Veja por dentro

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Veja por dentro
Com especial gratidão às mulheres que contribuíram
de forma tão notável para a criação do documentário
e deste livro.
Para a minha avó Rivka,
que foi assassinada na Polónia pelos nazis.
ÍNDICE
Prefácio 9
Introdução 11
Contexto histórico 15
Hannah Elisabeth Pick­‑Goslar («Lies Goosens») 21
Janny Brandes­‑Brilleslijper 51
Rachel van Amerongen­‑Frankfoorder 109
Bloeme Evers­‑Emden 139
Lenie de Jong­‑van Naarden 167
Ronnie Goldstein­‑van Cleef 205
7
PREFÁCIO
E
ste livro contém as versões integrais das entrevistas realizadas
para um documentário que realizei no final da década de 1980.
Desde essa data, Os Últimos Sete Meses de Anne Frank foi transmitido na televisão nos Países Baixos e em muitos outros países de
todo o mundo.
Enquanto trabalhava no documentário, apercebi-me de que só
se poderia usar uma pequena parte de cada entrevista no filme,
embora cada testemunho incluísse material suficientemente importante para ser preservado na totalidade. Este livro é, portanto, acima
de tudo, um registo histórico da coragem das mulheres que aqui
contam as suas experiências dramáticas.
A pesquisa e preparação para o documentário Os Últimos Sete
Meses de Anne Frank demoraram mais de dois anos, e foram precisas muitas conversas preliminares antes que estas entrevistas
pudessem ser gravadas. Ao relatarem as suas memórias, as mulheres
sujeitaram­‑se a um enorme stress emocional e psicológico. Mesmo
assim, prevaleceu a necessidade de partilharem as suas histórias.
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
Através destas entrevistas, é feita uma tentativa de reconstituição de uma época da Segunda Guerra Mundial. Todas estas
seis mulheres conheceram Anne Frank nos últimos sete meses
da sua vida e, apesar de falarem das suas próprias experiências,
muitos aspetos refletem a história dela.
Criei laços especiais de amizade e confiança com cada uma
destas mulheres. É difícil expressar a minha admiração pela sua
enorme força. Este trabalho permitiu­‑me perceber melhor o fardo
que carrega cada uma delas — e todos os que sobreviveram aos
horrores dos campos de concentração alemães.
Apesar de eu pertencer à geração do pós­‑guerra, venho de
uma família judia que sofreu muito durante o conflito. Assim,
este material não me era estranho. No entanto, as entrevistas com
sobreviventes de Auschwitz tornaram mais claro do que nunca
o que significava estar privado da liberdade e sujeito aos atos das
forças nazis.
De todos os que participaram neste projeto, devo um especial
agradecimento a A.H. Paape, diretor do Royal Institute for War
Documentation, de Amesterdão, e a Renée Sanders, jornalista
freelancer e minha parceira neste trabalho. Gostava ainda de expressar a minha gratidão a Bob Bremer, diretor de programas da televisão TROS, nos Países Baixos, que nos ajudou com o seu interesse
ativo e o seu apoio.
Estou agradecido à Fundação Elfriede Frank e Anne Frank,
em Basileia, Suíça, pelo seu simpático contributo. Queria agradecer, em particular, à minha mulher, Hanna, que me amparou
nos momentos mais críticos e fez sugestões fundamentais para
o filme e o livro.
10
INTRODUÇÃO
A
nne Frank tornou­‑se um dos símbolos mais conhecidos dos
judeus assassinados na Segunda Guerra Mundial. O seu diário, escrito entre 12 de junho de 1942 e 1 de agosto de 1944,
enquanto estava escondida no «Anexo», foi publicado em mais
de 50 países. Inspirou inúmeras adaptações para teatro, cinema
e televisão. O Anexo, ele próprio, é agora um museu, atraindo centenas de milhares de visitantes de todo o mundo.
Era inevitável que a imagem que emergiu do diário fosse romantizada por um vasto público, especialmente pela geração nascida
depois da guerra. Muitas dessas pessoas leram as histórias que Anne
escreveu durante um dos períodos mais trágicos da nossa história.
Anne tinha 13 anos nessa altura e 15 quando morreu.
A 1 de agosto de 1944, terça­‑feira, Anne Frank escreveu a
última carta no seu diário. A 4 de agosto, o SD [Sicherheitsdienst,
Serviço de Inteligência Alemão] invadiu o Anexo, no n.º 263 da
Prinsengracht. Todos os que lá estavam escondidos foram presos.
Os escritos terminaram aqui.
11
O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
Detenção, deportação e aniquilação são os três capítulos que
ficaram por escrever no diário de Anne e de seis milhões de vítimas judias, mais de metade das quais eram mulheres e crianças.
Desde que foi presa, a vida escondida de Anne no Anexo, as cartas que escrevia no diário, e as noções românticas e idealistas
de uma jovem rapariga deram lugar à realidade dura e brutal dos
campos de concentração nazis, onde foi perpetrado um genocídio sem precedentes. Aqui morreriam Anne, a sua irmã Margot
e a mãe, Edith.
Ao longo dos anos, pouca atenção foi dada à vida de Anne
depois de ser presa e deportada. Não se fez uma pesquisa detalhada e, nalguns casos, as escassas fontes existentes contradiziam­
‑se umas às outras. Assim, pouco se sabia sobre os sete últimos
e fatais meses da sua vida, ou sobre como ela suportou o amargo
sofrimento de Westerbork e Auschwitz­‑Birkenau. Anne morreu
de doença, fome e exaustão em Bergen­‑Belsen, em março de 1945
— poucas semanas antes da libertação.
Mais de 40 anos depois, restam poucas pessoas que possam
e queiram falar desse tempo. As sobreviventes que entrevistei
começaram por não ser capazes de contar as suas experiências.
Até hoje, muitas ainda não são. Gradualmente, algumas foram
conseguindo verbalizar pelo que passaram — à medida que o processo de assimilação do Holocausto continua. Umas sentem a
necessidade de uma catarse, outras querem deixar as suas histórias
para a posteridade. Sabem que estão entre as últimas testemunhas oculares destes tempos irreais e incompreensíveis da história
da humanidade.
Neste livro, falam mulheres — mulheres que, como Anne,
estiveram em Westerbork, Auschwitz­‑Birkenau e Bergen­‑Belsen.
São elas quem descreve o que aconteceu durante o transporte
e nos campos onde Anne esteve.
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Introdução
Estas mulheres conheciam Anne Frank e a sua família. Várias
foram até suas colegas de escola ou amigas. Como as entrevistas
são publicadas na íntegra, revelam o passado e o meio social de
cada uma das interlocutoras e, consequentemente, situam­‑nas no
contexto de um cenário contemporâneo muito mais alargado.
Existem algumas diferenças entre os relatos e pontos de vista
no que respeita certos pormenores dos últimos sete meses da vida
de Anne. Talvez o rigor dos factos históricos seja menos importante do que registar aquilo que ela e estas mulheres passaram,
chegando perto do limite da resistência humana.
Elas falam do medo da morte e de como o confronto com o
fim da vida de outros, dia sim, dia não, as forçou, a bem da sua
própria sobrevivência, a conter as emoções. Acima de tudo, falam­
‑nos dos pequenos gestos de benevolência que tiveram um papel
fundamental nos campos, lugares onde já não havia normas.
Depois de muitos meses de pesquisa, e com a ajuda do Instituto
Holandês de Documentação da Segunda Guerra, do Genocídio
e do Holocausto, conseguimos encontrar mulheres dispostas a
revelarem as suas experiências pessoais nos campos de concentração alemães. Todas elas partilharam vivências com Anne Frank
e a sua família depois da detenção. Estas mulheres passaram por
uma dor profunda, que cada uma viveu e superou à sua maneira
— uma dor de que ninguém consegue, na realidade, recuperar.
Anne Frank partilhou estas experiências. Estas mulheres falam
por ela.
Estes relatos são necessários. O fascismo, o nazismo, a discriminação racial e o antissemitismo ainda existem — até a autenticidade
do diário chegou a ser questionada. Por estas razões, muitas das
testemunhas dispuseram­‑se a contar as suas histórias. Quiseram
expor as feridas causadas pelos nazis e, talvez com isso, combater
a injustiça onde quer que ela exista.
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
Vale a pena realçar que as vozes que ouvimos são de mulheres.
Os horrores infligidos pelos nazis a mulheres e crianças receberam pouca atenção até agora. Os seus testemunhos tornam ainda
mais evidente o facto de que a insanidade nazi não tinha limites.
Este livro dá voz aos seus sentimentos num tempo de extrema
adversidade. Seres humanos tratados como animais. A inexistência de qualquer espécie de sensibilidade humana ou respeito.
