LARA - Questão de Gênero

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LARA - Questão de Gênero
Arthur Hunold Lara
Tribos Urbanas: transcendências, rituais,
corporalidades e (re)significações
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação
da
Escola
de
Comunicações e Artes da USP em
Ciências da Comunicação, área de
concentração Comunicação, como
exigência parcial para obtenção do
título de Doutor.
Orientadora: Profª. Drª. Solange Martins Couceiro de Lima
São Paulo
2002
Arthur Hunold Lara
Tribos Urbanas: transcendências, rituais,
corporalidades e (re)significações
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação
da
Escola
de
Comunicações e Artes da USP em
Ciências da Comunicação, área de
concentração Comunicação, como
exigência parcial para obtenção do
título de Doutor.
Orientadora: Profª. Drª. Solange Martins Couceiro de Lima
São Paulo
2002
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BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
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RESUMO
O presente estudo analisa as transcendências e a corporalidade do tribalismo
urbano de São Paulo sobre o prisma da comunicação, tece suas dinâmicas, relações
temporais e vertentes espaciais. Discute as transformações perceptivas que afetam
esses grupos na relação com o tecido urbano e verifica a suas identidades,
resistências, transcendências e territórios. Tece, ainda comparações com o tribalismo
internacional das festas raves, discutindo seus estados alterados de consciência o uso
das novas drogas. Dessa comparação identificamos algumas (re)significações e
(re)elaborações do sentir em seus ritos tribais.
SUMMARY
The present study analyzes the transcendency and the corporality of São
Paulo’s urban tribes unther the prism of communications and weaves their dynamics
of temporary relationships and spaces . It discusses the perceptive transformations
that affect those groups in the relationship with the urban tissue and it verifies their
identities, resistances, transcendency s and territories. Then it makes comparisons
with the international tribalisme of the rave parties, discussing the altered states of
conscience by the new perception and the use of new drugs. From this comparison
we identified some re-significances and re-elaborations in the feeling in their tribal
rites.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos os meus mestres, professores e orientadores pela paciência,
tolerância, e especialmente à minha orientadora Solange C. Lima e aos meus mestres
de Capoeira Eli Pimenta, Alcides de Lima, Belisco e Pedro Pedreiro. O presente
trabalho não seria possível sem a colaboração do meu grupo de maracatu Baque
Bolado, dos Pais-de-Santo Euclides, do Maranhão, Domingos, da Ilha de Itaparica
(BA) e de todos os terreiros, centros, mosteiros, grupos musicais e pessoas que se
dispuseram a ceder imagens fotográficas, gravações e fornecer entrevistas. A
influência, companheirismo e participação de Luciene Beleboni, Fábio Duarte, Eneus
Trindade, Dema, Sabrina Cunha, Sandro Canavesi, Stella Carrozo e do músico André
Bueno que tornaram possível o acesso a lugares especiais e fundamentais para o
desenvolvimento da presente pesquisa. Gostaria, ainda, de lembrar que este trabalho
teve seu início com jovens que sofrem diferentes tipos de perseguições e
discriminações e encontram, na rua, na circulação dos signos-idéias, nos muros,
viadutos e fachadas, um lugar para a sua identidade-errante ou um “espelho” para
que suas tribos resistam, ascendam e transcendam.
Aos meus pais pela inspiração, à Maria do Carmo C. S. Lara pela dedicação e amor.
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SUMÁRIO
Resumo ------------------------------------------------------------------------------------------ 4
Summary ---------------------------------------------------------------------------------------- 4
Agradecimentos -------------------------------------------------------------------------------- 5
1 – Introdução Metodológica ---------------------------------------------------------------- 8
Apresentação do Problema ----------------------------------------------------------------- 8
Objetivos ------------------------------------------------------------------------------------- 16
Justificativas --------------------------------------------------------------------------------- 18
A Pesquisa ----------------------------------------------------------------------------------- 27
As Hipóteses --------------------------------------------------------------------------------- 38
Justificativa das Hipóteses ---------------------------------------------------------------- 38
Coleta de Dados ---------------------------------------------------------------------------- 42
Como foi Desenvolvido o Corpo da Pesquisa ------------------------------------------ 48
Discussão e Referencial Teórico --------------------------------------------------------- 52
Foco da Pesquisa --------------------------------------------------------------------------- 57
Metodologia --------------------------------------------------------------------------------- 61
Capítulo 1 -------------------------------------------------------------------------------------- 64
Território, Corpo e Corporalidade das Turbas ---------------------------------------- 64
O lugar das Turbas ------------------------------------------------------------------------- 64
As Turbas Nômades e a Consonância Musical ----------------------------------------- 65
Implicações da Harmonia na Estética e no Corpo em Transe ----------------------- 70
O Corpo e a Identidade em trânsito------------------------------------------------------ 73
Das Turbas Pitagóricas às Tribos Eletrônicas ----------------------------------------- 75
CAPÍTULO 2 ---------------------------------------------------------------------------------- 83
O Urbano: As Tribos e os Grupos -------------------------------------------------------- 83
A História da Formação das Cidades como Proteção e Transcendência dos
Valores Temporais -------------------------------------------------------------------------- 83
A Revolução Nas Ciências e a Visão Espaço-Tempo Moderna ---------------------- 89
A Revolução Nas Ciências e a Visão Espaço-Tempo Pós- Moderna --------------- 91
6
O Urbano e a Sociedade Transmoderna ------------------------------------------------ 94
A formação das Tribos e dos Guetos Urbanos --------------------------------------- 100
Capítulo 3 ------------------------------------------------------------------------------------ 105
O GRUPO URBANO BAQUE BOLADO E O TRANSE ---------------------------- 105
Influências e raízes do Transe Xamânico Possessivo ------------------------------- 105
A relação entre as tribos e o território urbano --------------------------------------- 115
A Experiência com a Tribo Urbana do Grupo Baque bolado ---------------------- 120
A relação do grupo com os Territórios Iniciáticos ---------------------------------- 123
A relação entre grupos estudados e os Meios de Comunicação ------------------- 132
Conceito de Identidade / Realidade-Mestiçagem-Modismo / Meios de
Comunicação ------------------------------------------------------------------------------ 134
CAPÍTULO 4 -------------------------------------------------------------------------------- 136
Os Ritos e a Sublimação Das Tribos --------------------------------------------------- 136
Os Ritos e os Meios de Comunicação-------------------------------------------------- 136
Rito sem Mito ------------------------------------------------------------------------------ 139
Rito com Mito------------------------------------------------------------------------------ 143
Rito com Culpa ---------------------------------------------------------------------------- 145
Ritos de Passagem ------------------------------------------------------------------------ 148
Rito do Podium ---------------------------------------------------------------------------- 152
Rito de Sublimação ----------------------------------------------------------------------- 156
QUADRO SONORO COMPARATIVO ---------------------------------------------- 160
Considerações Finais----------------------------------------------------------------------- 166
Referências Bibliográficas ---------------------------------------------------------------- 172
7
1 – INTRODUÇÃO METODOLÓGICA
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
Com o advento da energia elétrica, a produtividade e a atividade humanas
aumentaram, pois tornaram-se independentes da luz do dia e dos fenômenos da
natureza. Já a população das redes digitais possibilita que as informações
mantenham-se 24 horas por dia no ar, e estejam acessíveis a um imenso público que,
em conseqüência, passa a ter novas necessidades. Essas tendências globalizantes
levam os habitantes dos grandes centros a utilizar ao máximo seu tempo e sua
potencialidade cognitiva1, desmontando o mundo físico em função das novas
emoções do dia prolongado e da vida virtual. A tecnociência, por meio das novas
propriedades da imagem-conhecimento - interativa; rápida e instantânea -, acaba
deslocando a realidade das cidades para o mundo unificado que a comunicação e a
informação originaram. O corpo físico passa a ser dependente dos meios digitais: a
inteligência artificial, os gestores, as realidades virtuais, os celulares inteligentes, as
TVs a cabo, os games e os avatares descortinam um universo no qual a cidadania não
tem fronteiras.
1
A ciência cognitiva trata da potencialidade da mente humana, e as novas teorias advindas de descobertas
recentes e multidisciplinares possibilitam a implementação de novos tratamentos, terapias e remédios, que
ampliam a saúde mental, potencializam nossos sentidos e têm forte influência em nosso sistema educacional,
que é tradicionalmente refratário a novos métodos e teorias. Autores como Popper & Eccles, Damásio, Del
Nero, Howard Gardner, Jourdain e Oliveira abordam os estados mentais, as memórias e a cognição humana.
8
Novas tendências são (re)elaboradas2 a partir de gestores DM (data mining)3,
mineradores de informações inteligentes que associam relações e tendências
invisíveis ao olhar físico-analógico. Assim, os “supermercados inteligentes”, que
colocam elementos aparentemente sem nenhuma ligação – como fraldas descartáveis
e cervejas – tiveram suas vendas aumentadas. Tais elementos - que, ao olhar
analógico não guardam relação entre si - foram associados pelo cruzamento de dados
“minerados”, que “enxergaram” a tendência a buscar alguns minutos de prazer após a
troca de fraldas dos bebês.
Tendências cruzadas e avaliadas trazem desde novas informações sobre as
galáxias distantes de nosso planeta até informações sobre o funcionamento interno do
corpo. Quando mineradas e analisadas, transformam-se em conhecimento
observáveis somente pelo olhar “homem-máquina”: um olhar estudado, qualificado e
“potencializado” por meticulosos cientistas, médicos, psicólogos e engenheiros, que
consegue “traduzir” dos meios de informação novos conhecimentos e analogias, ou
confirma teorias que anteriormente restringiam-se ao plano das idéias e das
2
O parêntese aqui colocado representa uma dinâmica dos fenômenos urbanos imbricados, que têm elaborações
cíclicas e dialéticas: ao mesmo tempo em que são colonizadas; colonizam, em que elaboram, são reelaboradas.
3
Os data mining (DM) são ferramentas com softwares de rede neural e inteligência artificial (IA), que têm a
capacidade de correlacionar coisas aparentemente desvinculadas. (Rezende, 1999) assim define DM DATA
MINING: “o volume de dados disponíveis cresce a cada dia e desafia a nossa capacidade de
armazenamento. Uma nova onda de ferramentas de "mineração" pode nos conduzir A expressão "data
mining", está relacionada com lógica, inteligência artificial (IA) e redes neurais, além de poder se relacionar
também com o assunto banco de dados. Os programas de "data mining" são instrumentos com altíssimo grau
de sofisticação tecnológica e que lançam mão de recursos avançados como os de IA e redes neurais, sendo
capazes de extrair deduções, levantando hipóteses que os seus clientes e/ou usuários jamais poderiam
imaginar, como o clássico exemplo da cerveja e fraldas descartáveis. Ou seja as ferramentas de "data
mining" têm capacidade para correlacionar coisas aparentemente desvinculadas. Com previsões bem feitas,
os negócios podem lucrar milhões de dólares. A análise de dados históricos para identificação de padrões,
que possam esclarecer o presente, é chamada de "data mining". "Data mining" não só responde a previsões
de negócio, mas pode também revelar os atributos mais importantes que influenciam essas previsões. Um
software de rede neural é um modelo matemático computacional complexo que abstrai o modo como as
células cerebrais, os neurônios, operam -isto é, aprender através da experiência, desenvolver regras e
reconhecer padrões. Redes neurais são projetadas para reconhecimento de padrões entre elementos de
dados complexos. Para operar efetivamente, uma rede neural requer uma considerável preparação dos
dados” (p.52-53).
9
suposições. Para a ampla maioria, as “imagens-conhecimento” trazem apenas
facilidades: a diversão, o lúdico, a sensação de movimento, a comunicação rápida, a
auto-ajuda etc. Já uma pequena minoria, excluída e expropriada, a ação dos meios de
comunicação é um fator de (re)associação. Ao longo deste estudo veremos como as
tribos urbanas desenvolvem uma virtualidade dentro do espaço tecnológico
democratizado, e como se dão tais associações.
Se o impacto dessa nova tecnologia é fortíssimo na economia, não será
diferente em outras áreas do conhecimento, nas quais grandes esforços têm sido
envidados para adequar as leis e a ética aos novos procedimentos, que vão do clone
humano às plantas geneticamente modificadas.
Países com industrialização dependente, urbanização acelerada e graves
problemas domésticos – como fome e desemprego - têm suas economias, culturas e
hábitos globalizados. Na maioria da vezes estão atrelados às tecnologias estrangeiras,
que
são
(re)colonizadoras,
hegemônicas,
virtualizadoras,
especulativas,
(re)combinativas aos novos eixos econômicos atados às infovias, aos ataques
especulativos, à banalização e à individualização egocêntrica do cotidiano, às
oscilações da moda e do “gosto internacional”, aos hábitos e costumes
neocolonizadores. A dependência da comunicação origina-se do desequilíbrio
comercial e tecnológico e atinge as esferas educacional, gerencial e governamental,
esfacelando a cultura própria de cada região que, atacada, passa a reformular suas
significações.
No meio urbano, em que as relações são reflexos do cotidiano, há a
superposição de funções. Grandes mudanças são verificadas, sobretudo nas pessoas
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ou grupos que, de alguma forma, já tinham tendências, perturbações ou desvios de
ordem psicológica. A cognição ligada à informação induz a processos
identificatórios: alguns grupos urbanos - carecas, funkeiros, skatistas, cybernautas,
sem-teto, grafiteiros, rappers e outros – unem-se para vencer dificuldades ou buscam
novas associações, que se originam no tecido urbano de características semelhantes.
Alguns mais voltados à cultura externa, outros tentando resgatar elementos da cultura
primitiva, e outros buscando escapar do anonimato e da padronização da mídia.
Dentre esses grupos, aqueles que tentam se aproximar da música folclórica
nordestina – pois nela identificam um elemento unificador e legitimador de seus
anseios e visões de mundo - merecem uma investigação mais aprofundada, pois
tecem novos caminhos no meio urbano paulistano.
Alguns centros urbanos são formados com base em planos diretores cujas
regras são rígidas e estruturadas pela sociedade através das prefeituras, dos
agenciamentos e da divisão da propriedade. Tais competências contemplam o direito,
o uso, a circulação, o saneamento e a ocupação das estruturas que compõem esses
centros. São Paulo é um grande centro urbano cujo crescimento é desordenado.
Assim a qualidade de vida vai se deteriorando, em decorrência da expansão
demográfica, da velocidade dos carros, da violência, e do inchaço populacional
provocado pelos fluxos migratórios. Muitas tentativas têm sido feitas para recuperar
o centro e adequar o uso das estruturas da cidade. Essas tentativas têm, como
principal objetivo, democratizar e revitalizar a cidade como um todo. As gangues, as
torcidas, as galeras, os grupos e as tribos urbanas são um fenômeno recente e pouco
estudado.
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Assim, o presente estudo analisa o meio urbano de São Paulo sob o prisma da
comunicação, pela observação e análise dos movimentos das tribos urbanas
permeáveis à globalização. Essas tribos, não restritas às estruturas rígidas,
(re)elaboram suas significações criando territórios dinâmicos, mantêm fortes ligações
com suas raízes, e recebem e assimilam rapidamente novas influências, o que as faz
voláteis e associativas. A dinâmica da cidade não acompanha o desenvolvimento das
tribos que, de posse de novos meios de comunicação, tornam-se violentas, agressivas
e se impõem desafiando a estrutura da cidade. Comandos, justiceiros, torcidas
organizadas, gangues e galeras têm sido objeto de estudo e/ou ação direta de
sociólogos, psicólogos, urbanistas, jornalistas, e tumultuam a cena contemporânea
das grandes cidades.
Neste trabalho, optamos por analisar um grupo urbano que pertencente à tribo
“nordestina-percussiva”, constituído por pessoas mais abertas, menos violentas e
próximas à música percussiva e ao lúdico. Para facilitar a compreensão do leitor
esclarecemos que entendemos tribo como um conjunto de forças que deslocam o
“estar junto” dos grupos para um determinado vetor cultural, enquanto grupo é o
deslocamento do Eu individual para um sendo em trânsito, até formar a
conscientização do “estar junto”.
As dinâmicas das vertentes do grupo estudado, e suas relações temporais e
espaciais, mostraram uma característica nova em relação aos outros grupos urbanos:
a música percussiva. Os fatores comuns das tribos são: a questão das identidades
múltiplas, da resistência cultural, das transcendências e dos territórios que estão
normalmente ligados à discriminação e à marginalidade. A música percussiva dos
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anos noventa agrega novos valores e visibilidades através da música eletrônica, da
musica étnica ligada à cultura dos terreiros e da música iniciática. Salvador e Recife
são grandes exemplos: depois de Carlinhos Brown e Chico Science, a quadra, os
blocos e a rua dessas cidades perderam o estigma da violência e puderam afirmar
seus valores culturais pela música que mudou o modo de ser, de pensar e de agir de
toda uma geração. A mudança musical alterou comportamentos, atitudes, e despertou
a indústria cultural para o movimento do gueto, dando visibilidade à música
afrodescendente.
Os elementos que vão do lúdico à comoção - ligados à música folclórica
nordestina – são relativamente novos em São Paulo, e careciam uma investigação
mais aprofundada. Até que ponto eles estão ligados à cultura urbana ou são cópias
importadas de “fora” e incorporadas à cidade?
Os grupos baianos de Salvador - como a Timbalada, os blocos e os trios - têm
essas mesmas ligações, que mudaram significativamente a cena e os costumes
soteropolitanos, ganharam espaço nas as gravadoras e foram superexpostos na mídia,
o que provocou o nivelamento e a dissolução da essência do movimento. Mas, ainda
que massificado, o movimento musical baiano motivou alguns grupos paulistanos a
buscarem o mesmo caminho: uma visibilidade através da música percussiva.
O grupo aqui estudado era inicialmente constituído por migrantes do norte e
do nordeste, que viam no folclore e na música percussiva uma possibilidade de
(re)elaboração de seus significados na grande cidade paulista. O fato novo é que esse
grupo se mantém distante da importação de modelos externos, ao contrário do que
ocorre com os grupos ligados ao Rock, ao Hip Hop, ao Funk e ao Rap.
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A maioria dos problemas sociais - como violência urbana, consumo de
drogas, evasão escolar e vandalismo - tem como pano de fundo os novos
agenciamentos das tribos e grupos urbanos, que resistem à difícil assimilação do
indivíduo “rebelde” à família, à cidade ou à “ordem instituída”. A “ordem instituída”
discrimina o vício, o viciado e também não admite as valorizações culturais dos
colonizados: o caboclo, o índio e o africano. Essas instituições hegemônicas
tradicionalmente protegem e corrigem o diferente, o infrator, o migrante, o
estrangeiro, o desajustado mas, quando não têm êxito nessa empreitada, deixam que
a rua, os amigos, os grupos e as tribos encarreguem-se do problema. Na rua, na
cidade e no urbano as identidades das pessoas são diluídas, a metrópole age sobre o
indivíduo modificando o seu “Eu” individual e egocêntrico para o “Sendo” em
trânsito, em grupo, em tribo: polifônico. “O segundo Eu” grupal é competitivo,
dinâmico, associativo e volátil. Formam-se, desta maneira, os guetos, as turmas, as
gangues e os grupos que, dependentes das potencializações promovidas pela
urbanização e pelo contato facilitado da tecnologia, passam a ter vontade própria e a
ditar as suas próprias regras de comportamento formando tribos que, na maioria das
vezes, chocam-se com a ideologia da cidade e das outras tribos.
Desta maneira, o comportamento das tribos não é o mesmo que o de seus
indivíduos ou da sociedade em que eles vivem. Dependendo das forças sociais, essas
tribos tumultuam a normalidade e adquirem forças descontroladas que levam à
banalização da violência.
Nosso problema foi estudar como esse grupo, mais musical, percussivo e
aberto, encontra a sua tribo, delineia seu território e sua organização e promove a
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virtualização - que amplia seu território de ação, possibilitando que seus integrantes
sobrevivam exclusivamente do seu trabalho, da força e da união coletivas e grupais -,
o que o faz respeitado e escutado pela sociedade.
Durante dois anos de convivência com o Baque Bolado, desde a sua formação
- quando tinha o nome de Maracatu do Baque Bolado - até seu estabelecimento
definitivo no cenário urbano paulistano, a presente pesquisa acompanhou a busca de
valores que identificassem o grupo e seus aliados, e sua transformação até o
lançamento do seu primeiro CD – quando já se intitulava Cia. do Baque Bolado.
Verificamos, nesse percurso, que o grupo procurava novos estados de consciência, na
tentativa do grupo de (re)ver seus valores culturais. Esses estados potencializados do
corpo e da mente são difundidos por estilos e comportamentos internacionais
impulsionados pelas tribos da worldmusic e da etnomuisic - amplamente difundidos
pela mídia e pela massificação do som eletrônico nos anos 90 -, que provocam
dependência pelo êxtase e pela comoção decorrentes da exposição do corpo ao som e
à imagem sincronizados e cadenciados.
Nos anos 90 as festas, principalmente aquelas em que a música eletrônica era
a tônica, ganharam um público internacional. Tais festas tiveram seu início com as
tribos urbanas de Berlim quando da queda do muro que a dividia em duas: Berlim
Ocidental e Berlim Oriental. Os jovens de Berlim Oriental foram expostos à mídia
ocidental - através da TV e do rádio - propositalmente. Quando o muro deixou de ser
um obstáculo, as discotecas ocidentais foram o palco de intermináveis shows e
festas. Nelas, os DJs e os VJs alemães desenvolveram a música eletrônica que
proporcionava o êxtase, logo batizada de trance. Essa elaboração da música das
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discotecas berlinenses coincidiu com a evolução dos mixers4, dos sintetizadores e da
bateria eletrônica. A Rolland (fábrica de sintetizadores) vinha desenvolvendo, desde
a década de 70, uma série de equipamentos eletrônicos com Ikutaro Kakehashi.
Deve-se a Ikutaro a integração entre a bateria e o sintetizador que originou o
sampler, equipamento capaz de gravar, alterar e reproduzir sons e associá-los ao
teclado, o que permite que sejam executados durante a performance musical.
No decorrer desta tese veremos como o Baque Bolado, sob as influências da
cultura musical eletrônica e da percussão brasileira e africana, é motivado a penetrar
no mundo fechado do xamanismo brasileiro. A percussão, as músicas xamanísticas,
os VJs e os DJs elaboram uma sofisticada relação entre sons e imagens que age sobre
os nossos centros perceptivos. Essa ação altera os estados de consciência, e é a nova
mola agenciadora das tribos urbanas em diferentes cidades cosmopolitas do mundo
globalizado: Nova Iorque, Berlim, Rotterdam, Paris, Barcelona e Roma. Por sua vez,
tais cidades modelam os comportamentos das grandes metrópoles brasileiras, como
Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife e Fortaleza.
OBJETIVOS
Os objetivos do presente estudo foram:
 Investigar como se dá a transcendência à banalização e à espetacularização do
cotidiano, do vestir e do sentir em grupo, revisitando as origens, (re)ritualizando
e (re)elaborando os signos do presente. Os grupos urbanos têm, como elemento
4
Mixers ou MIXAR é o mesmo que “Misturar”;. na técnica do DJ significa juntar as batidas de duas ou mais
músicas na mesma velocidade, nas mesmas bpms (batidas por minuto), buscando a passagem de um vinil ou
cd a outro, ou a fusão de uma música com outra.
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unificador, a busca de uma essência, uma valorização etnológica que se
contrapõe à massificação homogeneizadora, à cópia, à repetição e à imitação de
modelos e maneiras, que fazem os lugares e as pessoas ficarem semelhantes.
 Diagnosticar como se dá a territorialização de conteúdos grupais na identificação
do nicho, do gueto como condição de permanência e de proteção e preparando
um terreno fértil para a transmissão dos significados cultuados: a comoção e a
emoção, através da percussão que assimila os “pontos” de “terreiro” e mescla-os
à festa profana urbana, verificando suas (re)elaborações e (re)valorizações na
volatilização do território tribal.
Esses pontos serão desenvolvidos adiante, em capítulos que analisam as
roupas, a corporalidade, os códigos, os territórios, as influências e os
comportamentos do grupo Baque Bolado em São Paulo e suas ligações com a cultura
nordestina e os outros grupos paulistanos que formam uma tribo percussiva que
preenche o vácuo originado pela morte do músico pernambucano Chico Science 5 e
seu estilo manguebeat6.
5
O músico sofreu um acidente automobilístico - seu Fiat abalroou um poste na divisa entre as cidades de
Recife e Olinda no dia 2 de fevereiro de 1997 -, que encerrou sua promissora carreira aos 31 anos de idade.
6
O jornalista pernambucano José Teles (Teles, 2000) descreve como foi criado o termo manguebeat: "Sons
negros no Espaço Oásis", este foi o título de uma matéria publicada em 1° de junho de 91, no JC, em que a
palavra "mangue" apareceu pela primeira vez na imprensa para designar um estilo musical (e também a
primeira foto de Chico Science publicada na imprensa). Chico veio à redação divulgar uma festa chamada
Black Planet, que ele produzia e que teria participações dos DJs Mabuse e Renato L, e um grupo de sambareggae, o Lamento Negro, com o qual ele havia começado a trabalhar. Espaço Oásis ficava em Casa Caiada,
bairro de 0linda. O desconhecido Chico Science foi recebido como normalmente se recebem artistas em
início de carreira em redações: com pressa. Geralmente, o repórter atende com o pensamento voltado para a
matéria que redigia ao ser interrompido. O fato de ser amigo de Fred Montenegro, o Fred 04, então
jornalista da TV Jornal, e de Renato L, também do ramo, contribuiu para que ele não amargasse um chá de
banco, ou uma raquítica notinha. O jornalismo é uma profissão cruel. Pior ainda, aquele rapaz amulatado,
de estatura mediana, franzino, com um sotaque arrastado, não tinha pressa, e ainda arrotou arrogância nas
explicações sobre o que seria um novo gênero que "teria " inventado: "O ritmo chama-se Mangue. É uma
mistura de samba-reggae, rap, raggamuffin e embolada. O nome é dado em homenagem ao Daruê Malungo
(que em iorubá significa companheiro de luta). Um núcleo de apoio à criança e à comunidade carente de
Chão de Estrelas ". Chico era o que em Pernambuco, entre o povão, taxa-se de "baixinho invocado".
Achando pouco ter assumido a paternidade de um ritmo” (p.263)
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JUSTIFICATIVAS
Na cena contemporânea, a volatilização territorial do neotribalismo promove
alterações e conotações bárbaras, primitivas e neocanibalescas: a violência. O espaço
tradicional da cidade abriga diferentes tensões sociais em uma mesma área física, e a
exposição às mais recentes ferramentas da informação provoca novas tensões e
associações, que utilizam o novo espaço em rede de diferentes maneiras. A
contenção, encaminhamento ou solução dessas forças é uma tarefa da sociedade e de
seus legisladores. Quando abrimos espaços virtuais, tais forças tornam-se passíveis
de outros agenciamentos, invisíveis ao olho físico e social. São inúmeros os casos de
homicídios, rebeliões, vandalismo, alterações de comportamento, trocas de
identidade, formação de guetos, apropriação de novos territórios, valorização de
antigos preconceitos e novas discriminações, que compõem as forças cotidianas
normalizadoras das metrópoles pós–modernas e induzem a processos de
descolamento das identidades, doravante intituladas forças de volatilização.
Utilizamos também o conceito de tribo semelhante à ótica sociológica de Maffesoli
(2000), cujo eixo social-filosófico está centra-se na costura teórica baseada no
pensamento de Max-Weber, Durkheim, Simmel, E. Morin, W. Benjamin, J.
Baudrillard e Perniola. Maffesoli analisa as tribos sob o declínio do individualismo
moderno frente às mudanças pós-modernas provocadas pela TV a cabo, o
computador e a moda. Para o autor, a tribo procura um ser/estar junto, coletivo,
transcendente e em êxtase.
No que concerne à comunicação, formulamos o conceito de grupo,
agrupamento, agenciamento ou gangues que, em sua maioria, são cópias ou
importações rápidas, pressionadas pela moda ou por vetores culturais globalizantes.
18
Quanto a tribo, esta é composta por um ou mais grupos de pessoas associadas por
uma afinidade comum. No presente trabalho analisaremos os grupos paulistanos que
se unem afinados pela mesma vertente musical-percussiva do folclore nordestino: o
Bumba-meu-boi7, o Coco8 e o Maracatu. Uma tribo pode ser constituída por um ou
mais grupos que trocam similaridades. O Baque Bolado, grupo escolhido para este
estudo, apresenta tais características em relação ao estar junto em êxtase.
Aprofundaremos como o transe brasileiro - que tem ligação com o terreiro e com o
carnaval - é incorporado à musicalidade do grupo.
A discriminação, a segregação, a violência e o comportamento segmentado
fazem com que a tribo seja uma fuga, uma saída que ameniza os problemas raciais e
sociais comuns à sociedade brasileira, em que o racismo e a mestiçagem são
dissimulados. A pesquisa com o grupo paulista Baque Bolado procurou,
propositalmente, manter-se distante da violência, da discriminação racial e da
mestiçagem. O Baque Bolado é um grupo aberto, democrático e pacífico que, por
meio da música, utiliza o urbano como elemento transformador do território,
apresentando relações complexas com a origem e o meio. Simultaneamente, o grupo
molda novos comportamentos, que acabam transbordando o seu próprio território e
tornam-se internacionais. Desta forma, tentaremos mostrar que as tribos são
7
Bueno (2001), p.27: “O Bumba-meu-boi constitui uma dança dramática de representação social que articula
valores de etnia, cultura e classe. É reinterpretado comunitariamente Brasil adentro, em variantes do
Maranhão, Piauí, Pará, Amazonas, Ceará, Paraíba, Pemambuco, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Minas
Gerais, Rio de ]aneiro, São Paulo e Santa Catarina, entre outros Estados, seja no ciclo ]oanino, seja
integrado ao ciclo natalino do Reisado. Há comunidades, sabidamente de São Paulo e Alagoas, que o
apresentam no Camavar. Ocorre até no Benin, entre famílias de africanos retomados da Bahia, trazendo o
nome de" Buriyan ", a Burrinha que acompanha o Boi, feita personagem principal em processo similar ao do
"Cavalo Marinho" de Pemambuco. É familiar também aos habitantes dos grandes centros urbanos, pelos
meios de comunicação de massa, mais como a figura de pano e fita do que como o foco central de uma
narrativa musicalizada e dançada.”
8
Dança e canto afro-brasileiros ligados a mutirões de levantamento de casas e de quebra de cocos. A tradiçaõ
oral registra a importância desses cantos de trabalho já no século XVII, nos Quilombos de Palmares. Sua
rítmica espalhou-se pelo nordeste e colaborou na formação dos Baianos(Baião) e Forrós.
19
influenciadas por forças que mantêm relações mais fortes com o aparato cognitivo
sensorial do que as forças sociais ligadas à violência e a discriminação racial ou de
classe.
De posse dessa “visão antropológica” das tribos é possível compreender a
“democratização dos espaços” centrais da cidade em territórios “livres”, onde há
proteção e terreno fértil para o agenciamento e o crescimento das tribos. O centro
paulistano permite novas resistências, identidades, virtualidades e volatilidades.
Assim ele se transforma rapidamente em palco de gangues, comandos, grupos de
menores carentes, malandros, traficantes de crack, carecas, sacoleiros, ambulantes,
assaltantes, rappers, funkeiros, skatistas etc. Cada tribo em seu território defendendo
seu lugar ao sol.
A diversificação e a popularização das novas classes sociais na cidade leva a
classe média hegemônica para a periferia - onde se abriga em condomínios fechados
-, o que possibilita maior diversificação social nos centros urbanos. A infra-estrutura
rígida do centro não acompanha essa fuga da classe média. Ela, que investiu e
construiu o centro vê-se agora obrigada a abandoná-lo, levando-o à rápida
deterioração ou à necessidade de novos investimentos, que atendam às necessidades
das classes que chegam do campo, de cidades menores, dos estados vitimados pela
seca, dos bairros afastados ou, até mesmo, daqueles que fogem dos caros aluguéis
dos bairros de classe média.
Por outro lado, os condomínios cercados e privatizados são objeto de
investimentos voltados à segurança e à infra-estrutura: luz, esgoto, saneamentos e até
tratamento privado de água potável. Esse movimento de falência dos centros, aliado
20
à tecnologia da informação, subverte a noção de cidade (principalmente aquela dos
países em desenvolvimento) como um único centro cortado por grandes artérias de
fluxo de carros. A nova cidade é constituída por vários centros, polarizados por áreas
periféricas isoladas próximas a pequenos centros comerciais, auto-estradas ou
rodovias.
O fluxo da informação segmenta a cidade em pequenos guetos, pequenos
nichos, e as identidades dos grupos são (re)agrupadas pela imitação do “outro”.
Assim, o fluxo informacional não passa por nenhum centro ele é (re)direcionado para
os segmentos da sociedade (grupos). Pequenos centros assumem o papel do centro
único e articulam-se entre si, formando uma malha caótica e complexa de relações.
