Penitenciária Regional de Presidente Venceslau

Transcrição

Penitenciária Regional de Presidente Venceslau
Memorial da Resistência de São Paulo
PROGRAMA
LUGARES DA MEMÓRIA
Penitenciária Regional de Presidente Venceslau
Endereço: Avenida Antônio Marques da Silva, s/n.
Presidente Venceslau, SP.
Classificação: Aparato Repressivo.
Identificação numérica: 020-01.020
A Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, inaugurada no dia 05 de
dezembro de 1961, fica localizada a 610 km da cidade de São Paulo e foi projetada
para ser uma penitenciária de segurança máxima. Sua arquitetura está baseada no
modelo americano do Prison Design Briefing System (PDBS) que procura ressaltar as
áreas de integração entre detentos, valorizando os espaços de lazer e trabalho1. Sua
proposta é a reabilitação e ressocialização do detento.
A penitenciária foi construída na área do antigo Quartel de Presidente
Venceslau. A construção do quartel foi concluída em 1927 e veio substituir o primeiro
alojamento do 2º Regimento de Cavalaria da Força Pública do Estado de São Paulo
(que era um “racho de madeira” destinado a ser o cinema da cidade). O 2º Regimento
atuou na região até 1930, quando foi transferido para a capital2. O antigo quartel ficou
sem atividades até 1958, quando a edificação começou a ser reestruturada para se
tornar a Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, que a partir de 2004 passou
a ser denominada Penitenciária I “Zwinglio Ferreira”3.
Para mais informações sobre o Prison Design Briefing Systen conferir o trabalho de Raquel
Paslar. Estudo das instituições penitenciárias paulistas com ênfase na privatização do
ativo imobiliário e na análise crítica da qualidade deste investimento. Monografia (MBA
em Gerenciamento de Empresas e Empreendimentos na Construção Civil, com ênfase em
Real Estate). Escola Politécnica, USP, São Paulo, 2009; e Oscar de Vianna.Vaz. A Pedra e a
Lei. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Escola de Arquitetura, UFMG, Belo
Horizonte, 2005.
2 Informação disponível em Benedito de Godoy Moroni. Presidente Epitácio 100 anos da
Fundação da Cidade. Presidente Epitácio: Do Autor, 2011, p.92.
3 Decreto Estadual nº 33.749, de 13 de outubro de 1958, que dispõe sobre a desapropriação de
imóvel necessário à instalação da Penitenciária Regional local. Decreto Estadual nº 49.049, de
1
1
O espaço carcerário, quando foi inaugurado, contava com uma série de
inovações, sendo, por exemplo, a única penitenciária da América do Sul, naquela
época, a possuir um chuveiro em cada uma das 400 celas, contando ainda com
oficinas de trabalho, padaria, lavanderia, câmaras frigoríficas, poços artesanais,
incineradores de lixo, consultórios médico e odontológico, farmácia e enfermaria. Na
penitenciária havia 280 funcionários e mais 130 guardas para a segurança4.
Sobre as estruturas internas da Penitenciária, destacamos aqui algumas
lembranças de Inocêncio Erbella, prefeito da cidade por três mandatos (1960/1964,
1969/1972 e 1977/1983):
Assim se construiu nesta Presidente Venceslau, com mão de obra
dos presos, grande parte da Avenida que liga a Penitenciária à
cidade; que se instalou dentro dela a fábrica de tubos e lajotas que
permitiram a pavimentação de tantas ruas da cidade; que o hospital
da Penitenciária oferecia excelente estrutura e lá prestavam serviços
os mais eminentes médicos da comunidade; que congressos
internacionais sobre sistemas penitenciários e leis de execuções
penais, ali foram realizados; que pessoas da cidade assistiam filmes
no cinema da Penitenciária; que enfeites de Natal da cidade, ali eram
confeccionados; que livros eram encadernados; que times de futebol
de salão da cidade disputavam torneios desportivos no recinto do
presídio; que a banda da penitenciária se exibia nos festejos do
município; que o majestoso cruzeiro que se levanta manso e
esplendoroso no adro da Igreja Santo Antônio de Lisboa [...] foi
construído na Penitenciária5.
A partir das memórias de Erbella se percebe que a Penitenciária era
considerada de excelência estrutural, e possuía uma estreita relação com a vida da
cidade, sobretudo no que diz respeito à produção de materiais.
