pirataria marítima na atualidade

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pirataria marítima na atualidade
Revista Eletrônica
Intr@ciência
PIRATARIA MARÍTIMA NA ATUALIDADE
SPERANZA FILHO, Nelson1
Resumo: O presente trabalho científico objetiva estudar a pirataria marítima nos moldes
atuais, analisando seu conceito, espécies e formas de repressão. Para tal é realizado um
estudo sobre os ditames da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, de
forma a identificar os atos que ensejam a prática da pirataria bem como as
consequências previstas em tal norma para o combate de tal prática delituosa. São
estudados os mecanismos militares e privados para repressão e defesa contra tais atos,
bem como seu impacto na economia mundial.
Palavras-Chave: Pirataria marítima – CNUDM – apresamento de navio.
Abstract: The present scientific work aims at studying maritime piracy in current
patterns, analyzing their concept, species and forms of repression. For this is a study on
the dictates of the United Nations Convention on the Law of the Sea, in order to identify
the actions that lead to the practice of piracy and the consequences provided for in this
rule to combat such criminal practice. Are studied the military and private mechanisms
to repression and defense against such acts, as well as its impact on the world economy.
KEYWORDS: Maritime piracy – UNCLOS – seizure of a ship.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho científico tem como tema a pirataria marítima.
A questão é de suma importância para o estudo do Direito Internacional,
dado o fato de tal conduta criminosa ser praticada em números alarmantes à segurança
da navegação marítima, sendo responsável por incalculáveis danos à vida humana, à
segurança do comércio internacional marítimo e à economia mundial.
1
Advogado e professor universitário no curso de Direito da UNIESP – Faculdade do Guarujá. Bacharel
em Direito pela Universidade Católica de Santos - UNISANTOS. Especialista em Direito Processual
Civil e do Trabalho pela Universidade Católica de Santos – UNISANTOS. Mestrando em Direito
Internacional pela Universidade Católica de Santos – UNISANTOS.
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Inicialmente é estudado o conceito de pirataria marítima aceito no Direito
Internacional, identificando os atos que constituem sua prática, bem como suas espécies
(níveis).
Após são analisadas as normas que embasam o apresamento de navios
piratas, bem como da prisão das pessoas envolvidas em tais atos e a apreensão dos bens
utilizados para tanto.
São examinadas ainda as atuais formas de combate e defesa contra atos de
pirataria marítima, sendo elas tanto militares quanto privadas.
Por fim, são analisados dados estatísticos a respeito do tema, levantados
com base em denúncias e fatos reportados às autoridades marítimas. Com fundamento
em tais informações, conclui-se que a pirataria marítima é questão de interesse da
comunidade internacional, postos os prejuízos à segurança da navegação marítima,
sendo responsável por incalculáveis danos à vida humana, à segurança do comércio
internacional marítimo e à economia mundial.
1 CONCEITO DE PIRATARIA MARÍTIMA
A Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM III), de
1982, também conhecida como Convenção de Montego Bay, em seu art. 101 define
quais atos são considerados de pirataria.
Consoante conceitua a Profa. Eliane M. Octaviano Martins “considera-se
pirataria o saque, a depredação ou o apresamento de navio, geralmente sob violência, e
com fins privados” (MARTINS, 2008, p. 82).
Há três elementos que devem ser avaliados quando da análise de atos de
pirataria:
O objeto do ato deve ser um navio, aeronave ou
passageiros/tripulantes destes veículos. O critério geográfico, por sua
vez, estipula que o crime tem que ser perpetrado em alto mar ou em
lugar onde não haja a jurisdição de um estado. Por este critério,
deixariam de ser considerados todos os atos cometidos nas águas
interiores, mar territorial e zona econômica exclusiva (ZEE).
Os dois primeiros critérios — objeto e localização — são
objetivos.Entretanto, a finalidade é subjetiva por natureza, podendo
comportar diferentes interpretações. Por exemplo, não há consenso
entre os juristas se o animus furandi, a intenção de roubar, é elemento
necessário ou se atos de insurgentes procurando derrubar seu governo
devem ficar fora da definição. A jurisprudência das cortes nos Estados
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Unidos da América e Reino Unido têm adotado que qualquer ato não
autorizado de violência cometido no alto mar é pirataria (CANINAS,
2009, p. 106).
