Contratação de serviços de segurança privada pela administração

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Contratação de serviços de segurança privada pela administração
revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais
janeiro | fevereiro | março 2010 | v. 74 — n. 1 — ano XXVIII
Contratação de serviços de segurança privada
pela administração pública: uma análise à luz da
moderna privatização de poderes administrativos
Vinicius Marins
Mestre em Direito Econômico e Doutorando em Direito Administrativo — Faculdade de Direito da UFMG. Pesquisador-visitante na Rühr-Universität/Bochum — Alemanha. Professor da
Faculdade de Direito da UFMG e da Faculdade Pitágoras de
Belo Horizonte (graduação). Professor da PucMinas e da Faculdade Milton Campos (pós-graduação). Professor de Direito
Administrativo do Curso Aprobatum/Anamages. Empreendedor Público do Governo de Minas Gerais. Advogado em Belo
Horizonte/MG e Brasília/DF.
Resumo: O artigo aborda, sob a ótica de algumas tendências contemporâneas do Direito Administrativo, o fenômeno da privatização da autoridade e de algumas prerrogativas reputadas, segundo a análise mais tradicional, como exclusivas do Estado. Avalia, de modo especial, o problema
da contratação, pelo Poder Público, de serviços de segurança privada, atividade que, apesar de
integrar o mercado privado e materializar o uso da força entre particulares, agrega inúmeras
sinergias com as tarefas de segurança pública, cujos contornos estão delimitados pelo Texto
Constitucional.
Palavras-chave: Privatização. Autoridade. Soberania. Segurança. Policiamento. Delegação.
Abstract: The article discusses, based on contemporary trends of Administrative Law, the phenomenon of privatization of the authority and prerrogatives of some reputable, according to
the more traditional analysis, such as exclusive of public power. It ratings, especially, the problem of recruitment by the Government, the private security services, an activity that, despite
containing the private market and realize the use of force between individuals, brings many
synergies with the work of public security, whose contours are defined by the constitutional
text.
Keywords: Privatization. Authority. Sovereignty. Security. Policing. Delegation.
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1 Introdução
É antiga a afirmação de que o Direito Administrativo desloca-se, tal como um pêndulo,
entre Estado e sociedade. De natureza recente, no entanto, é a percepção de que esse
movimento segue um curso de certo modo heterodoxo, por meio do qual expansão e redução do espaço público sucedem-se em velocidades, direções e perspectivas inesperadas e
descontínuas.
Interessa-nos, de modo especial, um recorte específico desse ciclo pendular, no âmbito
do qual a Administração transfere ao mercado funções reputadas, segundo a tradição da
filosofia política, fundamentais à própria estrutura do Estado moderno. Fala-se, nesse sentido, em privatização da autoridade, delegação de hard core functions, “atomização” da
esfera pública e contratualização do poder administrativo. São todos fenômenos plurais,
heterogêneos, e que não podem ser incluídos sob um mesmo gênero, fazendo-se imperativa
a adoção de um parâmetro norteador da realidade, revelado na forma de sistematizações,
classificações e formulações conceituais de interesse prático e científico. A tarefa, decerto,
não é das mais simples.
O presente estudo objetiva, a partir de uma apresentação contextual da moderna descentralização da potestade administrativa, compreender aspecto singular desse fenômeno,
qual seja, a contratação de serviços de segurança privada pelo Poder Público, num processo que envolve a materialização de poderes privados, exercidos no âmbito do mercado
de segurança, em colaboração com a execução de fins públicos e atividades tipicamente
estatais. Seria legítimo o recurso do Estado a tais formas privadas de colaboração? Em quais
circunstâncias?
No afã de responder a tal questionamento, desenvolve-se o artigo em três partes. No primeiro capítulo são apresentadas as principais questões relativas à delegação e contratualização de potestades administrativas, introduzindo-se o problema da privatização funcional
de atividades públicas, no âmbito do qual serão incluídas as questões atinentes à contratação do mercado de vigilância particular pelo Estado. Na segunda parte são discutidos os
fundamentos do setor de segurança privada, a fonte dos poderes de força eventualmente
executados entre particulares, bem como a sua legitimidade diante dos organismos estatais
de segurança pública. Finalmente, no derradeiro item, apresentam-se as linhas diretrizes
para a identificação da legítima utilização das funções de segurança privada pela Administração Pública.
O assunto suscita dificuldades naturais, decorrentes da escassa bibliografia e da reduzida atenção que lhe fora outorgada pela doutrina nacional. O recurso ao direito estrangeiro, diante
de tais circunstâncias, faz-se pela necessidade de um norte aplicativo, sempre considerando,
como recomenda a prudência metodológica, as vicissitudes e peculiaridades das representações assumidas como paradigmáticas.
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2 Direito Administrativo, poder e autoridade: reflexões sobre o fenômeno
da privatização
Doutrina
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2.1 A privatização da autoridade no centro da discussão
Em conhecida sentença de 1923, Otto Mayer, um dos mais notáveis publicistas alemães, defendeu a perenidade do Direito Administrativo diante das mutações do processo constitucional
(Verfassunsrecht vergeht, verwaltungsrecht bestehtl).1 Como se sabe, tal pretensão de permanência viu-se, mais à frente, infirmada por uma série de eventos históricos e desdobramentos
teórico-conceituais, revelando a complexidade da construção epistemológica em Direito Administrativo, sustentada por elementos em constante tensão ou inerente contradição.
É assim que, a despeito do surgimento recente, desenvolve-se de modo rápido e continuado;
apresenta-se, simultaneamente, como instrumento de autoridade e de liberdade; opera como
meio de tutela de interesses públicos e privados; caminha em consonância com o Direito Constitucional, para em seguida ultrapassá-lo; vive em um mundo separado e distinto do Direito Civil,
para depois invadi-lo e ser invadido.2
Os administrativistas, por sua vez, ainda estão muito longe da esperada aderência à complexidade de seu campo de estudo. O discurso doutrinário hegemônico permanece vinculado a um
paradigma positivista que, equivocadamente, culmina com a centralidade do legalismo estatal.
Insiste, ainda, na noção de estatalidade do seu objeto, muito embora já se fale em um espaço
administrativo global, cada vez mais sujeito a regulações não estatais.3 Persiste em fundar-se,
por sua vez, na dicotomia autoridade/liberdade, apesar de apenas uma parcela das relações
administrativas ainda restar vinculada a tal dialética. Permanece, em suma, preso a temas tradicionais e paradigmas limitados, cerrando a vista para as inúmeras conexões e desdobramentos que novas circunstâncias históricas, econômicas e sociais poderiam suscitar.
Processo que não passou despercebido, ao menos em parte, foi o de mudança estrutural do
papel do Poder Público nos últimos trinta anos. Um Estado provedor, muitas vezes hipertrofiado, viu-se substituído pelo chamado Estado regulador. Serviços públicos de especial relevância
sócio-econômica foram lançados ao mundo dessacralizado da concorrência, num fenômeno indicado pelo léxico privatização, de simbologia peculiar não só pelo seu significado político e
econômico, mas pela amplitude de ideias que abarca. A necessidade de viabilizar investimentos
em infraestrutura, além da imperativa modernização na prestação de serviços públicos econô1
“O Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo fica”. Sobre as discussões entre Mayer e Werner, opositor notório da
construção, vale consultar a obra de Norbert Achterberg (Allgemeines Verwaltungsrecht. Heidelberg: C. F. Müller, 1982, p. 63).
2
Problemas analisados com profundidade por Sabino Cassese, em texto recente no qual discute as contradições do Direito Administrativo (Le droit tout puissant et unique de la société. Paradossi del diritto amministrativo. Rivista trimestrale di diritto pubblico,
n. 4, 2009, p. 46).
3
Sabino Cassese radicaliza ao afirmar que o Direito Administrativo atual é um direito da humanidade: (...) suoi istituti si trovano
applicati in ambiti non statali. Il diritto amministrativo, una volta proprio della zona chiusa nelle mura dello Stato, si applica
ora anche tra gli Stati e al di là degli Stati. E un vero diritto dell’umanità (CASSESE, cit, p. 68). Analisando de modo percuciente
o mesmo tema, Luisa Torchia refere-se a um direito desencarnado de seu substrato material, que seria a personalidade pública do
Estado (Diritto amministrativo, potere pubblico e società nel terzo millennio o della legitimmazione inversa. In: BATTISTI, Stefano
et. al. Il diritto amministrativo oltre i confini. Omaggio degli allievi a Sabino Cassese. Milano: Giuffrè, 2008. p. 50 et seq.).
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micos até então legados ao fornecimento monopolístico, associadas à onda dominante no contexto internacional, tornaram inexorável o processo, a despeito de seus inúmeros críticos.
O desenvolvimento do tema no Brasil, contudo, persistiu, ainda depois de duas décadas, em um
limbo de obsolescência. Estudado em outros ordenamentos jurídicos há pelo menos setenta anos,
o problema das relações entre Estado e particulares no campo da execução de tarefas públicas
carece de uma abordagem mais aprofundada, cingindo-se, na imensa maioria das vezes, a uma
avaliação a respeito de seus impactos na prestação dos serviços públicos e em algumas poucas
atividades jurídicas (como é o caso dos tabelionatos, cartórios e serventias de Justiça), e ignorando possibilidades operacionais que extrapolam esse âmbito, podendo recair, por exemplo,
sobre atividades carcerárias, de defesa social e proteção da ordem pública,4 de determinação de
standards e normas de caráter técnico, além de tarefas de certificação e controle oficial. Um dos
exemplos mais recentes e controversos do fenômeno encontra-se nas chamadas private military
companies,5 contratadas para o desempenho de inúmeras operações bélicas, incluindo atividades
logísticas das forças armadas e treinamento de pessoal militar. Novas coalizões que vão colocando
em xeque o senso tradicional a respeito de algumas das noções mais caras à dogmática jurídica,
ao mesmo tempo em que suscitam uma necessária confluência de propósitos e de fins entre os
setores público e privado, que não mais podem ser analisados de maneira estanque.