A cidade de Presidente Venceslau foi escolhida para a construção da
Penitenciária Regional com o objetivo de que os detentos do oeste do estado de São
Paulo não precisassem se deslocar para a capital (distante mais de 600 km) para
cumprir suas penas. A proposta, associada ao objetivo de ser uma casa de
reabilitação, era que os detentos não fossem privados do convívio com suas famílias.
Assim, a lotação prevista para 400 homens buscaria atender as necessidades de
19 de outubro de 2004, que dispõe sobre denominação de penitenciária. Disponível em <
http://www.al.sp.gov.br/>. Acesso em 07/04/2015.
4 Reportagem do jornalista Hermilo G Pacheco. Moderna penitenciária para a recuperação do
condenado. Folha de São Paulo, São Paulo, p.5, 2 de maio de 1961.
5 Declaração de Inocêncio Erbella. “Venceslau e os presídios”. Integração Regional News,
Presidente Venceslau, 07 de dezembro de 2012.
2
Presidente Venceslau e das cidades vizinhas como Presidente Prudente, Assis, Santo
Anastácio, Rancharia, Martinópolis, Santa Cruz do Rio Pardo e outras6.
Entretanto, durante a ditadura civil-militar, essa penitenciária, contrariando a
proposta de permitir o convívio familiar dos presos, foi utilizada para o isolamento de
sete presos políticos que foram transferidos do Presídio Tiradentes, na cidade de São
Paulo. A transferência foi realizada em represália à greve de fome iniciada
concomitantemente em distintos presídios da cidade de São Paulo.
O INÍCIO DA GREVE DE FOME
No Presídio Tiradentes, entre os anos 1969 e 1973 chegaram a conviver
centenas de presos políticos oriundos de diversas organizações de esquerda. “Como
quase ninguém era libertado da prisão, chegamos a ter quase 400 presos políticos no
Presídio Tiradentes em meados de 1970”7. Como consequência, e associada à
necessidade de interromper a comunicação estabelecida entre eles dentro do
Tiradentes, em setembro de 1970 o governo decidiu, através do juiz-auditor da II
Auditoria Militar, Nelson Machado Guimarães, transferir 30 presos políticos para a
Casa de Detenção do Carandiru (onde permaneceram entre os presos comuns no
Pavilhão 8) e seis dominicanos para os quartéis da Polícia Militar. Ao longo do ano
seguinte, os presos denunciaram esta decisão das autoridades de separá-los,
enviando-os em pequenos grupos para outras penitenciárias; e com a ajuda de seus
familiares e advogados denunciavam também as precárias condições dos presídios,
as torturas sofridas pelos presos comuns e os assassinatos do “Esquadrão da Morte”8.
Apesar da lotação do Presídio Tiradentes, para os presos políticos era
importante permanecerem juntos, pois divididos em pequenos grupos se tornava mais
fácil de alguns serem assassinados durante as possíveis transferências, que eram
Reportagem do jornalista Hermilo G Pacheco. Moderna penitenciária para a recuperação do
condenado. Folha de São Paulo, São Paulo, p.5, 2 de maio de 1961.
7 Declaração de Maurice Politi na obra de sua autoria Resistência atrás das grades. Rio de
Janeiro: Garamond, 2012, p.22. O autor também transcreve partes do documento confidencial
e reservado, datado de 13 de junho de 1972, que ele encontrou no Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro, no qual juízes de São Paulo escrevem ao STF informando sobre a política carcerária
que está sendo adotada em relação aos presos políticos.
8 Nome dado à organização clandestina, formada por policiais civis e militares, que agia como
grupo de extermínio. Segundo o testemunho de presos políticos, alguns presos comuns eram
retirados das dependências do Presídio Tiradentes durante a madrugada e apareciam mortos
na manhã seguinte em algum lugar da cidade, geralmente na periferia. O delegado Sérgio
Paranhos Fleury foi o mais famoso comandante do Esquadrão, tendo sido inclusive chefe do
Deops. Fleury participou da ação que resultou na morte de Carlos Marighela, perseguiu vários
militantes de esquerda e, junto com o Esquadrão, é responsável pela morte de vários presos
comuns. A organização começou a ser combatida ainda nos anos 1970 e perdeu forças após a
morte de Fleury (em 1979, aos 46 anos) e do policial Mariel Mariscot. Para mais informações,
conferir o livro de Hélio Bicudo, Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo:
Martins Fontes, 2002 e também o livro de Percival de Souza, Autópsia do medo. São Paulo,
Globo, 2000.
