Jornal da Casa / Casa do Brasil

Transcrição

Jornal da Casa / Casa do Brasil
# 46 – outubro 2014
Conversafiada com a cantora Tamy Macedo
“Cantar é um prazer físico, não consciente”
S
endo natural de Vitória (ES) e morando
um tempo no Rio (RJ), em que
costumes (se é que) se reconhece
como capixaba e carioca?
- Eu sou capixaba mais que qualquer outra
coisa. Eu nasci em Vitória e todos os meus
costumes aprendi na infância e na
adolescência.
Comer
quebra-queixo,
caranguejo, moqueca capixaba. Pegar
jacarezinho na praia. Minhas primeiras
músicas fiz lá, aprendi a tocar, compor e a
cantar em Vitória. Ou seja, são costumes que
levo pra qualquer lugar que vou, fazem parte
de mim. No Rio aprendi outras coisas
deliciosas também, mas não são os meus
costumes, só peguei emprestado.
- Quando e por que razão você veio para
Montevidéu? Nesse momento, já tinha a ideia
de morar aqui?
- Sim eu sabia que iria morar aqui por um
tempinho. Meu marido foi transferido pra cá
para uma missão de 2 anos, que acabou
virando três. O que eu não sabia era que ia
conhecer um país tão rico musicalmente e
que logo estaria fazendo projetos artísticos
por aqui.
- Com que cidade você esperava encontrar e
com que você encontrou-se realmente?
- Eu não esperava nada. Estava de braços
abertos pra novos amigos, boca aberta pra
novas comidas e ouvido atento para novos
sons. Encontrei uma cidade linda, limpa,
segura e cheia de magia e música.
- De que mais gosta? Compor ou cantar?
Sozinha ou em parceria?
- Gosto muito de compor. É como ter uma
missão cumprida, É a maneira que encontrei
de existir, de ser eu nesse mundo. Mas
cantar é algo divino, sai da alma e ressoa no
meu corpo.
- Sua música “Vem Ver” foi parte da trilha
sonora da telenovela “Viver a Vida”. Como se
faz para que um projeto independente seja
considerado pela TV Globo?
- Foi a soma da sorte com anos de trabalho
duro. A Globo tem muita coisa pra ouvir
sempre, mas a minha música, modéstia
parte, é uma beleza e por sorte tinha tudo a
ver com a novela Viver a Vida, por isso entrou
na trilha.
JornalDaCasa é uma publicação de CasaDoBrasil | Editor: Leonardo Moreira
Web: www.casadobrasil.com.uy | Mail: [email protected] |
# 46 – outubro 2014
- Ainda em tempos de Mercosul e
globalização, por que para os músicos
hispano-falantes é tão difícil ingressar no
mercado brasileiro?
- Eu acho que é coisa de país muito grande. A
gente tem muita coisa nossa pra ouvir. A
produção musical brasileira não pára. Não
acho que é a barreira da língua e sim uma
questão de fazer a música daqui chegar lá da
maneira certa.
- Como surgiu a ideia dos “amistosos
culturais”?
- Foi quando eu me dei conta disso, de como
é rica, bonita e bem feita a música criada
aqui no Uruguai. Eu pensei: preciso fazer
alguma coisa pra isso chegar no Brasil e
preciso fazer com que o novo som brasileiro
chegue por aqui também. Assim comecei aos
poucos a pensar como seria e quem viria.
Porque curadoria do “Tamy Invita” é minha,
então eu convido quem eu acho que faz
música de verdade.
- Como você percebe o panorama musical
brasileiro na atualidade?
- A produção musical atual brasileira é
intensa. Todo dia milhões de jovens artistas
lançam seus EPs, singles, vídeos e CDs. É
muita informação. Tem muita coisa
interessante, intrigante, musicalmente bonita,
que vale a pena consumir mesmo, mas tem
muito pastiche e coisa boba, pouca musica e
muito conceito, o que não me interessa. Eu
tento ouvir tudo aquilo que consigo e
selecionar aquilo que me emociona pra fazer
parte da minha vida. O que mais me inspira
nessa nova música feita no Brasil são os
timbres que surgem de inusitadas misturas.