Não se requer muito esforço para concluir que a chamada privatização das funções de autoridade — conhecidas alhures como core functions ou noyau irréductible d’Etat — é tema propulsor de debates ardorosos. É assim, por exemplo, que se vai falar na desestatização do Direito
Administrativo,6 uma espécie de nova Administração indireta do Estado por meio de pessoas
privadas. Nessa mesma trilha propõe-se a discussão a respeito do refluxo ou atenuação do caráter derrogatório do Direito Administrativo, diante da exasperação das referências axiológicas
e normativas que traduziam a singularidade do público.7
4
Para se ter a dimensão do processo em um sistema jurídico liberal como o norte-americano, em 2001, segundo dados fornecidos
por Gillian Metzger (Privatization as delegation. Columbia Law Review (103), 2003, p. 1.893), cerca de 13% dos prisioneiros federais
e 6% dos estaduais (um universo de 92. 000 internos) encontravam-se sob a gestão de prisões privadas.
5
Nos EUA, o Departamento de Defesa é, de longe, o que possui o maior orçamento e realiza as mais vultosas contratações no âmbito
da Administração Federal. Em função da Guerra no Iraque, o tema da transferência de atividades militares ganhou inéditas proporções, considerando as delegações para empresas privadas do suporte de funções de inteligência e, até mesmo, para a realização
de interrogatórios. O abuso contra prisioneiros em Abu Ghraib, nos arredores de Bagdad, trouxe à tona as novidades gerenciais do
DoD para o debate internacional. Emergiam, em sequência, dados sobre a utilização de milícias privadas na guerra em Serra Leoa
e, até mesmo, empresas contratadas para o exercício de funções diplomáticas. A grande preocupação dos estudiosos do Direito
Administrativo norte-americano, diante de tais inovações, está na preservação dos chamados public values, em especial o controle
(accountability), sobre esses private actors. O ápice da discussão veio com a contratação da empresa Blackwater, império da segurança privada (ou mega-corporação de mercenários, como preferem os seus críticos) no suporte das atividades de segurança em
Nova Orleans após o furacão Katrina, em 2005, e no confronto bélico em território iraquiano. Vale consultar, a respeito do tema:
DICKINSON, Laura. Public Law Values in a Privatized World. The Yale Journal of International Law, n. 36, 2006; FREEMAN, Jody. Private Parties, Public Functions and the New Administrative Law. Administrative Law Review, n. 52, 2000 e; VERKUIL, Paul R. Public
Law Limitations on Privatization of Government Functions. North Carolina Law Review, n. 84, jan./2006.
6
A doutrina italiana, já na década de 1940, faz menção aos chamados órgãos indiretos ou impróprios (ZANOBINI, Guido. Corso di
Diritto Amministrativo. v.3 Milano: Giuffrè, 1946, p. 301). Um exemplo conhecido de direito administrativo aplicado entre particulares estaria no caso dos estabelecimentos privados de ensino, que praticam atos de certificação quanto a avaliações de alunos,
traduzindo cada um desses provimentos, a aplicação do ato administrativo que lhes deferiu o funcionamento (v. em OTERO, Paulo.
Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007, p. 829). Notese que tais atos particulares são, a posteriori, de reconhecimento obrigatório pelas autoridades públicas, além de gozarem de uma
presunção de veracidade e legalidade idêntica àquela que emerge dos atos emanados pelas instituições públicas de ensino.
7
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CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 94.
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Indubitavelmente, o pressuposto que esse novo processo em curso na dogmática jurídico-administrativa propõe é o da insubsistência de um Estado alçado, valorativa e originariamente, à condição de
representante exclusivo e prioritário do interesse público:8 a atual governança — utilizando terminologia em voga — baseia-se num modelo de mixed administration,9 propondo uma nova ordenação das
funções governamentais. Reformula-se, por sua vez, o desempenho da iniciativa privada: o particular,
nesse novo cenário, não é mais súdito (papel que ocupa durante o Estado Gendarme), ou sujeito socialmente descompromissado (tal como no Estado Liberal), nem tampouco mero utente de serviços (o
que caracteriza tipologicamente o Estado Social); pelo contrário, assume o papel de ator, partilhando
com o Poder Público responsabilidades na realização do interesse público.10 Tal assunção, na grande
maioria dos casos, finda por publicizar aspectos diversificados de seu regime jurídico.
Doutrina
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Muitas outras questões também exsurgem, gerando perplexidades em todos os lugares onde o
tema foi eleito como merecedor de maior aprofundamento: que critérios devem permear a opção pela delegação do exercício de funções públicas aos particulares? Quem poderia tomar tais
decisões? Seria possível definir um limite, intrínseco ou extrínseco, para as chamadas funções
indelegáveis,11 atividades reputadas exclusivas de Estado?
Alguns paradoxos relativos à propalada redução da esfera pública também são inevitáveis: ao
mesmo tempo em que o Estado vê abreviado seu papel na execução de uma determinada função
pública, crescem-lhe as atribuições de controle ou, até mesmo, os encargos de financiamento da
atividade desestatizada (veja-se o caso das parcerias público-privadas envolvendo a construção
e a gestão de estabelecimentos prisionais). Não se haveria de reconhecer aqui um avanço, e não
um recuo do Estado? Por outro lado, até mesmo nas atividades relacionadas à gestão militar, a
opção por um determinado modelo compartilhado não partiria de uma decisão soberana tomada
pelo Estado? Como falar em erosão da soberania, nesses casos, quando dados estatísticos revelam
um incremento constante do public law framework? A complexidade das questões, naturalmente,
é ensejo para inúmeras discussões merecedoras de tratamento mais detido e aprofundado; sua
enumeração, contudo, é indicativa do terreno arenoso que se quer perscrutar.12
8
Posição historicamente defendida no Brasil por, dentre outros, Celso Antônio Bandeira de Mello (Natureza e regime jurídico das
autarquias. São Paulo: RT, 1968, p. 93).
9
FREEMAN, cit. Contemporary governance might be described then, as a regime of mixed administration in wich private and public
actors share responsibility for both regulation and service provision. P. 826.
10
GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 150.
O Office of Management and Budget’s — OMB do governo norte-americano editou a conhecida e controvertida Circular A-76,
tratando de estabelecer critérios objetivos para as hipóteses de transferência ou não de uma determinada atividade ao mercado.
O texto preocupa-se em determinar as chamadas atividades que seriam inerentemente governamentais, valendo-se de técnica
legislativa aberta e termos indeterminados que, segundo nos parece, transferem o criticismo do problema para o exegeta ou
aplicador do direito, ao invés de estipular parâmetros objetivos de decisão: An inherently governmental activity involves: (1)
Binding the United States to take or not to take some action by contract, policy, regulation, authorization, order, or otherwise;
(2) Determining, protecting, and advancing economic, political, territorial, property, or other interests by military or diplomatic
action, civil or criminal judicial proceedings, contract management, or otherwise; (3) Significantly affecting the life, liberty, or
property of private persons; or (4) Exerting ultimate control over the acquisition, use, or disposition of United States property
(real or personal, tangible or intangible), including establishing policies or procedures for the collection, control, or disbursement
of appropriated and other federal funds.
11
Concordamos com Phillipe Cossalter, que afirma ser vã qualquer tentativa de encontrar atividades indelegáveis a partir de uma
suposta natureza intrínseca: Historiquement l’armée, la justice et la police ont été exercées par des personnes privées, notamment à travers les concessions coloniales, et le recouvrement des impôts à travers les fermes fiscales. Il semble pourtant impossible de vouloir systématiser une règle concernant l’indélégabilité des activités publiques sans se référer aux fonctions indélégables
par nature (COSSALTER, Philippe. Le droit de l’externalisation des activités publiques dans les principaux systèmes européens.
Disponível em: <http://chairemadp.sciences-po.fr/pdf/seminaires/2007/rapport_Cossalter.pdf>. Acesso em: 05/12/2009).
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Levantamos a hipótese de que existem dois fatores determinantes para tal estado de arrefecimento do debate sobre o tema. O primeiro diz respeito à natureza intrínseca das atividades
delegadas, que muitas vezes afetam a própria razão de ser da moderna Administração Pública;
a autoridade do Estado, locus primeiro do poder político, sofre pressões inevitáveis, que dificultam uma abordagem neutra ou objetiva. Outro tema, não menos complexo, está associado a
uma característica muito peculiar do Direito Administrativo, que aqui chamaremos de tripolaridade (incorrendo em neologismo); trata-se de um conflito temático latente, que muitas vezes
pode obliterar a visão do estudioso.
2.2 Novos elementos de tensão para um Direito Administrativo tripolar?
O Direito Administrativo opera entre três pólos complementares, porém em permanente tensão, o que se reflete de modo inevitável no estudo sobre o exercício não estatal de poderes
e funções de autoridade. Para Sabino Cassese, tal característica desenvolve-se em razão da
peculiar evolução histórica do Direito Administrativo: tendo nascido no século XIX como instrumental do poder, este haure, posteriormente, no liberalismo e no socialismo, contribuições
decisivas para o seu desenvolvimento e consolidação do perfil atual.13
O eixo originário e tradicional é aquele constituído pelos poderes públicos. Aqui se manifesta a
feição derrogatória, especial, unilateral e privilegiada do Direito Administrativo,14 que é ponta
de lança de toda a construção teórica a respeito das especiais prerrogativas inerentes ao Estado. Na lição de Enterría e Fernandez, o conceito de poder (no sentido de potestade administrativa) emana de um confronto dialético com o de direito subjetivo, eis que ambos consubstanciariam faculdades de querer conferidas pelo ordenamento aos sujeitos.15 O poder, no entanto,
deflui diretamente do ordenamento jurídico, ao contrário dos direitos subjetivos, que resultam
de uma relação jurídica; é, por sua vez, genérico, tendo como norte uma atuação estipulada
por meio de direções não específicas, consistindo numa possibilidade abstrata de produção de
efeitos jurídicos, sujeitando ou submetendo outros atores a posições vantajosas, desvantajosas
(conforme se extraia daí um gravame ou um benefício), ou até mesmo neutras.
