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foto anterior @ Philippe Halsman/Magnum Photos B apresenta BRANDO O ATOR NO CINEMA A CAIXA Cultural tem a satisfação de apresentar BRANDO: O ator no cinema, retrospectiva dos filmes mais importantes de um dos atores mais influentes da história do cinema. Marlon Brando inovou a arte de representar através de um revolucionário processo de atuação que estabeleceu novos paradigmas e patamares para as subseqüentes gerações de atores. A mostra percorre os momentos mais significativos de sua carreira, apresentando filmes nos quais toda a sua versatilidade e singularidade poderão ser observadas e apreciadas. Durante duas semanas, os espectadores do Rio de Janeiro terão contato com diferentes papéis interpretados por Brando e poderão perceber como ele era mais do que ator, mas também autor de seus personagens – sempre marcados pelo seu diferenciado uso da voz, do corpo, do “Método” de atuação e arrematados por sua cuidadosa e impecável caracterização de figurino e maquiagem. Para criar um panorama da sua evolução artística foram selecionados 22 filmes nos quais Brando atua, incluindo A face oculta, dirigido pelo próprio, além de um documentário biográfico que revela em detalhes a extensão de sua genialidade e influência. Ao realizar a mostra BRANDO: O ator no cinema, a CAIXA Cultural oferece ao público a oportunidade de conferir o notável desempenho de um ator-autor que nos deixou como herança alguns dos mais memoráveis personagens do cinema mundial. CAIXA Cultural Ao ver os filmes de Marlon Brando encontrei uma escola, uma nova referência. Sua carreira se tornou uma fonte de pesquisa para eu pensar a atuação no cinema. Antes disso não tinha dimensão de sua influência, apenas enxergava nele um galã de Hollywood dos anos 50. Descobri que Brando libertou o ator, livrou-o de preconceitos e rótulos, aproximou-o da alma do personagem. Com o intuito de compartilhar os frutos da minha investigação com outros atores, diretores, ou simples admiradores de seu belo trabalho, elaborei essa mostra, um tributo a um dos maiores atores-autores do cinema. Marlon Brando mudou os paradigmas da atuação, tornando-se assim um dos mais importantes artistas da história do cinema. Nenhum outro exerceu tanta influência sobre gerações sucessivas de atores. Mais de 50 anos depois de sua performance como Stanley Kowalski em Uma rua chamada pecado e 25 anos depois de seu último grande trabalho, como o Coronel Kurtz em Apocalypse Now, Brando continua estabelecendo parâmetros de interpretação. Ao introduzir no cinema o “Método” (o sistema de atuação desenvolvido pelo Group Theatre e o Actor’s Studio a partir dos estudos do diretor teatral russo Stanislaviski), Brando alterou definitivamente a maneira de se interpretar e dirigir atores no cinema. Pode-se dizer que Brando não só é um ator, mas também um autor de seus filmes. Jamais esteve preso aos roteiros e instruções dos diretores; no decorrer de sua carreira, inclusive, parou de decorar textos, guiando-se apenas pelo improviso. Em qualquer filme de Brando, é impossível afirmar que o autor do filme seja apenas o diretor, tamanha sua colaboração no processo criativo. Grande parte do instrumental que fundamenta a interpretação para o cinema até os dias hoje – como o subtexto, o monólogo interior, a fisicalidade, a humanização do personagem – passa por Marlon Brando e, por isso, mais do que exibir seus filmes, publicamos este catálogo, onde cada um desses temas poderá ser abordado com mais profundidade. Brando acaba se tornando um meio para se refletir sobre um tema maior: o ator no cinema. Bianca Comparato o ator biografia 13 • entrevista | conversas com brando, lawrence grobel 20 • o ícone jovem | o primeiro punk, hernani heffner 28 • o mito | brando forever brando, domingos oliveira 30 • o corpo | a ação física, helena varvaki 32 • A voz | brando além das palavras, leila mendes 35 • o método | realismo espontâneo, robert castle 37 no cinema anos 50 espíritos indômitos 47 • uma rua chamada pecado | com a força de um bonde, eduardo ades 49 • viva zapata! 55 • júlio césar 56 • o selvagem | the wild one, felipe bragança 59 • sindicato de ladrões | o olhar e o gesto, rudi lagemann 63 • garotos e garotas 69 • sayonara 71 • os deuses vencidos 73 • vidas em fuga 75 anos 60 a face oculta 79 • o grande motim 81 • a condessa de hong kong 83 • o pecado de todos nós 85 • queimada! | brando e os oprimidos, eduardo ades e fabiana comparato 87 anos 70 o poderoso chefão | um inventor no cinema, ely azeredo 93 • o último tango em paris | máquina-brando, marcos azevedo 99 • duelo de gigantes 105 • apocalypse now | apocalypse now: a magnífica presença ausente, doc comparato 107 anos 80-00 assassinato sob custódia 115 • um novato na máfia 117 • don juan demarco | don juan demarco: a cena em retrospecto, tatiana monassa 119 • brando 121 cronologia 124 filmografia 126 principais prêmios e indicações 129 bibliografia 130 agradecimentos 131 créditos 132 o ator biografia “Qual é a força de sua lenda? Como permaneceu viva apesar de tantas realizações duvidosas? Escreve-se em uma palavra. Brando. Como Garbo. Ele é uma força da natureza. Um elemento. Não um ser humano que precisa se distinguir dos outros, como qualquer outro membro da socie- dade, pelo seu nome cristão e sobrenome. Só existe um Brando. Mesmo quando atua em seu papel favorito, de uma antiestrela séria e socialmen- te engajada, ele ainda assim é um dos cinco ou seis maiores atores que o cinema já produziu.” Molly Haskell, historiadora de cinema Na noite de 3 de dezembro de 1947, o que seria apenas mais uma estréia na Broadway se tornou um marco no teatro americano. Um bonde chamado Desejo, de Tennessee Williams, abriu com fila na porta e cadeiras extras. Todos queriam ver o novo e desconhecido talento, um jovem de 23 anos de idade que aparentemente impressionava por sua forma diferenciada de atuar. Marlon Brando aparece em cena – forte, musculoso, com roupas apertadas, sensual, transmitindo nos olhos tanta veracidade e simplicidade que chegou a suscitar dúvida entre alguns espectadores: seria Brando o seu próprio personagem? A platéia ficou extasiada. A casa seguiu cheia por toda a temporada. E o maior determinante da transformação histórica que ali se dava foi Marlon Brando. Por não adotar os procedimentos de representação vigentes da época, e sim incorporar a vida do personagem de forma instintiva e visceral, sua atuação revolucionou e alterou para sempre a arte de representar nos Estados Unidos. Ficava para trás o paradigma da representação européia, da dicção perfeita, da eloqüência, do refinamento. Marlon Brando Jr. nasceu na noite de 3 de abril de 1924 em Omaha, Nebraska, nos Estados Unidos. Apelidado de Bud, era filho de Dorothy Pennebaker, Dodie, uma atriz com sérios problemas de bebida, e de Marlon Brando Sr., um vendedor que havia servido na Primeira Guerra Mundial. Tinha duas irmãs mais velhas, Jocelyn e Francis, com quem manteve sempre uma ótima relação. Suas memórias mais vívidas de criança eram de Ermi, sua babá, uma jovem de 18 anos que Brando adorava. Segundo ele próprio, sua infância foi marcada pelo abandono e menosprezo do pai, um homem machista que não lhe dava amor nem o respeitava. Quando Ermi saiu da casa dos Brando para se casar, Bud, ainda com 7 anos de idade, sentiu-se solitário e desamparado. Na mesma época a família se mudou para Illinois, perto de Chicago, por conta dos negócios do pai. Dodie, então longe da trupe de teatro, passou a ficar muito tempo em casa – e a beber compulsivamente. Brando muitas vezes cuidava de sua mãe. 13 Bud era um rapaz de grande compaixão. Sempre que podia, escolhia as meninas mais excluídas da turma para sair ou namorar. Suas irmãs o descreviam como doce, engraçado e idealista. Amava música, era fascinado por ritmo, tocava bateria e chegou até a ter uma banda, a Keg Brando and His Kegliners. No entanto, a dura convivência com os pais tornou-o uma criança de difícil trato, que não reagia bem à autoridade e não se adaptou às escolas em que estudou. Em 1941 foi expulso do colégio onde cursava o segundo grau por constantemente fazer brincadeiras que, embora admiradas por outros alunos, eram malvistas pelos professores (como por exemplo quando colocou enxofre na tubulação do sistema de aquecimento fazendo com que um cheiro de ovo podre invadisse as salas de aula). Brando foi então enviado para a Shattuck Military Academy, onde o seu pai havia se formado. Mas o alto grau de disciplina exigido não foi a melhor maneira de lidar com sua desobediência. Ele continuou tirando notas baixas e provocando os professores. Contudo, foi lá que teve seu primeiro grande contato com o teatro, através do professor Duke Wagner, que o apresentou a Shakespeare. Atuou em montagens escolares e se tornou popular no colégio devido ao seu talento como ator. Até que em maio de 1943 mais uma vez foi expulso. Então Brando, já com 19 anos, pediu aos pais para estudar teatro em Nova York, onde suas irmãs viviam. A cidade, nesse momento pós-guerra, fervilhava com artistas, músicos e poetas. Entusiasmado por essa onda, Brando se matriculou no Erwin Piscator’s Dramatic Workshop, na New School for Social Research. Sua professora era Stella Adler, discípula de Konstantin Stanislavski. Através de Stella, Brando teve contato com o Group Theatre (uma companhia experimental criada em 1930 por Lee Strasberg, Harold Clurman e Cheryl Crawford), que desenvolveu o tão famoso “Método”, o sistema precursor de atuação que trabalhava a interpretação interna, isto é, a parte sensorial, psicológica e emocional do ator. O Group Theatre tinha excelentes professores, mas foi com Stella Adler que Brando estabeleceu uma importante parceria. Ela se tornou sua grande mentora. Adler procurava uma interpretação mais naturalista, proveniente de técnicas que aproximavam a identificação do ator com as emoções do personagem. Nas primeiras páginas de sua autobiografia, Brando explica como suas lembranças de infância foram importantes para a formação de sua memória afetiva. De acordo com Stanislavski o ator pode evocar imagens, sensações e até sons de sua infância. “Tínhamos um velho fogão a lenha, feito em ferro fundido, que era grande causa de constrangimento para mim. Era um belo fogão, mas nesse tempo eu tinha vergonha dele porque me fazia sentir como se fôssemos pobres. Sempre que convidava amigos lá para casa e passávamos pela cozinha, eu tentava distraí-los e chamar atenção para mim, para não repararem no fogão.” Do ponto de vista cênico, essa descrição pode ser muito interessante para um ator. Através dessa lembrança, Brando dá a um objeto cotidiano uma dimensão emocional. O fogão representa sua vergonha da pobreza. Isso caracteriza uma cena, já existe um conflito estabelecido. Em termos dramáticos, o objeto torna-se um fator essencial de tensão visual, indutor da memória afetiva e da motivação concreta que define o propósito da cena e do comportamento do ator. A vida pessoal e em especial a infância de Brando exerceram grande influência em sua formação como ator. 14 Em seus primeiros anos em Nova York, freqüentar as aulas de teatro era o que menos o preocupava. Enquanto não tinha emprego como ator fazia muitos bicos para ganhar dinheiro. Trabalhou como garçom, ascensorista, fazendo hambúrgueres em um restaurante. Adorava sair com seus amigos. Foi em Nova York que descobriu uma de suas grandes paixões, a música afro-cubana. Toda quarta-feira dançava no Palladium, na Broadway. Era um jovem muito atraente e charmoso, que namorava bastante, tendo sempre mulheres atrás de si. Brando participava de peças dentro da New School, e em uma dessas montagens é “descoberto” pelo agente Maynard Morris. Através desse empresário, começa a freqüentar testes de cinema e teatro. Foi Maynard quem acertou sua participação na peça I Remember Mama, em que fez um adolescente de 15 anos, filho de emigrantes noruegueses. Era o seu primeiro trabalho profissional como ator, e no dia 19 de outubro de 1944 Brando fez sua estréia na Broadway, no Box Theatre. Durante a temporada da peça, Edith Van Cleve, uma outra empresária de atores, reconheceu a força instintiva de Marlon Brando e começou a agendar ainda mais testes, porém ele não era aprovado para nenhum trabalho. Até que sua grande mestra e anjo da guarda, Stella Adler, conseguiu-lhe um papel na peça que seu marido, Harold Clurman, iria dirigir. Nos ensaios Brando não rendia, falava baixo, não articulava as palavras direito, sua presença no palco era desvitalizada. Os outros atores achavam que ele jamais conseguiria dar conta do papel, mas Clurman, confiando no faro de Stella, continuou tentando melhorar a produtividade de Brando. Os exercícios do diretor funcionaram, mas a peça não. Truckline Café foi um fracasso de público e ficou apenas algumas semanas em cartaz. Mas Brando virou o grande trunfo do espetáculo. Depois de assistir à peça, a critica Pauline Kael disse: “Eu olhei para o palco e vi o que me parecia ser um ator tendo uma crise nervosa – depois percebi que era uma atuação.” Stella Adler estava convencida de que Brando era um gênio, e tentava fazê-lo vencer sua aparente indiferença em relação ao seu talento e ao teatro. Brando era mais do que capaz de representar os personagens que lhe eram oferecidos, mas quase sempre era muito difícil ensaiar com ele. Muitas vezes fugia dos papéis. Stella tentava lhe mostrar que a força criativa era a única coisa que restava ao homem. Parece que Brando escutou sua mentora. Em 1946, participou de mais três peças: Cândida, de Bernard Shaw, A Flag is Born, dirigida por Luther Adler, e An Eagle Has Two Heads, de Jean Cocteau, ao lado de Tallulah Bankhead. Mas foi a encenação dirigida por Elia Kazan de Um bonde chamado Desejo que deu uma guinada significativa na sua carreira, levando-o do anonimato ao estrelato de forma quase instantânea. No palco Brando chocou e ao mesmo tempo conquistou a platéia. Não se falava em outra coisa no show business que não fosse o novo jovem talento da Broadway. “Ele era um campo magnético, todos eram atraídos por ele – mulheres, homens e animais”, disse a professora de teatro Sondra Lee. Truman Capote o descreveu como tendo um físico de Charles Atlas e uma cabeça que não combinava com esse corpo: seu rosto era de um poeta, gentil e angelical, refinado, os olhos tristes; sua boca, quase feminina. Brando foi para Hollywood e nunca voltou aos palcos da Broadway. No entanto, mesmo em Hollywood ele se diferenciava. Ao contrário da maioria dos outros jovens atores da 15 época, recusava-se a assinar os famosos contratos de sete anos em troca de segurança e estabilidade com os grandes estúdios. Desde sempre optou por seguir seus instintos, ficando assim disponível para propostas que fossem condizentes com seus ideais de vida e trabalho. Com o sistema dos estúdios em declínio, surgiam novos agentes artísticos e produtores independentes. E foi um desses produtores, Stanley Kramer, que convidou Brando para fazer seu primeiro filme, Espíritos indômitos, escrito por Carl Foreman e realizado por Fred Zinnemann. Brando gostou do argumento do projeto, sobre soldados que ficavam paraplégicos durante a guerra e seguiam para um hospital na Califórnia. Porque não sabia a sensação de viver numa cadeira de rodas, Brando internou-se então num hospital para deficientes militares a fim de ver de perto como esses homens se comportavam – e com essa convivência aprendeu o que nenhum ator consegue aprender lendo um roteiro ou ensaiando numa sala. A experiência deu à sua interpretação um ar extremamente convincente e naturalista. Como ainda era desconhecido, muitos pensaram que haviam escalado um ator realmente paraplégico. De 1950 a 1955 Brando estrelou oito filmes, seis dos quais se tornaram clássicos do cinema: Espíritos indômitos, Uma rua chamada Pecado, Viva Zapata!, Júlio César, O selvagem e Sindicato de ladrões. O ator John Turturro disse certa vez que essa seqüência de filmes é a melhor já feita por um ator, tamanha sua versatilidade, força e talento. Com esses trabalhos, Brando estabeleceu um estilo próprio e se consagrou como o ator representante do “Método” de atuação. Foi nesse início que ele reencontrou Kazan, agora no cinema, consagrando de vez a parceria de sucesso. Kazan dizia que Brando foi o único gênio que conheceu na atuação. E Brando afirmava que Kazan havia sido o diretor que exerceu maior influência sobre seu trabalho. Ambos ganharam muitos prêmios com os filmes que fizeram juntos: Uma rua chamada Pecado, Viva Zapata! e Sindicato de ladrões. Por este último, inclusive, Brando ganhou o Oscar de melhor ator, sendo na época o mais jovem vencedor da categoria. Em 1956 Brando conheceu Anna Kashfi, uma jovem de 22 anos, indiana, nascida em Darjeeling e educada em um convento francês. A moça preenchia todos os pré-requisitos que agradavam Marlon Brando. A paixão fulminante dos dois logo foi interrompida por 16 compromissos de trabalho do ator, então um dos mais requisitados de Hollywood. Mesmo assim, em 1957 casaram-se e tiveram um filho, Christian. Mas a relação entre eles foi muito conturbada e o casamento durou apenas dois anos. Depois de Sindicato de ladrões Brando participou de quatro grandes produções hollywoodianas, com orçamentos altíssimos e ampla projeção mundial, verdadeiros blockbusters, em que atuou como o galã-protagonista: Desirée, o amor de Napoleão, Garotos e garotas, Casa de chá do luar de agosto e Sayonara. Brando era campeão de bilheteria, o queridinho das adolescentes, que o idolatravam por sua virilidade e doçura. Toda semana mais de 6 mil cartas de fãs chegavam a Hollywood endereçadas a Brando. Ele participava de programas de TV, concedia entrevistas, estava numa fase de grande exposição. Devido a sua alta popularidade, é convidado por Edward R. Murrow para participar de seu programa Person to Person. Ao apresentar o convidado, Murrow o retratou como um artista empreendedor, que amadureceu e abandonou a fase rebelde, as motos e o jeans & camiseta. Tinha razão, em parte. Brando não era mais um rebelde nesses moldes, mas entrava em outra fase, de uma rebeldia madura. Personagens como o Major Gruver, de Sayonara, não o agradavam artisticamente, apesar de ter lhe rendido uma indicação ao Oscar e de gerar grande retorno financeiro. Brando começou a perceber que não era por esse caminho que queria trilhar sua carreira, e baseou a escolha de seus trabalhos seguintes na oferta de um bom papel. Em Os deuses vencidos, de Edward Dmytryk, interpretou um oficial nazista. Logo depois procurou uma parceria com Sidney Lumet e mais uma vez trabalhou com um texto de Tenneesee Williams, em Vidas em fuga. A partir de então, começou a querer cada vez mais independência artística, tentando sempre fugir das limitações impostas pelos grandes estúdios. No início dos anos 60, Brando se casou com a atriz Movita Castenada, uma mulher mais velha que havia conhecido no set de Viva Zapata!, no México. É curioso que Movita, na adolescência, atuara ao lado de Clark Gable na primeira versão de O grande motim, filme que Brando viria a fazer no futuro, separando-se dela para casar com Tarita, seu par romântico nessa produção de 1962. Em 1961 a produtora cinematográfica que Brando criara seis anos antes, a Pennebaker Productions (nomeada em memória de sua mãe, que falecera em 1954), produziu seu primeiro projeto pessoal, A face oculta. Esse foi o único filme que Brando dirigiu. Ele enfrentou grandes problemas, o orçamento estourou em alguns milhões de dólares e, devido à sua busca por perfeição, o cronograma de filmagem estendeu-se mais seis meses além do previsto. O corte final de Brando tinha mais de cinco horas. Sam Shaw, o diretor de fotografia do filme, achou sua versão uma obra de arte, mas a Paramount não tinha a mesma opinião: os executivos do estúdio afastaram Brando da montagem e cortaram o filme para duas horas e meia. Foi entre a pós-produção e o lançamento do filme que Brando atuou ao lado de Anna Magnani em Vidas em fuga. Durante o restante dos anos 60, Brando participou de filmes que foram mal de bilheteria para os parâmetros que ele havia estabelecido em seus trabalhos anteriores, mas que promoveram seu encontro com grandes diretores, como Gillo Pontecorvo, Arthur Penn, John Huston e o lendário Charles Chaplin. Atingiu interpretações de altíssimo 17 nível e atuou ao lado de Sophia Loren e Elizabeth Taylor. Apesar de O pecado de todos nós, de John Huston, chamar pouca atenção na época do lançamento, hoje em dia muitos críticos o consideram um excelente trabalho de ator de Marlon Brando. De acordo com o diretor, o que afastou o público foi a temática polêmica do filme: homossexualidade, impotência e distúrbios psicológicos. Brando foi muito preciso e criou um sotaque sulista meio sufocado para transmitir os sentimentos reprimidos de seu personagem. Seu figurino estava sempre muito engomado, como as fardas dos oficiais do exército, e seu cabelo cheio de gel, compondo uma caracterização impecável de um soldado homossexual enrustido. No entanto, sua carreira começou a se mostrar irregular. Ainda nos anos 60 participou de produções muito fracas, como Candy e A noite do dia seguinte, ambas de 1968. No final da década, percebendo o declínio, Brando declarou que “atuar é uma vida de vagabundo. Te leva à perfeita autocomplacência. Você é pago para fazer nada e isso não soma nada para a sua vida.” Desacreditado da carreira, procurou refúgio em Tetiaroa, na Polinésia francesa. Entre uma produção e outra, ficava isolado em sua ilha, longe do assédio dos jornalistas – com quem praticamente não falava desde uma traumática entrevista a Truman Capote em 1957. Brando havia comprado a propriedade em 1967 por 270 mil dólares para fugir das pressões. O fim do casamento com Ana Kashfi fora turbulento, com luta na justiça pela guarda do filho, e sua intimidade passou a ser matéria para os tablóides. No Taiti Brando vivia de modo simples, longe do mundo e em paz. Tentou então buscar novo sentido para sua vida através do ativismo político. Envolveu-se em muitas causas, principalmente a indígena e a dos negros americanos. Filiou-se aos Panteras Negras, mas depois da morte de Martin Luther King deixou a organização e passou a ajudar a instituição póstuma de King. Essa era uma atitude pouco comum entre astros de cinema da época, sendo inclusive mal vista dentro de Hollywood. Seria somente na década de 70 que Brando recuperaria seu status, com O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola, considerado por muitos críticos como o melhor filme americano de todos os tempos. Sua interpretação icônica de Don Corleone lhe rendeu seu segundo Oscar, que Brando recusou. Em seguida atuou em O último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, o primeiro filme de grande visibilidade a lidar com o sexo de forma explícita. Era a primeira vez que se via um símbolo sexual realmente fazendo sexo. Depois desses dois filmes, Brando voltou ao posto de melhor ator de sua geração. Aproveitando o bom momento, trabalhou pouco e ganhou muito dinheiro, fazendo participações em produções milionárias como Superman – o filme e Duelo de gigantes. O último personagem do ator lembrado pelo grande público foi o enigmático Coronel Kurtz de Apocalypse Now, de 1979. Poucos viram sua participação em A fórmula, do ano seguinte. Quase uma década depois fez Assassinato sob custódia, sobre o apartheid, pelo qual recebeu sua última indicação ao Oscar, dessa vez de melhor ator coadjuvante. Até a sua morte, em 2004 em Los Angeles, Brando fez mais oito filmes. Seu último trabalho foi a animação Big Bug Man, ainda sem previsão de lançamento, na qual fez a voz de uma velhinha, Mrs. Sour. A gravação foi feita meses antes de sua morte, e como Brando estava muito acima do peso e com problemas cardíacos, sua participação foi toda registrada na sua casa em Mulholland Drive. A última mulher de 18 sua vida foi Maria Cristina Ruiz, sua empregada doméstica, com quem foi casado por seis anos e teve três filhos. Em retrospecto, alguns alegam que talvez tenha sido sua vida traumática e o ódio que sentia pelo pai – tratados em longos anos de análise com o psicanalista Bela Mittleman – que impulsionaram o talento de Marlon Brando. Os desentendimentos entre eles eram constantes. Amigos próximos afirmavam que esse ódio transbordou em vários de seus trabalhos, como em Uma rua chamada Pecado, Sindicato de ladrões e O último tango em Paris. Seus melhores filmes eram sobre raiva, controle, a exposição dessa ira, e também a indulgência causada por ela. No entanto, não foram suas motivações interiores a maior herança deixada para outros atores. Uma de suas características mais marcantes era sua técnica bastante polêmica de improviso, desenvolvida a partir da metade da sua carreira. Na ânsia de preservar a espontaneidade das cenas, Brando optou por não decorar textos. Alguns consideravam, e ainda consideram, isso pura malandragem; outros enxergam nisso um enorme domínio de cena. De acordo com o próprio Brando, foi trabalhando em Os deuses vencidos que “descobriu” essa “técnica”, quando um dia chegou ao set sem ter decorado o texto por não concordar com partes do diálogo de seu personagem. Depois de uma conversa com o diretor, as falas foram mudadas, mas Brando não pôde decorá-las a tempo de filmar, e então colocou um papel com seu texto no cenário para ajudar. A cena ganhou uma espontaneidade singular, que Brando jamais havia atingido. Desde então decorou cada vez menos. Dessa maneira ele se aproximava ainda mais de uma interpretação realista. A maioria dos atores passa uma carreira inteira tentando se livrar dessas máscaras que os impedem de ser livres em cena. Brando fazia isso parecer fácil. Mesmo cinco anos após a sua morte, ainda é fácil afirmar: Marlon Brando é certamente um dos atores mais importantes da história do cinema. 