Um dos artistas que faz isso com muita
elegância e um brutal talento é o Silva, que
foi meu convidado aqui em abril. Acho que a
maior dificuldade do artista é se colocar no
mercado de verdade. Ter agenda de show e
ganhar seu dinheiro. Artista também paga
conta, e as contas no Brasil estão bem
salgadas.
- No ciclo “Tamy Invita” você já compartilhou
o palco com os músicos brasileiros Silva,
Rodolfo Simor, Luiz Brasil (ver JornalDaCasa
#39), César Lacerda, Matheus Von Kruger e
os uruguaios Samantha Navarro, Hugo
Fattoruso, Ana Prada, Pata Kramer e
Sebastián Jantos. Diga um conceito de cada
um deles e quais serão seus próximos
convidados?
- Eles são artistas criadores de distintas
formações, de distintos estados brasileiros e
distintas gerações, que fazem uma musica
que me emociona. Agora, dia 22 de outubro
fecho o ciclo em Periscopio (Jackson 1083)
com Marcia Castro, uma baiana porreta, e o
gênio Ruben Rada.
- O ano passado e neste ano comemoraramse os centenários dos nascimentos de
Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi. Qual
você acha que é o principal legado que eles
deixaram e como influenciaram (se é que
influenciaram) seu trabalho?
- Claro que influencia! Esses caras
inventaram a maneira de fazer a nossa
música popular brasileira. A gente vem
repetindo a fórmula e acrescentando
estrangeirismos há 100 anos.
Discografia*
Soul Mais Bossa (2006)
Tamy (2009)
Caieira (2013)
* Pode-se adquirir no Amazon e Itunes.
Vídeo clips
Eu tô com você - http://youtu.be/mXS2Vt-Itdk
Gigi - http://youtu.be/T2R3x_bAfB8
Vem Ver - http://youtu.be/jBnOzkNAy_k
# 46 – outubro 2014
Mão na roda
Eu Te Amo
A
té o dia 5 de novembro no Centro de
Fotografía de Montevideo (San José
1360) pode-se visitar a mostra “Mi
Amas Vin”, do fotógrafo Marcelo Buainain.
Ao longo de milênios o homem tem sido
atormentado por uma voraz necessidade de
entender os mistérios mais profundos da vida
e da sua transição. Neste contexto é que
inúmeros fotógrafos têm se dedicado a
documentar e representar as várias
manifestações religiosas, oscilando entre o
sagrado e o profano. “Mi Amas Vin”, cuja
tradução do esperanto significa “Eu Te Amo”,
é um testemunho sobre as diversas
manifestações de fé e misticismo no Brasil.
Marcelo Buainain (Campo Grande–MS,
1962), enquanto acadêmico de medicina
abandonou o quinto ano do curso para se
dedicar exclusivamente ao mundo imagético.
Na década de noventa em busca de novas
experiências morou na Europa onde
trabalhou como free lancer para publicações
brasileiras e europeias, realizando diversas
exposições individuais e coletivas. Neste
período abraçou a fotografia documental
publicando três livros: “Pantanal” (1997),
“Índia - Quantos Olhos tem uma Alma”
(2000), com o qual recebeu o Prêmio Máximo
conferido pela II Bienal Internacional de
Fotografia da Cidade de Curitiba, e “Bahia –
Saga e Misticismo” (2003). No ano de 2002,
Marcelo Buainain regressa ao Brasil fixando
residência no nordeste do país e recebe a
Bolsa Vitae de Arte para desenvolver o
projeto “Brasil: a Religião e o III Milénio”.