6
3
utilizadas como estratégia da repressão para conter atos de resistência política
realizados mesmo dentro da cadeia, assim como observa Maurice Politi:
A partir de 1972, começamos a perceber um plano sistemático para
separar os presos políticos. A estratégia era separar aqueles que a
Justiça Militar considerava “recuperáveis” daqueles que, nas palavras
do juiz-auditor Nelson Machado Guimarães [da II Auditoria Militar],
“não tinham jeito e seguiam com suas loucuras mesmo presos”9
Lutando, portanto, pela reunificação de todos os presos políticos de São Paulo
em um mesmo cárcere, os militantes recolhidos no Presídio Tiradentes, juntamente
com cinco presos transferidos no dia 11 de maio de 1972 para a Penitenciária do
Estado, articularam uma greve de fome e informaram que só aceitariam a mediação e
a palavra do então arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. A reivindicação
dos presos era o direito à vida e o retorno de todos os transferidos para o Presídio
Tiradentes.
A greve de fome se dividiu em duas fases: a primeira durou seis dias, entre 12
e 17 de maio de 1972, e a segunda, de 09 de junho a 11 de julho de 1972. Somando
os dois períodos foram 39 dias no quais os presos políticos beberam apenas água e
tomaram soro. Durante a primeira fase foi negociada com o dr. Werner Rodrigues,
diretor do Departamento de Institutos Penais do Estado (DIPE), que os militantes
seriam reunidos novamente no Tiradentes, cessando, portanto, a abstinência. Mas
como nos dias seguintes as transferências continuaram acontecendo, foi reorganizada
a greve que teve início após o traslado de sete presos políticos que se encontravam
na Casa de Detenção do Carandiru. Os sete foram informados no dia 07 de junho de
1972 que fariam “uma viagem para um destino desconhecido”10.
A PENITENCIÁRIA DO OESTE PAULISTA
Na madrugada do dia 8 de junho de 1972 começava a transferência dos
seguintes presos: os freis dominicanos Fernando de Brito, Ivo do Amaral Lesbaupin e
Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Beto), os camponeses Mário Bugliani e Manoel
Porfírio de Souza, o advogado Wanderley Caixe e o estudante Maurice Politi11. Dos
sete, apenas Mário Bugliani não foi transferido, pois, devido à primeira greve de fome,
encontrava-se muito debilitado e em tratamento.
Maurice Politi avalia em sua obra o porquê da escolha desses setes presos.
Durante sua pesquisa para a produção do livro, encontrou no Arquivo Nacional do Rio
Maurice Politi em Resistência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, p.26.
Maurice Politi, op. cit., p.37.
11 Carta Mensal do Deops, documento “confidencial” encontrado no Arquivo Público Mineiro.
Data do documento: junho de 1972, p. 8.
9
10
4
de Janeiro um documento que indica os prováveis motivos da transferência: Frei
Fernando foi o primeiro a assinar uma carta reivindicatória (um abaixo-assinado) dos
presos políticos durante o início da primeira fase da greve de fome, interpretada pelas
autoridades como rebelião. Diante da carta, o juiz Nelson Machado Guimarães da II
Auditoria Militar entendeu que o Frei e, portanto, seus outros dois companheiros
dominicanos estariam liderando o movimento, sendo necessário afastá-los dos demais
presos políticos. No entanto, transferir apenas os três evidenciaria a perseguição aos
freis (e, consequentemente, contra a ala esquerdista da Igreja). Sendo assim foram
escolhidos mais quatros presos que já tinham sido condenados em primeira instância
e que não teriam mais nenhum outro inquérito a responder, podendo ser afastados da
capital. Mas como já mencionado, o estado precário da saúde de Mário Bugliani o
impediu de ser trasladado, sendo transferidos os outros seis.
As transferências dos presos políticos eram situações oportunas para as
autoridades militares executarem os oponentes e forjar justificativas de morte ou até
mesmo desaparecer com os corpos12. Diante dessa possibilidade, o sentimento dos
militantes após o anúncio da “viagem para um destino desconhecido” foi o medo.
Começava também nesse momento a tortura psicológica.
Naquele momento, as batidas do coração aceleravam, as imagens
dos sádicos, torturadores e dos suplícios passavam como um filme
pelo pensamento e cada um se armava com “a ideologia, a cara e a
coragem” para enfrentar as mais horrendas humilhações pelas quais
pode passar um ser humano13.