19 entrevista Conversas com Brando Trechos da entrevista concedida a Lawrence Grobel Depois de quase seis meses de negociação, Lawrence Grobel consegue falar com Marlon Brando por telefone. O ator estava disposto a conceder uma entrevista, mas com restrições: só trataria da luta política dos índios americanos, à qual se dedicava tão intensamente. Barry Bolson, o então editor de Lawrence na revista Playboy, revoltou-se com tal exigência. Mas o jornalista tinha sua estratégia: aceitaria conversar sobre os índios e com isso levaria Brando a falar um pouco de si. Brando propôs que a entrevista acontecesse no Taiti, na sua ilha de Tetiaroa. Lawren- ce então passa dez dias com o ator e sua família, e consegue mais do que uma entrevista: constrói um retrato revelador de um homem complexo. Com esta entrevista, publicada em 1978, Brando quebrou um jejum de mais de 20 anos praticamente sem falar de forma prolongada e aberta com jornalistas, iniciado após uma entrevista concedida a Truman Capote durante as filmagens de Sayonara, em 1957. Durante grande parte da sua carreira você evitou dar longas entrevistas. O que estou fazendo aqui? Normalmente eu não faria isso, não daria esta entrevista. Se não fosse pelo fato de Hugh Hefner [editor-chefe da revista Playboy] ter pagado 50 mil dólares para tirar Russell Means [um dos maiores ativistas dos direitos indígenas nos EUA] da cadeia. (...) E quando você descobriu que não teriam regras básicas [para esta entrevista], arrependeu-se de ter aceitado? Arrependi-me da maioria das entrevistas que dei. Porque não escrevem o que você diz, ou então tiram o que diz de contexto, ou fazem uma justaposição de uma maneira que não reflete o que você realmente disse. E você também pode falar algo com um certo espírito, com um sorriso, mas quando aparece impresso em papel não existe sorriso. Está ciente de que existem outros aspectos [da sua vida] pelos quais as pessoas se interessam? Sua paixão são os índios, mas o seu conhecimento, se me permite dizer, é como ator. Acho que tenho um ressentimento incrível pelo fato de que, quando as pessoas te conhecem, estão na verdade conhecendo uma celebridade de cinema idiota, em vez de uma pessoa, alguém que pode ter outra visão, outra vida, ou que se preocupa com outras coisas. Essa parte idiota da vida acaba sempre na frente de tudo, como se tivesse importância maior. 20 Mas uma entrevista inteira falando de nada além dos problemas dos índios inevitavelmente fica cansativa. Eu gostaria de poder cansar as pessoas com o tema dos índios... já que estou começando a acreditar que realmente todos ficam sem paciência para esses assuntos. Ninguém quer pensar sobre assuntos sociais, sobre justiça social. Mas esses são os principais temas que nos confrontam. Esse é um dos dilemas da minha vida. E as pessoas não dão a mínima. Pergunte à maioria dos jovens detalhes sobre Auschwitz ou sobre como os índios americanos foram assassinados enquanto um povo — eles não sabem nada. E não querem saber nada. A maioria das pessoas só quer beber sua cerveja ou assistir à sua novela. (...) Você disse uma vez que durante grande parte da sua carreira só estava tentando decifrar o que realmente gostava de fazer. “Você disse uma vez”. Deveria existir um guia para entrevistadores, e uma das proibições deveria ser: nunca comece uma pergunta com “você disse uma vez”, porque 98% das vezes a citação do que você disse não é verdadeira. Mas o fato é que eu disse isso. Por muito tempo não tinha idéia do que queria da minha vida. Você não sentia que atuar era satisfatório ou te preenchia o suficiente? Existe um grande frenesi sobre atuar que não faz o menor sentido para mim. Todos somos atores, você passa o seu dia inteiro atuando. Todos já passaram por momentos em que estavam pensando uma coisa e não demonstrando. [Bernard] Shaw disse que pensar era o maior dos esforços humanos, mas eu diria que sentir é que é. Permitir-se sentir, sentir amor ou ódio, ira, fúria... É muito difícil para as pessoas encararem um extenso confronto consigo mesmas. (...) (...) E o que acha sobre atuação como arte? Lá no fundo do seu coração você sabe muito bem que estrelas de cinema não são artistas. Mas há vezes em que você captura momentos em filmes ou peças que são memoráveis, que possuem sentido, e esses momentos... Uma prostituta consegue capturar um momento! Uma prostituta pode lhe oferecer vários tipos de maravilhas e inspirações fazendo você acreditar que o nirvana chegou no vôo das 2h, e no fim as coisas não são bem assim. (...) Você gosta de atuar? Escuta, qual outra maneira eu teria de ganhar dinheiro o suficiente para comprar uma ilha e ficar sentado o dia inteiro conversando com você como estou agora? Não tem nada mais que eu possa fazer que me pague o suficiente para fazer isso. 21 Você leva atuação a sério, então? Sim. Se você não é bom no que faz você não come, não consegue ter os meios necessários para ter certas liberdades. Estou sentado nessa ilha, curtindo minha família, e estou aqui antes de mais nada porque consegui me sustentar com isso. Odeio a idéia de uma rotina. Isso me assustaria. Era isso que te incomodava em relação ao teatro? É difícil. Você tem que estar presente todos os dias. As pessoas que vão ao teatro percebem as coisas de forma diferente. Você tem que oferecer algo ao público para receber algo em troca. Posso te dar o exemplo perfeito. Num filme que fiz, chamado Sindicato de ladrões, havia uma cena num táxi, na qual eu me virava para o meu irmão, que se tornara um gângster, e me lamentava dizendo que ele nunca havia cuidado de mim, que nunca havia me dado uma chance, que eu poderia ter sido um competidor, poderia ter sido alguém em vez de um vagabundo... “You should have looked after me, Charley.” Era muito emocionante. E as pessoas se referiam a ela como uma cena maravilhosa. E não era nem um pouco. A situação é que era maravilhosa. Todos sentem como se pudessem ter sido competidores, como se pudessem ter sido alguém; todos sentem como se fossem em parte vagabundos. Talvez não vagabundos, mas não se sentem realizados e têm a sensação de que poderiam ter sido alguém melhor. E foi isso que tocou as pessoas. Não a cena em si. Existem outras cenas nas quais atores tiveram performances especiais, mas como o espectador não se identificou, passaram desapercebidas. Cenas maravilhosas nunca são mencionadas, só as que afetam as pessoas. (...) Se outra pessoa tivesse atuado nessa cena em particular do Sindicato de ladrões com Rod Steiger – uma cena considerada por muitos críticos como um dos maiores momentos da história do cinema – poderia ter passado desapercebida. Por algum motivo, aquela cena funcionou para você, você trouxe algo que fez com que muitas pessoas conseguissem se identificar com ela. Sim, mas existem algumas cenas, alguns papéis, que são à prova de atores. Se você não interferir em certo papéis, eles atuam por si sós. E existem outros papéis que você tem que trabalhar como uma mula para obter algum efeito e... Você sabia que essa cena do Sindicato era à prova de atores quando você a fez, ou só percebeu em retrospecto? Não, na época eu não sabia. Foi uma cena bem ensaiada ou o Elia Kazan simplesmente colocou um na frente do outro para atuarem espontaneamente? Nós improvisamos muito. Kazan é o melhor diretor de atores que qualquer um poderia querer porque ele foi um ator, um ator especial. Ele entende coisas que outros diretores 22 não entendem. Ele também te inspira. Sempre esperam que a maioria dos atores venha com seus papéis prontos e suas emoções carregadas, e quando o diretor disser “Ok, vamos lá” eles entrem num transe. Mas Kazan trazia muito para o ator e te convidada para argumentar com ele. É um dos únicos diretores criativos e compreensivos o bastante para saber que rumo o ator está tentando seguir. Ele te deixava fazer a cena praticamente da maneira que você quisesse. Da forma como foi escrita [a cena do carro], o cara estaria apontando uma arma para o seu irmão. Eu disse: “Isso não é plausível, não acredito que um irmão possa atirar no outro.” Em nenhum lugar do roteiro havia qualquer indicação desse tipo de relação entre os dois, não era crível. Então fiz como se o personagem não acreditasse naquilo, e incorporei isso à cena. Existe espaço para a improvisação. Alguns diretores não querem que você improvise nada – muito inseguros, ou histericamente meticulosos com tudo. E outros diretores querem que você improvise o tempo inteiro. Muitos atores citam a sua performance em O pecado de todos nós como um exemplo incrível de improvisação. Alguma coisa tinha a ver com a direção de John Huston? Não. Ele te deixa sozinho. E quanto à direção de Bernardo Bertolucci em O último tango em Paris? Você realmente achou que foi uma violação, como disse uma vez? Eu disse isso? Para quem? (Risos...) “Você disse uma vez.” O que você disse foi que não deveriam exigir tanto de um ator. Quem te disso isso? Eu li. Não sei sobre o que era o filme. Também li essa afirmação. Mas é difícil de acreditar. Porque muito do que está ali foi improvisado. Ele queria fazer isso, depois aquilo. Eu já tinha visto seu outro filme, O conformista, e achava que ele era um homem de considerável talento. E ele pensava em todos os tipos de improvisação possível. Deixava-me fazer qualquer coisa. Ele me disse por alto a idéia do que queria e eu tentava produzir as falas e as ações. (...) Você não se importa então quando as pessoas dizem que você não dá 100% quando atua? Stella Adler, que foi minha professora, uma mulher notável, uma vez me contou uma história sobre o seu pai, Jacob P. Adler, um grande ator iídiche que trouxe a tradição euro23 péia do teatro consigo para os Estados Unidos. Ele dizia que se você chegasse ao teatro sentindo 100% de inspiração, que demonstrasse apenas 70%. Se de repente outra noite sentisse apenas 50%, que demonstrasse 30%. E se você chegasse ao teatro sentindo apenas 30%, então desse a volta e retornasse para casa. Sempre mostre menos do que você tem para oferecer. Você já simplesmente passeou por um papel? Sim, com certeza. Com freqüência? Não. Como no filme A condessa de Hong Kong? Não, tentei não fazer isso, mas eu era uma marionete nesse filme. Não estava lá para fazer nada além porque Chaplin era um homem de considerável talento e eu não iria argumentar com ele sobre o que é e o que não é engraçado. Devo dizer que não começamos da melhor forma possível. Fui para Londres para a leitura e Chaplin leu para nós. Eu estava cansado por conta do fuso horário e dormi. Foi horrível. (Risos) Às vezes o sono é mais importante do que qualquer outra coisa. Fui mal escalado para esse filme. Ele não deveria ter tentando dirigir aquilo – não sozinho; deveria ter escrito suas memórias. Chaplin era um homem perverso. Sádico. (...) (...) E quando você se dirige, como fez em A face oculta? Essa foi a primeira e última experiência para você? Te curou do desejo de dirigir? Eu não queria dirigir aquele filme. Stanley Kubrick se demitiu logo antes de começarmos a filmar e eu já devia 300 mil dólares, pagando Karl Malden desde o momento em que ele assinou o contrato, e nós ainda nem havíamos terminado de escrever o filme. Stanley, Calder Willingham e eu estávamos na minha casa jogando xadrez, dardo, pôquer etc. Sem conseguirmos nos organizar para trabalhar. Então, quando estávamos nos preparando para começar, Stanley disse: “Marlon, não sei sobre o que é o filme.” E eu disse: “Eu te digo. Trata de 300 mil dólares que já paguei Karl Malden.” Então ele respondeu: “Bom, se é sobre isso, estou no filme errado.” E foi isso. Corri atrás de várias pessoas, perguntei ao Sidney Lumet, ao Gadge (Elia Kazan) e a umas outras quatro ou cinco pessoas e ninguém queria dirigir. (Risos) Então não havia nada que eu pudesse fazer, exceto dirigir ou acabar como um sem-teto. Então dirigi. Foi uma experiência completamente nova para você? Não, me dirijo na maioria dos filmes de qualquer maneira. (...) 24 Você gostaria de ter feito mais comédia? Não, não consigo fazer comédia. Outro “não consigo” associado a você é sua incapacidade ou recusa em memorizar falas. Você tem uma memória fraca ou pensa que decorar falas afeta a espontaneidade da sua performance? Se você olha para o rosto de uma pessoa quando ela está falando, ela não sabe prever que tipo de expressão terá. Você vê as pessoas procurando por palavras, por uma idéia, por um conceito, um sentimento, qualquer coisa. Se as falas estão lá na mente do ator... AH VOCE ME PEGOU! (Rindo) ME PEGOU DIREITINHO! Aqui estou eu falando sobre atuação, não é? Na verdade, te poupa muito tempo, porque decorar falas... Felizmente, é maravilhoso fazer isso. É maravilhoso não decorar falas? É, você economiza muito tempo não decorando. E ninguém sabe apontar a diferença. E você ainda melhora a sua espontaneidade, porque realmente não sabe o que vem pela frente. Você tem uma idéia, e está ali falando, mas não se lembra ao certo o que é que queria dizer. Acredito que sirva como um auxílio. Exceto, é claro, no caso de Shakespeare. Posso citar duas horas de peças e monólogos de Shakespeare. Algumas coisas você não pode improvisar, algumas coisas você tem que memorizar, como Shakespeare, Tennessee Williams – onde a língua tem valor. Você não pode improvisar Tennessee Williams. (...) Esperteza e humor definitivamente não foram suas intenções quando enviou aquela índia para recusar o seu Oscar pelo Poderoso chefão, ou foram? Não. Acho que foi muito importante para uma índia americana se pronunciar para pessoas que não fazem nada enquanto a população indígena é eliminada da Terra. Foi a primeira vez na história que uma índia americana falou diante de 60 milhões de pessoas. Era uma tremenda oportunidade e eu certamente não queria usurpar aquele tempo disponível. Não era apropriado que eu o fizesse. Ele pertencia muito mais àquela índia. Pensei que uma mulher indígena geraria menos hostilidade. Mas aquelas pessoas a consideraram uma interferência no seu ritual santificado de autocongratulações. Você acredita que todas as premiações são ridículas? É claro que são. São ridículas. Então os optometristas deverão ter seu Oscar para criar armações de óculos inventivas, admiráveis e diferenciadas – umas que prendam no nariz, outras que sejam presas por dentro da roupa. E por que não deveriam? Nós temos a premiação dos jornalistas, temos o Globo de Ouro... Deveriam ter também o prêmio para o pintor canhoto mais gordo a pintar um set com maior rapidez deixando cair o mínimo de tinta possível no chão branco. 25 (...) Quando você recebeu o prêmio humanitário da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor [NAACP em inglês] em 1976, você recusou também. Sim, recusei. Não acredito em prêmios de nenhum tipo. Não acredito no Prêmio Nobel da Paz. No entanto, você aceitou o Oscar em 1954. Já fiz muitas tolices na minha vida. (...) O que realmente aconteceu quando você trabalhou com Pontecorvo? Foi apenas um conflito legítimo entre diretor e ator? Não, o cara era um verdadeiro sádico. Ele fez uma coisa terrível, queria pagar aos negros (e realmente pagou) um salário diferente dos brancos para o mesmo trabalho como figurante, alegando que os brancos não trabalhariam pelo mesmo valor que os negros em Cartagena (Colômbia). Depois ainda deu aos negros comida diferente porque achou que eles preferiam assim. Bom, até que uma noite eles empilharam a comida que lhes era oferecida em frente à câmera. Eu disse que queria comida decente, porque a equipe e os figurantes negros estavam comendo merda. Então Pontecorvo fez um grande drama por causa disso. Eles enviaram um garçom de jaqueta vermelha e guardanapo pendurado no braço, prepararam uma mesa do lado de fora [do camarim de Brando] – e eu sabia que eles estavam tentando humilhar o ator de cinema capitalista. Então eu disse: “O copo está sujo.” E eles limparam. Estava tudo perfeitamente organizado, e o garçom estava lá, todos em pé em volta esperando para rir de mim, eles prepararam até um guarda-sol. Então eu disse: “Tudo bem, onde está a comida?” Fiz algumas sugestões sobre a comida, sal, não me lembro, inventei que o vinho não estava gelado o bastante. E então peguei os negros mais pobres que estavam ali e os fiz sentarem-se à mesa e os servi. Eles não achavam que eu fosse fazer isso e realmente os surpreendi. E houve incidentes. Ele deixava os caras ajoelhados na mesma posição por oito horas seguidas em uniformes escuros, debaixo do sol, 11 graus abaixo da linha do equador. A equipe já começava a se rebelar. E o câmera teve conjuntivite, outro teve um ataque cardíaco, outra pessoa teve úlcera. Foi horrível. O que distinguia Stella Adler de outras professoras de atuação? O que ela foi capaz de te mostrar? Ela era uma mulher muito gentil, cheia de insights e que me ajudou muito no começo da minha carreira. Eu era definitivamente muito confuso e inquieto. Fora seu talento fenomenal de comunicar idéias, de aflorar a sensibilidade nas pessoas, ela foi de grande ajuda num momento muito turbulento da minha vida. Ela é uma professora não só de atuação, mas de vida. Ela ensina as pessoas sobre elas mesmas. Não gostaria de comparar isso à 26 psicanálise, mas tinha resultados psicoterapêuticos muito claros. As pessoas aprendiam sobre os mecanismos dos sentimentos com ela. Sejam atores ou não. Isso é irrelevante, elas aprendiam muito com ela. Stella Adler uma vez disse, no entanto, que ela nunca te ensinou nada, apenas abriu as portas e você as colocou abaixo. Eu lhe perguntaria: “Vas ya dere, Charlie?”* (Risos) Essa é a grande frase que me sustenta de um problema para o outro. É muito simples: por fim tudo se resume a “Vas ya dere, Charlie?”. * Citação de Jack Pearl, comediante americano (1894-1982) que tinha um programa de rádio nos anos 30, no qual representava o personagem Baron Munchausen, livremente inspirado no Barão de Münchausen. Assim como o barão da literatura, Pearl contava histórias improváveis com um cômico sotaque alemão. E, quando seu coadjuvante no programa expressava ceticismo, o barão respondia “Vas ya dere, Charlie?” (isto é, “Was you there, Charlie?”, “Você estava lá, Charlie?”). A frase dava a idéia de que nenhuma história é necessariamente verdade ou mentira. Quem irá provar o contrário? Você estava lá? 27 o ícone jovem O primeiro punk Hernani Heffner Marlon Brando não teve uma filmografia significativa, com a exceção de quatro ou cinco títulos que, para além de suas interpretações, também se sustentam por outras qualidades. Daí ser relativamente comum considerá-lo uma figura intransitiva. Fala-se de Brando como uma entidade, freqüentemente egóica, que esgota o leque de interesses em torno de si mesma. Depois do elogio de praxe à capacidade interpretativa, descreve-se uma trajetória em espiral, fabulando-se as entranhas, os sentimentos, as razões por detrás da máscara. Brando mentia descaradamente e com isso alimentava ainda mais o mistério de sua arte. Quando se pensa no conjunto de atores que o precedeu, percebe-se parte do im- pacto que causou. O bom-mocismo hollywoodiano pouco tinha a ver com sensualidade masculina e ainda menos com conceito interpretativo. As idéias de Stanislavski e Tchecov já circulavam de alguma maneira pela Meca do cinema, mas o que se via dos homens era mais o rosto impassível e os ternos impecáveis do que músculos em tensão, corpos suados e expressões animalescas, que punham em dúvida o lado civilizado da espécie. O máximo de virilidade que se concebia na época era Clark Gable, fosse cobiçando castamente Claudette Colbert, em Aconteceu naquela noite, fosse dando uns chega pra lá igualmente inócuos em Vivien Leigh, em E o vento levou... Por outro lado, quando se pensava em atores na verdadeira acepção da palavra, o paradigma eram os ingleses, com Laurence Olivier à frente, o que não alterava significativamente o panorama do ponto de vista do público. Eram talvez mais empertigados, bem falantes e engomados, quando não francamente esquisitos, a interpretar personagens shakespearianos como se eles fossem de outro planeta. Para os que estavam acostumados com um arco que ia de Cary Grant a Gary Cooper, Brando foi surpresa. Sua aparição, entretanto, não constituiu uma exceção. Ele fez parte de uma nova geração, tecnicamente mais bem preparada, e sobretudo mais antenada com a necessidade de expressar sentimentos e fragilidades. Nomes como Montgomery Clift, Robert Mitchum e James Dean, para ficar nos mais óbvios, tornaram-se referências de imediato. Até mesmo astros consagrados como James Stewart e Grant tiveram suas personas redesenhadas para os novos tempos de instabilidade emocional, como nos filmes de Hitchcock. Mas Brando de certa forma precedeu e transcendeu seus pares. Sua famosa aparição teatral em Um bonde chamado Desejo já resumia suas principais qualidades. Além da troca do rosto pelo corpo como instrumento de expressão da paisagem interior do personagem, uma rebeldia nata que tornava indiscernível o ator daquilo que ele interpretava. Brando era, mais do que a criação, a encarnação viva de Stanley, segundo Tennessee Williams. O impacto de Brando em seus primeiros tempos relacionava-se à condição de metáfora da barbárie contemporânea, mas ia além. A inquietude presente em seus meneios apresentava-se em chave mais refinada e sutil. Uma tradução perfeita para seu estilo seria a palavra inglesa “cool”, entendida como um amálgama de contido, introspectivo, compassado, cifrado, existencialista, mas sem qualquer laivo de intelectualismo. A maturação 28 desse tom encontra-se nos anos 60, em filmes como Caçada humana e Os pecados de todos nós. Antes disso Brando transparecia, luzia cristalino, acentuando-se como evidência de si mesmo, mas sem ser pedante. Era petulante. Esta foi a qualidade mais valorizada por toda uma geração de adolescentes, que ansiava romper com os pais, com os padrões, com o mundo em desagregação advindo da Segunda Guerra Mundial. Brando ajudava com seu ar posé, com seu vestuário básico e proletário – camiseta, jeans, couro –, com suas opiniões ácidas e cáusticas, fosse na vida privada, fosse no cinema. Nele estavam prefigurados um novo tempo, o da Guerra Fria, com seus conflitos e brutalidades indefensáveis; um novo ser, o jovem, rejeitando tudo e todos; uma nova cultura, a do rock, do aqui e agora ritmados e sexualizados, como suas interpretações requebradas e requebrantes. O ápice de todo esse processo de simbolização pode ter sido James Dean e Elvis Presley, mas a primeira pedra, a primeira casa, o primeiro edifício foram obra acabada de Brando. A idolatria das novas gerações por ele, inclusive de atores como Dean, revelava esse reconhecimento, não à sua maestria, isso pouco importava, mas à sua atitude. Brando, como Marilyn Monroe, teve um poder liberador e libertador. O menino pobre, o adolescente inseguro e o jovem problemático entenderam que a violência do mundo contemporâneo surgia como condição inata e não como conseqüência. Qualquer lógica anterior possível havia ficado nos escombros dos campos de batalha da guerra mundial. Nem por isso os novos conflitos eram inevitáveis – Brando tornou-se um membro ativo de ações e manifestações pacifistas. Embora “selvagem”, como no título do filme de Lazslo Benedek, imagem acabada do novo ser pelo novo ator, o jovem contemporâneo tinha a opção de cair no mundo, sair pelas estradas da vida, deambular por conta daquilo que já se sabia não existir mais. Hernani Heffner é pesquisador, professor e autor de vários artigos sobre cinema para jornais e revistas. 