Após assistirem aos filmes A vida de David Gale, Cinzas de Ângela

Transcrição

Após assistirem aos filmes A vida de David Gale, Cinzas de Ângela
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Ricardo Sinay Neves
Após assistirem aos filmes A vida de David Gale, Cinzas de Ângela e Coração satânico,
Ricardo Sinay Neves (médico, endocrinologista e psicanalista) e Jorge Nóvoa conversaram,
descontraidamente, sobre o cineasta Alan Parker.
Ricardo Neves: Eu só trabalho sobre...
Jorge Nóvoa: Pressão?
RN: Não, sobre questões.
JN: Ah! Tá!
RN: Se as questões não vêm, a idéia não vem, porque eu deixo funcionar livremente.
JN: Por que você gostou mais do Ângela que do Coração satânico e mesmo que de David
Gale?
RN: Não, não...
JN: David Gale você gostou mais?
RN: Eu gostei da forma como Alan Parker trabalha. Eu não conhecia... Eu acho que você ser
analista é estar vivendo muitas vezes filmes seqüenciados. Então, primeiramente vem a
memória daqueles seriados que passavam quando eu era criança uma vez por semana, ou
que eu via os que meus pais tinham assistido, ia no cinema, na televisão também passava.
Ai tem aquela coisa do Zorro, quase ia cair do precipício, aí depois mudavam a cena e não
chegava a cair, e continuava adiante. Então é como se fosse um vídeo clip. Só que um vídeo
clip sempre de um tema novo, mas um enredo que você desconhece, em parte. Então ser
psicanalista é você continuar no cinema, continuar numa seqüência dessas que muda a cada
40 minutos, 30, 50 e com a questão: a gente não sabe como o filme vai rodar. Então, pra
mim, sempre foi uma dificuldade reler um livro ou assistir um filme mais de uma vez, porque
eu já conhecia o enredo. Foi um exercício pra mim assistir duas vezes David Gale... porque a
trama me interessa muito; se eu quiser fazer um estudo da composição – para mim – de
cada uma das pessoas, eu vou fazer. Não é que seja, mas é a minha leitura daquele
momento que vai mudar no dia seguinte. Porque como a verdade e a memória são sempre
construções, cada momento que você é acessado por uma questão, você vai interpretar de
outra forma. A verdade é sempre uma verdade parcial, uma verdade do momento do
observador... e bom, essa é a questão até agora!
JN: Você acha que o Alan Parker .... finalmente o que você conseguiu ver dos três filmes?
RN: É genial ele.
JN: Você acha que ele é...
RN: Não sei se é ele, o nome está lá... não sei nem como é esse cara! Vamos imaginar até
que ele exista!
JN: Ele existe! (risos)
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RN: Sim, vamos imaginar então que ele exista. Porque eu posso imaginar que aquilo ali tem
o nome de Alan Parker e ele é o cara que é, como foi Thomas Edson. Tesla foi um cara muito
mais importante para energia do que o Edson. O Edson destrói de certa forma, quer dizer, o
Tesla que permite ser destruído porque ele era muito mais cientista do que um cara ligado à
negócio, à compreensão econômica do mundo. É preciso que o cara seja um grande
economista para administrar qualquer projeto. O dinheiro é mais importante ou tão
importante quanto a idéia. O Alan Parker pode ser o cara que imagina e que monta um cara
genial para o cara roteiro, um cara genial para outra coisa, e ele consegue fazer o cardápio
funcionar muito bem. Então eu não sei como a experiência e a leitura de historias me deu
essa compreensão para dizer se ele é ou não é um cineasta. Aquela pessoa, aquela entidade,
aquele grupo que aparece esse nome é genial. Eu acho que é um ponto importante para se
discutir.
JN: É, com certeza. Cinema é um grupo. Os soviéticos foram os primeiros. Eisenstein e
Vertov foram os primeiros a bater nessa tecla de que cinema é uma arte coletiva.
RN: Você tem um somatório vetorial, você tem o somatório de idéias, mas tem alguém que
de certa forma cria: olha isso aqui é para acontecer e eu vou criar o mecanismo que vai
viabilizar. Se esse grupo põe esse Alan Parker ou se é ele mesmo que faz isso, eu não sei.