Diante de tal dispositivo legal há que identificar três tipos de ato de
pirataria: pirataria propriamente dita, participação na pirataria e instigação ou auxílio à
pirataria.
O primeiro tipo tem como elementos característicos: a violência seja física
(depredação) ou moral (mera ameaça), sendo frequente o uso da primeira, dadas as
proporções dos meios de transporte das vítimas (navios); e os fins privados, visto que
não se confundem os atos de pirataria com atos típicos do poder de império de Estado
(presa bélica, captura e apreensão).
O segundo tipo refere-se à participação na pirataria, segundo o qual não se
faz necessária para a caracterização do tipo o elemento da violência, mas sim, apenas, o
conhecimento do uso do navio para cometimento de atos de pirataria. Tal espécie é
usualmente cometida pela tripulação dos motherships2 que não praticam propriamente
os atos de violência contra as vítimas de pirataria, mas que tem conhecimento do uso
das embarcações para tal fim.
O último tipo faz menção à instigação ou auxílio à pirataria. Incitar refere-se
ao ato de instigar, reforçar a ideia de cometer as condutas descritas nas alíneas a ou b do
mencionado dispositivo legal. Auxiliar é a prestação de ajuda material à prática dos
citados atos, como por exemplo os piratas que atuam como assistentes de artilharia, no
recarregamento das RPGs3 utilizadas nos ataques às vítimas.
São equiparados a esses atos os cometidos por navios de guerra na hipótese
prevista no art. 102 da CNUDM III, in verbis:
Os atos de pirataria definidos no Artigo 101, perpetrados por um
navio de guerra, um navio de Estado ou uma aeronave de
Estado, cuja tripulação se tenha amotinado e apoderado do navio
ou aeronave, são equiparados a atos cometidos por um navio ou
aeronave privados.
2 ESPÉCIES DE PIRATARIA
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O International Maritime Bureau (IMB) disciplina que há três dimensões de
atos de pirataria: o Low-Level Armed Robbery (LLAR), o Meddium-Level Armed
Assault and Robbery (MLAAR), e o Major Criminal Hijack (MCHJ) (SARAMAGO,
2009).
O ‘Low-Level Armed Robbery’ é o nível mais baixo da pirataria, no
qual os piratas assaltam o navio e a tripulação e fogem, sendo um dos
objectivos do assalto o cofre do navio. Estes tipos de ataques ocorrem,
normalmente, enquanto o navio está no porto ou no ancoradouro,
sucedendo-se, normalmente à noite. Ocasionalmente, contudo
raramente, o navio é levado para venda.
Segue-se o ‘Meddium-Level Armed Assault and Robbery’, no qual os
actos de pirataria são realizados por grupos que se encontram bem
organizados e que operam com embarcações rápidas nas proximidades
da costa. No entanto, o raio de acção pode ser alargado pela utilização
de ‘navios-mãe’ (mother-ships), possuindo, frequentemente, radar.
Neste caso, já estamos perante um maior nível de brutalidade, com
tripulação ameaçada, amarrada, e possivelmente ferida. O armamento
utilizado abrange armas automáticas, RPG’s ou morteiros.
Na dimensão mais elevada distinguida pelo IMB, o ‘Major Criminal
Hijack’, as acções são perpetradas por organizações regionais de
grande dimensão, ou mesmo internacionais. Aqui, o navio é
sequestrado, e é pedido um resgate; há o recurso à violência extrema
(por vezes a tripulação é assassinada). Pode acontecer o navio ser
repintado, ser-lhe dada outra bandeira e registo sob outro nome
(Phantom Ship). São uma pequena parte dos crimes de pirataria
ocorridos em todo o mundo, no entanto os mais rentáveis.
3 APRESAMENTO DE NAVIO PIRATA
Primeiramente faz-se necessário conceituar navio pirata para que se possa
identificar o objeto do apresamento. A Convenção de Montego Bay, em seu art. 103,
define navio pirata, in verbis:
São considerados navios ou aeronaves piratas os navios ou
aeronaves que as pessoas, sob cujo controle efetivo se
encontrem, pretendem utilizar para cometer qualquer dos atos
mencionados no artigo 101. Também são considerados piratas
os navios ou aeronaves que tenham servido para cometer
qualquer de tais atos, enquanto se encontrem sob o controle das
pessoas culpadas desses atos.
