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Elaboraram-se gráficos de Pareto, de modo a determinar, na globalidade dos 163 hospitais com notícias
de casos de «erros médicos», os 12 hospitais com mais
casos (Figura 6). Verificou-se que o Hospital de Santa
Maria foi aquele que registou o maior número de casos (11). O segundo e terceiro lugar são ocupados, respetivamente, pelo Hospital Amadora-Sintra (nove) e
pelo Hospital de Viseu (sete). Foi no Hospital Amadora-Sintra que se registou o maior número de casos
de «erros médicos» que resultaram na morte dos pacientes (seis). Constata-se que em oito dos 12 hospitais representados o número de casos que resultaram
em morte foi superior ao número de casos de dano.
Compararam-se os resultados obtidos com os dados
da atividade assistencial dos 12 hospitais em questão,
constantes do «Relatório do Gabinete do Utente 2010»
da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS)17.
Verificou-se que o Hospital de Santa Maria, sendo aquele que apresenta o maior número de casos publicados é
o segundo em termos de atividade assistencial prestada
em 2010 (1 063 835 atendimentos). Considerando as taxas de reclamações dos hospitais, divulgadas pelo referido Relatório, o Hospital Garcia de Orta é o que apresenta a taxa mais elevada, sendo o sétimo hospital com mais
casos de «erros médicos» publicados na imprensa.
Analisou-se a distribuição dos casos de «erros médicos»
por distritos (Figura 7 e Quadro I) e posteriormente
por regiões de saúde, organizadas de acordo com o Estatuto do SNS18 (Quadro I). Constatou-se que quanto
mais elevado o número de habitantes de uma região de
saúde maior o número de casos de «erros médicos» na
imprensa no período temporal 1974-30 de junho de 2011,
sendo também mais elevado o número de reclamações
dos utentes (dados de 2010).
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Figura 6 – Os 12 hospitais portugueses com mais casos
de «erros médicos» divulgados pelos meios de comunicação
social (1974-30 junho 2011). Comparação com a atividade
assistencial e a taxa de reclamações dos utentes
em 201017. Diferenciação dos casos quanto ao desfecho
(dano ou morte)
Figura 7
– Distribuição de casos de «erros médicos»
noticiados (1974-30 junho 2011) por distrito)
Relativamente às áreas médicas com maior número de
casos de «erros médicos» publicados (Figura 8), constata-se que, por ordem decrescente, as mais significativas são a urgência (47 casos/25 por cento); obstetrícia (43 casos/23 por cento) e cirurgia (41 casos/22 por
cento). Salienta-se que estas três áreas médicas são
responsáveis por 70 por cento dos casos divulgados
nos meios de comunicação social, considerando as 12
áreas médicas com mais casos noticiados.
No que concerne à tipologia das situações de «erros médicos» mais referenciadas nos meios de comunicação
social portugueses (Figura 9), constatou-se que as três
situações mais frequentes se incluem no domínio das
áreas do diagnóstico e da cirurgia, as quais foram por
Figura 8 – As 12 áreas médicas com mais casos de «erros
médicos» divulgados pelos meios de comunicação social
(1974-30 junho 2011). Diferenciação dos casos quanto
ao desfecho (dano ou morte)
ordem decrescente de grau de frequência: erros de diagnóstico (26 situações), complicações pós-operatórias
(19 situações) e atrasos no diagnóstico (14 situações).
Analisaram-se 137 casos, noticiados entre 2004 e 30 de
junho de 2011, quanto aos meios acionados pelos doentes e instituições após a ocorrência do «erro médico»
(Figura 10). Verificou-se que em 39 casos a notícia fazia
referência a queixas no Ministério Público (MP) ou a
processos em tribunal, sendo 2004 e 2005 os anos em
que o número de queixas no MP/processos em tribunal foi mais elevado, ou seja, oito em cada um dos anos
referidos. Observando a evolução do número de novos
processo por negligência médica entrados no MP, regista-se um crescimento entre 2005 e 2007, altura em que
esta tendência se inverte. Em 21 casos foi aberto um inquérito interno, em 12 casos foi apresentada queixa na
IGAS e noutros dez no livro de reclamações. Constatouse ainda que em 55 casos a notícia não disponibilizou
informação relativa aos meios acionados pelos doentes
perante a ocorrência dos alegados «erro médicos».