O facto de estas mulheres terem sobrevivido pode ser considerado
um milagre: Auschwitz e Bergen­‑Belsen não tinham sido pensados para a sobrevivência dos seus ocupantes.
Estas corajosas mulheres carregarão um enorme fardo até ao
fim da vida. A escolha de partilhar aquilo por que passaram é uma
manifestação de coragem pela qual devemos estar gratos.
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CONTEXTO HI STÓRICO
E
m 1933, Otto Frank decidiu deixar Frankfurt, uma cidade com
uma vasta comunidade judaica, e emigrar para Amesterdão.
Previu que a chegada de Hitler ao poder seria um mau presságio
para os judeus.
A família Frank — Anne, nascida a 12 de junho de 1929,
a irmã, Margot, três anos mais velha, a mãe e o pai — vivia no
n.º 37 da Merwedeplein. Aí, enquanto filha de pais que esta­vam
bem na vida, Anne passou anos tranquilos e despreocupados.
Mas a invasão nazi dos Países Baixos, em maio de 1940, veio
ensombrar esta infância feliz, tendo a situação piorado com o
aumento das restrições impostas aos judeus, entre as quais, uma
norma que apenas permitia às crianças judias frequentarem escolas judaicas.
Apesar disso aquela foi uma época agradável para Anne, marcada por uma preenchida vida social no Liceu Judaico (uma
escolha estabelecida pelos ocupantes alemães, sob os auspícios
do Conselho Judaico de Amesterdão). Enquanto foi possível,
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
Edith e Otto Frank fizeram tudo o que estava ao seu alcance para
proteger as filhas da crescente pressão exerecida pela ocupação.
No entanto, em julho de 1942, Margot recebeu uma convocatória para se apresentar ao trabalho no «Leste». Foi motivo suficiente para Otto decidir esconder­‑se com a família. Os Franks
foram relativamente afortunados. Conheciam pessoas como Miep
e Jan Giesque, entre outros, se prontificavam a encobrir quem
precisava. Isso era incomum: a maioria dos judeus não dispunha
desses contactos.
Um segundo ponto excecional foi o facto de os Franks terem
permanecidos juntos durante todo o período passado na clandestinidade. A maioria das famílias dos 25 mil judeus escondidos
um pouco por toda a Holanda teve de se separar.
Com a ajuda dos empregados da sua firma, Otto Frank preparou meticulosamente um anexo localizado nas traseiras das
instalações do escritório. Os Franks esconderam­‑se com os amigos Van Daan e Dussel, o dentista, no n.º 263 da Prinsengracht,
o prédio dos escritórios, salas de trabalho e armazém da empresa
alemã Opekta, fundada por Otto em 1933. A firma produzia pectina, usada para fazer compotas e geleias.
No início de julho de 1942, a família Frank passou à clandestinidade. No diário que recebeu como presente do seu décimo
terceiro aniversário, umas semanas antes, Anne descreve este
período com grande detalhe: as circunstâncias e emoções de uma
rapariga em crescimento, a relação com os pais e a irmã, e as
tensões que se desenvolveram entre os que estavam escondidos
no Anexo. A primeira carta que escreveu no diário tinha data de
12 de junho de 1942.
A última entrada é de 1 de agosto de 1944. Três dias depois,
a polícia alemã e os seus assistentes holandeses, sob o comando
de Karl Silberbauer, do SD, chegou à porta do Anexo. Todos os
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C o n t e x t o H i s t ó r ic o
ocupantes, e duas das pessoas que os ajudaram, foram levados
de camião para o quartel­‑general dos serviços de inteligência,
na Euterpestraat.
No dia a seguir à captura, a família Frank foi transferida para
Huis van Bewaring, uma prisão em Weteringschans. A 8 de
agosto, foram levados da estação central de caminhos de ferro
de Amesterdão para o campo de detenção de Westerbork.
Westerbork in Dent era usado como campo de trânsito, uma
parte do sistema de deportação que afunilava judeus até aos vários
campos de concentração alemães, desde o início da perseguição
nazi aos judeus na Holanda, no verão de 1942. Era guardado
pelas polícias civil e militar holandesas. Entre o verão de 1942 e o
outono de 1944, partiram de Westerbrok 85 comboios em direção aos campos de extermínio — 19 deles seguiram para Sobibor,
e 65, para Auschwitz.
Durante um mês, os Franks ficaram em pavilhões «disciplinares» (Pavilhão 67), não como prisioneiros comuns, mas na condição de presos condenados por crime: não se terem alistado para
a deportação, sendo detidos na clandestinidade. A 3 de setembro
de 1944, Anne Frank, a família e os companheiros de esconderijo foram levados para Auschwitz-Birkenau, a bordo do último
comboio que saiu dos Países Baixos. Por essa altura, mais de
cem mil judeus holandeses tinham sido deportados. Esta última
transferência para Auschwitz afetou 498 homens, 442 mulheres
e 79 crianças — um total de 1019 pessoas.
As forças Aliadas, que, naquele momento, já tinham alcançado
Bruxelas, estavam apenas a 193 quilómetros deste transporte.
O comboio entrou em Auschwitz na noite de 5 de setembro.
Quase imediatamente depois da chegada, homens e mulheres
foram separados. No dia seguinte, 549 pessoas desta última transferência, entre as quais todas as crianças com menos de 15 anos,
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
foram mandadas para as câmaras de gás de Auschwitz­‑Birkenau.
As mulheres que escaparam à seleção tiveram de andar até ao
campo feminino de Birkenau. Entre elas, estavam Edith Frank
e as filhas.
Com uma precisão repugnante, estava em curso um horripilante assassínio em massa em Auschwitz­‑Birkenau, o maior campo
de morte nazi. Objetivo: o extermínio de povos como o judeu
e o cigano. Era um genocídio sem paralelo na história mundial,
tanto em estratégia, como em dimensão.
Em setembro de 1944, quase dois milhões de pessoas, na maioria judeus, tinham sido gaseadas em Auschwitz­‑Birkenau.
Depois da chegada do último transporte de Westerbrok, estavam cerca de 39 mil pessoas no campo feminino. Edith Frank e as
filhas, Margot e Anne, instalaram­‑se no Pavilhão 29.
Margot e Anne ficaram quase dois meses em Auschwitz­
‑Birkenau, e uma parte desse tempo no chamado Krätzenblock,
composto pelos pavilhões dos sarnentos, já que ambas tinham
Krätze [sarna]. Como a Sra. Frank não queria deixar Margot
e Anne, ficou com elas até as duas serem transferidas para Bergen­
‑Belsen, provavelmente a 28 de outubro de 1944. No dia 6 de
janeiro de 1945, a Sra. Frank morreu, de tristeza e exaustão,
em Auschwitz.
No fim de outubro de 1944, os russos estavam a cerca de
100 quilómetros de Auschwitz. Daí em diante, muitas das mulheres foram levadas de Birkenau para outros campos de concentração. Algumas seguiram para o campo de trabalho de Libau,
e foram trabalhar em fábricas que sustentavam a máquina de
guerra alemã.
Anne e Margot partiram para Bergen­‑Belsen a 28 de outubro.
No princípio, Bergen­‑Belsen era um dos «melhores» campos; servira de «campo de troca» [Austauschlager] para judeus entregues
18
C o n t e x t o H i s t ó r ic o
em substituição de alemães detidos fora do território controlado
pelos nazis. Mas, durante os meses finais da guerra, as condições de vida neste campo, situado numa zona árida da Charneca
de Luneburgo, eram tão más que, apesar de não haver câmaras de
gás, morreram lá dez mil pessoas.
Perto do final de 1944, foram acrescentados vários pavilhões
a um dos piores setores do campo, o chamado Sternlager, tam­
bém conhecido por «Pavilhões da Estrela» — uma referência
à estrela amarela que os presos tinham de usar. A situação no
campo tornou­‑se muito pior. Não havia praticamente nada para
comer, era inverno, e a doença e a enfermidade estavam por todo
o lado. As condições deterioraram­‑se ainda mais com a chegada
de vários transportes, especialmente os vindos de Auschwitz,
entre o fim de outubro e o início de novembro de 1944.
Com a aproximação das forças Aliadas e do fim da guerra,
os alemães deixaram de saber o que fazer com os prisioneiros
dos campos de concentração. Multidões de pessoas tiveram de
se apertar em Bergen­‑Belsen, que não fora desenhado para alojar tanta gente. Os novos pavilhões, sobretudo no campo feminino, ainda não estavam prontos, tendo sido construído, à pressa,
um campo de tendas para as mulheres vindas de Auschwitz­
‑Birkenau, entre as quais se encontravam Margot e Anne Frank.