29 o mito Brando forever Brando Domingos Oliveira Reza a lenda que Coppola, depois de ter aceitado o cachê extramilionário exigido por Brando para fazer Apocalypse Now, pediu-lhe apenas três coisas: que emagrecesse um pouco, porque Kurtz, o personagem, estava há muito no coração da floresta; deixasse crescer o cabelo, pelo mesmo motivo; e chegasse com o texto mais ou menos decorado. Parece que Brando chegou muito mais gordo, completamente careca e que, depois de alguns ensaios, Coppola descobriu que ele não tinha sequer lido o livro de Conrad, no qual o filme se baseava. Dizem também que o ator dava esporros constantes no diretor, o mesmo que o tinha salvado do relativo esquecimento com o surpreendente e soberbo Godfather. Quando Coppola pensava quem poderia ser o poderoso Vito Corleone, seus severos produtores cogitavam apenas dois atores, que consideravam os maiores do mundo: Marlon Brando e Laurence Olivier. Coppola achava Brando jovem demais para o papel. Mas este tramou um teste tão brilhante que foi aceito por todos. Continua contando a lenda que o consagradíssimo Tennessee Williams, apaixonado, foi buscar o rapaz numa distante cabana para fazer o Uma rua chamada Pecado. Minha relação pessoal com Brando vem dos motociclistas que subiram as escadas do Cine Pax na Praça da Paz, no Rio de Janeiro do início dos anos 50. Sem descer das motocicletas, para espanto de uma geração. Eram os rebeldes sem causa, imitavam o Brando em O selvagem. Vendo os filmes hoje, na perspectiva do tempo, nada disso espanta. Ele tinha um tipo de carisma satânico. Amedrontava ao mesmo tempo em que que atraía, como uma jibóia diante de um coelho. E era, principalmente, novo, desconhecido. Nunca se vira ninguém assim. Deus trabalha por formatos, porém de vez em quando inventa um novo: Marlon Brando. Figura evidentemente situada entre Narciso e Zeus. Sempre me pareceu mais uma personalidade do que um ator. Se James Stewart, Gary Cooper ou Bogart nunca se distanciaram muito de si mesmos para cumprir seus personagens, Brando o fez menos ainda. Poder-se-ia dizer que era uma persona que nunca deixava cair, Brando forever Brando. Agredia a platéia com sua interpretação, embora a acariciasse deixando entrever sua alma frágil e feminina – apenas comparável com a do outro que fez época junto com ele, mas que cometeu a tolice de morrer cedo, James Dean. Marlon impõe a sua personalidade acima de tudo, usando, para isso, variados recursos, dentre os quais o sexo sempre foi o principal. Ele queria seduzir sexualmente a platéia. Homens e mulheres. Era um bissexual assumido. Os analistas hoje em dia, quase em sua totalidade, afirmam que o bissexualismo não existe. Coisa de grego, forma disfarçada de homossexualismo. Então Marlon era grego. Como foi um bom romano, embora ao seu jeito e maneira, no Marco Antônio do Júlio César da MGM. Falar de Brando é falar de sexo. E o que mais existe, não é mesmo? Do militar paternal/homossexual de O pecado de todo nós ao deus da sedução que é o seu Kowalski, que devorava sem piedades a instável Blanche naquele escândalo que foi, nos anos 50, o Uma rua chamada Pecado. 30 Brando era um filho direto e dileto do Actor’s Studio, aquele exagero de psicologismo que o teatro americano tirou do sóbrio e racional Stanislavski. O primado da improvisação e da memória emocional. Tratava-se de revelar o mundo interior do ator prioritariamente – ao custo de qualquer narrativa, pagando o preço de qualquer maneirismo. Nunca fui um brandista inveterado, mas lembrando dele agora, na flor da minha idade, penso que também eu era um fã apaixonado pela grande figura. Apenas me amedrontava um pouco. E não gosto de quem me amedronta. Tudo faz sentido. Ele gostava de fazer piadas de gosto duvidoso com os colegas, era famoso nisso. Consta que na cena do enterro de Corleone, o Godfather, Brando mandou colocar no caixão umas centenas de quilos de chumbo para que a turma de figurantes que carregava o caixão fizesse um esforço especial. Isso o divertia muito. E vendo no filme é engraçado mesmo. Um dos rostos mais bonitos que jamais nasceram, uma beleza antiga, clássica, romana, foi destruindo tal citada virtude pouco a pouco durante uma vida, até tornar-se um gordo monstruoso. Orson Welles e outros já tinham feito o mesmo. Homens que não suportam a beleza externa. Talvez porque não desejavam ser amados por isso. A propósito, a comparação é curiosa, Welles e Brando. Ambos ficaram famosos muito cedo, inimizaram a sociedade em que viviam e fizeram muitos filmes insuportavelmente ruins, ao lado de umas poucas obras-primas. Sem que isso lhes arranhasse o prestígio. O que dizer desses deuses quase antipáticos? Deuses não foram feitos para ser discutidos, e sim amados. Marlon Brando nasceu em 1924, morreu em 2004, tendo levado uma vida que oscilou entre a glória e o terror. Homens assim não deviam morrer, não posso concordar com isso. Por mais insuportáveis que fossem. Deviam morar num Olimpo humano e ser observados pelos simples mortais como obras-primas da criação. ...dada esta impressão pessoal, fui tomado de saudades de Brando e recorri ao Google. O resultado me fez pensar o quanto de sofrimento pode passar um homem que, embora genial, não tenha compreendido os encantos da humildade. Transcrevo, não comento: “Em Apocalypse Now, o ator atuou no escuro para esconder sua má forma. (...) Usa uma frase-chave em cada cena e inventa todo o restante. Alega que decorar sacrifica a espontaneidade. Utilizou até ponto eletrônico. (...) Filho de um casal de alcoólatras, odiava o pai e reverenciava a mãe. (...) Fez vários filmes ruins durante quase toda a década de 60. (...) É notável a carência do astro e sua dificuldade de expressar afeto pelas mulheres. Diz-se sempre entediado com o trabalho.” “Quando morre, deixa uma herança de 22 milhões de dólares e reconhece 11 filhos. (...) Recebeu 14 milhões de dólares por seu papel em Superman. (...) Tinha dívidas enormes adquiridas em processo judicial contra seu primogênito Christian, que assassinou o namorado da irmã Cheyenne. (...) Sua filha Cheyenne suicidou-se em 1995. Foi cremado aos 80 anos. (...) Outros filhos bastardos reclamaram a herança.” “Descendente de imigrantes holandeses, entrou jovem para a academia militar, da qual foi expulso por insubordinação. (...) Sempre afirmou que somente era ator como forma de ganhar dinheiro.” ... A arte salva. Sem a arte não há salvação. O forte de Deus não é a justiça, e sim a misericórdia. Que viva para sempre nas telas o doce Marlon Brando, grande ator e operário da arte. Domingos Oliveira é dramaturgo, cineasta e ator. 31 o corpo A ação física Helena Varvaki Na cena final do filme O último tango em Paris, Paul, interpretado por Marlon Brando, após ser baleado vai caminhando até a varanda e, antes de cair no chão, gruda um chiclete embaixo da grade. Essa ação cotidiana, simples, dá para nós, espectadores, uma dimensão poética de tudo a que acabamos de assistir. Como isso ocorre? Por quê? Brando é um ator que não interrompe a conexão com o objetivo, com a relação que estabeleceu ao longo de toda a história que acabamos de acompanhar com Jeanne, interpretada por Maria Schneider. Brando está em ação antes mesmo de executá-la de forma efetiva, física. O que num primeiro momento ainda não é visível no espaço, é no entanto perceptível para o espectador. O que ocorre no corpo deste ator? Em Uma rua chamada Pecado, Blanche DuBois (Vivien Leigh) chega à casa de sua irmã Stella (Kim Hunter) em Nova Orleans. Isto transforma o cotidiano da irmã e do cunhado Stanley (Marlon Brando). A aparente incompatibilidade entre Stanley e Blanche vai revelando delicadamente um desejo interditado, marcado pela tensão entre dois personagens intensos. Na cena que começa com Stanley trazendo o baú de roupas de Blanche, temos uma seqüência ininterrupta de ações físicas, através das quais Brando vai tecendo o jogo entre Stanley e sua mulher, e depois entre Stanley e Blanche. Assim que ele entra com o baú, Stella lhe diz que vai levar a irmã para jantar e depois ao teatro, para que ele possa ter sua noite de jogo. Ele pergunta por sua comida, e ao ser informado de que tem um prato na geladeira, vai até lá, pega o prato e começa a comer um salame e uma fruta com a mão. De comer o salame sua ação passa para vasculhar as roupas do baú, voltando a comer, passando pelo cigarro, pegando os papéis e cartas de dentro do baú. Através das ações, vemos uma verdadeira música passando pelo corpo desse ator que desde criança era fascinado pelo ritmo. Já temos aqui um indício do que se seguirá em breve: movimento interior numa intensidade que beira o dilaceramento em contraposição a gestos diários muito simples. Nosso campo é o realismo, e sabemos que nele grandes idéias emergem da linguagem comum, de ações cotidianas, que vão encadeando os objetivos do personagem e depois, horas a fio, encadeando em nossa memória e pensamento a elaboração daquele recorte condensado de vida. Seus gestos são fruto de um ator em vida, absolutamente entregue ao jogo de relações sutis que passam por diversas temperaturas, por diferentes tensões, do suave ao fortíssimo. Seu objeto de atenção não são exatamente as roupas, não é o salame. Suas ações são atravessadas pela relação com Blanche. Através delas, o ator ativa sensações que estarão em cena num campo sutil, dando ao seu corpo a possibilidade de transitar de um estado emocional para outro. Esse atravessamento provocado pela relação dá a dimensão psicofísica da ação, que define a qualidade de movimento, as mudanças de velocidade, as pausas, as explosões e contenções. A seqüência de ações é o terreno onde essa relação vai sendo tecida e vivida. Marlon Brando é um ator que é criador, ele renuncia aos clichês estando vivo, reagindo. Ele sabia que a ação física é a base da atuação, que é através dela 32 que o espectador recebe vários sentidos do filme que não estão contidos nos diálogos. Simultaneamente, é através da ação que a palavra surge e ancora o trabalho do ator. É a potência da ação interior, via ação do pensamento, da dúvida e do dilaceramento, que deságua no rosto, na ação física. Aqui nos lembramos do verso de Gilberto Gil: “É sempre bom saber que um copo vazio está cheio de ar...” O corpo de Marlon Brando está preparado para que a ação interior se transforme em ação física, ele tem o relaxamento necessário. Esse relaxamento permite que ele transite com desenvoltura entre momentos de explosão e retorno a uma aparente calma exterior. Possibilita que ele esteja presente o bastante no aqui e agora para ter a presença de espírito de brincar com um pequeno fragmento de pêlo que escapa da estola que está sendo jogada para fora do baú. É também o relaxamento que traz a limpeza e precisão de seus gestos, que não são borrados e também não excessivamente bonitos – são orgânicos. Nenhum excesso de tensão, nenhum excesso de relaxamento. Nessa calma, no entanto, ele não abre mão da ação interior que pulsa, o que provoca pequenos impulsos que revelam a vida que continua. Suas ações são criadas a partir de motivações, alargando a conexão entre ação interior e ação física. As ações são justificadas, têm uma intenção, são acionadas pelas circunstâncias, são fruto dos antecedentes do personagem e de seus objetivos. É a partir das circunstâncias que Brando explora essa tensão entre ações interiores intensas, densas, e pequenas ações físicas, cotidianas, banais poderíamos dizer, mas que estão repletas de pequenos ou grandes impulsos internos. Os impulsos, em alguns momentos quase invisíveis, formam uma camada pulsante no corpo do ator, como por exemplo na cena do aniversário de Blanche. Estão sentados à mesa Stanley, Stella e Blanche. Esta, tentando manter um ambiente ainda possível de cordialidade, pede a Stanley que conte uma piada, ele nega o pedido e ela conta uma piada sem graça, o clima é pesado. Stanley come com a mão um pedaço de frango, limpa os dedos com a boca, lambe os dedos. Stella diz: “A sua cara e seus dedos estão um nojo de tão engordurados. Vá se lavar e me ajude a tirar a mesa.” A câmera nos revela Stanley, e há uma pausa em que vemos nascer o impulso que fará com que ele quebre um prato com a mão e o jogue no chão. Depois, num instante de absoluto autocontrole, ele diz: “É assim que eu vou tirar a mesa.” Novamente um impulso e ele quebra uma xícara, e ao dirigir a mão para o prato de Stella pergunta com ironia: “Já limpei o meu lugar. Querem que limpe o de vocês?” Para Brando, as ações não são um apoio na representação, elas são o terreno onde sua atuação acontece. Não é através do movimento que ele atua, é na ação física que o personagem vive. Marlon Brando aprendeu de sua mestra Stella Adler o que ela possivelmente aprendeu do mestre Konstantin Stanislavski: “O elo entre o corpo e a alma é indivisível. A vida de um dá vida ao outro. Todo ato físico, exceto os puramente mecânicos, tem uma fonte interior de sentimento.” A ligação entre o que é visível (as ações físicas, os gestos, os deslocamentos) e o que, por sua própria natureza, é invisível (os impulsos, os desejos secretos do personagem) vai conduzindo nossa atenção. Blanche em um momento diz: “Todos nós temos alguma coisa que não queremos que os outros toquem por causa de sua natureza íntima.” É esta alguma coisa que mo33 tiva, que impulsiona a ação, que nos precipita a territórios onde nossos pensamentos e sensações fatalmente viram ações físicas, atos, gestos, olhares. Ações que nos revelam aos outros por mais que nosso empenho seja de ocultar. O que se oculta ao se revelar e se revela ao se ocultar é nossa fissura, o ponto fulcro do nosso desejo. É este território interior, sutil, oculto que vai sendo revelado pela câmera. Esta revelação nos captura, nos torna cúmplices dos personagens, e nessa cumplicidade com o outro o olhar se volta para si mesmo. É para esse lugar que o filme e as ações de Brando nos levam. Quando nos damos conta, estamos também nós, espectadores, entrando em contato com nossa fissura interior. Vamos lentamente invertendo a marcha habitual do pensamento, treinado para resolver tarefas, e mergulhando na nossa ação interior: nossas dúvidas, nosso desejo pelo silêncio voluntário, nosso desejo pela explosão abrupta, nosso desejo pela ruptura com o que é aparentemente suave, mas que oprime, tira a liberdade de movimento e freia a possibilidade de agir. Nosso questionamento sobre nossa força interior ganhou a cena inteiramente. Quando vemos Marlon Brando no cinema, saímos da sala percebendo o quanto são repletas de sentido essas pequenas e desprezíveis ações cotidianas. Helena Varvaki é atriz e professora de interpretação. 34 leila Mendes a voz Brando Além das Palavras Marlon Brando considerava-se sortudo por ter iniciado a carreira em uma nova era em que ser ator tornava-se muito mais interessante. Antes as palavras dos textos, tanto de teatro como de cinema, não poderiam perder a clareza na dicção sob nenhuma hipótese. Brando foi um dos atores que mudou a arte de interpretar, indo além das palavras escritas e da dicção. Livrou-se de preconceitos e rótulos. Cruzou as pontes entre a palavra, o gesto e a emoção. Valorizou o silêncio eloqüente, o olhar e a afetividade. Generoso, entregou ao ator a sua autoria do personagem, dando vida ao subtexto no seu corpo, na sua voz, na sua alma. Foi um hábil criador de personagens para essa nova linguagem teatral e cinematográfica. Provavelmente tinha um belo “banco de dados humanos”, porque gostava de observar as pessoas em suas vidas diárias. Tinha interesse, compaixão e curiosidade pelo ser humano, e sem os preconceitos da época. Sua habilidade em observar e imitar pessoas era impressionante, enganando até os amigos. Stella Adler, mestra querida de Brando, testemunhou essa curiosidade. Brando acreditava que ninguém sobrevive sem atuar na vida. A diferença é que as pessoas o fazem inconsciente e automaticamente, enquanto no palco e no cinema os atores o fazem para contar uma história. Em seus primeiros testes e trabalhos, a imprecisão na articulação da fala foi considerada uma dificuldade sua. Em peças de teatro, não conseguia soltar a voz nos ensaios. Críticos e diretores ficavam confusos com a forma como se expressava nos palcos e nos filmes. Mas Brando afirmava que, na criação de algumas de suas personagens, falava propositalmente “enrolado”, para trazer a naturalidade da fala cotidiana. Admirava a grande atriz Eleonora Duse*, que já fazia o mesmo na sua época, desviando-se das técnicas tradicionais de atuar declamando e exagerando nos gestos. Baseava-se também nas indicações de Shakespeare, através de Hamlet, na cena em que o jovem príncipe dinamarquês, dirigindo uma trupe de teatro, exige simplicidade de interpretação. Brando sabia que existe um vasto mundo a ser desbravado entre a pronúncia do ator e a vida das personagens. As regras, então, não são mais as da clareza e da certeza, mas sim as da misteriosa essência do ser humano. A precisão de Brando descobriu a imprecisão articulatória de Stanley Kowalski a partir das tensões do personagem confuso e inarticulado. Brando relata que ouviu a voz da personagem em sua cabeça, e que vira os “Stanleys” da vida na Times Square com suas camisas de nylon, a caminho dos cafés ou shows de pornografia, com suas vozes anasaladas e monocórdias, pessoas com pouco conhecimento de si próprias. * Eleonora Duse (1858-1924): atriz italiana que saiu do anonimato de uma trupe de atores e alcançou fama mundial. Iniciou sua carreira encenando as peças de Sarah Bernhardt na Itália. Posteriormente viajou pela Europa, Estados Unidos e América do Sul. Inovou na interpretação de sua época, usava pouca maquiagem e se conectava com o personagem que interpretava eliminando o seu próprio eu com uma entrega tão profunda que muitas vezes ficava doente. Stanislavski já era grande admirador de Duse mesmo antes de desenvolver seu método. 35 Anos depois, em Júlio César, novamente surpreende a todos. Dessa vez pela dicção clara, precisa, e pelos novos sentimentos percebidos no discurso do orador romano que interpretou. Brando tinha profundo respeito por Shakespeare e pediu a Sir Gielgud, o grande ator inglês, para que gravasse as falas de Marco Antônio e lhe fizesse sugestões para o personagem. Incorporou tudo de tal forma que foi indicado ao Oscar. Essa abordagem profundamente livre sobre o oficio do ator era reflexo de um homem que enxergava a natureza humana com compaixão – característica perceptível desde sua infância. Sua irmã Jocelyn contava que, quando criança, Brando sempre trazia para casa animais famintos, pássaros doentes, e escolhia dançar com as meninas excluídas para que elas se sentissem bem. O próprio Brando acreditava ter se diplomado em “proteção dos seres mais fracos” – e por que não dizer de si mesmo e das histórias de frágeis personagens? Difícil falar da expressão de Brando e não tocar em sua sofrida vida pessoal. Segundo ele próprio, não conheceu segurança emocional, tinha a auto-estima baixa e defendia-se com a hostilidade. A mãe alcoólatra e o pai frio e autoritário provavelmente dificultaram o seu amadurecimento e a construção da sua personalidade. Achava que era disléxico, embora em sua época ninguém soubesse quase nada a respeito dessa disfunção. Isso pode explicar sua dificuldade em compreender e decorar textos – o que ele resolvia colando papeizinhos com suas falas até no corpo dos colegas. Talvez sua dislexia tenha permitido que descobrisse o mundo que existe por trás de palavras escritas difíceis de decorar. No entanto seu sofrimento e solidão podem também ter alimentado sua eterna busca pela compreensão das motivações humanas. Para Brando, que sempre procurou lutar contra os falsos valores da sociedade e abraçou várias causas para dar sentindo à sua vida, a expressão humana precisa ter motivações, senão fala-se por falar. O mundo moderno quer transparência e verdade. Logo, os personagens dessa nova era exigem do ator uma forma de interpretação realista e verdadeira. Sabia da força da voz na comunicação. Seu aparelho fonador com certeza era acionado pela emoção do monólogo interior. As vozes de seus personagens tinham raízes em suas próprias histórias – não mais na prisão do ego do ator. Nos personagens com sotaques de outras línguas, Brando trazia acima de tudo a nacionalidade da alma e conflitos interiores, que emocionam muito mais do que o sotaque correto. Como no oficial nazista do filme Os deuses vencidos prisioneiro de seu próprio ideal. Seu Don Corleone tinha uma voz frágil e rouca, expressando o declínio do homem. As próteses na boca e a mandíbula levemente projetada são as marcas da prepotência do poderoso chefão. Tudo criado pelo próprio Brando. Brando achava que ser ator livrara-o da loucura ou da prisão. Acho que ser ator fez com que ele deixasse uma herança valiosa para as futuras gerações de atores e para todos os amantes das artes. Loucos são os que não o compreenderam. Ele vai além das palavras, ao encontro da arte. Evoé, Brando! Leila Mendes é fonoaudióloga e preparadora vocal de atores para o Grupo Nós do Morro e a TV Globo. 36 Robert Castle o “método” realismo espontâneo Marlon Brando estourou na cena internacional de cinema como um gorila enraivecido no papel de Stanley Kowalski no filme Uma rua chamada Pecado, da obra de Tennessee Williams. Ele era imprevisível, físico, com alterações de humor, violento, grosseiro, completamente espontâneo e perturbadoramente sexy. A maior parte do público de cinema nunca vira um intérprete como esse antes. Dois atores anteriores do “Método”, John Garfield e Montgomery Clift, já haviam utilizado algo da técnica de impulso realista, mas foi só a partir de Brando que um ator teve a capacidade de imprimir nos espectadores tamanho desconforto. Pouco tempo depois de Uma rua chamada Pecado, no filme O selvagem, Brando aterrorizou uma pequena cidade como o líder de uma gangue de motoqueiros. Mas ele não era apenas o típico sujeito intragável e durão que o público já vira tantas outras vezes. Sua sensibilidade e introspecção, sua dúvida interna, fizeram dele um personagem interessante e simpático. Explorando o “Método”, e assim a história e a vida interior desse personagem, que muitos atores representariam com clichê, Brando trouxe algo de novo para o cinema e para a arte de atuar. Quando James Dean apareceu alguns anos depois em Vidas amargas e Juventude transviada, o público assistiu a um rebelde um pouco mais gentil, embora ainda imprevisível. Nos dois intérpretes testemunhava-se uma vida de complexidade emocional que pouquíssimos atores, principalmente homens, haviam atingido na tela. Outros intérpretes dessa linha começaram a aparecer: Geraldine Page, Kim Stanley, Julie Harris, John Cassavetes (que se transformou no maior diretor americano de filmes independentes com sua pequena companhia de atores treinados pelo Actor’s Studio), Paul Newman, Anthony Quinn e muitos outros. Mas, embora todos também dividissem a qualidade espontânea de realismo pela qual Brando e Dean estavam se tornando famosos, eles incorporavam muitos personagens, nem sempre representando o tipo rebelde sexy. E por esse motivo não eram identificados tão formalmente como atores do “Método”. Foi um acidente de timing cultural que fez com que os filmes de Brando e Dean provocassem a identificação de atores do “Método” com personagens desajustados de classe média baixa. No final dos anos 40 e nos anos 50, muitos países que foram devastados pela Segunda Guerra Mundial observaram uma grande mudança na cultural popular, especialmente no cinema. O neo-realismo italiano liderou o movimento que fez com que personagens de classes trabalhadoras se tornassem grandes protagonistas, como, por exemplo, em Roma, cidade aberta, de Rossellini, e Ladrões de bicicletas, de Vittorio De Sica. E de fato a presença de Anna Magnani parecia ser nitidamente relacionada ao “Método”, embora ela não tivesse treinado formalmente a técnica. O movimento de realismo social britânico motivou muitas estrelas em ascensão (como Alan Bates, Laurence Harvey, Charlotte Rampling, Simone Signoret) a seguirem na direção de uma técnica mais orgânica. Na França, Belmondo, Signoret e Trintignant encontravam qualidades semelhantes 37 em personagens do proletariado da Nouvelle Vague. Os novos heróis e heroínas eram trabalhadores inarticulados, sem refinamento, com alto teor de ação física e cheios de alma. E freqüentemente amparados pela então recente onda de jazz bebop, refletindo os movimentos musicais. A técnica de atuação que ficou conhecida como o “Método” teve suas raízes na Rússia, no final do século XIX, no Teatro de Arte de Moscou. Konstantin Stanislavski criou as bases de um sistema que utilizava as experiências pessoais dos atores no trabalho, focando em memórias sensoriais e emotivas. Se o ator de fato se sentisse de uma certa maneira física, emocional, mental e espiritualmente, baseado em parte na sua própria experiência e em parte na sua imaginação, ele poderia experimentar por completo o universo da obra ou de seu papel, em vez de apenas reproduzir clichês e poses pré-determinadas. A técnica de Stanislavski continuou a ser desenvolvida em Nova York no Group Theatre, do qual surgiram os grandes professores do “Método”, Lee Strasberg, Stella Adler e Sanford Meisner. Strasberg enfatizava a memória sensitiva e a experiência pessoal do ator. Adler explorava a imaginação e insistia com grande entrega na caracterização, mantendo assim suas raízes com o teatro iídiche. Meisner era mais preocupado com as interações imediatas entre os personagens. Embora todas essas abordagens se sobrepusessem de muitas maneiras, existia grande rivalidade entre eles. Adler e Strasberg odiavam um ao outro de forma mortal, e seus discípulos tendiam a seguir a regra. Brando, o protegido de Stella Adler, achava que Strasberg não possuía talento algum e que sua técnica reprimia a imaginação do ator. No entanto, é importante ressaltar que Brando adorava trabalhar com Al Pacino, ator treinado por Strasberg, e considerava seu trabalho estupendo! É possível encontrar diferenças sutis de ênfase na técnica dos seguidores desses três mestres. Brando, a criatura de Stella Adler, era imensamente poderoso e nutria enorme apreço por suas caracterizações, fato em geral associado a grandes atores clássicos de Shakespeare, o que tornava ainda mais impressionante observá-lo em personagens modernos do proletariado que se comportavam de forma realista e eram incapazes de se manter estáticos durante uma fala. Em Al Pacino, treinado por Strasberg, vemos a alma revelada e as paixões inflamadas. O público o ama porque ele é o mais vulnerável e humano dos atores. Robert DeNiro, de certa forma o mais frio e técnico, talvez o mais “puro” dos atores, estudou sob a tutela de Sanford Meisner, o mestre do “aqui e agora”. No entanto, apesar dessas diferenças, a maioria dos observadores tenderia a categorizar esses atores da mesma maneira, principalmente devido às suas habilidades de trazer o personagem para uma realidade orgânica. A influência de certos diretores no trabalho de alguns atores do “Método” não pode ser ignorada. Elia Kazan foi extremamente significativo para Brando, sempre o desafiando a ir além. Brando afirmou que Kazan quase reproduzia a cena por trás da câmera enquanto o filmava, seu corpo inteiro envolvido, em movimento, como o condutor de uma orquestra tentando extrair os sons de seus músicos. Martin Scorsese também pode ser considerado um diretor do “Método”, particularmente em seu trabalho com DeNiro, Joe Pesci e Harvey Keitel. Francis Ford Coppola dirigiu Brando, Pacino e DeNiro (além de duas gerações de notáveis atores coadjuvantes do “Método”, incluindo o próprio Strasberg) na trilogia do Poderoso chefão. Em grande parte devido ao trabalho de Coppola com esses atores, os 38 filmes do Poderoso chefão são considerados obras-primas do cinema do século XX. A cena da morte de Brando é um milagre do ponto de vista da atuação e direção do “Método”. Praticamente sem dialogo, Brando improvisa um ataque cardíaco enquanto brinca com seu netinho no jardim. Os elementos da cena são altamente simbólicos (o pequeno menino regando o avô morto como se estivesse nutrindo o ciclo geracional de vida e morte no jardim de sua família mafiosa), mas é representada com o mais intenso realismo, fazendo com que os símbolos atuem em nós de forma inconsciente. A verdadeira arte não explica. Brando coloca uma casca de laranja em sua boca, depois solta grunhidos como um gorila para divertir a criança, chegando inclusive a assustá-lo um pouco, nos relembrando de ninguém menos que um cômico Stanley Kowalski! Até hoje o trabalho de Brando incomoda certas pessoas que acreditam que a atuação não deveria nos atingir tão diretamente, pelo menos não de formas tão desconfortáveis. Certa vez fui a um jantar no qual me colocaram ao lado de uma importante dona de galeria de arte, conhecida por transformar em estrelas os artistas conceituais mais de vanguarda e bizarros do planeta. Pensei que ela apreciaria a influência revolucionária de Brando na atuação e no cinema. Mas não. Quando descobriu quem eu era, começou um discurso de como Brando havia arruinado a atuação moderna, como ele era um animal incivilizado sem o menor senso de estética, e de como ela se sentiu ameaçada pelos sentimentos que vê-lo no cinema havia despertado nela. Ela preferia os atores com mais cultura, como Laurence Olivier, que entraram na era moderna com mais graça e beleza. Choquei-me ao perceber como uma dona de galeria vanguardista poderia ser na verdade uma elitista da alta classe, horrorizada com os camponeses que ousaram invadir seu sagrado templo da arte! Também me ocorreu que talvez as artes visuais também necessitem de seu próprio Brando... Robert Castle é ator, diretor e professor do Lee Strasberg Theatre Institute em Nova York há mais de dez anos. Dirigiu dezenas de peças teatrais e filmes em Nova York e Los Angeles e atualmente é um dos preparadores de elenco mais solicitados internacionalmente. Ministra workshops na França, Itália, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra e Brasil. 