Em 2011, a revista brasileira PhotoMagazine
incluiu Buainain entre os dez fotógrafos
brasileiros da década e é neste ano que ele
retoma a fotografia publicando o seu quarto
livro, “Mi Amas Vin”, obra contemplada em
2013 no concurso internacional POY (Picture
of the Year) Latam com a Menção Honrosa
do Juri na categoria de Melhor Livro do Ano.
# 46 – outubro 2014
Ao pé da letra
Como Nossos Pais
E
m fevereiro de 1976, com 30 anos,
dois filhos e no segundo casamento,
Elis Regina lançou o disco Falso
Brilhante, resultado do enorme sucesso de
espetáculo homônimo que ficou em cartaz no
Teatro Bandeirantes, em São Paulo, por mais
de dois anos. As músicas que abrem o LP,
“Como Nossos Pais” e “Velha Roupa
Colorida”, foram feitas por um compositor
que havia gravado apenas dois discos e
passava dificuldades em São Paulo.
Entre a chegada do cearense Belchior
(Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle
Fernandes) ao Rio de Janeiro e o registro
histórico de “Como Nossos Pais” na voz de
Elis, passou-se meia década. Ex-universitário,
que abandonou o curso de medicina para se
dedicar à música, Belchior estrearia no Rio
em 1971, ganhando o IV Festival
Universitário de Música Popular Brasileira,
com a composição “Na Hora do Almoço”,
interpretada por Jorge Melo e Jorge Teles.
Cinco anos depois, Belchior viveria um ano
definitivo em sua vida. Seu segundo álbum,
Alucinação, considerado por ele como “um
disco de um nordestino na cidade grande”,
vendeu 30 mil cópias em um mês e rendeulhe mais notoriedade graças ao lançamento
de quatro grandes sucessos: “Apenas um
Rapaz Latino-americano”, “A Palo Seco”,
“Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos
Pais”.
As duas últimas canções chamaram a
atenção de Elis e foram escolhidas para abrir
o disco Falso Brilhante, que contém parte do
repertório do show. A emoção dos palcos foi
carregada pela cantora para o estúdio, onde
ela teve de gravar o álbum em pouco mais de
24 horas, pois o espetáculo era apresentado
ininterruptamente de terça a domingo.
Quando Belchior resolveu ir à casa de Elis
para lhe mostrar “Como Nossos Pais”, ele
passava por problemas financeiros. A
situação estava tão complicada que a
cantora até pagou a corrida do táxi para o
amigo de vasto bigode. Ela já havia gravado
uma canção do compositor cearense,
“Mucuripe”, em 1972, feita em parceria com
o conterrâneo Raimundo Fagner.
Assim que ouviu “Como Nossos Pais” pela
primeira vez, Elis sabia que tinha uma
“granada sem pino” nas mãos, um sucesso
certeiro prestes a estourar. Dona de
temperamento forte e senso crítico incisivo,
ela se identificava com o desabafo irônico da
letra que criticava a letargia de uma geração
que andava, mas não saía do mesmo lugar.
Gente que desfraldara as bandeiras
libertárias e iconoclastas da geração do 68,
mas que, com a chegada da maturidade, se
rendia a modelos de identidade e
relacionamento quase tão conformistas e
conservadores quanto os das gerações
anteriores.
A gravação da primeira faixa do LP Falso
Brilhante marca uma transição musical na
carreira do intérprete. “Como Nossos Pais”
assinala a aceitação e a incorporação de
mais um estilo no repertório de Elis, o pop. O
que não quer dizer que os arranjos –feitos
pelo marido e pianista César Camargo
Mariano– tenham deixado de ser brilhantes e
sofisticados.
Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
# 46 – outubro 2014
Por isso, cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
Hoje eu sei
Que quem me deu a ideia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais…
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam, não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
Discos onde ouvir
Belchior - Alucinação (1976)
Elis Regina – Falso Brilhante (1976)
Selma Reis – Todo Sentimento (1995)
Maria Rita – Redescobrir (2012)
Veja também:
http://youtu.be/wzXWlWPPHU0
http://youtu.be/Fvi_UN3E_Co
# 46 – outubro 2014
Telinhas e telonas
Balançando o pêndulo
C
apadócia, Epitáfios, Prófugos, Sr.