Uma semana depois da sua chegada, várias tendas foram destruídas
por uma tempestade severa. A sobrelotação do campo agravava­
‑se nos meses de inverno; as condições de vida complicavam­‑se
ainda mais. Em resultado disso, nos meses antes da libertação
de Bergen­‑Belsen, e nas semanas imediatamente a seguir, muitos dos presos sucumbiram. Entre eles estavam Anne e Margot
Frank, que morreram de tifo, com poucos dias de intervalo.
O campo foi libertado pelos britânicos pouco depois, a 15 de
abril de 1945.
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Em 1953, a Cruz Vermelha Holandesa divulgou que, das
1019 pessoas que seguiram no transporte saído de Westerbrok,
no dia 3 de setembro de 1944, sobreviveram apenas 45 homens
e 82 mulheres.
HANNAH­‑ ELISABET PICK­‑ GOSLAR
«LIES GOOSENS»
O nosso primeiro encontro, em dezembro de 1987, em Amesterdão,
foi antecedido por várias conversas telefónicas. Hannah Pick­‑Goslar,
que sobreviveu a Bergen­‑Belsen com a sua irmã mais nova, emigrou
para Israel depois da guerra com a ajuda do pai de Anne Frank, Otto.
Como eu supunha, era uma mulher agradável, alegre e faladora,
com os pés assentes na terra e impassível. Quarenta anos depois,
ainda falava holandês bastante bem. Quando sugeri que voltássemos ao sítio onde ela vira Anne Frank, a amiga de infância, pela
última vez, não hesitou por um momento. Disse que sim. O filho,
Chagi, que não queria que a mãe voltasse a Bergen­‑Belsen sozinha,
acompanhou­‑a. Chagi, um dos três f ilhos de Hannah Elisabeth,
era uma grande ajuda para a mãe.
A história da vida de Hannah é um reflexo perfeito da história dos
judeus durante o século XX. Ela e os pais fugiram da Alemanha nazi
em direção à Holanda, em 1933,. Hannah sobreviveu aos horrores de
Bergen­‑Belsen e estabeleceu­‑se em Israel, o sonho de Theodor Herzl,
cujas ideias sionistas ela e a família admiravam. Chagi, um judeu
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
nascido em Israel, é cientista e oficial do exército israelita. Foi a primeira vez que visitou a Europa.
Hannah Pick aparece algumas vezes no diário de Anne Frank com
o pseudónimo «Lies Goosens.» (Otto Frank mudou os nomes das pessoas mencionadas no diário aquando da sua publicação.) Antes de filmar
o documentário, visitámos vários lugares que ela e Anne tinham conhecido na infância. Em muitos sentidos, os primeiros anos de Anne
e Hannah foram semelhantes. Ambas tinham quatro anos quando fugiram da Alemanha para a Holanda. Foram vizinhas em Merwedeplein,
na zona sul de Amesterdão, e aí cresceram, uma ao lado da outra.
Andaram juntas no jardim de infância, no ensino básico e na escola
secundária até ao momento em que a família Frank passou à clandestinidade, em 1942. Não se viram até ao início de 1945, quando,
pouco antes da morte de Anne, falaram algumas vezes através do
arame farpado de Bergen­‑Belsen.
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HANNAH ELISABETH PICK­‑ GOSLAR
«LIES GOOSENS»
N
asci em Berlim, em 1952, no seio de uma família de judeus
praticantes. A minha mãe, Ruth Judith Klee, filha de um
conhecido advogado berlinense, era professora. O meu pai,
Hans Gostar, era vice­‑ministro dos Assuntos Internos e secretário de imprensa para o gabinete prussiano de Berlim. Mesmo
antes de Hitler subir ao poder, ele viu em que direção o vento
soprava, e começámos a preparar­‑nos para a nossa fuga para os
Países Baixos.
Na Holanda, o meu pai, economista profissional, abriu um
pequeno escritório com outro refugiado, um advogado chamado
Ledermann. Prestavam aconselhamento jurídico e financeiro
a outros refugiados. Não era uma empresa lucrativa, mas o meu
pai ganhava o suficiente para viver. Em 1933, mudou­‑se para
a Merwedeplein, em Amesterdão.
O meu pai foi um dos fundadores do Mizrachi, uma organização sionista religiosa, na Alemanha. De quatro em quatro
anos, participava em congressos, e, por isso, conhecia bem os
membros holandeses. Acredito que estas pessoas nos ajudaram.
O meu pai fazia amigos rapidamente; e era respeitado nos círculos judaicos. Não tínhamos qualquer contacto direto com as
pessoas que não pertenciam à comunidade judaica.
A forma como conheci Anne Frank é muito interessante.
Na primeira semana depois de chegarmos da Alemanha, fui a uma
loja comprar manteiga e leite com a nossa empregada — também refugiada. Conhecemos outra criada, refugiada, como nós,
que não falava holandês. As duas empregadas começaram a conversar e eu descobri que havia outra família de refugiados a viver
na nossa rua, no n.º 37 da Merwedeplein. Nós morávamos uma
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
esquina abaixo deles, no n.º 31. No dia seguinte, encontrámo­‑nos
com os Franks.
Eles tinham duas filhas: Margot, que era três anos mais velha
do que eu, e Anne, seis meses mais nova. Apesar de terem origens muito diferentes, os meus pais tornaram­‑se amigos do Sr. e
da Sra. Frank em pouco tempo. O Sr. Frank era um homem de
negócios. A Sra. Frank, segundo sei, não trabalhava. Ao contrário
dos meus pais, os Franks não eram religiosos. Ambos os meus
pais tinham feito um percurso académico.
Tornaram­‑se muito próximos, em parte por causa da língua,
mas também porque estávamos na mesma situação. Afinal, as duas
famílias tinham sido forçadas a deixar a Alemanha e a viver na
Holanda como refugiadas.
O Sr. Frank era um otimista. Quando entrava numa sala, o sol
começava a brilhar. Estava sempre de bom humor. O meu pai,
por outro lado, era mais pessimista. Em última instância, o meu
pai tinha razão, mas era muito mais agradável ouvir o que
o Sr. Frank tinha para dizer.
A família Frank vinha visitar­‑nos todas as sextas­‑feiras à
noite, e passava a Páscoa judaica em nossa casa. Todos os anos,
na altura da Festa dos Tabernáculos, o Sucot, construíamos um
tabernáculo no caminho entre os pátios de Merwedeplein e de
Zuideramstellaan. Era muito pequeno porque o espaço era apertado. Claro que Anne vinha muitas vezes vê­‑lo, e, algumas vezes,
comia connosco. É possível que ela tenha ajudado a decorá­‑lo.
No Yom Kippur, o Dia da Expiação, jejuávamos todo o dia.
O Sr. Frank e a Anne ficavam em casa a preparar a refeição da
noite, enquanto a Sra. Frank e a Margot iam à sinagoga como os
meus pais. Quando eu era pequena — não temos de jejuar até aos
12 anos —, ia sempre comer a casa da família Frank. Assim, a minha
mãe podia ir à sinagoga sem se preocupar comigo. A Sra. Frank e
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H a n n a h E l i s a b e t h P i c k ­‑ G o s l a r
a Margot frequentavam a sinagoga de vez em quando, mas a Anne
e o pai iam com muito menos frequência.
Em casa da Anne, celebravam o Sinterklaas [a festa holandesa de São Nicolau, no dia 5 de dezembro]. Em nossa casa,
não — só seguíamos as comemorações judaicas: festejávamos
o Hannukah. Na escola, claro que eu podia participar; havia
sempre uma celebração na escola no dia a seguir ao Sinterklaas
— uma peça de teatro, ou uma coisa do género.
O facto de eu ser, na época, filha única, e de a família Frank
ter uma filha da minha idade, contribuiu para a nossa amizade.
Era maravilhoso ir a casa deles. Anne e eu, claro, frequentámos
o mesmo jardim de infância. Ainda me lembro do primeiro dia.
Foi a minha mãe que me levou à escola. Eu ainda não falava holandês, e a minha mãe estava muito ansiosa com a forma como iria
correr, como eu iria reagir. Mas quando entrei, a Anne estava do
outro lado da porta, a tocar os sinos. Virou­‑se, eu corri para os
braços dela, e a minha mãe pôde ir embora descansada. Esqueci
a timidez e a minha mãe no mesmo instante.
Depois do jardim de infância, andámos durante seis anos na
mesma escola pública, a Sexta Escola Pública Montessori, que
hoje se chama Escola Anne Frank. Mais tarde, fomos juntas para
o liceu judaico — falaremos disso mais adiante.
Eu nunca ia à escola ao sábado, porque éramos praticantes.
Os judeus ortodoxos não vão às aulas ao sábado — o Sabbath.
A Anne ia. Todos os domingos, ela vinha a minha casa, ou eu ia
a casa dela, para fazermos os trabalhos de casa.