Por isso que tenho essa dificuldade, o rigor de dizer “é ele”. Eu não me sinto autorizado por
desconhecer a dizer que é. Sei que o que vejo da obra é muito bom. Como os pintores
também. Salvador Dali e tantos outros que tinham verdadeiros ateliês de produção em série,
que o cara dava um geral. Como é que você vai dar o valor do ato criativo, e a quem vai
caber o reconhecimento. Então isso vai da arte ao futebol ..... Então quem é mais importante
é quem faz o gol ou o goleiro que evita que a bola entre? Ou o treinador? Quer dizer é difícil
você saber realmente. Esse mito daquele que faz é uma coisa....
JN: Sim, mas me fale aí do filme, quer dizer de A vida de David Gale. Afinal o que lhe
impacta mais nesse filme?
RN: Você fala uma coisa muito legal: fale do filme, que seria fale do objeto. Sobre o objeto
eu não posso falar, posso falar do que eu percebo hoje como lembrança que me afeta do
passado, da experiência que eu tive. E eu posso falar dessa lembrança que está chegando
hoje. O ontem e a de amanhã são desconhecidos. O que eu vivi e estou vivendo mexe no
meu cérebro de uma forma tal que agora eu consiga só falar de uma posição. Fazendo uma
varredura do que me vem agora, é uma história que, quando é apresentada ela já foi toda
feita, já foi toda construída com a intencionalidade daquele que constrói o projeto e você é
atingido por essa intencionalidade. O início do filme começa, assim, com o fim, a pessoa
correndo, para você ter bem o sentido do que acontece. Depois vai para um momento de
onde vem uma aula expositiva e fala de uma questão central na filosofia, ele vai falando
sobre um pouco de psicanálise. Não é nem psicanálise, porque psicanálise nada mais é do
que uma leitura filosófica da subjetividade, do como é que eu me defronto com o real. Eu
sendo quem eu sou como eu vou lidar com o real no sentido do que é. Do que é
inapreensível, mas que é o que sensibiliza a gente e que ele coloca a questão. Então, eu
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acho que se a gente vai lá pra trás, três pontos vem para mim, um do ponto da filosofia
budista, que a máxima da sabedoria é você não desejar, porque quando você deseja você
tem tudo, está em plenitude; o segundo ponto que está dizendo a mesma coisa, que a gente
já vai para os existencialistas, com Sartre que diz que o inferno é o outro. O inferno não é o
outro, o inferno é a minha pretensão que eu não obtenho com o outro, com o mundo, não é?
E ai Fernando Pessoa que também diz a mesma coisa, mais ou menos assim, se você deseja
pouco você tem muito se não deseja nada tem de tudo. (risos)
JN: Sim, e sobre A vida de David Gale?
RN: Sim, sobre o desejo que o cara diz que ele tem. Bom, primeiro quando se parte desse
ponto filosófico onde ele está, fala de ambição, é um filme que fala sobre a ambição,
essencialmente. Aquele grupo tem uma ambição e essa ambição é medida, eu poderia dizer
ambição desmedida, sem medida. Porque se a gente pensar que a morte é uma medida;
mas não é. Boa parte das pessoas faz tudo para a morte. As pessoas ganham dinheiro para
ficarem ricas, escrevem para ficarem famosas porque é aquilo que as põe nessa posição. Eu
me lembro de uma pessoa que o maior sonho dela era ter numa praça pública o nome dela
escrito em alguma coisa... uma estátua, alguma coisa. Eu fiquei olhando, poxa vida que
projeto! Mas, é um projeto de uma pessoa. Todos os projetos que colocam as pessoas a
navegar, valem. Ai volta... viver não é preciso, navegar que é preciso, e volta e dá tudo
mesmo. Que é a questão dessa ambição que percorre a gente enquanto ser humano.
Queremos o que não temos, queremos o que imaginamos. E não nos fartamos só com a
imaginação ou só com a não ambição. O Alan Paker, quer dizer o David Gale fala isso.