Ávila... e agora: O Hipnotizador. A HBO
América Latina anunciou o início das
filmagens de sua quinta produção original em
língua espanhola. A série, que recebeu a
encomenda de oito episódios para sua
primeira temporada, começou a ser rodada
em Montevidéu no dia 3 de agosto e segue
até o final de outubro.
Baseada no HQ criado pelos argentinos Pablo
De Santis e Juan Sáenz Valiente, o drama
conta a história de Arenas (o argentino
Leonardo Sbaraglia), um hipnotizador
enigmático que adormece as pessoas para
desenterrar recordações escondidas no
fundo de suas memórias. Assim, por meio de
sua habilidade, ele atua como um “detetive
do inconsciente”, desvendando os mistérios
que afligem aqueles que buscam sua ajuda.
Arenas é um homem de quase 40 anos,
misterioso, solitário, distante e que fala
apenas o indispensável. Seu poder para a
hipnose está principalmente em seu olhar
intenso e na voz grave. Quando jovem, quase
desistiu da arte do oculto, mas mudou de
ideia ao conhecer o doutor Victor Corelli (o
cineasta português Ruy Guerra), grande
autoridade em hipnose. Corelli percebeu o
talento natural de Arenas e fez dele seu
pupilo. Porém, depois de um trágico
acontecimento, ele viu sua vida mudar de
rumo: perdeu a carreira na medicina e foi
condenado à insônia eterna pelo rival.
Passou a viver solitariamente, trabalhando
em teatros decadentes e dedicando-se à
hipnose como espetáculo e ganha-pão. Ele
mora no pequeno hotel As Violetas, onde se
torna amigo do proprietário Salinero (o
uruguaio Cesar Troncoso), um viúvo que não
tem filhos. No hotel, o dono conta com a
ajuda de dois funcionários: a curiosa e
inexperiente recepcionista Anita (a brasileira
Bianca Comparato, na foto), jovem que
desperta sentimentos românticos em
Salinero, e o mensageiro Gregório (o
argentino Chino Darín), um rapaz calado e
misterioso.
“O Brasil está começando a se aproximar
mais do resto da América Latina, e esta série
é reflexo disso”, diz o ator Chico Diaz sobre o
elenco, que também é formado pelos
brasileiros Juliana Didone, Miguel Lunardi,
Marisol Ribeiro, Ondina Clais, Rodrigo Garcia
e Daniel Infantini, bem como a argentina
Marilú Marini, a uruguaia Stefanie Neukirch,
o espanhol Zemanuel Piñero, e a portuguesa
Maria de Medeiros.
“Fiz muito esforço para não gostar do
personagem, mas foi impossível”, admite
Sbaraglia. “Achei que teria de falar português
e tinha aversão à ideia, além de pouco tempo
para me preparar”. Segundo os diretores da
série, os brasileiros Alex Gabassi e José
Eduardo Belmonte, o ator sempre foi a
primeira opção para viver o protagonista,
mesmo
quando,
durante
seu
desenvolvimento, a produção se passaria em
São Paulo. “A arquitetura era muito
importante. No Brasil seria impossível ter
esse clima, essa atmosfera”, afirma Gabassi,
que dirigiu as séries Destino São Paulo (ver
JornalDaCasa #12) e Psi, (ver JDC #36). “Aqui
tudo parece mais denso”, defende ele.
A HBO ainda não definiu uma data de estreia,
mas a previsão é de que o programa vá ao ar
em 2015, tanto na América Latina como nos
Estados Unidos.
# 46 – outubro 2014
Marisa Monte em Montevidéu
Olha o canto da sereia
individuais. Marisa se encarregou
produção do álbum de Argemiro.