Dentro dos pequenos centros, a informação converge para o indivíduo inerte e
sedentário que, em sua poltrona, navega rapidamente pela rede.
“De fato, se a melhoria da definição espacial das lentes ópticas das objetivas
das câmaras promove a visão dos contrastes e aumenta a luminosidade da
imagem habitual, a recente melhoria da definição temporal dos processos de
captação de imagem e de transmissão eletrônica aumenta a nitidez, a resolução
das imagens videoscópicas. Deste modo, a velocidade audiovisual serve para
ver, para ouvir, ou por outras palavras para avançar na luz do tempo real, como
a velocidade automóvel dos veículos servia para avançar na extensão do espaço
real de um território”. 9
Inverte-se, desta forma, conforme Virilio, o que o automóvel proporcionou:
um “devir” através de ruas e avenidas e seu deslocamento individualizado sobre o
tecido urbano. A era do automóvel modificou o andar entre os signos da cidade,
acelerando o urbano até que as ruas se transformassem em grandes vitrines,
barulhentas e cheias de anúncios luminosos que invadiram as fachadas, saltaram
9
Virilio (1993), p.21.
21
sobre as ruas e expulsaram os moradores para lugares com menor movimento e
barulho.
A era da informação altera radicalmente essa tendência, pois permite outro
tipo de locomoção e agenciamentos ligados às telas dos computadores, às microtelas
dos celulares - totens eletrônicos urbanos –, e aos mixers de imagens e sons digitais.
Agora, essas máquinas digitais concentram sua potencialidade para o indivíduo,
acelerando sua motricidade, mudam a cognição, excitam novas memórias, trazem
novos prazeres, novos territórios, reflexos, condicionamentos e agenciamentos.
Mesmo os desplugados acabam sofrendo com as mudanças sociais e espaciais da
cidade. O exemplo é a plastificação do dinheiro. É praticamente impossível ver o
dinheiro no banco, pois ele se volatilizou e está disponível em todos os caixas
eletrônicos. Ir ao banco, atualmente, tem um significado diverso daquele de há dez
anos. Da mesma forma, os presídios brasileiros não se preocuparam em isolar o
acesso à telefonia celular. Tal despreocupação possibilitou que os presos
organizassem rebeliões de âmbito nacional e sofisticada organização, garantida pela
potencialidade desse veículo. Surgiram grupos organizados - mediados por novas
tecnologias e agenciamentos -, que se adiantaram velozmente, enquanto o controle,
as prisões, não são capazes de aprisionar o “corpo virtual delituoso”. No Rio de
Janeiro o Comando Vermelho (CV), e em São Paulo o Primeiro Comando da Capital
(PCC)10, promoveram rebeliões, fugas e motins sem precedentes na história
10 A sigla PCC (PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL) identifica é um comando de presos nascido em 1993.
A primeira ação do grupo - o assassinato no de dois outros presos no - ocorreu em agosto de 1993:. Desde
então, os integrantes do grupo foram sendo transferidos, disseminado suas convicções e formas de ação pelo
sistema e fomentando rebeliões. Na Casa de Detenção de Sorocaba, Geleião comandou um motim em 28 de
dezembro de 1997: nessa ação, tornou reféns parentes de presos e ameaçou explodi-los com botijões de gás.
A revolta terminou três dias depois, com um detento e um visitante mortos. Depois dessa rebelião, o governo
transferiu as lideranças do PCC, internadas em Taubaté, para o Paraná, onde fundaram o PCP (Primeiro
Comando do Paraná), e o movimento ganhou dimensão nacional.
22
carcerária brasileira. Tais comandos tentam identificar seus territórios por letreiros
luminosos colocados nos morros, pichações das suas iniciais nos muros, e intimidam
a população a não vestir a cor do grupo rival. A cada rebelião os líderes requisitam
uma “transferência” para outros presídios e, em poucos meses, assistimos a uma
generalização dos motins, que passaram da esfera regional para a esfera nacional.
Assim, os comandos, as gangues, as tribos e as galeras aprendem - pela
necessidade de sobreviver - a utilizar a volatilidade, e fixam-se em nichos
específicos, que formam seu território. O Baque, embora afastado da violência, busca
na volatibilidade uma maneira de fugir da proibição policial - devida ao barulho
ensurdecedor - de executar seus tambores aos domingos nas ruas da Vila Madalena e
passa a ensaiar, a cada domingo, em uma praça além de buscar, nas casas noturnas,
um espaço para o aprendizado e a manutenção do grupo. Através de seu site,
convoca e mobiliza rapidamente seus trinta integrantes, o que garante uma fluidez
que possibilita a sobrevivência e a permanência do grupo.
Atrasada em relação a esses novos agenciamentos, a cidade, da mesma forma
que a polícia carcerária, adapta-se lentamente às novas informações: criam-se
tardiamente regras de utilização, serviços especiais de controle e vigilância que, ao
serem implementados, já se tornaram obsoletos. Acessos mais seguros e rápidos à
Internet e ao celular aumentam essa velocidade e permitem que o rádio, o telefone e
o jornal tornem-se produtos híbridos, incorporando as vantagens desses novos meios.
Nas esquinas surgem enormes painéis eletrônicos, totens informatizados, vitrines e
serviços de informação instantânea que conferem ao cidadão a imersão digital
obrigatória e dependente. Paulatinamente o espaço real é vazado por túneis legais e
23
ilegais, que minam o espaço lógico tido como normal. O processo de “tunelagem”
tem relação com a nova física descrita pelo professor inglês Roy Ascott (Ascott,
1997), ou seja, as virtualidades:
“A tunelagem, através de microtubos, está lincada na minha cabeça a uma outra
metáfora muito sugestiva da física que é útil na discussão sobre os rumos da
arte, que é a metáfora do buraco de minhoca (wormhole). Os buracos de
minhoca são encontrados em tunelagens na espuma quântica (quantum toam).
Na topologia do espaço, um buraco de minhoca é uma "alça" que conecta dois
lugares extremamente separados em nosso universo, permitindo assim o rápido
trânsito das partículas e das pessoas que agora estão sendo debatidas, de uma
camada de realidade para outra, de uma estrutura de tempo para outra, de uma
galáxia para outra, em microssegundos ou, virtualmente, em tempo algum. A
espuma quântica (quantum toam) pode não significar muito para nós em nosso
nível cotidiano de experiência, mas a tunelagem naquilo que se poderia chamar
de espuma de dados(datatoam), de uma camada hiperlincada para outra, lançar
os buracos de minhoca de uma telepresença para outra, de um website para
outro, realmente zapear de uma cabeça para outra, e mais rápido que a
velocidade da luz possa permitir, é uma aspiração perfeitamente razoável para
todos nós que vivemos e trabalhamos no universo telemático pós-biológico. Para
o artista isso está se tornando uma necessidade criativa”.11
O espaço físico é corroído por “buracos” que se ligam à parte virtualizada do
mesmo espaço. Da mesma maneira, o hipertexto potencializa palavras que estão
ligadas ou linkadas a novos conteúdos. Os “túneis virtualizantes”: portais, painéis
eletrônicos, totens informatizados e celulares inteligentes bombardeiam o espaço real
com um mar de informações, tornando-o múltiplo, instantâneo e interativo. O corpo
também é virtualizado pela inércia, e encontra uma fuga na “tunelagem” imposta ao
espaço real-físico. Essa fuga ajuda a liberar o corpo real da prisão física da
gravidade. Pessoas com doenças imobilizantes ou desvios psicológicos mergulham
no mar de informações fluido, ganhando cinestesia e novas facilidades: ir às
24
compras, ao banco e às lojas pela internet tem auxiliado a vida de muitas pessoas.
Adiante veremos como o “corpo duplificado” se neotribaliza e navega nesse novo
meio através da rede e da música percussiva.
Assim, nosso grupo do Baque estabelece uma relação com grupos distantes,
(re)configurando suas influências e raízes. Mantém relações on-line com o mundo da
música, que também soube apropriar-se dessas facilidades eletrônicas. As grandes
gravadoras sofrem uma ação devastadora com a cópia, o plágio, a pirataria, e são
obrigadas a se manterem atualizadas e vigilantes nesse meio.
Há muitas informações, e não há distinção entre as boas e as ruins. Cabe ao
receptor escolher ou desenvolver a capacidade de discernir, nesse mar de informação,
a sua identidade e as suas necessidades, o seu nicho e o seu novo espaço
antropológico12 - que não invalida sua relação étnica, mas acaba re-ordenando,
dissimulando e polarizando tendências identificatórias que, às vezes, derrubam
antigos preconceitos ou formam novos. Dinâmicas semelhantes permeiam outras
tribos, formando novos territórios e agenciamentos. Os processos tribais, por serem
pontuais, são mais rápidos que a sociedade e, ao estudá-los, é possível visualizar
forças que aparentemente são confundidas com a violência, o vandalismo e a
banalização dos costumes e tradições.
11 Ascott (1997), p.340.
10 Citando Lévy (1999), que formula o conceito de espaço antropológico: “(...) Vivemos em milhares de espaços
diferentes, cada um com seu sistema de proximidade particular (temporal, afetiva, lingüística etc.), de modo
que uma entidade qualquer pode estar próxima de nós em um espaço e bem distante em outro. Cada espaço
possui sua axiologia, seu sistema de valores ou de medidas específico.(...) (...) Os espaços antropológicos
estendem-se ao conjunto da humanidade. São constituídos, por sua vez, de uma multiplicidade de espaços
interdependentes. A Terra, o Território, o Espaço das mercadorias ou o Espaço do saber são engendrados
pela atividade imaginária e prática de milhões de seres humanos, por máquinas antropológicas transversais
presentes nas obras dos sujeitos, como no detalhe das técnicas e agenciamentos das instituições.(...)”.
(p.127).
25
O grupo musical Baque Bolado distancia-se da violência e tem uma
(re)elaboração cultural, rítmica e territorial complexa. Essa mudança motivou a
alteração do nome - do qual foi retirada a palavra maracatu – e a reorganização do
grupo, para se manter aberto e aprimorar o estudo rítmico de suas tendências. A
reorganização vinculada à tecnologia só foi realmente implementada quando o grupo
comprou computadores e mudou seu sistema interno de organização. Atualmente,
também as empresas brasileiras têm adotado a (re)engenharia, que enxuga suas
estruturas e torna-as mais competitivas e reduz seu custos fixos. As empresas vêm
democratizando o poder de decisão distanciando-se do regime autoritário e familiar,
cuja característica é a concentração do poder. Para sobreviver no mundo globalizado,
as empresas que necessitam de máquinas mais sofisticadas e da (re)elaboração de sua
estrutura decisória. Isso também acontece com os agrupamentos urbanos que,
expostos ao novo meio, sofrem modificações na sua estrutura de decisão e atuação. O
homem interage com a máquina criando novas interfaces, que modificam a
sensibilidade e alteram a transmissão e a assimilação de valores.
Com o conceito de máquinas antropológicas proposto por Lévy explora-se a
fronteira da cognição individual, da capacidade do cérebro humano de interagir com
essa nova velocidade do fluxo de informações. De acordo com a teoria da
coevolução, essa nova fronteira é explorada pelo feedback positivo; ou seja, a
evolução humana já não depende apenas da seleção natural ou genética, mas da
interface homem-máquina-cultura e das capacidades motoras adquiridas; do tempo
de exposição aos fluxos da informação; do desenvolvimento dos programas e
softwares, aliado aos avanços da imagem computadorizada.
26
A PESQUISA
Nosso primeiro contato com a temática urbana e seus efeitos sobre o
comportamento dos jovens foi realizado durante o trabalho de mestrado (cinco anos),
no qual estudamos as várias gerações do grafite urbano paulista, o que originou a
dissertação intitulada: Grafite Arte Urbana em Movimento13. O estudo foi conduzido
de forma participativa e ativa. O movimento grafite dos anos 80 moldou uma
geração, e preparou terreno para o tribalismo dos anos 90. Ao final da citada
pesquisa, constatamos que as novas gerações dominavam jogos eletrônicos,
videogames, e já utilizavam o suporte eletrônico-digital em rede. Os suportes
tradicionais, como muros e portas de lojas pareciam insuficientes, o que levou à
escalada para locais mais altos e inacessíveis, como o alto dos edifícios, os viadutos,
os cartazes de propaganda etc. Estabeleceu-se uma diferenciação equivocada entre
pichação e grafite. Essa corrida distanciou o grafite (graffiti) urbano das artes
plásticas, e sua aproximação com a música foi fortemente influenciada pelo
movimento Hip Hop. Um grafismo hermético, com variações da inscrição (Tag) ao
muralismo neo-realista-suburbano.
O mencionado trabalho já detectara os elementos sensoriais que agiam sobre
o comportamento dos jovens, tornando-os presos à atividade de inscrição anônima.
Alguns chegavam a mudar de hábitos, trocando a vida normal pela vida noturna das
pichações; outros viciavam-se em games eletrônicos formando novas tribos, que se
enfrentavam nas máquinas, nos muros e nos encontros de “grafiteiros”. Dessa forma,
13 Lara (1996).
27
o movimento grafite mudou das páginas culturais dos periódicos para as páginas
policias.
Diógenes (1998), em Gangues, Galeras e o movimento Hip Hop, aprofunda a
territorialidade da violência, sob a ótica sociológica de Hobsbawn (1978), Guatarri &
Rolnik (1996), Benjamin (1975) e Morin (1996). A autora analisa os movimentos, as
brigas, a linguagem e o comportamento das “turmas”, da “cruzetagem” dos “rebeldes
urbanos” ligados ao movimento do Hip Hop na cidade de Fortaleza (Ceará).
Diógenes ressalta o limite entre as gangues de Hip Hop e a definição de
cruzetagem: “quebra dos pactos territoriais”, que também utilizaremos na abordagem
das tribos urbanas. O mapeamento elaborado por essa estudiosa é bastante
aprofundado e fornece uma ampla visão das galeras de Fortaleza:
“O cruzeta, tipo significativo na definição dos limites entre áreas, é
reconhecido, consensualmente entre as gangues, como o indivíduo que
desrespeita os pactos e as fronteiras, "ele quebra os contratos feitos e avança os
limites das áreas" (participante da Gangue das Goiabeiras). O cruzeta cristaliza
no imaginário das gangues a dimensão da traição dos pactos territoriais que
delimitam os limites de fidelidade entre as turmas. Como o território é um
referente em movimento, que transcende barreiras estritamente geográficas, o
cruzeta representa a possibilidade de formação de uma identidade amalgamada
e diluída por múltiplas marcas e sinais. O cruzeta põe em xeque a possibilidade
de uma filiação fixa, compactuada, reconhecida e registrada entre os
enturmados. Por tais razões, ser acusado de "cruzeta", "cabuete", "tesoura",
"cacoete" é o risco que correm as gangues quando realizam incursões em outros
bairros da cidade, o risco que correm os seus integrantes de perderem suas
marcas, suas instituições de reconhecimento.
„Tem uns que anda noutra área e tem de outras áreas que não pode andar aqui.
Quando acontece isso, tem uns que vai com maldade, diz que a gente tá
cruzetando. Aí quer quebrar a gente, quer botar pra sair do ar, pra não andar
com maldade (Integrante da FIEL)‟.
A cruzetagem é uma forma de quebrar pactos estabelecidos entre as gangues, de
desobedecer princípios acordados internamente, e a iniciativa de praticá-la
recebe uma sanção drástica, como medida de manutenção do grupo e da
28
dinâmica produtiva da existência da gangue como tal. Qual seria então a forma
de visitação encontrada pelas gangues para seu registro em outros espaços da
cidade, como cruzetar de forma permitida?”14.
Tomamos aqui direção oposta àquela de Diógenes, com base na comunicação
e na aproximação antropológica. A “cruzetagem” será focada como uma associação
tribal, norteada por direções comuns aos grupos que se alinham em vetores culturais
tribais. O grupo ora estudado busca a autenticidade brasileira, fugindo do nomadismo
dos jovens urbanos violentos que importam modelos, soluções raciais e adaptações
musicais exteriores à nossa cultura.
A experiência e a vivência adquiridas em campo, no período em que
desenvolvemos nossa dissertação de mestrado, apontaram para a necessidade de um
estudo e uma discussão mais cuidadosos dos conceitos espaciais que envolvem as
diferentes tribos. À medida que se verificava a forte influência da música em alguns
grupos urbanos, foram identificadas forças que os assimilavam ao sistema,
padronizando os comportamentos e uniformizando os discursos. Uma vez que esses
grupos são repetitivos e de difícil aproximação, escolhemos aqueles que tinham
características novas e que se diferenciavam do movimento Hip Hop15 - que se
tornou popular e apresenta elementos culturais externos de minorias americanas
(EUA), que reivindicam espaço político defendendo-se da violência e da
discriminação, também presente no cenário brasileiro. Além disso, tais grupos
sofrem forte influência da matriz americana, que molda comportamentos e atitudes
divulgando seus líderes em estampados, revistas, programas de TV, fanzines e HQs
14 Diógenes, op. cit., p.151.
15 Ver a instigante análise de Diógenes (1998) que contempla, sob o prisma da exclusão, o movimento jovem
das grandes cidades brasileiras e, por meio do contato e da observação das gírias, das roupas e das
coreografias, decifra o imaginário e as redes de significados dessas tribos.
29
disseminando, por toda a parte, um culto mítico à personalidade de alguns grupos. Os
grupos mais novos, ligados à cultura brasileira, careciam de estudos mais
aprofundados. Assim, elegemos o maracatu urbano em comparação à cultura rave.
Os dois movimentos são semelhantes no que concerne ao êxtase e à sublimação pela
música - obtidos pelos ritmos intencionalmente cadenciados -, mas o primeiro tem
forte ligação com a riqueza e a diversidade culturais brasileiras.
Essa tribo trouxe novas contribuições ao processo de busca por estados
alterados da percepção induzidos pelo cadenciamento, fenômeno que não é novo na
metrópole: os grafites da “figuração livre” e da stencil-art16 já continham elementos
repetitivos, de vez que adotavam carimbos, criações de ícones e personagens
retirados das HQs ou das cenas cotidianas da cidade. Tentamos, desta forma, penetrar
nas inter-relações culturais, no mapeamento dos espaços cognitivos virtuais e reais
da tribo urbana que utiliza a música percussiva, e suas relações com os rituais de
“transe”, de “possessão” e de “comoção”. Comparamos e entendemos as diferenças
territoriais e culturais do grupo Baque Bolado, suas transcendências, assimilações e
(re)elaborações na cidade de São Paulo.
A globalização promove a destruição e a compressão das culturas locais pelos
mercados internacionais, que modificam os costumes e o cotidiano. Os rituais e as
singularidades perdem a sua identidade ou são massificados, gerando induções a
comportamentos e necessidades coletivizantes ligadas a movimentos internacionais,
que movimentam grandes fortunas com os lucros advindos do consumo e da
distribuição do “novo comportamento”. Dos carros computadorizados às bebidas
16 Estilo que produz imagens a partir de uma máscara (molde de papelão duro vazado).
30
energéticas, das músicas hipnóticas das festas rave ao hambúrguer light, das
passarelas da moda às discotecas, o consumo global procura dar ao corpo uma
maximização individualizada de suas potencialidades, solitária e desconectada da
cultura e da sua própria identidade local.
Verificamos que, no grupo escolhido, há elementos que mantêm relações
profundas com os terreiros e, por isso, apresentam resistências à cultura do corpo
globalizado. Isto porque são diretamente influenciados pelas culturas afro-brasileira e
indígena. O sangue nordestino carrega em si essas duas culturas, nas quais se verifica
uma preocupação diferente com o corpo - que serve de vestimenta, de veículo para
atingir a virtualidade pela possessão. Quando o êxtase é atingido coletivamente (e
não individualmente), o mestre (pajé ou pai-de-santo) procura trazer todos à
normalidade de modo seguro. Os lanceiros do maracatu rural pernambucano, por
exemplo, preparam-se durante todo o ano o ano para a sua “saída” no carnaval. Dias
antes há uma reclusão iniciática, uma introspecção que busca a “força”. O saber e a
experiência adquiridos do “lado de fora” nas festas e possessões são presenciados por
todos, coletivizados em rituais, em curas, em purificações. Assim, o indivíduo tem a
sua sorte encaminhada, a sua doença curada e estancada, uma vez que a fonte
causadora do mal é identificada. A partir daí, ele (indivíduo) deve prestar favores,
oferecer recompensas para “pagar” a graça alcançada, e estabelece um “elo” com o
“mundo paralelo”, com a mediação do pai-de-santo ou do pajé.
Houve, no grupo, uma tomada de consciência sobre o significado do maracatu
em relação ao significado das letras, dos ritmos e das viradas. Elaborou-se uma
espécie de rodízio entre as posições de comando e os instrumentos mais difíceis de
31
tocar, a fim de melhor direcionar o cortejo e não evitar que se tornasse uma festa ou
uma “salada” percussiva. Os integrantes mais experientes forma misturados aos
mais, facilitando a manutenção do ritmo certo. Paralelamente, aqueles que se
dedicavam às pesquisas ganharam maior liberdade e mais tempo para empregar nas
oficinas e nos contatos com os outros grupos (cruzetagem). As influências e outros
ritmos foram trazidos e incorporados pelo Baque.
O presente trabalho, que contempla o grupo Baque Bolado, segue o formato
utilizado em nossa dissertação de mestrado. Aquela dissertação foi desenvolvida com
jovens do movimento grafite da cidade de São Paulo, e teve um caráter participativo,
atuante e modificador da cena urbana. No decorrer da investigação foram realizadas
três mostras17, que envolveram diferentes segmentos do movimento grafite paulista.
Ocorre que, presentemente, a cidade globalizada abriga grupos ainda mais fechados,
às vezes até herméticos ao pesquisador e opacos ao olhar científico analítico. Assim,
a entrada nesses grupos urbanos só é permitida às pessoas ativas, o que impossibilita
a aproximação passiva e acadêmica que, muitas vezes, é comprometida pela lente e
pelo filtro socioculturais do pesquisador.
Já o grupo Baque Bolado - formado por jovens que buscaram o maracatu
nordestino - foi vivenciado de perto, de maneira participativa, durante dois anos. Tal
aproximação possibilitou a ampliação do olhar investigador que faz parte do corpo
deste trabalho.
Potencializar nossas capacidades físicas, mentais e sensoriais tornou-se
corriqueiro graças à velocidade com que as informações trafegam através das fibras
32
ópticas, dos satélites, dos cabos submarinos, que interligam a telemática a
organismos para os quais a informação é vital - como bibliotecas, centros de
pesquisa, auto-estradas, centros de controle de tráfego (aéreo, terrestre ou
hidroviário), pedágios, centros urbanos, centros universitários, centro hospitalares,
grandes lojas, centros comerciais, grandes companhias – e deve ser precisa e
atualizada. A velocidade dos signos atinge a sociedade como um todo, atingindo até
mesmo aqueles que ficam à margem do sistema - os desplugados -, que são
influenciados pela geografia moldada pelos eixos econômicos conectados via fibra
óptica (infovias). Essas novas rotas do dinheiro, voláteis e às vezes especulativas,
exploram alguns e beneficiam outros, mas infelizmente abraçam a todos.
Nos locais beneficiados pela convergência da informação os indivíduos têm
suas jornadas de trabalho reduzidas para evitar o stress, o desgaste e o desequilíbrio
do corpo biológico, que levam a erros e danos físicos às pessoas. Já aqueles que
atuam em lugares em que não há esse tipo de controle apresentam maior incidência
de alterações e de disfunções comportamentais ou motoras (LER)18.Os bastidores de
telejornais e os camarins de estações de televisão são povoados por seres que
parecem não habitar nosso planeta - brilham com suas maquiagens, seus silicones,
seus corpos nus, suas roupas sintéticas - e assemelham-se à tela mutante da TV, que
imprime um ritmo acelerado à transformação do corpo em não-corpo: um misto de
máquina-homem, enfim, seres trans-humanos.
17 As Mostras Paulistas de Grafite foram realizadas anualmente no MIS (Museu da Imagem e do Som) em São
Paulo de 1992 a 1994.
18 Lesões por Esforços Repetitivos (LER) não são uma doença, mas a classificação de um conjunto de males
provocados pelas atividades que a pessoa executa durante o trabalho. Esses problemas afetam o chamado
sistema muscular-esquelético, que engloba os membros superiores e inferiores, a coluna cervical e a região
lombar.
33
“O nu realizado eletronicamente não tem mais nada a ver com o corpo: ele
levou ao extremo, de modo positivo, a pulsão de despir da Reforma e do
Maneirismo. Em tese, nada impede a realização eletrônica de imagens
perfeitamente realistas de nus de madeira, de ferro ou de vidro. Assim, despe-se
o corpo até mesmo da aparência da carne. A subversão no mundo das formas
vem acompanhada por uma produção potencialmente ilimitada de imagens. “19
O texto acima, do filósofo italiano Perniola, explica como o corpo se
desprende da carne e assume uma nova roupa virtual. O Baque, da mesma forma,
procurou incorporar o transe ao ritmo do maracatu, dando-lhes roupagem nova e
urbana que distanciou-o da postura real do maracatu nordestino.
No nordeste, o maracatu rural ou “de baque solto” é mais ritualístico e difere
do maracatu “do baque virado” ou de “nação”, que é um maracatu mais comovente e
urbano. O maracatu é um ritmo carnavalesco que sai às ruas em cortejos. O cortejo é
constituído pela realeza, e tem um caráter sincrético religioso e cultural elaborado
pelos afrodescendentes, os indígenas e os católicos portugueses que se estabeleceram
em Pernambuco. As entidades referendadas são reis e rainhas africanos que foram
trazidos com os escravos africanos. No maracatu, os afrodescendentes cultuam a
celebração ao casal real: esse rei e essa rainha teriam vindo ao Brasil, mas cada um
teria habitado uma determinada região e, aparentemente, jamais se encontraram.
O cortejo do grupo paulistano foi radicalmente alterado, ganhou pernas de
pau, roupas sintéticas divertidas e coloridas, assumindo sua urbanidade. Essa
“desconfiguração” do cortejo - que não tem o casal real, a boneca e os vassalos
tradicionais dos maracatus pernambucanos - provocou muitas críticas ao grupo.
19 Perniola (2000), p.123.
34
A música percussiva e a música eletrônica em movimento provocam o êxtase
e a volatibilidade, gerando um desprendimento do corpo físico e liberando o corpo
virtual num espaço sem gravidade, distância e materialidade. A volatibilidade e a
cinestesia também podem ser geradas pelos meios eletrônicos em rede. O corpo
virtualizado, sem fronteiras ou amarras, age dialeticamente sobre o corpo real,
criando preocupações quanto ao seu desempenho, como se ele fosse “potencializado”
para carregar o corpo virtual e seus novos desejos. O inverso também pode ser
ocorrer, provocando uma crise no corpo real20. Assim se forma o “duplo eletrônico”,
que assume maior importância que o corpo real ao transferir a identidade para um
“self” virtual que origina o “segundo Eu”, que estudaremos em profundidade.
Também o grupo Baque não se sentia bem no corpo físico, pois queria
provocar um impacto visual que só foi possível quando incorporou roupas e chapéus
de EVA que trouxeram “brilho” ao espetáculo.
20 A crise do “duplo eletrônico” é colocada pelo grupo ativista alemão Critical Art Ensemble DISTÚRBIO
ELETRÔNICO (2001), p.62-63: “Considere o seguinte cenário: uma pessoa (P) entra em um banco
pensando em conseguir um empréstimo. De acordo com a estrutura dramatúrgica dessa situação, é
necessário que a pessoa se apresente como uma candidata a empréstimo responsável e confiável. Sendo uma
boa atriz, e sentindo-se à vontade no papel, (P) se vestiu adequadamente colocando roupas e jóias que
indicam um bom nível econômico. (P) segue adequadamente os procedimentos para pedido de empréstimo, e
utiliza boas técnicas de montagem, com os apertos de mão adequados, levantando-se e sentando-se de
acordo com as expectativas sociais e assim por diante. Além disso (P) preparou e memorizou um roteiro bem
escrito que explica totalmente sua necessidade de um empréstimo, assim como sua capacidade de pagá-lo.
Por mais cuidadosa que (P) seja em se ajustar aos códigos da situação, logo fica claro que sua performance
em si não é suficiente para garantir o empréstimo. Tudo o que (P) conseguiu com a performance foi
convencer o funcionário a entrevistar seu duplo eletrônico. O funcionário levanta seu histórico financeiro no
computador. É esse corpo, um corpo de dados, que agora controla o palco. Ele é, na verdade, o único corpo
que interessa ao funcionário. O duplo eletrônico de (P) revela que ela atrasou o pagamento de empréstimos
no passado, e que está envolvida numa disputa financeira com outro banco. O empréstimo é negado: fim da
performance.”
35
Figura 1
Banda Virtual Os Gorillaz
www.gorillaz.com
Desta forma, o “duplo eletrônico” concorre com o real e rouba-lhe a cena,
seja individual ou coletivamente - a banda musical “Gorillaz” (Figura 1)21 é um bom
exemplo: os músicos “reais” permanecem nas coxias22, e seus “duplos eletrônicos” é
que vão ao palco; o público aplaude somente o corpo virtual, exibido em telões. As
músicas do grupo dependem exclusivamente do corpo dos cantores (letras musicais,
partituras, voz), e as imagens digitais (desenhos, efeitos cinéticos, ruídos) provêm
das máquinas.
O grupo de maracatu urbano aqui estudado sentia-se capaz de alterar os
significados do maracatu, adaptando-os às necessidades da cidade de São Paulo. O
descolamento das raízes era uma questão de liberdade e o visual foi modificado,
embora a referência rítmica tenha permanecido intocada, pois alterá-la implicaria
perda de comoção e de transe. E, sem a comoção e o transe não ocorreria a alteração
18 Sobre a banda virtual encontramos comentários na home page www.submarino.com: “...Gorillaz: a face
animada de Damon Albarn e cia. “Os gorilas bem-sucedidos, na verdade, são os "Gorillaz", uma banda
virtual representada por quatro divertidos personagens animados e produzida pelo guru do hip hop, o
americano Dan "The Automator" Nakamura. Na verdade, o mistério rondava este "quarteto virtual" desde o
lançamento, no dia 27 de novembro do ano passado, de seu primeiro EP (uma espécie de mini-disco),
"Tomorrow Comes Today", pelo selo inglês Parlophone Records. A música título invadiu rapidamente as
rádios independentes da Inglaterra (e também as rádios virtuais) e conquistou fãs que nem sequer sabiam
quem eram os músicos da banda. A única pista era o belíssimo site oficial (www.gorillaz.com), lançado
simultaneamente com o EP. Trata-se de uma divertida viagem pelo quartel-general dos Gorillaz e que
apresenta um a um os membros do grupo: Murdoc (baixista), Russel (baterista), Noodle (scratches/guitarra)
e 2D (vocal). Na verdade, a apresentação não esclarece muito, já que estes "músicos" não passam de
personagens desenhados por Jamie Hewlett, criador da personagem cult britânica Tank Girl...”
22 Coxias são as partes laterais, ao fundo do palco, por onde se entra em cena.
36
dos estados cognitivos e a volatilidade do grupo não seria concretizada: o grupo
permaneceria no chão, sem decolar. Adiante veremos como foi estabelecido o “vôo”
do grupo, que lhe possibilitou cativar e aumentar seu público.
Atingir estados potencializados e maximizados explorando o limite do corpo
físico é uma situação de risco, pois beira um ataque de nervos ou uma explosão. Há
aqueles que literalmente atravessam a fronteira e esquecem de retornar ao corpo em
seu estado natural. Também estudaremos uma característica que tanto os grupos rave
quanto os grupos de música percussiva do maracatu têm em comum: o
distanciamento do “Eu” provocado pelo “duplo em comunhão”. Em ambos os casos
há uma corporalidade, uma maneira de vestir e de sentir potencializada que virtualiza
a identidade para uma identidade paralela, em êxtase e tribal.
37
AS HIPÓTESES
1. A potencialização do aparato cognitivo acaba desprendendo o “Eu” para o seu
“duplo” em trânsito: eletrônico ou não, virtual ou real, mas em tribo. Essa
virtualização, promovida pela comunicação, adquire vida própria, competindo
com o corpo físico e moldando um “Eu Coletivo” que procura novos territórios e
identidades, às vezes contraditórias, incontroláveis, agressivas e voláteis. As
alterações dos estados perceptivos fazem que os grupos desenvolvam uma nova
maneira de se relacionarem e se comportarem em sociedade. Vamos verificar
como o grupo urbano Baque Bolado atinge esses estados somente com a música
percussiva, e delinear sua trajetória urbana.
2. O grupo Baque Bolado digere a novidade da etnomusic com a “música
percussiva”. Ao mesmo tempo, (re)elabora as suas raízes respondendo ao
neocolonialismo com uma espécie de neocanibalismo que tem, na sedimentação
cultural plural, uma vasta experiência com novas espacialidades e novas
realidades temporais, uma cosmologia rica e significativa, um nomadismo
estratégico e apenas visível às suas necessidades primordiais: a visibilidade e a
sobrevivência.