Acordados às 4h30 da manhã do dia 08 de junho de 1972 e levados apenas às
7h30 para o pátio, os seis presos são instruídos e advertidos pelo juiz Nelson
Machado Guimarães, responsável pelo pedido de transferência. Maurice Politi narra
sobre esse processo de transferência em seu diário de prisão – o diário foi uma forma
de registrar tudo o que vinha ocorrendo com eles como segurança para o caso de
“sumirem” (uma vez que se encontravam isolados e sem que ninguém soubesse o
paradeiro deles):
Depois de ouvir sua “preleção”, fomos algemados dois a dois. Havia
naquele pátio cerca de 20 homens armados até os dentes:
metralhadoras, fuzis, revólveres, bombas. [...]. Entramos na parte
O livro-relatório Direito à Memória e à Verdade é uma publicação de 2007 da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). Analisando o livro, que organiza e
apresenta a história de militantes mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar,
observamos que algumas daquelas mortes ocorreram durante as transferências do preso
político.
Publicação
disponível
em:
<
http://cemdp.sdh.gov.br/modules/news/index.php?storytopic=3&storynum=10>.
Acesso em
24/04/2015.
13 Maurice Politi, op. cit., p.36.
12
5
traseira de dois camburões, fechados totalmente. No primeiro, fomos
eu e o Mané, junto com o que eles chamavam a “bagagem” dos seis
– umas poucas roupas que trazíamos conosco desde o Tiradentes e
alguns livros. No outro camburão foram os outros quatro
companheiros, Beto algemado com Wanderley e Ivo com Fernando.
Em cada camburão, além do motorista, cinco homens sentados nos
dois bancos da frente: dois investigadores e três soldados da PM.
Um terceiro carro, da “chefia”, com o delegado-geral encarregado da
operação e mais quatro homens civis e policiais militares, dava
cobertura. Ali, naquele caixote fechado, nada víamos. Depois de
duas horas de viagem a primeira parada. Descemos escoltados para
ir ao banheiro. [...]. Durante esta parada, fomos informados que
voltaríamos ao lugar de origem. [...]. Ficamos uma hora parados, na
porta da Detenção [Casa de Detenção do Carandiru], sem sair do
camburão, aguentando o calor e tentando adivinhar o que ocorria
através da pequena fresta que ficava na traseira o veículo. [...]. Às 11
horas, quase sete horas depois de nos terem acordado, reiniciamos
a viagem. [...]. Sem nenhuma liberdade para nos movimentarmos e
com as algemas a apertar-nos os pulsos, iniciávamos um dos dias
mais terríveis já enfrentados. [...] Finalmente, às 9 da noite chegamos
ao nosso destino. Descobrimos, então, que estávamos em
Presidente Venceslau. [...]. Estávamos praticamente confinados aqui,
já que a esta distância de São Paulo ficaríamos totalmente
isolados14.
Após a chegada à Penitenciária, cada um deles recebeu um uniforme (camisa,
calça e calção cinza), uma toalha branca, dois lençóis, dois cobertores, uma colcha,
dois pratos, uma caneca e uma colher. Eles foram encaminhados para as celas após
tirarem as fotografias de registro de entrada na prisão.
Fomos finalmente encaminhados cada um para a “sua” cela no setor
de enfermaria, que ficava num corredor totalmente branco que nos
chamou a atenção. [...]. Na cela, um pouco maior que a da Detenção,
apenas uma cama (com um colchão rasgado e velho), duas pedras
de cimento, que funcionavam como mesa e banco, uma torneira e
um “boi” [nome dado pelos presos comuns à privada]. Uma janela
bastante grande dá para um jardim [...]15.
No dia seguinte, 09 de junho de 1972, os seis presos iniciam a segunda fase
da greve de fome que durou 33 dias e chegou a repercutir até na mídia internacional.
A reivindicação deles continuava a mesma: o direito à vida e a transferência de todos
os presos políticos para um único cárcere. Como avalia Maurice Politi, durante o
14
15
Maurice Politi, op. cit., p.40-43.
Maurice Politi, op. cit., p.44.
6
lançamento de seu livro-diário16, a greve não atingiu os seus objetivos iniciais, mas
serviu como forma de resistência a outra possível divisão do grupo, isolando-os mais
ainda, ou até mesmo à possibilidade de serem mortos e desaparecidos.