Até 2005 tinham sido cinco as condenações por negligência na área da saúde noticiadas nos meios de comunicação social portugueses. Esse número passou para 37
entre 2005 e 30 de junho de 2011. Foi em 2005 que se
registou o número mais elevado de condenações: sete
médicos, um enfermeiro e quatro hospitais (Figura 11).
Com base na análise de 33 notícias sobre decisões em
tribunal relativas a processos por negligência, em que
tenha sido possível identificar a data do acontecimento
e a data da sentença, verifica-se que 16 processos (48,5
por cento) levaram entre quatro e sete anos a decidir e
11 (33,3 por cento) levaram entre oito e onze anos. Apenas dois processos (6,1 por cento) demoraram menos
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é abordada nos meios de comunicação social não especializados
portugueses (1974-30 junho 2011). Determinação de frequências por 5 áreas:
portugueses. Durante a fase de
diagnóstico, cirurgia, falhas do sistema, obstetrícia e medicação
pesquisa, deparámo-nos com a
escassez de literatura, quer nacional quer internacional, sobre esta
questão, o que motivou a escolha
do tema e dos objetivos do trabalho. Além disso, consideramos
que esta questão se reveste de uma
enorme importância, uma vez que,
tal como é defendido por alguns
autores, o que tem significado social não é o risco em si, mas a perceção de que alguma situação ou
processo coloca um risco. Por isso,
os meios de comunicação social,
pelo seu papel de mediação entre
a comunidade médica e o público
em geral, têm uma importância
decisiva na formação do reconheFigura 10 – Diferenciação dos casos de «erros médicos» noticiados
cimento público do risco10,24. As(2004-30 junho 2011) quanto aos meios accionados perante as queixas
dos doentes, de acordo com a notícia. Comparação com o número de queixas
sim sendo, a forma como os casos
no Gabinete do Utente (2004-2010)21 e de novos processos por negligência
de «erros médicos» surgem na comédica entrados no Ministério Público (2004-31 maio 2011)22,23
municação social condiciona a visão do público em relação às instituições de saúde como locais de
risco24. De acordo com Jackson25,
a abordagem dos meios de comunicação social tem-se centrado no
drama dos doentes que sofreram
«erros médicos» e em noções de
culpa individual dos profissionais,
sendo que a complexidade dos erros e a possibilidade de falhas do
sistema são subvalorizados.
Os resultados do presente estudo
mostram que o aparecimento regular de casos de «erros médicos»
na imprensa portuguesa coincide
com a criação de dois canais televisivos
privados,
em 1992 e 1993. Assim, no início
de quatro anos a decidir, dois processos (6,1 por
cento) demoram entre 12 e 15 anos e outros dois dos anos 1990 registou-se certamente um aumento do ambiente concorrencial no meio televisivo,
(6,1 por cento) mais de 16 anos (Figura 12).
surgindo a necessidade de obter um maior númeDiscussão
ro de notícias suscetíveis de gerar interesse. Para
No âmbito deste trabalho, procurou-se caracteri- Lupton e col7, as temáticas da negligência médica
zar a forma como a temática dos «erros médicos» e má prática são altamente noticiáveis.
Figura 9 – Situações mais frequentes nos meios de comunicação social
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Figura 11
– Evolução do número de médicos, enfermeiros,
farmacêuticos e Hospitais condenados por negligência (1974-30
junho 2011) e cuja sentença de condenação foi noticiada por meios
de comunicação social portugueses. Total de instituições
e profissionais condenados=42
Figura 12 – Tempo que medeia entre a data
do acontecimento e a data da sentença judicial (condenação
ou absolvição) nos processos por negligência (N=33).
Análise de 33 notícias sobre decisões em tribunal. Tempo
médio entre o acontecimento e a sentença=7,8 anos
A introdução da Internet em Portugal (por volta de 1994)16 constitui um marco de indiscutível
importância para a crítica dos resultados, pois
deu início à publicação de notícias online, principalmente em blogues e nos sites dos jornais e
revistas, a partir dos quais foram recolhidas as
notícias para a realização deste trabalho. Deste
modo, e tendo em consideração que até 1994 os
casos de «erros médicos» eram divulgados apenas
na imprensa escrita, rádio e televisão, salienta-se
que no período 1974-1993 foram provavelmente
publicados casos de «erros médicos» que, por terem ocorrido numa época anterior à utilização da
Internet em Portugal, não foram identificados no
âmbito deste estudo. Contudo, apesar de para o
período temporal 1974-1993 se assinalar a necessidade de uma pesquisa complementar à pesquisa eletrónica, os resultados relativos ao período
1994-30 de junho de 2011 demonstram que o interesse dos meios de comunicação social portugueses relativamente às questões relacionadas com
a ocorrência de «erros médicos» tem vindo a aumentar, sobretudo na última década, alargando
assim o acesso do público a notícias envolvendo
esta temática.