JUSTIFICATIVA DAS HIPÓTESES
A abordagem do duplo eletrônico e do corpo volatilizado pode explicar a
“cruzetagem” e a segmentação das tribos dos grandes centros em nichos e guetos.
Formam-se grupos dependentes da mesma cognição, ou que têm processos
38
semelhantes. Novos “agenciamentos urbanos” - com cognições sensoriais
semelhantes - unem-se e efetuam suas traduções e resistências, delineando seus
novos territórios. A cor de pele e o tipo de roupa já não são elementos fundamentais
na formação desses grupos.
“O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da
apreensão da identidade black, não é que elas sejam, cultural, étnica, lingüística
ou mesmo fisicamente, a mesma coisa, mas que elas são vistas e tratadas como
“a mesma coisa” isto é não-brancas, como o “outro” pela cultura dominante. É
a sua exclusão que fornece aquilo que Laclau e Mouffe chamam de “eixo comum
de equivalência” dessa nova identidade. Entretanto, apesar do fato de que
esforços são feitos para dar a essa identidade black um conteúdo único
unificado, ela continua a existir como uma identidade ao longo de uma larga
gama de outras diferenças”23
O distanciamento lingüístico, cultural e étnico sugerido por Hall levou-nos ao
distanciamento de outras abordagens, que tratam o urbano24 e o xamânico25 com o
auxílio da lingüística, da semiótica sobre a apreensão urbana e mística, contrapondo
o “uso” ao “projeto”, os “hábitos” à “sedimentação e predicação ambientais”
Trabalhos que adotam a linha de análise do discurso, dos interpretantes e das
representações mentais, como a primeiridade (do signo em relação a si mesmo,
sintaxe), a segundidade (do signo em relação ao objeto, semântica, ícone, índice e
símbolo) e a terceridade (do signo em relação ao interpretante) de C. Pierce (1995)
são insuficientes para o estudo das dinâmicas voláteis urbanas. O usuário virtual e
seu interpretante ficam sujeitos ao improvável, às conexões, ao acaso mas
dependentes do espaço real concreto, finito e lógico Para o espaço mágicoperceptivo, a semiótica da cultura ajusta-se melhor à trama de “incoerências e
23 Hall (2000), p.86.
24 Referimo-nos às hipóteses do trabalho de Ferrara (1999).
25 Referimo-nos a Araujo (1999).
39
“suspeitas”, postula Geertz (1989). Aqui utilizaremos a palavra tendência para uma
aproximação das volatilidades dos grupos nesse terreno pantanoso das tramas
urbanas ligadas à musica percussiva.
O presente trabalho distancia-se daqueles que focam o conflito de classes,
escolhem o lado do oprimido ou analisam a violência étnica com a máscara do
pragmatismo. Buscamos uma nova abordagem e aproximação dos territórios urbanos
recolonizados pelo “trans” e pelo “multi-sensorial polifônico”, em que ocorre o
desprendimento virtual do sujeito – que adquire novas identidades, novos corpos
fluidos e voláteis que, em grupo ou individualmente, estão presos ao real. A
virtualidade aqui não é apenas a imersão nas redes de comunicação, mas são
processos simultâneos e híbridos relacionados à expansão sensorial e cultural
promovida pela música percussiva, o estar em grupo e em trânsito no ambiente de
contrastes, competitivo e informatizado de uma cidade cosmopolita.
“O Terra Brasilis é polifônico. Nessa "terra " existe a expressão polimórfica de
um sincretismo arquitetônico. Ela se insere naquela corrente multicultural e
multiétnica que constitui o desafio cultural por excelência: conjugar, explicitar,
jogar com os processos simultâneos e contraditórios de mundialização e de
localização dos códigos. E contradiz as lúcidas sínteses urbanas que se
transformaram no que realisticamente são: uma "inviabilidade" ordenada, uma
ideologia subjacente de caráter totalitário, um domínio holístico, etnocêntrico e
etnofóbico”26.
Canevacci vê a imago brasilis paulistana como uma “assimetria beirando a
inviabilidade”. O “cruzamento desordenado, as montagens e colagens, as
existências e gnoseologias” fazem parte do seu método antropológico urbano
polifônico.
26 Canevacci (1993), p.147.
40
Há uma fuga, um mimetismo falsificador e plagiador em que a cópia é a
(re)elaboração do original. Dialeticamente, a linguagem, a palavra e o signo
adquirem valores novos no discurso, no “ato falho” que é indicial na formação dos
departamentos cognitivos cerebrais do indivíduo, pontual em relação ao “outro” ou à
“história familiar”, em um plano físico e real. O problema é que o “duplo eletrônico”
provoca um novo discurso e novas associações, que independem do plano e do corpo
físico.
Até os anos 90, as análises do discurso priorizavam o estudo dos signos e a
transferência do ponto de vista para entrar no mundo do oprimido. As características
individuais desvendadas eram transferidas para um coletivo, uma cidade e uma
metrópole, e tinham nexo porque estávamos operando apenas com o “outro” ainda
fixo. A relativização do indivíduo em relação ao “outro” e seu “duplo eletrônico”
virtualizado exigem uma abordagem antropológica na qual o referencial, o objeto, o
ponto de vista seja relativizado fisicamente.
A fenomenologia, a física relativista, a geometria fractal, a nova concepção
cosmológica, os ambientes semi-inteligentes e o espaço virtual, posicionam melhor o
usuário em dimensões múltiplas sob vários pontos de vistas em tempo e espaço
cognitivos, (re)combinantes e voláteis. Não há espaço para um “usuário fixo
interpretante” porque sempre é possível estabelecer um novo ponto axiomático que
seria um fator redundante, com múltiplas e expansivas linhas de novas
interpretações, que tenderiam ao infinito e não levariam a lugar algum. Há múltiplas
tendências a analisar, bem como contradições, pontos em comum, características
gerais a serem verificados.
41
COLETA DE DADOS
A criação de tendências, eixos comuns, equivalências e características gerais
organizou a coleta de dados. Sob a óptica do pensamento complexo o grupo estudado
apontou vetores culturais semelhantes ao das tribos xamânicas - Uma relação com o
passado e com a cura -;tentamos retirar dessas dinâmicas alguma relação com o
xamanismo da música eletrônica. Essas comparações serão feitas na discussão do
presente trabalho
Elementos disjuntos foram revelados pelo “olhar homem-máquina”, o que
possibilitou a formação de um quadro sonoro comparativo que aponta as
similaridades e as tendências das tribos urbanas.
“Há, efetivamente, necessidade de um pensamento:
- que compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do
todo e que o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes;
- que reconheça e examine os fenômenos multidimensionais, em vez de isolar, de
maneira mutiladora, cada uma de suas dimensões;
- que reconheça e trate as realidades, que são, concomitantemente solidárias e
conflituosas (como a própria democracia, sistema que se alimenta de
antagonismos e ao mesmo tempo os regula);
- que respeite a diferença, enquanto reconhece a unicidade.
É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que
distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um
pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é
tecido junto.”27
Morin
tenta,
com
o
pensamento
complexo,
“costurar”
elementos
aparentemente disjuntos, contraditórios e relativos, encontrar um eixo comum de
27 Morin (2001), p.88-89.
42
equivalências entre as partes dependentes de um todo. E, para a nossa coleta de
dados no ambiente polifônico das tribos urbanas, o pensamento complexo parece
adequado, pois respeita a volatibilidade e a multiplicidade do ambiente urbano de
São Paulo.
Aparentemente, há um “eixo comum” visível apresentado pelas tribos
urbanas dos anos 90, formadas a partir de determinadas tarefas ou funções: ritos,
religiosidades, profissões, afinidades musicais, esportividade etc. Esses grupos
querem ultrapassar a normalidade, a superficialidade e a mesmice cotidiana ditadas
por regras fixas e imutáveis. O trabalho identifica e analisa alguma dessas relações, e
mostra como o grupo Baque Bolado estabelece fronteiras com outros grupos
vizinhos, mantendo integrantes que habitam dois ou três grupos simultaneamente.
Optamos por um “olhar focalizador” vivenciado no calor dos ensaios do
grupo, afim de obter uma visão próxima, continuada e íntima de seus integrantes. Por
outro lado, utilizamos também o olhar potencializado de uma câmera de vídeo digital
de ultima geração (3 ccd). Essa câmera, conectada ao computador, permite enxergar
e escutar mais longe, além da capacidade humana. Todas as entrevistas e oficinas
foram digitalizadas, possibilitando algumas comparações sonoras e visuais
elaboradas pelos softwares dos DJs e VJs
Verificamos que o grupo flutuava constantemente, ou seja, havia uma grande
rotatividade de pessoas. O grupo teve início quando um professor de percussão não
compareceu à primeira aula de uma turma, e os alunos passaram a tocar “o que
sabiam” e a ensinar “o que sabiam” uns aos outros. Como a turma tinha alunos
oriundos do norte e do nordeste, o ritmo do maracatu agradou à maioria; essa
43
primeira experiência originou novos encontros, que se constituíram na gênese do
Maracatu do Baque Bolado. Ninguém sabia ao certo como tocar o maracatu, e o que
este significava. Todos se ajudavam e passavam os toques mais simples.
O maracatu de baque virado é um cortejo urbano que sai às ruas de
Pernambuco durante o carnaval e tem uma formação tradicional para os diferentes
instrumentos. Os instrumentos de timbre mais agudo - gonguê (agogô ), ganzás
(caxixis - tipo de chocalho- também de timbre bem agudo) e tarol (caixa) – abrem o
cortejo, seguidos pelos instrumentos percussivos - surdos (alfaias de timbre grave). O
maracatu de baque virado apresenta, além das toadas (loas), o desfile da corte: o rei e
a rainha, os vassalos e uma boneca (calunga) que representa os orixás. Alguns
maracatus mais ricos têm uma ala constituída por instrumentos de sopro. O maracatu
rural ou de baque solto apresenta os lanceiros com seus surrões (mortalhas de cores
vivas delicadamente bordadas durante o ano), seus grandes e pesados chocalhos
(sinos feitos de ferro) e suas lanças coloridas. O maracatu rural também apresenta os
cablocos de pena, figuras que tiveram origem no contato entre as populações rurais e
os índios. O ritmo do maracatu rural é mais acelerado, e o transe e a possessão estão
mais presentes: os lanceiros “atuados” usam óculos escuros para esconder seu olhar
“virado”.
No início, os ensaios do Maracatu do Baque Bolado eram abertos a todos, e a
participação e a freqüência eram livres. Tais reuniões eram realizadas sempre aos
domingos, no Mangue28 da Vila Madalena, e tinham a duração de três horas, após as
quais os integrantes saíam em cortejo pelas ruas do bairro. Logo alguns moradores da
28 O Mangue é uma rua sem saída, com pequenas casas populares, e localiza-se no final da Rua Fidalga, na Vila
Madalena.
44
área mais rica – constituída majoritariamente por edifícios – passaram a reclamaram
do barulho e a chamar a polícia. O Baque já era um grupo e teve que se organizar
ainda mais para mudar constantemente de local para ensaiar. Roupas, oficinas e aulas
foram elaboradas, para melhorar e afinar as apresentações que se dava em bares,
eventos e casas noturnas. Os integrantes não eram fixos e a grande maioria
freqüentava outros grupos da tribo da música percussiva paulistana, às vezes rivais
do Baque, o que afetava a dinâmica e dividia ainda mais as pessoas.
Depois de várias brigas e discussões, esses integrantes tiveram que optar entre
permanecer no grupo Baque Bolado ou se afastar. O grupo como um todo também
passou a discutir-se e posicionou-se com relação a outros grupos. As pessoas que
optaram por permanecer no Baque tiveram que adotá-lo como uma nova família. Os
problemas de identidade, coletados em entrevistas e vivenciados nos ensaios e
apresentações durante dois anos, serão expostos adiante.
No que concerne à corporalidade, vejamos a trajetória do Baque até se
estabelecer como um grupo paulista de percussão. O estudo e as influências dos
outros grupos fizeram com que outros ritmos fossem incorporados ao repertório do
Baque. Tais ritmos continham elementos novos relacionados ao transe e ao contato
com o terreiro, e foram referenciais para as entrevistas realizadas no interior de São
Luiz e Pernambuco, por meio das quais procuramos identificar as matrizes culturais
do transe brasileiro.
O trabalho participativo ia, paulatinamente, encontrando as relações que
existem entre a comoção proporcionada pela música percussiva, as alterações de
comportamento e os novos estados perceptivos, levando à conscientização do “Eu
45
duplificado”. Assim, novas descobertas e mundos concebidos eram criados em grupo
e compartilhados. A expansão do corpo físico com os ritmos, as danças e o público
criava uma comunhão. Pessoas das mais variadas formações sentiam a alegria de
participar dançando e, após essa experiência, decidiam entrar para o grupo.
Essas são as formas de identificação e re-elaborações das tribos na cena
contemporânea que não têm, necessariamente, relação com a violência. As pessoas
experimentam novas vivências, que promovem a sensação de união, de
contemplação do outro, mesmo que essa união dure apenas alguns dias, horas ou
segundos.
“Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito
de contestar e deslocar as identidades centradas e <<fechadas>> de uma
cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades,
produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e
tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e
diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral
permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que
Robins chama de “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir
as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras
aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da
representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez
unitárias ou “puras”; e essas, conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que
Robins29 (segundo Homi Bhabha) chama de tradução30.”
A tradução não é fixa ou permanente e, no ir e vir, no emigrar e no imigrar,
das raízes à superficialidade, do espaço real ao espaço partilhado com o “outro”, do
interior à cidade grande, o corpo mostra sinais de dependência. Primeiro como uma
inércia ou demora em se adaptar às novas identidades, depois como dependente da
29 Robins (1991).
30 Hall, op. cit., p.87.
46
química gerada pelas modificações sensoriais: as endorfinas31. O trânsito entre esses
estados disjuntos - saudade-novidade - modifica a espacialidade da mente
contemporânea, trazendo lugares neutros ou de descompensação. Lugares que não
podem remeter a nada: devem ser parecidos, idênticos. Promovem uma higenização e
são um conforto para os olhos do viajante, que reconhece sua similaridade ao mesmo
tempo em que distingue pequenas variações. O uso de materiais como o aço inox e as
cores neutras lembram um ambiente hospitalar ou uma cozinha industrial. Não há
nada de pessoal, as distâncias são confundidas porque nada promove a identificação
local: tudo se parece e aflora numa confusão espacial.
Auge (1994) estabelece uma relação de crise de representação do mundo:
cada vez mais há lugares de passagem (não lugares)32 e lugares não permitidos, uns
para não serem utilizados, outros montados como cenários para brilhar durante o
espetáculo das tribos e desmontados no dia seguinte, voltando à rotina e à vida banal.
Estabelece, ainda, o conceito de linguagem da alteridade – aquela que não é boa nem
má, ambígua e fora da identidade de classes, estabelecendo relações entre as pessoas
ou com o “outro”33.
31 As endorfinas ou encefalinas são substâncias semelhantes à morfina. Elas excitam os centros encefálicos
supressores da dor (hipotálamo e tronco cerebral), ou seja, fazem o controle da dor por feedback cerebral. Na
acupuntura, por exemplo, os sinais sensoriais produzidos pelas agulhas podem provocar a liberação de
encefalinas/endorfinas nos centros supressores da dor. Os centros supressores da dor não a inibem pelo
bloqueio de sua transmissão no próprio encéfalo, pelo contrário: ao longo das vias nervosas da medula
espinhal são transmitidos sinais que se projetam para os pontos em que a dor penetra na medula, trazida pelos
nervos periféricos. As terminações nervosas desses feixes secretam o inibidor serotonina, inibe as sinapses de
dor nas pontas posteriores, o que diminui, de forma muito acentuada, a sensibilidade da pessoa à dor (Guyton,
1984).
32 Auge (1994), p.88-89.
33 Auge (1997), p.96.
47
Os conceitos do autor - carta roubada, evidências e impedimento34 nortearam a coleta de dados e as entrevistas, e orientaram o método no que concerne
à interpretação e à seleção das danças e ritos. À medida que a comoção da música
percussiva induzia os estados de comunhão, o grupo se solidificava e buscava suas
raízes, estudando os ritmos pernambucanos em profundidade. Foram organizadas
oficinas, os toques foram sendo aperfeiçoados, e as relações com outros grupos
trouxeram novas descobertas rítmicas e influências – como o coco e o bumba-meuboi - relacionadas aos estados alterados de consciência: a repetição, os timbres
agudos e graves, as viradas rítmicas ou “pontos”, os gestos ligados à dança de
terreiros, o xamanismo e a cura.
COMO FOI DESENVOLVIDO O CORPO DA PESQUISA
No presente trabalho, debruçamo-nos sobre um grupo urbano paulista
envolvido com a música percussiva e analisamos suas relações, influências,
mediações e relações tribais – ou seja, as relações que mantêm com os outros grupos
que têm o mesmo tipo de agenciamento ligado à música. Por meio de um
mapeamento dos territórios ocupados pelos diferentes grupos, estabelecemos
comparações entre o grupo estudado e aqueles com os quais se relaciona mais
proximamente ou que apresentam comportamentos semelhantes ao dele. Também
investigamos as influências, as raízes que modificam as experiências subjetivas de
expansão da percepção e os estados alterados de consciência desses grupos. Esse
mapeamento aponta nítidas diferenças entre as tribos urbanas. Algumas tribos, como
a do Baque Bolado, são influenciadas pela cultura africana e indígena e, em suas
34 Auge, op. cit., p.70.
48
manifestações, utilizam ritmos, timbres, instrumentos e vestes multicoloridas - que
emitem reflexos e brilhos - associados à movimentação cadenciada do maracatu, do
afoxé etc. A associação desses elementos promove um espetáculo sensorial
indescritível, que motiva a todos aqueles que se envolvem com essa massa sonora e
colorida. Mesmo utilizando a tecnologia e habitando o ambiente urbano, tais tribos
buscam um “fundamento” em suas raízes culturais e aprimoram, na cidade, os
ensinamentos que não foram trabalhados em seus lugares de origem. E foi justamente
a busca por fundamentos que motivou a exclusão da palavra “maracatu” do nome do
grupo que, assim, poderia tocar outros ritmos, como o boi, e as outras variações do
próprio maracatu: baque virado, rural e outros. O Baque recebeu então o nome de
Baque Bolado e, a seguir, optou pela denominação Cia. do Baque Bolado; essas
transformações serão devidamente analisadas no decorrer do trabalho.
As manifestações de grupos ligados à cultura brasileira, quer de influência
indígena (consumo de ervas35 e raízes36), quer de influência africana (consumo de
azofre37 e fumo38) têm em comum a celebração coletiva e, por vezes, mantêm
fundamentos das culturas iniciáticas - que se perpetuaram até hoje graças à marcada
presença dos terreiros, dos pais-de-santo, dos rituais, das músicas, das festividades,
35 Algumas raízes são transformadas em pó ou chá de plantas alucinógenas e estimulantes. O guaraná foi
utilizado inicialmente como estimulante e energético nas tribos do norte amazônico e, mesmo depois que seu
principio ativo passou a dar sabor aos refrigerantes brasileiros, o consumo, em pó ou bastão, com finalidade
estimulante permaneceu.
36 Raízes com poderes alucinógenos são consumidas por pajés, que vêem a cura distanciados do mundo físico e,
assim, podem elaborar os remédios depois dessas visões extra-sensoriais nas quais o mal é identificado.
Algumas seitas, como o Santo Daime, utilizam cipós alucinógenos com fins espirituais em reuniões coletivas.
Tais alucinógenos são administrados por “fardados” vestidos de branco que entoam hinos ritualísticos aos
presentes.
37 Mistura ritual de pinga, pólvora e mercúrio que produz estados alterados de consciência, permitindo ao
lanceiro do maracatu rural vários dias ininterruptos de brincadeira no carnaval.
38 O fumo de charuto, sob a forma de cigarro de palha, é consumido às baforadas nos terreiros de candomblé ou
umbanda, ofertado em macumbas. Identifica a pessoa tomada pelo transe espiritual, que assume a fala e o
comportamento da entidade ou santo que incorporou (baixou). Essas entidades representam espíritos
49
dos cultos e dos mitos - que influenciam até mesmo aqueles localizados nas grandes
metrópoles e distantes dessas origens.
O tribalismo pós-moderno assimila as descobertas dos grupos tradicionais e
(re)elabora seus conteúdos. Esse vetor (re)elaborador foi detectado no grupo
estudado, que será comparado a outros grupos que têm esse “eixo comum”. Tivemos
o cuidado de estudar a cultura rave, que utiliza mantras indianos misturados a ritmos
eletrônicos e, sob canhões de luzes, toma a consciência de seus súditos de surpresa,
levando-os ao transe inesperado ou à dança compulsiva - que pode levar horas,
atingindo seu ápice ao amanhecer. Essas raves utilizam sofisticadas técnicas de
mixagem sonora e visual, e os participantes consomem energéticos e/ou
entorpecentes (consumo de energéticos39, ecstasy40, special K41, hidratação com
presentes nas forças da natureza e assumem cores, posturas e formas relacionadas à história de seus feitos,
transmitido aos mais novos pela fala.
39 Alguns energéticos são vendidos em escolas que proíbem o consumo de álcool e fumo. Algumas marcas - por
não mostrarem a composição do seu conteúdo - foram proibidas, mas a enorme pressão financeira acabou
liberando o consumo desses produtos, facilmente encontrados em postos d gasolina e em quase todas as
escolas.
40 Ecstasy ou MDMA (metileno-dioxometanfetamina) segundo o médico Lapate (2001), p.223.: “É uma
anfetamina metoxilada, sintética, produzida em laborat6rio.É conhecida popularmente como êxtase -ecstasy
ou "droga ou pílula do amor". Nos EUA, é chamada de X e no Reino Unido, E. Outros nomes são ADAM,
XTC, MDM, etc. Hist6rico O ecstasy foi sintetizado e patenteado pela Merck em 1914, inicialmente utilizado
como medicamento moderador do apetite e abandonado por mais de sessenta anos por seus efeitos
indesejáveis. Nos anos 70, ressurgiu quando um grupo de psiquiatras começou a utilizá-lo em psicoterapia,
acreditando que a droga facilitava a comunicação com o paciente, reforçava sua auto-estima e melhorava o
humor. No final desta mesma década, começou a ser usada por pessoas jovens, como droga de festa. Em
1985, o DEA (Drug Enforcement Agency), órgão governamental norteamericano, colocou o ecstasy na lista
das substâncias proibidas. Segundo a ONU, o ecstasy tem potencial para se tornar a pior droga do século
XXI. No Brasil, é uma droga de uso relativamente recente e esporádico, mas com um potencial crescente,
como outras sintéticas utilizadas mundialmente. A maior parte da droga consumida no Brasil é proveniente
da Europa. Há indícios de que traficantes estão sintetizando o ecstasy em laboratórios clandestinos.Os EUA
são o país que mais consome o ecstasy no mundo. No período de outubro de 1999 até junho de 2000, a
alfândega americana confiscou 4 milhões de pastilhas de ecstasy. Estima-se em 3,4 milhões o número de
usuários americanos, sendo o uso máximo na população colegial. Pesquisas em 1998 constataram que 5,8%
dos estudantes americanos haviam experimentado o ecstasy no ano anterior. No ano de 1999, cerca de 8%
tiveram essa experiência. A droga é facilmente encontrada nos clubes noturnos, danceterias, etc.”
41 A substância quetamina produz alucinações e pode ser encontrada nos anestésicos Ketafen ou Ketalar, de uso
veterinário. Há registro de casos de óbitos de jovens que utilizaram a quetamina em raves. Sua
comercialização no Brasil não é objeto de grande controle e a substância é vendida livremente nas lojas de
produtos veterinários.
50
água42). Raízes de culturas externas - diluídas pelos processos histórico e social e por
procedimentos eletrônicos - têm, ainda que de maneira oposta à grupo do maracatu, a
celebração com o “outro”, que altera a identidade e leva à comunhão coletiva. A
tribo das raves é mundialmente conhecida pela sua música, que induz ao transe e é
consumida em diferentes países.
A total falta de conhecimento sobre processos de comoção induzidos pelas
imagens e sons eletrônicos associados às novas drogas fazem com que haja inúmeros
casos de óbitos decorrentes de overdose, atropelamentos por desorientação espacial e
fobias e depressões crônicas ligadas aos efeitos colaterais das drogas, principalmente
quando ingerida com o álcool. Além disso, há carência de estudos científicos sobre o
assunto, uma vez que o objeto de investigação é proibido. A maioria das informações
é obtida através de sites que, ou valorizam a cultura rave43, omitindo os verdadeiros
efeitos da droga, ou são radicalmente contrários às suas manifestações.
Da mesma forma que evitamos abordar aspectos referentes ao oprimido e à
violência, também distanciamo-nos das drogas, mantendo o foco do presente
trabalho nas características sonoras e imagéticas que induzem ao transe. E, como
investigamos as origens do transe percussivo brasileiro, consideramos importante
coletar mais informações sobre as festas rave e suas origens. Para essa empreitada,
entrevistamos e visitamos os estúdios de DJs e VJs para conhecer como tais
42 A hidratação é utilizada para amenizar os efeitos da elevação da temperatura produzida pelo ecstasy nas
raves. Esse comportamento é malvisto pela indústria das cervejas, que tenta introduzir e controlar a cultura
rave, que não consome álcool em suas manifestações porque a sua ingestão com o MDMA é extremamente
perigosa.
43 Rave, rave fest e cultura rave: Sinônimo de música eletrônica pulsante que mistura equipamentos eletrônicos:
sintetizadores, softwares musicais, bateria eletrônica e seqüenciadores de luz e som. Os sincronismos ritmo entre imagem e
som provocam estados alterados: êxtase coletivo, perda parcial ou total da temporalidade e espacialidade. Os estilos que
estão diretamente ligados ao transe (trance em inglês) são: TECHNO TRANCE PSICODÉLICO e GOA TRANCE
nascido em Goa (Índia –1988), da fusão de hippies sobreviventes da primeira onda. A música é repetitiva e transporta para
51
profissionais mixam imagem e som e para obter informações sobre os estados
alterados de consciência. Para melhor compreender os principais elementos
envolvidos na colagem sonora e imagética, coletamos entrevistas em estúdios
brasileiros e europeus, mais especificamente em Rotterdam (Holanda) e em Berlim
(Alemanha), que são grandes centros urbanos de população diversificada e plural, e
que iniciaram a procura pelos ritmos das raves. Nessas entrevistas, procuramos
verificar o modo de produção e a tecnologia utilizada na mixagem, e o modo de
produção das festas rave
DISCUSSÃO E REFERENCIAL TEÓRICO
Tentaremos abordar as relações da informação e da comunicação que não se
prendem aos blocos hegemônicos e assumem uma característica transnacional,
espalhando-se rapidamente pelo planeta como “ondas”. Para essa empreitada, a
melhor abordagem é a da nova antropologia, que procura entender as culturas como
um corpo maleável e complexo que se modifica pela presença ou telepresença da
tecnologia e, ao mesmo tempo (re)elabora-se.
“Hoje, passada uma década da queda do Muro de Berlim, está claro que
estamos mais uma vez nesse lugar e nesse momento. O mundo em que vivíamos
desde Teerã e Potsdam, ou, a rigor, desde Sedan e Port Arthur -um mundo de
potências compactas e blocos antagônicos, de arranjos e rearranjos de macroalianças - não existe mais. O mundo que existe, em vez disso, e a maneira como
devemos refletir sobre ele, porém, são coisas nitidamente menos claras.
Um padrão muito mais pluralista de relações entre os povos do mundo parece
estar emergindo, mas sua forma ainda é vaga e irregular, feita de retalhos,
ameaçadoramente indeterminada. O colapso da União Soviética e as medidas
atrapalhadas da Rússia que a sucedeu (e que não é nem espacialmente idêntica
outros estados psicológicos. Um grande Mistura descoberta por jovens israelenses que se refugiaram em Goa, buscando
uma terapia para o corpo organizando concertos de tecno, meditações pelo transe e projeções astrais.
52
à que a precedeu) trouxeram em sua esteira uma onda de divisões obscuras e
estranhas instabilidades. O mesmo fizeram o reavivamento das paixões
nacionalistas na Europa Central e Oriental, as angústias hachuradas que a
reunificação da Alemanha estimulou na Europa Ocidental, e o chamado
Retraimento Americano: a capacidade decrescente (e a disposição decrescente)
dos Estados Unidos de comprometerem seu poderio em regiões distantes do
mundo -os Bálcãs ou o leste da África, o Magreb ou mar da China Meridional.
As crescentes tensões internas de muitos países, surgidas de migrações
culturalmente discordantes e em larga escala, o aparecimento de movimentos
religioso-políticos, armados e apaixonados, em várias partes do mundo, e o
despontar de novos centros de riqueza e poder no Oriente Médio, na América
Latina e na margem asiática da costa do Pacífico só fizeram contribuir para o
sentimento generalizado de inconstância e incerteza. Todos esses fenômenos,
assim como outros induzidos por eles (as guerras civis étnicas, o separatismo
lingüístico, a "multiculturalização" do capital internacional), não produziram a
sensação de uma nova ordem mundial. Produziram um sentimento de dispersão,
particularidade, complexidade e descentramento. As temidas simetrias da era do
pós-guerra desarticularam-se, e nós, ao que parece, ficamos com os pedaços.”44
A linha sugerida por Geertz contempla a desmontagem, sem reduzir as
pluralidades a um padrão comum, “enfrentando quadros confusos e conflitantes de
um mundo que já não é satisfatoriamente descritível”.
A convivência grupal urbana não isola o indivíduo: ele evolui rapidamente
com o novo meio, desenvolvendo habilidades e um sistema cognitivo complexo.
Procura parcerias, territórios, proteção, e busca aperfeiçoar as novas características
adquiridas: estados alterados que potencializam o corpo e a mente, questionamentos,
lutas ou buscas por elementos identificatórios.
Dessa maneira são formadas as tribos, que crescem e se desenvolvem de
acordo com suas novas habilidades e polarizações, aglutinando forças e vencendo
dificuldades sociais, genéticas, comportamentais e territoriais.
44 Geertz (2001), p.192.
53
O conceito transmoderno de tribo é diferentes daquele dos grupos pósmodernos contratuais, em que os indivíduos têm uma função específica e vínculos
“reais”. Acrescentando mais um eixo ao esquema maffesoliano, veremos os
pequenos grupos com aspecto pontual desprendendo-se do real e aproximando-se do
“outro” (proxeme); com o “estrangeiro”. Assim, o neotribalismo assume uma
solidariedade “partilhada-virtual” superior ao imaginário coletivo, às regras de
condutas sociais e à realidade física-urbana.
Figura 2
Esquema da movimentação das Tribos no tecido social com o Duplo Eletrônico
O esquema inicialmente formulado por Maffesoli45 foi por nós atualizado. A
ele incorporamos o “deslocamento do Eu” de Turkle (1989), tratando os novos
agrupamentos-agenciamentos no seu tempo “afetivo” concreto-virtual que, em seus
45 Maffesoli (2000), p.9-37
54
“fluxos”, põe fim aos seus destinos individuais e funcionais para adquirir uma
compulsão coletiva. O tédio, o niilismo e a insignificância do homem moderno/pósmoderno serão substituídos pelo “ethos” centrado na proximidade virtual-coletiva e
mística que molda lugares e regiões “abertas”: c@fés, c@barés e outros esp@ços
públicos em rede, nos quais é possível dirigir-se aos “outros”, nos quais há circulação
de bebidas e alimentos que comungam um “sair de si’, um “ext@se” cotidiano”
criando a “aura” específica - “cimento” do neotribalismo - e sua relação com o
nomadismo. Nossos objetivos são relacionar as volatilidades e as tendências
virtualizadas urbanas analisando um grupo paulista urbano, sua tribo e as relações de
comunicação da música percussiva.
Sobrepondo-se às trocas e ao contato oral e étnico-cultural das tribos há o
fenômeno midiático-musical que procura massificar, de forma abrasadora, os nichos
musicais novos de Salvador, São Luiz e Recife e suas relações com o eixo Rio-São
Paulo. Para analisar esse movimento vamos utilizar o trabalho de Guerreiro (2000)46,
que realiza uma profunda investigação sobre as influências da música afro-pop de
Salvador e suas relações com a “quadra”, a “rua”, “os terreiros”, os “circuitos”, “os
trios”, “as bandas” e seu conflito com a religiosidade baiana “dos terreiros” e do
profano do carnaval de rua de Salvador.
No caso do afro-pop baiano, afirma esse autor, há uma acomodação no
padrão negociado com a indústria fonográfica que assimila a música de Salvador e a
46
Guerreiro estabelece uma relação entre a música soteropolitana e a música africana: Não raro, o samba-reggae
é considerado uma versão standard das fusões que deram origem à juju music ou ao afro-beat de Youssou
N'Dour, FeIa Kuti, Salif Keita ou Dodou Rose, músicos africanos que dialogam com ritmos latinos e anglosaxões como a salsa, o calipso, o pop-rock e o rhythm'n'blues. A ausência de pesquisa musical e a
acomodação numa fórmula de sucesso podem ser as grandes responsáveis pela pobreza estética que desgasta
o ritmo afrobaiano, e coloca a falta de criatividade como pauta do dia. Esse desgaste é um prato cheio para
aqueles que insistem em rotular as diversas formas de expressão musical da Bahia como "música baiana".