D
esde o lançamento de Barulhinho
bom, Marisa Monte (na foto, no
Auditorio Adela Reta o dia 27 de
setembro; ver JornalDaCasa #45) fez shows,
produziu o disco Omelete man, de Carlinhos
Brown, uma faixa de Café Atlântico, de
Cesária Évora, participou de diversos
projetos, lançou seu selo, o Phonomotor, e
produziu Tudo azul, da Velha Guarda da
Portela. Em 2000, lançou Memórias, crônicas
e declarações de amor, disco que vendeu
mais de um milhão de cópias e lhe rendeu
diversos prêmios: Grammy Latino 2001 de
melhor álbum pop contemporâneo brasileiro
e Prêmio Multishow 2001 de melhor CD,
dentre outros.
“Eu sou uma cantora bem ligada à tradição
da canção e do canto. Eu gosto de uma
canção com refrão, com primeira parte, com
segunda parte. Eu gosto muito de melodia. E,
na verdade, a minha preocupação ao cantar
o amor hoje é falar do amor de uma forma
contemporânea, um amor que é vivido hoje.
Ou seja, falar do amor como ele de fato é
vivido, não um amor tão idealizado.”
Sua paixão pelo samba resultou em mais
dois lançamentos do selo Phonomotor em
2002: os discos solos de estreia de Argemiro
Patrocínio e Seu Jorge do Cavaquinho, dois
lendários sambistas da Velha Guarda da
Portela que, apesar de estarem na faixa dos
80 anos, nunca tinham lançado trabalhos
da
Ao terminar esse trabalho, Marisa se reuniu
com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes para
gravar músicas que o trio havia composto um
ano antes, em março de 2001, quando Brown
produzia o CD Paradeiro, de Arnaldo. Marisa
foi a Salvador gravar uma participação no
álbum e acabou ficando uma semana lá,
tocando e compondo intensamente com os
dois amigos. Quando se deram conta, já
tinham criado cerca de 20 novas canções.
Desde então, eles vinham aprimorando as
músicas em raras brechas de suas agendas.
Apenas em 2002 conseguiram gravar 13
daquelas composições, que chegaram às
lojas no CD e DVD Tribalistas.
Numa
época
de
celebridade,
da
individualidade exacerbada, os três artistas
acharam que alguns dos resultados mais
interessantes são frutos da coletividade,
como transformação mesmo da vida. “Um
gosta muito de ouvir o outro. Essa simbiose
talvez seja o principal traço conceitual. É um
disco que é uma hóstia mesmo, uma
comunhão. Não é nem um mérito, é uma
sorte”, desabafa a cantora. “A gente talvez
esteja vivendo isso há 10 anos assim e agora
viveu com mais intensidade e eu acho que
pude oferecer nesse disco uma coisa que eu
não faria no meu trabalho individual.”
Formou-se uma visão cristalizada na crítica
de que Infinito Particular é um disco pop e
Universo ao meu redor é de samba. Mas pra
Marisa não é assim: “É uma visão
reducionista de quem precisa dizer as coisas
em poucas linhas. Um sambista de raiz talvez
se decepcione com Universo, porque ele não
é tradicional, é mais psicodélico, tem cores e
imagens ligadas a outros tipos de influência.
Mas, por outro lado, pop é algo tão genérico,
é tudo e nada ao mesmo tempo. Diria que
Universo é um disco de samba, mas do
samba tal como eu o vejo. Ele tem a minha
cara, dialoga com meus outros trabalhos. E o
# 46 – outubro 2014
Infinito é a continuação de meu projeto
autoral de compositora. De uma forma mais
ampla, posso dizer que faço música
contemporânea brasileira.”