39 spontaneous realism Robert Castle Marlon Brando burst onto the international film scene like an enraged gorilla as Stanley Kowalski in Tennessee Willliams’ A Streetcar Named Desire. He was physical, unpredictable, moody, violent, uncouth, completely spontaneous and disturbingly sexy. Most film audiences had never seen an actor like this before. Two earlier Method actors, John Garfield and Montgomery Clift, had had something of Brando’s impulsive realistic technique, but not until Brando did an actor make an audience so uncomfortable. Not long after Streetcar, in The Wild One, Brando terrorized a small town as the leader of a motorcycle gang. But he wasn’t just the typical nasty tough guy that audiences had seen so many times before. His sensitivity and introspection, his self-doubt, made him interesting and sympathetic. By exploring, Method-style, the inner life and history of this character that most actors would play as a cliché, Brando brought something new to the cinema and to the craft of acting. When James Dean appeared in East of Eden and Rebel Without a Cause a couple of years later, audiences saw a somewhat gentler, though still unpredictable rebel. In both performers they were seeing a complex emotional life that few actors, especially male ones, had achieved previously on the screen. Other actors of this sort began to appear: Geraldine Page, Kim Stanley, Julie Harris, John Cassavetes (who went on to become America’s greatest director of independent films with his little company of Actors’ Studio trained actors), Paul Newman, Anthony Quinn and many others. And though they all shared the spontaneous real-life quality that Brando and Dean were becoming famous for, they also embodied many sorts of characters, not always playing the sexy rebel. For this reason they were not always identified so closely with Method acting. It was an accident of the cultural timing of Brando’s and Dean’s early films that caused Method acting to be identified with working-class misfits. In the late 1940’s and 50’s many countries that had been devastated by World War II saw an enormous shift in their popular culture, especially the cinema. Italian Neo-Realism led the movement toward featuring working-class characters as major protagonists, with Rosselini’s Open City and De Sica’s Bicycle Thieves. And in fact, Anna Magnani’s film presence seemed distinctively Method, though she had not trained formally in the technique. Britain’s Social Realism movement motivated many rising stars (Alan Bates, Laurence Harvey, Charlotte Rampling, Simone Signoret) toward a more organic technique. In France, Belmondo, Signoret and Trintignant were finding similar qualities in proletarian characters in the Nouvelle Vague. The new heroes and heroines were working-class, physical, inarticulate, unrefined and full of soul. And often backed up by the latest be-bop jazz scores, reflecting similar movements in music. The acting technique that came to be known as the Method had its roots in Russia in the 1890’s at the Moscow Art Theatre. Konstantin Stanislavski created the beginnings of a system that would use the actor’s personal experiences in the work. He did this by 40 focusing on sensory and emotional memories. If the actors actually feel a certain way physically, emotionally, mentally and spiritually, based partly on their own experience and partly on imagination, they will tend to more fully experience the world of the play and their role, instead of acting clichés and pre-determined poses. Stanislavski’s technique was developed further in New York at the Group Theatre, out of which came the great Method teachers, Lee Strasberg, Stella Adler and Sanford Meisner. Strasberg emphasized sense memory and the actor’s personal experience. Adler explored the actor’s imagination and insisted on great size and soul in the characterization, in keeping with her Yiddish Theatre background. Meisner was more concerned with the in-the-moment interactions between characters. Though all these approaches overlap quite a bit, there was great rivalry. Adler and Strasberg hated each other with deadly passion, and their disciples sometimes tended to follow suit. Brando, Stella Adler’s protégé, thought that Strasberg was untalented and that his technique suppressed the actor’s imagination. It must be noted, however, that Brando loved working with the Strasberg-trained Al Pacino, and thought that Pacino’s work was superb! It’s true that one can see subtle differences of technical emphasis in the followers of these three teachers. Brando was Stella Adler’s creature, hugely powerful with a great size to his characterizations that one might more commonly associate with the great classical actors of Shakespeare, and all the more impressive to see in working-class modern characters who behaved realistically and couldn’t speak through a sentence in a straight line. In Al Pacino, Strasberg-trained, we see the soul revealed and the passions ignited. Audiences love him because he’s the most vulnerable and human of actors. Robert DeNiro, somewhat colder and more technical, though perhaps the “purest” of actors, studied under Sanford Meisner, the master of the “here and now.” Yet in spite of their differences, most observers would tend to categorize these actors together, mainly because of their mutual ability to bring a character to organic, breathing reality. The influence of certain directors in the realization of the work of certain Method actors cannot be ignored. Elia Kazan was hugely influential in Brando’s work, constantly challenging him to go deeper. Brando stated that Kazan would practically act the scene off-camera while he was filming Brando, his whole body moving and engaged, like an orchestra conductor trying to pull the music out of his players. Martin Scorsese can also be considered a “Method” director, particularly in his work with DeNiro, Joe Pesci and Harvey Keitel. Francis Ford Coppola directed Brando, Pacino and DeNiro (not to mention two generations of notable Method actors in supporting roles, including Strasberg himself) in the Godfather films. In large part because of Coppola’s work with these actors, The Godfather films have come to be considered one of the masterpieces of 20th century cinema. Brando’s death scene is a miracle of Method acting and direction. With almost no dialogue, Brando improvises having a heart attack while playing with his little grandson in his garden. The elements of the scene are highly symbolic (the little boy sprinkling the dead godfather with a watering can as though nurturing the generational cycle of life and death in the garden of this Mafia family), but the scene is played with the most startling realism that makes the symbols act on us unconsciously. True art never explains. Brando puts an orange peel in his mouth, then grunts and hulks like a gorilla 41 to amuse the child, even scaring him a little, and reminding us of nothing so much as a comic Stanley Kowalski! To this day Brando’s work upsets some people, who think acting shouldn’t touch us so directly, at least not in such uncomfortable ways. I once attended a dinner in which I was seated next to a very prominent art gallery owner who was well-known for making stars of the most avant-garde and even bizarre conceptual artists on the planet. I would have thought that she would appreciate Brando’s revolutionary influence on acting and the cinema. But no. When she found out who I was, she launched into a tirade about how Brando had ruined modern acting, that he was an uncivilized animal with no sense of finer aesthetics, and that she felt threatened by the feelings he stirred within her when she saw him on the screen. She preferred more cultured actors like Laurence Olivier, actors who moved into the modern age with more grace and beauty. It struck me that this avant-garde gallerist was just a traditional upper-class elitist, horrified that the peasants had dared to invade her sacred temple of art! It also occurred to me that maybe the visual arts might just need a Brando of their own…. 42 no cinema anos 50 A carreira cinematográfica de Brando se inicia em 1951. Durante os três primeiros anos ele atua em filmes marcantes, com interpretações consideradas geniais por muitos atores e diretores – trabalhos sem precedentes que revelaram um ator extremamente versátil e inovador. É também nesse primeiro momento de sua carreira que Brando estabelece sua maior parceria artística: seu encontro com Elia Kazan foi considerado pelo próprio ator como sendo único e jamais igualado em toda a sua vida. Com Kazan ele alcançou seu maior nível de liberdade e criação, e não à toa os três filmes que fizeram juntos lhe renderam duas indicações e um Oscar de melhor ator. De 1955 a 1959, Brando se estabelece como um grande ator, um ícone cultural e uma estrela diferenciada de Hollywood. Nessa época abre sua produtora, Pennebaker Productions. 46 Espíritos indômitos The Men 1950, EUA, 85 min Direção: Fred Zinnemann Roteiro: Carl Foreman Produção: Stanley Kramer Fotografia: Robert de Grasse Montagem: Harry W. Gerstad Música: Dimitri Tiomkin Elenco: Marlon Brando, Teresa Wright, Everett Sloane, Jack Webb, Richard Erdman, Arthur Jurado, Virginia Farmer, Dorothy Tree, Howard St. John Empresa produtora: Stanley Kramer Productions Data de estréia (EUA): 07/1950 Oscar 1 indicação: melhor roteiro Ken Wilcheck (Marlon Brando) é um ex-combatente que ficou paraplégico. Ele tenta se adaptar à vida civil, mas, como outros companheiros nas mesmas condições, sente-se marginalizado, apesar de ser apoiado por Ellen (Teresa Wright), sua noiva. Este foi o primeiro filme de Brando. No entanto, embora as críticas em relação à sua atuação tivessem sido positivas, Espíritos indômitos não o transformou instantaneamente numa estrela de Hollywood. Grande provocador, Brando, antes do início das filmagens, fez declarações bombásticas sobre Hollywood, acusando-a de ser uma cidade ditada pelo medo e pelo dinheiro. “Mas eu não tenho medo de nada e não amo dinheiro.” A assessoria de imprensa do filme logo decidiu que o jovem ator não deveria mais dar entrevistas. Brando, de forma inovadora para a época, decidiu fazer laboratório para o seu personagem. Pediu para ser admitido num hospital de veteranos de guerra e passou a viver como um paraplégico. Como ainda não era conhecido, pôde se misturar aos outros pacientes sem ser percebido. Ficou um mês internado, e só no final da terceira semana revelou ser um ator. Os pacientes então passaram a contar-lhe suas experiências. 47 Uma rua chamada pecado A Streetcar Named Desire 1951, EUA, 122 min Direção: Elia Kazan Roteiro: Tennessee Williams, Oscar Saul (baseado na peça de Tennessee Williams A Streetcar Named Desire) Produção: Charles K. Feldman Fotografia: Harry Stradling Montagem: David Weisbart Direção de Arte: Richard Day Música: Alex North Elenco: Marlon Brando, Vivien Leigh, Kim Hunter, Karl Malden Empresa produtora: Warner Brothers Pictures Data de estréia (EUA): 09/1951 Oscar 4 prêmios: melhor ator coadjuvante (Karl Malden), melhor atriz (Vivien Leigh), melhor atriz coadjuvante (Kim Hunter), melhor direção de arte 8 indicações: melhor ator (Marlon Brando), melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro, melhor fotografia, melhor trilha sonora, melhor som, melhor figurino Blanche DuBois (Vivien Leigh), uma mulher frágil e neurótica, vai visitar sua irmã grávida Stella Kowalski (Kim Hunter), em Nova Orleans, em busca de um lugar para ficar, já que, após seduzir um jovem de 17 anos, fora expulsa de sua cidade natal no Mississipi. Sua chegada afetará fortemente a vida da irmã e do cunhado Stanley Kowalski (Marlon Brando), e também a sua própria vida. Versão para o cinema da peça de grande sucesso de Tennessee Williams, o filme sofreu vários cortes devido à censura. O roteiro teria que passar pelo crivo de Joseph Breen, um católico conservador diretor de censura da Production Code Administration, órgão controlador da produção cinematográfica americana. Após a leitura, Breen decretou que todo o conteúdo profano, incluindo cenas de “sexo vulgar”, deveria ser descartado para que o filme fosse aceitável para o público americano. Tennessee Williams aceitou a maioria das mudanças, mas exigiu que a cena de estupro (mesmo que apenas sugerida) permanecesse, pois era crucial para a estrutura do roteiro. Breen por fim aceitou, mas sob a condição de que o final fosse modificado – o personagem transgressor teria que ser punido. E assim aconteceu. Na última cena, Stella abraça seu bebê e sussurra a fala que modifica tudo: ela jura nunca mais voltar para Stanley. 49 A maioria do elenco que atuara na Broadway foi escalada para o filme, mantendo os papéis: Marlon Brando, Karl Malden, Kim Hunter e Rudy Bond. Uma rua chamada Pecado foi considerado um dos melhores filmes do ano por inúmeras revistas de cinema e foi também um sucesso de público, faturando 4,5 milhões de dólares, quantia extremamente significativa para a época. com a força de um bonde Eduardo Ades O que faz de Uma rua chamada Pecado uma obra-prima é a brilhante coerência entre todos os elementos postos em jogo, em especial roteiro, direção, casting e a própria atuação. Colocando em nomes, estamos falando de uma total sinergia (termo ainda válido, apesar do jargão corporativo) entre Tennessee Williams, Elia Kazan, Marlon Brando e Vivien Leigh. Antes de ir para as telas, em 1951, A Streetcar Named Desire foi encenada na Broadway, em 1947. O texto de Williams, no teatro, também fora dirigido por Kazan, com Brando no papel de Stanley Kowalski – todos os três ligados ao Group Theater e ao Actor’s Studio. Williams, entretanto, como dramaturgo, nunca teve um vínculo oficial com esses grupos (que eram compostos por diretores e atores), mas seus textos eram constantemente utilizados em exercícios e montagens. Kazan e Brando, por sua vez, eram autênticas crias (e criadores) do “Método”. Estamos no pós-guerra e as artes dramáticas passam por uma grande transformação, em busca de novas formas de linguagem, especialmente com a procura de um novo realismo e a negação das formas dramáticas do século XIX, destacadamente o melodrama. No cinema, a maior novidade é o neo-realismo italiano. Nos Estados Unidos, a novidade vem do teatro – é o Actor’s Studio, que rapidamente impregnará o cinema. Mais do que um novo método de atuação, o que o Actor’s Studio traz é uma mudança de paradigma de atuação, ou seja, uma mudança de paradigma estético – em favor, claro, de um realismo. Não bastaria, portanto, trazer novas atuações para os mesmos textos, mas também novos textos. Em Uma rua chamada Pecado, Williams enfoca o embate entre Blanche DuBois e seu cunhado Stanley Kowalski. Ele é um mecânico, um homem bruto, que divide um pequeno apartamento com sua esposa Stella, em um relacionamento conflituoso – mas que parece estável em seus conflitos. Quando Blanche, irmã de Stella, chega do interior, acaba a paz do casal, principalmente a de Stanley. Blanche é uma dondoca sulista, que gosta de roupas, jóias e perfumes, e tem atrás de si um passado misterioso que tenta esconder a todo custo. Suas maneiras, seu jeito de ser, sua crise com a idade em nada combinam com a vida daquele homem, que é um rude homem do povo – não quer saber de tirar a mesa após a refeição, não quer incômodos à sua mesa de pôquer. Mas ela quer transformar a casa e a rotina. Traz uma lanterna chinesa, toma longos banhos, liga o rádio. O conflito está dado. Blanche é a personagem do melodrama em um cenário de realismo. A opção de Kazan para o papel de Blanche, no teatro e no cinema, foi extremamente acertada – uma atriz de fora do Actor’s Studio. No teatro, a atriz britânica Jessica Tandy; no cinema, a também britânica Vivien Leigh. A substituição por Leigh, motivada em grande parte, possivelmente, pelos desentendimentos pessoais entre Tandy e Brando, não deixou de criar uma excelente dupla no cinema. Leigh vinha da montagem britânica de Um bonde...; era casada com ninguém menos do que Sir Laurence Olivier; havia estrelado o clássico E o vento levou... Ou seja, uma autêntica representante do método de atuação 51 então vigente, mais ligado à escola britânica, enfatizando as expressões faciais e a forma da colocação do texto. Blanche é, de fato, a protagonista da peça. No entanto, na encenação da Broadway (e é o que verificamos também no filme), conforme aponta a crítica Ann Douglas, do New York Times, o que Blanche ganhara em texto, Brando roubava em performance. “Ainda que ela impressionasse o público, ele o eletrizava.”* Já no cinema, temos a total certeza de que é Stanley (ou seria o próprio Brando?) o protagonista. É ele quem está em todos os cartazes, mal nos lembramos de Vivien Leigh, mal reconhecemos seu rosto. Kazan já havia notado o que acontecera com a peça e apostara (acertadamente) o sucesso do filme na performance de Brando. No entanto, isto é estarrecedor, se prestarmos atenção ao filme e verificarmos que é Blanche quem aparece na quase totalidade das cenas, é a crise dela que acompanhamos, é ela o personagem que se transforma. Cabe a Stanley uma participação que seria melhor definida como a de antagonista, não fosse a potência de sua atuação. É, portanto, importante resgatar a força da atuação de Vivien Leigh. Em uma mostra sobre Marlon Brando, é difícil parar de observá-lo e, quando ele não aparece, não ansiar por sua entrada e sua próxima grande cena. Entretanto, a força de sua atuação em Uma rua... se dá, em grande parte, por conta do contraste. Não é nenhuma novidade que, para ter uma boa atuação, um ator precisa de um bom ator com quem contracene. E aqui temos duas atuações brilhantes. Tennessee Williams, em Um bonde chamado Desejo, parece querer dizer apenas que o melodrama é uma forma do passado. Parece estar a todo tempo debochando de suas convenções, em favor do realismo, em favor da vida real que acontecia na cidade. Crises quanto à aparência, à idade, um passado mal-resolvido (uma estranha história da morte de um menino) – tudo isso é desapegado da vida que nós vivemos. Parece over, beira o ridículo. São linhas e linhas de texto, “bifes” enormes, enquanto Stanley não fala mais do que duas frases por vez. Williams debocha do melodrama, manda-o para o hospício, mas não o ignora ou o rejeita. Pelo contrário: é o melodrama o protagonista de seu Bonde. É também o protagonista de Kazan. No teatro, Blanche era seguida pelo canhão de luz. No cinema, ela ganha um tratamento absolutamente especial. Além da luz, que é tematizada no próprio texto (quando fica evidente que Blanche vive na penumbra), é sobre Blanche que acontece a quase totalidade dos efeitos sonoros – músicas não-diegéticas** e sons que refletem seu estado mental (como a passagem brutal de um bonde). Enquanto Stanley Kowalski recebe um tratamento seco por parte da direção e uma impressionante atuação realista de Marlon Brando, Blanche DuBois tem direito a todos os artifícios do cinema (não que o tratamente seco também não seja um artifício) e à brilhante atuação de Vivien Leigh, em que se pesa palavra por palavra, ruga por ruga. * DOUGLAS, Ann. “50th Anniversary for Actor’s Studio and Its Streetcar Ride to Renown”. http://partners. nytimes.com/books/00/12/31/specials/williams-douglas.html ** Músicas não-diegéticas são as músicas que não provêem de nenhuma fonte sonora presente no universo do filme – um rádio, uma banda, uma orquestra. É a trilha sonora colocada sobre as imagens. 52 Ao fim do filme, enquanto Blanche vai para o hospício, nasce uma nova criança na vida de Stella e Stanley. Fica, no entanto, a dúvida: será que Stella, dessa vez, voltará para Stanley? Será que a passagem de Blanche não colaborou para a mudança daquela forma de vida? Deboche e adesão ao melodrama. Uma rua chamada Pecado se constrói no encontro entre esses dois registros estéticos, como se fosse o ocaso do melodrama e a aurora de um novo realismo (que já não é mais o vigente, atualmente). Me parece perfeito que este, um filme que tematiza o registro da atuação, seja justamente o primeiro grande filme de Marlon Brando, o ator que mudaria a forma de atuar no cinema nas décadas seguintes. Eduardo Ades é produtor executivo e curador de mostras de cinema. Atualmente, também atua na programação do cinema do Instituto Moreira Salles. 53 Viva Zapata! Viva Zapata! 1952, EUA, 113 min Direção: Elia Kazan Roteiro: John Steinbeck Produção: Darryl F. Zanuck Fotografia: Joseph MacDonald Montagem: Barbara McLean Direção de Arte: Leland Fuller, Lyle R. Wheeler Música: Alex North Elenco: Marlon Brando, Jean Peters, Anthony Quinn, Joseph Wiseman, Arnold Moss, Alan Reed Empresa produtora: Twentieth Century-Fox Film Corporation Data de estréia (EUA): 02/1952 Oscar 1 prêmio: melhor ator coadjuvante (Anthony Quinn) 4 indicações: melhor ator (Marlon Brando), melhor roteiro, melhor direção de arte, melhor trilha sonora Em 1909, no México, um grupo de lavradores procura o presidente, afirmando que suas terras foram roubadas. Um deles, Emiliano Zapata (Marlon Brando), compreendendo que o governo não pretende fazer nada por eles, acaba se tornando um guerrilheiro, que por vários anos teve importância política na vida do país. Assim como no início de sua carreira teatral, Brando enfrentou críticas e ameaças de cortes devido à sua “má” dicção – fama que acabou por acompanhá-lo por muitos anos. Nesse filme, o grande produtor cinematográfico Darryl Zanuck queria Tyrone Power para o papel de Zapata, alegando que era impossível entender qualquer palavra que Brando pronunciava. Elia Kazan, que já havia trabalhado com Brando em Uma rua chamada pecado, defendeu sua participação. Embora existisse grande sintonia entre Kazan e Brando, o diretor usou métodos pouco convencionais para incitar a tensão necessária entre os personagens de Brando e Anthony Quinn, que fazia o papel do irmão de Zapata. As provocações de Kazan geraram reais desavenças entre os dois atores, jamais esclarecidas. Ambos haviam representado Stanley Kowalski, protagonista de Uma rua chamada Pecado, no teatro. Kazan disse a Brando que Quinn abertamente declarara que sua interpretação era infinitamente superior à de Brando. E vice-versa. Os dois, sem nunca conversarem sobre o assunto, passaram a nutrir um certo grau de ressentimento mútuo, que transpuseram para as cenas de embate entre os personagens – exatamente como Kazan queria, cheia de realismo. 