Tais prerrogativas, na sua feição mais conhecida, implicam uma atuação de interferência na
esfera da liberdade dos administrados ou na decisão de requerimentos em assuntos da administração social ou do funcionalismo público, de forma unilateral, vinculativa e reguladora,16
O liberalismo é decisivo, na seara legislativa, para o desenvolvimento de uma legislação que buscou proteger o cidadão no confronto com o Poder Público, submetendo-o à lei e ao direito. O socialismo, por sua vez, demanda da administração uma postura
voltada à promoção da igualdade, gerando um grande número de normas e institutos de regulação da vida social (CASSESE, cit.,
p. 51).
13
O direito administrativo foi concebido como direito essencialmente desigual — o caráter derrogatório de suas regras relativamente àquelas do direito comum fundava-se sob a ideia de uma diferença irredutível de situações entre a administração, detentora do monopólio da coerção, e o administrado; as prerrogativas reconhecidas à administração, como as sujeições que lhe eram
impostas, não seriam senão a tradução tangível dessa desigualdade. (CHEVALLIER, cit., p. 91)
14
ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNANDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1991, p. 377. Ainda segundo os autores espanhóis, a potestade é sempre uma derivação de um status legal, pelo qual resulta inescusável uma norma prévia que, além de configurá-la, a atribua em concreto. Como consequência dessa origem legal os poderes
são inalienáveis, intransmissíveis e irrenunciáveis, justamente porque são indisponíveis pelo sujeito enquanto criação do Direito
objetivo supraordenado. (cit., p. 379).
15
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WOLLF; BACHOF; STOBER. Direito Administrativo. Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 320.
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daí derivando algumas manifestações típicas, tais como: a potestade normativa (criação de regras de
observância obrigatória para terceiros); o poder de constituição e determinação de efeitos inovadores
sobre a esfera jurídica do destinatário; o poder de polícia; o poder de certificação ou produção de atos
dotados de certeza pública ou força probatória peculiar; o poder de execução coercitiva e coação; o
poder de produção de títulos executivos, dentre inúmeros outros.
Doutrina
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A existência de uma Administração dotada de potestades autoritárias, segundo uma visão que podemos chamar de tradicional, seria desdobramento ou manifestação do monopólio estatal do uso
da violência (Gewalt), condição vital ao Poder Público para a adequada realização de suas competências reguladoras tradicionais, além de propulsora de um natural (e essencial) desnivelamento
entre Estado e particulares.17 No curso deste estudo buscam-se alguns elementos para infirmar
ou, ao menos, problematizar tal premissa. Acreditamos que o poder administrativo, sob o ponto
de vista formal, não se expressa de modo distinto de outros poderes que o ordenamento jurídico
confere aos particulares, embora, naturalmente, variem em seu conteúdo material concreto. De
outra parte, seria simplista pretender que todas as potestades públicas impliquem uma superioridade política da Administração, sendo absolutamente trivial que do exercício de poderes públicos
defluam situações benéficas e ampliativas para os seus destinatários.18 Um aspecto da potestade
administrativa, contudo, é inegável em todas as construções modernas: a sua conatural latência,
potência (Macht), imperatividade e funcionalização (aderência a uma finalidade pública, externa
ao agente que a exerce).
O segundo vetor característico do Direito Administrativo seria aquele de marcante influência
socialista. No curso de sua evolução, os mesmos instrumentos potestativos seriam utilizados
não apenas para a afirmação de uma supremacia geral do Estado frente à sociedade, mas para
permitir à sociedade a realização de seus interesses coletivos, com uma dimensão que também
poderia ser reputada como pública. Desloca-se o condão do poder administrativo: de defesa do
soberano para a defesa de interesses públicos.19
Ainda na visão de Cassese, uma terceira vertente do nosso campo de estudo operaria ex parte
civis, figurando como elemento regulador das chamadas lutas contra as imunidades do poder,
tornando viável a estipulação de limites ao exercício do poder e obrigando a Administração Pú17
É uma ideia extremamente cara, ainda, à própria formação do Direito Administrativo. Segundo lição de Pedro Gonçalves, a
exigência de constituir um direito especificamente público, desvinculado dos pressupostos do direito privado, impera entre os administrativistas desde o Estado-Polícia, indicando a necessidade de uma construção dogmática do ato administrativo influenciada
por postulados autoritários e de comando. Na doutrina alemã, especialmente a partir de Otto Mayer, tal concepção autoritária é
revisitada, considerando a ausência de uma correlação entre o ato administrativo e o poder de comando ou ablação. Defende-se
que, em muitos casos, aliás, o exercício do poder depende da manifestação do destinatário; sua autoridade persiste, todavia, porquanto a Administração teria a faculdade de, por si só, verificar a compatibilidade da pretensão com o interesse por ela tutelado
(GONÇALVES, cit., p. 610).
18
ENTERRÍA; FERNANDEZ, cit., p. 381. Concordamos com Pedro Gonçalves quando afirma que o poder e autoridade, generalizados
no direito público, são fenômenos apenas pontuais nas relações de direito privado (cit., p. 615).
O Direito Administrativo, especialmente no Brasil — onde recebe influência massiva de institutos já cunhados e desenvolvidos no
âmbito do direito europeu —, costuma ser estudado sem uma devida percepção do condicionamento histórico de seus institutos.
Há, no campo do exercício dos poderes públicos, uma notória ilusão garantista (não na gênese, como apregoado por ilustre professor lusitano, mas no exercício exclusivamente estatal) que demanda uma revisão à luz do marco constitucional. A construção
das prerrogativas da puissance publique, assim como sua essencial relação com a persona estatal (publicatio), são manifestações
históricas de uma componente autoritária do Direito Administrativo, nada obstante a sua vinculação ao Estado de Direito, que
nasce, como é cediço, como Estado Administrativo (ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado. Coimbra: Almedina,
1999, esp. capítulo 01).
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blica a respeitar o princípio da transparência, motivando suas decisões. Trata-se, aqui, de uma
nítida influência da componente histórica liberal.20
O desenvolvimento dessas três matrizes históricas não segue a linearidade comum às construções reducionistas; o movimento corrente é o da oscilação (e não o da sucessão), aproximandose o Direito Administrativo ora de instâncias autoritárias, ora de abordagens coletivistas, ora de
enfoques liberais. Nesses processos entremeiam-se aspectos de concentração, assistencialismo
e defesa do cidadão frente ao Poder Público.
Não negamos a relevância da análise tradicional, que ainda é permeada, de maneira muitas vezes
monolítica, por algum dos enfoques acima destacados. O movimento que está em curso, no entanto,
suscita a necessidade de agregar um fator de tensão novo, em contexto já bastante problemático: a
entrega do exercício de funções de autoridade aos particulares tem como corolários imediatos tanto
a incorporação de novas formas de ação administrativa, pautadas por uma subjetividade privada,
como a criação de núcleos destacados no exercício da autoridade. A ausência de um aprofundamento,
doutrinário e legislativo, a respeito do tema, traz sério risco de deixar o cidadão à mercê de um novo
autoritarismo, gerando regimes jurídicos semelhantes aos das anacrônicas relações especiais de poder, como nomes referenciais da doutrina nacional já abordam em seus trabalhos mais recentes.21
Nossa contribuição ao aprofundamento do tema apresenta-se, neste estudo, por meio de uma
análise problematizante das formas de privatização da autoridade modernamente estudadas. É
o que se buscará empreender no próximo item.
2.3 Poderes administrativos: privatização funcional e privatização material
Classificações são sempre contingentes, e não faltam esforços, no campo da metodologia da Ciência
do Direito, para reforçar essa importante premissa de construção do raciocínio jurídico. No estudo
do exercício privado de poderes de autoridade — matéria que, como ressaltamos, reúne categorias
díspares e heterogêneas — o esforço classificatório deve ser utilizado de maneira bifronte, atentando-se, concomitantemente, para o seu caráter relativo e para a sua importância na ordenação/
conhecimento de uma realidade que, muitas vezes, apresenta-se caótica ao pesquisador.
No direito comparado, como já se observou nas linhas anteriores, a dificuldade de sistematização do assunto é assinalada por todos que o estudam. A tradição jurídica norteamericana, por exemplo, adverte sobre os perigos de inclusão, sob uma mesma rubrica
(contracting-out, outsourcing), de fenômenos diversos como a contratualização dos serviços de saúde, do sistema previdenciário e de complexos prisionais. 22 No direito italiano, a
expressão esternalizzazioni, apesar de em voga no meio jurídico, é envolta por uma série
de dúvidas, a começar pela ausência de um marco legal e pela falta de definição de contornos quanto aos procedimentos utilizados para a contratação do agente privado encar-
86
20
CASSESE, cit., p. 57.
21
Cf., especialmente, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed., 2009, p. 817 et seq.
22
METZGER, cit., p. 1.394.
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regado da execução da tarefa pública distribuída. 23 No ordenamento germânico, onde o
tema parece ter sido objeto de maior aprofundamento teórico, há uma nítida preferência
pela expressão privatização (privatisierung), à qual se atribui amplo espectro.24
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Consideramos útil — até porque utilizada entre os administrativistas brasileiros, ainda que de
modo assistemático — a proposta classificatória que desdobra o exercício da autoridade entre a
mera contribuição auxiliar (prática de atos materiais, acessórios ou instrumentais) e a transferência efetiva de responsabilidades. É partindo de tal premissa, constatada na realidade, que
Martin Burgi, professor da Rühr-Universität, formulou um norte interessante para sistematização do tema25 ao definir a necessidade de desdobramento entre as formas de exercício compartilhado de funções públicas: i) a privatização funcional, que corresponde a uma mera contribuição dos particulares, com sua capacidade e competência, para a execução de uma função
pública pela própria Administração e; ii) a privatização orgânica, na qual uma entidade privada
é investida do exercício de um poder público, figurando como depositária da responsabilidade
pela execução de uma tarefa que a lei confiou à Administração Pública. Dois níveis de participação podem ser identificados: nesta última, o particular fica investido da execução da tarefa
pública — com nítidas projeções em relação ao perfil subjetivo da função administrativa — ao
passo que, na privatização funcional, os particulares simplesmente colaboram ou contribuem
para a realização dos objetivos estatais.