Depois ele diz, essa questão de você ter um ideal que nunca acabe. É isso que norteia, que
impede a pessoa de não cair em um vazio do “estou satisfeito”; ou seja eu preciso criar uma
insatisfação. Uma coisa que me de sentido até a minha morte porque senão minha vida fica
sem sentido. E de certa forma eu acho que esse projeto é bem realizado na historia do filme.
Então se consegue descaracterizar o sistema, se mostrar que o sistema falhou mesmo. Se
mostrar que ele falha porque ele foi iludido. Ele é um sistema humano e como todo sistema
humano é falível. Você não consegue criar todas as possibilidades, a principio, que o sistema
vai ser inviolável, que sistema vai ser o burlado. E se monta um projeto de uma burla. E
cada uma dessas pessoas realiza com muito prazer aquilo que se propõe. É um projeto de
realizações, assim, imagino eu, as pessoas mais frustradas são as que não participam desse
projeto. É a moça que vai criar a situação da violência, sexual e imaginária, que ela violenta
o cara e o cara cede a uma violentação de um desejo dela e ela termina...
JN: A estudante?
RN: É a estudante. Ela faz, mas depois de alguma forma ela manda uma desculpa. Aquilo
não deve ter feio tão bem. Então nesse sentido ela é uma perdedora desse jogo que ela faz e
se arrepende. Ele não, ele ganha. A mulher que topa fazer o suicídio, ela é uma ganhadora
do projeto dela. Ela executa o projeto até o fim. O cara que ajuda a filmagem, executa até o
fim. Tanto que ele vai entregar ao advogado, ele é bem sucedido, ele executa até o fim. Ele
executa até o fim o que ele quer: provar a questão do sistema que é furado, que é injusto,
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que pode ser injusto. Na verdade é uma eutanásia; a moça tem um câncer, ela vai morrer e
ela opta por um sentido, para um grande projeto da vida dela... e faz. Ela faz, o outro faz,
ele faz. Agora quem é que vai ter que administrar a história? A ex-mulher dele, a ex-aluna, a
repórter e o auxiliar da repórter. Que ela tem no fim a verdade do que ele montou e como
ele manipula o jornal, a repórter; ele, o advogado e aquele grupo manipulam todos. Então é
uma coisa brilhante. É uma operação para aquele grupo extremamente bem sucedida. Como
alguém que imagine que eu quero ser um homem bomba, uma mulher bomba chegar dentro
de um banco e explodir. Não estou olhando ética e moralmente a questão, mas sim em
termos de lógica. Se a minha lógica é: vou plantar um grão de feijão e vai nascer um pé de
feijão com 30 ou 40 grãos, eu tive sucesso de reprodução de grão de feijão. O sucesso foi
agora, eu estou falando do que é moral, do que é, enfim.
JN: Mas você acha que a vida dele começa a desabar a partir do momento que...
RN: o que é desabar?
JN: desabar no sentido de... Bom, ele era um professor bem sucedido, tinha uma vida mais
ou menos estabilizada, tinha mulher, filho, uma casa, tinha um posto de trabalho na
universidade, tinha prestígio como professor, etc, etc. E ai uma aluna diz para ele que...
RN: Meu “tico e teco” já entraram em crise aqui com tantas respostas.
JN: Como é?
RN: Tico e teco já entraram em crise com tantas respostas que eu posso lhe dar!
JN: Quem é tico e teco?
RN: Meus dois neurônios!
(muitos risos e deboches)
RN: Eu desejo que essa parte conste na entrevista! (mais risos) Tico e teco são os dois
neurônios. O pessoal diz que a mulher loira, só tem dois neurônios, um tico e um teco. Se
entrar em crise não funciona (risos)
JN: Isso é bem pejorativo
RN: É o espírito judaico que habita o ambiente
RN: Então vamos lá. Pegando o que você disse: você falou de posição bem sucedida, de
importância. Veja só, pegando a questão da filosofia o que é uma vida com um sentido? O
que é uma vida bem sucedida? Filosoficamente se você pegar pela história dele, uma vida
bem sucedida – que tem aquela questão daquela aula inicial, e que eu acho que é brilhante
quem constrói o enredo filosófico da coisa – por que ele diz que o sentido da vida é ter um
objetivo que possa por a uma distância que você leve até o fim da sua vida para executar.