55 Júlio César Julius Caesar 1953, EUA, 116 min Direção: Joseph L. Mankiewicz Roteiro: Joseph L. Mankiewicz (adaptado da peça de William Shakespeare Julius Caesar) Produção: John Houseman Fotografia: Joseph Ruttenberg Montagem: John D. Dunning Direção de Arte: Edward Carfagno, Cedric Gibbons Música: Miklós Rózsa Elenco: Marlon Brando, James Mason, John Gielgud, Louis Calhern, Edmond O’Brien, Douglass Watson Empresa produtora: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) Data de estréia (EUA): 06/1953 Oscar 1 prêmio: melhor direção de arte 4 indicações: melhor ator (Marlon Brando), melhor filme, melhor fotografia, melhor trilha sonora Em Roma, nos idos de março de 44 a.C., como fora previsto, César (Louis Calhern) é assassinado, após a alegação dos senadores de que sua ambição o transformaria em um tirano. Com um inflamado discurso, Marco Antônio (Marlon Brando) consegue conter a situação e os conspiradores são obrigados a fugir. Formam-se então dois exércitos: um comandado por Marco Antônio e Otávio (Douglass Watson) e o outro, por Cássio (John Gielgud) e Brutus (James Mason). Este segundo exército é numericamente inferior, mas os conspiradores preferem cometer suicídio a serem capturados. O ator inglês Paul Scofield tinha sido inicialmente cotado para o papel de Marco Antônio. Mas o produtor John Houseman julgou que seria uma boa jogada de marketing ter a então já grande estrela de Hollywood, Marlon Brando, recitando Shakespeare, mesmo com sua dicção “ruim”. Pediram, então, que Brando fizesse um teste. Já construindo nessa época sua reputação de difícil e excêntrico, Brando negou o teste, pois não queria ter que se dar ao trabalho de vestir o figurino para fazer a cena. No entanto, aceitou gravar algumas falas do personagem, alegando, com toda a razão, que afinal de contas a produção não estava preocupada com o seu visual, mas sim com a sua dicção. Até hoje a performance de Brando nesse filme é considerada umas das melhores interpretações de um personagem shakespeariano, equiparada à de Laurence Olivier. 57 O selvagem The Wild One 1954, EUA, 79 min Direção: Laslo Benedek Roteiro: John Paxton (baseado no livro de Frank Rooney The Cyclists’ Raid) Produção: Stanley Kramer Fotografia: Hal Mohr Montagem: Al Clark Direção de Arte: Walter Holscher Música: Leith Stevens Elenco: Marlon Brando, Mary Murphy, Robert Keith, Lee Marvin Empresa produtora: Stanley Kramer Productions Data de estréia (EUA): 12/1953 Uma gangue de 40 motoqueiros chega a uma pequena cidade da Califórnia. O líder do bando, Johnny (Marlon Brando), parece ser um destruidor incontrolável, até que se apaixona por Kathie (Mary Murphy), a “boa menina” cujo pai (Robert Keith) é o xerife local. Infelizmente, a única chance de redenção de Johnny é ameaçada pela chegada de um bando rival, liderado pelo psicótico Chino (Lee Marvin). O selvagem foi um fracasso de bilheteria e banido na Inglaterra por dez anos pelo seu con teúdo demasiado violento. Mesmo assim, foi por conta da atuação de Brando que o filme ganhou o status de cool, e ao longo dos anos também de cult, em vez de se tornar um simples fracasso cinematográfico. O filme retrata de forma razoavelmente fiel a juventude da época, o que fez com que Brando se tornasse um ícone jovem e inovador, como ocorreria com James Dean alguns anos depois com o filme Juventude transviada. A influência do personagem de Brando foi tão grande que todos os jovens queriam se vestir como ele. As vendas de camisetas brancas, casacos de couro e calças jeans subiram significativamente nos Estados Unidos. O título original do filme, The Cyclists’ Raid (numa tradução livre, “a invasão dos motoqueiros”), foi modificado para The Wild One (de fato “o selvagem”) como uma forma de tornar o personagem de Marlon Brando o elemento central da ação. Apesar de toda a boa repercussão, Brando não gostou do resultado final do filme. Ainda durante as filmagens, sua frustração já era tamanha que passou a comer muito no set, acabando por achar-se muito gordo. 59 THE WILD ONE Felipe Bragança Uma pequena dissonância no tom de voz de Brando, silêncios fora de lugar adornados por ruídos de motocicletas e uma fluidez de ações fortuitas nos levam a este filme seco onde a idéia do comportamento no vazio, da ação no vazio, é o eixo central de uma curta narrativa. Estão ali os códigos melodramáticos do homem que agindo de forma desregrada desestabiliza a vida de uma figura feminina – mas aqui eles aparecem numa curiosa fusão com uma narrativa de deriva e aventura. As motos em conjunto, como um enxame, protagonizam, como bichos, as cenas de maior densidade dramática do filme – sendo objeto tanto de brincadeira, quanto de prazer romântico, quanto de medo e pavor. Brando imprime a seu Johnny um ar levemente acima do solo, de nobre melancolia, em que as mínimas expressões se dão como valor máximo para a construção da possibilidade de afeto numa iconografia marcada pela idéia do combate pelo combate, da rebeldia pela rebeldia. Referência para a construção do sentido do juvenil no cinema moderno, The Wild One (O selvagem) dialoga diretamente com o Ray de Rebel without a Cause (Juventude transviada), ainda que se diferenciem especialmente pelo tom agressivo/ácido/jocoso de Dean versus a melancolia raivosa de Brando. Há uma dor noir que permeia o filme e que o mantém sempre a uma certa distância de uma adesão mais radical aos desejos de seu protagonista. A sensualidade do rosto liso de Brando é aqui associada ao brilho das motos, em cena direta em que a jovem protagonista fala de seus sentimentos por ele enquanto quase se enrosca na roda da motocicleta, acaricia, toca o rosto. A narrativa simples é então espaço para que esses pequenos momentos de picardia, de graça raivosa, de sensualidade quase infantil, possam vir à tona construindo não tanto personagens, mas iconografias de ações tipificadas. Uma certa austeridade na direção parece ser apenas interrompida pelos faróis luminosos das motos, e pelo humor sutil de algumas cenas em que a inutilidade das ações das gangues nos levam a passagens cinematográficas de simples observação de um imaginário em atualização: jaquetas de couro, motos, luzes, risos, garrafas, beijos, explosões corporais. O coração amolecido do protagonista pela jovem filha do policial apenas nos prepara para a vibrante seqüência final de perseguição e impacto, onde fica exposto o eixo de sentido do filme: uma pequena crônica sobre um duelo entre diferentes formas da agressividade/selvageria. A agressividade como desejo do ruído juvenil e do amor que quer agarrar/morder/desestabilizar, e a agressividade da manutenção da ordem, da paz, da justiça. A rebeldia inútil de Johnny é controposta ao motim social dos homens-de-bem da cidade, que resolvem fazer justiça por si sós, com as próprias mãos. Não há, porém, uma clara adesão a qualquer desses lados, e é difícil apontar um lado certo, um lado superior a outro. Essa dubiedade se exprime na forma como o desfecho dramatúrgico é todo desenhado em torno de uma troca de olhares (campo/contracampo) entre Johnny e a jovem balconista, em que, se há possibilidde de contato (ela momentos antes no filme dizia ter vontade de tocá-lo, mas que para isso ele precisava parar de lutar contra), esse contato não cria, por fim, uma síntese reveladora ou solucionadora desse embate: Johnny seguirá na estrada, incapaz de permanecer, sendo contra tudo o que aparecer, e a me60 nina permanecerá ali, no mesmo balcão, esperando a fuga que nunca chega nem nunca chegará. Curiosamente, indo no sentido contrário de seu primeiro plano e da voz off que o adorna, o filme termina por colocar a câmera ao lado da protagonista feminina, esse lugar da ordem sonhadora, da ordem que sonha com a brisa e um passeio de moto à luz da lua mas que nunca se arrisca até o fim – ao olhar de longe, plano aberto e morno, o distanciamento de Brando e sua moto sob os créditos de “FIM”. A selvageria de que trata o título parece ser, para o projeto do filme, uma espécie de vida passível apenas de ser observada em uma curta narrativa organizadora, uma passagem fabular, um pouso, uma anedota – mas nunca como uma forma intrínseca/afetiva ao fazer, ao ser cinematográfico. The Wild One é, assim, um curioso caso de um filme tímido, careta, estanque e moralista, apaixonado pela idéia do fluxo, do novo, do risco e da coragem. O resultado é de uma fragilidade encantadora. Felipe Bragança é cineasta. 61 Sindicato de ladrões On the Waterfront 1954, EUA, 108 min Direção: Elia Kazan Roteiro: Budd Schulberg Produção: Sam Spiegel Fotografia: Boris Kaufman Montagem: Gene Milford Direção de Arte: Richard Day Música: Leonard Bernstein Elenco: Marlon Brando, Karl Malden, Eva Marie Saint, Lee J. Cobb, Rod Steiger, Pat Henning, Leif Erickson, James Westerfield Empresa produtora: Columbia Pictures Data de estréia (EUA): 07/1954 Oscar 8 prêmios: melhor ator (Marlon Brando), melhor atriz coadjuvante (Eva Marie Saint), melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro, melhor fotografia, melhor montagem, melhor direção de arte 4 indicações: melhor ator coadjuvante (Lee J. Cobb, Karl Malden, Rod Steiger), melhor trilha sonora Terry Malloy (Marlon Brando) é um ex-boxeador que entra para a gangue exploradora de Johnny Friendly (Lee J. Cobb), presidente do sindicato de estivadores das docas de Hoboken em Nova Jersey. Quando um trabalhador inocente morre, Terry sente-se culpado e passa a tentar se redimir de suas ações passadas lutando diretamente contra o sindicato – e sofrendo as conseqüências. Além disso, acaba por se apaixonar pela irmã do falecido, a jovem e inocente Edie Doyle (Eva Marie Saint). Na época, Marlon Brando foi o ator mais novo a receber um Oscar. De início Brando negou o papel de Terry Malloy, como protesto por Elia Kazan ter colaborado com o House Committee on Un-American Activities, a comissão investigadora americana anticomunismo, que em 1947 criara a famosa lista negra de Hollywood, acusando diversos artistas de propaganda comunista. Acabou cedendo, mas fez o filme sob uma condição: que pudesse sempre deixar o set às 16hs para ir às suas sessões diárias de análise. Em uma ocasião, essa exigência quase criou um mal-estar no set. Terminados seus close-ups na cena do carro, Bran63 do saiu para a consulta. Rod Steigner, que contracenava com Brando, não sabia o porquê de sua saída e ficou extremamente ofendido, pois foi deixado sozinho para gravar o restante da cena. Steigner teve que fazer seus close-ups com Kazan lendo as falas de Brando. Como laboratório para o filme, Brando trabalhou por alguns dias nas docas de Hoboken. Porque Terry era um ex-boxeador, Kazan pediu a Brando para praticar boxe diariamente. Brando não só treinou como também passou muito tempo com um ex-pugilista – que se tornou a maior influência na construção desse personagem. 64 O Olhar e o Gesto Rudi Lagemann Em Sindicato de ladrões há a simbiose perfeita entre o autor/diretor (Elia Kazan) e o autor/ ator (Marlon Brando). O processo de trabalho de Kazan é propício ao método de interpretação utilizado por Brando, e o resultado é uma obra-prima sobre a natureza humana, em forma de filme. Em um set de filmagem, no início dos trabalhos, duas questões, entre tantas, tornam-se prementes para um diretor responder: onde será colocada a câmera e qual o tom da cena. Ao responder à primeira, o diretor disciplina a disposição dos inúmeros técnicos, equipamentos e veículos no local. Com a segunda resposta, ele diz ao elenco qual a abordagem dramática do que ali será feito. Em um filme de ação, há muitas posições de câmera (a edição requer muitos cortes) e, portanto, o set de filmagem de uma produção desse gênero é sempre movimentado, carregado de frenesi. Numa comédia ou drama, a câmera é mais tranqüila e os seus movimentos, quando existem, são serenos: o tempo da ação é dado pelo timing do ator. Elia Kazan, o diretor, trabalha em Sindicato de ladrões como o fez em seus outros filmes: a câmera é clássica, praticamente fixa (como se fosse um filme de um contemporâneo seu, o cineasta japonês Ozu). O quadro da imagem praticamente não se move. Ele é estabelecido, e o que se move está dentro do quadro. As seqüências são introduzidas por belos planos de apresentação do ambiente, do universo abordado (aqui, o cais do porto e a vida dos trabalhadores deste lugar), e a partir dessa introdução o drama humano se desenrola através de um encadeamento de planos fixos, por vezes angulados, mas na maior parte das vezes na altura dos olhos dos personagens, dando a eles a primazia sobre o que ali acontece. Interessa a Kazan o personagem e a sua participação no mundo enfocado. Interessa a Kazan o drama humano. Interessa a Kazan o ator. Marlon Brando, o ator, estudou no Actor’s Studio, escola fundada por Kazan e Lee Strasberg em 1947. O filme é de 1954. A relação entre esses fatos é importante; a influência da escola é notória na interpretação contida e realista de Brando. Terry, o seu personagem, é um ex-lutador simplório, e o vemos no início do filme como um sujeito perdido no seu mundo. Ele tenta, através de seus gestos, compactuar com aqueles que o rodeiam – o modo como cumprimenta o chefe dos gângsters, Johnny Friendly (Lee J. Cobb), a forma como dá esmola para o bêbado na praça. Ao mesmo tempo, o olhar de Terry já na terceira cena do filme, em frente ao bar, mostra que ele não compreende exatamente o que ali acontece (a morte do grevista Doyle). Terry não gesticula, não levanta a voz, apenas resmunga em sussurros e em pausas que são plataformas para olhares oblíquos, carregados de ruína íntima. A relação bem sucedida entre Kazan e Brando se dá durante todo o filme, mas há seqüências representativas dessa união. Logo no início da história, na cena em que os investigadores abordam Terry no cais, Kazan faz um leve movimento de travelling para formar com os três atores um triângulo. Desta forma, ele permite que Brando dê as costas a um ou aos dois policiais, ao invés de falar frente a frente com seus inquisidores, como 65 seria o modo usual. Brando aproveita então para mascar seu chiclete de modo displicente e olhar para o nada ao invés de cruzar os olhos com os de seus interlocutores. Kazan dá a moldura e Brando desenha e pinta dentro dela. Outro momento de composição de quadro simples e interessante: Terry passeia com Edie Doyle (Eva Marie Saint) na praça. Logo depois, eles chegam à murada de grades. Na gramática clássica de cinema, quando se filma um diálogo em plano e contraplano, a lente utilizada para um ator o é também para o outro. Mas aqui não. A lente utilizada para Edie é fechada, privilegiando o seu semblante, inocente e sofrido. Já Terry é filmado em lente mais aberta, para enquadrar a sua postura frente a Edie: ele está na posição de caçador, o corpo está todo voltado para ela, uma mão agarrada na grade, o braço esticado. Brando sabe como está sendo enquadrado e se utiliza da sua postura para engrandecer a cena. Não há grandes gestos, o mascar de chiclete é mais tranqüilo, o olhar chega a ser doce. A paixão está nascendo e está presente na imagem do seu corpo perfilado junto ao dela. Certamente, mulheres do mundo inteiro gostariam de estar no lugar de Eva Marie Saint naquele momento. À medida que o filme se desenrola e a trama se aprofunda (Terry está apaixonado por Edie mas tem que decidir de que lado está, o dos gângsters ou o dos trabalhadores do cais), os gestos de Terry tornam-se mais presentes. São as mãos esfregadas na nuca e testa quando pensa e titubeia, a clássica puxada da gola da jaqueta para encontrar mais ar nas horas de aperto psicológico, o mascar de chiclete que se torna mais frenético. Há uma fúria contida que assim se extravasa. Os quadros de Kazan continuam parados, porém são mais angulados quando necessários. Kazan não se permite apenas o silêncio. Manifesta-se de modo expansivo como diretor, como por exemplo na cena em que Terry declara a sua culpa a Edie, fazendo com que tal declaração fique emudecida pelo apito de um navio. O olhar de Terry durante o filme impressiona. É como se Brando trabalhasse sempre três pontos no horizonte, sendo dois deles pontos quaisquer e um o do interlocutor (que é sempre o menos utilizado). Assim, temos a impressão o tempo todo de que Terry está inquieto, aflito, pensando sobre o que acontece – “sobre a tal consciência”, como ele diz. A fragilidade do personagem, suas dúvidas, ganham destaque em duas cenas. Terry e Edie no bar, em uma conversa de singeleza e angústia. A dor dos personagens transborda em cada quadro, em cada olhar, em cada gesto. O magnetismo de Brando transcende. Já na cena final, de Terry com o irmão no táxi, onde o passado do personagem vem à tona, Kazan propícia a Brando e Rod Steiger (Charley “the Gent”, o irmão desonesto) a oportunidade do brilho. Os dois estão enclausurados no banco traseiro de um táxi e a longa conversa é mergulhada em emoções. É difícil. a opção de um diretor de levar tal diálogo numa situação destas: o banco de um carro, que paralisa o movimento dos atores, onde a performance destes será feita mais na inflexão e modulação da voz, nos matizes do olhar. E é nesse desafio que o filme se supera: o olhar de frustração de Terry com sua própria vida e com as opções feitas, expressando a sua alma devastada e impotente, é inesquecível, um momento eterno do cinema. 66 Assim, o olhar e gesto de Kazan, que se expressam na lente a ser utilizada, no movimento de câmera a ser empregado e no tom da cena a ser adotado, encontram no olhar e gesto de Brando o espelho da criação e autoria. Os dois se transformam em um. O resultado é um grande filme. Rudi Lagemann é roteirista e diretor. 67 Garotos e garotas Guys and Dolls 1955, EUA, 152 min Direção: Joseph L. Mankiewicz Roteiro: Joseph L. Mankiewicz (baseado no livro para o musical de Jo Swerling e Abe Burrows Guys and Dolls e no conto de Damon Runyon The Idyll of Miss Sarah Brown) Produção: Samuel Goldwyn Fotografia: Harry Stradling Montagem: Daniel Mandell Direção de arte: Joseph C. Wright Música: Frank Loesser Elenco: Marlon Brando, Jean Simmons, Frank Sinatra, Vivian Blaine, Robert Keith, Stubby Kaye Empresa Produtora: The Samuel Goldwyn Company Data de estréia (EUA): 11/1955 Oscar 4 indicações: melhor fotografia, melhor direção de arte, melhor trilha sonora, melhor figurino No submundo de Nova York, entre pequenos furtos e jogadores profissionais, o banqueiro Nathan Detroit (Frank Sinatra) desafia o jogador Sky Masterson (Marlon Brando) a seduzir Sarah Brown (Jean Simmons), uma voluntária do Exército da Salvação, e levá-la para Havana. Sky Masterson vence a aposta, mas o casal acaba se apaixonando de verdade. Convidado para participar de Garotos e garotas, Brando relutou, pois nunca havia cantado e dançado antes. J. Mankiewcz respondeu dizendo que também nunca havia dirigido um musical e ambos estariam aprendendo juntos. Com esse argumento Brando aceitou o desafio de interpretar Sky Masterson, e fez aulas de canto e dança com os melhores profissionais como preparação para o papel. Marlon Brando e Frank Sinatra tinham métodos de trabalho distintos, o que gerou muito desentendimento durante as filmagens. Além disso, Sinatra cobiçara o papel de Sky Masterson, e pela segunda vez perdera um personagem para Brando: em Sindicato de ladrões, era ele o nome inicialmente cotado para interpretar Terry Malloy. Brando não gostava de ir às estréias de seus filmes. Porém, o produtor Samuel Goldwyn ofereceu-lhe um carro, um Thunderbird branco conversível, se ele fosse à estréia de Garotos e garotas em Nova York – e com isso Brando sentiu-se seduzido a ir. Sua chegada causou tanta exaltação que sua limusine não conseguiu alcançar a entrada do cinema da Times Square. O público rompeu as barreiras da segurança, atacando o carro, e Brando teve que ser carregado pela polícia. O assédio era tanto que ele quase foi sufocado por fãs histéricas que puxaram sua gravata. 69 Sayonara Sayonara 1957, EUA, 147 min Direção: Joshua Logan Roteiro: Paul Osborn (baseado no romance de James A. Michener Sayonara) Produção: William Goetz Fotografia: Ellsworth Fredericks Montagem: Philip W. Anderson, Arthur P. Schmidt Direção de Arte: Ted Haworth Música: Franz Waxman Elenco: Marlon Brando, Red Buttons, Patricia Owens, Ricardo Montalban, Martha Scott, Miiko Taka, Miyoshi Umeki, James Garner Empresa produtora: Pennebaker Productions, William Goetz Productions Data de estréia (EUA): 12/1957 Oscar 4 prêmios: melhor ator coadjuvante (Red Buttons), melhor atriz coadjuvante (Miyoshi Umeki), melhor direção de arte, melhor som 6 indicações: melhor ator (Marlon Brando), melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia, melhor montagem O Major Lloyd Gruver (Marlon Brando) é um grande aviador da Guerra da Coréia, posteriormente enviado ao Japão. Ele apóia veementemente a proibição militar a casamentos entre os soldados americanos e as moças japonesas – até começar a viver um amor que desafia seus próprios preconceitos e o põe em confronto direto com a Força Aérea dos Estados Unidos e até com os tabus culturais japoneses. Brando só aceitou fazer o filme se o final fosse reescrito – inicialmente o oficial americano não se casaria com a japonesa. Durante as filmagens, Truman Capote, então jornalista da New Yorker, viajou até o Japão para fazer um perfil do jovem galã. Para induzi-lo a falar, Capote levou uma garrafa de vodca para a entrevista e se abriu com Brando sobre sua vida pessoal. Após uma conversa de cinco horas, publicou um perfil que transformou a imagem pública do ator, expondo-o como uma estrela de cinema exigente e acima do peso, que na matéria confessa ser um homem confuso e vulnerável. Marlon Brando sentiu-se seriamente traído por Capote e se arrependeu de ter se exposto de tal forma. Foram necessários quase 20 anos até ele voltar a dar entrevistas. 71 Os deuses vencidos The Young Lions 1958, EUA, 167 min Direção: Edward Dmytryk Roteiro: Edward Anhalt (baseado no romance de Irwin Shaw The Young Lions) Produção: Al Lichtman Fotografia: Joseph MacDonald Montagem: Dorothy Spencer Direção de Arte: Addison Hehr, Lyle R. Wheeler Música: Hugo Friedhofer Elenco: Marlon Brando, Montgomery Clift, Dean Martin, Hope Lange, Barbara Rush, May Britt Empresa produtora: Twentieth Century-Fox Film Corporation Data de estréia (EUA): 04/1958 Oscar 3 indicações: melhor fotografia, melhor trilha sonora, melhor som Durante a Segunda Guerra Mundial, Christian Diestl (Marlon Brando), um instrutor de esqui alemão que passava grande parte do ano trabalhando como sapateiro, torna-se um tenente nazista na frente de batalha. Em Nova York, Michael Whiteacre (Dean Martin), um cantor, fica sabendo que passou no exame médico do exército e logo terá de se apresentar, assim como Noah Ackerman (Montgomery Clift), que aceita a convocação com resignação e acaba se tornando amigo de Michael. Com o recrudescimento da guerra, é uma questão de tempo até que as vidas dos dois americanos e do alemão se cruzem. Como em vários outros filmes, Brando andava com o seu próprio maquiador, Phil Rhodes, pois insistia em definir as caracterizações de todos os seus personagens. Nesse filme, pediu para Phil pintar seu cabelo de louro platina e modificar-lhe o nariz para que ficasse semelhante ao de John Barrymore. Essa insistência em construir artisticamente seus próprios personagens o levou a brigar com o diretor Edward Dmytryk, que inicialmente não queria aceitar as modificações de roteiro sugeridas por Brando para que seu personagem ficasse mais humanizado e simpático. Mas, no fim, acabou por concordar com as idéias de Brando, que sempre alegava que “só um ator pode criar um personagem”: “Eu interpreto esse personagem; agora ele existe. É minha criação.” 73 Vidas em fuga The Fugitive Kind 1959, EUA, 119 min Direção: Sidney Lumet Roteiro: Tennessee Williams, Meade Roberts (baseado na peça de Tennessee Williams Orpheus Descending) Produção: Martin Jurow, Richard Shepherd Fotografia: Boris Kaufman Montagem: Carl Lerner Direção de Arte: Richard Sylbert Música: Kenyon Hopkins Elenco: Marlon Brando, Joanne Woodward, Anna Magnani, Maureen Stapleton Empresa produtora: Pennebaker Productions Data de estréia (EUA): 04/1960 Valentine Xavier (Marlon Brando) é um músico de Nova Orleans que se apresenta aqui e ali até decidir se instalar na pequena cidade de Two Rivers, no Mississippi, trabalhando como balconista de uma loja. Sua presença forte e silenciosa atrai não só a garota festeira local (Joanne Woodward), mas também a excêntrica esposa (Anna Magnani) do gerente da loja, criando um explosivo triângulo amoroso. Antes de se tornar diretor, Sidney Lumet atuava e chegou a substituir Marlon Brandon na peça A Flag is Born, na Broadway, em 1946. O monólogo em que Valentine Xavier (Marlon Brando) descreve para Lady Torrance (Anna Magnani) um tipo de pássaro que não pertence a lugar algum, considerada por muitos como a melhor cena do filme, teve 34 tomadas até que Sidney Lumet e Brando estivessem satisfeitos. Durante as filmagens, Brando enfrentava problemas pessoais, lutando pela guarda de seu filho. Tinha extrema dificuldade em se concentrar no trabalho e chegou até a pedir um afastamento do filme. 