A dicotomia é relevante porque afeta diretamente o conjunto de formalidades relativas ao ato de
delegação ou ao contrato em causa, bem como o regime jurídico aplicável ao particular durante
a execução do poder ou da função que lhe é atribuída. Pode-se dizer que a privatização funcional
de poderes administrativos não tem projeção no seio da organização administrativa e que o regime
jurídico aplicável ao delegatário, inclusive no que houver de exorbitante em relação ao direito
privado, é decorrência de uma vinculação contratual. Já na privatização orgânica, a entidade privada vê-se investida da tarefa pública, cabendo-lhe assumir, com autonomia, a direção da função
que lhe foi incumbida. Haveria aqui um processo de compartilhamento de responsabilidades, com
23
D’ALTERIO, Elisa. L’esternalizzazione delle funzioni di ordine: il caso delle carceri. Rivista trimestrale di diritto pubblico, n. 4,
2008, p. 963.
Die, Privatisierung der Verwaltung kann unter verschiedenen Aspekten betrachtet und diskutiert werden. Sie betrifft den Bereich und die Erledigung von Verwaltungsaufgaben, grundlegende Verfassungs — und Verwaltungsrechtsgrundsätze (demokratische
Legitimation, Rechtstaatprinzip, Sozialstaatprinzip), die Rechtsformen des Verwaltungshandelns, das Verwaltungsverfahren und
Verwaltungsorganisation” (MAURER, Hartmut. Allgemeines Verwaltungsrechts, p. 614). Na edição mais recente de seu famoso
manual (Munique, 2009), o professor alemão propõe uma nova classificação das formas de privatização da Administração Pública.
Temos, assim: (i) privatização organizacional ou formal (organisationsprivatisierung oder formelle Privatisierung), por meio da
qual o Estado institui pessoas privadas, crias pessoas mistas, ou associa-se a organizações já existentes, valendo-se da flexibilidade
gerencial do Direito Privado (algo próximo ao que temos aqui com os entes de direito privado da administração indireta); (ii) privatização funcional (funktionale Privatisierung), por meio da qual o Estado encarrega o particular da execução de algumas tarefas,
na condição lata de assistente administrativo (Verwaltungshelfer), valendo-se de suas específicas habilidades e competências e
entregando-lhe as principais responsabilidades pela execução da tarefa; (iii) privatização material (materielle Privatisierung), por
meio da qual o Estado entrega a total responsabilidade de uma tarefa aos particulares, assumindo funções de resguardo, supletivas
e subsidiárias e; (iv) alienação de ativos (Vermögensprivatisierung), modalidade em que o Estado se desfaz de seu patrimônio,
bens e ativos (incluindo ações de sociedades e outros títulos), entregando-os à iniciativa privada (cit., p. 616). Importante ainda,
no direito alemão, a distinção entre o concessionário (Beliehene) e o assistente administrativo (Verwaltungshelfer), considerando
que este último funciona como um mero instrumento de realização de funções de autoridade, persistindo o poder decisório com
o Poder Público.
24
BURGI, Martin. Funktionale Privatisierung und Verwaltungshilfe. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999. O autor considera que no âmbito da privatização orgânica se inclui a criação de entes de direito privado pela Administração. Observe-se, portanto, que não há
coincidência com a terminologia utilizada por Hartmut Maurer, especialmente no que tange à chamada privatização funcional e ao
enquadramento conceitual dos colaboradores administrativos.
25
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um regime jurídico mais rigoroso envolvendo a reserva da legalidade e outros temperamentos no
regime jurídico de Direito Público (vinculações jurídico-públicas, ou aplicação do chamado Direito
Privado Administrativo), eventualmente estipulados em lei ou contrato. Existem, como facilmente
se pode concluir, limites intrínsecos e extrínsecos ao uso de tal modalidade de privatização, cujos
contornos não serão discutidos nesta sede.
Considerando o interesse específico do trabalho, importa concluir que a investidura do particular em poderes administrativos, bem como a sua concreta extensão, são elementos indispensáveis para identificar a responsabilidade na gestão de uma determinada atividade e, portanto,
em qual das modalidades de privatização se está a incorrer.26
A figura da privatização orgânica envolvendo a atribuição de poderes de autoridade a entidades
privadas é, sem dúvida, a que desperta o maior número de problematizações. Não se deve minimizar o confronto, uma vez que, nesse campo, existe uma tensão interna inerente: o particular
tem o corpo no Estado, mas seu espírito pertence à Sociedade.27
Num intento de sistematização, pode-se afirmar que a privatização orgânica resulta de três
circunstâncias básicas: a) contratualização — de que é exemplo mais comum a concessão (Beleihung) —, abdicando o Poder Público das prerrogativas quanto ao exercício imediato de uma
determinada tarefa; b) delegação legislativa específica e; c) criação de uma entidade administrativa formalmente privada (de que seria exemplo mais típico, no caso brasileiro, a empresa
estatal).
Para a expressão dominante na doutrina nacional, as hipóteses aqui identificadas como de
privatização orgânica da autoridade derivam de excepcionalidades legislativas ou de desvios
quanto ao uso de determinado instrumental ou instituto do Direito Administrativo. É assim, por
exemplo, que se vai reconhecer e enquadrar as inúmeras funções de autoridade exercidas pelos
capitães de navio e comandantes de aeronave,28 ou das atribuições de efetivação do processo
Esclarecedor é o caso dos radares, citado por Burgi (cit., p. 145). Nos anos 90, as autoridades administrativas alemãs com atribuições de fiscalização de trânsito contratavam empresas para a instalação de aparelhos de medição de velocidade dos veículos.
Diante de tais contratos, entendiam os tribunais administrativos que a mera instalação de radares constituía auxílio administrativo
(Verwaltungshilfe). O que transcendesse tal atuação, como no caso da verificação e medição da velocidade, bem como a documentação das infrações, deveria ser considerado delegação de responsabilidade (ocorrendo, portanto, por meio da Beleihung). A posição restritiva da jurisprudência foi criticada de modo contundente pela doutrina, o que gerou uma revisão do posicionamento.
26
27
GONÇALVES, cit., p. 395.
Os atos jurídicos expressivos de poder público, de autoridade pública, e, portanto, os de polícia administrativa, certamente
não poderiam, ao menos em princípio e salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas (caso, e.g., dos poderes
reconhecidos aos capitães de navio), ser delegados a particulares (BANDEIRA DE MELLO, Curso..., p. 832). O eminente professor,
infelizmente, não menciona que circunstâncias poderiam autorizar tais atribuições excepcionais de poder pelo legislador, o que faz
lançar o esforço explicativo de um tema tão relevante, como é o do exercício das potestades administrativas, na seara do casuísmo
ou das justificativas amparadas por um viés pragmático. Nos termos do Código de Aeronáutica em vigor (Lei n. 7.565/86), a saber, a
autoridade do comandante de aeronave é exercida durante todo o vôo sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo, podendo
ainda: I — desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave
ou das pessoas e dos bens; II — tomar as medidas necessárias à proteção da aeronave e das pessoas ou bens transportados; III —
alijar a carga ou parte dela, quando indispensável à segurança do vôo (arts. 165 a 168). Reputamos dispendioso, desnecessário e
irracional que a Administração Pública escale um imenso contingente de funcionários seus para cumprir todas as funções enumeradas. O que não se pode, todavia, é admitir, de modo irrefletido, que um pressuposto fático ou utilitário sirva ao enquadramento de
apenas uma parcela dos problemas jurídicos, tornando inacessível o objeto de estudo, ao invés de simplificar a sua compreensão.
Do outro lado do oceano, no direito italiano, o comandante de navio figura como um dos mais antigos exemplos de exercício privado
de poderes públicos de comando e disciplina sobre a gente di mare (ZANOBINI, cit., p. 411).
28
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expropriatório por meio de concessionários de serviços públicos29 e, ainda, a atribuição de competências fiscalizatórias a entidades administrativas regidas pelo Direito Privado.30 Em regra, a
abordagem é casuística e parte de falsos supostos, relegando-se o assunto à seara do ostracismo
ou da abordagem turvada por preconceitos injustificáveis.
Doutrina
revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais
Por sua vez, a chamada privatização funcional, a despeito de nunca ter sido objeto de um
tratamento sistematizado, não é alvo de maiores preocupações, tendo em vista que, aprioristicamente, é inócua sob o ponto de vista da responsabilidade do Estado no cumprimento de
suas tarefas institucionais, considerando que as atividades privadas são de mera colaboração
ou execução. Reputamos necessário, todavia, um esforço compreensivo mais detido a respeito
da categoria, bem como de suas implicações reais e virtuais.
2.4 A privatização funcional entre a cooperação e a cooptação
No âmbito da privatização funcional, especialmente no que tange ao exercício de poderes
públicos, o setor privado atua como mero colaborador, auxiliar ou assistente da Administração
Pública. Usando de terminologia mais corrente, podemos afirmar que há, nesses casos, terceirização, o que vale dizer, o recurso aos serviços e meios de terceiros numa área que se mantém
sob a responsabilidade do Poder Público. Para que ocorra, é fundamental que a contribuição
dos particulares se dê no âmbito do Direito Privado, sem participação direta no exercício de
uma função pública. O peculiar formato da figura suscita um questionamento reiterado: haveria, nesta hipótese, uma verdadeira privatização?
A despeito de figurar com sentido diverso daquele que, tradicionalmente, é o mais conhecido
(especialmente como venda de ativos com transferência de titularidade de empresas, em sentido que popularizou a expressão no Brasil durante a década de 90), na privatização funcional a
Administração Pública prescinde da utilização de seus próprios meios, preferindo o recurso a um
instrumental externo, que contribui para a execução de uma atividade típica à função administrativa. Nesse campo, os particulares podem contribuir na preparação (atividade antecedente) e
na execução/efetivação (atividade subsequente) de uma determinada atividade administrativa.