55
projeta internacionalmente. Os modelos musicais mestiços ganham em pesquisa, em
sonoridade, e sofisticam-se. A pesquisa rítmica e melódica traz a inclusão dos
instrumentos harmônicos nas bandas de samba-reggae, por exemplo, e eleva o status
da percussão, freqüentemente desconsiderada no plano musical.
De posse das informações de Guerreiro sobre essa associação com a mídia –
que, ao mesmo tempo em que valoriza, desgasta – a pesquisa de campo aqui
desenvolvida tece relações entre as tribos e desenvolve uma estratégia metodológica
que se aproxima da cartografia47 do desejo, do pulso, verificado por Rolnik e
Guattari (1986).
Nos anos noventa, a música nordestina passou por uma sofisticada evolução
rítmica. A busca por elementos de revalorização cultural, e as novas influências como o Reggae e a música moderna africana - agregam elementos que permaneciam
latentes nos terreiros. Esses elementos, que vão da gestualidade das danças rituais à
pintura corporal, (re)elaboram as ligações com a “África Tribal”. Essa busca pela
africanidade por meio da música teve início ao final dos anos oitenta, com a explosão
da worldmusic, do reggae e da música africana moderna. Guerreiro também
identifica essa tendência no carnaval de Salvador, lembrando que o Ara Ketu foi o
primeiro bloco afro a mesclar, em 1991, o som acústico dos tambores à
instrumentação elétrica 48.
47 “Cartografia é um método com dupla função: detectar a paisagem, seus acidentes, suas mutações e, ao
mesmo tempo, criar vias de passagem através deles. A cartografia se faz ao mesmo tempo que o território. A
cartografia se distingue do mapa(...) pois acompanha a transformação da paisagem. É para isso aliás que
ela serve “ (Rolnik & Guattari, 1986, p.6).
48 Guerreiro assinala: “Durante os anos 80, enquanto a relação com o bairro era bastante intensa, os carros
alegóricos do bloco eram confeccionados na praça central de Periperi e nos domingos de carnaval o desfile
acontecia na Avenida Suburbana, que liga o bairro à zona central da cidade. O Ara Ketu realizava também
um conjunto de atividades no bairro de Periperi, relacionadas com o universo cultural negro, como a
capoeira, entendida como uma filosofia de vida: "Mostramos para crianças e adolescentes que a capoeira
56
O processo de possessão e seus fundamentos serão aprofundados em
capítulos subseqüentes, permitindo uma nova compreensão dos fenômenos urbanos
de segmentação, desritualização, absorção e dinamização das linguagens, o que
possibilita um novo enfoque sobre os agrupamentos na metrópole paulistana. Os
conceitos de espaço-tempo e alma desenvolvidos no eixo Platão-AristótelesPitágoras-Descartes-Kant-Heidgger serão lembrados, auxiliando a relacionar a
evolução do espaço, do tempo, do ser, do sentir com a geometria, a perspectiva, o
pensamento complexo49 e a cosmologia da nossa atual sociedade até o afloramento
dessas questões na cultura brasileira, sempre rica em sincretismos e em experiências
de apropriações e aculturações.
FOCO DA PESQUISA
As relações tribais não se limitam à pesquisa rítmica. Elementos da dança, do
gesto e do transe possessivo das manifestações do terreiro passam a ser coletivizados
para as festas, os trios e as bandas, e revelam-se no modo de vestir e falar baiano, que
procura
cores
fortes,
valorizando
a
vestimenta
africana
tradicional.
O
afrodescendente de Salvador começa a ter consciência na quadra, nos blocos e no
sucesso musical exportado para o mundo. A Lambada, a Timbalada e a Axémusic
ajuda muito na formação das pessoas. E estamos trabalhando basicamente com o pessoal das invasões
[favelas] [...] A gente está trabalhando também com dança, com teatro e estamos promovendo o futebol de
praia de Periperi, cuja liga estava desativada ", diz a presidente. Este trabalho social voltado para a
comunidade se assemelha ao conjunto de atividades desenvolvidas pelo Ilê no Curuzu-Liberdade. Mas nem
tudo é semelhança entre os blocos afro. Enquanto o Ilê Aiyê se volta para uma " África-tribal ", o Ara Ketu
se espelha numa " África moderna ". É para os grandes centros urbanos do continente negro, como Dacar,
no Senegal ou Lagos, na Nigéria, que os diretores do Ara Ketu viajam, a fim de pesquisar a modernidade
musical africana, que não dispensa uma tecnologia altamente sofisticada...” (p.37)
49 Cientistas, pensadores e autores da Teoria do Complexo, como Ilya Prigogine, Freeman Dyson, Paul Davies e
Murray Gell-Mann - quase todos do Santa Fe Insitute -, colocam o “efeito borboleta (butterfly effect)”, ou
seja, a forma com que pequenas condições iniciais são amplificadas extraordinariamente (feedback positivo),
como uma das idéias chave dessas novas ciências.
57
propagam-se para o exterior e ganham espaço na mídia. Esses novos ritmos carregam
em si elementos e batidas dos terreiros, que são tidos como profanação e diluição de
seus verdadeiros propósitos. Os novos toques, batidas ou pontos não se restringem à
música soteropolitana, mas permeiam a nova música nordestina, que também tem
suas estrelas: Rita Ribeiro e Zeca Baleiro no Maranhão, e Chico Science, da Nação
Zumbi, com o Manguebeat.
Para melhor compreender a busca por toques e timbres que levem a estados
alterados de consciência necessitaremos de conceitos próprios das cartografias
mentais da consciência, no capítulo em que a cidade cerebral trata da consciência
humana em níveis cognitivos por meio da indução por drogas e por outros
procedimentos. Atualmente, os estudos voltados aos processos cognitivos vêm sendo
aprofundados – com o auxílio da tomografia computadorizada - por cientistas,
psicólogos, psiquiatras, físicos, matemáticos e filósofos. Tais investigações
ampliaram o conhecimento sobre o pensamento complexo - identificando a
existência de múltiplas memórias e redes complexas de transmissão de dados no
cérebro -, o que se refletiu em outras áreas do conhecimento - como a lingüística, a
neuromedicina, a computação, a ciência da cognição, a pedagogia e a filosofia – e
permitiram um conhecimento multidisciplinar do cérebro humano e suas
potencialidades. De posse desse conhecimento, é possível comparar comportamentos
ligados à nova percepção sensorial e ao uso das novas drogas 50, que convergem para
50 Alguns pesquisadores afirmam que o excesso ou a falta da substância serotonina provocam alterações nos processos
normais do sistema nervoso central. A deficiência ou a abundância, congênitas ou provocadas, dessa substância provoca
“desordem mentais”: visões coloridas, alucinações, esquizofrenia e ligações “estranhas” entre os departamentos cerebrais.
A abertura dos departamentos cerebrais pode ser induzida pelas drogas sintéticas como o LSD (amplamente utilizado na
década de 70), as novas drogas dos anos 90 e as anfetaminas (Benzedrina / Dexedrina). Essas drogas foram utilizadas em
pacientes melancólicos, epilépticos, catalépticos e depressivos, e tiveram bons resultados no tratamento do delirium
tremens, mas apresentaram efeitos colaterais desagradáveis, como perda do apetite, do sono e fobias (Ropp, 1997). O
exctasy ou MDMA é uma droga do tipo da anfetamina, produzida sinteticamente e liberada nos anos 30 para trabalhar na
estimulação de depressivo nos EUA. Nos últimos vinte anos ganhou popularidade pelos seus efeitos psicoativos e
neurocondutores: que estimulam a mente agindo nos neurônios alterando sinapses (ligações). Provocam por algumas horas
58
o mesmo ponto: adquirir um estado de transe e entrar em comunhão com o “outro”
ou o seu “segundo Eu”. As relação que as tribos ancestrais tinham com o transe - de
busca da cura e das premonições - são agora (re)elaboradas pelas tribos urbanas –
que buscam se fortalecer e demarcar seus territórios.
As entrevistas e a captação de imagens contemplaram a tribo urbana do
Baque Bolado em suas oficinas e festas, e viagens aos estado de Pernambuco e
Maranhão, onde há terreiros e festas que apresentam estreitas relações com o grupo.
Semelhanças, comparações e deduções entre os grupos urbanos e os grupos
folclóricos serão apontadas nos próximos capítulos. Entretanto, todo esse esforço não
explica, ainda, as complexas relações entre os timbres, as harmonias, as dissonâncias,
as sonoridades musicais e os estados alterados de consciência, que escapam ao foco
do presente estudo.
Assim, tentamos compor um aglomerado de tendências em que o
desenvolvimento das novas pesquisas em relação ao cérebro humano, mais
especificamente a teoria da cognição e sua crítica, encontra paralelo nos
acontecimentos verificados em campo. Informações - complementares e não
referenciais - sobre a química e o funcionamento do cérebro e sua relação com os
nossos sentidos (visão e audição) foram encontrados em autores como Del Nero51,
efeito de hipersensibilidade, ativam as memórias, a comunicação, sensação de bem estar empatia e ativam experiências
espirituais. Com efeitos colaterais graves, principalmente se misturada ao consumo de álcool. A droga foi proibida quando
se observou que na sua ausência os efeitos eram acumulativos, provocavam depressão e perda do apetite, alteravam os
movimentos dos olhos, provocavam tremores e depressões profundas e, ainda, alteravam a temperatura do corpo elevando à
níveis muitos altos para o metabolismo do corpo humano.
51 Henrrique Shützer Del Nero é coordenador do grupo de ciência cognitiva do Instituto de Estudos Avançados
da USP e médico psiquiatra, bacharel e mestre em filosofia pela USP, e conclui sua tese de doutorado na
Escola Politécnica (USP). Em seu livro o Sítio da Mente compara nossos sistemas e estruturas mentais ao
computador, e mostra como reage nossa mente aos estímulos externos e como essa informação é processada,
à luz das modernas teorias cerebrais.
59
(1997) e Jourdain (1997)52 e contribuíram para a compreensão dos processos
seletivos e analíticos dos nossos sentidos, seu funcionamento químico-fisiológico e
suas relações com a estrutura lingüística, no que se refere às construções e
processamentos de redes neurais dos estímulos sensoriais. Sem essas informações, o
rumo deste trabalho seria completamente outro e, ficaríamos limitados ao estereótipo
da beleza das festas, e não enxergaríamos as relações aqui apontadas.
Essas novas investigações contêm elementos e teorias que esclarecem porque
os grupos têm necessidade de buscar, nos ritmos e nos movimentos repetitivos, uma
experiência virtual-coletiva que é corriqueira em grupos iniciáticos (terreiros de
Candomblés), de folguedos afro-brasileiros e de cultura indígena.
Nos autos e ritos brasileiros presentes no Maracatu, nas Congadas e Folias de
Reis, danças e rituais indígenas existe uma força de união, comoção e êxtase: um sair
do corpo rumo à virtualidade transcendente em busca da cura, da união do grupo, das
soluções de problemas, do cumprimento de promessas, um fortalecimento dos rituais
e dos mitos presentes na nossa cultura.
Também constatamos semelhanças entre o vestir ritualístico do grupo
estudado e aquele de seus similares não-brasileiros. Esse vestir ritual busca a
sensualidade, o êxtase coletivo, e diferencia-se em muito do vestir moderno, que
busca a banalização da experiência ritualística. De um lado temos o vestir possessivo
do transe, da alma possuída (tido ingenuamente como demoníaco), e de outro o vestir
invólucro que cobre a espiritualidade do nu (DEIFICADO). O corpo objetificado
52 Robert Jourdain, pianista profissional e compositor, há 20 anos trabalha com inteligência artificial,
dedicando-se ao desenvolvimento de esquemas conceituais para a representação do conhecimento. Em seu
livro Música Cérebro e Êxtase, analisa a misteriosa química interna dos nossos sentidos, com fundamentos da
psicoacústica e da teoria musical.
60
será abordado em capítulo no qual mostraremos suas ligações arquétipicas e
ritualísticas.
Aqui, Perniola comenta o estudo de P. Klossowsky:
“A doença do mundo moderno não consiste na prevalência da exterioridade
sobre a interioridade, da veste falsificadora sobre a verdade nua, e sim no fato
de o espiritual não poder mais encarnar-se, na falta da possibilidade de
possessão”.53
METODOLOGIA
Só a vivência e o contato direto, interno aos grupos, revelam os segredos
escondidos à percepção externa; a formulação de um novo ponto de vista sobre a
problemática abordada foi resultado de anos de contato e da convivência
participativa e atuante. Esse é um aspecto original e transformador desta pesquisa,
que se alimenta de trocas perceptivas e investigativas, tendo como pano de fundo a
transformação da percepção dos anos noventa, que rompe com o individualismo e
segmenta-se em guetos, em tribos, em modismos mutantes e voláteis.
Dentro dessa óptica, no início do trabalho deu-se a aproximação atenta com o
grupo de maracatu e o contato com a cultura pernambucana remanescente em São
Paulo pelos fluxos migratórios. Nessa fase, observações sobre a cultura musical
originaram questionamentos e reflexões, que exigiram estudo e sistematização para
serem compreendidos e serviram para a construção de um quadro de referências
conceituais que estruturou a análise das experiências vivenciadas pelo autor.
53 Perniola, op. cit, p.98.
61
O contato com o grupo de maracatu revelou que ele guardava fortes ligações
com grupos musicais das cidades de Recife e de São Luiz, que freqüentemente
visitavam a cidade grande. Esses músicos oferecem oficinas, workshops e
apresentações aos grupos nordestinos estabelecidos na metrópole, e promovem um
estreito relacionamento com a origem dos ritmos e festas nordestinas. Assim, esta
investigação permitiu-nos tomar contato com os fundamentos e as influências desses
grupos aqui em São Paulo e em sucessivas viagens ao nordeste. Verificamos, ainda,
o estreito relacionamento desses grupos regionais e urbanos com os terreiros de
candomblé. Desta forma, ao penetrar na cultura dos rituais e das festas, foi possível
visualizar que tais relações distribuem-se em territórios e em pequenos nichos
categorizados, que permitem que a cultura oral preserve seus ensinamentos e suas
dinâmicas e mantenha seus mitos, ritos e celebrações mesmo dentro da globalização
dos mercados.
Conhecendo as relações dessas tribos com o transe, com a musicalidade
étnica e com os “estados alterados”, vamos compará-las às tribos da música
eletrônica, que também se servem dos mesmos elementos, e vêm disseminando uma
nova cultura comportamental, em âmbito mundial, pelo fenômeno das raves.
Os fenômenos midiáticos dos grupos, no que concerne à movimentação, à cor
e ao som, serão analisados sob o ponto de vista da percepção e a da capacidade
fisilógica-mecanicista do corpo humano e suas potencialidades, desenvolvidas nos
agenciamentos nômades elaborados a partir dos anos noventa.
Ressaltamos a necessidade do transe e do êxtase como elemento de ligação
entre a comunhão grupal e o individualismo urbano. Levantamos algumas
62
características das tribos urbanas dos anos noventa, que apresentam novas relações
com sua identidade e seu território. Para interpretar a conduta do “Eu” urbano
utilizaremos o trabalho sobre a identidade do “Segundo Eu” de Turkle 54, elaborado a
partir de estudo com jovens e máquinas no MIT (Massachusets Institute of
Technology). Nesse trabalho – cuja amostra era constituída por integrantes da
primeira geração de jovens programadores - a autora discorre sobre a
antropomorfização das máquinas e suas relações com a identidade dos adolescentes.
O domínio, a personalidade, o virtuosismo e a mecanização da mente são novas
características do “estado alterado de consciência”, muitas vezes considerado vício,
obsessão e desvios. Tais estados podem ser atingidos pela ingestão de substâncias
alucinógenas ou pela exposição às máquinas que utilizam o som e a imagem digital –
aí se inserindo os jogos eletrônicos, a música eletrônica, os computadores e a TV. A
comparação desses estados alterados de consciência, induzidos pelo comportamento
urbano, permite o estabelecimento de um novo olhar sobre os movimentos das
metrópoles, derrubando preconceitos e teorias que não mais se adaptam aos
agenciamentos formados nas grandes cidades, expostas aos meios eletrônicos que se
expandem de forma acelerada e aos grandes investimentos mercadológicos
globalizados, que colocam culturas inteiras sob a custódia de um novo
individualismo-coletivizante.
O grupo aqui analisado tem características que se moldam externamente aos
movimentos internacionais, mas apresenta resistências e (re)elaborações da nossa
música percussiva iniciática que leva a esses estados coletivamente, cujos conteúdos
são ainda desconhecidos.
54 Turkle (1989), p.13-24 / 234-260.
63
CAPÍTULO 1
TERRITÓRIO, CORPO E CORPORALIDADE DAS TURBAS
O LUGAR DAS TURBAS
Turba, segundo o dicionário Aurélio, significa multidão, desordem e vozes
que cantam em coro. No mesmo dicionário, o verbete turbar é definido como
revolver, agitar, inquietar, desassossegar, toldar-se, sentir grande comoção, comoverse, abalar-se, inquietar-se, tornar-se sombrio, carregado, turvar-se. A definição que se
aplica ao presente trabalho é a de sentir grande comoção - êxtase.
Vamos, imprudentemente, associar a palavra turba às tribos nômades dos
desertos norte-africanos e centro-asiáticos. Essas turbas mantêm todo o corpo coberto
para que o suor resfrie o corpo ao evaporar. Além de colorações e estilos próprios, os
turbantes definem também a etnia das tribos. Cada tribo utiliza cores diferentes em
seus turbantes: no Saara central, por exemplo, os homens azuis usam um turbante
azulado. As roupas sempre foram um elemento de identificação para as turbas, como
assinala Souza (1997):
“UXOR é a manta que os asiáticos chamaram a seu uso, e já vimos que o auxílio
tirado de longe transformou-se em CIPPO FUNERÁRIO (ARA). Que os
pelasgos foram como a agulha que cerziu as peles de colorações diferentes das
raças africanas, prova-se ainda pelo nome do ATLAS dado ao sistema de
montanhas que orla e atravessa o continente negro. Ninguém atinou ainda com
o sentido dissimulado da palavra ATLAS, que se resolve em ACUS AIRAE
LAXITATIS (agulha do espaço negro) designando, ao mesmo tempo, o
64
afrouxamento das fibras produzido pelo clima tórrido e o das cores primitivas
por efeito da fusão étnica (HARMOGE).
ATL, no egípcio significa região, e no asteca ÁGUA. Ora, região traduz-se por
POPULUS (povo) e água por UNDA (multidão em movimento ), donde se
conclui que os pelasgos, saídos da África, são prolongamento desse cordão
umbilical (umbilicus acus) que, segundo nos disseram, se prende à massa
carnuda do território africano, circundado pelo ATLAS. O nome mauritano do
ATLAS é DYRIS, palavra que aglutina os termos DURA RES (coisa cruel,
inexorável) e, conseqüentemente, repete o tema envolvido pela palavra
INVENTRIX, aproximada de BELONE. E assim como as cordas da crista do
ATLAS divide as águas que correm para o Mediterrâneo ou para as terras
baixas do Saara, o nome dos pelasgos assinala uma repartição semelhante das
multidões barba ras, que emigraram da África para o mundo, ou da Mauritânia
para o centro do continente”55.
Neste estudo assinalaremos apenas a importância da montanha ATLAS –
localizada ao norte do Marrocos - e de suas”turbas”, que provavelmente originaram o
transe de possessão brasileiro, muito similar ao transe do povo berber, que veremos
adiante. É possível que tais turbas tenham saído da África em direção à Ásia central
pelas montanhas Atlas, e posteriormente tenham ocupado a Índia e a Europa. Muito
se tem descoberto com os novos achados arqueológicos, que indicam a presença
africana em território brasileiro. Mas o movimento das turbas escapa do nosso foco,
que é o transe xamânico brasileiro.
AS TURBAS NÔMADES E A CONSONÂNCIA MUSICAL
As turbas transitaram por regiões remotas, inóspitas e desérticas em rotas de
escravos e suprimentos do mundo antigo, que percorriam desde a Ásia até a Europa.
Ao longo da história, sua constante movimentação contribuiu significativamente para
a formação da Babilônia, do Império Persa, do Egito antigo e do povo Berber, que
55
Souza (1997), p.42-43.
65
ocupava as montanhas Atlas localizadas ao norte da África. Provavelmente as turbas
se movimentavam pelo deserto navegando pelas estrelas. As noites frias e limpas do
deserto facilitavam a observação dos astros e suas freqüências elípticas,
desenvolvendo, desta maneira, a matemática desses povos nômades.
Os astros marcavam as variações do clima - as estações verão, outono,
inverno e primavera - e também os eclipses lunar e solar. Para definir a data correta
era preciso entender as defasagens astronômicas: uma acomodação de seus ciclos, a
"coma astronômica”. A física oscilatória consegue explicar as acomodações entre os
ciclos elípticos dos astros (lua, sol e planetas) que definem as estações, eclipses e
mares em nosso planeta há milhões de anos. Aos olhos humanos esses fenômenos
são exatos. Assim, o homem dividiu o tempo com base em dias e meses regulares e
exatos quando, na realidade, existe uma “coma”, uma irregularidade a ser ajustada.
Entre a música e as nossas sensações com relação a ela também há uma “coma”: por
questões culturais e cognitivas, temos que ajustar as oscilações acústicas que
possibilitam que escutemos a música. As consonâncias musicais não são exatas, e
provocam-nos uma “coma” - uma irregularidade a ser ajustada - decorrente do
temperamento dos instrumentos que produzem as vibrações; esse desajuste guarda
estreita relação com a tonalidade do sistema musical culturalmente aceito. Vejamos
uma comparação entre as “comas” astronômicas e as tonalidades musicais:
“Após 19 anos, tem-se 235 ciclos lunares com precisão notável assim como após
7 oitavas, obtemos 12 ciclos de quinta com significativa precisão. Cabe ainda
ressaltar que a "coma astronômica" exigirá uma distribuição ao longo dos 19
anos, assim como a coma pitagórica reparte-se ao longo das escalas de distintas
formas nas tentativas de construção de escalas. No caso da astronomia, temos
235 = 19 x l2 + 7, o que levou Meton, ateniense do século IV a.C., a promover
um grande progresso ao repartir os 7 meses restantes ao longo dos 19 anos,
66
considerando portanto 12 anos normais de 12 meses e 7 anos gordos de 13
meses (Cartier, 1995, p.754), o que se comprova matematicamente no fato de
que 19x12 + 7 = (12+7) x 12 + 7 = 12 x 12 + 12 x 7 + 7 = 12 x 12 + 13 x 7.
Gerando
conflito
de
interpretações,
a
analogia
construção
de
escalas/calendários propicia insights, lubrifica e insemina de afeto os conceitos
-a princípio distantes -referentes a escalas, associados principalmente à aptidão
musical ao mesclá-los com propriedades astronômicas, em geral mais
"colonizadas" no espaço do saber e pertinentes essencialmente às aptidões
lógico-matemática e espaciais. Nesse sentido, tal comparação dá subsídios para
trazer à tona a manifestação de um significado, cujo sentido encontra-se ainda
encoberto através do trilhar de um atalho analógico permitindo sentir o
conhecimento, na acepção de Ricouer”56.
Os fenômenos acústico-auditivos devem-se à vibração, pois os componentes
do ouvido humano reagem à vibração. Na pré-história, o homem obteve acomodação
auditiva ao perceber as diferenças dos sons produzidos por um simples arco.
Descobertas arquelógicas mostram que os ossos transformados em flautas guardavam
a mesma proporcionalidade entre as distâncias dos furos que produzem o som.
Assim, há uma relação auditiva-física que acomoda o ouvido humano à “cor” (timbre
- nota musical) do som produzido pela flauta, mas foram necessárias algumas
centenas de anos para que o homem compreendesse essa sutil relação entre nota
musical e freqüência. O som produzido por uma corda esticada em um arco está
relacionado ao comprimento dessa corda. Pitágoras foi o primeiro a registrar a
relação de tom musical produzido pela corda:
“Pitágoras observou que pressionando um ponto situado a 3/4 do comprimento
da corda em relação a sua extremidade -o que equivale a reduzi-la a 3/4 de seu
tamanho original - e tocando-a a seguir, ouvia-se uma quarta acima do tom
emitido pela corda inteira. Analogamente, exercida a pressão a 2/3 do tamanho
original da corda, ouvia-se uma quinta acima e a 1/2 obtinha-se a oitava do som
original. A partir de tal experiência, os intervalos mencionados passam a
denominar-se conssonâncias pitagóricas. Assim, se o comprimento original da
56
Abdounur (1999), p.244. (grifo nosso)
67
corda for 12, então quando reduzimo-lo para 9, ouve-se a quarta, para 8, a
quinta e para 6, a oitava. O princípio subjacente a essa experiência mostra-se
presente em qualquer instrumento de corda ao escutar-se o som emitido pela
corda solta, por 3/4, 2/3 e metade da corda. A descoberta da relação entre razão
de números inteiros e tons musicais mostrou-se significativa naquela ocasião,
gerando uma dúvida fundamental para o pensador de Samos, bem como para o
desnrolar da relação matemática/música:
Por que às consonâncias musicais subjazem razões de pequenos números
inteiros? Qual é a sua causa e qual o seu efeito?”57
Por ter estudado com os sábios da Babilônia e do Egito, Pitágoras tinha
conhecimentos de cálculo, e associou as consonâncias perfeitas (mais apropriadas ao
ouvido humano) - oitava, quinta e quarta - às relações simples de 1/2, 2/3 e 3/4. E
justificou a subjacência dos números inteiros às consonâncias explicando que os
números 1, 2, 3 e 4 - envolvidos nas frações acima - geravam toda a perfeição. Essas
idéias, originárias da filosofia greco-romana, influenciaram toda a civilização
ocidental. A matemática, a religião e a música foram desenvolvidas inicialmente
pelas culturas nômades porque estas estavam sempre à mercê da força da natureza,
de vez que não se apegavam facilmente a nenhum lugar e não contavam com abrigos
fixos, cavernas ou cidades. O convívio com as noites claras do deserto, as
dificuldades de localização nas dunas e as tempestades de areia fizeram com que
esses povos desenvolvessem seus sentidos, a astronomia, a navegação e a seleção
genética dos cavalos, dos camelos e das plantas. A música, a poesia e as parábolas
dessas civilizações também tinham um significado oculto denso, e eram a forma de
comunicação e difusão de sua cultura. Adiante estudaremos os sufistas derviches e
sua relação com o transe.
57
Abdounur , op. cit., p.4-5.
68
O primeiro a recolher e aproveitar esses conhecimentos “nômades” de forma
ímpar foi o grego Pitágoras. Natural da ilha de Samos, estudou durante dez anos no
Egito Antigo e na Babilônia e formou sua própria “turba”. Foi perseguido por causa
do pensamento revolucionário que propunha, e que mantinha seus discípulos unidos
e convivendo à margem da sociedade grega. Os conhecimentos adquiridos com os
povos nômades ajudaram Pitágoras a estabelecer semelhanças entre as proporções da
natureza e da música. Como explicamos, Pitágoras descobriu a relação entre as
oitavas musicais, as notas musicais, e abordou a incompatibilidade das escalas, a
“coma pitagórica”. Além das notas e consonâncias, descobriu as relações de
proporcionalidade entre os lados do triângulo: o teorema de Pitágoras Hipotenusa² =
a²+b². As “relações de ouro” decorrentes do conhecimento que detinha da
matemática, da física e da geometria compunham a não proporção, a beleza e a
harmonia e ditavam as regras da sua “turba”. À sua maneira parabólica e hermética
Figura 3
Os números 1, 2, 3 e 4 para Pitágoras associados a um ponto , uma reta, um
triângulo e um quadrado.
de transferir o conhecimento, Pitágoras dizia: Tudo é Número, Deus é Número!
“Mas o que Pitágoras queria dizer exatamente com "tudo é número"? Sua idéia
de número era bem complexa. Concebia o número 1 como um ponto, o 2 como
uma linha, o 3 como uma superfície e o 4 como um sólido. Em diagrama seria:
69
Os números têm formas que de algum modo constituem o mundo. Ecos dessa
idéia persistem até hoje na matemática -na nossa noção de elevar um número ao
quadrado ou ao cubo, na idéia de três dimensões e assim por diante.”58
Se Pitágoras vivesse por mais dois mil anos, veria sua teoria confirmada pelos
números de base dois (binários), que são a base da computação. Veria ainda que a
molécula de carbono tem quatro átomos - formando o tetraedro - que constituem a
base dos organismos vivos e da molécula do diamante. Outro paralelo a essa teoria
poderia ser feito em relação às dimensões: 1 associada ao ponto, 2 associada aos
eixos x e y, 3 associada a x, y e z e 4 associada à quarta dimensão, ainda impossível
para a matemática atual.
IMPLICAÇÕES DA HARMONIA NA ESTÉTICA E NO CORPO EM TRANSE
Pitágoras é importante para o nosso estudo porque ele formula, além da
matemática, relações harmônicas e de comportamento que fundamentam uma
doutrina filosófica mesclada pelos vários ensinamentos que apreendeu no Egito, na
Pérsia e na Babilônia.
A maneira como viviam Pitágoras e seus discípulos foi melhor conhecida
quando do descobrimento um templo pitagórico de Cláudio (41 a 54 d.C.), sob os
trilhos da estrada de ferro que liga Roma a Nápoles. Pitágoras foi importante no sul
da Itália, mas não deixou nada escrito e suas postulações foram muito combatidas. Se
hoje temos informações sobre o pitagorismo, devêmo-lo aos seus seguidores Timeu,
Arquidas, Filolau, Teodoro, Sócrates e Platão.
58
Strathern (1998a), p.40.
70
Suas investigações meditativas eram realizadas no fundo de cavernas escuras,
após a ingestão de sementes com mel, e sob estado de transe:
“Era costume entre os gregos que estavam para se submeter à iniciação ingerir
esse preparado que, na verdade, era o sagrado kykeon dos mistérios de Elêusis.
A papoula era consagrada à deusa Deméter, cujas estátuas sempre aparecem
coroadas com ela; a papoula não era usada apenas para afastar a fome e
produzir uma sensação de bem-estar na obscuridade e no mistério das cavernas
e dos santuários dos deuses; ela proporcionava também um estado de intensa
vigília por mais de oito horas, bem como alucinações visuais que preparavam o
iniciado para a chegada dos deuses. Em seus últimos estágios, a papoula leva a
um estado místico, na fronteira entre a vigília e o sono, no qual aparições
fantásticas, tanto visuais como auditivas, começam a se manifestar. Finalmente,
depois desse estado quase que de transe das horas precedentes, o iniciado
adormece e sonha. Era no sonho que se dava a epifania, quando o deus aparecia
ao iniciado. Esse era o procedimento usual nos templos do deus da cura,
Asclépio, cujos devotos recebiam a cura adormecidos. As propriedades da
antiga albarrã são desconhecidas,mas provavelmente era mais um narcótico que
ajudava a suportar o medo em face dos terrores das trevas. Contudo, o
ingrediente mais importante desse preparado, mencionado da primeira vez por
Porfírio, era a papoula. Pitágoras conhecia as medidas exatas de cada
ingrediente da poção, uma arte que mais tarde ele utilizou ao administrar
drogas medicinais e que aprendera com os magos persas”59.
A relação entre o transe meditativo e a cura é um aspecto importante para o
presente estudo sobre as tribos urbanas paulistas, mas também é importante analisar
como essa relação provoca mudanças no comportamento e na noção de beleza,
levando a mudanças de hábitos alimentares e corporais. Proibições eram impostas à
turba de Pitágoras, algumas aparentemente absurdas, como a de não comer feijão.
Entretanto, se pensarmos a estética do corpo como algo puro e em harmonia com a
natureza concordaremos com a proibição, pois essa imagem não é compatível com os
gases que o feijão produz. A música era utilizada para transmitir o conhecimento,
59
Gorman.(1995), p.97.
71
unir e curar. Pitágoras era o único integrante da turba capaz de escutar a música
cósmica, e utilizava seus poderes para manter uma aura de mistério entorno de si.
Para o pensador de Samos a relação de harmonia é constituída pelo
ajustamento entre os opostos: aspectos qualitativos que se simetrizam e em
movimento (khiasma).