Para Marisa, a dança é uma linguagem
corporal musical. “Eu gosto muito de dançar
e frequento alguns bailes no Rio. Me
familiarizei com essa linguagem, que é de
improviso, de entrega, porque você, às vezes,
dança com pessoas que nem conhece. É uma
resposta física à música. Tem músicas a que
o seu corpo responde intuitivamente com um
movimento... isso é a dança.” No clipe de
“Ainda bem”, música do disco O que você
quer saber de verdade, como a música trata
da celebração de um encontro “achei que um
par dançando podia representar bem essa
ideia. Quis convidar o (lutador do UFC)
Anderson Silva porque já sabia que ele
dançava. Já o tinha visto entrar como Michael
Jackson antes de uma luta. Felizmente tudo
fluiu. Não tem uma coreografia, a gente não
ensaiou. Aquilo é realmente uma conversa
física, sendo a música a condutora.”
Perguntada inúmeras vezes sobre o
significado do título de seu último disco
Verdade uma Ilusão, Marisa responde:
“Verdade só existe quando não tem ninguém
olhando, porque se tem alguém olhando, já
vira versão. Então a verdade só existe de
uma forma individual mesmo. Existem várias
versões, existem as verdades individuais,
mas essa verdade absoluta, não. Até as leis
da física são questionáveis. Há algum tempo
o mundo era quadrado, já não é mais; a coisa
mais veloz que existia era a luz, mas parece
que já não é mais. Então, a verdade é algo
que a gente está sempre buscando, mas que
é sempre impossível de se alcançar. No
entanto, ela existe no íntimo, ela existe
dentro de cada um de nós.”
“Teve um período em que eu não estava
pensando em disco, mas eu não paro de
compor, não paro de tocar violão, nem de
viver a música. Isso é uma coisa que faz
parte da minha vida. Se eu não estou aqui
dentro do estúdio no cotidiano, gravando, eu
estou sempre fazendo música. Claro que
também existem momentos em que fico mais
calma, com mais tempo, porque eu acho que
você tem que ter o silêncio para preenchê-lo.
Quando você está com a vida muito corrida –
muita zoeira, muita passagem de som, muito
show– e chega no hotel, você quer ficar
quieta, não quer continuar tocando e
cantando. Você já está cansada, quer ler um
livro e fazer, sei lá, tricô... uma atividade
silenciosa... Eu sempre precisei dessa
alternância de intensidade para a minha
criação.”
“Minha linguagem sempre foi direta, clara,
simples. Claro que tem um contato com uma
poesia mais sofisticada, e eu gosto disso
também. Acho uma qualidade você abordar
questões profundas de uma forma simples.
Dizem que sou cult, mas eu nunca tive a
intenção de ser cult, no sentido de fazer
música para poucos. Às vezes, acho que a
minha música se confunde com a minha
postura reservada. E isso cria um paradoxo.
Minha forma de expressão é muito natural
para mim e eu acho muito legal que eu
consiga
ser
tão
popular
sem
necessariamente precisar me submeter a
todas as coisas que se espera de um artista
popular. Vários momentos na minha carreira
são muito fora da curva. Por exemplo, o
primeiro disco foi um ao vivo, e Tribalistas,
mesmo sem entrevista e turnê, vendeu três
milhões de cópias. É um dos projetos mais
populares de que já participei e também foi o
que ficou mais longe de toda a exposição.”
“Eu não confundo a minha pessoa com a
minha arte. Hoje em dia existe uma confusão
muito grande entre arte e artista, como se
essa linha tênue que divide isso já não
existisse mais. Mas para mim ela ainda
existe. É claro que ela se confunde, é claro
que o meu trabalho é muito pessoal, claro
que muito da minha vida eu trago para o meu
pensamento artístico, mas de alguma
maneira eu consigo separá-las. Na verdade,
eu me sinto muito confortável em servir à
música e não tenho essa vaidade pessoal de
querer aparecer mais do que ela. Claro que
eu quero dar o meu melhor, que o meu
trabalho esteja lindo e bem feito. A música
está aí há milhões de anos. Ela vai continuar
e eu estou só de passagem.”

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