Tal hipótese, na qual particulares contribuem para a preparação de uma determinada decisão
ou atividade pública, é tratada com naturalidade pela doutrina nacional. Na seara do poder
de polícia, partindo-se da premissa axiomática que propõe a sua indelegabilidade, é admitida a transferência das chamadas atividades instrumentais, de natureza técnica ou material,
Decreto-lei n. 3.365/41, art. 3°: Os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas do poder público poderão promover desapropriações mediante autorização expressa, constante de lei ou
contrato.
29
30
O Superior Tribunal de Justiça, em recente acórdão (STJ, 2a Turma, REsp 817.534/MG, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques,
p. em 10/12/2009), em que se discutia a regularidade do exercício de competências fiscalizatórias de trânsito pela BHTrans (sociedade de economia mista municipal), desenvolveu argumentação superficial e rasteira a partir da qual conclui que: No que tange
aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro — aplicação
de multas para aumentar a arrecadação. Na doutrina acompanham este entendimento, dentre outros, Diógenes Gasparini (Polícia
de trânsito. Competência e indelegabilidade. Revista da PGE de São Paulo, n. 36, p. 1.262 et seq.) e Álvaro Lazzarini (Estudos
de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 1999). Em sentido contrário: José dos Santos Carvalho Filho (Manual de Direito
Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006) e Carlos Ari Sundfeld (Empresa estatal pode exercer o poder de polícia.
Boletim de Direito Administrativo, n. 2. São Paulo: NDJ, 1993).
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visando à produção de uma decisão policial pelo Estado. Tais misteres privados geralmente se
desencadeiam por meio do chamado credenciamento.31
Burgi acentua, na hipótese, a necessidade de uma clara delimitação conceitual, sob o risco de
uma delegação fática da autoridade (faktische Beleihung).32 Afirma, ainda, que a Administração
recorre a organismos externos por não deter competências técnicas nem recursos e, naturalmente, não disporá de condições para efetuar uma recepção crítica dos resultados que aqueles
apresentam, para eventualmente corrigi-los ou descartá-los, se for caso. O recurso a colaboradores pode, assim, provocar a privatização de fato de um poder administrativo de decisão,
uma vez que as bases do juízo ficam, na prática, nas mãos das entidades privadas, que atuam
segundo o direito privado e segundo suas motivações privadas.33
A proposta por soluções de enquadramento de tais particulares em um chamado regime jurídico-administrativo mínimo é medida de caráter impositivo, sobretudo, em vista dos inúmeros contratos que o Poder Público celebra em busca de manifestações técnicas de particulares
com base em inexigibilidade inominada de licitação (art. 25 da Lei n. 8.666/93). A regulação
do tema poderia tangenciar, por exemplo, alguns aspectos que permitam à Administração, se
não uma recepção crítica, ao menos uma avaliação quanto à idoneidade da colaboração, que
deve remontar aos critérios de escolha do Verwaltungshelfer, assim como à observância de
balizas mínimas do regime jurídico-administrativo, revelando-se, por exemplo, em diretrizes
de objetividade e imparcialidade na produção da atividade de apoio à tomada de decisão.
De outro lado, é possível, também, a privatização funcional no campo da execução de uma determinada decisão administrativa ou na efetivação de uma função estatal típica, o que ocorre,
em regra, por meio de operações materiais34 realizadas pelo particular. Interessa-nos, diretamente, esta forma de privatização no âmbito da contratação, pelo Poder Público, de empresas
de segurança privada, contexto no qual são flagrantes as dúvidas a respeito da posição jurídica
encampada pelos particulares contratados. A segurança, como se sabe, é uma das áreas nucleares da autoridade estatal.
Como realizar, pois, o enquadramento jurídico da contratação dos serviços de segurança privada pela Administração? Atuariam tais particulares como meros auxiliares, regidos pelo Direito
DALLARI, Adilson. Credenciamento. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estudos de direito administrativo em homenagem a
Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 191. Também na obra de Bandeira de Mello é possível colher lição semelhante: É
certo que particulares podem ser contratados para a prática de certos atos que se encartam no bojo da atividade de polícia, pelo
menos nas seguintes hipóteses: (...) para atividades materiais que precedam a expedição de ato jurídico de polícia a ser emitido
pelo Poder Público, quando se tratar de mera constatação instrumental à produção dele e efetuada por equipamento tecnológico
que proporcione averiguação objetiva, precisa, independentemente da interferência de elemento volitivo para reconhecimento
e identificação do que se tenha de apurar (BANDEIRA DE MELLO. Serviço público e poder polícia: concessão e delegação. Revista
trimestral de Direito Público, n. 20. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 27).
31
32
BURGI, cit., p. 163.
A seguir um critério de coerência, o mais correto, na hipótese, seria a exigência de lei para a contratação de colaboradores,
por reconhecer que na hipótese se deflagra um exercício efetivo da autoridade. Parece não ser essa, contudo, a melhor solução,
considerando a sua pouca aderência à realidade.
33
Na lição de Bandeira de Mello (Curso..., p. 379), são atos materiais atividades como o ministério de uma aula, uma operação
cirúrgica realizada por médico no exercício da atividade como funcionário, a pavimentação de uma rua etc. Por não serem sequer
atos jurídicos, também não há interesse em qualificá-los como atos administrativos. Esses comportamentos puramente materiais
da Administração denominam-se “fatos administrativos”.
34
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Privado? Ou seriam agentes investidos de funções públicas, tal como se deflagra na esfera da
privatização orgânica? Eis o tema a ser desenvolvido nos itens seguintes.
Doutrina
revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais
3 O perfil da atividade de segurança privada: fundamentos jurídicoconstitucionais e confronto com a função de segurança pública
3.1 A dimensão política do problema da segurança privada
A questão da segurança privada figura no rol, já perigosamente amplo, dos temas menoscabados pela tradição jurídica brasileira. É na ciência política e na sociologia que encontramos,
especialmente a partir da década de 1990, o escólio crítico capaz de estear uma análise mais
fundamentada sobre o assunto. Tal se deve, como é próprio do campo de investigação daquelas
ciências, à percepção clara de um fato social tornado, por sua peculiar natureza, um problema
político e sociológico: o incremento exponencial das contratações de serviços de segurança
privada nas sociedades capitalistas ocidentais.
Para se ter uma dimensão do fenômeno, os últimos dados a respeito do desenvolvimento do setor
no Brasil (2005) contabilizam 557,5 mil vigilantes efetivamente em atuação, excluídos desse contingente aqueles que atuam fora do âmbito da regulação formal, bem como os que, a despeito de
devidamente registrados, estariam desempregados. A título de comparação, em 2003, de acordo
com o Ministério da Justiça, o contingente de forças públicas de segurança pública somadas atingia 506,4 mil pessoas, considerando policiais civis (115.960) e militares (390.451).35
O diagnóstico mais corriqueiro, a partir de tais dados, apregoa que a sociedade moderna estaria
se movendo conforme um paradigma da insegurança:36 não sair à noite, evitar lugares determinados, ou manter certos padrões estáveis de comportamento diante do amedrontamento passaram a ser fatos corriqueiros. Muitos haurem vantagens com essa cultura (agentes imobiliários,
meios de comunicação e empresas de entrega em domicílio, por exemplo), ao mesmo tempo
em que se cria uma nova configuração dos vínculos sociais e dos sistemas de crenças mais elementares a partir de um sentimento socialmente construído.
Desde uma perspectiva política, jurídica e institucional, o recurso crescente às formas de segurança privada poderia denotar certo anacronismo do Estado moderno, eis que, como de universal conhecimento, este reservou para si o monopólio do uso da violência e da força, proibindo
os particulares de recorrerem à vingança privada, a despeito de seus impulsos muitas vezes
Os dados são fornecidos por trabalho de tomo de André Zanetic, (Segurança privada: características do setor e impacto sobre o
policiamento. Revista Brasileira de Segurança Pública, n. 4. São Paulo, março/abril de 2009, p. 137). Considerando o contingente
formalmente registrado, o número ao final de 2005, segundo informações do Departamento de Polícia Federal, chega a 1,28 milhão
de vigilantes.
35
É análise que faz Fréderic Ocqueteau a partir da evolução do setor de segurança privada na França. Segundo o pesquisador, três
são as razões decisivas para o seu incremento: a) uma crise de eficácia na regulação clássica da repressão estatal; b) dificuldades de
ordem sócio-histórica para regular a violência urbana; e c) lobby eficaz da parte dos profissionais da segurança privada. (A expansão
da segurança privada na França: privatização submissa da ação policial ou melhor gestão da segurança coletiva? Tempo Social: Revista de Sociologia da USP n. 09. São Paulo, maio de 1997, p. 187). Em trabalho que é referência obrigatória sobre o tema, Teresa
Caldeira, professora do departamento de antropologia da Universidade da Califórnia, afirma que a segurança privada tornou-se um
elemento central do novo e já muito difundido padrão de segurança urbana baseada em enclaves fortificados (Cidade de muros:
crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000, p. 190).