“Jamais foi bem compreendido o sentido da krásis pitagórica. A união dos
contrários foi entendida do modo mais vulgar, e não se percebeu que há uma
transimanência, pois a krásis não é apenas uma reunião de contrários, mas uma
superação formal, que dá surgimento a uma nova tensão. Desse modo, a krásis,
o kosmesein pitagórico, é considerado como sendo apenas um vínculo, que
reúne os elementos opostos das coisas. A krásis seria apenas a harmonia. Assim,
o que constitui as coisas são os números (como elementos materiais) e a
harmonia, que os coordena. O universo é, apenas, a harmonização dos números,
uma espécie de unidade de múltiplos (quase atomizados, senão atomizados). 60”
A harmonia coordenada remete-nos aos ritmos e à relação entre tempo e
espaço na realidade percebida, ou seja, fluxo. Assim, para os pitagóricos ritmo é a
experiência do fluxo ordenado de um movimento. Para eles, harmonia era o ideal
máximo, e os números eram entidades intermediárias entre o Ser Supremo e o que
não é numero: os outros seres. As tríades inferior e superior consideram o conjunto
das formas e as coisas sensíveis. Para o Ser Supremo, a díada (o número um) é a
harmonia cosmológica em movimento, um fluir que leva acordância aos
discordantes:
“Exige, ainda, a harmonia que os contrários tenham, além de um logos
contrário, ou pelo menos, distinto, que os elementos componentes de um dos
pares de contrários, analoguem-se entre si, ou que tenham, em certo aspecto, um
logos que os identifique, formalmente, sob esse aspecto, como um punhado de
60
Santos (2000), p.103.
72
homens, que se analogam como soldados de um grupo, como combatentes de um
grupo, e, como tais, eles se identificam, apesar das diferenças, das
heterogeneidades que os distinguem entre si. Mas, funcionalmente, se fusionam
num logos, que aponta a funcionalidade do grupo. No grupo contrário, há a
mesma funcionalidade, e uma analogia correspondente.
O combate entre os grupos os analoga num logos, que é o embate entre forças
adversas, que buscam prevalecer e dominar a outra. Há, assim, no combate,
uma harmonia. (Escolhemos este exemplo, porque seria o que mais parece aos
olhos como desarmônico, e que serve bem para explicar o conceito de harmonia
pitagórica).61”
Também no combate urbano está presente a acordância entre discordantes. As
partes atacam e defendem, as atitudes volatilizam-se na cruzetagem e nos pontos em
comum, formando as tribos. Os grupos se analogam no logos da batalha pela
sobrevivência e pela visibilidade. Uma harmonização que é a luta travada entre o real
e o não-real, o virtual. Os contrários analogados e obedientes a uma norma real, e
desobedientes virtuais a uma norma não-real, aglutinadora e polarizante. Assim o
corpo urbano transita, no limite físico da pele exposta, entre o corpo e o não-corpo,
harmonizando espaços e tempos múltiplos.
O CORPO E A IDENTIDADE EM TRÂNSITO
O princípio de identidade urbana passa pela observação das outras
identidades observadas. Observar o corpo (real ou não) dos grupos e das tribos é
fundamentar a sua identidade. Vejamos o que Michel Serres nos diz sobre as
questões ontológicas e a identidade:
“O encontro de A e de não-A é descrito cuidadosamente por um conjunto de
identidades: no mesmo tempo, na mesma relação, em geral, sob condição de
mesmas determinações. Curiosa necessidade que só pode ser imposta sob um
61
Santos, op.cit., p.163.
73
completo universo de condições. O princípio de identidade advém se e somente
se outras identidades forem observadas: de tempo, de relação, de determinações
em geral. Curiosa definição que requer como condição o definido si mesmo. O
primeiro princípio reduzir-se-ia a uma petição de princípio? A um retorno à
própria identidade?
A partir daí, podemos retomar Aristóteles e Leibniz, dizendo: nas mesmas
circunstâncias, é impossível que o que é A seja não-A. Observamos de imediato
que o famoso princípio, cuja universalidade ou pretendida necessidade
pulveriza-se sob a pressão das condições, avizinha-se de um outro, mais
familiar, o do determinismo: nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas
produzem os mesmos efeitos. Ora, como todo mundo ignora o estatuto das
causas e dos efeitos, como a filosofia da causalidade pode muito bem ser posta
entre parênteses tanto quanto a lógica atributiva, mais acima, resulta que: nas
mesmas circunstâncias, os mesmos x produzem os mesmos y. Ou melhor: pela
identidade das circunstâncias, há a identidade, ou estabilidade da experiência,
possibilidade de repeti-la à vontade. Ou: por um recorte idêntico, as
experimentações continuam invariantes.62”
62
Serres (2001), p.290.
74
DAS TURBAS PITAGÓRICAS ÀS TRIBOS ELETRÔNICAS
As conjecturas filosóficas de Pitágoras fizeram com que o pensador de Samos
fosse obrigado a esconder o significado de suas teorias, pois à sua turba foi imposta a
lei do silêncio. Àquela época, apenas quatro sólidos geométricos regulares eram
conhecidos: o tetraedro (pirâmide triangular); o cubo, o octaedro (oito faces iguais) e
o dodecaedro (doze faces iguais). Acreditava-se que o universo era um globo
constituído por dodecaedros, e os conhecimentos matemáticos de harmonia,
proporção e beleza eram mantidos em segredo, assim como os números irracionais como a raiz quadrada de dois. Os números irracionais não podiam ser calculados, e
contradiziam toda a estrutura do pensamento pitagórico.
“Os
babilônios
consideravam
o
pehtagrama símbolo de
saúde,
física
e
espiritual.
Suas
propriedades
eram
relacionadas à Divina
Proporção (mais tarde
Figura 4 Pentagrama inserido no pentágono regular.
conhecida como Razão
de Ouro). Para corresponder a essa razão, uma linha deve ser dividida de tal
forma que a razão de sua parte menor em relação à maior seja a mesma que à
da maior para o todo. No diagrama precedente, a razão de Y Z para Y X é a
mesma que de X Y para X Z. Essa razão, relacionando as partes divididas e o
todo, assumiu imenso significado simbólico para os babilônios. Continha o
segredo da constituição do mundo -como suas partes se encaIxavam umas as
outras e como a soma dessas partes se relacionava ao todo, como os seres
humanos tomados individualmente se relacionavam à humanidade como um
75
todo e como a humanidade se relacionava ao mundo -e muitas outras relações
simbólicas. Como tal, a Razão de Ouro –harmonia última- veio a ser encarada
com mística reverência. E quando se descobriu que o pentagrama era forma do
segundo a Divina Proporção (ou Razão de Ouro) isso também assumiu um
status místico”63.
O pentagrama escondia relações matemáticas e estéticas que para os
pitagóricos era uma filosofia, mas essas relações eram mantidas em segredo, e só
mais tarde foram aperfeiçoadas por Arquitas. Pitágoras não conseguiu explicar a
incompatibilidade das notas musicais e adotou uma relação forçada, com
constatamos nas suas frações. Arquitas desenvolveu uma aproximação acústica
levando em conta como as ondas sonoras que se propagam e as relações entre altura,
força e velocidade do som.
“Cabe ressaltar que o intervalo de terça maior obtido por Arquitas concorda
com aquele presente na Série Harmônica. Tal fenômeno levar-nos-ia a imaginar
que Arquitas possuísse um ouvido sensível
ao perceber que a terça
correspondente a (4/5) -mais baixa que a pitagórica, (64/81) -soava mais
natural, uma vez que se fundia exatamente dentro dos harmônicos naturais de
uma nota. Enquanto Pitágoras calcula frações subjacentes à escala utilizando
apenas percursos de quintas, Arquitas considera fortemente cálculos de médias
aritméticas e harmônicas na geração de seu sistema musical. Revelando uma
estrutura de pensamento poderosamente proporcionalista, o pensador tarentino
redistribui as relações de comprimentos subjacentes à escala pitagórica,
obtendo diferentes frações tais como (4/5) correspondente ao intervalo de terça,
outrora associado a (64/81) por Pitágoras”64.
Posteriormente os gregos desenvolveram a acústica, que garantiu aos teatros
uma ótima sonoridade. Essa sonoridade foi investigada, mais adiante, pelo arquiteto
romano Vitrúvio. Os diferentes aspectos que envolvem a consonância foram
estudados no ocidente durante os dois mil anos da era cristã. Em 1910 os futuristas
63
Strathern, op. cit., p.53.
76
italianos passaram a associar às composições musicais notas aleatórias produzidas
por máquinas. Nos anos 40, músicos negros dos Estados Unidos eletrificaram o
blues, o spirituals, e o gospel, inventando o rhythm and blues. Desta forma as notas
musicais foram associadas à eletricidade, e a consonância foi adaptada aos aparelhos
elétricos e à fita magnética. A música eletroacústica abriu novas possibilidades de
experimentação. A composição aleatória de Cage65 e a experimentação musical
foram intensas na década de setenta. Com James Brown e Sam Cooke, ainda em
sessenta, o gospel foi transformado em música profana, conhecida como soul, o pai
do funk. Nas festas de rua do Bronx, gueto negro nova-iorquino, DJs como Grand
Master-Flash e Afrika Bambaataa aprendem as técnicas de scratch66 do jamaicano
Kool Her. Na década de setenta temos os DJs do Bronx sampleando67 pedaços de
músicas de outros músicos e o grupo alemão Kraftwerk, que lança Trans-Europe
Express utilizando a bateria eletrônica. O resultado da mistura entre a música e a
eletrônica faz enorme sucesso, das festas do Bronx às festas clubbers, da Inglaterra à
64
Abdounur, op. cit., p.17.
65
As experimentações do músico Cage alimentaram na década de oitenta o movimento underground que
assumiu uma vínculo “aberto” com as drogas, segundo Xiberras (1989),p.114.: “Tal não significa porém que
o underground não tenha cobrado existência real. Atendendo aos dados da nossa história mais recente, ele
configura antes de mais uma corrente musical e pictórica consubstanciada no hiper-realismo não
convencional de Andy Warhol. O agrupamento musical Velvet Underground reune cantores como Lou Reed e
Nico. Alguns dos títulos dos seus discos evocam uma sensibilidade comum à experimentação dos novos
produtos: heroine, white light, white heat, etc. Será nestas brechas, no interior destes hiatos da cultura
ocidental que o consumo da droga vai encontrar refúgio, sujeitando-se à imagem que lhe é devolvida pela
sociedade em que os indivíduos se inserem: a imagem do toxicómano, detrito da modernidade ocidental,
caixote de lixo da história, que urge votar ao mais completo desprezo. Enquanto a geração anterior se
esforçara por redescobrir drogas «planantes», o underground dá preferência a produtos que lhe permitem
manter-se num mundo inferior e aceitar a sua decadência como um fenómeno perfeitamente normal. Nestas
condições, é natural que a tomada de contacto com os Hypnotica viesse a transformar-se numa verdadeira
paixão. Muito particularmente a heroína, produto da tecnologia avançada, reúne todas as características
necessárias a ocupar o centro da ribalta. O pó branco constitui, com efeito, uma poderosa arma de
combate..., e não esqueçamos que o underground declarou o estado de guerra de todos contra todos”.
66
Scratch é a utilização do toca-discos como instrumento musical, editando e "arranhando" as músicas, indo e
voltando na pista sonora do disco de vinil (Long Play).
67
Samplear é colar eletronicamente uma música ou ruído nos sintetizadores. Assim o músico pode fazer uma
colagem de diferentes trechos musicais e ruídos tocando o sintetizador, previamente abastecido ou
programado.
77
Alemanha. São colocados no mercado os samplers, o Midi68 e os microcomputadores
pessoais. A vanguarda parte de duas cidades americanas:

Em Chicago, os DJs dos clubes freqüentados principalmente por
negros e gays inventam a house69.

Em Detroit, um veterano da Guerra do Vietnã, que gosta de ser
chamado pelo número 3070, apresenta para os DJs Juan Atkins,
Derrick May e Kevin Saundersono o livro A Terceira Onda, de Alvin
Toffler. Nesse encontro que nasce a música techno70.
Uma possível solução
para o desajuste entre as
notas
temperadas
e
não
temperadas é diminuir o
número de notas. Assim,
algumas
tribos
utilizam
apenas cinco notas (sistema
Figura 5. Espiral com as motas temperadas e não
temperadas.
pentatônico)71,
o
que
possibilita o ajuste do som
em intervalos aproximados. O gráfico (figura 5) apresenta a distribuição de infinitas
68
Midi é um protocolo que possibilita que as máquinas eletrônicas conversem entre si compartilhando notas
musicais.
69
House é um estilo de música eletrônica. Iniciado em 1986 pelo DJ Frankie Knuckles em Chicago (EUA), esse
estilo evoluiu e saiu da fusão de elementos da soul music com a disco e as batidas das baterias eletrônicas.
Formam-se subgêneros, como o garage (com bastante vocal gospel), o deep house (o subgênero mais
elegante do house, com linhas melódicas, melancólicas e minimalistas acima das batidas), e o jazzy house
(batidas com um instrumento solo - quase sempre um sax virtuoso), dentre outros (acid house, disco house,
tribal hous, french housee). 110 a 128 bpms (batidas por Minuto).
70
Techno - no início dos anos 80, em Detroit (EUA) Derrick May, Kevin Saunderson e Juan Atkins fazem uma
fusão entre o som do Kraftwerk e as batidas funk de George Clinton. O resultado é uma batidas seca,
repetitiva, 4 por 4, sem vocais. O Kraftwerk é considerado um grupo Prototechno, por ser referência à
produção da Techno Music. 130 a 140 bpms.
78
notas em uma espiral, que se desenvolve para fora a partir de um círculo. As notas
temperadas são as doze notas que se assentam sobre o círculo. A redução das notas
da espiral em direção ao círculo pode formar um conjunto de notas (menores da
espiral) que se assentam próximas ao círculo (figura6).
Figura 6. Detalhe do círculo (notas temperadas em preto) próximo as notas da espiral (notas
não temperadas ).
Aspectos importantes, como o temperamento musical, a polifonia e as
músicas tonal e atonal, não poderão ser analisados no curto espaço de que dispomos,
mas vale pena ressaltar a relação corporal e estética que a harmonia musical implica,
71
O diretor Spielberg no filme Contatos Imediatos do 3.º Grau utiliza notas musicais para se comunicar com os
alienígenas. Em São Paulo, esses tons do filme são utilizados para anunciar a passagem do caminhão de gás
nas ruas.
79
pois ela nos auxilia a compreender a afinação brasileira e as diferenças de escala e de
dissonâncias musicais entre o sul e nordeste brasileiros. Parte significativa da nossa
herança cultural musical vem da região sul européia, que sofreu a influência árabe
graças às invasões dos mouros. Outra de nossas influências musicais vem da África que tem um sistema musical pentafônico, constituído pela polifonia e pelas
dissonâncias - e misturou-se à musicalidade indígena brasileira desde o período
colonial. Os hinários do Santo Daime são exemplo da fusão dessas duas culturas na
Amazônia brasileira. Assim como em todos os aspectos da cultura brasileira, a
mistura de sistemas musicais é muito significativa, e tanto as línguas como as
músicas de origem africana foram preservadas. É fácil, desta forma, entender porque
a dissonância da Bossa Nova72 e a música atonal de Arrigo Barbarnabé73 provocaram
tanto escândalo e turbulência aos ouvidos tradicionais e europeizados.
Estendendo a linha de pensamento entre os opostos e a relação de trânsito ou
avizinhamento, atingimos a noção de erótico entre o humano e o divino estabelecida
por Platão. O pensamento de Perniola sobre o platonismo revela um corpo erotizado
entre o belo e o feio:
“Parece ter sido Platão o primeiro a intuir que o eros seja algo de intermédio
entre os opostos: em O Banquete, de fato, Diotima (sacerdotisa lendária de
72
Bossa Nova: em 1957, o compositor Tom Jobim trabalhava nos arranjos do novo disco de Elizeth Cardoso.
Certa noite, o fotógrafo Chico Pereira chegou ao seu apartamento na Rua Nascimento Silva, em Ipanema,
acompanhado de João Gilberto. João mostrou a ele duas músicas da sua autoria, Bim Bom e Obalalá, cujo
ritmo deixou Jobim muito impressionado. Ele convenceu Vinícius de Moraes e Elizeth - que andava
estranhando os ares intelectualizados do projeto e temia não dar conta do recado - a aproveitar o músico
baiano em três faixas, Chega de Saudade e Outra Vez. No disco, João Gilberto gravou pela primeira vez a
batida do violão em 4/4, que se tornaria a marca registrada da Bossa Nova - a batida de samba normalmente é
executada em compasso 2/4. Posteriormente a Bossa Nova foi influenciada pelo jazz (1962), distanciando-se
do samba (http://www3.estado.com.br/edicao/especial/bossa/historica.html).
73
Músico nascido no Paraná, estudou composição na Universidade de São Paulo (ECA). Tornou-se um dos
líderes da vanguarda paulista, baseando seu trabalho na experimentação da música atonal e demonstrando
influências do dodecafonismo erudito. Participou do Festival Universitário da TV Cultura nos anos 70 com
"Diversões Eletrônicas", e em 1980 gravou o primeiro LP independente: Clara (1980). Fez trilhas sonoras
para os filmes Cidade Oculta (1986) e Ed Morte (1997).
80
Martinéia e mestra de Sócrates), uma mulher de Mantinéia, versada em coisas
erÓticas, define o eros como algo entre o mortal e o imortal, um intermediário
entre o humano e o divino, um grande demônio que garante as relações entre os
homens e os deuses. Essa definição de eros, entretanto, ficou, seja no tempo de
Platão, seja na reflexão neoplatônica que veio a seguir, como algo um tanto
marginal e substancialmente não pensado, porque prevaleceu o conceito de
amor como conciliação, união, harmonia, o que O Banquete platônico a maioria
dos outros interlocutores defende. Se a conciliação deve ser pensada como
consonância entre elementos semelhantes ou elementos dessemelhantes, ou
como uma composição harmoniosa do idêntico consigo mesmo, esse é um
problema que pertence precisamente à história da noção de amor, a qual tem
pouco a ver com a idéia do eros como intermediário, como metaxú; não por
acaso, tanto para a maior parte dos outros interlocutores de O Banquete
platônico, como para Plutarco, o amor não é um demônio, mas um deus. 74”
Para o platonismo o corpo está em trânsito entre o bem e o mal, entre a
sabedoria e a ignorância. A beleza parte do corpo e ascende às ciências e às
instituições, dissolvendo a noção de transcendência e de cura elaborada por
Pitágoras. O corpo em trânsito desloca-se no espaço em direção da ascendência ao
divino em algum ponto do futuro, perdendo a ligação com o tempo mítico passado.
Para Pitágoras a caverna é transcendente, meditativa e traz a cura reveladora e
visionária (para trás). Para Platão a caverna75 - a sociedade - está aprisionada às
sombras do real, da ilusão e da ignorância e deve, heroicamente, enxergar com
sabedoria (para a frente). Assim, para os pitagóricos o medo é meditativo e, para os
platônicos o medo é fantasmagórico.
74
Perniola (2000), p.62-64.
75
Platão viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de A
República, um diálogo escrito entre 380-370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna,
imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que veriam
então? A seguir supôs que existissem alguns prisioneiros, que carregavam para lá e para cá, sobre suas
cabeças, estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro que
encarcerava os demais. Havia também uma escassa iluminação, que vinha do fundo do subterrâneo. Para o
filósofo, que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras dos objetos,
surgindo e se desafazendo diante deles. Era assim que viviam os homens, concluiu ele: acreditavam que as
imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras,
tomando o espectro pela realidade. A sua existência era, assim, inteiramente dominada pela ignorância
(agnóia).
81
Configura-se, desta forma, uma ruptura entre as duas maneiras de pensar e
analisar o mundo. Para os pitagóricos a harmonia da natureza é a unicidade xamânica
e está relacionada ao divino; a identidade humana volta-se ao passado e, através do
onírico harmoniza-se à natureza e revela a sua sabedoria; a identidade é uma
acordância entre as discordâncias. No platonismo a harmonia é o corpo erotizado que
deve, heroicamente, superar-se e elevar-se ao divino e não pode identificar-se com o
amor ou com a violência; a identidade transita na desigualdade entre o divino e o
homem, entre a imortalidade e a mortalidade.
Neste estudo, a abordagem do transe xamânico aproxima-se do pensamento
de Pitágoras, que se (re)alinhou ao pensamento xamânico e influenciou todo o
pensamento grego e romano, formando a base da cultura ocidental. As noções de
sabedoria, saúde do corpo e comportamento estão relacionadas com a harmonia
musical, e constituem-se em uma forma de se relacionar com o mundo percebido.
Entender o transe meditativo e ligado à cura é um meio de compreender a nossa
cultura popular que, com sua sabedoria, mantém o xamanismo como a única
possibilidade de unir e fortalecer a sua comunidade.
82
CAPÍTULO 2
O URBANO: AS TRIBOS E OS GRUPOS
A HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DAS CIDADES COMO
PROTEÇÃO E TRANSCENDÊNCIA DOS VALORES
TEMPORAIS
Os primeiros agrupamentos humanos tinham formações que até hoje se
mantêm. Os indivíduos se agrupam basicamente para vencer as dificuldades impostas
pela meio ambiente. Uma vez dominada a natureza, a tendência é valorizar as
heranças culturais que carregam e, principalmente, preservar o meio social que
formaram. A fim de melhor entendermos a complexidade das tribos urbanas e seus
territórios, o presente capítulo apresenta um breve traçado histórico – da época
medieval até a contemporaneidade – da vinculação entre dissonância musical e
relação espacial-temporal. O solo ritualizado de que nos fala Eliade (1996) sempre
teve um valor agregador da identidade e fortificador do grupo e, desde as mais
remotas civilizações, guarda uma estreita relação com as comunidades locais.76
76
Eliade (1996), p.119: “O costume de depor o recém-nascido no solo é ainda mais difundido. Em certos
países da Europa ainda se costuma, hoje em dia, colocar a criança no chão, logo que esteja lavada e
enfaixada. Em seguida, a criança é erguida pelo pai (de terra tollere) em sinal de reconhecimento. Na China
antiga, "o moribundo, como o recém-nascido, é deposto no solo... Para nascer ou morrer, para entrar na
família viva ou na família ancestral (e para sair de uma ou outra) há um limiar comum, a Terra natal...
Quando se coloca sobre a Terra o recém-nascido ou o moribundo, é a ela que cabe dizer se o nascimento ou
a morte são válidos, se é necessário tomá-los como fatos consumados e regulares... O rito da deposição na
Terra implica a idéia de uma identidade substancial entre a Raça e o Solo. Essa idéia traduz-se, com efeito,
pelo sentimento de autoctonia -o mais vivo que se pode captar nos primórdios da história chinesa...”
83
Território, lugar ou solo são elementos que sempre estiveram ligados aos ritos
da morte, do nascimento e do surgimento de uma raça. Explicam-se, assim, os ritos
da Terra-Mãe (Terra Mater), relacionados à imagem feminina, à agricultura, ao
cultivo, ao novo alimento e ao novo indivíduo. Eliade(1992) demonstra que, em
algumas culturas, os cerimoniais de fertilidade, riqueza e celebração da colheita
tinham um caráter orgiástico, de libertinagem77.
A água, o barro e a lama são tidos como elementos primordiais em muitas
religiões porque, de alguma forma, abrigam o sentido do rito da Terra-Mãe. Os ritos,
lendas e cultos associam os vetores temporais ligados à fecundidade, à vida e à morte
ao solo, à floresta, ao o rio e ao cosmo.
Para melhor compreender as mudanças de comportamento provocadas pela
primeira de mudanças vivida pela sociedade – que dessacralizaram a fecundidade do
solo ligada à figura feminina -, vejamos as considerações de Toffler (1998):
“Começando com a simplíssima idéia de que o aparecimento da agricultura foi
o primeiro ponto decisivo do desenvolvimento social humano, e de que a
revolução industrial foi a segunda grande ruptura, olha cada um destes
acontecimentos não como um discreto evento no tempo, mas como uma onda de
mudança avançando a uma certa velocidade. Antes da Primeira Onda de
mudança, a maioria dos seres humanos viviam em pequenos grupos,
freqüentemente migradores, e alimentavam-se pilhando, pescando, caçando ou
pastoreando. Em algum ponto, aproximadamente há dez milênios, começou a
77
Eliade, op cit., p.122-123: “A orgia ritual em favor das colheitas também tem um modelo divino: a
hierogamia do deus fecundador com a Terra-Mãe. A fertilidade agrária é estimulada por um frenesi genésico
ilimitado. De certo ponto de vista, a orgia corresponde à indiferenciação de antes da Criação. É por isso que
certos cerimoniais do Ano-Novo comportam rituais orgiásticos: a “confusão” social, a libertinagem e as
saturnais simbolizam a regressão ao estado amorfo anterior à Criação do Mundo. Quando se trata de uma
“criação” ao nível da vida vegetal, a encenação cosmológico-ritual se repete, pois a nova colheita equivale a
uma nova “criação”. A idéia de renovação- presente nos rituais do Ano Novo, em que se tratava ao mesmo
tempo de renovação do Tempo e da regeneração do Mundo - é encontrada novamente nas encenações
orgásticas agrárias. Aqui também a orgia é uma regressão à Noite Cósmica, ao pré-formal, Às “Águas”, a fim
de Assegurar a regeneração total da Vida e, por conseqüência, a fertilidade da Terra e a opulência das
colheitas.”
84
revolução agrícola, que avançou lentamente através do planeta, espalhando
aldeias, colônias, terra cultivada e um novo modo de vida. A Primeira Onda
ainda não se tinha exaurido pelo fim do século XVII quando a revolução
industrial irrompeu através da Europa e desencadeou a segunda grande onda de
mudança planetária. Este novo processo -a industrialização- começou a
marchar muito mais rapidamente através de nações e continentes. Assim, dois
processos de mudança, separados e distintos, rolavam através da terra
simultaneamente, a velocidades diferentes. 78
Surge aí o rompimento com o Rito da Terra-Mãe e a relação territorialtemporal modifica-se: o solo passa a ser comercializado, e a proteção e a acumulação
do “produzido” tornam-se a grande preocupação do homem. Turbas que
anteriormente viviam no nomadismo fixam-se, assumindo comportamento
sedentário; o território passa a ser o paradigma do sangue, que legitima a relação
familiar com o solo fértil produtivo e discrimina o “outro”, que não tem “sangue
azul” e, portanto, deve pagar impostos, mora fora da cidade e não tem proteção da
família “real”.
A base da formação da cidade murada sedentária está na apropriação do
tempo e do solo: o tempo da colheita e o plantio do solo. O muro divide, segmenta o
território entre aqueles que têm sangue azul (corte) e aqueles que não o têm (plebe),
entre aqueles que guardam a colheita (senhores da terra) e aqueles que plantam
(trabalhadores). De posse desse tempo-território a cidade medieval fortifica-se,
acumula. A técnica bélica e a militarização da cidade murada protegem a família real
e a corte. Surgem os períodos de desfrute e deleite decorrentes da abundância de
alimentos e o os períodos de amargos e dor provocados pela escassez de
suprimentos, pelas guerras e pelas pestes. O conflito entre a “alma” e a “mente”
78
Tofller (1998),. p.27.
85
ganha uma forma dualística que é a origem da racionalidade técnica e objetiva que
alterou as relações espaço-tempo da civilização ocidental.
Vejamos como Werthein (2001), que analisou a Divina Comédia de Dante,
explica esse dualismo medieval entre corpo-espaço e alma79:
“...Um dos traços mais comentados da cultura ocidental é que, pelo menos nos
últimos três mil anos, nossas filosofias e religiões foram dualistas, cindindo a
realidade em matéria e espírito. Herdamos esse dualismo tanto dos gregos
antigos quanto da cultura cristã. Para os gregos, o homem era uma criatura de
soma e pneuma, corpo e espírito. Pitágoras, Platão e Aristóteles, todos viram
não só os seres humanos como o cosmo em termos bipolares. Na era cristã
primitiva, o pneuma grego foi integrado ao pensamento judaico e essa
amalgamação das correntes intelectuais grega e judaica deu origem à noção
teologicamente complexa da alma cristã. Ao longo dos mil anos da era cristã
medieval -grosso modo, da queda do Império Romano no século V ao início do
Renascimento no século XV -, a cultura intelectual ocidental caracterizou-se
amplamente
por
preocupações
relativas
à
alma.
Pelo
menos,
é
fundamentalmente por isso que a cultura medieval é lembrada. Até as grandes
realizações físicas dessa era, como suas magníficas catedrais, eram projetos
religiosos, cujo objetivo último era o enriquecimento da alma cristã. Mas no
último meio milênio -a partir do Renascimento e, de maneira mais acentuada, da
"revolução científica" do século XVII -, ocorreu uma profunda mudança, tendo a
atenção ocidental se desviado cada vez mais do conceito teológico de alma para
a concretude física do corpo. Desde o Iluminismo, no século XVIII, vivemos
numa cultura que tem sido esmagadoramente dominada por preocupações não
espirituais, mas materiais. Em suma, no Ocidente moderno vivemos numa era
profundamente materialista e fisicalista...”
79
Werthein, op. cit., p.23.
86
Tomando o partido da “alma”, o período medieval concebe o espaço
cosmológico de maneira finita: Deus ao centro e uma hierarquia entre plantas,
homens, divindades e todos os seres “celestes”. Os pilares medievais são abalados
quando o homem se apercebe de que há algo mais além da alma: o “vazio” é muito
grande e, no que concerne à fé, a concentração de todos os poderes celestiais em uma
única figura ou pessoa passa a ser questionada.
Os avanços da ciência estendem o espaço ao infinito, conflitando com a visão
finita do cosmo. O mundo passa a ser entendido como uma vasta e complicada
máquina, o espaço é entendido perceptivamente de maneira lógica, racional, e
promove novas mudanças religiosas. A dúvida e o questionamento lançados por
Descartes com seu método cartesiano e seu cogito inauguram uma época científicapragmática.
Com relação a Descartes, Werthein assinala que esse filósofo foi
caracterizado como arqui-racionalista. No entanto, como todos os fundadores do
mecanicismo, Descartes era um homem profundamente religioso, que acreditava
sinceramente na alma cristã. Para conciliar sua ciência mecanicista à sua crença na
alma, Descartes deu um passo filosófico radical. Propôs que a realidade era separada
em duas categorias distintas: a res extensa - o domínio fisicamente extenso da
matéria em movimento -, e a res cogitans - domínio imaterial dos pensamentos,
sentimentos e da experiência religiosa. O objetivo da nova ciência mecanicista era
descrever apenas as ações de corpos materiais no espaço físico; assim, aplicava-se
unicamente à res extensa.
87
Fica claro, desta forma, que o mecanicismo foi uma filosofia de natureza
genuinamente dualista. Tal como o pensamento medieval, conferia realidade tanto ao
corpo quanto à alma. Descartes duvida da realidade objetiva e insiste que tudo não
passa de ilusão e que, de alguma forma, “sonhamos sentir a realidade”. Para colocar
um ponto final nessa dúvida do sentir, estabelece o método cartesiano e busca um
ponto paradigmático, estabelecendo:
“Finalmente, considerando que os mesmos pensamentos que temos quando
acordados podem ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja então um só
verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que outrora me entraram no
espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas,
logo depois, observei que, enquanto pretendia assim considerar tudo como falso,
era forçoso que eu, que pensava fosse alguma coisa. Percebi, então, que a
verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que nem mesmo as mais
extravagantes suposições dos céticos poderiam abalá-la. E, assim julgando,
concluí que poderia aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da
filosofia que buscava”80.
Com Descartes, o “Eu” é colocado em dúvida com o sentir “real”. Ao fim da
Idade Média o conceito de “alma” era impregnado por “emoções”, ainda não havia a
noção de “psique”, e o purgatório constituía-se em um trânsito, uma “entidade” entre
inferno e céu. No inferno medieval as “almas” permaneciam imobilizadas,
congeladas; o purgatório, àquela época, era o “local” em que os pecados eram
purgados, levando as almas a adquirirem mobilidade, libertando-as do “peso” do
corpo, da carne; no “céu” medieval as almas não tinham matéria e circulavam livres
dos pesados entraves da terra.
80
Descartes (2001), p.41-42.
88
A REVOLUÇÃO NAS CIÊNCIAS E A VISÃO ESPAÇO-TEMPO MODERNA
A noção de espaço que prevalecia na Idade Média vinha de Aristotóles, que
tinha horror ao vácuo, ao vazio que hoje chamamos de espaço vazio. O “nada” era
inconcebível, e um “nada” com volume era ainda mais assustador. Assim, a noção de
espaço como superfície resolvia os problemas, e tudo aquilo que envolvia os objetos
era tido como superfície espacial. Para Aristóteles, não havia vácuos com volumes e
profundidades. Até mesmo a atmosfera da terra era fonte de questionamento e de
dúvidas para o homem medieval. A noção de profundidade e de perspectiva ganha
força com os pintores renascentistas, e conceitos de matemática e de geometria são
estabelecidos sobre o assunto.
As cruzadas cristãs, implementadas na Idade Média, praticamente
impossibilitaram a civilização ocidental de conhecer a matemática do mundo árabe,
que de há muito mantinha contato com outros povos que admiravam e estudavam o
cosmo, como os babilônios e os egípcios. Mas, graças às invasões dos mouros, as
regiões localizadas ao Sul da Europa Ocidental tiveram contato com a filosofia, a
poesia, a astronomia81 e a geometria dos povos árabes. Do contato europeu com a
cultura árabe possibilitou a fundação das universidades francesas e espanholas. Com
o renascimento a Europa afasta a influência árabe e conhece um grande avanço
cientifico. A cisão entre o nomadismo e o sedentarismo separa as turbas dos
agrupamentos urbanos e o xamanismo, a magia e a cura ficam subjulgados e
ofuscados pelo renascimento científico.