Quanto à possibilidade de desaparecem, também Wanderley Caixe destaca
outros meios de se precaverem e informa que ali na Penitenciária de Presidente
Venceslau ele e os outros cinco foram apadrinhados, cada um por um bispo católico.
O padrinho de Wanderley foi Dom José Maria Pires, e que ele, assim como os demais,
trocava correspondências quinzenalmente com seus padrinhos.
Conheci D. José Maria Pires na Penitenciária de Presidente
Venceslau, juntamente com Dom Thomas Balduíno e Dom Waldir
Calheiros que vieram em visita aos seis presos políticos [...]. Nós
havíamos sido removidos do convívio com outros presos políticos de
São Paulo, pois achavam que éramos instigadores de greve de fome
em protesto contra o governo da ditadura militar. Havia ainda o risco
de nos fazerem “desaparecer”. Os presos políticos leigos. Cada
Bispo assumiu a padrinhagem de um de nós. Ficávamos em
correspondência uma vez a cada quinze dias. O meu padrinho foi
Dom José Maria Pires. Aí fomos nos conhecendo mais e nos
correspondíamos mesmo depois que eu havia saído da prisão17.
A Penitenciária de Presidente Venceslau foi construída para abrigar os
detentos da região, e aqueles seis prisioneiros políticos eram uma “novidade” tanto
para a administração da instituição, como para os demais presos. Como destaca Frei
Beto, os seis presos políticos em Venceslau foram encarcerados junto com presos
comuns, colocados sob o mesmo regime, no mesmo pavilhão, com o mesmo
uniforme. Não havia nenhuma diferença. Ele destaca ainda, que por ser um presídio
de segurança máxima, os detentos eram de alta periculosidade.
Quando nós fomos pra Venceslau nós tínhamos muito medo de
sermos mortos. Isso seria muito fácil, bastava um guarda chegar pra
um preso daquele, um dos mais perversos, e cantar a pedra de uma
possível liberdade ou mesmo recompensa lá dentro “- Olha, dá uma
estiletada nesses terroristas”. A gente tinha muito medo de sermos
até violentados por esses presos e qual não foi a nossa surpresa ao
constatar que eles tinham mais medo da gente do que a gente deles.
Isso por causa da fama de terrorista. [...]. E foi muito interessante a
convivência. Nós fomos protegidos pela fama de terroristas e, ao
Conversa do autor Maurice Politi com o público no Memorial da Resistência de São Paulo
durante o lançamento do seu livro Resistência atrás das grades. Registro sem data.
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=zbkqut3D_AA>.
17 Wanderley Caixe em entrevista com Marcos José de Oliveira Lima Filho. Uma investigação
acerca da validade da Teoria Dialética do Direito a partir da verificação de sua utilização
pelos advogados populares. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas). Centro de
Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2012.
16
7
mesmo tempo, ganhamos a confiança deles porque nós passamos a
defender os direitos deles18.
Sobre o convívio dentro da Penitenciária, Frei Beto afirma que juntos, presos
políticos e presos comuns, realizaram uma série de atividades, como oficinas de
criação artística, grupo de estudos bíblicos e grupo de teatro - que chegou, inclusive, a
apresentar espetáculos para o público da cidade19. Já sobre a relação com a
administração da penitenciária, ele informa que
[...] para o diretor da penitenciária era desesperadora a nossa
presença ali. Mas ele não podia fazer nada porque era uma
imposição dos militares. Mas ele falava “Eu rezo todo dia pra ver
vocês longe daqui”, mas teve que nos suportar lá por 16 meses20.
Sobre esse ponto, Maurice Politi também destaca a posição do diretor Zwinglio
Ferreira sobre a situação dos seis presos. Ao voltar à Venceslau para conversar com
profissionais da penitenciária depois de 36 anos, ele informa que teve a confirmação
do sr. Bonini – chefe da segurança da Penitenciária naqueles anos – e do dr. José
Hamilton – psiquiatra da instituição durante a greve de fome – que a ida dos presos
políticos tinha sido, do ponto de vista administrativo, totalmente “irregular”. “Chegamos
lá sem nenhuma documentação, que normalmente acompanhava cada preso
encaminhado à Penitenciária, e sem nenhuma instrução a respeito de quem éramos, o
que tinham de “fazer conosco””21. Dr. Zwinglio, durante a primeira conversa que teve
com eles, informou que “ele também só fora avisado sobre a nossa chegada na noite
anterior e nada sabia a respeito dessa transferência”22. Assim, podemos entender que
a preocupação e a prioridade das autoridades militares e do juiz-auditor da II Auditoria
Militar era, naquele momento, afastar aqueles presos da cidade de São Paulo.