36
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assim o desejarem.37 Analistas mais céticos vão afirmar que tal reserva parece cada vez menos
aderente às sociedades contemporâneas, considerando uma suposta atomização do Estado, associada à revisitação de alguns padrões de governabilidade; por sua vez, a mudança estrutural
da esfera pública e o compartilhamento de funções estatais em um ambiente transnacional
reforçariam o mesmo diagnóstico.38
Discordamos de um enfoque assim alarmista. Parece comum a todos os ordenamentos jurídicos
mais civilizados que certas situações-limite, nas quais não haja possibilidade de recurso útil à
segurança pública, sejam perfeitamente admissíveis sem que se considerem perturbados, com
isso, os termos do contrato social. O direito de resistência, o estado de necessidade, a legítima
defesa, o desforço imediato na defesa da posse e a prisão em flagrante por qualquer indivíduo
corroboram a hipótese de que a força privada é reconhecida. O que se deve empreender, no
caso, é uma percepção quanto à mudança de fundamento do monopólio da violência estatal,
que constitui, na atualidade, uma garantia de segurança e liberdade dos cidadãos, e não mais
um mero instrumento de engrandecimento do poder político, tal como representara no início
da Idade Moderna.39
No caso da segurança privada, o seu fundamento jurídico-político reside, exatamente, na compreensão de que a autodefesa pelos particulares, dentro dos limites constitucionais, é tolerada:
o Estado permanece com o monopólio do uso da força, mas não possui o monopólio para a satisfação das necessidades coletivas de segurança. Tal premissa é claramente adotada pelo Texto
Constitucional em vigor, quando afirma, em seu art. 144, que a segurança pública é dever do
Estado, direito e responsabilidade de todos.40
É evidente que o reconhecimento dos serviços de segurança privada comporta alguns riscos,
como, por exemplo, o de perpetuação e reforço dos mecanismos de desigualdade social, a violação aos direitos humanos, além do estímulo ao desenvolvimento de milícias privadas que se
37
O Gewaltmonopol seria um verdadeiro princípio constitutivo do Estado, assentado diretamente na filosofia política (cf. verbete
violência em BOBBIO, Norberto et. al. Dicionário de Política. Vol. 2. Brasília: Ed. UnB, 2000). O recurso aos clássicos do pensamento político nos demonstra a intrínseca associação do monopólio da força com o nascimento das monarquias absolutistas. Thomas
Hobbes, por exemplo, afirma em seu trabalho mais conhecido que: se não for instituído um poder suficientemente grande para a
sua segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar apenas, na sua própria força e capacidade, como proteção contra
todos os outros (Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 157). Séculos depois, em Max Weber, o postulado seria reformulado
sociologicamente como fundamento de legitimação do Estado, definido como aquela comunidade humana que, no interior de um
determinado território (...) reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima. Porque o específico da atualidade
é que às demais associações ou pessoas individuais somente seja concedido o direito à coação física na medida em que o Estado o
permita. Este se considera, portanto, a única fonte do direito de coação (Economia e Sociedade. Brasília, Ed.UnB, 2004, p. 526).
WIERVORKA, Michel. O novo paradigma da violência. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, n. 09. São Paulo, maio/1997, p.
19. A análise de Jacques Chevallier (cit., p. 67) caminha em sentido inverso: a ameaça terrorista e as novas formas de delinquência
confeririam ao Estado responsabilidades acrescidas, permanecendo como regulador de um sistema tornado complexo por processos
de substituição, delegação e externalização. Já Klaus Günther, em texto recente, afirma que a sociedade ocidental contemporânea caminha, perigosamente, para uma opção pela segurança em detrimento da liberdade; em paralelo, o Estado se transforma
em agência de segurança que compete e coopera com outros provedores de serviços de segurança (Os cidadãos mundiais entre a
liberdade e a segurança. Novos Estudos CEBRAP, n. 83. São Paulo, mar./2009, p. 15).
38
ADORNO, Sérgio. Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea. In: MICELI, S. e outros (org.). O que ler
na ciência social brasileira (1970-2002). São Paulo: Sumaré, 2002.
39
Curioso observar que o surgimento oficial dos serviços de segurança privada no Brasil ocorreu sob determinação legal do Poder
Público, pelo Decreto Federal n. 1.034/69, para atuação das empresas de segurança nas instituições financeiras. A imposição perdura até os dias de hoje, tendo se estendido, por força do art. 1° da Lei n. 7.102/83, a todo estabelecimento financeiro onde haja
guarda de valores ou movimentação de numerário.
40
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valem de espaços carentes de estatalidade,41 compondo uma espécie de neofeudalismo. Fazse mister, portanto, destacar que, a despeito de legítimos, os serviços de segurança privada
ocupam lugar próprio, especialmente quando contrastados frente à competência de órgãos e
serviços de segurança do Estado. A definição de tais contornos e limites é tarefa indispensável
à compreensão do seu regime jurídico.
Doutrina
revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais
3.2 Regime jurídico da atividade de segurança privada e exercício subsidiário da
força entre particulares
Como assentado no tópico anterior, não temos dúvida de que a segurança privada é um componente indispensável ao sistema de segurança interna, revelando-se como um dos elementos
da intrincada teia de controle social.42 Trata-se de atividade privada,43 desenvolvida na maioria
dos casos com o escopo de lucro, no âmbito de um mercado de segurança regulado legal e administrativamente.
Antes de examinar o tratamento outorgado pelo direito positivo à matéria, convém ressaltar
que a atividade de segurança privada está submetida a um limite teleológico e funcional: a
segurança privada só pode ter por objeto a segurança interna, nunca a segurança externa do
Estado, aqui compreendida a segurança externa como atividade de salvaguarda da independência nacional e da integridade do território.44
As linhas diretrizes de tal regulação foram estabelecidas no direito brasileiro pela Lei n.
7.102, de 20 de junho de 1983. No diploma, a segurança privada é apresentada como subsidiária e complementar à segurança pública, estando suas atividades sujeitas à regulação,
controle e fiscalização pelo Departamento de Polícia Federal, ligado ao Ministério da Justiça.
A atividade de segurança, por sua vez, desdobra-se entre os segmentos de: a) vigilância patrimonial (preservação de bens e patrimônio e prevenção de riscos decorrentes de ações crimiNa verdade, a expansão do setor de segurança privada apresenta para a organização do policiamento em qualquer lugar, a ponto
de analistas em países desenvolvidos argumentarem que ele ‘tem profundas implicações para a vida pública (...) a vitalidade
dos direitos civis e o caráter do governo democrático. Se isso é verdade em democracias bem consolidadas, pode-se imaginar as
consequências no contexto brasileiro, com a deslegitimação das instituições de ordem e dos abusos policiais (CALDEIRA, cit., p.
199). Continua afirmando que com a difusão da segurança privada, a discriminação contra os pobres pelas forças de “segurança” é
dobrada. Por um lado, eles continuam a sofrer os abusos da polícia. Por outro, como os ricos optam por viver, trabalhar e consumir
em enclaves fortificados usando os novos serviços de segurança privada para manter os pobres e todos os indesejáveis de fora,
os pobres tornam-se vítimas de novas formas de vigilância, controle, desrespeito e humilhação (cit., p. 204). Cf. tb o pioneiro
ensaio de Antônio Paixão sobre as implicações do exercício da segurança privada relativamente aos direitos humanos (Segurança
privada, direitos humanos e democracia. Notas preliminares sobre novos dilemas políticos. Novos Estudos CEBRAP, n. 31. São Paulo,
1991).
41
O conceito de controle social refere-se, virtualmente, a todas as atividades que, de alguma forma, contribuem para a ordem
social de uma da comunidade, o que inclui parentes, escolas, mídias, igrejas e entidades correlatas (ZANETIC, cit., p. 135).
42
O enquadramento da atividade de segurança privada como mercancia não amealha adesões tranquilas. Nossa consulta ao direito
espanhol permitiu verificar uma preferência especial pela inserção do tema na seara da segurança pública, como ressalta Manuel
Carrasco em monografia sobre o tema: (...) no cabe duda de que lo relativo a los servicios de seguridad privada forma parte de la
matéria “seguridad pública” por los siguientes motivos: en primer lugar, porque estos servicios tienen como objeto la protección
de personas y bienes, y lo que es aún más importante, tienen un carácter instrumental (complementaried y subordinación) de cara
a las actividades proprias de las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad; y en segundo lugar, porque estos servicios, al mismo tiempo,
constituyen un grave riesgo para el proprio mantenimiento de tranquilidad y el orden público (La seguridad privada: régimen
jurídico-administrativo. Valladolid: Lex Nova, 2004, p. 44). Parece-nos perigosa tal posição, uma vez que aproxima a atividade
de segurança privada, de maneira desautorizada, do âmbito da segurança pública, favorecendo, a médio prazo, o surgimento de
exércitos privados.
43
Atividade que parece ter sido reservada constitucionalmente às Forças Armadas, por conta do preceituado pelo seu art. 142, além
da regulamentação constante na Lei Complementar n. 97/99.
44
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nosas); b) segurança orgânica (empresas que, ao invés de contratar serviços especializados das
empresas de proteção constituem seus próprios organismos de segurança); c) segurança pessoal
(acompanhamento e proteção de empresários, políticos, executivos etc.); d) curso de formação
(treinamento e qualificação de vigilantes); e) escolta armada (acompanhamento motorizado
armado) e; f) transporte de valores. Dentre tais atividades, sem dúvidas, as que suscitam maior
interesse, em função de sua utilização intensiva, são as duas primeiras.
Segundo a Portaria n. 387/2006, do Departamento de Polícia Federal, os serviços de vigilância
patrimonial deverão ser exercidos dentro dos limites dos estabelecimentos, urbanos e rurais,
públicos ou privados, com a finalidade de garantir a incolumidade física das pessoas e a integridade do patrimônio no local, ou nos eventos locais (art. 1°, § 3°, I). Com relação à atividade
desempenhada por esse segmento, esta somente poderá ser exercida dentro dos limites dos
imóveis vigilados (sic) e, nos casos de atuação em eventos sociais, como show, carnaval, futebol, devem se ater ao espaço privado objeto do contrato (art. 13). Por sua vez, as empresas
possuidoras de serviços orgânicos de segurança também estão limitadas quanto ao âmbito de
sua atividade, que
(...) somente poderá ser exercida dentro dos limites dos estabelecimentos da
empresa com serviço orgânico de segurança, assim como das residências de
seus sócios ou administradores, com a finalidade de garantir a incolumidade
física das pessoas e a integridade do patrimônio no local, ou nos eventos sociais
(art. 60).
Com relação à abrangência territorial dos serviços de segurança privada, uma delimitação essencial sobre a atuação do setor diz respeito à impossibilidade de se fazer o policiamento em
áreas públicas, atividade constitucionalmente reservada às polícias militares.45 Ressalvadas,
assim, as hipóteses de transporte de valores, escolta armada a transporte de cargas e proteção
de pessoas (segurança pessoal), os vigilantes46 estão juridicamente circunscritos a policiarem
áreas restritas aos estabelecimentos privados.