Que lhe dê um sentido para sua existência. Então a vida dele não era boa, a vida dele era
uma merda! A mulher que ele imaginariamente desejava, a mulher tinha outro. Então ele
vivia a crise de saber que a mulher tinha um amante na Europa. E que ele diz: poxa, ela ta
lá com ele nesse lugar, mas pode estar no outro. Ele tinha, me parece, um caso com aquela
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professora que cobra uma certa separação dele. Mas ela estava morrendo, ela tinha um
câncer, ela tinha um projeto de concluir a vida dela, naquele projeto de...
JN: Convencer ele a participar do...
RN: Não ele, acho que uma parte ele, mas convencer que não era possível a pena de morte.
A pena de morte era a presunção de conhecimento impossível de ser verdadeira; ou seja, de
trazer o humano para o limite. E que a lei vai estar, a lei humana pode estar totalmente
injusta. Ai vem uma coisa que eu acho interessante. Em determinado momento você
pergunta a uma pessoa se ela quer uma herança e vai ser dividida. E perguntam se ela quer
que seja dividida na lei dos homens ou na lei de deus. A pessoa diz eu quero que seja na lei
de deus. Então está bom, nos temos aqui trezentas vacas para dividir e são seis pessoas.
Então você vai ter 250 vacas, você vai ter 30, você não vai ter nenhuma, você vai ter duas e
você vai ter o que sobrou. A lei humana é que tenta dar partes iguais para todos. Então a
questão é do ponto que você interpreta. Nesse sentido, eu vejo que ele não tinha uma vida
boa, ele tinha uma vida infeliz, muito frustrada e que aquilo ali, aquela situação trazia uma
certa importância, reconhecimento, afeto. Sei lá o que! Mas, tem muito mais sentido para ele
morrer, naquela situação, tanto que ele mantém aquele projeto desde sempre. Quando tem
a cena que ele vai transar com ela e depois ela se suicida, provavelmente naquela noite eles
montam o enredo para no dia seguinte haver o suicídio, ou logo depois. E que ele tinha
transado, então tinha o esperma para ser identificado. Então tudo aquilo ali, e que tem a
idéia do assassinato, a pessoa engole a chave, que ele já tinha escrito, que é a forma da
pessoa morrer. Então todo o indício para incriminá-lo de uma forma emocionante que as
pessoas vão pelo afeto, é você o assassino e vai a pena de morte. E ele faz a atitude do
silêncio de permitir que o enredo que ele programa seja seguido até o fim. Então ele tem a
realização de um projeto e de uma eficiência, sendo que a maior eficiência se completa com
a morte dele sendo desvendado que aquilo... não é? Antes a vida era muito ruim. Era muito
pouco. Era muito frustrante. Então é uma saída de suicídio brilhante. Não que eu pense que
o suicida deve ser aclamado ou estimulado, mas é um brilhantismo a execução do projeto.
JN: O projeto dá sentido, a morte inevitável real daquela militante.
RN: A morte é inevitável para todos, a questão é de tempo.
JN: Pois é, mas é exatamente isso, a morte imediata, quase imediata dela, porque ela estava
com uma leucemia avançada.
RN: Uma leucemia sem retorno, o que seria uma morte horrível. Ela morre rápido. Mas ela
morre com a execução de um projeto. Ela dá sentido para a morte, para o projeto que ela
estava vivendo ou viveu. Como o mártir que vai lutar sabendo que vai morrer. Acho que na
guerra, tem alguns exemplos nesse sentido de ideologia, “vou lá e vou fazer”. Acho que os
suicidas todos aí, os homens bombas...
JN: Os kamikazes.
RN: É um projeto assim semelhante. Mais refinado, mais instigante...
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JN: Mas você consegue observar... na verdade a gente coloca o Alan Parker no projeto desse
numero 12 da revista como sendo um dos exemplos de pensadores da crise da modernidade,
do mundo ocidental, da modernidade capitalista...