Com frequência, ao domingo, íamos com o pai dela ao seu
grande escritório da Prinsengracht — agora Casa Anne Frank —
e brincávamos lá. Nessa altura, não vi o Anexo. Havia um telefone
em cada sala, e isso permitia­‑nos fazer a nossa brincadeira preferida: ligar de um lado para o outro. Era uma aventura. Havia vários
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O s Ú lt i m o s S e t e M e s e s
de
Anne Frank
jogos de rua. E pregávamos partidas às pessoas. Na Merwedeplein,
atirávamos água pela janela a quem passava lá em baixo.
Ainda me lembro que uma vez jogámos ao voeje van de vloer
[uma brincadeira holandesa parecida com a macaca] e, quando
chegámos a casa, ouvimos na rádio que tinha havido um tremor
de terra em qualquer sítio. Rimo­‑nos imenso com isso!
Como eu era educada de forma religiosa e a Anne não, nem
sempre tínhamos os mesmos dias livres. À quarta­‑feira à tarde
e ao domingo de manhã, eu tinha de estudar hebraico. A Margot
também tinha aulas de hebraico, mas a Anne não. Ela seguia as
pisadas do pai e não era nada religiosa.
Os pais da Anne vinham sempre a nossa casa nas festas judaicas e, noutras ocasiões, como a noite de Ano Novo, íamos nós a
casa deles. Nesses dias, podíamos dormir juntas no quarto dela.
À meia­‑noite, acordavam­‑nos e davam­‑nos um oliebolletje [uma
espécie de sonho com geleia] e alguma coisa para beber. O dia de
Ano Novo era feriado e dormíamos até tarde. Era sempre muito
divertido estarmos juntas, como uma festa especial.
Quando íamos de férias no verão, levávamos a Anne connosco.
A Anne pendurou uma fotografia da nossa pequena casa de férias
por cima da cama dela, a mesma foto que está no quarto dela na
Casa Anne Frank. Deve ter gostado muito de lá ir, de outra forma
não teria escolhido esta imagem para pôr na parede. Quando íamos
passar o dia a Zandvoort, no verão, perguntávamos ao Sr. Frank se a
Anne e a Margot podiam ir connosco. A minha mãe e a Sra. Frank
eram como irmãs.
Fizemos um grupo de três — Anne, Hanne e Sanne, mas a
Sanne andava numa escola diferente. E havia ainda outra rapariga
que era a minha amiga do Sabbath. Ela frequentava a Escola Jeker.
Encontrávamo­‑nos na sinagoga todos os sábados e eu brincava
com ela à tarde. A Anne tinha um pouco de ciúmes desta amiga.
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H a n n a h E l i s a b e t h P i c k ­‑ G o s l a r
Muito mais tarde, no dia 27 de novembro de 1943, escreveu no seu
diário que sonhara comigo e perguntara porque é que ela, Anne,
tinha sobrevivido, e eu, Lies, morrido. Ela pensava que eu estava
morta. Também escreveu que fora muito má ao tirar­‑me aquela
amiga, e que imaginava como eu me sentira. Naturalmente, também discutíamos, mas éramos raparigas muito normais, portanto,
isso fazia parte. Na generalidade, éramos muito boas amigas,
falávamos sobre tudo e brincávamos juntas.
A Anne adorava livros de autógrafos, onde pedia a toda a gente
para escrever um verso. Ela fazia muitos amigos. Penso que tinha
mais amigos do que amigas, especialmente no sexto ano e, depois,
no primeiro do Liceu. Os rapazes gostavam mesmo dela. E ela
apreciava muito que os rapazes lhe dessem atenção.
Estava sempre ocupada com o cabelo. Era comprido e ela estava
permanentemente a mexer­‑lhe. O cabelo mantinha­‑a preocupada
a toda a hora.
Ela também fazia um truque especial que eu nunca tinha visto
antes. Sempre que queria, deslocava o ombro. Achava muito divertido ver a reação das outras crianças e desatava a rir.
A Anne era uma miúda débil. Não sei qual era o problema,
porque nunca tinha febre alta, mas ficava muitas vezes de cama.
Esses episódios duravam alguns dias. Provavelmente, tinha febre
reumática. Eu visitava­‑a sempre nessas alturas e levava­‑lhe os
trabalhos de casa. Mas ela estava sempre muito alegre. Adorava
segredinhos e adorava conversar. Colecionava fotografias de
grandes estrelas de cinema, que ainda podem ser vistas nas paredes da Casa Anne Frank — Deanne Durbin e algumas outras…
Eu nunca me interessei muito por isso. Mas ambas guardávamos fotos das crianças das famílias reais holandesa e britânica.
Trocávamos essas. Depois, ela começou a escrever. Estava sempre
pronta para uma piada.
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de
Anne Frank
Era uma rapariga teimosa — e muito bonita. De um modo
geral, toda a gente gostava dela, e ela tornou­‑se o centro das
atenções nas nossas festas. Também era o centro das atenções
na escola. Ela gostava de ser importante — isso não é uma má
qualidade. Lembro­‑me de que a minha mãe, que gostava muito
dela, costumava dizer: «Deus sabe tudo, mas a Anne sabe tudo
ainda melhor.»
A Anne recebeu um diário no dia do seu décimo terceiro aniversário. Houve uma festa à tarde e vimos que os pais lhe tinham
oferecido um diário muito bonito. Não sei se foi o primeiro ou
o segundo que ela teve, mas lembro­‑me bem da Anne lá escrever,
escondendo o texto com a mão, mesmo nos intervalos da escola.
Toda a gente via que ela escrevia. Mas ninguém tinha autorização para espreitar o que ela lá punha. Eu pensava que ela estava
redigia livros inteiros. Sempre tive muita curiosidade em saber o
que estava no diário, embora ela nunca o mostrasse a ninguém.
Nunca consegui descobrir o que lá dizia, mas sempre desconfiei que fossem mais coisas do as que constam da versão publicada.
Talvez nunca tenham encontrado o que ela escreveu antes de passar à clandestinidade — há alguns anos que ela tinha esse hábito,
recordo­‑me muito bem disso.
Ela contou no diário que, se pudesse escolher, depois da guerra
queria ser escritora.
Se bem me lembro, era um pouco mimada, particularmente
pelo pai. A Anne era a menina do papá; a Margot, mais parecida
com a mãe. Foi bom terem tido apenas duas filhas. A Sra. Frank
era um pouco religiosa, e a Margot também seguiu a mesma direção. A Margot sempre disse que, se pudesse, depois da guerra,
queria ser enfermeira em Israel.
Era tudo muito idílico até Hitler ocupar a Holanda.
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H a n n a h E l i s a b e t h P i c k ­‑ G o s l a r
No princípio, não mudou grande coisa. Em outubro de 1940,
tive uma irmãzinha. Ela tornou­‑se a favorita da família Frank. Todos
os domingos, a Anne e a Margot queriam ver a minha irmã a tomar
banho e a comer. Depois, as três levávamo­‑la a passear no carrinho
de bebé. A Margot era especialmente louca pela minha irmã.
Mas, a pouco e pouco, tudo se alterou. Deixámos de poder
entrar nos elétricos. Os judeus não tinham autorização para comprar nas lojas, exceto entre as 3 e as 5 horas da tarde, e apenas
em estabelecimentos judaicos. Gradualmente, os alemães começaram a enviar convocatórias para os campos de trabalho, especialmente para gente jovem. Na altura, não sabíamos que, na verdade,
esses campos eram muito piores do que pensávamos.
Depois do sexto ano, não pudemos continuar os estudos
onde queríamos. Todas as crianças judias tinham de ir para escolas judaicas. E foi criado um estabelecimento especial para nós,
o Liceu Judaico, na Voormalige Stadstimmertuinen, em Amesterdão.
Era em frente à escola secundária judaica, que sempre tivera estudantes judeus.
No Liceu, eu e a Anne sentávamo­‑nos sempre juntas. Copiá­
vamos os trabalhos uma da outra e lembro­‑me de uma vez termos trabalhos de casa extra como castigo por causa disso. Um dia,
um professor agarrou a Anne pelo colarinho e pô­‑la noutra sala
para nos separar. Tínhamos falado demasiado. Não sei como é que
isso aconteceu, mas, meia hora depois, eu estava sentada ao lado
dela na outra turma. A partir daí, os professores passaram a deixar­
‑nos ficar juntas.
Foi sempre assim. A Anne já escrevia muito bem. Quando
a mandavam fazer trabalhos extra porque tinha falado de mais,
fazia­‑o muito bem. Uma vez escreveu um poema tão engraçado
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Anne Frank
que a professora não conteve o riso enquanto ela o lia em voz
alta. Começava assim: «Kwek, kwek, kwek, zei juffrouw Snaterbek
[Quá, quá, quá, disse a professora Tagarela].»