O apresamento, de navio pirata está disciplinado no art. 105 da CNUDM III,
como segue:
Todo Estado pode apresar, no alto mar ou em qualquer outro
lugar não submetido à jurisdição de qualquer Estado, um navio
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ou aeronave pirata, ou um navio ou aeronave capturados por
atos de pirataria e em poder dos piratas e prender as pessoas e
apreender os bens que se encontrem a bordo desse navio ou
dessa aeronave. Os tribunais do Estado que efetuou o
apresamento podem decidir as penas a aplicar e as medidas a
tomar no que se refere aos navios, às aeronaves ou aos bens sem
prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé.
Apresamento consiste na apreensão realizada em tempo de paz por
autoridade pública legítima, no caso, “o apresamento por motivos de pirataria só pode
ser efetuado por navios de guerra, ou outros que tragam sinais claros e sejam
identificáveis como navios a serviço de um governo, e estejam, para tanto, autorizados”
(MARTINS, 2008, p. 84), conforme preceitua o art. 107 da Convenção de Direito do
Mar.
Realizado o apresamento, com a prisão das pessoas envolvidas e a
apreensão das coisas utilizadas por elas, a segunda parte do art. 105 da citada
Convenção estabelece que são competentes para processar e julgar os envolvidos em
atos de pirataria, bem como decidir as medidas a serem tomadas em relação aos bens
apreendidos, os Tribunais dos Estados que realizarem o apresamento, isso se dá pelo
fato da pirataria ser crime “tratado como jure gentium (de jurisdição universal)”
(CANINAS, 2009, p. 110). De tal forma, são duas as consequências do ato de
apreensão.
Vale ressaltar que o apresamento deve ser realizado sempre diante de
motivos suficientes para tal, aparado por provas ou indícios de ato de pirataria, sob pena
do Estado que apresou ser responsável perante o Estado de nacionalidade do navio
apresado por perdas e danos, conforme disciplina o art. 106 da CNUDM III, in verbis:
Quando um navio ou uma aeronave for apresado por suspeita de
pirataria, sem motivo suficiente, o Estado que o apresou será
responsável, perante o Estado de nacionalidade do navio ou da
aeronave, por qualquer perda ou dano causados por esse
apresamento.
4 COMBATE À PIRATARIA
O combate à pirataria marítima inicia-se no dever de cooperação
internacional dos Estados na repressão a tal prática criminosa, consoante disciplina o
art. 100 da CNUDM III.
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Tal repressão dá-se através do patrulhamento das áreas críticas por forças
militares de diversos países, como Rússia, Portugal, EUA, França, Índia, Arábia
Saudita, por exemplo.
As principais áreas críticas, que ensejam maior patrulhamento, são as
regiões do Golfo de Aden, do “Chifre” da África, Nigéria e Sudeste Asiático.
O reconhecimento e combate efetivo são realizados por forças tarefas
formadas por navios de guerra de diversos Estados. As principais operações de
repressão à pirataria marítima são: operação Allied Protector, operação Atalanta e a
Enduring Freedom – Horn of Africa (OEF-HOA).
Vale ressaltar que mesmo com tantas operações de combate aos atos de
pirataria, são ainda muitos os delitos praticados neste sentido nas referidas regiões
críticas. Diante disto, foi autorizada pela IMO a contratação de segurança privada
armada para trabalhar a bordo visando defender embarcações que navegam por áreas de
risco.
5 ESTATÍSTICAS
Houve uma diminuição de incidentes de pirataria e assaltos em 2011 em
relação a 2010. Em 2011 foram registrados 439 incidentes, uma pequena diminuição em
relação aos 445 de 2010. Em 2011 foram feitos reféns 802 membros de tripulação. Em
2010 foram registrados 1.181 casos do mesmo incidente. Em 2011 havia 45 navios
sequestrados. Em 2010 foram sequestrados 113 navios e 105 relataram tentativas de
ataques. O número de mortes de tripulantes permaneceu inalterado, 8 mortos4.
No ano de 2012, segundo relatório do IMB atualizado até 30 de agosto deste
ano, o número total de ataques no mundo é de 210, sendo 23 o número de sequestros.