81
Os turcos, mouros e árabes tinham conhecimento da navegação através da geometria astronômica medidas
com pequenas madeiras e mapas estrelares assim conseguiam verificar o ângulo dos astros em relação a
Terra, obtendo a latitude e longitude no mar.
89
O Renascimento altera a visão de mundo: a função físico-mecânica toma o
lugar da visão mística. Com o italiano Galileu Galilei o espaço deixa de ter a função
única de ascender a Deus. Os “corpos” percorrem o espaço vazio sem emoções ou
sentimentos, mas observados por um ponto de vista físico - “um olhar de fora” -; o
espaço torna-se homogêneo, e sofre a ação de forças puramente físicas. Para Galileu
tudo era matéria e vazio, massa e movimento, em um espaço e um tempo puramente
físico-euclidianos. A base dessa visão cosmológica – que ainda hoje norteia nossas
vidas - foi fundamental para o renascimento, e enterrou a dualidade medieval entre
espaço terrestre e espaço celeste. As primeiras postulações do grego Pitágoras sobre
a escala musical foram (re)elaboradas pelos seus seguidores, como Zarlino e Galileu:
“Zarlino
provavelmente
percebeu
que
o
pitagorismo
não
explicava
satisfatoriamente as consonâncias musicais; porém, a fim de não ir de encontro
a esta concepção, estabeleceu o Senário como uma generalização da idéia
pitagórica que "explica”', segundo a idéia de racionalidade para o autor
italiano, as consonâncias imperfeitas. A estrutura de pensamento de Pitágoras
não difere substancialmente daquela subjacente às idéias de Zarlino. Apesar de
suas inovações, esse novo modelo respeita, ainda, a idéia de um sistema musical
sustentado por relações de frações simples, cerne do pitagorismo no âmbito
dessa arte, ao mesmo tempo que explica as consonâncias, ampliando o domínio
matemático subjacente à música. A luz da organização teórica apresentada no
capítulo II, poder-se-ia interpretar que o dogmatismo a ritmético de Pitágoras
"trunca” regiões da rede até que idéias tais como a concepção de consonância
de Galileu "gatilhassem" o desenvolvimento dos conceitos matemático-musicais
rumo à construção do conceito de Temperamento. Como analogias implícitas, o
momento científico/artístico vivido por Zarlino propiciou-lhe estabelecer
modificações na abordagem da ciência/música de então. A matematização, a
experimentação e a mecanização, assim como possíveis outras características
da Revolução Científica, contribuíram de maneira significativa para a
insatisfação produzida pelo Senário de Zarlino, tanto na definição como
90
justificativa da questão da consonância. Com a ressonância desses três novos
pontos de vista científicos em distintos campos, o problema da consonância.”82
O Renascimento coloca definitivamente o “olho/mente” sobre os astros
através do telescópio, que afeta o calendário e o próprio território. Um “novo
mundo” é descoberto: o comércio com as colônias é ampliado e nasce a ciência que
tem, como paradigma espacial, os círculos celestes elípticos e o sol ao centro. A
matemática e a música assumem novas afinações, consonâncias e temperamentos83.
O heliocentrismo destrói a distinção entre terra e céu do período medieval, e
coloca a visão moderna de um espaço físico concreto. As cosmologias de Copérnico,
Kepler, Galileu e Descartes serão completadas por Newton, com sua teoria de
atração entre os corpos: a gravidade. Onde há matéria há gravidade; onde há
gravidade deve haver massa.
A REVOLUÇÃO NAS CIÊNCIAS E A VISÃO ESPAÇO-TEMPO PÓS- MODERNA
O conceito newtoniano de espaço foi questionado por Hubble, que lançou a
teoria do dinamismo cósmico, que postula que as estrelas afastam-se da terra a
grandes velocidades. Hubble mediu a distância entre as nebulosas e a terra através do
brilho das estrelas pulsantes, que funcionam como fita métrica cósmica. Dessa
maneira, conseguiu medir a luz avermelhada das nebulosas afastando-se dos
planetas, atingindo um diagrama que traçava a expansão cósmica. Essa descoberta
despedaçou a visão estática do universo pois, se as galáxias afastam-se umas das
82
Abdounur (1999), p.232.
83
O temperamento é uma acomodação entre os tons das notas musicais, os instrumentos e as escalas musicais.
No piano de cauda, por exemplo, as teclas obedecem a uma relação entre tons e semi-tons compatível com as
oitavas: por isso a cauda tem a mesma aparência de um gráfico logarítmico. Para que os instrumentos se
afinem entre si eles têm que ter o mesmo temperamento musical.
91
outras, elas devem ter tido algum “inicio”, quando provavelmente eram únicas – o
Big Bang.
Também Einstein, com o “ponto de vista relativo” do universo em
movimento e suas equações, colocou em cheque a teoria do cosmo absoluto de
Newton. Einstein descobriu que o espaço adquire “dobras” que podem distorcer o
tecido temporal. Tais “dobras” estão relacionadas à massa do espaço: quanto mais
matéria ele tem, maior sua curvatura; se não há matéria, ele tende a se abrir. Mais
recentemente, Stephen Hawking lançou a teoria dos “buracos negros”, que postula
que as depressões espaciais “sugam” a matéria; essa teoria foi mais tarde confirmada
pelo telescópio espacial Hubble, lançado pela NASA. Hoje, a visão cosmológica vem
confirmando teorias formuladas anteriormente sem as lentes do Hubble, que
ampliaram significativamente o conhecimento do homem sobre o universo.
“A teoria da relatividade se aplicaria em ambos os sentidos. À medida que o
campo gravitacional se intensificasse, o espaço-tempo, a matéria e a radiação se
concentrariam. À medida que o campo gravitacional se expandisse e se
debilitasse, o espaço-tempo se desprenderia e a matéria se espalharia. Hawking
conseguiu demonstrar que deve ter havido, no passado distante, uma
singularidade que originou o tempo. E se o universo parasse de se expandir e
começasse a se contrair, finalmente explodiria e terminaria em uma
singularidade -o famoso “big crunch". Já não se tratava do que acontecera
antes do começo do universo ou do que iria acontecer depois que ele terminassepois nessas circunstâncias não havia tempo. O espaço também seria nãoexistente, assim como a matéria”84.
Heisemberg e Bohr demonstraram que é impossível a um observador medir
um objeto sem interferir sobre ele. O objeto não é mais o mesmo depois de aferido.
O “real“ é (re)elaborado pela física quântica. Matéria e não-matéria trazem de volta o
84
Strathern (1998b), p.42.
92
dualismo que, agora termodinâmico, mostra o universo em desequilíbrio e
irreversível. As teorias da irreversibilidade, da casualidade e da relatividade abalaram
a física clássica newtoniana e mostraram que o universo é um sistema entrópico e
dinâmico. Cria-se a noção de outras dimensões, e surge uma nova dualidade - muito
semelhante àquela da separação entre alma e matéria do período medieval - entre
matéria e não-matéria (energia). Iniciamos o hightech ou transmodernismo, com
mais de dez dimensões descobertas pelas equações matemáticas e confirmadas pela
física moderna. Neutrinos, antimatéria, espaços moleculares, dobras do tempo, flecha
do tempo, microdimensões e superforças integram um conjunto de equações da
matemática atual e de teorias que vêm ocupando os filósofos, físicos e matemáticos.
O mundo de hoje é bem mais complexo do que imaginávamos, mas a alma humana
permanece no medievalismo dual, agora em conflito entre o corpo do espaço físicomatemático e seu “duplo eletrônico” do espaço virtual.
A melhoria dos sistemas de telepresença e tele-realidade permuta
teletopologicamente o espaço real, como afirma Virilio:
“Fusão/confusão das aparências transmitidas e das aparências imediatas, luz
indireta capaz de suplantar em breve a luz direta, luz artificial da eletricidade, é
claro, mas antes de mais e essencialmente luz natural, com as revoluções
perceptivas que tal pressupõe... O advento do trajeto instantâneo e ubíquo é,
portanto, o advento da luz do tempo, desse tempo intensivo da eletro-óptica que
suplanta definitivamente a óptica passiva tradicional.
O mais provável, no entanto, é que o estatuto da realidade não resista por muito
tempo a esta súbita iluminação dos lugares, dos fatos e dos acontecimentos. De
fato, se a melhoria da definição espacial das lentes ópticas das objetivas das
câmaras promove a visão dos contrastes e aumenta a luminosidade da imagem
habitual, a recente melhoria da definição temporal dos processos de captação
de imagem e de transmissão eletrônica aumenta a nitidez, a resolução das
imagens videoscópicas. Deste modo, a velocidade audiovisual serve para ver,
93
para ouvir, ou por outras palavras para avançar na luz do tempo real, como a
velocidade automóvel dos veículos servia para avançar na extensão do espaço
real de um território”85.
Segundo o autor, a velocidade audiovisual – agora com a transparênciaaparência eletroóptica - avança no tempo e no espaço com a velocidade do
automóvel. A transparência e a luz numérica dos sistemas digitais “iluminam”
globalmente os ambientes, criando a ilusão de “falso dia”. Essa angústia “iluminada”
desprende o “duplo eletrônico” para outros espaços “proxêmicos”, estabelecendo
novos laços com o corpo e, portanto novas identidades. Ocorre que as novas
identidades podem estranhar o corpo físico ou “somatizá-lo”, potencializando suas
habilidades. A imersão digital promove a “angústia” ou o “distúrbio eletrônico” do
corpo, que sente seu peso físico e suas limitações. Da mesma forma, o que acontece
ao corpo pode ser transferido para a sociedade, e uma sociedade que se virtualiza
rapidamente tende a potencializar a “angústia”. Entretanto, ainda há sociedades e
pessoas excluídas da imersão digital, que têm habilidades motoras diferentes e
cognições distintas, o que pode levar-nos a uma visão romântica e equivocada,
considerando-as atrasadas, mas felizes.
O URBANO E A SOCIEDADE TRANSMODERNA
Influenciado pela geometria não euclidiana e pelos artistas franceses do
cubismo, Marcel Duchamp é o primeiro artista “urbano” preocupado com o ser e o
sentir urbanos, em busca da “quarta dimensão”. Refugiado na Nova Iorque do pósguerra, o intelecto sofisticado de Duchamp elabora o Grande Vidro - uma gênese
85
Virilio (1993), p.20.
94
dividida ao meio: na metade superior está a noiva, e na metade inferior está a
máquina de solteiros.
Inspirado pelo seu errante vagar entre ruas, barracas de feira e vitrines dessa
cidade - com vitrines impessoais, grandes anúncios de supermercados, promoções e
estrelas do cinema hollywodiano - Duchamp compôs secretamente sua obra, que é o
“reflexo” da solidão urbana sob a óptica de um inteligente aristocrata europeu86.
No grande vidro está colocadas em “reflexo” o “eu-maquímico”, que pode ser
traduzido por urbano-industrial. Essa obra espelha uma sociedade que acelera seus
signos sob ruas, feiras, vitrines e supermercados: o esfacelamento do “eu”
provinciano e aristocrata para o “eu urbano” solitário, anônimo e dinâmico.
Duchamp adotou pseudônimos para colocar sua obra nos museus tradicionais,
que odiava . Soube construir, através de seus readymades, uma espécie de anti arte,
um signo invertido: uma informação trocada propositalmente, semelhante aos vírus
cibernéticos, muito antes de surgir o primeiro computador. A sobreposição de signos
diferentes acabava por anular o próprio significado dos objetos que, uma vez
86
Paz (1997), p.31: “...A Noiva despida por seus celibatários é um vidro duplo, de dois metros e setenta
centímetros de altura e um metro e setenta centímetros de largura, pintado a óleo e dividido horizontalmente
em duas partes, O idênticas por um fio de prumo. Na parte mais alta da metade superior, domínio da Noiva,
flutua uma nuvem de cor acinzentada. Via Láctea. Segundo Carrouges também é uma crisálida, forma
anterior da Noiva-libélula; Roché, por outro lado, vê na nuvem uma espécie de crocodilo gasoso. A Via
Láctea envolve três tabuletas, semelhantes às que se usam nos estádios para marcar a "pontuação" das
equipes ou nos aeroportos para avisar a chegada e saída dos aviões. Estas tabuletas são o Letreiro de Cima;
sua função consiste em transmitir aos solteiros as descargas da Noiva -seus mandamentos. Para Roché são o
"Mistério Original, a Causa das Causas, uma Trindade de caixas vazias". Um pouco abaixo do Letreiro de
Cima, na extrema esquerda, aparece a Noiva.t!. uma máquina (agrícola, esclarece Duchamp; alusão a
Ceres?}. Também é um esqueleto, um motor, um corpo oscilante no espaço, um inseto terrível, uma
encarnação mecânica de Kali e uma alegoria da Assunção da Virgem. Duchamp disse que é a sombra em
duas dimensões de um objeto de três dimensões que, por sua vez, é a projeção de um objeto (desconhecido)
de quatro dimensões: a sombra, a cópia de uma cópia de uma Idéia. A esta visão platônica se superpõe
outra: Lebel pensa que a quarta dimensão designa o instante do abraço carnal durante o qual o par funde
todas as realidades em uma -a dimensão erótica. Omito a descrição da complicada morfologia dos órgãos
que compõem a Noiva, tais como o emissor e o receptor de ondas dirigido para o grupo de solteiros. Na
extrema direita da parte superior há uma zona de pontos: são os disparos dos solteiros. Duchamp não pintou
outras duas partes: a roupa da Noiva sobre o fio de prumo e, para o centro e a direita, o Vigilante ou
Maquinista da Gravidade. ..”
95
colocados em “contato” com o observador, assumiam uma outra “entropia”, e
irreversivelmente corrompiam, a noção de espaço, de museu e de crítica.
Duchamp conclui:
“A figura engendrada pela linha geratriz, qualquer que seja ela, não pode ser
chamada direita ou esquerda do eixo. E há mais: à medida que o eixo gira, o
verso e o anverso adotam "uma significação circular". O fenômeno afeta não
somente o interior e o exterior, mas o próprio eixo, que deixa de ter "uma
aparência unidimensional". O signo da concordância, ao girar sobre si mesmo,
anula-se como aparência: entra em si mesmo e resolve-se numa pura
possibilidade. f: a outra dimensão.
Lugar de convergência do erotismo, da metaironia e da meta física, o signo de
concordância, engloba-nos também: é o vidro que nos separa do objeto
desejado e que, simultaneamente, torna-o visível. Vidro da alteridade e da
identificação: não podemos quebrá-lo nem iludi-lo porque a imagem que nos
revela é nossa própria imagem no momento de vê-la vendo. De certo modo, as
Possibilidades e a própria aparência dependem de nós e nós delas. Entre os
"vários fatos" que, "sob certas leis", condicionam "o instantâneo Estado de
Repouso ou Aparência alegórica”, estamos nós observando através do vidro ou
dos furos da porta.
A mesma oposição/conjunção entre o espectador e a obra, o olho e o objeto
olhado, estabelece-se entre a linha que desenha a mão e o signo que traçam o
compasso e a régua.Duchamp desvaloriza a Arte como ofício manual em favor
da Arte como Idéia mas, por sua vez, a idéia vê-se sem cessar negada pela
ironia. Os objetos visuais de Duchamp são a cristalização de uma idéia e sua
negação, sua crítica. A ambivalência do vidro, o signo que é separação /união,
aparece também neste domínio.”87
Para Werthein, a quarta dimensão de Duchamp fundamenta que a procura por
“outras dimensões” está relacionada à crise da física clássica, ao advento das novas
geometrias e aos movimentos artísticos sintonizados com essa “procura” espacialtemporal.
87
Paz, op cit., p.93-94.
96
“O pintor que levou esse desafio mais a sério foi Marcel Duchamp.
Originalmente associado aos cubistas, Duchamp logo se desviou por suas
próprias sendas peripatéticas. Sua obra mais famosa, como a de Malevich, foi
também inspirada pela quarta dimensão. The Bride Stripped Bare By Her
Bachelor, Even, muito conhecida como The Large Glass, é certamente uma das
obras do cânone moderno que suscitam mais reflexão; e desta vez temos
extensas notas do artista detalhando o processo de gênese. Especificamente,
sabemos que, ao se preparar para esse trabalho, Duchamp se lançou no estudo
das geometrias não-euclidiana e hiperdimensional. O resultado final desse
esforço foi uma obra complexa, dividida em duas metades distintas: na metade
de cima está a noiva, e na de baixo a "máquina de solteiros". Segundo as notas
de Duchamp, a noiva seria uma entidade quadridimensional, enquanto os
solteiros são tridimensionais. Flutuando acima de seu séquito, essa esposa
hiperespacial paira enigmaticamente num mundo só dela”88.
Quando a teoria da relatividade incorporou subitamente o conceito de quarta
dimensão à realidade física, a especulação artística, literária e mística voltada a ela
produziu uma deliciosa sensação de sincronia. Essa harmonização entre matéria e
não matéria modificou a visão cósmica do mundo, a física, a matemática, as artes e a
filosofia.
A busca solitária por outra geometria e - por analogia - por “outra dimensão”
faz parte da inquietação de Duchamp, artista da vanguarda intelectual francesa
perdido no “reflexo impessoal das vitrines”, no estereótipo das estrelas de sucesso
rápido do cinema, nas famosas ruas de Nova Iorque que, ao invés de nomes são
identificadas por números, para facilitar sua localização pelo “estrangeiro”. Nasce
aqui a crítica ao “gosto retiniano”, contra a marca da “fábrica”, da “linha de
montagem”, contra os cânones “esteticamente corretos”, que jogou por terra os
pedestais da arte e da crítica mercadológica.
88
Werthein, op cit., p.147.
97
Inicia-se, também, a luta pelo higienicamente identificatório, por uma
identidade pessoal contra a corrente de signos acelerados, da “arte sensação” contra a
“arte mercadoria”. A nova cognição - gestor das novas vanguardas e das novas tribos
- une Duchamp à música (John Cage), à performance, à “vivência da obra”
estabelecendo uma multiciplidade de “pontos de vista” do observador-artista. A obra
de arte passa do retiniano (pintura) para a performance, em que os objetos são
vivenciados dentro de seu contexto neutro, sem a repetição degradante do “estilo”.
“A repetição do ato acarreta uma degradação imediata, uma recaída no gosto. (
Algo que esquecem com freqüência os imitadores. ) Desalojado, fora de seu
contexto original -a utilidade, a propaganda ou o adorno – o ready-made perde
bruscamente todo significado e se transforma em um objeto vazio, em coisa em
bruto. Só por um instante: todas as coisas manipuladas pelo homem têm a fatal
tendência a emitir sentido. Mal se instalam em sua nova hierarquia, o prego e a
prancha sofrem uma invisível transformação e se tornam objetos de
contemplação, estudo ou irritação. Daí a necessidade de "retificar" o readymade: a injeção de ironia ajuda-o a preservar o seu anonimato e
neutralidade”89.
Ora, o que o urbano faz é reduzir todos a um grau zero de anonimato, à
neutralidade hierárquica dos “bens sucedidos”, dos que “se deram bem”. A
“retificação” do ready-made é uma busca pela não-significação neutra, carregada de
um significado oculto, ou seja, a busca de um “outro olhar”, uma nova perspectiva,
uma nova definição espacial-temporal. Justifica-se, dessa forma, a busca por outras
dimensões e por uma nova geometria. Esse “gestor” do novo olhar-identificatário
estará presente nas vanguardas pós-modernistas, cuja produção artística incorpora
novos pontos de vista, inclusive o do observador. Só o humor refinado e sutil de
Duchamp e a música aleatória de Cage poderiam romper com a pintura e a música de
89
Paz, op. cit., p.24.
98
deleite, abrindo caminho para o signo acelerado, extracotidiano e de difícil
intelecção: a performance. Esse rompimento com o temperamento e a harmonia
musical e pictórica induz ao retorno do xamanismo e do tribalismo.
“Na música, o público escuta o intérprete, que por sua vez escuta o compositor,
que escuta, ele mesmo, os sons. Mas ouvir os sons é finalmente o que o público
está fazendo. E se fizermos um curto-circuito? Fazendo música de maneira a
simplesmente ouvir os sons sem escrevê-los, sem seguir as regras da
justaposição e da superposição de sons exigidas pelos próceres da música.
Compor a partir da própria qualidade de cada som, e não das relações que eles
acabam criando uns com os outros, pode ser uma alternativa estimulante... Na
música tradicional ocidental, as durações são interpretadas como múltiplos ou
frações numéricas. É um espelho da teoria dos harmônicos, que deu nascimento
a valores racionais, suscetíveis de serem medidos e controlados. Nas músicas
não métricas (Cage, Feldman, Wolf o fizeram em 1950), durações não devem ser
controladas, e sim os sons escutados, sem ter de se pensar que um som está
ligado a outro, seja por relações lógicas ou hierárquicas, seja por linhas
estruturais concernentes ao que se segue ou ao que lhe precede. Não será
melhor simplesmente “entrar" no som e deixá-lo ter sua própria duração?”90.
O vagar errante sob a aceleração dos signos de Duchamp em solo estrangeiro é o mesmo das tribos urbanas.
O não ajustamento e o vagar dos migrantes nordestinos em São Paulo submetem-nos à solidão, à falta dos amigos
e à pressão da cidade urbana cosmopolita e sua velocidade. Embora a obra de Duchamp tenha sido realizada
solitariamente, abriu caminho às vanguardas, levando as artes plásticas a unirem-se à música casual e à
performance. O pós-guerra em Nova Iorque, com Duchamp, permitiu a aproximação entre a propaganda e a arte,
entre a performance artística e a política, entre a música e o corpo em “angústia” e dinâmico.
A performance é uma maneira que o indivíduo (ou o grupo) tem de se fazer
visível e impor sua presença ao anonimato da cidade. Os grupos urbanos sabem
muito bem territorializar suas roupas, modos, gírias e mostrá-los de maneira
imperativa ao “outro”, que contempla tanto as outras tribos como a própria cidade,
promovendo um diálogo sem mediações com os instintos viscerais: o corpo.
90
Silva (1996), p.76.
99
A FORMAÇÃO DAS TRIBOS E DOS GUETOS URBANOS
As cidades sedentárias confinam e protegem ao mesmo tempo. Com a
urbanização e os novos meios de comunicação, a velocidade, o tempo e o espaço
urbanos são modificados. Ocorrem a atomização e a individualização da sociedade
que há muito tempo age egocentricamente, induzida pela cultura de massa e pelo
consumo de produtos alienantes. Um movimento contrário faz com que surjam
grandes centros comerciais nos quais, individualmente, sentimos a presença dos
outros:
Aliás é possível que os centros comerciais pós-modemos tenham assumido um
modo de descarregar essa tensão. Esses centros não exercem uma função
simplesmente utilitária. Certamente vai-se a eles para fazer compras, mas não se
deixa de ir lá também para trocar símbolos. Uma análise do fórum des Halles,
em Paris, ressalta bem essa dimensão simbólica. Isso merece tanto mais atenção
por se tratar de um espaço matricial, ainda mais por ser um subterrâneo, um
refúgio e um lugar de exílio para o nômade pós-modemo. Através dos objetos
expostos como espetáculos, do ambiente específico que criam, e certamente dos
encontros, ou simplesmente do roçar de corpos que aí se dá, esse nômade vive
uma espécie de embriaguez: a da perda de si num conjunto quase cósmico. Em
seu sentido mais forte, esse espaço urbano, síntese da cidade, resumo do mundo,
é um perfeito cadinho: lugar onde se cria raiz e a partir do qual a pessoa cresce
e se evade. Lugar onde se expressa a empatia em relação aos outros, lugar de
onde se escapa, imaginariamente, para atingir a alteridade absoluta”91.
Os jovens, revoltados pela falta de espaços em que possam desenvolver
atividades de lazer cultural e pela feroz vigilância dos pais 92, muitas vezes apelam
91
Maffesoli (2001), p.89.
92
Tappscott em A Geração Net (1999), fala da diminuição do espaço para brincadeiras: “...À medida que
aumenta a densidade populacional, o espaço livre para as crianças diminui. Há um século, o típico menino
americano tinha um espaço médio para brincar de 15 quilômetros quadrados de florestas ou pradaria. O
espaço vem diminuindo a um ritmo constante ao longo das décadas.... .... Os meninos parecem ser mais
afetados por essa diminuição de espaço do que as meninas. “Os folguedos das meninas tradicionalmente
sempre ocorrem sob supervisão materna e são direcionados ao desenvolvimento de habilidades domésticas
femininas” diz o Prof. Jenkins... ...Grande parte do desenvolvimento dos meninos como indivíduos dependia
100
para o radicalismo, assumindo comportamentos coletivos e estereotipados que
chocam, mutilam, segregam e discriminam.
O espaço urbano, sempre constituído de signos acelerados, adota e recolhe as
tribos, as hordas de moribundos, os sem-teto, os camelôs, os condomínios, as favelas,
os mocambos, os desempregados e os excluídos. Os excluídos e seus patrões
constituem as cidades sedentárias: um corpo protegido, uma cultura e uma moeda a
se fortificar e espalhar suas fronteiras. E, nesses mesmo espaço surgem as tribos
urbanas, constituídas por pequenos grupos cujos integrantes têm afinidades, como o
comportamento anômalo e as tendências nômades e polarizantes.
O fato é que as cidades incorporam vários “quotidianos”, que acabam por
formar um mosaico urbano de tendências variadas. Essas tendências moldam um
corpo visível em seus cidadãos, e os quotidianos são trocados onde há comunicação,
convergências.
Para Heller (2000), a vida quotidiana apóia-se nos conceitos de
espontaneidade, pragmatismo, economicismo, andologia93, precedentes, juízo
de atividades que suas mães desaprovassem e que eles pudessem fazer sem o conhecimentos delas. Agora,
eles estão jogando videogames na sala de estar e suas mães sabem de tudo....” (p.107).
93
Andologia Agnes Heller é a movimentação da individualidade relativa e autônoma do indivíduo na
sociedade: “o indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano-genérico que
funciona consciente e inconscientemente no homem. Mas o indivíduo é um ser singular que se encontra em
relação com sua própria individualidade particular e com sua própria genericidade humana; e, nele,
tornam-se conscientes ambos os elementos. É comum a toda individualidade a escolha relativamente livre
(autônoma) dos .elementos genéricos e particulares; mas, nessa formulação, deve-se sublinhar igualmente os
termos "relativamente" .Temos ainda de acrescentar que o grau de individualidade pode variar. O homem
singular não é pura e simplesmente indivíduo, no sentido aludido; nas condições da manipulação social e da
alienação, ele se vai fragmentando cada vez mais "em seus papéis". O desenvolvimento do indivíduo é antes
de mais nada -mas de nenhum modo exclusivamente -função de sua liberdade fática ou de suas
possibilidades de liberdade. A explicitação dessas possibilidades de liberdade origina,em maior ou menor
medida, a unidade do indivíduo, a "aliança" de particularidade e genericidade para produzir uma
individualidade unitária. Quanto mais unitária for essa individualidade (pois essa unidade, naturalmente, é
apenas tendência, mais ou menos forte, mais ou menos consciente , tanto mais rapidamente deixa de ser
aquela muda união vital do genérico e do particular a forma característica da inteira vida. A condição
ontológico-social desse resultado é um relaxamento da relação entre a comunidade portadora do humanogenérico e o próprio indivíduo, o qual -já enquanto indivíduo -dispõe de um certo âmbito de movimento no
101
provisório, ultrageneraliazação, mímese e entonação. Vejamos o que a autora nos
traz sobre a mímese e a entonação:
“Não há vida cotidiana sem imitação. Na assimilação do sistema
consuetudinário, jamais procedemos meramente "segundo preceitos", mas
imitamos os outros; sem mimese, nem o trabalho nem o intercâmbio seriam
possíveis. Como sempre, o problema reside em saber se somos capazes de
produzir um campo de liberdade individual de movimentos no interior da
mimese, ou, em caso extremo, de deixar de lado completamente os costumes
miméticos e configurar novas atitudes. Naturalmente, existem na vida cotidiana
setores nos quais não é necessária a individualização da mimese, bem como
épocas nas quais ela se toma supérflua; ademais, os tipos e os graus de
individualização são necessariamente diversos nas várias esferas vitais, nas
diferentes épocas e situações. A entonação tem uma grande importância na vida
cotidiana, tanto na configuração de nosso tipo de atividade e de pensamento
quanto na avaliação dos outros, na comunicação, etc. O aparecimento de um
indivíduo em dado meio "dá o tom" do sujeito em questão, produz uma
atmosfera tonal específica em torno dele e que continua depois a envolvê-lo.94”
Desta forma, a identificação feita pela repetição, pela imitação e pela
entonação induzem a polarização, fechando um grupo que “se vê” em conjunto.
A polarização é constituída pelo somatório de “eus”, que formam elos que
podem assumir caráter identificatório, como arte e moda, comportamentos agressivos
e violentos, gírias e comportamentos fechados, comandos, galeras e outras tribos.
Vejamos como Martin Heidegger trata a questão do ser-estar-existencial com
seu conceito de “débito”:
qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas.
A conseqüência disso é uma certa distância, graças à qual o homem pode construir uma relação com sua
própria comunidade, bem como uma relação con1 sua própria particularidade vivida enquanto "dado"
relativo”(p.22).
94
Heller (2000), p.36.
102
“De imediato, a compreensão cotidiana toma o “ser e estar” no sentido de uma
“dívida”, de “ter o rabo preso com alguém”. Deve-se restituir a outrem algo a
que ele tem direito. Esse “estar em débito” no sentido de “ter dívidas” é um
modo de ser-com os outros no âmbito da ocupação são também o retirar, o
tomar emprestado, reter, roubar, ou seja, de algum modo, não satisfazer o
direito de posse dos outros. O ser e estar em débito dessa natureza refere-se ao
que é passível de ocupação” 95.
Na polarização urbana motivada pela “angústia” os grupos mantêm-se por
meio de “dívidas”, “compromissos” e “tarefas” que são cobradas e nunca se findam,
mantendo o indivíduo preso à tribo. Dessa forma, sempre há “o que poderia ser”,
distante do “real”. O conceito de débito torna-se ontológico e justifica a existência,
conforme postula Heidegger. O deslocamento do “ser-fundamento de um nada” faz
com que o reconhecimento da existência seja justificado pela carência do “eu”
espelhado na “exigência do outro”, que não é a sua. Esse “não-seu” motiva as tribos
a uma busca de identidade através do primordial.
As tribos se formam deslocadas do território-instituído e despatriadas,
buscam um solo materno atrás e o vetor cultural que as identifique é procurado no
passado. O território da tribo por nós estudada - calcada na música percussiva - é a
“Terra Mãe”. Esse processo de inversão urbana é um fator de polarização. A inversão
urbana que se iniciou com Duchamp contesta de forma “angustiada” o sistema que a
gerou. A arte moderna, por princípio, contesta e se manifesta contra a mercadoria,
contra o sistema, contra o próprio corpo. As performances pós-modernas são
escatológicas e viscerais. No meio urbano o processo é o mesmo: a formação dos
guetos e das tribos está ligada à rebeldia e à contestação da ordem estabelecida, à
busca por outros estados cognitivos, que aliviem a “angústia” e possam preencher o
95
Heidegger (1993), p.69.
103
cotidiano. Vimos, de Pitágoras a Duchamp, que o aprofundamento da geometria e da
matemática leva ao aprofundamento estético que explica o mundo percebido. Esse
fato sutil motivou-nos a analisar a questão da “busca às raízes” dos grupos urbanos
ligados ao maracatu e à música percussiva. Comparando essas tendências com a
música dos grupos das raves, identificamos um vetor cultural ligado à música tribal
xamânica, que induz e provoca êxtases por causa do ritmo, do timbre, das
dissonâncias, do contraste entre sons graves e agudos e da repetição. Assim,
elaboramos um quadro sonoro comparativo, adiante apresentado, para identificar as
relações entre o transe e a música.
104
CAPÍTULO 3
O GRUPO URBANO BAQUE BOLADO E O TRANSE
INFLUÊNCIAS E RAÍZES DO TRANSE XAMÂNICO POSSESSIVO
Nos capítulos anteriores vimos a relações espaciais-temporais e as
implicações da consonância e da geometria das turbas até a transmodernidade.
Observamos o dualismo medieval da “alma”, e como a humanidade chegou ao
materialismo. Debruçamo-nos sobre a “angústia” urbana, e vimos como o corpo se
une aos grupos para encontrar no “outro” a sua identidade, estabelecendo o “duplo”
em tribo. Neste capítulo tentaremos entender como o xamanismo vem sendo
retomado pelas tribos urbanas na transmodernidade.