75 anos 60 Brando inicia essa década na pós-produção de seu primeiro e único filme como diretor, A face oculta. Durante os anos 60 participa de filmes malsucedidos em termos de bilheteria para os parâmetros de Hollywood e malvistos pela crítica, que quase chegou a anunciar o seu declínio como grande estrela do cinema americano. No entanto, Brando estava à procura de parcerias com grandes diretores: trabalhou com Gillo Pontecorvo, Arthur Penn, John Huston e o lendário Charles Chaplin. Nessa década começa também a aparecer com veemência o seu ativismo político, atitude nada comum entre astros de Hollywood. Brando apoiou as causas dos índios americanos na luta por seus direitos e também os Panteras Negras, em 1968. A face oculta One-eyed Jacks 1961, EUA, 141 min Direção: Marlon Brando Roteiro: Guy Trosper, Calder Willingham (baseado no romance de Charles Neider The Authentic Death of Hendry Jones) Produção: Frank P. Rosenberg Fotografia: Charles Lang Montagem: Archie Marshek Direção de Arte: J. McMillan Johnson, Hal Pereira Música: Hugo Friedhofer Elenco: Marlon Brando, Karl Malden, Katy Jurado, Pina Pellicer, Ben Johnson Empresa produtora: Pennebaker Productions Data de estréia (EUA): 03/1961 Fugindo após o roubo a um banco do México, um dos assaltantes, Dad Longworth (Karl Malden), vê a chance de ficar com o ouro roubado e deixar Rio (Marlon Brando), seu cúmplice, para ser capturado. Alguns anos depois, Rio escapa da prisão e passa a caçar seu ex-amigo, para se vingar. Nesse período Dad se tornara um respeitável xerife na Califórnia, que teme o retorno de Rio. No início do projeto, A face oculta tinha nomes de peso em sua ficha técnica: Sam Peckinpah seria o roteirista e Stanley Kubrick, o diretor. Porém Peckinpah foi substituído por Guy Trosper e Kubrick, pelo próprio Marlon Brando. Logo no início os executivos da Paramount começaram a se preocupar seriamente com o filme, pois Brando estava estourando o orçamento, custando ao estúdio 50 mil dólares por dia. Brando respondeu que estava fazendo um filme e não um orçamento e continuou a trabalhar em seu próprio ritmo. O que seria um filme com três meses de filmagem tornou-se um épico filmado em mais de seis meses e com um orçamento de 6 milhões de dólares. A edição do filme foi um outro problema para Brando. Sem experiência em montagem, ele sofreu pressões ainda maiores do estúdio. A isso somavam-se problemas pessoais (sua mulher Ana Kashfi estava entrando com o pedido de separação e seu analista, Bela Mittleman, morrera devido a uma doença fulminante), e Brando sentia-se incapaz de terminar o trabalho. O estúdio acabou por tirá-lo da finalização e terminou o filme sem a “ajuda” do diretor. 79 O grande motim Mutiny on the Bounty 1962, EUA, 179 min Direção: Lewis Milestone Roteiro: Charles Lederer (baseado no romance de Charles Nordhoff e James Norman Hall Mutiny on the Bounty) Produção: Aaron Rosenberg Fotografia: Robert Surtees Montagem: John McSweeney Jr. Direção de Arte: George W. Davis, J. McMillan Johnson Música: Bronislau Kaper Elenco: Marlon Brando, Trevor Howard, Richard Harris, Hugh Griffith, Richard Haydn, Tarita Empresa produtora: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) Data de estréia (EUA): 11/1962 Oscar 7 indicações: melhor filme, melhor fotografia, melhor edição, melhor direção de arte, melhor trilha sonora, melhor canção original, melhor efeito especial Em 1787 o Bounty deixa Portsmouth com destino ao Taiti, com a missão de trazer um valioso carregamento. Obcecado em cumprir com seu dever, o Capitão William Bligh (Trevor Howard) adota métodos extremamente rígidos. O forte descontentamento da tripulação, que inclui o Primeiro-Tenente Fletcher Christian (Marlon Brando), acaba resultando em um motim. Antes de aceitar o convite para participar da refilmagem de O grande motim, Brando recusou o papel-título do filme Lawrence da Arábia, alegando que jamais ficaria dois anos de sua vida no deserto montado num camelo. O papel deu grande notoriedade ao ator inglês Peter O’Toole. Até o início das filmagens, Brando sabia muito pouco sobre o Taiti: só conhecia as pinturas de Gauguin. No set do filme, apaixonou-se perdidamente pelo lugar e por seu par romântico, a taitiana Tarita. Essa paixão resultou no casamento dos dois e na compra do atol de Tetiaroa. Sua quase idolatria pelo Taiti o motivou pelo resto da vida a desenvolver projetos ambientais audaciosos na ilha, em sua maioria frustrados. 81 A condessa de Hong Kong A Countess from Hong Kong 1967, EUA/Inglaterra, 120 min Direção: Charles Chaplin Roteiro: Charles Chaplin Produção: Charles Chaplin, Jerome Epstein Fotografia: Arthur Ibbetson Montagem: Gordon Hales Direção de Arte: Robert Cartwright Música: Charles Chaplin Elenco: Marlon Brando, Sophia Loren, Sydney Chaplin, Tippi Hedren, Patrick Cargill, Michael Medwin Empresa produtora: Universal Pictures, Chaplin Film Productions Ltd. Data de estréia (EUA): 03/1967 Com a Revolução Russa, vários integrantes da nobreza local fugiram para a China e Hong Kong. Lá suas filhas, apesar de terem títulos nobiliárquicos, precisam se prostituir para sobreviver. Uma dessas mulheres é Natascha (Sophia Loren), condessa de pai russo, que é apresentada ao empresário Ogden Mears (Marlon Brando) quando o seu navio aporta em Hong Kong. Ogden e seu amigo Harvey (Sydney Chaplin) saem com Natascha e outras mulheres acreditando que não passará de uma aventura de um dia. Porém, quando o navio deixa Hong Kong, Ogden encontra Natascha escondida no guarda-roupas de sua cabine. Charles Chaplin escreveu A condessa de Hong Kong em 1938 para sua então esposa, Paulette Goddard. No entanto, o filme só foi rodado em 1967, sendo o último de sua carreira. Brando considerava Chaplin um dos maiores gênios da história do cinema. Mas A condessa de Hong Kong foi julgado obsoleto pelos críticos americanos. O diretor continuava fazendo uma comédia de costumes, mantinha a câmera estática e marcava entradas grandiosas para suas estrelas – mas o mundo mudara muito desde 1930. De início, Marlon Brando e Sophia Loren estavam animados com a parceria, mas no decorrer das filmagens houve desavenças entre os dois, que transpareceram para a câmera, fazendo com que faltasse química ao casal. Charlie Chaplin afirmava que era necessário relembrá-los constantemente de que se tratava de uma história de amor, pois a antipatia entre eles estava mais do que evidente. 83 O pecado de todos nós Reflections in a Golden Eye 1967, EUA, 109 min Direção: John Huston Roteiro: Gladys Hill, Chapman Mortimer (baseado em no romance de Carson McCullers Reflections in a Golden Eye) Produção: John Huston, Ray Stark Fotografia: Aldo Tonti Montagem: Russell Lloyd Direção de Arte: Bruno Avesani Música: Toshirô Mayuzumi Elenco: Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Brian Keith, Julie Harris, Zorro David, Gordon Mitchell, Irvin Dugan Empresa produtora: Warner Brothers Pictures, Seven Arts Data de estréia (EUA): 10/1967 Weldon Penderton (Marlon Brando) é um major que vê sua carreira em franca decadência após o término da Segunda Guerra Mundial. Seus problemas levam também a uma crise em seu casamento, acompanhada atentamente por um casal de vizinhos e um recruta que nutre uma paixão platônica pela esposa de Penderton (Elizabeth Taylor). Montgomery Clift estava inicialmente cotado para o papel do Major Penderton, e sua participação foi defendida inclusive por Elizabeth Taylor, grande amiga sua. Mas, antes que as negociações pudessem ser finalizadas, Clift morreu repentinamente de um ataque do coração em julho de 1966, aos 45 anos. Clift e Brando já haviam trabalhado juntos em Os deuses vencidos e, com James Dean, haviam formado o trio de novos jovens talentos de Hollywood na década de 50. John Huston percebeu que a técnica de interpretação de Elizabeth Taylor era completamente oposta à de Brando. Para ela, Huston pedia poucas tomadas de uma só cena, mas para Brando sempre pedia inúmeras repetições. Ele conta que “eu poderia ter dito ok com maior freqüência; mas, conhecendo Marlon e como ele trabalhava, eu sempre pedia mais. Fazíamos uma cena três vezes e cada vez era diferente; e todas poderiam ser usadas. Nunca vi nenhum outro ator fazer isso.” De início Elizabeth Taylor, incomodada com o "enrolado" sotaque sulista de Brando, chamava-o de "Mr. Mumbles". Mas Brando foi um companheiro de cena impecável, com uma atuação corajosa que arriscou caminhos jamais desbravados por nenhum outro ator até então, e no decorrer das filmagens a opinião de Taylor mudou. Seu marido, Richard Burton, escreveu em seu diário: "A atitude de Brando é honesta e limpa. Não por acaso ele é um ator tão magnetizante e convincente.” 85 Queimada! Burn! 1969, Itália/França, 112 min Direção: Gillo Pontecorvo Roteiro: Franco Solinas, Giorgio Arlorio Produção: Alberto Grimaldi Fotografia: Marcello Gatti, Giuseppe Ruzzollini Montagem: Mario Morra Direção de Arte: Piero Gherardi Música: Ennio Morricone Elenco: Marlon Brando, Evaristo Márquez, Normal Hill, Renato Salvatori Empresa produtora: Produzioni Europee Associati (PEA) Data de estréia (EUA): 10/1970 No século XIX, o representante inglês William Walker (Marlon Brando) é mandado para uma ilha do Caribe que se encontra sob domínio português, para favorecer os negócios da Coroa inglesa. Sua missão é convencer os escravos das vastas plantações de açúcar a se rebelar, tomar o comércio para a Inglaterra e restabelecer o regime de escravidão. Dez anos depois, ele retorna para depor quem colocara no poder, pois o momento econômico exige um novo quadro político na região. Brando negou o convite para trabalhar com Elia Kazan em Movidos pelo ódio e o papel principal em Butch Cassidy e Sundance Kid. O único filme em que tinha interesse no momento era Queimada!. Depois de ver A batalha de Argel, Brando teve vontade de trabalhar com Pontecorvo, alegando que ele e o diretor dividiam a mesma esfera política. Já completamente caracterizado para o papel, barbudo e descabelado, Brando embarca no Aeroporto Internacional de Los Angeles e resolve fazer uma brincadeira com a aeromoça. Ao perguntar se o avião estava indo para Cuba, é confundido com um seqüestrador e levado pela polícia para interrogatório. Já no solo, mas ainda detido, foi finalmente reconhecido. Depois de pedidas as devidas desculpas, Brando voltou para casa, para então reembarcar para Cartagena, já três dias atrasado para as filmagens. No decorrer das filmagens, Brando se desentendeu seriamente com o Pontecorvo por questões ligadas às condições de trabalho da equipe. Após 36 semanas, Brando chegou ao seu limite. Depois de Gillo insistir em 40 tomadas de uma mesma cena, Brando nem se deu ao trabalho de discutir com o diretor: simplesmente entrou num avião de volta para casa. Disse aos produtores que arranjassem um local de trabalho mais habitável ou que então poderiam procurar um ator substituto. As filmagens recomeçaram um mês depois no Marrocos. 87 Brando e os oprimidos Eduardo Ades e Fabiana Comparato Impossível assistir a Queimada! (1969) e não se lembrar do filme anterior de Gillo Pontecorvo, seu grande clássico, A batalha de Argel (1966), especialmente pela discussão sobre o colonialismo, que está na base dos dois roteiros. E foi exatamente o teor do discurso explorado em Batalha que levou o já consagrado Marlon Brando a se interessar por Queimada!. O conteúdo crítico de Pontecorvo entusiasmou o ator, que nessa época se envolvia com maior intensidade nas questões políticas e sociais mais evidentes dos Estados Unidos (os direitos civis dos povos indígenas e dos negros). Movido pela identificação com o foco do diretor, Brando protagonizou o filme, que provou ser um fracasso de bilheteria mas, apesar de tudo e acima de tudo, serviu para demonstrar mais uma vez o talento do ator-galã, que atuou com versatilidade e potência. Logo, também é impossível assistir a Queimada! e não notar a impactante atuação de Marlon Brando. No início do filme, somos apresentados de uma só vez ao protagonista, ao cenário e ao contexto histórico. Do barco em que chega Sir William Walker, avistamos a ilha de Queimada e ouvimos uma explicação sobre sua história: o nome da ilha se deve a um incêndio produzido pelos colonizadores portugueses para extermínio dos indígenas, substituindo a mão-de-obra por negros escravos, que representam, naquele momento, 195 mil habitantes (contra 5 mil europeus), dedicados majoritariamente ao cultivo da cana. Não vai demorar muito para se perceber que a curiosidade desse homem, representado por Brando com toda a empáfia cabível ao personagem, não é a de um inofensivo viajante, mas a de um agente do Império Britânico que tem o objetivo de incitar uma revolução junto aos escravos, para que a ilha passe à área de influência, ou melhor, controle do governo britânico, enfraquecendo o domínio português. Obviamente, a escolha do nome do personagem não se dá por acaso, fazendo referência direta ao homônimo William Walker, mercenário e agente do exército norte-americano, responsável por intervir na política de diversos países latino-americanos, tendo inclusive tomado posse do governo da Nicarágua em 1856. No entanto, o que há de mais importante no personagem real, que serve de base ao fictício, é o uso mínimo da força bélica, expressando a tese central e fundamental de Queimada!: a arma mais potente nas mãos do opressor é a mente do oprimido. Se não foi pela força física que 5 mil pessoas submeteram aqueles 195 mil negros à escravidão, não será pela força física que Sir Walker colocará em xeque o domínio português, mas pelo controle das mentes da esmagadora maioria de oprimidos. E é exatamente com uma atuação controlada e imponente que Brando guia a força irrefutável de Sir Walker. Com um roteiro estruturado em torno das teorias marxistas do colonialismo, em especial as de Franz Fanon, e bem fundamentado em experiências históricas, o filme teve (e ainda tem) um sucesso grande entre a crítica de esquerda, que realizou uma leitura ideológica da obra. O “filme de época”, no entanto, não “funcionou” junto ao público – parece ter sido difícil conciliar um gênero narrativo burguês, como o romance de aventuras, com um propósito revolucionário. Afinal, entre a montagem dialética e o figurino luxuoso, optou-se 88 pela primeira. Não se trata apenas da falta de verossimilhança (que não é um valor absoluto, a ser buscado acima de qualquer coisa), mas da falta de unidade narrativa (o que a verossimilhança, por vezes, confere): fotografia descontínua e bastante inexpressiva, campos e contracampos também descontínuos, uma montagem obtusa... O grande mérito do filme é, portanto, justo aquilo que fugiu ao controle do diretor: a interpretação dos protagonistas, por mais confusos que sejam seus registros. E talvez por isso mesmo. Marlon Brando traz a carga do Actor’s Studio, investindo seu personagem de uma humanidade que não condizia com as intenções originais de Pontecorvo. Evaristo Marquez, o não-ator que interpreta o escravo revolucionário José Dolores, aplica um método intuitivo, nem sempre bem-sucedido, que acaba surtindo efeito semelhante, humanizador, já que, na função de fantoche de Walker, Dolores é um personagem que não sabe como agir, nem mesmo como expressar ou representar sentimentos. É no contato dos dois personagens-atores que surge a força dramática do filme. Se a trama “ideologicamente correta” – entretanto complicada – do roteiro não se faz entender após filmagem e montagem; se a fotografia e a arte não envolvem o espectador no clima oitocentista; se tudo parece um tanto truncado, existe ainda a interpretação humanizadora – a esperteza de Sir Walker e a ingenuidade de Dolores – que restitui algum sentido de verdade, sempre necessário para a afirmação de uma ideologia. Tivesse Pontecorvo acertado (segundo os objetivos dele, claro) na direção dos atores, o filme teria conhecido fracasso ainda pior. Fosse Walker o vilão e Dolores, o herói, só o que teríamos seria um romance realista engajado tacanho – e uma remota lembrança das teorias do colonialismo. O colonialismo do filme só transparece pela relação de dominação de Brando sobre Marquez. Brando domina a técnica, a encenação, o aparato. Marquez reage como pode e obedece por ter juízo. Dizem que durante as filmagens Pontecorvo e Brando se desentenderam seriamente pela diferença no tratamento que era oferecido pelo diretor a distintos membros da equipe. A inicial identificação política que havia engatilhado a parceria entre ator e diretor virou motivo de discórdia. Brando já não compartilhava mais dos mesmos ideais que Pontecorvo, pelo menos não com relação à organização social interna das filmagens. Brando poderia não ter gerência sobre o comando do set, mas tinha, como sempre, comando sobre si mesmo, dirigindo seu personagem e criando seu próprio Sir Walker – um que fugia do que seria um caricato opressor e agradava exatamente pelo seu inesperado carisma. Brando, diga-se de passagem, era o rei do carisma. E o resultado final do filme é de alguma forma reflexo desse embate entre ator e diretor, onde a autonomia de um ator que conhece melhor do que ninguém suas próprias possibilidades e vontades domina com total segurança seu personagem e acaba por dominar também o filme. Eduardo Ades é produtor executivo e curador de mostras de cinema. Atualmente, também atua na programação do cinema do Instituto Moreira Salles. Fabiana Comparato é integrante da coordenação internacional do Festival Internacional do Rio de Janeiro. 89 anos 70 Essa década marca o retorno de Brando aos holofotes em grande estilo, reafirmando-se como o melhor ator de sua geração, esbanjando qualidade artística. Mais uma vez ele revoluciona com suas audaciosas performances, como o icônico Don Corleone (de O poderoso chefão), que lhe rendeu seu segundo Oscar, e o polêmico Paul (de O último tango em Paris). Nessa época, a influência de Brando sobre os jovens atores é ainda mais evidente. Trabalha com Robert Duvall, Al Pacino, Jack Nicholson, entre outros que o consideravam uma das maiores referências artísticas. Brando encerra a década com outro personagem autoral e extremamente marcante, o Coronel Kurtz (de Apocalypse Now), seu último grande trabalho lembrado pelo público. O poderoso chefão The Godfather 1972, EUA, 175 min Direção: Francis Ford Coppola Roteiro: Mario Puzo, Francis Ford Coppola (baseado no romance de Mario Puzo The Godfather) Produção: Albert S. Ruddy Fotografia: Gordon Willis Montagem: William Reynolds, Peter Zinner Direção de Arte: Warren Clymer Música: Nino Rota Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Richard S. Castellano, Robert Duvall, Sterling Hayden, John Marley, Richard Conte, Al Lettieri, Diane Keaton Empresa produtora: Paramount Pictures Data de estréia (EUA): 03/1972 Oscar 3 prêmios: melhor ator (Marlon Brando), melhor filme, melhor roteiro adaptado 8 indicações: melhor ator coadjuvante (James Caan, Robert Duvall, Al Pacino), melhor diretor, melhor montagem, melhor trilha sonora original, melhor som, melhor figurino Nova York, 1945. Don Corleone (Marlon Brando) é o chefe de uma família mafiosa de origem italiana que costuma apadrinhar várias pessoas, ajudando-as em troca de favores futuros. O novo e promissor mercado das drogas desencadeia uma disputa entre as famílias da máfia. Quando Corleone se recusa a facilitar a entrada dos narcóticos na cidade, não oferecendo ajuda política e policial, sua família começa a sofrer atentados. É então que Michael (Al Pacino), um herói de guerra que não se envolvia nos negócios da família, vê a necessidade de proteger o seu pai e tudo o que ele construiu ao longo dos anos. De início a Paramount não queria Brando para o papel de Don Vito Corleone. No entanto, oppola o achava perfeito. O estúdio então fez três exigências: que Brando recebesse um saláC rio baixo, se responsabilizasse financeiramente se causasse atrasos nas filmagens e fizesse um teste provando que ele, aos 47 anos, podia interpretar um homem 20 anos mais velho. Brando precisava de O poderoso chefão assim como O poderoso chefão precisava de Brando. Com a ajuda de seu maquiador Phil Rhodes, envelheceu convincentemente; colocou lenços de papel na boca para aumentar as bochechas – e virou Don Corleone. Sua caracterização foi tão impressionante que os produtores não o reconheceram. 93 A majestosa performance de Brando como Don Corleone rendeu-lhe o Oscar de melhor ator. No entanto suas questões éticas em relação à Academia e a premiações em geral, e principalmente seu enorme interesse e preocupação em relação às questões indígenas, fizeram com que Brando enviasse em seu lugar uma índia americana para recusar o prêmio no palco da cerimônia, causando um misto de admiração e revolta entre os presentes. Brando acreditava que aquele tempo seria melhor utilizado para dar voz a um povo que havia sido dizimado de sua terra do que para uma celebração vazia de sentido. O filme foi aclamado pela crítica e Brando foi novamente reconhecido como o maior ator de sua geração. A revista Newsweek escreveu: "O rei voltou para seu trono." UM INVENTOR NO CINEMA Ely Azeredo As primeiras seqüências de The Godfather (O poderoso chefão) valem como um piloto da consagrada narrativa de quase três horas: antecipam os temas, a temperatura dramática, a torrente de personagens e, sobretudo, o binômio Don Vito Corleone–Marlon Brando. O capo mafioso oferece ao ator a deixa para universalizar seu fascínio em definitivo, envolvendo todas as faixas de público. E o intérprete envolve o Godfather em uma aura mitológica como pai de família e benfeitor de seu vasto círculo de “afilhados”. Esse feeling inédito nos filmes de gângsters – como observou o cineasta-cinéfilo Martin Scorsese – resgatou de uma fase de risco a carreira do diretor Francis Ford Coppola e projetou o carisma de Brando em uma nova (e inesperada) órbita de sucesso. Se, nos anos 1950, ele havia assegurado seu nicho na história do cinema, somente em 1972, com o lançamento de The Godfather, ingressa no Olimpo do imaginário popular. Dois grandes filmes de Coppola, The Conversation (A conversação) e Apocalypse Now, ainda não haviam acontecido. Portanto, não é surpreendente saber que, numa primeira etapa, o produtor Al Ruddy e a Paramount cogitaram entregar a direção a Arthur Penn (de Bonnie & Clyde), ao inglês Peter Yates (Bullitt) e até a Costa-Gavras, cineasta europeu mais célebre por filmes de recorte político (como Missing/Desaparecido). Finalmente, tiveram a ingenuidade de acreditar que Coppola, de apenas 33 anos, acataria mais facilmente seus caprichos. A felicidade da escolha – em última análise – tem tudo a ver com certa afinidade entre os homens de família Coppola e Corleone. O diretor, nascido numa família de imigrantes da Sicília, também adora sua árvore genealógica: há Coppolas por toda parte em The Godfather, desde o papel de Connie (interpretado por Talia Shire, irmã de Coppola) até a presença de Sofia, sua filha, ainda bebê, como filha de Michael Corleone, na impressionante montagem cruzada com epicentro na pia batismal. Para viver Don Vito Corleone, os produtores cogitaram de opções muito diversas, entre as quais Burt Lancaster, Anthony Quinn, Robert Redford, George C. Scott, Orson Welles e Richard Conte (este aproveitado no papel de Barzini, o grande inimigo de Corleone). Quanto a Marlon Brando, passara por vários insucessos comerciais na década de 1960. Seu comportamento de superestrela no set de Mutiny on the Bounty (O grande motim), onde exigiu inclusive várias revisões no roteiro, escandalizara Hollywood. Seu nome era impronunciável entre os executivos da Paramount. Coppola manobrou para conseguir Sir Laurence Olivier para o papel, mas a saúde do grande intérprete shakespeariano era considerada fator de risco. O cineasta, então, decidiu lutar por Brando. Mas como convencer a Paramount, se até o convite para um teste formal poderia incompatibilizá-lo com o ator? Sem consultar o estúdio, Coppola propôs um simples “teste de maquiagem” em sua casa, que Brando aceitou de imediato. Aconteceu, então, a lendária metamorfose. Sem nada perguntar, ele inflou as bochechas com chumaços de algodão, penteou os cabelos para trás e improvisou frases com aquela impostação meio rouca. Havia algo hipnótico, além de um subtom de humor, nesse rascunho de Corleone. Então os produtores compraram a aposta. Com mais facilidade do que a sugestão de entregar 95 a Al Pacino o papel de Michael – até porque Mario Puzo achava um absurdo, embora mais tarde tenha vindo a reconhecer a sua performance como “obra-prima”. Considera-se prodigioso o “envelhecimento” do jovem Orson Welles como o magnata Hearst de Citizen Kane (Cidadão Kane), mas a proeza se limita a poucas cenas. Ao contrário, Marlon Brando (com 47 anos ao entrar no projeto da Paramount) sustenta ao longo de sua trajetória em The Godfather a presença patriarcal do velho Corleone. Virando pelo avesso sua infância e adolescência traumáticas com o pai, na vida real, Brando investe o capo com uma aura quase utópica de paternidade: ao lado de uma severidade férrea, o personagem extroverte profundo amor e tenacidade leonina na defesa de suas crias. A relação de Marlon Brando com o espaço–tempo peculiar ao cinema foi muito pessoal desde seus primeiros filmes. Estando ele estático ou em movimento, suas criações se opõem à supremacia da montagem, que até as vésperas da década de 1960 (tempo da Nouvelle Vague e de movimentos afins) era quase um dogma nas narrativas para a tela. Provavelmente sem plena consciência disso, ele concretiza um impulso modernizador desde certas cenas de seu primeiro filme, The Men (Espíritos indômitos), de 1950. Neste sentido, a primeira cena de The Godfather não deixa dúvidas. Ainda que desejasse, como diretor e co-autor do roteiro (que escreveu com Mario Puzo), Coppola não poderia montá-la de outra forma sem esvaziar o sentido, o clima e a temperatura dramática de Brando–Corleone. Com seus silêncios e pausas, seus movimentos quase em câmera lenta, o ator cria uma tensão sui generis, na qual nenhum diretor no domínio de suas faculdades mentais ousaria intervir. A mise-en-scène mimetiza o estilo (de vida e de representaçao social) imposto pelo domínio da “família” Corleone. E os atores contribuem maravilhosamente para essa proeza. Coppola chegou a dizer que o elenco foi mais importante do que o roteiro para o resultado final. Quando Marlon está em cena, a continuidade da construção do relato flui da persona do mafioso. “Seus takes parecem não ter começo, nem fim”, disse Robert Duvall (intérprete do filho adotivo Tom Hagen). Segundo Duvall, o tradicional comando “Câmera! Ação!” não tem o mesmo sentido nas filmagens com Brando. Seu Godfather parecia estar desde sempre vivo no set, motivando o time de profissionais oriundos da Revolução Brando. Segundo James Caan (Sonny Corleone), Marlon materializava para eles, pela primeira vez, todas as possibilidades da arte do ator, sobre a qual eles tinham ouvido discursos teóricos durante anos e anos. Quem não conhece os bastidores das atuações cinematográficas de Marlon Brando pode verificar, pelos depoimentos de atores e cineastas colhidos no documentário Brando, que ninguém dirigia de fato o maior seguidor do “Método” implantado nos Estados Unidos pelo Actor’s Studio. Mestre Elia Kazan – que proporcionou as primeiras grandes oportunidades ao ator, na Broadway e em Hollywood, com A Streetcar Named Desire (Uma rua chamada Pecado) –, seguramente, foi a única exceção. O máximo que outros diretores conseguiram foi uma espécie de acordo bilateral com Brando. E isso caracteriza um estatuto de co-autoria que incita os atores à reivindicação de novo patamar intelectual frente às câmeras. As conquistas de Brando mudaram o panorama, como se comprovou, em seguida, nas grandes parcerias de Scorsese com outro soberbo artista da mesma escola, Robert De Niro: Taxi Driver e Ranging Bull (Touro indomável). 