Os meses de agosto e setembro registaram o menor número de notícias sobre «erros médicos».
Os valores voltaram a aumentar em outubro,
atingindo os valores mais elevados em dezembro,
janeiro, fevereiro e abril. De acordo com Loudis,
citado por Cooper e col26, os espectadores sintonizam propositadamente um canal para ver uma
notícia sobre um assunto de saúde de interesse.
Nessa medida, os meios de comunicação social
aumentam o volume e o destaque das notícias sobre saúde nos períodos do ano em que a dimensão da audiência determina o valor do tempo de
antena. Possivelmente, durante os meses de verão
a audiência será mais reduzida e o valor do tempo
de antena também será menor, o que leva a que
os meios de comunicação social, conhecedores do
interesse do público por assuntos relacionados
com a saúde, prefiram dar destaque a estas notícias em meses de maior audiência.
O grupo profissional dos médicos foi o mais visado
nas notícias (64 por cento), seguido pelos membros de direção (15 por cento) e pelos enfermeiros
(14 por cento). Tendo em conta os dados relativos
às reclamações dos utentes registadas pela IGAS
em 2010, o grupo profissional mais visado foi
igualmente o dos médicos (50 por cento). Este é,
contudo, também o grupo profissional com maior
percentagem de elogios (33 por cento). À semelhança do que se verifica nas notícias, as direções/
chefias foram o segundo grupo profissional mais
visado pelas reclamações �������������������������
(������������������������
23 por cento). Já os enfermeiros foram alvo de 8 por cento das queixas
(quarto grupo profissional mais visado) e de 25
por cento dos elogios (segundo grupo profissional com maior percentagem de elogios)17.
Constatou-se que o número mais elevado de «erros
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médicos» noticiados ocorreu em indivíduos com
idade superior a 55 anos. Segundo Thomas e col12,
a incidência de eventos adversos preveníveis é cerca de duas vezes superior nos indivíduos idosos, o
que pode ser explicado pela sua maior exposição
ao risco, uma vez que lhes são administrados mais
fármacos e realizados mais procedimentos e têm
tempos de permanência mais longos nos hospitais.
Um estudo realizado em três hospitais públicos
portugueses, e que teve por base a informação contida nos processos clínicos de uma amostra de doentes internados durante o ano de 2009, concluiu
que o número de eventos adversos varia na razão
direta com as classes de idades mais avançadas,
tendo a maioria dos eventos adversos (59,2 por
cento) ocorrido em indivíduos com idade igual ou
superior a 65 anos27.
A maioria dos casos de «erros médicos» noticiados
(77,6 por cento) ocorreu nos hospitais. Segundo
dados da Joint Commission on Accreditation of
Healthcare Organizations (JCAHO), entre 2004
e 30 de setembro 2011 a percentagem mais elevada de acontecimentos inesperados envolvendo a
morte ou danos físicos ou psicológicos graves, ou
o risco dos mesmos (64,3 por cento), registou-se
igualmente nos hospitais28.
Em 2010, 11 dos 12 hospitais com maior número de
casos de «erros médicos» noticiados apresentaram
uma atividade assistencial superior a 350 mil atendimentos, o que os coloca entre os hospitais nacionais com maior número de atendimentos anuais17.
Verifica-se assim uma concordância entre o número de casos de «erros médicos» noticiados por
hospital e os valores da sua atividade assistencial
constantes do «Relatório do Gabinete do Utente
2010» da IGAS17. Tendo em conta que os meios de
comunicação social têm um papel fundamental na
representação do risco como uma construção social
e cultural10,24, o facto de determinados hospitais
surgirem mais vezes nas notícias associados a casos
de «erros médicos» poderá criar no público a perceção de que são menos seguros para os doentes, uma
vez que esta informação surge descontextualizada
do seu elevado número de atendimentos.