Para melhor compreender o transe no grupo Baque Bolado, é necessário
conhecer a influência africana, cuja cultura tem forte ligação com as montanhas
Atlas, localizadas no norte do Marrocos. A vinda forçada de escravos africanos trazidos por portugueses, ingleses, espanhóis e franceses às Américas durante o
período colonial - garantiu a influência da África sobre o transe possessivo no Brasil
e no Caribe. As etnias africanas eram muitas, e foram dispersas ao longo da costa
Atlântica. Alguns escravos eram seguidores do islamismo, e tentaram manter e
fortificar suas crenças no Brasil. A revolta dos malês, que ocorreu em Salvador, é um
105
exemplo de rebelião de escravos de cultura islâmica. O sufismo96 é uma das
correntes do islamismo. Originário da Ásia Central, disseminou-se pelas antigas rotas
das turbas nômades do Egito até norte da África (Argélia, Tunísa, Líbia e Marrocos).
Após trocas, naufrágios, saques e guerras, as populações que seguiam essa linha
foram trazidas às terras atlânticas no período colonial. Dentre as práticas sufistas está
a música que, pela sua repetibilidade e pelos giros hipnóticos dos derviches, conduz
ao transe .
Como anteriormente mencionamos, as músicas, cantos, danças e rituais que
induzem ao êxtase acompanharam as turbas nômades, no tribalismo e em algumas
religiões anteriores ao cristianismo, que até hoje persistem nas culturas chinesa,
japonesa, indiana e tibetana. Tais religiões – como o hinduísmo, p islamismo e o
budismo97, contemplam inúmeras ramificações.
Dentre as correntes do islamismo há aquela dos sufistas derviches 98 (os
vermelhos)99 das regiões desérticas da Ásia Central, que desenvolveram o
treinamento da mente. Para eles, as verdades e realidades espirituais eram conhecidas
com a alteração dos estados de consciência, obtida por meio da intuição, das
parábolas, dos versos e das músicas e danças entoadas e recitadas de maneira
repetitiva e ritualística. A sabedoria sufi busca a purificação do “corpo energético”,
96
Sufismo - o nome sufi deriva da palavra árabe sáf, "puro". Os sufis foram chamados por insistirem na busca
da purificação e pela iluminação. A filosofia sufi é transmitida pela recitação, pela dança e pela música
iniciática, que tem função purificadora e é utilizada como meio de chegar a Deus.
97
O budismo é um sistema ético, religioso e filosófico fundado pelo príncipe hindu Sidarta Gautama (563 a.C. 483 a.C.), o Buda, por volta do século VI a.C. O budismo ensina como superar o sofrimento e atingir o
nirvana (estado total de paz e plenitude) por meio da disciplina mental e de uma forma correta de vida. Em
parte, o budismo pode ser considerado uma rebelião contra certas características do hinduísmo.
98
Para os derviches sufistas, a meditação se dá por meio da dança e do giro. Essa corrente remonta ao tempo de
Maomé. Para os sufistas, a música e os giros são muito importantes, no que se assemelham aos hassids, uma
seita judaica.
99
Para os sufistas, a conotação vermelha tem duplo significado: em relação ao manto de carneiro ou ao
sacrifício desses animais nos rituais.
106
libertando o corpo físico do peso dos pensamentos ruins, do terreno impuro e dos
costumes cotidianos levianos.
No século XIII, os sufistas “emprestaram” do budistas da Ásia Central o
Zikr100. O zikr é um rito repetitivo e invocação do “Perdão de Deus” ensinado pelo
profeta Maomé do Islamismo, onde as rezas são repetição diárias (70 vezes ao dia).
O Muláh ou Mestre utiliza palavras mágicas no zikr; essas palavras são mantidas em
segredo, e repetidas em voz baixa e entoadas mentalmente. Os versos, palavras ou
frases rítmicas são relacionadas a uma cor específica, a um movimento físico e a uma
imagem mental dos centros espirituais do corpo: o coração, o peito, o umbigo e a
cabeça. Assim, por exemplo, sentado com as pernas cruzadas enquanto pronuncia as
palavras, o Muláh inclina a cabeça à direita, depois declina-a na direção do umbigo, e
inclina-a à esquerda, para o centro do coração, libertando toda a energia retida nesse
centro; nesse momento profere o nome divino...O som se parece com “hum” (Allah,hu, huwa, “Ele”).
Há muitos tipos de zikr, mas os principais são o zikr falado ou jahri e o zikr
silencioso ou khafi. O zikr sofreu forte oposição do mundo islâmico radical, e foi
proibido em vários países. Originou-se nas regiões de língua turca, como a Turquia,
o Uzbequistão, o Tadjikstão, o Kasaquistão e o norte do Afeganistão. Recentemente,
na Kabul “libertada” pela aliança do Norte, o zikr voltou a ser entoado livremente
pelos sufistas em rituais de meditação mostrados ao mundo, ao vivo, pela rede de
televisão CNN (Canal de TV americano de alcance Global).
Pela etimologia das palavras, é possível encontrar pistas do movimento dessas
turbas das montanhas Atlas do norte da África ao mar, conforme nos mostra Souza
100
A palavra Zikr significa chamar, referir-se a Deus de forma a perdoar-se ou purificar-se.
107
“Por isso que o nome Áfricá termina pelo dissílabo Rica (Véo ), que se liga
às significações de Nebula e Obumbratio (Nuvem-Escuridão ), entre as quais se
destaca a de bagatelas, ninharias sonoras (Nebulae). Se examinarmos o nome
dado à África pelos Turcos, Efrikia, veremos que ele significa principalmente
limpar, esfregando, como exatamente praticam aqueles colonizadores ferozes
num mundo impuro e habitado por eunucos (castrare-reparare-redere). O termo
Frik (de Efrikia), prende-se a Frigor-calafrio, e a civilização muçulmana na
África pode ser comparada ao frio sintomático das febres palustres que atacam
por acessos, deixando o organismo debilitado e cansado. Motio-Calafrio dá,
contudo, a idéia de movimento, agitação que degrada e abate em vez de virilizar
e enaltecer; enquanto Horror-Calafrio fala de alguma coisa que faz tremer,
como o temor religioso associado ao espanto produzido pelo som estridente das
trombetas. A terminação IA (de Efrikia) designa uma das filhas de Atlas como
responsável dessa degradação de uma raça jovem; mas, o que ninguém crerá
sob palavra, os autores do crime assinalado são originários do Continente
africano, e para ele deveriam regredir, como os suportes caucásicos da Europa.
O pavilhão turco da cor de sangue exibe a imagem de uma estrela crescente.
Samguis (sangue) diz o mesmo que gérmen, Origo, Stirps (procedência, origem,
raça) e, portanto, prende os muçulmanos da Europa e da Ásia aos vermelhos da
África designados pelo crescente (Luna Acuta). Luna-Lua diz o mesmo que
noite, trevas, ignorância (Nos, Tenebra); e a idéia traduzida por Acuta fala da
forma pontuda, qual a da África, da cor viva como a da bandeira; do frio agudo
e penetrante como das febres palustres (Penetrantes). Logo, o termo Frik se
ajusta perfeitamente ao conceito enunciado por Luna Acuta (Crescente) o qual,
por sua vez, se trata estreitamente como de Genisis-Estrele, também expresso
por Semina-Origem”.101
O sufistas são um dos braços mais importantes do islamismo. A respiração, as
melodias, as danças e o conteúdo dos textos sagrados formam uma vasta filosofia com poderes curativos e purificadores - pouco conhecida no ocidente.
Por sua posição política de país “neutro” - semelhante à da Suíça - em relação
aos conflitos e guerras do mundo árabe, e também por abrigar as montanhas Atlas,
onde o isolamento físico e cultural é garantido, O Marrocos conseguiu manter a
concentração de várias etnias e rituais, com liberdade de expressão e convivência
101
Souza (1997), p.33-34.
108
pacífica. O festival de música e poesia mística sufi reúne durante dez dias
anualmente, em Fez (Marrocos), diferentes “escolas” e culturas. A poesia e os ritmos
entoados nos rituais facilitam o estado de transe e o êxtase. Os movimentos e a
música do giro hipnótico dos derviches sufistas provoca alterações em seus estados
internos de consciência, que levam ao êxtase.
A tribo Gnaua (Gnawa) apresenta um sincretismo religioso semelhante ao
brasileiro. Descendentes das fraternidades sufis, ergueram os primeiros templos e
santuários em Maghrib (Tunísia). Os Gnawa têm uma ligação mais próxima com a
cura do que com o perdão e a purificação sufis, e sacrificam animais. Na Argélia,
mais especificamente em Constantine, eles são conhecido como Usfan ou escravos, e
na Tunísia são chamados Stambali ou Sudani. Em Djerba (Tunísia) e Tripoli (Líbia),
os Gnawa estão desaparecendo rapidamente. Por outro lado, comunidades de Gnawa
ainda são relativamente numerosas no Marrocos, tanto no centro do país - em
Meknes, Fez e até mesmo em Casablanca - quanto no sul - em Essaouira, Marrakesh,
Tafilalet e Tamesloht. Sua música pentafônica é conhecida por encantadores de
cobras, curandeiros e pelo povo Berber. O Hãdra102 é um ritual de cura semelhante
ao candomblé brasileiro e caribenho com sacrifícios de animais, música, êxtase e
possessões
O sintir (alaúde longo de três cordas e construído com pele de camelo), o
qarkabeb (castanhola metálica grande) e o tbel ou ganga (tambor de lado grande e
pele de cabra) são alguns dos instrumentos ritualísticos Gnawa. Em suas
manifestações, os Gnawa usam tecidos de cores brilhantes e vibrantes, fazem
movimentos acrobáticos e mantêm, durante todo o tempo, um ritmo hipnótico
102
Cerimônia dos Gnawa de possessão realizada anualmente após o do Ramadan (período islâmico de reclusão,
jejum e orações).
109
dirigido por um único canto forte - de mulher
ou homem - e seus harmônicos. Esse ordenamento
ritualístico apresenta evidências mais fortes de ligação
entre as manifestações de origem sufi, do gnawa
marroquino e do candomblé brasileiro. As semelhanças
Figura 7. Hassan Hakmoun
com seu sintir
são físicas, movimentos repetitivos semelhantes à
convulsão epilética, sonoras (timbres agudos e graves a
mais de 130bpm), afinação em quinta e terças.
O sintir é um instrumento ritualístico marroquino de som
grave e da mesma família da viola. Com as invasões mouras, o sul da
Europa assimilou a cultura árabe, e a constituição do sintir foi
modificada: a caixa de ressonância passou a ser revestida de madeira,
e não mais pele de camelo. Atualmente o músico étnico Hassan
Hakmoun difunde o som do antigo sintir no ocidente. Na África o
sintir tem outros instrumentos aparentados como as harpas (de
Figura 8
Rabeca
Marroquina( 4
cordas)
poucas cordas) e berimbaus (uma única
corda). A harpa de três cordas é utilizada,
ainda hoje, pelos pigmeus Bayaka. Também o alaúde
ibérico – que originou o violino - pode ser um
“descendente” do sintir. O Brasil sofreu duplamente a
influência árabe: pelos portugueses e pelos escravos Figura 9. Mondumé harpa
africanos (malês). Aqui foram desenvolvidos diferentes
Bayaka (pygmeus)
tipos de violas
110
devido à criatividade e às dificuldades técnicas de obtenção de instrumentos e
materiais adequados para a confecção dos instrumentos musicais. Também
verificamos que os instrumentos utilizados pelos berberes apresentam grande
semelhança construtiva, e sonora com os instrumentos brasileiros utilizados nos
terreiros e nas danças folclóricas populares do nordeste brasileiro.
Soler (1995) explica a história e as influências que deram
versatilidade à viola:
“A vihuela, ou viola como era chamada em terras galaico-portuguesas,
distingue-se do alaúde apenas no formato da caixa: em lugar do fundo bojudo,
de „meia pera‟, ela apresenta dois tampos planos, um inferior e outro superior,
interligados por altas ilhargas. Estes tampos, além do mais, não têm forma oval,
como acontece com os do alaúde, senão apresentam um estreitamento central,
uma cintura quase idêntica a do atual violão. Este tipo de viola, já perfeitamente
definido e muito popular no Portugal renascentista, é o que veio para o sertão e
o que é conhecido, hoje, com o nome de „viola sertaneja‟. Com idêntico conjunto
de cordas e idêntica afinação que a antiga. Tão similar, aliás, que qualquer
música escrita para "vihuela" ou alaúde nos séculos XVI e XVIII, na Europa -o
repertório é muito grande- pode ser tocada na viola sertaneja sem qualquer
adaptação prévia. Uma perfeita sobrevivência, neste caso também, das deixas
musicais arábico-ibéricas: perdidas lá, conservadas aqui. Os instrumentos de
cordas friccionadas com um arco eram desconhecidos na Europa, até os árabes
introduzirem o rabab (ou rebab), que eles adotaram dos persas. Muito parecido
ao primitivo alaúde, o arcaico modelo do rabab apresentava a caixa piriforme e
vinha coberto por um couro, na parte anterior. Mais tarde, o couro foi também
substituído por uma peça de madeira fina. Constava de duas cordas, afinadas
em quinta e tocava-se encostado no chão mediante um espigão ”103.
103
Soler (1995), p. 108.
111
As violas brasileiras apresentam inúmeras
formas, número de cordas e processos construtivos
diferenciados, resultando em várias afinações104 e
sonoridades. A Viola de Cocho do Mato Grosso
regrediu até mesmo no que concerne à construção: é
Figura 10. Viola de Cocho
sem furo e viola Caipira
feita de um único tronco cavado, e perdeu inclusive o
furo por onde o som se propaga ao ambiente - os pantaneiros descobriram uma
madeira porosa (figueira), que eliminava a necessidade do furo evitando, assim, a
entrada de bichos no interior do instrumento. Entretanto, as dificuldades de execução
fizeram com que a viola tradicional voltasse a ser utilizada, e sua sonoridade foi
mantida graças à grande variedade de madeiras encontradas no pantanal. A viola
nordestina sofreu processo semelhante, preservando grande parte das características
da viola portuguesa. O mesmo ocorre com as castanholas de madeira espanholas, que
lembram o qarkabeb (castanhola metálica dos Gnawa).
Pretendemos tão somente assinalar como os instrumentos podem guardar
muitas características sonoras e musicais independentemente da evolução, do tempo,
das culturas que os assimilaram e incorporaram. As afinações das violas e os
tambores são um assunto delicado, todos as afinam “de ouvido” e, no Brasil, esse
procedimento é transmitido oralmente: infelizmente não há partituras ou mecanismos
que auxiliem a compreender a relação entre a afinação e a consonância musical.
Encontramos fortíssimas evidências da relação entre os ritmos, as escalas, os
instrumentos e o transe. Essa relação advém das influências culturais dos índios, dos
escravos e dos portugueses, sinalizando a riqueza da formação sincrética religiosa e
104
A afinação dos instrumentos tem uma relação direta com a voz cantada. No Brasil encontramos cerca de 16
112
cultural brasileira. Exemplos vivos dessas sedimentações e transformações são a
Festa de Reis, a Festa do Divino (Cururu e Siriri), os hinários do Santo Daime, o
Tambor de Mina, o Cavalo Marinho e o Bumba-meu-Boi, além das festas “profanas”
do carnaval, como os Maracatus, o Samba de Roda, a Timbalada, os Trios Elétricos,
a Axé-Music, o Frevo e a Capoeira. O número de participantes cresce a cada ano, e
observa-se a marcada ligação que essas festas têm com o transe coletivo, popular,
arrastando multidões às ruas. Também nos foi possível constatar a forte influência da
cultura maranhense no transe urbano paulistano: o músico Tião Carvalho, do grupo
Cupuaçu105, mantém a tradição das festas do Bumba-meu-boi no Morro do
Querosene, em São Paulo.
O xamanisno maranhense, além de influenciar diferentes ritmos brasileiros,
mantém em funcionamento os terreiros mais antigos do Brasil. Durante esta pesquisa
visitamos Pai Euclides, e pudemos ver de perto a influência e a força do transe dos
encantados na comunidade de São Luiz. Os voduns106, como mostra o trabalho de
Araújo (1999), influenciaram o xamanismo cabloco da Amazônia pelo seu vasto
conhecimento das plantas e do transe alucinatório ligado à cura:
tipos diferentes de afinações de acordo com os sotaques das regiões brasileiras.
105
Segundo o músico André Bueno o grupo já conta com vinte anos de existência. Criado pelo músico e
compositor maranhense Tião Carvalho, quando se radicou em São Paulo, e era professor de ritmos e danças
no Teatro Vento Forte. A partir de 1990 o grupo inicia o seu Bumba-meu-Boi atraindo outros maranhenses
radicados na cidade. Em 1997 o grupo lançou CD com toadas de Bumba-meu-Boi e em 2001 André lança,
pela editora Nankin, o livro CD Bumba-Boi Maranhense em São Paulo.
106
Prandi (1997), p.110: “Além dos orixás, outras divindades foram trazidas da África pelos escravos. Os
inquices dos povos bantos, praticamente esquecidos e substituídos pelos orixás nagôs nos candomblés
bantos, e os voduns originários de povos euê-fom, de região do antigo Daomé, hoje república do Benim,
designados jejes no Brasil. O culto aos voduns sobreviveu na Bahia e no Maranhão. Em Salvador e cidades
do Recôncavo, a religião dos voduns é denominada candomblé jeje-mahim. No Maranhão recebeu o nome de
tambor-de-mina. Na Bahia é pequeno o número de grupos de culto jeje em comparação com o número de
casas de orixá. No Maranhão os voduns estão presentes em praticamente todas as casas de culto afrobrasileiro e os orixás ali cultuados nas casas de vodum são igualmente chamados de voduns, às vezes com a
referência de que se trata de um vodum nagô e não jeje.”
113
“Irineu Serra e Sebastião Mota viveram na floresta tropical amazônica e
basearam-se nos próprios conhecimentos dos nordestinos de seu tempo, para
elaborar lições sobre o cotidiano com a floresta, com a natureza. Lições
estudadas nos rituais com a bebida oaska, pois a natureza, para os daimístas é
divina e sagrada.
lrineu Serra começou a receber hinos, poemas, depois dos 40 anos. Quando
morreu, aos 79 anos, tinha recebido 132 hinos que formam os hinários "O
Cruzeiro" e a "Santa Missa". Ele construiu a doutrina do Santo Daime: hinos,
bailados, música, vestimenta, ritualística, normas de conduta. Uma construção
que soube fazer coletivamente.
Criou um conjunto de conhecimento que é resultado de sua herança cultural
afro-maranhense, influências ameríndias; catolicismo, judaísmo e outras formas
de hibridações. Ele nasceu em São Vicente Ferret, município do interior do
Maranhão, em 15 de dezembro de 1892. Filho de ex-escravos pertencia a uma
família que cultuava os orixás, o Tambor de Mina, que ali no Maranhão sofre
forte influência do catolicismo.
0 culto aos orixás foi para a cultura negra, durante o 300 anos de escravidão
na América, uma espécie de laço comunitário secreto: a marca religiosa comum
a todas as nações negras era o voodoo. As formas rituais do voodoo se
caracterizam pela utilização da dança, da percussão e do canto como técnicas
que abrem caminho para os transes, possessões e incorporações de entidades
divinas. Segundo Sérgio Ferreti (1995), em estudo sobre culto aos Orixás e
Tambor de Mina, citando Chester Gabriel (p. 146-149), temos diversas
informações sobre migrações de nordestinos e de terreiros do culto aos orixás
para a Amazônia. Ferreti cita Irineu Serra. Vejamos: "um negro maranhense de
São Vicente Ferret, lrineu Serra, que se diz ter freqüentado casas de tambor de
mina, migrou para o Acre, por volta de 1910, e a partir da década de 30 foi o
iniciador da doutrina do Santo D'Aime, hoje muito divulgada em vários regiões
do país". (FERRETI-1995, p. 122).
lrineu Serra foi para o Acre atraído pela possibilidade de enriquecer. Como
de resto, pensamos, a maioria dos nordestinos. Trabalha muito tempo como
seringueiro na fronteira com a Bolívia. Foi nestas condições que tomou contato
com a bebida oaska e com o xamanismo caboclo amazônico”107
107
Araujo, op. cit., p.88-89.
114
Entretanto, assim como no que concerne aos instrumentos musicais
brasileiros, a investigação aprofundada das plantas de poder e de sua ação sobre o
transe excedem o curto espaço desta tese. Os conhecimentos iniciáticos requerem no
mínimo dez anos, pois são transmitidos de forma oral e participativa nos terreiros.
A RELAÇÃO ENTRE AS TRIBOS E O TERRITÓRIO URBANO
São Paulo abriga vários espaços destinados a festas populares, e bairros cujos
calendários contemplam datas festivas, das quais a comunidade participa ativamente,
preparando a decoração, as roupas e o cardápio com meses de antecedência. A Bela
Vista (Bixiga), por exemplo é um bairro - situado na região central da cidade –
originariamente marcado pela presença dos italianos que imigraram para o Brasil no
início do século. Na festa de Nossa Senhora da Acquirupita as ruas são tomadas por
barracas e danças: a população prepara essa festa durante todo o ano. Assim, a igreja
católica mantém um forte vínculo com as comunidades em que se aloca, promovendo
eventos calcados no calendário religioso que, a cada ano, ganham maior número de
participantes e, conseqüentemente, maior divulgação pela mídia. A partir da década
de quarenta, as famílias de imigrantes italianos que fugiram da guerra – ou da
exploração a que eram submetidas na região agrária do Estado de São Paulo –
fixaram-se em pequenas casas assobradadas, e estabeleceram pequenos comércios,
na maioria constituídos por restaurantes e armazéns, nos quais ainda hoje é possível
encontrar pães italianos e vinhos de boa qualidade.
Em contrapartida, a cidade é relativamente pobre de festas - religiosas ou
profanas – ligadas às culturas africana e indígena. O carnaval paulistano – que,
115
originariamente era constituído por blocos de “rua” (chamados de “sujos” numa
miscelânea sincrética que abrigava brancos, mulatos e afrodescendentes sob ritmos e
atitudes característicos da metrópole) – “incorporou” (mas não tem poder de fogo
para tanto) os movimentos dos estados que mais fortemente sofreram a influência
africana, como Rio de Janeiro, Recife ou Bahia. Assim, e dadas as suas
características específicas, resume-se a alguns blocos – talvez uma tentativa de fazer
(re)surgir os carnavais de outrora – e muitas escolas de samba – que, em um
confronto, perdem, de longe, para aquelas de terceira linha do Rio de Janeiro.
Outro bairro paulistano formado por italianos – que haviam imigrado para
trabalhar na lavoura (interior do Estado de São Paulo) - e portugueses comerciantes é
a Vila Madalena. Inicialmente considerado periferia da cidade, abrigava os
imigrantes mais pobres, e foi influenciado pelas culturas que o formaram. Essas
famílias adquiriram pequenos lotes em ruas íngremes, e construíram sobrados cujo
andar térreo era ocupado pelos armazéns que lhes garantiam a sobrevivência.
Atualmente o bairro é conhecido pelos inúmeros bares e restaurantes que abriga (a
boemia). Em 1968, devido à invasão do Conjunto Residencial da Universidade de
São Paulo (CRUSP) pelos militares, a Vila Madalena – que recebeu esse nome por
causa da maior igreja do bairro – passou a ser ocupada por estudantes. Os estudantes,
que acharam no bairro tranqüilidade e aluguéis baratos, formaram uma comunidade
jovem, e algumas cantinas foram transformadas em pequenos teatros, produtoras de
filmes, galerias e ateliês.
A Vila não tem tradição de grandes festas populares de rua nem de carnaval.
A escola de samba Pérola Negra ensaia nas ruas do bairro mas desfila no
116
sambódromo, na Marginal Tietê e na “Folia-na-Faria”, na Av. Faria Lima, evento
marcado pela apresentação de grupos de Axé-Music. A vida cultural é o ponto forte
do bairro e tornou-o cult. As livrarias, os bares e as lanchonetes contribuíram para
aumentar a característica de pólo cultural que o bairro tem. Considerando a sua
proximidade aos bairros de classe média alta – como Alto de Pinheiros e Lapa - as
empreiteiras iniciaram a especulação imobiliária, construindo edifícios de
apartamentos cujos preços não são pequenos. Nos anos oitenta, a Vila tornou-se, por
assim dizer, um centro de grafiteiros e de artistas plásticos. O conflito entre a agitada
vida noturna do bairro e a tranqüilidade em que viviam seus antigos moradores
intensificou-se, e a prefeitura viu-se na contingência de aplicar a lei do silêncio a
inúmeros bares. A fama dos bares atraiu o público de outros bairros, e a vida pacata
da Vila Madalena findou-se. Nos anos noventa, apenas o Baque resistia em
permanecer na rua.
O
bairro
manteve
algumas
tradições, com as festas
religiosas,
mas
no
carnaval apenas alguns
blocos
e
pequenos
grupos ensaiam na rua.
Figura 11. Bloco do Baque Bolado tocando com surdos metálicos.
No início da formação
do Baque Bolado, a música do maracatu causava um estranhamento, e logo foi
associada ao barulho e à baderna. De início os ensaios contemplavam vinte pessoas e
uns cinco surdos, ainda feitos de metal. Depois de um ano esse número aumentou
117
para trinta, com dez alfaias108 (surdos). O diálogo com os moradores, que não
entendiam a necessidade de ensaios fora do carnaval, era difícil. A polícia era
chamada, o que levou os ensaios a serem realizados de forma itinerante pelas praças
da Vila Madalena. O grupo passou então a se movimentar no território da Vila,
passando por casas noturnas, sem ter um local fixo para suas manifestações.
Atento às mudanças que o bairro sofreu com essa exposição aos jornais e a
TV, o Baque reviu sua postura procurando modificar suas toadas, instrumentos e
melhorar seus “passos” na direção de conquistar mais fundamento com as raízes do
maracatu. A movimentação cultural Vila teve sua expressão máxima quando a “feira
da Vila” e outras atividades passaram a receber enorme número de pessoas e vários
grafiteiros, músicos e artistas estampavam nos jornais uma nova atitude: “o
movimento punk109”. As tribos foram se formando em torno dos bares e dos “points”
e casas noturnas que abrigavam os músicos e os artistas da Vila Madalena.
A falta de um lugar determinado para os ensaios - que levava o grupo a uma
movimentação constante - fez com que a busca pelas raízes e fundamentos dos
ritmos pernambucanos fosse maior que as influências urbanas. O grupo fragmentouse, e passou a ter problemas com outros grupos, que se estruturavam como ONGS
108
No início do grupo as baquetas (com bolas de algodão colorido) de e os surdos (de alumínio) eram os mesmos
utilizados pelas escolas de samba. O Baque se espelhava no grupo de Maracatu Nação Pernambuco (RecifePE) que não é muito considerado, em Recife, pela falta de “fundamento” com as tradições. O grupo do Baque
adotou, após muitas críticas, as alfaias que são instrumentos mais pesados feito de madeira (da palmeira
Macaíba -que apresenta um tronco em forma de barril- ou madeira laminada coberto com couro de cabra e
esticadopor cordas de cizal) e baquetas de madeira sem bolas nas pontas. A sonoridade dos instrumentos
tradicionais do maracatu são diferentes e tem uma função em relação ao transe e a “proteção” porque o sair
para a rua implicava em demonstrar a força da nação (terreiro) e muitas brigas aconteciam. Um mestre de
maracatu forma um círculo com as alfaias entorno da pessoa indesejada levando-a ao transe. Por esse motivo
o maracatu é tido como uma “brincadeira séria”e há todo um cuidado com a sonoridade de todos os
instrumentos e a postura dos componentes do cortejo.
109
O movimento punk influenciou a arte alternativa musical e artística com a livre figuração e um estilo
descompromissado e desafinado de cantar trazendo o gestual, o cotidiano e gíria falada tanto para as artes
plásticas como para a música que se desdobraram em vários movimentos: Rap, Hip Hop, Funk, Reggae
Samba-reggae.
118
(Organizações Não Governamentais) e recebiam o apoio da comunidade. Iniciou-se
então uma certa cruzetagem com os grupos Cachuera110 e Cupuaçu, situados no
Morro do Querosene. O Baque ensaiou durante alguns meses nesse bairro, e a troca
de informações foi inevitável. Na época, o grupo do boi (Cupuaçu) do Morro do
Querosene e o grupo Cachoeira estavam se institucionalizando e estabelecendo um
maior vínculo com a comunidade local, que não se importava com as festas ou com o
barulho dos tambores porque estes traziam um retorno certo em dinheiro. Assim,
toda a comunidade ajudava na organização e na montagem das barracas que vendiam
comida e bebida. O Morro também se configurava como um território participativo
porque a maioria das pessoas envolvidas nos grupos moravam próximas, e eram
membros atuantes da comunidade. Já o Baque, que não tinha um território físico,
teve que se aprofundar mais no estudo dos ritmos pernambucanos, a fim de se
legitimar perante os outros grupos, que tiveram maiores facilidades para se
estabelecerem. Essa oportunidade foi aproveitada tanto pela nossa pesquisa como o
grupo que estabelecemos fortes ligações com os grupos nordestinos e os terreiros. A
utilização de ferramentas virtuais teve (e tem ainda) importante papel na
comunicação entre os integrantes do grupo: inicialmente o “bip”111 era utilizado para
informá-los sobre os locais de ensaio e as apresentações do Baque; a seguir, o celular
e a Internet passaram a ser adotados para manter o contato, tanto entre os
componentes do grupo quanto entre este e outros grupos do Nordeste e de São Paulo.
110
Grupo formado em 1992 na pesquisa de campo no Sudeste por Paulo Dias, André Bueno, Marcelo Mauzati e
coralistas-percussionistas da USP. Ocupassam-se dos ritmos Bauque Paulista de umbigada e do Congado
Mineiro. A partir de 1999 é formada a ONG “Cahuera” abrindo sua sede para consulta pública do acervo,
apresentações regulares e eventos musicais.
111
O bip é um aparelho que transmite textos via telefone e foi muito utilizado antes da popularização da
telefonia celular que, quando de sua implantação, era cara e não cobria a cidade inteira devido à sombra dos
prédios de São Paulo, que dificultava a transmissão.
119
A EXPERIÊNCIA COM A TRIBO URBANA DO GRUPO BAQUE BOLADO
Como mencionamos na Introdução deste estudo, o BLOCO DO BAQUE
BOLADO teve início quando um professor de percussão não compareceu à primeira
aula de uma turma, e os alunos passaram a tocar “o que sabiam” e a ensinar “o que
sabiam” uns aos outros. O resultado dessa experiência foi mostrado na IX Feira de
Arte da Pompéia, em 1996, como uma brincadeira descompromissada. A bateria
agradou e foi chamada de “baque”, seguindo a tradição do ritmo contagiante do
Maracatu A idéia foi se materializando, e novas pessoas integraram-se ao grupos:
outros músicos, artistas plásticos, bailarinos, cenógrafos, jornalistas, médicos,
fotógrafos etc. O Baque Bolado passou a ter identidade própria, emprestando de
Pernambuco a dança e o ritmo tradicional do baque-virado, assumindo sua
naturalidade paulistana - caracterizada pela profusão de línguas, caras, cores e
crenças – e mantendo o interesse pela arte e o resgate do folclore brasileiro.
Nas apresentações de rua, era comum os músicos pernambucanos trocarem
informações sobre o ritmo e a maneira de tocar com os integrantes do Baque.
Posteriormente, essas trocas informais estimularam a contratação de músicos
pernambucanos, que mostraram ao grupo o verdadeiro e autêntico ritmo do maracatu
e sua complexidade. Depois dessas oficinas, realizadas na rua, o grupo decidiu retirar
de seu nome a palavra maracatu, passando a denominar-se Baque Bolado. Isso
possibilitou-lhe a liberdade de misturar outros sons e, ao mesmo tempo, eliminou o
compromisso com o ritmo maracatu – bastante complexo e fortemente ligado aos
terreiros. Essa alteração de nome decorreu das informações dos músicos de Recife,
que mostraram que as manifestações do Baque não poderiam ser chamadas de
120
maracatu. O nome maracatu tem outros adjetivos - de nação, de baque solto (rural),
de baque virado –, e o som produzido pelo grupo distanciava-se do ritmo tradicional.
Após as oficinas, ficou evidente que tocar maracatu implicava várias outras relações
com a cultura pernambucana e uma postura em relação ao instrumento, ao ritmo e
aos significados das loas. Nesse clima que foi criada a primeira Loa do Baque112, que
continha algumas células rítmicas e palavras do maracatu tradicional de Recife.
Depois de aprender a tocar, a virar113, e de cantar a Loa, o grupo assumiu a
diversidade cultural, optando por manter o maracatu como mais um ritmo. Passou
então a intitular-se Cia. Baque Bolado, e adotou elementos circenses em suas
performances.