No fim do primeiro ano do Liceu, houve uma grande festa.
A Margot passou com distinção — ela era mesmo muito boa
aluna. A Anne e eu passávamos à tangente porque não éramos
boas a matemática. Lembro­‑me de irmos para casa juntas e de
deixar de a ver por alguns dias.
A fábrica do Sr. Frank, a Opekta, produzia uma substância para
fazer compotas. A minha mãe recebia sempre embalagens velhas
de presente. Pouco depois de sairmos da escola, a minha mãe
mandou­‑me a casa dos Franks pedir uma balança porque queria
fazer um doce.
Fui lá, como de costume, e toquei, toquei, toquei, mas ninguém
abriu a porta. Não percebi porque é que não atendiam. Toquei de
novo e, finalmente, o Sr. Goudsmit, um inquilino, veio à porta.
— Que queres? O que é que vieste aqui fazer? — perguntou,
surpreendido.
— Vim pedir a balança emprestada.
— Não sabes que a família Frank foi toda para a Suíça?
Eu não sabia nada disso.
— Porquê? — perguntei.
Ele também não sabia.
Foi um choque. Porque é que eles tinham ido para a Suíça?
A única ligação que a família Frank tinha com a Suíça era a mãe
de Otto Frank, que vivia lá.
Mais tarde, percebemos que eles sempre suspeitaram que a
situação ia piorar para os judeus. Ao longo desse ano, tinham vindo
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a preparar­‑se para passar à clandestinidade. Nós não sabíamos
de nada. Não se fala de uma coisa dessas — se alguém falasse,
os planos poderiam falhar.
Nós não podíamos esconder­‑nos: a minha mãe estava grávida,
e a minha irmã mais nova só tinha dois anos. Por isso, nunca pensámos em fazer nada parecido. O Sr. Frank visitava­‑nos com frequência durante o período em que o meu pai estava deprimido por
causa da guerra, dos alemães, da forma como tudo ia correr, e de
como tudo isso era terrível. E o Sr. Frank dizia sempre:
— Está tudo bem. A guerra está quase no fim.
Perguntei várias vezes porque é que o Sr. Frank escolheu aquela
outra família, os Van Daans, para se juntarem a eles na clandestinidade e não a nós, que éramos amigos tão próximos. Mas não
nos podemos esquecer: em primeiro lugar, eu tinha uma irmã com
2 anos de idade e, com uma menina tão pequena, ninguém consegue esconder­‑se. No diário, Anne conta que eles não podiam puxar
o autoclismo, nem mexer­‑se de forma livre durante a noite. Essas
medidas eram, naturalmente, impossíveis com uma criança de 2 anos.
Em segundo lugar, a minha mãe estava outra vez grávida, e uma
mulher naquele estado não se dava muito bem num esconderijo.
Por isso, nunca levámos a mal. Isso nunca me pareceu um problema.
Regressei para casa e disse à minha mãe:
— Não estava lá a família Frank. Aqui tens a balança.
Os meus pais ficaram muito perturbados. Não percebiam o que
tinha acontecido. No entanto, no caminho para casa, encontrara um
amigo que me dissera:
— Sabes uma coisa? Recebi uma carta dos alemães. Para a
semana tenho de ir para um Arbeitslager [campo de trabalho].
Ele tinha 16 anos. Bastou isso para juntarmos dois mais dois
e percebermos que talvez a Margot também tivesse de ir para
esse Lager [campo]. Mais tarde, soubemos que tinha sido esse
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Anne Frank
o caso. A Margot recebera uma convocatória para se apresentar
no Arbeitslager. Foi nesse momento que o Sr. Frank decidiu:
— Não vais para o Arbeitslager. Vamos passar à clandestinidade.
Não fazíamos ideia de que a família andava a preparar-se para
isto há um ano. Só soube disso depois da guerra, pelo Sr. Frank.
E, claro, nem desconfiávamos que, na realidade, tinham ficado em
Amesterdão. Sabíamos que a mãe dele vivia na Suíça e, por isso,
supusemos que a família Frank tivesse fugido para lá. Ele espalhara esse boato na esperança de que parassem de os procurar.
Houve muitos judeus que tentaram escapar através da fronteira
com a Suíça, por isso aquela história não era incomum. A maioria
não foi bem­‑sucedida.
Creio que a Anne foi a primeira amiga que perdi. É claro que
foi muito assustador, mas começámos a habituar­‑nos a essa ideia.
Quando voltei à escola depois do verão, o número de crianças que
iam às aulas diminuía de dia para dia.
Ficámos quase mais um ano em Amesterdão, até 20 de junho
de 1943. Ao longo desse tempo, as coisas tornaram­‑se cada vez
piores. Os judeus tinham de usar a estrela amarela. Havia um
Ausweis [cartão de identificação], com um enorme «J», de «judeu».
As pessoas eram paradas no meio da rua e perguntavam­‑lhes:
— Posso ver o seu Ausweis?
Os judeus eram levados e nunca voltavam a casa. Uma mãe
que estivesse à espera de um filho não conseguia evitar perguntar­
‑se: «Onde está o meu filho? Será que foi levado?»
A situação tornava­‑se mais perigosa a cada dia que passava.
E a nossa sala ficava cada vez mais vazia. Chegávamos de manhã
e já lá não estava um rapaz, ou não aparecia aquela rapariga.
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Nunca me esquecerei da forma como o Sr. Presser, o nosso professor de História, que mais tarde passou a ser o Professor Presser,
nos deu uma aula sobre o Renascimento. Começou a ler­‑nos
um texto sobre o reencontro de Dante e Beatriz no paraíso. De
repente, a meio da lição, começou a chorar e saiu da sala a correr.
— Qual é o problema?
— Levaram a minha mulher na noite passada.
Foi terrível. Ainda me arrepio quando penso nisso, naquele
homem em pé diante da turma. Ele não tem filhos, pensei. A mulher
era tudo para ele. Um dia, foi para casa e a mulher não estava lá.
Foi assim que se passou.
Até então, a minha família tivera sorte, na medida em que
conseguira comprar bilhetes de identidade sul­‑americanos, através de um tio na Suíça. Éramos expatriados. Isso foi o único
motivo que nos permitiu continuar a escapar. Arranjámos passaportes do Paraguai. O meu pai dizia, a rir:
— O melhor é aprenderem alguma coisa sobre o Paraguai,
para o caso de eles perguntarem.
Aprendi o nome da capital, Asunción, e não sabia mais nada.
No entanto, nunca me perguntaram coisa alguma.
Graças a estes passaportes, ainda conseguimos sair à rua por
mais algum tempo sem tremer de medo, apesar de nunca sabermos o que iria acontecer no dia seguinte.
Nessa altura, houve um segundo documento que nos ajudou.
Afinal, o meu pai tinha sido um dos líderes do Mizrahi, na Alemanha,
e era um elemento ativo do movimento na Holanda. Creio que
os alemães fizeram e validaram 40 listas com o nome dos mais
famosos sionistas — pessoas que queriam ir para a Terra de Israel.
O nosso nome estava na segunda.
E, assim, seguimos com a nossa vida, com pouco que comer e
uma grande dose de medo — mas, pelo menos, estávamos em casa.
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Em outubro, a minha mãe morreu durante o parto. O bebé morreu à nascença. Isso está no diário de Anne. Alguém lhe disse que
o nosso bebé tinha morrido, mas não que a minha mãe também
falecera. Provavelmente, não tiveram coragem para lhe contar.
Ainda me lembro de o meu pai perguntar se eu e a minha irmã
queríamos ir para a clandestinidade. Recusei porque os nossos
nomes estavam no passaporte do meu pai e, se alguém os tivesse
visto anteriormente, ele seria deportado para Auschwitz logo que
descobrissem que estávamos escondidas. Não sei se, na altura,
sabia o que era Auschwitz, mas tinha noção de que, se alguém
fosse preso e não estivesse junto de todos aqueles com quem vivia,
partiam do princípio de que os outros tinham passado à clandestinidade. E essa pessoa ia para um campo S (um campo de
punição). Disse ao meu pai:
— Não, vamos todos.
É provável que ainda sonhássemos com a hipótese de ficarmos juntos.
O que eu sei é que levaram a nossa empregada e ela não voltou. O meu pai já conseguira resgatá­‑la uma vez, mas, à segunda,
prenderam­‑na. Ficámos só os três — o meu pai, a minha irmã
mais nova e eu. Os nossos avós, que tinham vindo da Alemanha
para a Holanda, em 1938, viviam na casa ao lado.