RN: Por que você fala isso?
JN: Não, a gente não fala. A gente concebe e a gente executa! (risos)
RN: Sim agora eu quero compreender a sustentação teórica disso ai!
JN: E a partir daí a gente acha que ele é um dos maiores pensadores exatamente dessa
crise.
RN: Qual é a crise Jorge?
JN: A crise de uma época. A crise que estamos vivendo alem da crise econômica, nós
estamos falando de uma crise de época, ou seja, nós estamos falando de uma encruzilhada;
nós temos algumas possibilidades, nós temos...
RN: Nós estamos, ou na minha visão nós estamos?
JN: Pode ser...
RN: Tem uma diferença radical!
JN: Eu não quero ter a razão a qualquer custa! (risos) E ai ele é um desses pensadores como
Kinoti que é um inglês também ...
RN: Por que você pensa isso? Você não pode pensar que ele é só um artista se divertindo
para passar o tempo até a morte?
JN: Bom, tudo bem. Mas aí digamos que...
RN: Ou pode ser, isso pode sair na entrevista, não pode?
JN: Pode!
RN: Quer dizer, como reflexão, assim...
JN: Como uma reflexão, um artista se divertindo...
RN: É quase dizer que não há relação sexual! É serio Jorge, porque a relação tem que ter o
outro.
JN: Bom, a gente enveredou para uma discussão difícil de ser resolvida. Mas, o que eu acho
é que a gente não pode negar que ele faz uma reflexão sobre esse mundo.
RN: Não sei. Ele faz uma apresentação belíssima de histórias, de imagens. Pelo menos do
pouco que eu vi – que foram esses três – a beleza plástica é impressionante. O que ele joga
de paisagem, o que ele joga do que você ver, é muito bonito.
JN: Você vê isso também em Coração satânico?
RN: Vejo!
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JN: Afinal qual é o sentido, o que é a história, o enredo, digamos assim, imediato já que
você acha que no fundo, no fundo o que ele está fazendo é divertimento. Na sua cabeça você
imagina que ele é um artista que se diverte com aquilo.
RN: Ou tenta divertir. Há controvérsias, porque você teria que pensar que você é dono do
seu desejo quando na verdade você não é dono do seu desejo.
JN: Mas, será que não dá para você se decidir não? Porque você disse que artista não é um
pensador. (risos)
RN: O Alan Parker fez isso, o Alan Parker não, o David Gale. E ele deu conta disso. No
Coração satânico existindo aquele que cobra, representado na nossa cultura pelo diabo.
Aquele que cobra aquilo que lhe é devido. Ou seja, o único ético ali é o diabo. Ele não cobra
mais do que lhe é devido, ele vai querer cobrar o que é devido. Assim, há toda uma injustiça
com o cara que está ali apresentando, porque ele não escolheu. O que não escolheu foi o
que se lenhou. A filha não escolheu ter sido, teoricamente, ter sido gerada, e por ai vai. Mas
você também não escolhe o seu desejo, você não é dono dele. O desejo irrompe em você e o
que você escolhe é, o que você pode tentar escolher é a ética que você escolhe se você tem
uma reflexão, geralmente o humano não tem essa reflexão, para dizer se vai seguir ou não o
desejo. Apesar de você saber que aqui é um local de muito divertimento! Consultório de
psicanálise para mim é um local que você trabalha com o desejo de vida, que você pode
chamar, do Eros. E que você vai dizer: “pô com tantas oportunidades como eu vou nessa
vida até a morte, que é inevitável, aproveitar da melhor forma”. Eu não imagino que a
psicanálise possa ser diferente disso. Já que a morte é certa, como eu faço para viver da
melhor forma ate lá? Quais são os instrumentos que eu vou trabalhar da minha ambição, e ai
volta ao filme, porque esse filme é de uma realização de uma ambição. Alias, nesses três
filmes ele trata de ambição. Ele trata da frustração e da realização da ambição. Se você
pegar Coração satânico é a realização de uma ambição: eu quero o meu pagamento e eu vou
fazer com que ele ocorra do jeito que eu acho que ele deve ser. Em David Gale ele tem, ele
realiza a ambição dele e o grupo realiza a ambição frente a outro grupo, mas realiza, de uma
forma muito eficiente. Nas Cinzas de Ângela, eu não sei nem quem é Ângela...