A história da Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, hoje
denominada Penitenciária I “Zwinglio Ferreira”, é um importante lugar de memória
sobre a história da ditadura civil-militar brasileira. A Penitenciária é uma evidência de
que não só nas capitais dos estados houve pessoas submetidas ao medo e/ou
violações de direitos, mas que também os atos de resistência contra o regime se
Frei Beto e Frei Fernando conversam com o público de “Sempre um Papo” durante o
lançando o livro Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira. Belo
Horizonte,
17
de
junho
de
2009.
Disponível
em
<
http://www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/player.php?id=190>.
18 Maurice Politi, op. cit, p.43
19 Artigo de Frei Beto. Estações do Inferno. Correio da Cidadania, ano 4, nº 151,
17
a
24
de
julho
de
1999.
Disponível
em
<
http://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed151/opiniao.htm>.
20 Frei Beto e Frei Fernando no programa “Sempre um Papo” durante lançamento do livro
Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira.
21 Maurice Politi, op. cit, p.43.
22 idem.
18
8
espalharam pelo interior do Brasil. A greve de fome realizada em 1972 na cidade de
Presidente Venceslau, que durou 33 dias, é uma dessas histórias.
Mas é importante lembramos também que, hoje em dia, as penitenciárias do
país continuam sendo palco de muitas violações. Para a Comissão Nacional da
Verdade, o Brasil deve aplicar a Lei de Execução Penal23, de 1984, e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo país em 1992, como forma de
combater a tortura, os abusos e a superlotação nos presídios. As duas leis, embora
aprovadas, nunca foram aplicadas em sua totalidade.
Segundo dados do Ministério da Justiça, publicados em reportagem da Carta
Capital do dia 10 de dezembro de 2014, há hoje no Brasil mais de 500 mil pessoas
presas, alocadas em presídios superlotados onde, em média, 17 presos ocupam o
lugar reservado para apenas dez. Diante disso, os presídios são locais onde a
violação múltipla dos direitos humanos ocorre sistematicamente24.
ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES:
No dia 16 de setembro de 1986 houve uma violenta intervenção policial na
Penitenciária Regional de Presidente Venceslau após uma rebelião dos detentos e
uma tentativa de fuga. Mesmo quando a situação já estava sob o controle da polícia,
14 presos foram mortos, sendo que a maior parte foi vítima de espancamento por
canos de ferro ou pedaços de pau após a ação da Polícia Militar e funcionários do
presídio25.
Já em 2008, o juiz da Vara de Execuções Penais de Tupã, Gerdinaldo
Quichaba Costa, denunciou que existe em São Paulo um regime de pena cruel, que
fere as principais resoluções internacionais de proteção dos direitos humanos e que
vai contra a legislação penal e a Constituição Federal. Esse regime, que vigora há
décadas nas penitenciárias do Estado de São Paulo, deixa o preso incomunicável e
funciona em celas especiais, chamadas de disciplinares, instaladas em praticamente
todas as unidades penitenciárias paulistas.
Para a punição da falta grave, chamada de castigo pelos agentes
penitenciários, são usadas celas especiais nos presídios, mas a normalidade com que
A Lei de Execução Penal (LEP) prevê a obrigação do Estado em proporcionar ao indivíduo
que delinquiu sua reintegração à sociedade livre. Esta Lei é considerada um dos melhores
instrumentos legislativos mundiais em relação à garantia dos direitos individuais dos detentos.
24 Reportagem de Marcelo Pellegrini. CNV alerta para a violação de direitos em presídios:
Comissão da Verdade recomenda medidas que aceleram julgamentos, limitam as prisões
provisórias e fiscalizam o sistema penitenciário. Carta Capital, versão digital. 10/12/2014.
Disponível em < http://www.cartacapital.com.br/sociedade/CNV-alerta-para-a-violacao-dedireitos-em-presidios-1029.html>. Acesso em 09/04/2015.
25 Artigo de Fernando Salla, doutor em Sociologia pela USP e pesquisador do Núcleo de
Estudos da Violência (NEV/USP). De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São
Paulo. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 1, edição 1, 2007, p. 72-90.