Correu tudo bem até 20 de junho de 1943, quando aconteceu
a grande rusga, no sul de Amesterdão. Nesse dia, os alemães começaram a usar uma nova estratégia. Às 5h da manhã, enquanto
todos dormiam, bloquearam toda a parte sul da cidade. Foram
de porta em porta, tocaram e perguntaram:
— Vivem aqui judeus?
— Sim.
— Têm 15 minutos: levem uma mochila, ponham lá algumas
coisas e saiam depressa.
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Aquele era o nosso bairro, por isso também tivemos de ir.
O passaporte já não ajudava. Deram­‑nos um quarto de hora
e tivemos de ir com eles.
Às vezes, as pessoas perguntam­‑me: «Como é que foste com
eles dessa maneira?», «Porque é que não te defendeste?», ou «Porque
é que não disseste nada?» Isso era impossível. Havia centenas
de alemães com armas, e estávamos sozinhos e impotentes. E se
alguém fizesse alguma coisa, todos os outros eram severamente
punidos. Portanto, não podíamos reagir. Éramos levados em
camiões. Uma mulher alemã — uma vizinha que não era judia —
vivia no andar de baixo há meio ano. Gostava muito de mim e da
minha irmã. Dirigiu­‑se ao agente alemão e implorou­‑lhe:
—Não posso, ao menos, ficar com a mais pequena?
O homem gritou­‑lhe:
— A senhora não tem vergonha, enquanto cristã holandesa?
E ela disse:
— Oh, não… Sou cristã alemã e não tenho vergonha.
Depois, desmaiou.
Assim, fomos levados para Westerbrok. O meu pai acabou num
pavilhão muito grande. Eu e a minha irmã fomos postas num orfanato, onde, disseram elas, haveria mais comida. O meu pai conhecia
o diretor do orfanato de quando tínhamos estado na Alemanha.
A minha irmãzinha não ficou lá muito tempo. Adoeceu gravemente e teve de ser operada aos dois ouvidos. Esteve internada
no hospital quase todo o tempo que passámos em Westerbrok.
Eu trabalhei. As casas de banho ficavam lá fora e toda a gente
ficava feliz quando eu me voluntariava para as limpar. Ninguém
sabia porque é que eu era tão ávida por fazer aquilo. Mas, de vez
em quando, o meu pai conseguia lá ir e só quando eu estava a
limpá­‑las é que conseguia vê­‑lo por um momento. Era essa a razão
por que eu fazia aquele trabalho nojento.
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Na verdade, o orfanato era suportável. Havia professores
e ainda tínhamos aulas. Só lá estavam crianças filhas de judeus na
clandestinidade. Os miúdos tinham sido encontrados, mas os pais
não. Também acontecia o contrário — por vezes, os pais já tinham
ido para o campo e as crianças só eram descobertas mais tarde.
À terça e à sexta­‑feira, chegavam comboios, que tinham de
ser preenchidos com pessoas antes de seguirem para a Polónia.
Nós ainda tínhamos os documentos sul­‑americanos, o que nos
permitiu ir ficando.
Recordo­‑me da terrível noite de novembro em que anunciaram
que apenas as duas primeiras listas da Palestina (com os nomes das
pessoas que queriam ir para Israel) ainda estavam válidas. Todas
as pessoas das outras listas tiveram de partir nessa mesma noite.
O orfanato ficou vazio. Lembro­‑me de o rabino Vorst ter juntado
todas as crianças. Colocou um grande talit [xaile de oração] sobre
elas e abençoou­‑as. A maioria dos professores também foi, para ficar
junto dos miúdos. Foi horrível. Na sexta­‑feira à tarde, depois de o
comboio sair, as únicas que ainda lá estavam éramos eu, a minha
irmã, que continuava no hospital, e mais duas ou três crianças. Todos
os outros que constavam daquelas listas tinham desaparecido.
No dia 15 de fevereiro de 1944, nem os nossos documentos palestinianos, nem os nossos passaportes nos valeram mais.
No entanto, para nós, a grande diferença foi não termos sido enviados para Auschwitz. Se tivéssemos sido, eu não estaria aqui a falar
sobre isto. Quase todas as pessoas que foram levadas para lá no
princípio foram mortas.
Eu não sabia o que era Auschwitz. As pessoas falavam sobre
um Arbeitslager [campo de trabalho] no Leste. Nós íamos para um
Austauschlager [campo de troca]. Na altura, eu disse:
— Os alemães querem manter­‑nos vivos para nos trocarem
por soldados germânicos.
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No dia 15 de fevereiro de 1944, fomos transportados para
Bergen­‑Belsen. Esse campo era um pouco melhor. Porque é que
é que era melhor? Primeiro, éramos levados em carruagens de passageiros e não em compartimentos para gado. E depois, quando
chegávamos, não nos tiravam as roupas, nem separavam as famílias. O meu pai e a minha irmã ficaram comigo. Dormíamos em
sítios diferentes, mas podíamos ver­‑nos todas as noites. A via­
gem demorou dois ou três dias a chegar a Bergen­‑Belsen — não
me lembro com exatidão.
Já não sei se percebi logo o que significava estar num campo
de concentração, mas lembro­‑me muito bem de que, à chegava,
havia soldados alemães alinhados, com grandes cães ao lado. Até
hoje, tenho medo de cães. Não sei se foi essa a verdadeira causa,
mas quando alguém faz um comentário sobre isso, digo sempre:
— Se tivesses lá estado e visto aqueles cães, acredita que também terias medo.
Depois, tivemos de andar, andar, e andar ainda mais, até vermos um grande campo com arame farpado aqui e ali. Havia muitos campos distintos. Não sabíamos quem lá estava, nem de onde
tinham vindo. Vimos os outros pela primeira vez mais tarde,
quando fomos ao duche, que ficava perto da estação de comboios
— uma caminhada de meia ou uma hora. Nunca tivemos mais
contacto com eles.
Fomos para uma parte do campo praticamente nova, onde
havia, no máximo, 40 ou 45 judeus gregos. Tornaram­‑se, claro,
nos nossos chefes, porque já ali estavam há algum tempo. Distri­
buíam a comida e ficavam com todas os trabalhos importantes.
O médico era um judeu grego de Salónica. O campo chamava­‑se
Alballalager.
Nos primeiros dias, fomos separados, mas, depois, deixaram­
‑nos ficar juntos. No início, o meu pai teve de ir para um pavilhão
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de quarentena. As nossas roupas não nos foram tiradas — isso foi
uma das coisas boas deste campo. Em Bergen­‑Belsen, fazia muito
frio no inverno. Descobrimos isso rapidamente. Como fomos presos
em junho, não pensámos em levar roupas de inverno. Especial­
mente eu, uma miúda nova, que tivera de fazer a minha mala
sozinha. O que eu trouxe, ficou comigo.
A minha irmã andava com uma grande ligadura na cabeça
porque tinha sido operada em Westerbork. No primeiro dia que
passámos em Bergen­‑Belsen, fiquei com icterícia. A política dos
alemães era esta: quem estivesse doente tinha de ir para o hospital;
caso contrário, os restantes poderiam ser infetados. Eu não sabia
o que havia de fazer com a minha irmãzinha. O meu pai também estava confinado a outro pavilhão e eu não lha podia levar.
Ele tinha de trabalhar, e isso não teria resultado.
Portanto, só restava eu — e eu não sabia o que fazer. Esta situação mostrou­‑me que havia pessoas especiais no campo. Contei
a uma velhinha que estava num beco sem saída:
— Amanhã de manhã, tenho de ir para o hospital e a minha
irmã está doente.
Duas horas depois, apareceu uma mulher que disse:
— O meu nome é Abrahams. A Sra. Lange disse­‑me que esta­
vas aqui e não sabes o que fazer com a tua irmã. Tenho sete
filhos: entrega­‑ma e assim ficamos apenas com mais uma criança
pequena connosco.
Foi o que aconteceu. Na manhã seguinte, a filha dela, que
parecia ter a minha idade, veio e levou a pequenina com ela.
Entretanto, o meu pai conseguiu visitar­‑me. Permanecemos
junto daquela família até ao fim. Mantivemos a amizade até aos
dias de hoje.
Havia contagens todos os dias. Os alemães tinham medo de
que fugíssemos, apesar não haver sítio para onde pudéssemos ir.
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Para onde iríamos com uma grande Estrela de David na roupa,
sem dinheiro e sem nada? Era assim, a loucura dos alemães.
Tínhamos de ficar quatro ou cinco horas em filas para sermos
conferidos.
Um dia, olhámos para uma direção onde não havia pavilhões
e vimos que, de um momento para o outro, tinham lá surgido
tendas. Já estava bastante frio e nós não sabíamos quem lá estava
dentro. Dois ou três meses depois, houve temporais com vento
muito forte, e as tendas ficaram todas destruídas. Nesse mesmo
dia, recebemos uma ordem: as nossas camas, que eram beliches de
dois andares, foram levadas, e recebemos outras com três níveis.