A urgência foi a área médica que registou maior
número de casos de «erros médicos» nos meios de
comunicação social, seguindo-se-lhe a obstetrícia e
a cirurgia. Em 2010, a urgência foi o serviço mais
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visado nas reclamações no SNS29. Relativamente
às especialidades mais visadas por processos de
responsabilidade médica remetidos ao Conselho
Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina
Legal (INML) entre janeiro de 2001 e dezembro de
2006 verifica-se que a obstetrícia e a cirurgia ocupam novamente o segundo e terceiro lugar, sendo
a medicina interna a especialidade mais visada30.
De acordo com os elementos recolhidos no inquérito da IGAS aos estabelecimentos hospitalares do
SNS, no triénio 2008-2010 as três especialidades
médicas com maior número de episódios assistenciais fontes de processos judiciais foram, por ordem
decrescente: ortopedia, cirurgia geral e obstetrícia31. Deste modo, podemos afirmar que os resultados do presente trabalho são concordantes com os
dados dos três relatórios nacionais anteriormente
referidos.
Ao nível da cirurgia, as situações mais frequentes
nos meios de comunicação social foram, por ordem decrescente: complicações pós-operatórias,
complicações operatórias, material esquecido e
perfuração acidental. De acordo com o inquérito aos estabelecimentos hospitalares da IGAS, as
situações mais frequentes ao nível da cirurgia foram, por ordem decrescente: sépsis pós-operatória,
punções ou lacerações acidentais, insuficiências
respiratórias pós-operatórias e embolias pulmonares pós-operatórias31. Assim, existe concordância
entre os resultados do presente trabalho e os dados do inquérito da IGAS, pois ambos os estudos
concluíram que as complicações pós-operatórias e
as perfurações acidentais estão entre as situações
mais frequentes ao nível da cirurgia.
Na área da obstetrícia, verificou-se que a situação
mais frequente nos meios de comunicação social
foi a asfixia perinatal. Segundo o INML, a asfixia
perinatal foi o motivo mais frequente de instauração processual em obstetrícia entre janeiro de 2001
e dezembro de 200630. Conclui-se assim que os resultados do presente estudo estão de acordo com
os dados do relatório do INML.
Os casos de profissionais de saúde e hospitais condenados por negligência concentram-se sobretudo
a partir de 2005. O número de novos processos por
negligência médica entrados no MP também cresceu entre 2005 e 2007, período após o qual se verifica uma inversão desta tendência22,23. A lentidão
ARTIGO ORIGINAL
do sistema judicial (em média foram necessários
7,8 anos para julgar os casos de «erros médicos»
noticiados) e o custo elevado da justiça poderão
constituir justificações para o decréscimo do número de novos processos por negligência médica
nos últimos anos.
Concluindo, verifica-se que existe concordância
entre a informação veiculada pela comunicação social portuguesa e os dados constantes de relatórios
oficiais nacionais sobre «erros médicos». Tal facto é corroborado pelas observações de um estudo
australiano10, segundo o qual a imprensa escrita
é substancialmente precisa como fonte de informação em eventos concretos relacionados com a
segurança clínica. Consequentemente, o presente
estudo parece-nos ser válido na caracterização de
diversos parâmetros relativos à ocorrência de «erros
médicos» em Portugal, alguns ainda pouco estudados (número de casos por hospital, especialidade e
zona do país, situações mais frequentes e funcionamento da justiça na resolução destes casos), o que
pode ser importante para definir oportunidades de
melhoria.
Apesar de os meios de comunicação social constituírem a principal fonte de informação do público
em geral, em matéria de «erros médicos»3, a sua
influência ao nível da formação de opiniões sobre
a segurança clínica dos doentes ainda se encontra
pouco estudada. Deste modo, e como perspetiva
futura, identifica-se a necessidade de uma investigação mais aprofundada nesta área.
Além disto, consideramos que os meios de comunicação social poderiam ter um papel mais interventivo na promoção de uma «cultura de segurança» dos doentes, alertando para a necessidade de
monitorizar a ocorrência de «erros médicos» como
forma de melhorar o sistema, divulgando os esforços desenvolvidos para minimizar a ocorrência de
«erros médicos» e incentivando à participação dos
doentes em questões de segurança nos serviços de
saúde.
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Trabalho desenvolvido no âmbito da monografia apresentada à
Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa para obtenção
do mestrado integrado em Ciências Farmacêuticas.
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