Somente na Somália, foram registrados 70 incidentes, sendo 13 deles sequestros,
gerando um total de 212 reféns. Destes sequestros, continuam cativos na Somália 188
reféns e 11 navios5.
Vale ressaltar que tais dados fornecidos pelo IMB consideram também os
delitos de roubo armado (armed robbery), que não são considerados atos de pirataria
pelo Direito Internacional, visto que não se subsumem ao conceito previsto no art. 101
da CNUDM III, posto que consideram os atos praticados em áreas onde há a jurisdição
de um Estado.
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Conforme relatório da OTAN, a chance de sucesso dos atos de pirataria tem
diminuído, graças ao constante patrulhamento das áreas críticas, de 44% em 2008 para
26% em 2009, 25% em 2010, e 16% em 20116.
Quanto aos impactos da pirataria na economia, faz-se mister mencionar que
a organização não-governamental Oceans Beyond Piracy (OBP) publicou um relatório
sobre os gastos com o combate à pirataria, resultando no montante de US$ 7 bilhões no
ano de 2011, sendo o gasto com o pagamento de resgastes aos piratas referente somente
a 2% de tal quantia7.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos dados estatísticos levantados pelo IMB e pela OBP, constata-se
que a questão da pirataria é de vital importância para sociedade global, postos os
prejuízos à segurança da navegação marítima, sendo responsável por incalculáveis
danos à vida humana, à segurança do comércio internacional marítimo e à economia
mundial.
Entretanto, a questão é muito mais complexa, visto que a repressão
ostensiva à prática dos atos de pirataria apenas é o início, com resultados em curto
prazo, do longo e intrincado combate a esta conduta criminosa. A ajuda humanitária
promovida pelas citadas operações, dentre outras medidas, como reestruturação de
governos, por exemplo, podem ser a o caminho para a uma diminuição mais acentuada
dos incidentes de pirataria no mundo, mas com resultados em longo prazo.
NOTAS
1. Advogado e professor universitário no curso de Direito da UNIESP – Faculdade do
Guarujá. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos - UNISANTOS.
Especialista em Direito Processual Civil e do Trabalho pela Universidade Católica de
Santos – UNISANTOS. Mestrando em Direito Internacional pela Universidade Católica
de Santos – UNISANTOS.
2. Navios de maior porte (geralmente navios de pesca) usados para coordenar atos de
pirataria mais elaborados, das quais saem embarcações menores e mais rápidas.
3. Do inglês rocket-propelled grenade. Lançadores de granadas propelidas por foguetes.
4. Fonte: ICC – IMB. Disponível em: <http://www.icc-ccs.org/news/711-piracy-attacksin-east-and-west-africa-dominate-world-report>. Acesso em: 11/09/2012.
5. Fonte: ICC – IMB. Disponível em: <http://www.icc-ccs.org/piracy-reportingcentre/piracynewsafigures>. Acesso em: 11/09/2012.
6.
Fonte:
OTAN.
Disponível
em:
<http://www.nato.int/cps/en/natolive/opinions_82646.htm>. Acesso em: 11/09/2012.
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7. Somali Piracy's Impact on the Global Economy Nears $7 Billion in 2011.
08/02/2012. Disponível em: <http://www.safety4sea.com/page/9459/4/somali-piracy-simpact-on-the-global-economy-nears-$7-billion-in-2011->. Acesso em: 11/09/2012.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANINAS, Osvaldo Peçanha. Pirataria marítima moderna: história, situação atual e
desafios. Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, n. 14, 2009, p. 106.
Disponível em:
<https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/revistaEgn/dezembro2009/Pirataria%20mar%C3
%ADtma%20moderna%20-%20Hist%C3%B3ria%20%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20atual%20e%20Desafios%20%20Osvaldo%20Pe%C3%A7anha%20Caninas.pdf>. Acesso em: 10/09/2012.
MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol. 1. 3. ed. Barueri:
Manole, 2008.
SARAMAGO, Maria Lisa Miranda. A pirataria no século XXI. Academia de Marinha.
13/05/2009. Disponível em:
<http://www.marinha.pt/PT/amarinha/actividade/areacultural/academiademarinha/Docu
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<http://www.safety4sea.com/page/9459/4/somali-piracy-s-impact-on-the-globaleconomy-nears-$7-billion-in-2011->. Acesso em: 11/09/2012.
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