A partir da análise do marco legal, ainda que perfunctória, é possível extrair alguns postulados
gerais para o desenvolvimento da atividade de segurança privada no Brasil: a) subsidiariedade,
que pressupõe a primazia das forças e instituições de segurança pública, cuja competência é
expressamente instituída no Texto Constitucional, devendo a segurança privada intervir em
setores periféricos da vida social ou âmbitos que não podem ser garantidos por uma atuação
estatal; b) tipicidade, que resulta de sua enumeração expressa, figurando como consectário
do caráter supletivo do mercado de segurança; c) não usurpação de poderes públicos, que se
Art. 144. (…) § 5°. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros
militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
45
Os agentes autorizados a atuar de modo oficial no mercado de segurança privada são designados vigilantes, profissionais capacitados pelos cursos de formação, empregados das empresas especializadas, e das que possuem serviço orgânico de segurança,
registrados no Departamento da Polícia Federal — DPF, responsáveis pela execução das atividades de segurança privada (Portaria
387/2006 — DG/DPF, art. 2°, III). De acordo com o mesmo ato normativo, os vigilantes que atuam em nome de empresas de vigilância patrimonial, quando em serviço, podem portar revólver calibre 32 ou 38, além de cassetete (de madeira ou borracha) e
algemas. Fora esses instrumentos, veda-se o uso de qualquer outro objeto não autorizado pela Coordenação Geral de Controle de
Segurança Privada. Outras armas, de natureza não letal (borrifadores de gás pimenta e arma de choque elétrico, por exemplo), são
permitidas nas atividades de vigilância, havendo treinamento e capacitação para o uso desses instrumentos.
46
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concretiza na proibição da prática de atos cuja competência tenha sido outorgada, legal ou
constitucionalmente, a alguma autoridade pública (especialmente as policiais e as judiciárias);
d) preventividade, o que realça a vocação preventiva da atividade de segurança privada, especialmente quando mobilizada para a regulação e controle do acesso e; e) proporcionalidade,
mensurada em suas perspectivas de necessidade e adequação quanto às medidas encetadas.
Doutrina
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A natureza subsidiária da atividade de segurança privada figura, incontestavelmente, como uma
importante linha divisora frente aos encargos de segurança pública assumidos pelo Estado.
A segurança pública tem por finalidade a proteção da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio (cf. precitado art. 144 da CRFB), além de expressar, como assinalado,
o exercício da autoridade pública no campo do poder de polícia — figurando como uma das principais vertentes da polícia administrativa, denominada por Hely Lopes Meirelles como polícia
de manutenção da ordem pública.47 São suas características principais: a) a garantia do valor da
convivência pacífica e harmoniosa, que exclui a violência das relações sociais; b) a pertença (ou
pertinência) originária ao Estado, a quem o Texto Constitucional e a tradição política ocidental
entregaram o monopólio do uso da força na sociedade e; c) a garantia da ordem pública, contra
a ação de seus perturbadores, por meio do exercício do poder de polícia pela Administração.48
Já os serviços de segurança privada têm o seu escopo jungido à proteção de direitos eminentemente subjetivos e particulares, tais como a vida, a liberdade, o patrimônio e a incolumidade
física, constituindo-se como manifestação organizada da autotutela de direitos fundamentais.
Nesses casos, é encargo inafastável do Estado-legislador, no seio de seu monopólio de regulação
do emprego da força — monopólio com caráter taxativo e absoluto — definir os termos efetivos
e concretos em que tal exercício privado da força se desdobrará.
Nossa conclusão fundamental, ao menos por ora, é a de que a segurança privada, assim como
todas as atividades que lhe são correlatas, não implica um exercício de competências públicas
transferidas, delegadas, contratadas ou capturadas pelo agente privado; revelam-se, antes,
como legítimo emprego da força nas relações entre particulares, em caráter de excepcionalidade. Não se cuida, pois, de uma atuação em nome do Estado, da lei, ou da segurança pública,
mas sim de um desdobramento de direitos fundamentais (especialmente o de propriedade), no
âmbito da autonomia ética inerente a cada indivíduo.
4 A contratação de serviços de segurança privada pelo estado: entre a privatização funcional e a delegação irregular de potestades administrativas
A atividade de segurança privada, como assinalado no tópico anterior, lança problemas relevantes a respeito do papel estatal na provisão de funções eminentemente públicas,49 como ocorre
no caso da preservação e defesa da ordem. Resulta paradoxal, para dizer o mínimo, descobrir
que fora a própria Administração Pública uma das principais responsáveis pelo incremento da
47
MEIRELLES, Hely Lopes. Polícia de manutenção da ordem pública e suas atribuições. In: CRETELLA JR., José (org.). Direito Administrativo da Ordem Pública. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 91.
48
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Administrativo da segurança pública. In: CRETELLA JR., José (org), cit., p. 76.
Em texto já clássico, Fernando Sainz Moreno encabeça o discurso quase uníssono de que: garantizar la seguridad ciudadana es
uma función pública y fundamentalmente encomendada a órganos públicos. (Ejercicio privado de funciones públicas. Revista de
Administración Pública, n. 100, p. 1.775).
49
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atividade de segurança privada, tanto no exterior como por aqui. Ao contrário da impressão
deixada por um juízo corrente, de que a procura pela atividade de vigilância patrimonial estaria concentrada nos condomínios e nas grandes residências, números da pesquisa mais recente
sobre o setor, provenientes da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transportes de
Valores — Fenavist, apontam o Poder Público como maior contratante do mercado (utilizando
cerca de 40% dos vigilantes).50
A utilização de empresas de segurança privada pela Administração também suscita, como não
poderia deixar de ser, debates complexos que derivam das dificuldades pragmáticas para uma
delimitação rigorosa do terreno da segurança privada em face à da segurança pública.
Como vimos no capítulo anterior, na prestação dos serviços de segurança as empresas oficialmente
autorizadas atuam no âmbito do direito privado, exercendo poderes privados que podem, como ultima ratio, materializar o uso da força e da coação física pelos vigilantes. Tais agentes, como atuam
na esfera privada, exercem os poderes de uso da força pertencentes a todos (ex.: legítima defesa,
prisão em flagrante), podendo, ainda, receber autorização para a manifestação de poderes derivados de seu eventual contratante, nos quais se incluem a defesa da posse e o poder de decidir sobre
quem pode entrar e permanecer em um determinado local, ainda que por meio do uso da força.
É tranquila a correlação do tema com a privatização funcional, na medida em que esta pressupõe
que o serviço adquirido pela Administração configure-se como atividade privada, promovendo-se a
troca de uma atuação pública por uma manifestação particular de mesmo conteúdo. Nem tão serena, todavia, é a conclusão a que se chega quanto aos danos potencialmente ocasionados por tal
atividade, uma vez que suscita o risco de uma privatização inconstitucional da segurança pública,
além de uma nefasta instrumentalização de poderes privados para a realização de fins públicos.
Por promoverem desdobramentos diferentes, reputamos relevante a separação, ao considerar as
hipóteses de segurança privada contratada pelo Poder Público, quando o objeto da proteção for
um bem público de uso especial ou um bem público de uso comum do povo, aberto a todos e de
livre circulação.51
4.1 Segurança e vigilância privada em bens públicos de uso especial
Segundo conceito de Floriano de Azevedo Marques Neto, são bens de uso especial aqueles que
se prestam a suportar o exercício de funções públicas, porém em caráter instrumental; neles a
função pública não é exercida pela mera disponibilidade do bem ao uso geral e incondicionado
de todos os administrados, mas sim pela reserva do bem a um uso por parte de um grupo específico de cidadãos que, mediante este uso, satisfazem necessidades da coletividade.52 O bem
Dados colhidos por ZANETIC, cit., p. 138 et seq.. Há também, na mesma pesquisa, a informação de que a Administração Pública responde por 49% das contratações de vigilantes na segurança orgânica. No direito espanhol, segundo análise de Zigorraga, o fenômeno é
similar: (...) no nos queda sino adverar que la línea de progresion y estímulo de la Seguridad Privada a partir de los datos expuestos, no
sólo se halla impulsada por la economia privada, sino, por paradójico que pueda resultar, es también la Administración la que, sintiéndose impotente para autoprotegerse con fuerza pública, recurre en gran medida al fomento y expansión de la Seguridad Privada (Perfiles e
problemática de la seguridad privada en el ordenamiento jurídico español. Revista de Administración Pública, n. 118, 1989, p. 133).
50
51
Não vislumbramos maiores problemas quanto à utilização da segurança privada para a proteção de bens dominicais, considerando
que sobre eles a Administração exerce poderes de disposição que são típicos do dominus privado.
52
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica: o regime jurídico das utilidades
públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 214. Segundo o art. 99, II, do Código Civil Brasileiro, são bens públicos de uso especial
os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal,
inclusive os de suas autarquias.
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de uso especial é consagrado a um serviço ou um estabelecimento público, e quem figura como
seu usuário direto é o Poder Público, ainda que o faça para disponibilizar serviços ou utilidades
aos administrados.
Doutrina
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O professor paulista lembra ainda que a utilização de um bem de uso especial não se pauta,
geralmente, pela generalidade, embora se deva ter em mente o fato de que, de algum modo,
a coletividade haverá de se beneficiar, ainda que indiretamente, de tal uso. O acesso ao bem
pode ser livre, condicionado (sujeito a autorização), limitado (por exemplo, aos usuários inscritos de uma biblioteca) ou vedado ao público.
Destaquemos primeiramente a hipótese de edifícios fechados ao público. Na medida em que esteja
em causa a sua proteção, a contratação de serviços de segurança privada parece não oferecer maior
dificuldade, uma vez que a entidade pública responsável pelo edifício tem o dever de protegê-lo,
como qualquer outro particular em relação ao bem imóvel de que seja proprietário. Como nenhum
particular possui direito subjetivo de acesso ao bem ou ao serviço que eventualmente venha a se
instalar ali, não se coloca qualquer problema de direito público na questão. Assim, não parece haver
obstáculos à privatização funcional de que decorra a contratação de empresas de segurança para a
operação de edifícios fechados ao público.