96 Jack Nicholson, que fez dupla com Brando no western The Missouri Breaks (Duelo de gigantes) e foi atraído para a carreira vendo seus filmes, teve a modéstia de dizer que a Revolução Brando começou e chegou ao fim na trajetória deste. Não é uma afirmativa em harmonia com a história. Mas deixou de existir, no cinema, um clima tão fértil que permita muitas explosões de talento “politicamente incorretas” como A Streetcar Named Desire ou Last Tango in Paris (O último tango em Paris). Tornando possível, com sua participação (que foi muito além do trabalho de ator), este choque cultural de Bernardo Bertolucci, Brando entregou-se tanto, física e psicologicamente, que jamais voltou a pensar na obra sem angústia e (ao que afirmou) arrependimento. Andrei Tarkovski (diretor de Solaris) disse em seu livro-testamento Esculpir o tempo que o cinema não precisa de atores que “representem”. Eles recitam “o significado do texto em todos os níveis possíveis. São incapazes de confiar em nosso próprio entendimento.” Em seus quatro primeiros anos no cinema, com The Men, A Streetcar Named Desire, Viva Zapata!, The Wild One (O selvagem) e On the Waterfront (Sindicato de ladrões), Brando recriou o acting acima das facilidades da “representação”. Nos anos 1980, ficou evidente seu desencanto com o cinema. Muito compreensível. Seu campo de trabalho estava à sombra de Hollywood. Esses foram os anos menos expressivos do cinema americano desde Birth of a Nation (O nascimento de uma nação, 1915). Seu mestre nos palcos e telas, Elia Kazan, jamais estranharia esse desencanto: “Brando estava perto do gênio como eu nunca vi entre atores”, disse. Ely Azeredo é crítico e professor de cinema, autor de Infinito cinema. 97 98 O úLtimo tango em Paris Last Tango in Paris 1972, França/Itália, 123 min Direção: Bernardo Bertolucci Roteiro: Bernardo Bertolucci, Franco Arcalli Produção: Alberto Grimaldi Fotografia: Vittorio Storaro Montagem: Franco Arcalli, Roberto Perpignani Música: Gato Barbieri Elenco: Marlon Brando, Maria Schneider, Maria Michi, Giovanna Galletti, Jean-Pierre Léaud, Massimo Girotti Empresa produtora: Produzioni Europee Associati, Les Productions Artistes Associés Data de estréia (EUA): 01/1973 Oscar 2 indicações: melhor ator (Marlon Brando), melhor diretor Enquanto procura um apartamento em Paris, uma bela jovem (Maria Schneider) conhece um americano (Marlon Brando) cuja esposa recentemente cometera suicídio. A atração entre eles é mútua e imediata, e iniciam naquele momento um tórrido affair. Eles combinam que não revelariam nada de suas vidas, nem mesmo seus nomes, e que o objetivo de seus encontros seria basicamente sexo. No entanto, aos poucos os acontecimentos vão fugindo ao seu controle. Depois de assistir ao filme no Festival de Cinema de Nova York, a crítica Pauline Kael escreveu que Brando e Bertolucci haviam "alterado uma forma de arte”. Mais tarde, Brando disse que Kael havia "inconscientemente atribuído ao filme mais do que realmente era". Brando se sentira altamente exposto no filme, chegando a ficar muitos anos sem falar com Bertolucci, tamanha sua decepção. Devido ao seu alto teor sexual, O último tango em Paris foi colocado na lista da American Catholic Conference de filmes condenados pela igreja. Em Cincinnati, Ohio, foi banido por ser considerado obsceno demais. Porém essa polêmica gerou ao filme grandes frutos na bilheteria, transformando-se na maior renda na história da United Artists. O filme foi um sucesso de público e Brando teve um alto percentual de lucro, ganhando mais de 4 milhões de dólares. Estava no momento mais rico de sua carreira. 99 Existe uma tomada belíssima que expõe a origem de uma forte referência para a composição do personagem por Brando. Atrás de um vidro texturizado, vemos o seu rosto, em close, porém irreconhecível, deformado pela refração. É Bertolucci pintando Brando como Francis Bacon. Na época da filmagem, havia uma exposição individual de Bacon no Grand Palais, em Paris. Bertolucci, impressionado com a dramaticidade daqueles corpos contraídos, levou Marlon Brando, que nunca vira um quadro do pintor, à mostra e explicou-lhe que gostaria de ver no seu rosto a mesma dramaticidade selvagem que havia na face daquelas figuras: “Eu lhe mostrei a tela que se vê no começo do filme, nos títulos de abertura. (...) E disse que queria que ele criasse a mesma massa de dor. E foi quase só essa – ou pelo menos foi essa a principal – instrução que lhe dei para o filme. Creio que ele conseguiu.” 100 Máquina-Brando Marcos Azevedo Brando corpo eloqüente, brandindo a suave palavra que apalpa: pura sinestesia. A Máquina-Brando cortou a cena como uma das mais ardentes personalidades da arte do século XX. Para além de redesenhar e redimensionar as linhas-mestras de um “Método” de criação e interpretação para todos os atores que o sucedem, sintetiza e influencia o comportamento masculino e sexual do homem ocidental. Seja num grito selvagem, uivo primal e espontâneo do nascimento da idéia de juventude, seja num murmúrio quase inaudível e intimista, soprado de improviso pelo inconsciente coletivo, Brando teve aderência instantânea aos desejos de gerações, mesclando-se a eles, metamorfoseando-se no mito às avessas, um anti-herói para um anseio de alter-ego rebelde americano. Camille Paglia o compara a Elvis Presley: “Uma suprema persona sexual, um ícone que entrou nos nossos sonhos e transformou o modo de se ver o mundo.” A Máquina-Brando continua atuando. Os seus mecanismos são frutos de uma fina sintonia com seu tempo, uma complexa combinação entre influências artísticas determinantes e ingredientes biográficos, que legitimam Brando não apenas como a grande referência de sex-symbol, mas também como um dos artistas mais vertiginosos que a arte do ator já produziu. Nos anos 70, parte significativa das manifestações artísticas valorizavam as questões do corpo. A busca de liberdade de expressão para o corpo do ator tomou formas maleáveis e ganhou vários nomes, como performance, happening, improv, entres outros. Como acontecia com o músico jazz de improvisação, com o poeta de fluxo beat e com o pintor abstrato, também o ator podia ser considerado incapaz de descrever (e justificar?) seu processo criativo. Os dilemas ligados à relevância do “Método” seguem em debate na cena ocidental. Neste contexto, Brando e Maria Schneider criam nas telas um espaço heterotópico, uma suspensão temporal erótica, a fusão animalesca dos amantes, o “Corpo sem Órgãos” de Deleuze e Guattari. Armado de delicada sensibilidade para os tons psicológicos e de afinidade com a modernidade, com rasgos de genial espontaneidade, o ator confrontou e venceu o artificialismo, a afetação e o formalismo clássicos. Ao lado de filmes como Laranja mecânica, O império dos sentidos e Saló, O último tango em Paris chocou o puritanismo tanto da direita quanto da esquerda em tempos de pleno florescimento de revolução sexual. O foco na luta de classes não excluiu a necessidade de liberdade e mudanças individuais (e sexuais) emergentes, fundamentais para a transformação e compreensão daquele momento histórico. Em O último tango em Paris, Marlon Brando expande seus limites interpretativos, entre a resistência à autocaricatura e uma disponibilidade imensa para atuar e interferir criativamente num roteiro em aberto. O último tango é ficção de metalinguagem, ou viceversa. Não somente por Bertolucci também colocar uma atriz no centro da narrativa (e acompanhamos seu relacionamento com um jovem diretor que parte dela como tema para seu filme), mas, antes de tudo, porque o personagem central, Paul, é um simulacro de Brando. O que vemos no filme é o último canto do mito, do símbolo sexual, já maduro, mas ainda com energia libidinosa e libertária para um derradeiro urro selvagem antes 101 da inevitável queda. O último tango é o ponto mais alto da elipse da trajetória da Máquina-Brando em vida. É a ressonância do personagem de Uma rua chamada Pecado: o decadente Paul é o eco de um violento e rude Kowalski em agonia (e isso talvez nem o diretor imaginasse, pois transcende a ele próprio). A peça de Tennessee Williams catapultou Brando para o cinema e para o sucesso, e ele desestabilizou e reformulou definitivamente os conceitos de acting, desenvolvendo para o cinema o seu método de atuação particular, recorrendo ao realismo psicológico do “método” auto-analítico de Stanislavski (que se baseia em acessar as próprias emoções para construir o personagem). No Actor’s Studio, Brando tivera aulas com Lee Strasberg, centrado na exploração da memória afetiva do ator, e com Stella Adler, que enfatizava o papel da imaginação na criação. Em O último tango em Paris, Brando improvisava abertamente muitas das cenas, para Bertolucci escrever a partir desse estímulo e filmar depois. Um processo dramatúrgico simbiótico e experimental que deliberadamente utilizou, de forma radical, memórias e características da personalidade do ator como conteúdo narrativo, como jamais havia se visto na história do cinema. Bertolucci certamente sabia o que fazia, o que tinha nas mãos, e parece ter alcançado seu objetivo. Marlon Brando fala do primeiro encontro com Bertolucci, em Paris, para discutir o filme: “Fiquei a observá-lo por não sei quantos minutos, sem falar nada. Talvez eu quisesse sentir se era possível estabelecer com ele um relacionamento instintivo. Me pareceu que sim.” “Quero ver o que tem aí dentro”, dizia Bertolucci. Brando respondia com um sorriso. “O cinema pede que um ator entre na pele de um outro. Ao contrário, eu lhe pedi que desenvolvesse no filme sua vida de homem e de ator”, explicou o diretor. Ao fim das filmagens, Brando lhe disse: “Nunca mais farei um filme como esse. Não gosto de ser ator, mas desta vez foi ainda pior. Me senti violado do início ao fim, minha vida, minha intimidade mais profunda, e inclusive meus filhos, tudo foi tirado de mim.” Não questiono a veracidade dessas seqüelas psicológicas, muito menos seus sistemas detonadores; todo ator vertical corre esse risco, principalmente num projeto tão flexível quanto O último tango, e com um diretor tão profundamente ligado à psicanálise como Bertolucci (“A análise é como um objetivo a mais a ser colocado na máquina de filmar, que olha dentro das pessoas, no inconsciente, no mistério”). O filme sobreviverá expondo um ator que sabia muito bem o que fazia, o que lhe havia sido pedido, e como se colocar em cena vibrando criativamente. O impacto da atuação sobre atores e estudantes de teatro é alvo de pesquisas acadêmicas nos Estados Unidos. Elas abordam as causas de estresse emocional, a partir de relatos de pesadelos, podendo alertar para um distúrbio psicológico ou uma falha na educação artística. Particularmente, tenho reservas quanto a determinadas “técnicas” extremas, mas Brando não tinha. Em O grande motim, deitou-se sobre 100 quilos de gelo para reproduzir os tremores da morte. Se em O último tango são os fantasmas e traumas do ator que estão expostos ali ou não, esta é uma questão subjetiva, que só contribui para iluminar a aura mítica de Brando e para a sua construção romântica como monstro sagrado da sétima arte. A Máquina-Brando continua seduzindo. Fiquemos com um frase do filme: “Pensa que tudo que eu disse é verdade? Talvez sim, talvez sim...” 102 Uma crítica impossível Numa abordagem muito particular dos recursos de estilo, me parece ser este um dos filmes mais técnicos de Brando, contrariando as declarações do próprio ator de que jamais se entregaria novamente a um personagem daquela forma confessional e que dali pra frente seria mais técnico. Este é o ponto. Minha opinião é a de que foi exatamente a maturidade técnica de Brando que lhe permitiu emprestar suas cores particulares para a película. Não vejo uma cena no filme em que o “naturalismo” e o “improviso” não estejam fortemente calçados pelos recursos de seu método. Não é uma interpretação fria, mas com um domínio emocional tecnicamente desenhado e elaborado – o que não tira a beleza de sua criação, pelo contrário, enfatiza as filigranas intimistas da composição de Brando. São os detalhes que mostram a consciência corporal, de tempo e gesto, que muitas vezes passam desapercebidos. É o que faz Brando, e neste aspecto ele é mestre: gesto limpo, sempre a serviço da cena. Surgem flashes desses momentos invisíveis: como conscientemente evita olhar para a atriz no primeiro diálogo; como foge da luz que invade o apartamento; como deixa o gancho do telefone cair do ombro até a mão; como fecha uma porta calmamente depois de esmurrá-la; como transita entre emoções opostas na notável cena em que acerta as contas com o cadáver da esposa; como subverte o tango num ritual anárquico; como caminha, como desequilibra, como pausa. Antes de morrer, Paul ainda tira da boca o chiclete que mascava, e tenta vocalizar algo incompleto, intraduzível como a própria morte, para no próximo quadro desenhar seu corpo sem vida em posição fetal. Uma construção sensível e feita não só de intuição mas, antes, de escolhas. Sejam dele ou do diretor, são ótimas escolhas, que mantêm a tensão e a poesia. Cada um desses momentos é resultado da técnica incorporada, são instantes de criação registrados no frescor do gesto, no calor da película, que nos iludem e nos oferecem o que a melhor interpretação pode oferecer. Há quem diga que foi seu imenso carisma que permitiu a Brando dar vida aos seus personagens, e que ele era limitado e pouco versátil e, portanto, condenado a desempenhar os mesmos papéis, uma repetição de si mesmo. Seria tarefa inútil tentar dissecar esse fenômeno seccionando artista e obra, ator e personagem, vida profissional e particular, talento e carisma, inteligência e acaso. Brando é composto de múltiplos, complementares, interdependentes e em embate constante. Não se sabe onde termina um e começa outro. É desconcertantemente indivisível. Não conseguiremos separar Brando de Brando – pelo simples fato de ele mesmo ter borrado todas as fronteiras. Marcos Azevedo é ator, autor e diretor teatral. Integrou a Cia. de Ópera Seca, dirigida por Gerald Thomas, por dez anos. É co-autor de A verdade relativa da coisa em si. Recentemente, junto da Cia. Phila7, fundou o GAG (Grupo de Arte Global) e desenvolve espetáculos on-line, entre Brasil e outros países, como What’s Wrong with the World?. 103 104 Duelo de gigantes The Missouri Breaks 1976, EUA, 126 min Direção: Arthur Penn Roteiro: Thomas McGuane Produção: Elliott Kastner, Robert M. Sherman Fotografia: Michael C. Butler Montagem: Dede Allen, Gerald B. Greenberg, Stephen A. Rotter Direção de Arte: Stephen Myles Berger Música: John Williams Elenco: Marlon Brando, Jack Nicholson, Randy Quaid, Kathleen Lloyd, Frederic Forrest, Harry Dean Stanton, John McLiam Empresa produtora: Devon/Persky-Bright Data de estréia (EUA): 05/1976 O rancheiro de Montana David Braxton (John McLiam) é um homem que se fez na vida sozinho. Quando suas economias, sua subsistência e sua família são ameaçadas pelo impiedoso ladrão de cavalos Tom Logan (Jack Nicholson), Braxton contrata o sádico "justiceiro" Robert E. Lee Clayton (Marlon Brando) para libertar o seu território do crime. A medida, no entanto, dá início a uma complexa série de eventos, e o encontro de Clayton com Logan resulta em brutalidade e selvageria muito além do que ele imaginou que fosse possível. Na teoria, este era para ser um filme de grande sucesso. Jack Nicholson já havia sido indicado quatro vezes ao Oscar, era o ator do momento. E Arthur Penn estava com muito prestígio na indústria, desde o estrondoso sucesso de Bonnie & Clyde em 1967. No entanto, o filme foi um fracasso de bilheteria e recebeu críticas negativas, principalmente em relação à atuação de Marlon Brando. O jornal The Sun declarou na época que “Marlon Brando aos 50 anos de idade tem a barriga de um homem de 62, o cabelo branco de um homem de 72 e a total falta de disciplina de um precoce menino de 12 anos”. Mas hoje sua atuação neste filme é considerada por muitos corajosa: Brando não teve medo de mostrar seu físico “gordo” e suas escolhas “excêntricas”. O roteirista Thomas McGuane descreveu Robert E. Lee Clayton, personagem de Brando, como um “desordeiro de fronteira transformado em assassino de aluguel”. Brando optou por conduzir o personagem por outro rumo, interpretando-o como um “travesti psicopata”. Essa mudança tão drástica na caracterização do personagem fez com que Jack Nicholson se decepcionasse um pouco com seu ídolo. A surpreendente aparição de Brando vestido de mulher, quando deveria parecer um assassino machão, deixou Jack inseguro em cena, prejudicando sua interpretação. 105 Apocalypse Now Apocalypse Now 1979, EUA, 202 min (versão redux) Direção: Francis Ford Coppola Roteiro: Francis Ford Coppola, John Milius (baseado no romance de Joseph Conrad Heart of Darkness) Produção: Francis Ford Coppola Fotografia: Vittorio Storaro Montagem: Lisa Fruchtman, Gerald B. Greenberg, Walter Murch Direção de Arte: Angelo P. Graham Música: Carmine Coppola, Francis Ford Coppola Elenco: Marlon Brando, Martin Sheen, Robert Duvall, Frederic Forrest, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Albert Hall, Harrison Ford, Dennis Hopper, G. D. Spradlin Empresa produtora: Zoetrope Studios Data de estréia (EUA): 08/1979 Oscar 2 prêmios: melhor fotografia, melhor som 6 indicações: melhor ator coadjuvante (Robert Duvall), melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor montagem, melhor direção de arte O Capitão Willard (Martin Sheen), um oficial da inteligência do exército americano, tem a missão de encontrar e matar o coronel americano Kurtz (Marlon Brando), um desertor. Figura musculosa e enigmática, aparentemente enlouquecido, Kurtz se encontra refugiado nas selvas do Camboja, onde comanda um exército de fanáticos. Devido à importância política de Apocalypse Now, Brando considerou sua participação no filme como um dever e não um mero trabalho. Para ele, era importante interpretar um coronel imperialista americano. “Estou chegando ao final da minha vida. Restam-me apenas duas balas no tambor” – uma era o filme de Francis Ford Coppola; a outra seria fazer um filme sobre os índios americanos. O fotógrafo Vittorio Storaro, que já havia trabalho com Marlon Brando em O último tango em Paris, disse não ter reconhecido o ator quando ele chegou para as filmagens nas Filipinas. Coppola também estava chocado com a aparência física de Brando e achava que ele não conseguiria interpretar Kurtz da maneira que estava descrita no livro de Joseph Conrad. No entanto, Brando surpreendeu a ambos. De cabelo raspado e com roupas pretas largas, pediu que 107 Storaro repetisse a iluminação que havia usado na cena de O último tango em que Paul aparece em close e com sombras sobre o rosto. Brando não estava satisfeito com as falas do Coronel Kurtz no roteiro. Então, Coppola deixou-o improvisar por mais de 45 minutos. “Eu chorei, dei risadas, fiquei histérico. Nunca cheguei tão perto de me perder num papel antes. Mas Francis só usou alguns minutos da minha improvisação”, conta Brando. O poema que Brando usou nessa improvisação foi “The Hollow Men”, de T.S. Eliot. Para finalizar seu filme, Coppola quis que Brando gravasse as últimas palavras ditas pelo Coronel Kurtz no livro de Joseph Conrad, Heart of Darkness. Os produtores afirmaram que esse último close-up não demoraria mais de uma hora, mas Brando respondeu que sabia que levaria mais tempo e que só faria se o pagassem uma diária de 70 mil dólares pelo trabalho. Para justificar o alto preço, explicou que vendia a marca Marlon Brando, e que ninguém nunca entraria na General Motors, por exemplo, e pediria um favor de 70 mil dólares. Os produtores atenderam ao pedido de Brando. Nessa cena está a frase considerada por muitos a mais memorável do filme: “O horror... O horror...” Apocalypse Now: A magnífica presença ausente Doc Comparato Como sabemos, o ator necessita de todos os instrumentos corporais, vocais e dos sentidos para capturar a alma e dar vida a outro ser chamado personagem. É irrefutável que Marlon Brando foi um mestre em sua arte, mais que isso: um inovador. A cada filme, peça teatral, ele trazia algo novo, um pequeno detalhe que abria uma nova porta de como se pode interpretar. Técnica e talento puro se misturavam num perigoso jogo que o levou à glória e a uma vida pessoal tumultuada e por vezes trágica. Dizem que começou mostrando seu corpo por inteiro, sensual e perfeito, sorando desejos e ilusões nas platéias. Conta a lenda que todos se apaixonavam por ele, homens e mulheres, e que um dia, farto de ser adorado feito um deus vivo, um “Narciso” de carne e osso, foi lutar boxe (ou segundo outra versão, bêbado, arremeteu seu rosto propositalmente sobre uma pedra) e quebrou o nariz. Então aconteceu o impossível: ficou ainda mais lindo, desejado, voz anasalada e olhar cativante. E foi desnudo, de corpo inteiro e alma, aos 50 anos, que apareceu em O último tango em Paris, misturando a sensualidade de um rapaz de 20 anos com a sabedoria de um homem de 60. Imparável, ele. Brando não gritava, nem falava rápido: cochichava os diálogos com eloqüência. Isso pode parecer paradoxal, mas não é. Pois transmitia, com essa guerra dos contrários, a contradição da condição humana. Este paradigma alcança seu ponto maior em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, inspirada na obra-prima de Joseph Conrad Coração das trevas, onde em plena guerra do Vietnã um certo Coronel Kurtz do exército americano (Marlon Brando) enlouquece e cria seu próprio reino e exército de terror no Camboja completamente alheio às ordens de seus superiores. O capitão do exército (Martin Sheen) é enviado para descobrir a localização do esconderijo do coronel e executá-lo em nome da civilização e do respeito à ordem. A historieta é essa, bastante simples. Quanto a Marlon Brando e à composição do seu personagem coronel Kurtz, a história é outra. Marlon Brando pesava mais de 100 quilos, dizem que recebeu mais de 10 milhões de dólares e só aparecia em 10 minutos de filme. Por que o filme foi estrelado por Marlon Brando? Por que o crédito principal seria dele? Afinal ele era a própria figura do antiherói. Senão vejamos: escutamos sua voz no ínicio do filme, os personagens pensam sobre ele durante a projeção, vemos extratos das suas cartas no transcorrer da história, e assim vamos pouco a pouco criando uma figura mítica irrefutável e imbatível durante duas horas de projeção. Enquanto isso os personagens vivem o massacre dos americanos sobre os vietnamitas na guerra de 68. Matança inaudita que parece não ter fim nem sentido, e a cada instante nos perguntamos: “Que personagem é esse?” 109 Porque, depois de serem sidos descritos todos os terrores, sangues e injustiças, o que falta mais? Será o coronel Kurtz um louco ou um rebelde contra o sistema? Que terror ainda falta mostrar? E então, entre brumas, contraluzes, cabeças cortadas e aborígenes tingidos de branco, chegamos a Brando. Mas ele não aparece por inteiro, ele continua uma presença ausente. Como se estivéssemos no universo pulverizado e partido de Samuel Beckett, vemos suas mãos, calvície, o detalhe da orelha, uma sombra, e ele fala sobre gardênias. Discurso tão distante do cheiro de sangue e das bombas que matam e queimam o Vietnã. Enfim, enquanto os outros atores são marcados por closes e longos diálogos, Coronel Kurtz fala pouco e é marcado por detalhes corporais. Por um instante vemos seu olho, é uma passagem rápida. E ele representa o que na história? Um louco? Um irracional? Ele lê poesia entre corpos putrefatos, como se fosse a personificação mais elevada do horror humano. E, antes de se deixar matar por um facão, numa cena em que só se nota espirros de sangue, em contraponto com a morte de um boi sagrado e idolatrado da tribo de aborígenes, como deus do horror, ele conta parte de seu segredo num perfil levemente iluminado. Um dia ele fora numa aldeia vietnamita e, em vez de bombardeá-la, vacinara todas as crianças contra a poliomielite. Quando saía da aldeia, um velho chorando veio buscálo. Ele voltou para ver o que tinha acontecido. Os vietnamitas haviam cortado os braços de todas as crianças e feito uma fogueira com eles. E então, foi como se uma bala de diamante tivesse alcançado seu cérebro: a condição humana não tem solução, só o horror prevalece. Horror, horror, horror... Marlon Brando, com Apocalypse Now, acabava de provar que um ator pode ser protagonista sem estar corporalmente presente em mais de 95% do filme e, quando aparecer, surgir aos pedaços como se fosse uma revelação. Doc Comparato é médico, escritor, dramaturgo e roteirista, com vários êxitos televisivos e cinematográficos. É autor do já clássico livro Roteiro, pioneiro na América Latina sobre a arte e a técnica de escrever para cinema e televisão. 