JN: eu acho que é a filhinha dele que morre, que eles são obrigados a enterrar naquela
situação de terem saído de onde estavam, de não poder mais morar no local... Eles têm que
partir em pleno inverno. Mas na verdade, quando você diz assim: sabendo que a vida é
assim, o que eu posso fazer para viver da melhor maneira possível o tempo que eu tenho de
vida. Na verdade é essa exatamente a questão que o Alan Parker se coloca. Só que para...
RN: Como você sabe disso, onde ele diz isso?
JN: Eu sei tanto quanto você!!!
RN: Não, tudo bem! É porque você podia ter uma informação que eu não sabia. (risos) Isso
vai sair na entrevista?
JN: O único que tinha ética era o diabo.
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RN: Nesse sentido, ele tem uma posição. Porque ética é uma coerência entre lógica e
atitude. Ele não expõe a ética dele até o fim do filme. Mas é uma coerência entre a atitude e
o discurso.
JN: Para um psicanalista, você está falando de um ponto de vista bem filosófico. Do ponto de
vista psicanalista o personagem do Coração Satânico é um esquizofrênico? É um cara que
vive duas personalidades, ou mais, sei lá?!?
RN: Eu acho que a psicanálise não trabalha com a idéia de esquizofrenia.
JN: Esquizofrênica é bem psiquiátrica?
RN: Eu acho. Essas categorias...
JN: ... são rígidas
RN: O universo é complexo. É preciso você ter uma ordenação mínima do que significa uma
palavra no dicionário. Mesmo assim essa palavra tem outros significados dependendo do
contexto. Então volta a questão da verdade, e do que é o objeto, do que é observador. Ai
você vai para a questão que em psicanálise nós.... o pouco que eu conheço de Lacan... o que
é real o que é a realidade. O real é o todo, é o inapreensível. E é evidente, a gente não está
aprendendo as ondas eletromagnéticas, as ondas de TV que passam por aqui, então.....
nosso instrumento de leitura do universo é muito limitado. Aos nossos sensórios, recursos
outros, microscópios e essas coisas ai... então nesse sentido, a minha forma, as minhas
múltiplas formas de interpretação que tenho sobre um objeto determinado. Para simplificar,
eu estou em frente a uma comida, estou vendo, estou sentindo o cheiro, posso sentir o
gosto, posso sentir a textura, a temperatura. Varais coisas que a gente chama separadas
que na verdade são uma só. Então eu estou sentido, estou saboreando. Sabor de sentir.
Estou sendo atingido por aquele objeto, quando esse objeto me atinge, que eu o sinto, eu
vou decodificar frente as minhas experiências anteriores e dar um significado a ele. Meu
significado vai ter frente ao meu presente e ao meu significado referencial. Frente a aquela
coisa que eu acredito que aquilo é e que significa que aquilo é, eu vou ter uma reação. Então
o que seria um psicótico, um esquizofrênico? Seria que, alguém frente ao ambiente responde
de uma forma não habitual, estatisticamente fora da média que as pessoas respondem.
Então volta para a questão da graduação. Se essa pessoa está fora, está distante, ela vai ser
um anormal frente a norma que é a média da comunidade. Esses anormais que ameaçam a
normalidade são excluídos ou quimicamente ou fisicamente. Ou são retirados da comunidade
porque desarrumam ou são tirados quimicamente porque ficam travados sem poder exercer
sua criatividade. Então aquele cara, nessa composição, se existe o diabo, existe uma
influência pós-morte ou a pessoa continua funcionando, porque é essa a questão que vem
sendo tratada: existe alguma coisa além desse mundo material? A vida continua, existe um
deus, um diabo, alguma coisa que rege... Imagine que é uma coisa muito forte porque a
humanidade, senão boa parte dela acredita que existe; e se em todos os locais há essa
crença com mais ou menos flutuações de identidades além do mundo físico, visível; e que
operam sobre o mundo físico e visível dos humanos.