Diferenças surgem, no entanto, quando se discute o controle de entrada, saída e presença de
pessoas em edifícios abertos ao público. O problema fundamental não está no campo das atividades mecânicas e rotineiras (como, por exemplo, a solicitação de identificação do cidadão que
pretende entrar em local de acesso restrito), mas na possibilidade de uso da força (bem como
de outras medidas de natureza grave), pelos vigilantes, em circunstâncias nas quais estes se
veem confrontados com situações atípicas (como ocorre, a título exemplificativo, na hipótese
de pessoa embriagada que provoca tumulto em edifício público de acesso livre). Situações de
tal ordem poderiam suscitar medidas de expulsão ou proibição da entrada, inseridas no campo
material da segurança privada?
Como aduzimos na primeira parte do trabalho, o âmbito da privatização funcional está delimitado
pela possibilidade de se substituir uma atuação do Poder Público por outra dos particulares, sendo
necessário e imperativo, para tanto, que o sujeito privado se limite a colaborar com a execução
de um mister administrativo. É de se concluir, a partir dos termos anteriormente expostos, que o
Verwaltungshelfer perde tal natureza quando investido do poder de tomar decisões com relevo
sobre a esfera de terceiros, vale dizer, decisões dotadas de imperatividade, típicas ao exercício
da potestade estatal.53 Somente a Administração Pública, ou entidade privada investida de poderes públicos por decorrência de lei ou contrato (privatização orgânica), poderia exercer tal
atividade que, empiricamente, materializa-se na forma de um ato administrativo.
Considerando a hipótese atípica mencionada, é fundamental que o agente de segurança privada, diante de situações excepcionais, que demandem uma decisão gravosa com impacto direto/
Não altera nossas conclusões, vale ressaltar, a circunstância de a Administração definir, de maneira rigorosa, os critérios por meio
dos quais determinada decisão deverá ser tomada pelos seus auxiliares. A interpretação, elemento essencial e conatural à aplicação do direito, continua a existir na hipótese, caracterizando a atuação como eminentemente pública.
53
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imediato sobre a esfera jurídica do cidadão, solicite a presença de um responsável pelo estabelecimento, ou demande a intervenção das forças de segurança pública — legitimados que estão,
ambos, à prática de atos administrativos com feições de autoridade.
4.2 Segurança e vigilância privada em bens públicos de uso comum
Os bens públicos de uso comum do povo são aqueles postos à disposição dos administrados de
maneira indistinta, independentemente do cumprimento de qualquer condição prévia, ressalvada a observância das regras de ordenação prévia do próprio uso do bem. Na lição de Marques
Neto, no uso comum não há necessidade de legitimação subjetiva específica habilitadora do
uso, já que existe uma legitimação geral decorrente da própria legitimação do bem.54
A questão que se coloca nesse campo é a mesma do item anterior: pode a Administração Pública
garantir a segurança de espaços públicos abertos e de livre circulação valendo-se de empresas
que prestam serviços privados de segurança? É o caso típico de ocupação das áreas públicas de
aeroportos ou terminais de transportes.
No que concerne à possibilidade de operações de mera vigilância e presença nos locais referidos, não se vislumbra, a partir das premissas instituídas, maiores obstáculos. Nas hipóteses
que dizem respeito à utilização de medidas agressivas diante de fatos inesperados, poder-se-ia
questionar se o vigilante contratado não estaria, na sua condição de usuário legitimado à fruição do bem em razão de sua peculiar natureza (uso comum), autorizado a uma intervenção em
nome da coletividade e, até mesmo, em legítima defesa própria.
Expressiva parcela da doutrina germânica identifica a hipótese como de ilícita fuga para o direito privado: a contratação de empresas de segurança adulteraria a lógica da subsidiariedade
do emprego da força entre particulares, tredestinando, de maneira inadmissível, o instituto da
legítima defesa,55 e promovendo conversão de direitos privados ocasionais e excepcionais (relativos ao uso da força) em competências ordinárias e formas organizadas de garantir a segurança
em espaços públicos.
Cabe, todavia, antes de se concluir pela impossibilidade absoluta da contratação de serviços de
segurança privada na vigilância de espaços públicos de uso comum, aduzir um último elemento
de discussão, também apresentado por Martin Burgi:56 não haveria tal impedimento sempre que
a entidade da Administração contratante não dispusesse de competências públicas de polícia e,
portanto, não pudesse outorgar o exercício da autoridade por meio de processos regulares de
54
MARQUES NETO, cit., p. 203.
A legítima defesa estaria vinculada, segundo BURGI (cit., p. 189), a uma reação imediata, ocasional e desorganizada. Admitir
a situação aventada seria transformar a legítima defesa em um meio normal de defesa, exercido no contexto de uma atividade
planejada e organizada (GONÇALVES, cit., p. 389).
55
Die Zurechnung zum Staat bewirkt die Maβgeblichkeit des Regimes der Staatsaufgaben. Das bedeutet sub specie des Einsatzes
physischer Gewalt, daβ die (materiell-staatliche) private Gewalt rechtsstaatlich nur akzeptabel erschiene nach einer ,,Übertragung“ der staatlichen Gewaltbefugnisse auf die betroffenen Privaten, die dadurch zu Beliehenen würden. Die gerade nicht auf
eine Beleihung, sondern auf Verwaltungshilfe zielende funktionale Privatisierung wäre im Umfang des intendierten Gewalteinsatzes ausgeschlossen und verlöre bei gewaltgeneigten Aufgaben somit erheblich na Attraktivität. Das rechtsstaatliche Gewaltmonopol bildete nach all dem eine unübersteigbare, d. h. nicht einmal durch die ausnahmsweise Berufung auf Gewaltermächtigungen
überwindbare Schranke gerade gegenüber der funktionalen Privatisierung (BURGI, cit., p. 191).
56
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privatização orgânica. Nessa hipótese, e somente aí, o agente contratado poderia exercer os
direitos privados de uso da força inerentes a todos (especialmente a legítima defesa, própria
e de terceiro). Estando, contrariamente, investida a Administração contratante de tais competências, o recurso ao mercado de segurança teria escopo limitado à mera vigilância, vale dizer,
à mera colaboração ou auxílio administrativo.
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Considerações finais
1. Nos últimos anos vem se observando uma contração na esfera estatal, normalmente acompanhada da privatização de algumas atividades administrativas, expandindo-se em vários domínios as formas de colaboração tradicional de particulares na execução de incumbências que,
tradicionalmente, mantiveram-se na titularidade do Poder Público. Os vários modelos ou esquemas de Parcerias Público-Privadas — permitindo, inclusive, o acesso do mercado em esferas
paradigmáticas, como é o caso da gestão de prisões — deram curso a novo processo de compartilhamento de papéis na realização de interesses públicos.
2. A participação de particulares em tarefas estatais é vislumbrada sob um olhar condicionado
que restringe sua atuação ao domínio gestão de serviços públicos, cada vez mais especializada
graças à multiplicidade de instrumentos normativos engendrados, especialmente na última
década, com o objetivo de empresarializar a exploração dessas atividades econômicas de titularidade do Estado. Não se pode deixar de imputar muitas destas lacunas às dificuldades que o
assunto suscita. A externalização de poderes administrativos delineia-se sobre uma divergência
entre a natureza de uma entidade (eventualmente não estatal) e natureza dos poderes em
que será investida. Há, aqui, uma tensão interna entre o estatuto privado e a função pública,
marcando uma duplicidade sui generis na posição do particular que se vê investido de tais poderes.
3. Para fins deste trabalho, entende-se como poder de autoridade (ou poder administrativo),
todo poder funcionalizado, atribuído em nome da realização de um interesse que é exterior
ao agente executor, estabelecido por norma de direito público e conferido a um sujeito administrativo para que, por ato unilateral, peculiar à função administrativa, edite regras jurídicas
(poder normativo), provoque a produção de efeitos com repercussão imediata na esfera jurídica de terceiros (poder extroverso), produza declarações dotadas de especial força jurídica
ou, ainda, empregue meios de coação sobre pessoas e coisas (poder sancionatório), além do
genérico poder de condicionamento da propriedade e da liberdade do particular em nome do
interesse público (poder de polícia).
4. O professor alemão Martin Burgi (1999) formulou um norte interessante para sistematização
do tema, e que pode ser aproveitado no ordenamento brasileiro. Para o jurista, toda a forma
de exercício privado de funções públicas é uma privatização. É preciso, todavia, diferenciar
duas modalidades desse fenômeno: i) a privatização funcional, que corresponde a uma mera
contribuição dos particulares, com sua capacidade e competência, para a execução de uma
função pública pela própria Administração e; ii) a privatização orgânica, na qual uma entidade
privada é investida do exercício de um poder público, figurando como depositária da responsa99
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bilidade pela execução de uma tarefa que a lei confiou à Administração Pública. São, como se
percebe, dois níveis de participação: nesta última, o particular fica investido da execução da
tarefa pública, ao passo que na privatização funcional os particulares simplesmente colaboram
ou contribuem para a concretização dos objetivos estatais. A atividade de segurança privada
pode ser enquadrada no primeiro tipo, enquanto auxílio administrativo para a implementação
de uma tarefa pública.
5. A atividade de segurança privada não afronta o postulado do monopólio estatal da violência.
Seu fundamento jurídico-político reside na compreensão de que a autodefesa pelos particulares, dentro dos limites constitucionais, é tolerada: o Estado permanece com o monopólio do uso
da força, mas não possui o monopólio para a satisfação das necessidades coletivas de segurança. Tal premissa é claramente adotada pelo Texto Constitucional em vigor, quando afirma, em
seu art. 144, que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos.
6. Ao contratar serviços de segurança privada deve o Estado obstar seja o vigilante investido do
poder de tomar decisões com relevo sobre a esfera de terceiros, vale dizer, decisões dotadas de
imperatividade, típicas ao exercício da potestade estatal. Somente a Administração Pública, ou
entidade privada investida de poderes públicos por decorrência de lei ou contrato (privatização
orgânica), poderia exercer tal atividade que, empiricamente, materializa-se na forma de um
ato administrativo.
Referências
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