110 anos 80-00 Durante a década de 80, Brando fica quase que completamente afastado do cinema. Atua em uma produção pouco reconhecida em 1980 e só em 1989 volta a fazer outro filme, Assassinato sob custódia — este, no entanto, lhe rende uma indicação para o Oscar de melhor ator coadjuvante. Nesses nove anos de reclusão, Brando se dedica quase que exclusivamente à família e à sua ilha no Taiti. Os anos 90 são marcados por uma malsucedida tentativa de retomada ao cinema. Brando faz seis filmes no total, mas nenhum de real impacto. Sua carreira sofre um declínio sem volta, somado a sérios problemas familiares que, para o seu desgosto, viram capa de tablóide. Talvez a maior marca dessa última década da carreira de Brando tenha sido o encontro com Johnny Depp, com quem contracenou em Don Juan DeMarco e que o convidou para participar do filme que dirigiu (O bravo, 1997). Nos anos 2000, Brando atua em um único filme, A cartada final, de Frank Oz, ao lado de Robert DeNiro e Edward Norton. Após sua morte, as diretoras Mimi Freedman e Leslie Greif realizam o documentário Brando, uma prova fílmica de reconhecimento e homenagem póstumas ao ator. Assassinato sob custódia A Dry White Season 1989, EUA, 107 min Direção: Euzhan Palcy Roteiro: Colin Welland, Euzhan Palcy (baseado no romance de Andre Brink A Dry White Season) Produção: Paula Weinstein Fotografia: Pierre-William Glenn, Kelvin Pike Montagem: Glenn Cunningham, Sam O’Steen Direção de Arte: Michael Philips, Alan Tomkins Música: Dave Grusin Elenco: Marlon Brando, Donald Sutherland, Janet Suzman, Zakes Mokae, Jürgen Prochnow, Susan Sarandon Empresa produtora: Davros Films, Star Partners II Ltd., Sundance Productions Data de estréia (EUA): 09/1989 Oscar 1 indicação: melhor ator coadjuvante (Marlon Brando) África do Sul, 1976. Ben du Toit (Donald Sutherland) é um professor que, gradativamente, toma consciência da terrível realidade do seu país, na qual os negros são assassinados sem motivo e os assassinos são protegidos pelo regime dominante. Diante desse quadro, ele resolve enfrentar o sistema. Para tanto, recorre ao excêntrico advogado Ian McKenzie (Marlon Brando). A jovem diretora Euzhan Palcy, de apenas 31 anos, estava ansiosa para ter Marlon Brando em seu filme interpretando o pequeno mas crucial personagem Ian McKenzie. No primeiro encontro entre os dois, Euzhan informou que, como se tratava de um filme independente, seria impossível pagar ao ator um salário milionário. Brando, para a surpresa da diretora, não cobrou nada. E ainda doou o salário mínimo de 4 mil dólares estipulado pela Screen Actors Guild para a causa antiapartheid. Por seu trabalho nesse filme, Marlon Brando foi indicado para mais um Oscar, dessa vez como ator coadjuvante. Mas sequer foi à cerimônia, alegando que não via sentido nas premiações: “Isso [o Oscar] faz parte de uma doença da sociedade americana: em vez de reconhecer um trabalho bem-feito, essa estatueta faz você pensar em termos de quem é melhor. Eu não penso assim. Cada um tem seu valor. Qual o sentido disso?” 115 Um novato na máfia The Freshman 1990, EUA, 102 min Direção: Andrew Bergman Roteiro: Andrew Bergman Produção: Mike Lobell Fotografia: William A. Fraker Montagem: Barry Malkin Direção de Arte: Alicia Keywan Música: David Newman Elenco: Marlon Brando, Matthew Broderick, Bruno Kirby, Penelope Ann Miller Empresa produtora: TriStar Pictures Data de estréia (EUA): 07/1990 Em Nova York, o jovem universitário Clark Kellogg (Matthew Broderick), ao procurar emprego, conhece o chefão da máfia Jimmy The Toucan (Marlon Brando). Logo ele se envolve em um negócio no qual espécies em extinção são servidas em jantares que custam 50 mil dólares por pessoa. Andrew Bergman conta que Marlon Brando convidou-o para sua ilha no Taiti a fim de discutirem sua participação. Falaram sobre música, o Holocausto, muitos assuntos, menos sobre o filme, até que de repente Brando disse que poderia interpretar o papel se o personagem fosse uma releitura de Don Corleone, seu personagem em O poderoso chefão. No primeiro dia de filmagem em Nova York, uma horda de jornalistas cercou o set. Andrew Bergman sabia que Brando não gostava de ser assediado pela imprensa e perguntou-se como conseguiria tirá-lo de lá sem ser fotografado. Brando entrou na mala do carro – tarefa difícil na época, devido ao seu físico – e escapou despercebido. 117 Don Juan DeMarco Don Juan DeMarco 1995, EUA, 97 min Direção: Jeremy Leven Roteiro: Jeremy Leven (baseado no personagem criado por Lord Byron) Produção: Francis Ford Coppola, Fred Fuchs, Patrick J. Palmer Fotografia: Ralf D. Bode Montagem: Antony Gibbs Direção de Arte: Jeff Knipp Música: Michael Kamen, Robert John Lange Elenco: Marlon Brando, Johnny Depp, Faye Dunaway, Géraldine Pailhas Empresa produtora: American Zoetrope, New Line Cinema Data de estréia (EUA): 04/1995 Após uma decepção amorosa, um jovem de 21 anos (Johnny Depp) ameaça suicidar-se. Mascarado e usando uma capa, proclama ser Don Juan DeMarco, o lendário conquistador de mulheres. O psiquiatra Jack Mickler (Marlon Brando) é chamado para salvá-lo e acaba por ter o jovem sob sua responsabilidade por dez dias. Durante esse tempo, o jovem não apenas convence o médico de estar perfeitamente são, como o leva a reencontrar a paixão. Ao ler o roteiro de Don Juan DeMarco, o então jovem e promissor ator Johnny Depp só conseguia imaginar Marlon Brando no papel do psiquiatra Dr. Jack Mickler. O diretor achou a idéia boa, mas pensou que Brando não aceitaria. Depp levou o roteiro para a casa de Marlon Brando na Mulholland Drive, Los Angeles, e dali a semanas estavam juntos no set do filme. A recepção a Don Juan não foi unânime. A revista Variety adorou: “O melhor do filme são as atuações, especialmente o trabalho de Marlon Brando, que retorna de forma maravilhosa.” Já o crítico Roger Ebert odiou. Normalmente Brando daria algum tipo de resposta às críticas, mas nesse caso não se pronunciou: em mais uma tragédia em sua vida, sua filha Cheyenne suicidara-se na casa da família no Taiti. Depois disso a ilha de Tetiaroa perdeu seu encanto para Brando, que raramente saía de Los Angeles. 119 Don Juan DeMarco: a cena em retrospecto Tatiana Monassa Don Juan DeMarco é um dos últimos filmes de Marlon Brando como ator e o único filme dirigido por Jeremy Leven. É também um filme cuja narrativa parece expandir-se a todo instante para o extracampo, criando teias de sentido diversas. O “duelo” de ressonâncias espirituais entre os personagens de Don Juan (Johnny Depp) e do psiquiatra (Brando), mais envolvente do que qualquer disputa de espadachim, é também o duelo entre dois grandes atores: um começando a se impor como intérprete sem igual, o outro num momento póscarreira, pós-ápice, pós-revolução (revolução por ele empreendida, naturalmente). Se a placidez de Brando neste filme pouco lembra suas performances memoráveis, nas quais seu corpo transbordava a energia da alma – causando um furacão no interior dos planos e até ameaçando (num primeiro momento) a integridade da forma narrativa clássica –, a intensidade de suas expressões parece carregar toda a sua história. Responsável por tratar o supostamente delirante Don Juan, seu personagem está à beira da aposentadoria, aproximando-se de um inevitável ponto de crise, de um necessário giro na relação com o mundo. E o país de utopias, ou melhor, de romantismo plenamente consciente em que vive Don Juan traga-o concretamente para esse ponto. Para uma crise de auto-análise, de auto-reavaliação, de auto-reinvenção, ao invés da tradicional crise paralisadora. Há nisto, sem dúvida, traços da clássica relação entre um jovem e um homem mais velho em quem o contato com a juventude redesperta a vontade de viver; o conhecido conto de transformação em que os protagonistas são objetos de um encontro improvável. Mas a forma como Jeremy Leven conduz seu filme termina por configurá-lo como uma jornada biográfica, em que a materialidade dos fatos é substituída pela história da vivência destes, por sua tradução mental. Don Juan DeMarco é um filme que se constrói basicamente a partir de palavras. A narração de Johnny Depp conforma as imagens que constituiriam o flashback da vida do personagem – imagens cuja realidade fora do interior de Don Juan nunca podemos chegar a atestar verdadeiramente. Essa vida interior é justamente o que contagia o personagem de Brando, que o faz percorrer uma viagem íntima talvez inédita para ele até ali. Viagem cujos contornos, por sua vez, não se manifestam em imagens ou palavras, mas no olhar. O olhar penetrante de Brando dá o tom de um processo obscuro e quase indefinível que curto-circuita projeção mental sobre a realidade e concretude do entorno. Na verdade, é sobre sua percepção que o filme se debruça, uma vez que Don Juan segue sendo o mistério distante e indecifrável. E, nesse entrecruzamento entre as forças magnetizantes de Depp e de Brando, vemos o primeiro encarnar o ideal máximo do galanteador, do homem sexualizado (ainda que numa base muito mais espiritual do que carnal no que diz respeito às imagens). Ideal um dia associado, de uma forma ou de outra, à virilidade sensível do jovem Marlon Bran- 120 do – aquele que, no clássico Uma rua chamada Pecado, é capaz de destruir a casa numa cena e se debulhar em lágrimas na seguinte. De alguma maneira, é como se Depp-Don Juan prestasse a Brando uma grande homenagem, quando, diante do corpo envelhecido do ator, espelha a chama e o ímpeto de viver dos quais este havia sido um símbolo na juventude, e o faz acordar para uma nova alegria de viver a vida. Interrogando Don Juan e fitando Depp longamente, Marlon Brando fecha aos nossos olhos um círculo de vida. A consciência cristalina daquele psiquiatra evoca a impressionante maestria do ator sobre os processos psicológicos da atuação, sobre o caminho a ser percorrido de uma emoção interior a uma manifestação física para o mundo. Manifestação convertida, ela própria, em emoção novamente, ao atingir o olhar ávido e o peito aberto de seus espectadores. Tatiana Monassa é editora da revista virtual Contracampo. 121 Brando Brando 2007, EUA, 165 min Direção: Mimi Freedman, Leslie Greif Roteiro: Mimi Freedman Produção: Mimi Freedman, Leslie Greif, Joanne Rubino Fotografia: Randy Krehbiel Montagem: Bryan Richert Música: Andréa Morricone Empresa produtora: The Greif Company Data de estréia (EUA): 05/2007 Documentário que cobre a vida e os filmes de Marlon Brando. Martin Scorsese, Al Pacino, Robert Duvall, John Travolta, Jane Fonda, James Caan, Edward Norton, Dennis Hopper, Kevin McCarthy, Johnny Depp, Jon Voight, Harry Dean Stanton, Cloris Leachman, Karl Malden, Arthur Penn, Sean Penn e inúmeros outros entrevistados, incluindo familiares, contam histórias sobre a vida e a carreira de Brando, desde o palco. Exibido no Festival de Cannes de 2007 e indicado ao Emmy de melhor especial de TV de não-ficção em 2007. O documentário é o arquivo mais completo sobre Marlon Brando já visto em filme. Reúne uma extensa quantidade de depoimentos e entrevistas, construindo um retrato fiel de sua carreira. Participam do filme mais de 50 entrevistados, dentre eles alguns dos artistas mais consagrados do cinema. 123 CRONOLOGIA 1924, 3 de abril Nasce Marlon Brando Jr. em Omaha, Nebraska (EUA). 1936 Seus pais se separam. 1938 Seus pais se reconciliam e a família se muda para Libertyville, Illinois. 1943 É expulso da escola Shattuck Military Academy, aos 19 anos. Vai morar com sua irmã Jocelyn em Nova York, onde estuda teatro com Stella Adler. 1944 Estréia na Broadway com a peça I Remember Mama, no Music Box Theatre. 1945 Estréia a peça de grande sucesso Truckline Café ao lado de Karl Mulden, sob a direção de Harold Clurman e com produção de Elia Kazan. 1946 Faz a peça Cândida, de George Bernard Shaw, no Court Theatre. 1947 Estrela a peça A Flag is Born. Também é chamado para protagonizar The Eagle Has Two Heads, mas é demitido depois da apresentação de estréia por desentendimentos com o diretor. Nesse mesmo ano Brando interpreta Stanley Kowalski em Um bonde chamado Desejo, de Tennessee Williams, sob a direção de Elia Kazan. A peça o transforma no sucesso da temporada e o leva a Hollywood. Jamais voltou aos palcos da Broadway. 1949-1954 Estréia nas telas de cinema no filme Espíritos indômitos, de Fred Zinnemann. Em seguida estrela a versão cinematográfica da peça de Tennessee Williams, Uma rua chamada Pecado. Mostra-se um ator versátil, e emplaca um sucesso atrás do outro. É indicado três vezes ao Oscar, até que vence o prêmio, em 1954, pelo seu trabalho em Sindicato de ladrões. Aos 30 anos, era o ator mais jovem a conquistar o Oscar. 1954, 31 de março Morte de sua mãe, Dorothy Pennebaker. 1955-1960 Depois de uma grande briga com o diretor do estúdio, Darryl Zanuck, por se recusar a estrelar o filme The Egyptian, Brando então vê-se obrigado a fazer o péssimo Desirée. Assim começa uma segunda fase de sua carreira, em que continua a ter um bom rendimento como ator, porém é menos ambicioso. Participa de menos filmes, mas ainda assim se torna campeão de bilheteria e um ídolo entre o público adolescente. 1957-1959 Casamento com sua primeira mulher Ana Kashfi. Nascimento de seu primeiro filho, Christian Devi Brando. 1960-1962 Em 1960 casa-se com sua segunda mulher, Movita. Depois de seu début, de pouco sucesso, como diretor, no filme A face oculta, estrela O grande motim, e é em parte responsabilizado pelo estouro orçamentário que criou uma grande crise no set de filmagem. Sua carreira começa a entrar em ligeiro declínio. 1962-1971 Casa-se com sua terceira mulher, Tarita, logo após as filmagens de O grande motim, e compra sua ilha no Taiti. Nesse período atua em três filmes: A condessa de Hong 124 Kong, O pecado de todos nós, e Queimada!. Embora sem a mesma intensidade que nos anos 50, ainda é extremamente respeitado, principalmente por outros atores, e demonstra no filme de John Huston que seu talento continua intacto. 1965 Morte de seu pai, Marlon Brando Sr. 1968 Nega participação no filme de Elia Kazan Movidos pelo ódio (The Arrangement), alegando que era impossível trabalhar quando o grande Martin Luther King havia acabado de morrer. Brando sempre teve preocupações com as minorias, mas só neste ano resolveu exercer papel ativo na política; associou-se ao movimento negro Panteras Negras, mas logo deixou a organização por desentendimentos com um dos líderes. Passou então a ajudar instituições de Martin Luther King. Durante grande parte de sua vida apoiou intensamente a luta dos índios americanos pelos seus direitos. 1970 Nasce a primeira filha de Tarita e Brando, Tarita Cheyenne Brando. 1972 Atua em O poderoso chefão e O último tango em Paris, restaurando assim a sua glória. O papel de Don Vito Corleone consagra-o com mais um Oscar, o qual ele recusa. Envia em seu lugar uma índia norte-americana para receber o prêmio, deixando claro para Hollywood que sua preocupação maior é com as questões dos direitos indígenas e não com premiações. Torna-se o ator mais cobiçado e caro do mundo. 1973-1989 Dedica-se intensamente à sua vida no Taiti e cobra cachês astronômicos para suas aparições cinematográficas. Nesses 15 anos atua em apenas cinco filmes. 1988 Inicia uma relação de seis anos com sua empregada doméstica Maria Cristina Ruiz. O casal tem três filhos. 1990 atua em Um novato na máfia. No mesmo ano seu filho mais velho, Christian, supostamente mata o marido da irmã e é sentenciado a dez anos de prisão (dos quais cumpre seis). 1994 Publica uma autobiografia, Brando: Songs My Mother Taught Me. 1995 Participa do filme Don Juan DeMarco, mas sofre outro baque com o suicídio de sua filha Cheyenne, aos 25 anos de idade. 1996 Seu primogênito, Christian Brando, sai da prisão. 1996-2001 Trabalha numa sucessão de produções menores. O último filme a estrelar é A cartada final, no qual atua ao lado de Robert DeNiro e Edward Norton. 2004, 1º de Julho Morre em Los Angeles aos 80 anos de idade, deixando sete filhos legítimos e três adotados. 125 Filmografia completa Espíritos indômitos (The Men) 1950 / Direção: Fred Zinnemann Uma rua chamada Pecado (A Streetcar Named Desire) 1951 / Direção: Elia Kazan Viva Zapata! (Viva Zapata!) 1952 / Direção: Elia Kazan Júlio César (Julius Caesar) 1953 / Direção: Joseph L. Mankiewicz O selvagem (The Wild One) 1953 / Direção: Laslo Benedek Sindicato de ladrões (On the Waterfront) 1954 / Direção: Elia Kazan Desirée, o amor de Napoleão (Desirée) 1954 / Direção: Henry Koster Garotos e garotas (Guys and Dolls) 1955 / Direção: Joseph L. Mankiewicz Casa de chá do luar de agosto (The Teahouse of the August Moon) 1956 / Direção: Daniel Mann Sayonara (Sayonara) 1957 / Direção: Joshua Logan Os deuses vencidos (The Young Lions) 1958 / Direção: Edward Dmytryk Vidas em fuga (The Fugitive Kind) 1959 / Direção: Sidney Lumet A face oculta (One-eyed Jacks) 1961 / Direção: Marlon Brando O grande motim (Mutiny on the Bounty) 1962 / Direção: Lewis Milestone Quando os irmãos se defrontam (The Ugly American) 1963 / Direção: George Englund Dois farristas irresistíveis (Bedtime Story) 1964 / Direção: Ralph Levy Morituri (Morituri) 1965 / Direção: Bernhard Wicki Caçada humana (The Chase) 1966 / Direção: Arthur Penn Sangue em Sonora (The Appaloosa) 1966 / Direção: Sidney Furie A condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong) 1967 / Direção: Charles Chaplin O pecado de todos nós (Reflections in a Golden Eye) 1967 / Direção: John Huston Candy (Candy) 1968 / Direção: Christian Marquand A noite do dia seguinte (The Night of the Following Day) 1968 / Direção: Hubert Cornfield Queimada! (Burn!) 1969 / Direção: Gillo Pontecorvo Os que chegam com a noite (The Nightcomers) 1972 / Direção: Michael Winner O poderoso chefão (The Godfather) 1972 / Direção: Francis Ford Coppola O último tango em Paris (Last Tango in Paris) 1972 / Direção: Bernardo Bertolucci Duelo de gigantes (The Missouri Breaks) 1976 / Direção: Arthur Penn Superman – O filme (Superman) 1978 / Direção: Richard Donner Raoni (Raoni) 1978 / Direção: Jean-Pierre Dutilleux, Luiz Carlos Saldanha (Marlon Brando como narrador do documentário) Apocalypse Now (Apocalypse Now) 1979 / Direção: Francis Ford Coppola 126 A fórmula (The Formula) 1980 / Direção: John G. Avildsen Assassinato sob custódia (A Dry White Season) 1989 / Direção: Euzhan Palcy Um novato na máfia (The Freshman) 1990 / Direção: Andrew Bergman Cristóvão Colombo – A aventura do descobrimento (Christopher Columbus: The Discovery) 1992 / Direção: John Glen Don Juan DeMarco (Don Juan DeMarco) 1995 / Direção: Jeremy Leven A ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr. Moreau) 1996 / Direção: John Frankenheimer O bravo (The Brave) 1997 / Direção: Johnny Depp Loucos por dinheiro (Free Money) 1998 / Direção: Yves Simoneau A cartada final (The Score) 2001 / Direção: Frank Oz Big Bug Man (Big Bug Man) 2004 / Direção: Bob Bendetson, Peter Shin (filme de animação ainda sem previsão de estréia. Brando faz a voz da personagem Mrs. Sour). 127 128 PRINCIPAIS PRÊMIOS E INDICAÇÕES OSCAR 1954 Melhor ator, Sindicato de ladrões 1972 Melhor ator, O poderoso chefão (recusado) Indicações 1951 Melhor ator, Uma rua chamada Pecado 1952 Melhor ator, Viva Zapata! 1953 Melhor ator, Júlio César 1957 Melhor ator, Sayonara 1973 Melhor ator, O último tango em Paris 1989 Melhor ator coadjuvante, Assassinato sob custódia BAFTA 1952 Melhor ator estrangeiro, Viva Zapata! 1953 Melhor ator estrangeiro, Júlio César 1954 Melhor ator estrangeiro, Sindicato de ladrões Indicações 1958 Melhor ator, Os deuses vencidos 1972 Melhor ator, Os que chegam com a noite 1972 Melhor ator, O poderoso chefão 1974 Melhor ator, O último tango em Paris 1989 Melhor ator coadjuvante, Assassinato sob custódia EMMY 1979 Ator coadjuvante em minissérie/filme para TV, Roots: The Next Generations GLOBO DE OURO 1955 Melhor ator dramático, Sindicato de ladrões 1973 Melhor ator dramático, O poderoso chefão Indicações 1957 Melhor ator em comédia ou musical, Casa de chá do luar de agosto 1958 Melhor ator dramático, Sayonara 1964 Melhor ator dramático, Quando os irmãos se defrontam 1990 Melhor ator coadjuvante, Assassinato sob custódia PALMA DE OURO | FESTIVAL DE CANNES 1954 Melhor ator, Viva Zapata! 129 Bibliografia Livros ADLER, Stella. The Art of Acting. Organizado por Howard Kissel. Applause, 2000. BOSWORTH, Patricia. Marlon Brando. Viking, 2001. BRANDO, Marlon. Brando: Songs My Mother Taught Me. Random House, 1994. DUNCAN, Paul (org.). Brando. Colônia, Taschen, 2006. GEADA, Eduardo. Os mundos do cinema: modelos dramáticos narrativos no período clássico. Notícias, 1998. GROBEL, Lawrence. Conversations with Brando. Cooper Square Press, 1999. HIGHAM, Charles. Brando: The Unauthorized Biography. New American Library, 1987. HIRSH, Foster. Acting Hollywood Style. Harry N. Abrams, 1991. KANFER, Stefan. Somebody: The Reckless Life and Remarkable Career of Marlon Brando. Alfred A. Knopf, 2008. SCHICKEL, Richard. Brando: A Life in Our Times. Atheneum, 1991. STRASBERG, Lee. A Dream of Passion. Penguin, 1987. Sites www.bafta.org www.emmys.com www.festival-cannes.com www.goldenglobes.org www.imdb.com www.life.com www.marlonbrando.com www.oscar.com 130 agradecimentos especiais André Mendes Eliete Moraes | Playarte Hernani Heffner Nelson Krumholz Roberto Martins Sabrina Yamamoto | TCM AGRADECIMENTOS Alberto Schatovsky André Sturm Angelo Defanti Bruno Cruz Bruno Sá Carolina Falcão Cecília Castro Clarisse Goulart Daniella Duarte Danielle Lopes | Pandora Filmes Dario Ignácio Débora Baldelli Denise Novais | Warner Diego Senra Doc Comparato Domingos de Oliveira Eduardo Ferrer | Cooper Films Eidil Fonseca | Continental Home Video Ely Azeredo Felipe Bragança Geraldine Higgins | Hollywood Classics Gisele Maciel Guilherme Tristão Gustavo Scofano Helena Varvaki Ilda Santiago Isa Carvalho | 4 estações Isabela Santiago Jennifer Denhard | MPA Julia Levy Kelly Monteiro Leila Mendes Letícia Kaminski Liliam Hargraves Lorena Comparato Luiz Eduardo Souza Luiza Brettas Marcelo Mendes Márcia Sandy | Warner Marcos Azevedo Maria Mendes Mariana Maceri Mike Murphy Raoni Luna | MPLC Robert Castle Rudi Lagemann Tatiana Leite Tatiana Monassa Tatsu Carvalho Vera Saboya Wellington Brandão Wilson Zaveri | Playarte 131 CURADORIA Bianca Comparato ASSISTÊNCIA DE CURADORIA Eduardo Ades e Fabiana Comparato PRODUÇÃO EXECUTIVA Eduardo Ades COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Angélica de Oliveira COORDENAÇÃO EDITORIAL E PRODUÇÃO DO CATÁLOGO Fabiana Comparato e Bianca Comparato REVISÃO E EDIÇÃO DE TEXTOS Clarice Zahar tradução Fabiana Comparato PRODUÇÃO DE CÓPIAS Angélica de Oliveira e Fabiana Comparato ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO Patrícia Savaget e Paula Furtado ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO EXECUTIVA Pedro Perazzo MONITORIA DE SALA Ana Carolina Miranda PROJETO GRáFICO E diagramaÇão Bruna Benvegnu ASSESSORIA DE IMPRENSA Daniella Cavalcanti Todos os direitos reservados. 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