Lembranças de Sarajevo

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Lembranças de Sarajevo
Disciplina - História -
Lembranças de Sarajevo
História
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Postado em:09/04/2012
Vinte anos após o início da Guerra da Bósnia, artigo lembra o genocídio nas terras da antiga
Iugoslávia e ressalta a inércia da comunidade internacional para com o conflito na época
Bruno Garcia - Revista de História da Biblioteca Nacional "Bem vindos ao inferno", saudavam os
locais em pichações nos muros da cidade, quando os primeiros jornalistas chegaram em 1992 à
Sarajevo. A capital da República da Bósnia e Herzegovina, cercada pelo exército iugoslavo, se
tornou o foco da guerra que durou mais de três anos culminando com a fragmentação da Iugoslávia
e o saldo aproximado de 100 mil mortos. O conflito foi o primeiro golpe no otimismo histérico do fim
da Guerra Fria. A Alemanha se unificava enquanto a sombra da União Soviética desaparecia junto
com as ameaças do fim do mundo num holocausto nuclear levantando promessas de que,
finalmente, o século sangrento se encerraria numa paz inédita. Mas, ao contrário dos países da
Europa Central, como Polônia e Hungria, a Iugoslávia não celebrou o fim do comunismo com fogos
de artifício, revoluções e promessas de um mundo melhor. Ninguém lembra, mas os nazistas não
foram os últimos a construírem campos de concentração na Europa. Não foram os últimos a
cometer genocídio, a produzirem uma máquina de guerra subsidiada pelo silencio da comunidade
internacional. Na década de 90, quando se menos esperava, Sérvios construíram centros, como
Omarska,que lembravam Auschwitz e produziram massacres e episódios lamentáveis como
Srebrenica, em 1995. Tudo isso contando com a cumplicidade silenciosa de uma comunidade
internacional inerte. Sarajevo sitiada Quando Eslovênia e Croácia declararam independência da
Iugoslávia, em 1991, o estado multiétnico da Bósnia e Herzegovina passou a ser disputado por
Sérvios e Croatas. Fragmentado num quebra cabeça confuso de religiões, etnias e nacionalidades,
os muçulmanos bósnios declararam independência. Mesmo tendo sido reconhecida quase
automaticamente tanto pela União Europeia, quanto pelos Estados Unidos, a Bósnia se tornou tudo,
menos autônoma. As demandas de seus vizinhos condenaram o estado a uma guerra de mais de
três anos e seu povo a uma perseguição sanguinária. Sua capital, Sarajevo foi sitiada com
barricadas e atiradores de elite próximos ao parlamento. As frágeis forças bósnias de defesa não
tinham como dar conta do Exército Popular Iugoslavo, comandado pela Sérvia. O cerco de Sarajevo
é o mais longo registrado em uma guerra moderna. Durou de 4 de Abril de 1992 até 29 de Fevereiro
de 1996. Em estado de guerra, os atiradores na cidade alvejavam crianças, animais domésticos,
homens e mulheres que passavam nas ruas para procurar pão ou leite. Ficaram famosas as
imagens de cidadãos ordinários correndo entre um prédio e outro em busca de abrigo. No hotel
Holiday Inn, construído quando a cidade sediou os jogos de inverno de 1984, os jornalistas de
plantão assistiam boquiabertos à escalada de uma monstruosidade que se acreditava perdida no
continente. Com a capital cercada, os Sérvios avançavam sobre território Bósnio dispersando a
população local que agora se concentrava em três enclaves principais, declarados área de proteção
da ONU, em abril de 1993. Não adiantou muito. Em Srebrenica, em julho de 1995, as forças do
general Mladic tomaram o quartel das Nações Unidas e em três dias mataram mais de 8 mil
homens. Foi o maior massacre desde a Segunda Guerra Mundial. Tudo isso sob os olhos atentos de
uma comunidade internacional muito bem intencionada e disciplinadamente calada. Silêncio em
congresso sobre direitos humanos Para não dizer que não faziam nada, em 1993 foi organizado um