Tínhamos de dormir duas a duas. Metade do campo foi esvaziado. Depois, construíram uma vedação de arame farpado no
meio do terreno, que taparam com palha para não conseguirmos ver o outro lado. Ainda assim, ficámos perto uns dos outros,
uma vez que o campo não era grande. Todas as pessoas das tendas
foram levadas para os pavilhões do outro lado da cerca. Apesar da
presença de guardas alemães nas altas torres de vigia, tentávamos
contactar com eles. Era, evidentemente, proibido falar com essas
pessoas e, se os alemães vissem ou ouvissem alguém a fazer isso,
abriam fogo. Por esse motivo, alguns de nós só iam à vedação de
noite tentar descobrir alguma coisa. Eu nunca fui, mas soubemos
que todos eles tinham vindo da Polónia — judeus e não­‑judeus.
Cerca de um mês depois, no início de fevereiro, quando ainda
havia neve no chão, uma das minhas conhecidas, uma velhota,
veio ter comigo.
— Sabes que há lá pessoas holandesas? Falei com a Sra. Van
Daan.
A mulher já a conhecia­‑a antes de vir para o campo, e disse­‑me
que a Anne estava ali, sabendo que eu conhecia a Anne.
— Vai até à vedação e tenta falar com ela.
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Como é óbvio, foi o que fiz. Nessa noite, fiquei junto à rede e
comecei a chamá­‑la. Por sorte, a Sra. Van Daan estava lá outra
vez. Perguntei­‑lhe:
— Pode chamar a Anne?
Ela disse:
— Sim, sim, espera um minuto, vou buscar a Anne. Não consigo trazer a Margot que está muito, muito doente, de cama.
Mas, naturalmente, eu estava mais interessada na Anne e espe­
rei alguns minutos na escuridão.
A Anne aproximou­‑se da vedação, mas não conseguia vê­‑la.
A cerca e a palha estavam entre nós duas. Não havia muita luz.
Talvez tenha visto a sombra dela. Não era a mesma. Pareceu­‑me
uma miúda desfeita. Provavelmente, eu também estava com essa
aparência, mas, mesmo assim, era terrível. Começou imediatamente a chorar e disse­‑me:
— Já não tenho pais.
Lembro­‑me disso com toda a clareza. Era terrivelmente triste.
Era­‑lhe impossível prever que as coisas pudessem ter­‑se passado
de outro modo. A Anne achava que o pai tinha sido gaseado;
no entanto, o Sr. Frank tinha um ar muito jovem e saudável e, como
os alemães não sabiam a idade de quem queriam gasear, escolhiam
as pessoas com base na aparência. Quem parecesse saudável tinha
de trabalhar. Outro, até mais jovem, mas que estivesse doente ou
com mau aspeto, ia diretamente para a câmara de gás.
Penso sempre que se a Anne soubesse que o pai ainda estava
vivo, talvez tivesse conseguido arranjar forças para sobreviver.
Ela morreu muito pouco tempo antes de tudo terminar — apenas
uns dias antes [da libertação]. Ou, então, se calhar, estava tudo
predestinado.
Assim, ali ficámos — duas miúdas —, a chorar. Contei­‑lhe o
que acontecera à minha mãe. Ela não tinha sabido disso — tinha
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sabido apenas que o bebé morrera. Falei­‑lhe da minha irmãzinha e disse­‑lhe que o meu pai estava no hospital. Duas semanas
depois, o meu pai morreu; já estava muito doente. Ela contou­‑me
que a Margot se encontrava muito mal e falou­‑me acerca da clandestinidade, sobre a qual eu tinha muita curiosidade, claro.
— Mas o que é que fazes aqui? Não devias estar na Suíça?
Foi então que ela me contou o que se passara. Nunca tinham
chegado a ir para a Suíça. Tinham dito isso para toda a gente
pensar que eles estavam em casa da sua avó.
E, depois, confessou:
— Não temos o que comer aqui, quase nada, e passamos frio.
Não temos roupas, eu emagreci muito e raparam­‑me o cabelo.
Isso foi terrível para ela. A Anne tivera sempre um grande orgulho no cabelo. Podia ter crescido um pouco, entretanto, mas não
era, com certeza, o seu longo cabelo de antes, que ela enrolava descontraidamente à volta dos dedos. Elas estavam muito pior do que
nós. Eu disse­‑lhe:
— Eles não nos tiraram as roupas.
Foi assim o nosso primeiro encontro.
Então, pela primeira vez — estávamos no campo há mais de
um ano: chegámos em fevereiro de 1944 e estávamos em fevereiro
de 1945 —, recebemos uma encomenda da Cruz Vermelha para
mim, para a minha irmã e para o meu pai. Era um pacote muito
pequeno, do tamanho de um livro, com knäckebrot [bolachas de água
e sal escandinavas] e alguns bolos secos. Não imagina como eram
poucas. O meu filho diz sempre:
— Mas, mãe, isso foi mesmo uma coisa muito especial.
Mas nessa altura, guardávamos tudo: meia bolacha, uma meia,
uma luva — qualquer coisa que nos desse um bocadinho de calor
ou que desse para comer. Os meus amigos também me deram
algumas coisas para a Anne. Era­‑me impossível passar um pacote
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grande pela vedação de arame farpado; não o tinha, claro, mas
também não teria sido possível, caso tivesse.
Combinámos encontrar­‑nos às 8h da noite seguinte — creio
que ainda tinha um relógio. E, de facto, consegui atirar o pacote
à Anne. Só que ouvi­‑a gritar e perguntei:
— O que é que aconteceu?
E a Anne respondeu:
— Oh, uma mulher que estava ao meu lado apanhou­‑o e diz
que não mo dá.
Depois começou a gritar.
Tentei acalmá­‑la um pouco e disse­‑lhe:
— Vou tentar de novo, mas não sei se consigo.
Marcámos novo encontro para daí a dois ou três dias e eu
consegui mesmo entregar­‑lhe outra embalagem. Ela apanhou-a.
Isso foi o mais importante.
Depois destes três ou quatro encontros junto ao arame far­
pado de Bergen­‑Belsen, nunca mais a vi. As pessoas do setor da
Anne foram transferidas para outra zona do campo. Isto passou­
‑se no final de fevereiro.
Foi a última vez que vi a Anne viva e que falei com ela.
Entretanto, o meu pai morreu, a 25 de fevereiro de 1945, e eu
não saí durante alguns dias. Quando a procurei de novo, descobri que aquele setor estava vazio.
Nós também estávamos para ser trocados. Na noite em que o
meu pai morreu, um dos médicos veio dizer­‑nos quem podia e não
podia ir. Foi notável, na verdade, ele ver que o meu pai não estava
em condições de partir, mas, apesar disso, escolhê­‑lo, possivelmente porque eu disse que, de outra maneira, não iria. Vestiram­‑
-no com roupas decentes. A troca acabou por não acontecer.
O meu pai morreu com aquelas roupas. Talvez soubesse ou tivesse
esperança de que as filhas pudessem sair. Isso nunca aconteceu.
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Só um grupo foi trocado, e esses chegaram, de facto, à Palestina.
Houve um outro grupo a ser trocado, no início de 1945, mas ficou
em Biberach até à libertação.
No fim de março, a minha avó morreu e, no início de abril,
tivemos de evacuar totalmente o campo. Só ficaram para trás os
que estavam em estado crítico. Eu tinha tifo. Estava doente, mas
não à beira da morte, por isso, obrigaram­‑me a ir. Ainda me lembro de termos de passar uma noite inteira ao relento à espera que
os comboios chegassem, até que apareceu um comboio enorme.
Só havia uma carruagem para passageiros; era lá que vinham os
alemães — 20 tropas de escolta. E, depois, havia não sei bem
quantas — 40 ou 50 carruagens de transporte de gado, onde puseram as pessoas do nosso campo e de outro, que existia ao lado do
nosso, destinado a judeus húngaros.
Esse comboio dirigia­‑se para uma grande câmara de gás, provavelmente Theresienstadt. Nunca lá chegámos. A Alemanha estava
na última etapa de uma guerra terrível e a composição não conseguiu avançar. Havia fogo cruzado vindo de todos os lados e tivemos
de sair para nos deitarmos no chão. O comboio não podia seguir
para lado nenhum, muito menos para o seu destino.
Não havia nada para comer. Ainda me recordo de, um dia,
um soldado alemão dar uma bolacha à minha irmã. Pensei que ele
fosse Deus, em carne e osso.