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JN: Agora, finalmente, o que você gostou mais de cada um dos filmes? Por exemplo, parece
que você gostou mais de David Gale do que dos outros.
RN: Eu gostei de todos. Cada momento um vai me atingir de uma forma. Cada um trás um
sentimento. E traz alguma reflexão. É difícil dizer do que eu gosto mais.
JN: Eu acho que você gosta mais de sua mulher, de seus filhos, de sua filha, de sua casa e
do seu consultório. Isso é o que você mais gosta.
RN: Eu gosto do que eu sinto em cada momento, do que me faz bem. Por exemplo, minha
filha me diz uma coisa com certa irritação: “já sei meu pai você vai dizer que esse é o
melhor sorvete que você já tomou! Você vai dizer que é a melhor torta que você comeu na
vida.” Que bom! Porque a única chance de você ser feliz na vida é se você se enganar e se
você esquecer. Imagine: eu fui feliz em 1995 quando eu comi uma torta e o resto do tempo
eu vou ser infeliz porque eu não vou ter essa comparação. Tomara que eu esqueça que foi
muito gostoso para a próxima me dar a mesma sensação! (risos) Imagine!
JN: Você não respondeu minha pergunta. Me responda com perguntas ou com respostas,
fazendo uma concessão a essa,digamos assim lógica linear, cartesiana.
RN: Descartes não era linear. É uma sacanagem com ele. Descartes era um cara altamente
inteligente só que mal lido. Descartes sempre acreditou na subjetividade e a objetividade era
um fragmento para o estudo. É uma estupidez dizer isso de Descartes.
JN: Sim, mas dentro da lógica que você considera mais competente, quais os filmes que
você gosta.
RN: Todos
JN: E por exemplo, David Gale foi o que mais te chamou a atenção, porque foi o primeiro
que você assistiu e que lhe deu vontade de assistir todos os outros. Por exemplo, você não
assistiu...
RN: Não, foi a sua provocação que me deu vontade de assistir. Eu fui provocado pelo que
você me trouxe, você me trouxe uma cultura que eu não tinha, que me deu um deleite, me
fez um prazer – como esse encontro aqui e com outra questão. Como eu não morri Jorge, eu
to aproveitando a vida aqui.
JN: Na minha cabeça e na minha ingenuidade eu vejo David Gale como um militante dos
direitos humanos para além do artista..
RN: Alan Parker ou David Gale?
JN: Oh Perdão! Alan Parker. Por que isso? Porque eu concebo que há certa coerência em
termos de produção, ele usa a arte não somente para se divertir, para entender a vida e
para viver melhor dentro dela, mas também para dizer para as outras pessoas: olha as
coisas podem ser diferentes, porque veja o absurdo que vocês produzem, que nós
produzimos no final das contas. Essa é a minha visão ingênua, digamos assim, desse Alan
Parker. Que tem uma obra, você pega o Mississipi em chamas, que é um libelo contra o
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sistema capitalista, a crise econômica, a intolerância, os absurdos que esse mundo constitui
que são tão esquizofrênicos, ou tão absurdos; como é possível conceber tudo isso. Então eu
acho que existe esse desejo para além do prazer, do desejo estético, do divertimento
descompromissado.
RN: Vamos imaginar que você tenha razão. E se esse projeto dele, sendo construído em
vários momentos da vida dele, como cada filminho, como um tijolinho para um projeto maior
de prazer, não é o mesmo?
JN: Sim, é o mesmo.
RN: Talvez seja uma possibilidade de um prazer.
JN: Mesmo desejo, que você falou...
RN: O que eu não acho Jorge é que tenha essa contradição, porque... talvez pensar no
hedonismo, a gente está falando em alguns momentos da idéia de hedonismo. Minha vida, o
sentido da minha vida é o prazer.
JN: Mas ele sempre diz que é hedonista em entrevista.
RN: Claro, tem que ser. Qualquer pessoa que efetivamente tenha consciência de si será um
hedonista sempre, ou então se suicida logo. A questão é que, as pessoas não tem essa
compreensão, nem normalmente essa honestidade.

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