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congresso sobre direitos humanos em Viena. Contando com a participação de mais de 170 países,
o evento conseguiu consagrar uma carta de prerrogativas e determinações extremamente valiosas
para o avanço dos direitos humanos. Teoricamente. Na prática, os participantes eram proibidos de
mencionar violações e massacres que ocorriam a menos de 500 km da capital austríaca. A
maravilhosa sensação de que o fim da Guerra Fria em 1991 seria consagrado por uma paz universal
ungida pelo respeito dos direitos humanos estava sendo contrariada pela catarse nos Balcãs. O
congresso em Viena procurou amenizar as feridas dessa síndrome de orgulho coletivo, mas não
funcionou. Somente em 1995, quando a OTAN entrou em ação, foi possível deter as forças sérvias,
que até então agiam indiferentes às opiniões de franceses, ingleses, alemães, americanos.... Até lá,
mais de 17 mil haviam morrido só na capital bósnia. Mais tarde, no Kosovo, a vigorosa ação
internacional seria testada novamente... Com resultados semelhant Indiferença internacional
Samantha Power, que na época cobria o conflito para o Washington Post, voltou para os Estados
Unidos indignada com a absoluta falta de apoio internacional para impedir massacres que eram tão
trágicos quanto previsíveis. Junto com os demais jornalistas em Sarajevo, não compreendia como
era possível o exército iugoslavo cometer aquelas atrocidades às vistas de tantos países. No fim,
passou a questionar o papel dos Estados Unidos como líder moral depois do fiasco nos Balcãs.
Para sua surpresa, pesquisando descobriu que seus conterrâneos nunca tinham feito tanto para
impedir um genocídio como no caso da Iugoslávia. Samantha produziu uma longa pesquisa sobre o
abismo entre a retórica e a ação dos Estados Unidos. Em 2003 escreveu Genocídio, vencedor do
prêmio Pulitzer daquele ano. Para muitos, a experiência de cobrir o cerco de Sarajevo e
testemunhar o genocídio em solo europeu às portas do século XXI se transformou num
compromisso com a memória do conflito. Jornalistas como Misha Glenny e Alec Russell saíram do
posto de meros observadores para especialistas na Guerra. Houve também aqueles que pouco
queriam lembrar. Alguns anos atrás, um amigo jornalista resolveu me contar sobre seus dias em
Sarajevo durante a guerra. Sempre um grande contador de histórias bonachão, fechou o rosto e me
disse: “Sei que você se interessa por isso. Mas você é meu amigo. Não sei, não consigo falar o
quão nojenta é essa minha profissão, não imagina o tipo de escolha que um jornalista é obrigado a
fazer nessas condições”. Aos poucos, lembrou de alguns amigos, em especial de um fotógrafo
italiano que se especializou em tirar fotos de crianças prestes a serem alvejadas por atiradores. Em
vez de avisar a criança, já que sabia da posição do atirador, ele preferia ficar em silêncio pela foto e
dizia: eu salvo uma criança com um grito, e milhares com uma foto. Vinte anos depois...
Contrariando o bom senso, o conflito completa 20 anos essa semana sendo melancolicamente
ignorado pela imprensa internacional, que parece já ter extraído do evento tudo que era possível
para vender jornais. Quem fizer uma busca hoje, encontrará artigos que articulam lições de moral
comparando a Guerra da Bósnia com o atual conflito na Síria. Como se tudo estivesse resolvido na
região, ou como se tudo que extraíssemos de calamidades absurdas fosse lições morais utilizáveis
para experiências análogas. Hoje, Sarajevo se reinventou como uma espécie de capital cultural na
região. Abriga eventos relevantes, como seu festival anual de cinema. Ao renascer das cinzas
(literalmente), resiste ao esquecimento, mantendo suas próprias ruínas e cicatrizes às vistas. Esta
notí-cia foi publicada em 04/04/2012 no site revistadehistoria.com.br. Todas as informações nela
contida são de responsabilidade do autor.
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