Havia também um comboio de soldados alemães. Eu tinha um
anel da minha avó e outro da minha mãe, e quatro outras famí­
lias entregaram os seus anéis. Por todos eles, seis ou oito, os soldados alemães deram­‑nos um pequeno coelho. Tem de compreender
que não tínhamos nada para comer. Além do mais, se tivéssemos
morrido, não teríamos precisado daqueles anéis para nada. Assim,
uma mulher cozinhou o coelho numa fogueira e pudemos comer
alguma coisa.
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De resto, não havia comida no comboio. Então, os alemães
disseram:
— Quem estiver suficientemente forte pode ir pedir comida
aos camponeses alemães que vivem aqui perto.
Uma velhinha ficou com a minha irmã para eu conseguir ir
revezando­‑me com o filho dela.
Era muito arriscado afastarmo­‑nos até às vilas em busca de
alimentos porque nunca sabíamos quando o comboio ia partir.
O irmão de uma das minhas amigas perdeu­‑o. Foi buscar comida
e, quando regressou, o comboio tinha saído. Foi resgatado, por verdadeiro milagre. Eu não podia correr esse risco, estava sozinha com
a minha irmã, de quem tinha de tomar conta. Comia muito pouco
porque só podia ir à procura de mantimentos perto do caminho
de ferro.
Isto durou uns dez dias. Certa manhã, acordámos e vimos os
alemães com bandeiras brancas nas mãos. Não percebemos o que
se passava. O que é que tinha acontecido? Os russos chegaram
e a primeira coisa que fizeram foi prender os alemães. Não sabiam
exatamente o que fazer connosco. Deve ter sido uma visão horrível,
todos aqueles judeus e doentes, magros como as linhas do comboio.
Havia duas aldeias naquela área, Tröbitz e Schilda (perto de
Frankfurt an der Oder), ou talvez mais, mas só me lembro dessas
duas. Foi a nossa sorte. Os russos disseram:
— Vão até lá, tirem os alemães daquelas casas, podem viver lá.
Mas eu era só uma jovem com uma irmã ainda mais nova:
não conseguia tirar alemães nenhuns da casa deles. Quando lá
cheguei, já estava tudo cheio. Eu ainda estava com aquela velhinha, o filho dela, e duas outras famílias.
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Então, alguém nos indicou outra vila onde os habitantes tinham
içado bandeiras brancas. Portanto, não era preciso expulsar ninguém de casa — tínhamos, simplesmente, de encontrar uma vazia.
Descobrimos uma. Ficava a pouco mais de um quilómetro dali,
e ainda me recordo que era a casa do presidente da Câmara.
Na primeira noite de liberdade, dormi na cama da filha dele.
Ela deixara um vestido que me servia. O teto era verde claro, com
suásticas verdes escuras. Portanto, na primeira noite em liber­
dade, dormi com suásticas sobre a cabeça, mas virei­‑lhes as costas.
A população da vila — lavradores — tinha muita comida.
No entanto, o presidente da Câmara não, e, por isso, não havia
grande coisa na despensa. Fomos pedir aos russos, apesar de
termos algum medo. Eles deram­‑nos cartões de racionamento,
que eu ainda guardo, para irmos buscar leite, pão e salsichas
a uma loja.
Tentámos sempre manter­‑nos em contacto com a outra vila.
Enquanto isso, os russos deram listas com os nossos nomes aos
americanos. Não sei muito mais. Julgo que foi no dia 15 de
junho que os americanos receberam autorização para nos levar
em camiões. Tiraram­‑nos da zona russa e transportaram­‑nos
para Leipzig. Ficámos dois ou três dias numa escola, e, depois,
apanhámos um maravilhoso comboio americano para voltar à
fronteira holandesa. Deram­‑nos de comer, mas tivemos de ser
muito cuidadosos para não exagerar — estávamos todos demasiado fracos. Foi a única vez na minha vida que comi carne de
porco. Era enlatada.
Na fronteira, fomos para um castelo bonito e grande — esqueci­
‑me do nome —, mas estava cheio de gente. Perguntámos quem
eram e descobrimos que eram membros da NSB [organização
nazi holandesa que colaborara com os alemães] que os holandeses queriam mandar para a Alemanha. Tiveram de nos receber
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quando chegámos da Alemanha. É claro que isso não foi agradável, mas não lhes falámos e, um dia depois, foram levados
embora.
Em Maastricht, fomos examinados e descobriram qualquer
coisa nos meus pulmões. Não me deixaram seguir. Tive de ir ao
hospital de imediato. Lá, havia umas freiras católicas muito atenciosas e um médico indiano incrivelmente simpático. Fiquei lá de
1 de julho até setembro.
Tive uma grande surpresa em Maastricht. Um dia, disseram­
‑me que tinha um visitante. Vesti­‑me muito bem com coisas que
os holandeses me tinham dado. Tínhamos sido adotadas por
algumas famílias cristãs: ofereceram­‑nos roupas e trouxeram­‑nos
guloseimas — eram muito boas pessoas. E, de repente, quem
é que estava à minha frente? O Sr. Frank! Fiquei tão contente.
Mal pude esperar para lhe dizer:
— A sua filha está viva.
E disse­‑lhe, mas ele respondeu:
— Não.
Ele já sabia que a Anne não tinha sobrevivido. Eu não sabia;
da última vez que a vira, ela estava viva.
O Sr. Frank vira os nossos nomes — o meu e o da minha
irmã — numa lista. A minha irmã já estava num orfanato em
Laren e ele tinha ido lá à procura dela. Contou­‑me tudo o que
lhe acontecera.
Começámos a pensar no que devíamos fazer. A mãe do Sr. Frank
vivia na Suíça, ele conhecia o meu tio que lá morava e entrara em
contacto com ele — as coisas não eram como agora. O serviço
postal ainda não estava a funcionar; o Sr. Frank levou seis ou
oito horas para chegar a Maastricht, vindo de Amesterdão.
Daí em diante, ele tornou­‑se o meu pai; tomava conta de tudo.
Em setembro, cheguei a Amesterdão, e o Sr. Frank tratou dos
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documentos necessários para eu ir para a Suíça. Sei a data exata:
5 de dezembro. Uso um colar com uma medalha: de um lado está
a rainha e, do outro, «5 de dezembro de 1945», mandado gravar
pelo Sr. Frank. Foi nesse dia que ele nos levou, a mim, à minha
irmã, a uma amiga e à irmã dela, para a Suíça. Levou­‑nos pessoalmente ao avião. O meu tio veio de Genebra buscar­‑nos a Zurique,
e o Sr. Frank foi visitar a mãe.
Na Suíça, comecei por ir para um sanatório, mas o meu
sonho era mudar­‑me para a Palestina; toda a minha educação
fora virada para isso. Nessa altura, ninguém sonhava com um
estado judaico. Ou melhor, toda a gente sonhava com isso, mas
não acreditávamos que fosse possível. Todos os meus esforços
eram dedicados a pensar: Como é que posso ir lá parar tão rápido
quanto possível?
Mas, nesse tempo, não podíamos, simplesmente, viajar para
a Palestina, uma vez que os ingleses deixavam entrar muito poucos judeus. O meu tio não concordava com uma entrada ilegal
no país. Costumava dizer:
— Já passaste por demasiado. Espera até te conseguirmos um
certificado (era assim que se chamava).
Frequentei a escola na Suíça durante cerca de um ano, até rece­
ber o certificado, e voltei a ver o Sr. Frank. Eu visitava a mãe dele com
frequência — vivíamos ambas em Basileia. Sempre que ele vinha
visitá­‑la, eu ia ter com ele.
Quis voltar uma última vez a Amesterdão, saudável e bem,
antes de ir para Israel. Queria ver tudo — a escola, o sítio onde
vivemos e, claro, o Sr. Frank. Ele foi comigo visitar uma amiga da
nossa turma que ainda estava muito doente. É claro que me mantive em contacto com ele depois de partir para Israel — sempre.
Ele era o Tio Otto. Continuámos a correspondermo­‑nos nos aniversários e em cada Ano Novo.
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Em 1963, foi a Israel pela primeira vez e conheceu os meus
filhos. Lembro­‑me de que, a família toda quis ir ao hotel dele.
Mas ele disse:
— Oh, não! Quero ver os teus filhos, não quero? As crianças
têm de ser vistas no seu próprio ambiente.
Foi tão simpático. Depois, apareceu em nossa casa, pegou nas
crianças ao colo, brincou com elas. Os miúdos adoraram­‑no por
causa da sua personalidade extraordinária.
Mantivemo­‑nos sempre em contacto com Otto Frank e a sua
segunda mulher, Fritzi. Ele voltou a ser feliz. Fui sempre assaltada por uma pergunta: como é que se vive assim, só no passado?
Aparentemente, ele conseguiu pôr isso de lado. Não creio que
fosse um homem destruído no fim da vida.
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