23
9
a punição é adotada fez com que o governo de São Paulo criasse uma unidade
especial disciplinar, chamada de "unidade de castigo", que é a Penitenciária I “Zwinglio
Ferreira” de Presidente Venceslau.
Para Venceslau são encaminhados os detentos que têm castigo a ser cumprido
e não encontram celas disciplinares vazias em suas unidades por conta da
superlotação. Nessas celas (solitárias), algumas sem ou com pouca iluminação, eles
ficam enclausurados por até 30 dias, impossibilitados de receber visitas e de sair para
banho de sol, além de ter um espaço exíguo para locomoção (no máximo de 6 m²). As
portas são de metal maciço, com uma pequena portinhola; o único contato do preso é
com o agente penitenciário que fica do lado de fora e que, em alguns casos, controla o
uso da torneira e do sanitário. A medida, segundo o juiz, também é aplicada nos casos
em que uma pessoa chega pela primeira vez para cumprir pena num presídio e é
obrigada a ficar, por até 15 dias, numa solitária, a título de observação e segurança,
antes do convívio com os demais detentos. "Neste caso, o detento também tem sua
dignidade ofendida e seus direitos humanos desrespeitados", afirma o juiz26.
ENTREVISTAS RELACIONADAS AO TEMA
O Memorial da Resistência possui um programa especialmente dedicado a registrar,
por meio de entrevistas, os testemunhos de ex-presos e perseguidos políticos,
familiares
de
mortos
e
desaparecidos
e
de
outros
cidadãos
que
trabalharam/frequentaram o antigo Deops/SP. O Programa Coleta Regular de
Testemunhos tem a finalidade de formar um acervo, cujo objetivo principal é ampliar o
conhecimento sobre o Deops/SP e outros lugares de memória do Estado de São
Paulo, divulgando, desta forma, o tema da resistência e repressão política no período
da ditadura civil-militar.
- Produzidas pelo Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da
Resistência
FREIRE, Alípio Raimundo Viana; SEIXAS, Ivan Akselrud de; POLITI, Maurice.
Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a ditadura civilmilitar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida a Kátia Neves,
Cristina Bruno e Marcelo Araújo, em 11/09/2008.
A
reportagem
completa
está
disponível
aqui:
<http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3315324-EI5030,00Juiz+denuncia+regime+de+excecao+nas+prisoes+de+SP.html>. Acesso em 09/04/2015.
26
10
OLIVEIRA, Raimundo Moreira de Oliveira. Entrevista sobre militância, resistência e
repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo,
entrevista concedida a Karina Alves Teixeira e Ana Paula Brito em 24/09/2014.
ROIG, Vicente Eduardo Gomes. Entrevista sobre militância, resistência e
repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo,
entrevista concedida a Karina Alves Teixeira e Paula Salles em 15/04/2014.
Outras entrevistas
Sempre um Papo. Frei Betto lançando o livro “Diário de Fernando – Nos cárceres
da ditadura militar brasileira”. Entrevista de Frei Fernando de Brito e Frei Carlos
Alberto Libânio Christo (Frei Beto). Belo Horizonte, 17 de junho de 2009. Disponível
em < http://www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/player.php?id=190>. Acesso em
07/04/2015.
Café com Q. Dayane Machado entrevista Maurice Politi. Presidente Prudente. s/d.
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REMISSIVAS: Presídio Tiradentes; Casa de Detenção de São Paulo – Carandiru;
Convento Santo Alberto Magno - Convento dos Dominicano; Livraria Duas Cidades.
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PLANTAS E MAPAS
Imagem 01: Localização da Penitenciária I “Zwinglio Ferreira” em Presidente Venceslau.
Fonte: Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo.
Imagem 02: Imagem aérea da Penitenciária I “Zwinglio Ferreira” de Presidente
Venceslau. Fonte: Google Earth.
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REFERÊNCIAS
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TERRA. Juiz denuncia regime de exceção nas prisões de São Paulo. 09 de novembro
de 2008. Reportagem especial para o Portal Terra. Acesso em 08/04/2015.
Disponível em < http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3315324-EI5030,00Juiz+denuncia+regime+de+excecao+nas+prisoes+de+SP.html>.
Acesso
em
06/04/2015.
COMO CITAR ESTE DOCUMENTO: Programa Lugares da Memória. Penitenciária
Regional de Presidente Venceslau. Memorial da Resistência de São Paulo, São
Paulo, 2015.
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