Nos anos 90, a Vila Madalena - uma espécie de Soho114 brasileiro - mantinha
um círculo de artistas e músicos voltados ao grafite e às performances. Nessa época a
participação no grupo era livre e aberta a todos do bairro. O Baque Bolado tinha
como principais dirigentes Marici Brasil e Leandro Medina, que são bailarinos e
compositores oficiais do grupo. Maurici lecionava em várias oficinas da prefeitura, e
mantinha contato com jovens da periferia da cidade. A proposta artística do Baque
mistura elementos de cenografia e coreografia a ritmos musicais nordestinos, de uma
112
Vejamos a Loa do Baque: “Baque Bolado desceu a ladeira subiu na poeira e depois sumiu (2X) // Concreto
rachou estrela caiu o mar desabou e ninguém fugiu (2X) // Clareou clareou a estrela da vila brilhou //
Resplendor resplendor olha o baque bolado chegou // Baque Bolado desceu a ladeira subiu na poeira e
depois sumiu (2X) // Concreto rachou estrela caiu o mar desabou e ninguém fugiu (2X) // Clareou clareou a
estrela da vila brilhou//Resplendor resplendor olha o baque bolado chegou.” A palavra “estrela” remetia ao
grupo Estrela Brilhante tradicional maracatu do Recife e teve que ser retirada da toada do Baque.
113
Virar ou dobrar no maracatu tradicional é o ponto máximo do cortejo onde as alfaias assumem sonoridades e
ritmos diferentes: uma dobra outra marca. Muitos músicos bons nesse momento erram porque entram em
transe e perdem o ritmo. O mestre tem a responsabilidade de conferir as alfaias de melhor sonoridade àquele
em quem deposita confiança para não desandar o ritmo.
114
Bairro boêmio nova-iorquino.
121
maneira aberta e ingênua; paulatinamente, foi incorporando elementos circenses,
como pernas de pau e acrobacias.
Como mencionamos anteriormente, os ensaios ocorriam na rua aos domingos,
e os moradores chamavam a polícia com freqüência. Os tambores, as alfaias, emitiam
um barulho enorme, repetitivo e ensurdecedor, o que obrigava os músicos a
utilizarem abafadores auriculares para proteção da audição. A fuga da rua para
lugares sonoramente abrigados coincidiu com a evolução musical do grupo e com o
contato com grupos de diferentes propostas: circenses, musicais, folclóricas, forró,
capoeira etc. À medida que o grupo mudava o local dos ensaios, novas influências
eram incorporadas, promovendo uma formação eclética que ajudava a cativar novos
participantes
O maracatu e suas influências rítmicas são desconhecidos na cidade de São
Paulo, e o sucesso do grupo levou à formação de um grupo menor, que era
responsável pelas apresentações, e tinha como incumbência organizar o transporte
dos instrumentos – o que demandava uma perua Kombi - e contatar os integrantes do
grupo – cujo número oscilava entre 20 e 30.
Em apresentações menores o grupo era dividido, o que gerava
descontentamentos e motivou a organização de um grupo menor, inicialmente
chamado de Banda do Baque. A Banda tinha maior agilidade, e assim conseguiu
gravar suas primeiras fitas, e logo a seguir o primeiro.
Posteriormente o grupo esbarrou em dificuldades burocráticas, sendo então
criada a Cia. de Artes do Baque Bolado, juntamente com um website e toda a
documentação exigida para colocar o CD à venda: assim a institucionalização do
122
grupo foi inevitável. A partir daí, o Baque passou a restringir a participação, e a
oferecer oficinas pagas e dirigidas pelo pessoal da Banda, que tinha mais experiência
que os demais integrante do grupo.
Em 2001, a Cia. de Artes do Baque Bolado definia-se como uma “troupe”
de artistas que movimentava a criatividade urbana a partir da diversidade da cultura
brasileira. A “troupe” uniu bailarinos, músicos, atores, artistas plásticos e circenses;
brasileiros de todos os cantos, movidos pela vontade de brincar com a maravilhosa
fusão musical nordestina. Em seus espetáculos, a comunhão de cores, tambores e
crenças estampada nos figurinos, assim como a diversidade étnica de seus
integrantes, é a verdadeira emblemática da Companhia que, em seus cinco anos de
existência, vem colocando para a cidade de São Paulo a possibilidade de contato com
a cultura pernambucana.
Nesse período, o grupo pesquisou manifestações populares e, aos poucos, foi
trazendo para as ruas as brincadeiras restritas aos grupos iniciáticos escondidos pelo
Brasil. Nas apresentações de rua havia cerca de 30 integrantes, e a Banda ficou
restrita aos shows interativos em casas fechadas e às aulas e workshops oferecidos a
pessoas de todas as idades. A troca de informações com outros grupos do nordeste
começou a tomar vulto, como veremos adiante.
A RELAÇÃO DO GRUPO COM OS TERRITÓRIOS INICIÁTICOS
123
O contato do Baque com os outros grupos musicais folclóricos nas ruas nunca
foi tranqüilo. As relações desses grupos folclóricos com o candomblé eram
camufladas e dissimuladas, e não poderiam ser expostas a todos os componentes.
Temia-se uma interpretação equivocada das relações folclóricas com as religiões
brasileiras ou, a perda ou fuga de alguns componentes por motivos religiosos. Faz
Figura 12. Arrastão(cortejo) do Baque na Vila Madalena
Foto Luana B. Capobianc
parte da disciplina iniciática não revelar os conteúdos, as palavras ou as
interpretações aos novos componentes e pessoas estranhas ao grupo. O contato do
figurante (do cortejo) com o público é contido e velado: é expressamente proibido
uma pessoa entrar na “brincadeira” e tocar. Entre os mestres há uma relação
conflituosa, competitiva, e os conceitos são transmitidos verbalmente (quando e se o
são) e permanecem somente entre os grupos que efetuam um “contato produtivo”.
124
Os conteúdos revelam experiências oníricas, visões, curas, limpezas,
purificações, proteções e direções que são dádivas das entidades ancestrais, que
vivem em um “tempo” à frente, cosmologicamente diferente do nosso. Na música
popular brasileira há o caso de Gilberto Gil, que foi impedido, por um pai-de-santo
de Salvador, de cantar músicas que continham “pontos” e “toadas” de seu terreiro.
Profanar as músicas ritualísticas tirando-as do seu contexto tem sido uma constante
nas novas apropriações dos movimentos musicais regionais baianos e nordestinos. Às
vezes os músicos agem intencionalmente ou “de ouvido”, alguns têm forte relação
com os terreiros e pedem autorização para divulgar as toadas e os pontos. Nesses
casos, o pai-de-santo tem que consultar os espíritos, liberando- os para “agir” fora do
terreiro.
Toninho Macedo, diretor do Balé Folclórico de São Paulo (grupo Abaçai) e
que manteve contato com o Baque nos seus primeiros anos, chegou a negar
categoricamente, nesta investigação, a relação entre o maracatu e o transe. Alguns
mestres e professores de capoeira também não revelam que as músicas de capoeira
contêm “pontos” e podem levar as pessoas à possessão. É comum “ver”, sentir e ficar
“tomado” durante apresentações de capoeira, maracatu, samba, reggae, timbalada,
frevo e em outros eventos em que a música africana ou indígena é utilizada. O
maracatu é uma fusão desses vetores culturais, que se somam e penetram até mesmo
em ouvidos estrangeiros às culturas que formaram e mantêm tais ritmos vivos.
Embora não seja um fato corriqueiro, se uma pessoa entra em transe - seja no
terreiro, na capoeira, na folia rua ou nas quadras - o pai-de-santo é consultado, e
somente ele é capaz de identificar se é “caso de médico” ou de “incorporação” de
entidades: possessão. Nesse segundo, caso o pai-de-santo deve colocar a pessoa
125
deitada, rezar, e em conversa com o espírito (incorporado), retirar a possessão
escutando seu “desejo”, atendendo à sua “vontade” - paga com promessas e
despachos -, fazendo com que a pessoa retorne à realidade.
Também há conflitos internos entre os “terreiros”, que não querem ver seus
conteúdos diluídos pela “festa” profana. O cortejo do maracatu é ritualístico e não
deve ser confundido com uma brincadeira. Em Recife, é comum utilizar a expressão
em “brincadeira séria”. Os movimentos, a dança e as toadas contêm uma forte
referência à corte, à realeza, razão pela qual os grupos freqüentam a Igreja Nossa
Senhora do Rosário, marcada pelo sincretismo entre as religiões católica e os cultos
africanos. Verificamos que, em Recife, os grupos de maracatu nação115 utilizam
roupas e indumentárias que guardam uma “visão onírica do pai-de-santo” que dirige
espiritualmente sua “nação” (território iniciático que vai do terreiro à comunidade).
A concorrência, o encantamento, a competição pela melhor apresentação e
visibilidade remontam ao período das irmandades coloniais e seu difícil
relacionamento com a Igreja Católica. Atualmente, no Grande Recife, em Olinda, em
Salvador, no Rio de Janeiro e em São Paulo, são históricas as brigas e polarizações
que também se formam entre maracatus, escolas de frevo, escolas de samba, samba
reggae, timbaladas, bailes funk, grupos de Axé-music, de Hip Hop e terreiros e suas
115
Maracatu Nação ou Afoxés: “Esses dois cortejos possuem, na estreita ligação com os terreiros nagôs, a sua
característica comum essencial: os xangôs do Recife, para os Maracatus, e os candomblés de Salvador, para
os Afoxés. Outros elementos comuns podem ser apontados. Mas as diferenças também existem, a começar
pela origem dos Afoxés. Referindo-se a cortejos nigerianos, efetuados em celebração a Oxum (por ocasião
do Domurixá, ou seja, Festa da Rainha), Manoel Querino atribuiu-lhes grande influência sobre os Afoxés do
final do século passado. Afinal, havia grande semelhança nos dois tipos de cortejo, sem contar o aspecto
carnavalesco. Mas Edison Carneiro, como já vimos, pensava de maneira diferente.Maracatu e Afoxé foram
exportados para outros centros, além de suas cidades de origem. Fortaleza recebeu a ambos e o Rio de
Janeiro apenas o Afoxé. É possível mesmo que um tenha exercido algum tipo de influência sobre o outro,
conforme Raul Lody, em pesquisa efetuada no terreiro do famoso Pai Adão, no Recife. Procuraremos
assinalar, aqui, sobretudo as relações de similitude entre os Maracatus Africanos ou de Nação (ou, ainda, de
"baque virado"), do Recife, e os Afoxés da Salvador do final do século passado. Vale notar que muitas vezes
esses pontos de semelhança são marcados pela oposição; sobretudo se levarmos em conta o caráter
matriarcal dos Maracatus e patriarcal dos Afoxés.” (Gonzales (1984), p.144 )
126
linhagens. É comum um pai-de-santo dirigir ou direcionar uma escola de samba, um
grupo de timbalada, um grupo de afoxé, um grupo maracatu e outras brincadeira de
rua, estabelecendo uma forte ligação entre o terreiro, a quadra, a rua e os palcos de
festas e shows.
Na Vila Madalena - território do Baque - os integrantes da Escola de Samba
Pérola Negra criavam tumultos quando o grupo passava perto de seus ensaios; além
disso, não gostavam que os integrantes de sua bateria desfilassem no Baque. Da
mesma forma, os grupos de Recife que mantinham contato com o Baque tinham que
se justificar pela difusão de palavras referenciais que o Baque utilizava nas suas
loas116 em São Paulo. A palavra “estrela brilhante”, por exemplo, foi proibida de ser
utilizada pelo Baque, para não comprometer e relação que se estabelecia entre os
dois grupos.
No centro velho de Recife, localizamos o grupo Estrela Brilhante pelo ritmo e
timbre dos tambores - tocados numa pequena viela em preparação para o desfile de
carnaval -, pois a concentração era realizada em local não revelado. Os grupos
folclóricos envidam grandes esforços para esconder, ao longo do ano, características
musicais, letras, timbres, ritmos, harmonias e melodias que serão apresentados como
novidades no carnaval. Em Olinda há uma espécie de confraternização entre os
grupos de Maracatu Rural117, em frente à casa de Mestre Salustiano118: Em Recife,
116
Loas e toadas são músicas, com vimos na letra da Loa do Baque, mas também assinalam as variações de
ritmos e harmonias no maracatu.
117
Maracatu de baque solto ou maracatu rural: “O maracatu de baque solto é marcado principalmente pela
desenvoltura dos caboclos de lança, que produzem um espetáculo de cores, brilho e som. Os caboclos de
lança são chamados por alguns estudiosos como guerreiros de Ogum (Olímpio Bonald Neto, em "Os
caboclos de lança- Azougados Guerreiros de Ogum"). São os protetores dos cortejos dotados de lanças
afiadas e adornados com fitas coloridas. Os Maracatus Rurais apresentam as mesmas características dos de
Nação, outros elementos que se relacionam à pratica do catimbó. Nesse sentido, a tipos de personagens
marcam os seus desfiles: os "caboclos de lança" ou "caboclos lanceiros africanos", que, segundo consta,
brincam atuados" (em transe); e os "caboclos de pena" ou "tuxauas", reconhecidamente catimbozeiros que,
pelo simples fato de vestirem sua curiosíssima indumentária, ficam imediatamente "atuados" (daí usarem
grandes óculos escuros, supõe-se, para que seus olhos não sejam vistos). (Gonzales, op. cit., p.114.).
127
na noite dos tambores silenciosos119, todos os grupos de maracatu rufam as alfaias à
meia noite.
Alguns integrantes do Baque foram a Recife tocar no carnaval (1999), e
foram bem recebidos pelo Estrela Brilhante120. O Estrela tem um integrante, Eder, o
“Rocha121”, que ministrou aulas ao Baque, e “pertencia” aos dois grupos. Quando a
visibilidade do grupo passou a comprometê-lo no terreno conflituoso das relações e
influências que existem no carnaval, Eder afastou-se do Baque.
As oficinas do “Rocha” deram um novo impulso no grupo do Baque, que
aprimorou suas toadas e iniciou um aprimoramento musical que motivou a formação
da Banda do Baque que, como vimos, apresenta-se nos espaços fechados das casas
noturnas, bares e shows.
O contato com Eder foi fundamental para o Baque e para a pesquisa, pois nas
oficinas aprendemos a não cruzar o talabarte122, a fazer uma rotatividade123 com os
118
Segundo entrevista coletada pela pesquisa com o artista plástico olindense Adão Pinheiro: “O mestre Salú foi
cortador de cana, chofer de caminhão até ser respeitado como líder do Maracatu Piaba de Ouro que tem
uma forte liderança entre vários outros maracatus rurais que no carnaval desfilam na praça em frete a sua
casa na Cidade Tabajara (bairro de Olinda PE). O Dr. Salú também lidera um grupo de Bumba-meu-Boi,
mas atualmente se converteu ao protestantismo, como muito acontece com outros mestres pernambucanos e,
para piorar, está com marca-passo no coração...sorte que seu filho Maoelzinho, excelente dançarino, já é
mestre também...”
119
Cerimônia realizada à meia-noite da segunda-feira de carnaval, em frente à Igreja do Rosário (Recife), r
Reúne integrantes dos grupos pernambucanos de maracatu de baque virado, que entoam loas e cantigas.
120
Segundo entrevista concedida à pesquisa pelo músico André Bueno: “O Maracatu Nação Estrela Brilhante
Antigo maracatu pernambucano que passou para um novo grupo comunitário, incorporando com Mestre
Valter França um nova gama de toques que ampliaram o Baque Virado Antigo. Mestre Valter reuniu
experiência com maracatu tradicional e com escola de samba, o que resultou num grande vigor percussivo
da atualidade. O Estrela apresenta essas inovações e aspectos rítmicos e melódicos, devido à influência
externa do samba, do afoxé e do coco. Podemos constatar que a influência do samba é nítida em algumas
toadas (loas), no que diz respeito à métrica poética e a condução melódica propriamente dita. Na parte
instrumental percebe-se que no batuque o caixa também "puxa", nas suas variações, o padrão rítmico do
samba. A partir da temática das loas poderemos analisar o elemento africano em palavras, e nas melodias”
121
Eder Rocha é percussionista do Estrela Brilhante e do grupo Mestre Ambrosio e, no início da formação do
Baque Bolado foi apresentado ao Baque pelo músico André Bueno. Atualmente conduz regularmente
“oficinas de maracatu” na Nau de Ícaros, na Vila Madalena e na USP, em São Paulo.
122
Faixa de pano que ajuda a segurar junto ao corpo do músico o instrumento.
123
A rotatividade dos instrumentos tem um caráter iniciático de estabelecer um forte vínculo entre o mestre, os
alunos e a comunidade. No início do Baque os instrumentos eram jogados e não tinham afinação. Saber
simplesmente tocar não é interessante para o grupo mas sim conhecer todos os instrumentos em profundidade
sem se especializar em determinado instrumento. A dança, o ritmo, os passes, os gestos, os personagens do
128
instrumentos, cantar as toadas e loas pensando nas variações rítmicas e viradas do
maracatu (os diferentes toques e viradas têm um que aos poucos foi revelado). Além
de pertencer ao Estrela Brilhante - que aglutina influências do maracatu, do coco e do
samba -, Eder toca no Mestre Ambrósio, grupo que leva o nome de um personagem
do Cavalo Marinho124, ritmo pernambucano que tem forte presença de instrumento
melódicos, ritmo hipnótico, repetitivo e desafiador que lembra uma mistura entre a
capoeira e o coco.
A união do transe do maracatu a outros ritmos que contêm uma sonoridade
rítmica e melódica que induzem a estados alterados ligados ao terreiro abriu uma
porta, tanto para a presente pesquisa quanto para o Baque. De posse desse
conhecimento, o Baque iniciou seu “vôo” nas apresentações. Anteriormente nossas
performances eram lineares e continham apenas a “virada” do ritmo, como na
maioria dos outros grupos de maracatu. Algumas pessoas do grupo tinham mais
experiência musical e sabiam “virar”, momento em que atingíamos o ponto máximo
do “show”. O “vôo” foi “roubado” do contato com a escola de samba Pérola Negra,
cuja bateria diminuía a “força” e colocava seus instrumentos no chão para, em
seguida, voltar a tocar até a máxima intensidade. Pessoas que tocavam na Pérola
Negra integravam o Baque rapidamente adaptaram o “vôo” da Pérola ao maracatu:
no meio do cortejo, após o grupo “virar”, o comando era dado pelo apito e todas as
alfaias tocavam mais baixo até todos, músicos e platéia, ficarem abaixados rente ao
chão; ao sinal de “vôo” todos tocavam e pulavam com toda a intensidade possível. O
contágio da platéia era evidente, e assim nossas performances combinavam vários
maracatu tem funções especificas e representam “entidades” que desfilam em conjunto com os figurantes do
cortejo.
129
momentos com “climas” musicais, melódicos e variações rítmicas do maracatu, até
atingir o “vôo”, que envolvia todas as pessoas.
O contato do percussionista Eder possibilitou a compreender melhor a
influência dos maracatus e ritmos pernambucanos, em relação aos fundamentos
iniciáticos. À medida que o grupo tomava consciência disso e retirava do nome
maracatu adotava-se outros ritmos (como o coco, samba-reggae e o boi) abriram-se
os contatos com outros grupos no Maranhão e em Pernambuco.
Assim gravamos algumas apresentações de boi no Maranhão e conhecemos o
terreiro de Pai Euclides, em São Luiz. Os grupos Cachuera e Cupuaçu (Tião
Carvalho), ligados a Pai Euclides e à “brincadeira do boi” ganhavam, nessa época,
visibilidade na mídia e se organizavam como ONGs: mantinham ensaios, oficinas e
apresentações regulares e também trocavam experiências com o Baque.
No Morro do Querosene125 a tradição musical folclórica afro é bastante forte,
com grupos de Capoeira, Bumba-meu-boi, Tambor de mina126 e Coco. É território de
artistas, músicos como Tião Carvalho, nascido em Cupuaçu (MA); Dinho
Nascimento, nascido em Salvador (ganhador do premio Sharp de música com o CD
124
Teatro-Dança Dança praticado na Zona da Mata de Pernambuco e Paraíba, como uma elaboração detalhada
dos Bumba-meu-Bois antigos- É apresentado entre o Natal, dia de Reis(6/01), São Sebastião (20/01) e Nossa
Sra. Das Candeias(2/02).
125
O 'Morro do Querosene localiza-se próximo à Vila Madalena, do outro lado do Rio Pinheiros, e também está
próximo à Universidade de São Paulo (USP).
126
Tambor de Mina em relação a região africana Costa da Mina entre Gana e Benin segundo Prandi (1997),
p113. “Em São Luís e outras cidades do Maranhão, a religião dos voduns recebeu o nome de tambor-demina, alusão à presença constante dos tambores nos rituais e aos escravos minas, como eram ali designados
os negros sudaneses. Trata-se de religião iniciática e sacrificial, em que os sacerdotes são ritualmente
preparados para "receber" as divindades em transe. As entidades manifestadas, que podem ser voduns ou
encantados (espíritos), vêm à terra para dançar em cerimônias públicas denominadas tambor. As entidades
são assentadas (fixadas em artefatos sacros) e recebem sacrifício, com oferta de animais, comidas, bebidas e
outros presentes. Segundo tradição africana que se manteve no Brasil, cada humano pertence a um vodum,
sendo para ele ritualmente consagrado em cerimônias iniciáticas, como ocorre no candomblé dos orixás. O
tambor-de-mina, assim como outras modalidades religiosas afro-brasileiras, apresenta forte sincretismo com
o catolicismo e suas festas têm um calendário colado ao da Igreja Católica. No Maranhão, festas e folguedos
populares de caráter profano, como o bumba-meu-boi e o tambor-de-criola estão muito associados ao
tambor-de-mina”.
130
Berimbau Blues)127.e outros. As festas do Morro do Querosene, a cada ano maiores e
melhor organizadas, possibilitam o intercâmbio entre os grupos e o público de São
Paulo. O público foi se habituando às brincadeiras “sérias” do maracatu, do boi, do
coco e do Tambor-de-crioula. Dançando, cantando e batucando, as pessoas
participavam das festas até o amanhecer, quando as mulheres dançavam o tambor,
encerrando a brincadeira128.
A fundamentação e a pesquisa musical, sonora, melódica e rítmica da tribo
percussiva atraiu empresas de instrumentos musicais interessadas em melhorar a
sonoridades dos instrumentos produzidos em série. A Cia. Golpe intensificou a troca
de informações com o Baque mas, à medida que os contatos com Recife foram se
solidificando, possibilitando a “importação” de instrumentos com boa sonoridade,
esse vínculo inicial desapareceu.
A visibilidade das “troupes musicais”
direcionou o modelo de organizações não
governamentais de produção independente de
CDs vídeos e sites para a Internet. O Baque
conseguiu rapidamente mudar seu nome para
Cia. do Baque Bolado e lançou seu primeiro
Figura 13 Alfaia de madeira, baquetas
CD. Aqui o Baque já tocava maracatu com
sem bolas e gonguê de ferro.
127
Além de capoeirista, Dinho estudou piano, e incorporou ao berimbau um captador eletrônico com corda de
contrabaixo, trazendo novas sonoridades ao instrumento.
128
Tambor-de-crioula é um folguedo de “rua”, não é o mesma coisa que o Tambor de Mina de “terreiro”(com
transe possessivo). Na “brincadeira” Tambor-de-crioula (sem transe), as mulheres dançam e os homens tocam
tambores, feitos de um tronco único e afinados (aquecidos) à fogueira.
131
todos os instrumentos tradicionais: alfaias, conguês, tarol (caixa) e ganzá (caxixis)129.
As oficinas não se restringiam à parte musical, mas trabalhavam a voz, a
dança e a confecção das roupas e chapéus130. Aos poucos fomos tomando contato
com a complexidade do maracatu e os procedimentos necessários que constituíam a
totalidade da “nação”. Concluímos que os fundamentos seriam preservados e reelaborados pelo grupo, procedimento que seria adotado também para os outros
ritmos.
A abordagem do transe tema é complexa, difícil e pode levar a erros, por
causa do preconceito, da transmissão verbal dos ensinamentos, do isolamento dos
terreiros e da escassa literatura existente sobre o assunto. Assim, optamos por
analisar somente os fatores que influenciaram o maracatu pernambucano na
composição dos instrumentos, harmonias e ritmos. Ainda assim, as gravações, as
viagens, as leituras e as vivências consumiram o limite de tempo de quatro anos, de
que dispúnhamos para a realização deste trabalho.
A RELAÇÃO ENTRE GRUPOS ESTUDADOS E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
No Brasil, o transe influenciado pela sedimentação das culturas indígenas,
africanas e árabe-européia esteve restrito aos terreiros - candomblé, umbanda -, aos
ritos iniciáticos indígenas (Santo Daime), à Capoeira e ao carnaval até os anos 80,
quando ocorreu explosão dos ritmos baianos que libertaram os tambores do terreiro.
Anteriormente o transe guardava relação direta com os povos orientais, e estava
associado ao relaxamento e à meditação. Na década de noventa - principalmente com
129
Os instrumentos tradicionais do maracatu de baque virado são: conguê (agogô), tarol (caixa), alfaias (surdos)
e, em alguns casos, instrumentos de sopro.
130
Os chapéus do Baque são elaborados com espuma sintética (EVA) muito utilizada na cenografia (por ser fácil
de cortar) e conferiam um colorido especial ao grupo.
132
a explosão da música étnica e as raves -, ele é incorporado à sonoridade musical
ocidental. A evolução dos sintetizadores é um marco relevante, pois estes passaram a
captar a sonoridade dos tambores, e a “batida afro” passou a ter maior visibilidade. O
mercado fonográfico soube aproveitar esse momento e acolheu a nova percussãoharmônica, que trouxe novo sentido ao transe musical. Um novo estilo musicaleletrônico passa a roubar a “cena eletrônica” o trance. Suas principais caraterísticas:
um estado de êxtase que prolonga as festas e desloca o ouvinte a estados alterados de
consciência.
Figura14 Percpan 1994-Foto Ricardo Ivanov
Os músicos percussionistas Alceu Valença, Naná Vasconcelos e Chico
Science (PE), Papete e Zeca Baleiro (MA), Carlinhos Brown e Dinho Nascimento
(BA) incorporaram o êxtase folclórico (contagiante e energético) da percussão ao
blues e ao samba-reggae, possibilitando novas variações e associações rítmicas e
133
trazendo visibilidade internacional à musica e aos novos instrumentos percussivos,
antes restritos às ruas. Quando a percussão saiu da “cozinha”, como assinala
Guerreiro (2000), o percussionista ganhou status de músico, o que culminou com a
realização de festivais de percussão internacionais (Percpan)131. Isso ocorreu graças à
força da worldmusic e da etnomusic, e à ascensão da axé-music, da lambada, da
timbalada e do reggae. Naná chegou a trazer um grupo de músicos pigmeus ao
Brasil, e a integração entre estes e os músicos brasileiros foi o ponto alto do Percpan.
CONCEITO DE IDENTIDADE / REALIDADE-MESTIÇAGEM-MODISMO /
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
O contato com a mãe África restabeleceu-se de forma diferente: a música
africana ganhava visibilidade na Europa, e o Brasil soube receber a música africana,
incorporando suas sonoridade melódica ao ritmo percussivo e aprimorando o sistema
de gravação. Guerreiro lembra a primeira grande mudança em relação à sonoridade
das ruas, quando o grupo Ilê Aiyê gravou seu primeiro disco:
“Na Bahia, a mudança de intenção, que coloca os tambores em posição
central na sonoridade registrada, começa a emergir nos anos 80. A primeira
experiência foi a gravação do disco de estréia do Ilê Aiyê, Canto Negro, em
1984. Depois de dez anos utilizando somente a rítmica acústico-percussiva para
fazer música na comunidade negra, o bloco afro pioneiro passa a circular no
universo eletrônico de um estúdio de gravação. Seus tambores foram captados
numa área externa do estúdio. Era uma tentativa de registrar o som dos
instrumentos num espaço mais próximo daquele onde a forma musical foi
concebida: as ruas da cidade e as quadras de ensaio dos blocos afro”132.
131
PERCPAN (PANorama PERCussivo): Idealizado, desenvolvido e produzido pela Socióloga Elisabeth Caires,
o primeiro PercPan aconteceu em março de 1994 e sua realização consumiu cerca de 8 meses de pesquisa.
Foram realizados shows, workshops e oficinas, tendo sempre o Teatro Castro Alves como palco principal. Na
sua última edição o PercPan também ganhou as ruas, invadindo a praça e devolvendo ao povo o que ele
próprio criou, o ritmo. É maior festival de percussão do mundo. http://percpan.terra.com.br/hist.asp
132
Guerreiro, op cit., p.118.
134
E mostra as dificuldade e a evolução dos estúdios e produtoras
soteropolitanos para gravar a nova sonoridade dos tambores com qualidade:
“Essa tecnologia foi desenvolvida pela WR, a única gravadora de salvador,
cujos estúdios produziram cerca de 90% de todo o material fonográfico que,
naquela época, saiu da Bahia para o mercado nacional. Além de ter sido peçachave na configuração de um mercado fonográfico local, ela é responsável pelo
aperfeiçoamento da técnica que permite gravar, em estúdio, a percussão como
elemento sonoro central. Por isso, a WR ocupa um lugar de destaque na história
da música afro-baiana. A captura da percussão se deve a um alto investimento
do dono dos primeiros estúdios de gravação de Salvador, Wesley Rangel. „Nós
começamos a investir num estúdio mais profissional. Tudo era muito difícil,
porque os equipamentos de boa qualidade tinham de ser importados e havia
uma taxação muito alta. E a gente teve que ir investindo aos poucos, até chegar
ao estúdio de 24 canais. Aí alcançamos uma estrutura com 5 estúdios, criando
um novo espaço de mercado para todos, um mercado geral.‟ O projeto de
sofisticação tecnológica de Wesley Rangel trouxe a possibilidade de registrar o
som dos tambores ao vivo e a produção musical baiana passou a exibir toda a
potência dos seus instrumentos percussivos, com o recurso da amplificação,
através de microfones ligados a uma mesa de som.133”
Aproveitando esses movimentos da indústria fonográfica aberta à percussão,
que modificaram a cena musical brasileira, o grupo do Baque ganhou espaço em
casas noturnas, eventos e shows dentro do Estado de São Paulo. O grupo se
estruturou musicalmente e operacionalmente, o que tornou possível que seus
integrantes - músicos, dançarinos e artistas da região da Vila Madalena - vivam
exclusivamente da dança e da música étnica.
Vimos as influências que o grupo estudado sofreu das raízes e dos novos
meios de comunicação. A seguir, passaremos a discutir os rituais das tribos e sua
ligação com a música eletrônica.
133
Guerreiro, op cit., p.118.
135
CAPÍTULO 4
OS RITOS E A SUBLIMAÇÃO DAS TRIBOS
OS RITOS E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Uma inquietação surge das diferenças dos grupos estudados, mais
precisamente no que concerne ao transe e ao êxtase nos rituais, ao uso do território à
força dinâmica dos signos e às suas relações tribais. Antes de aprofundarmo-nos nas
relações de territórios e no dinamismo dos signos, teceremos algumas considerações
sobre o pensamento ritual-tribal e sua ligação com as sociedades consideradas
“primitivas”, “primárias”, “selvagens” etc. Anteriormente observamos as diferenças
entre o transe divino e revelador (Pitágoras), o transe purificador (sufi) e o transe
curativo-possessivo (gnawa e voduns). Também verificamos as influências que os
grupos paulistas recebem das raízes nordestinas, e a profanação do transe possessivo
do terreiro nas festas populares. Assim, vejamos como os rituais se modificam, desde
suas raízes até atingirem as cidades.
Para manter a união dos grupos que a compõem a tribo estabelece uma
relação com os ritos. Em São Paulo o ritual se dilui: o grupo por nós estudado, por
exemplo, está fisicamente distante dos grupos originários e das danças, dos ritmos e
dos fundamentos dos terreiros. O que impressiona é que ainda hoje exista uma
dicotomia entre sagrado e profano, popular e erudito. Essa polarização dificulta uma
aproximação isenta de maniqueísmos, mas a metrópole paulistana contempla a
136
mistura de credos, comportamentos, aculturações e outras associações inéditas e
peculiares, que trazem componentes do pensar ritual ainda não desmistificados,
carregados de fundamentos e conteúdos iniciáticos, que nos provocam grande
emoção. E foi exatamente a hipnose provocada pelo ritmo do maracatu, nas saídas do
grupo pelas ruas de São Paulo (arrastões) e em várias apresentações em clubes e
bares – cuja sonoridade e cuja dança carregadas de elementos rituais provocam forte
impacto - que despertou nosso interesse pelas relações entre o maracatu e os
terreiros.
A TV, os jornais, as revistas e a mídia em geral apresentam somente as
manifestações profanas das festas religiosas brasileiras - com sua riqueza de cores,
ritmos e sabores -, mas não temos acesso ao processo interno dessas festas, um
contato direto com a fonte, com os mestres, com os pais-de-santo, com as baianas e
com os curandeiros. Uma difícil e lenta aproximação a essas fontes foi necessária
para compreendermos a complexidade do transe e dos estados alterados de
consciência de nossos ritos, bem como sua cosmologia. Seus relacionamentos com a
comunidade e com os costumes e sua espacialidade territorial sinalizaram que havia
longo caminho a ser percorrido e vivenciado.
O transe possessivo representa o “lado escuro”, de difícil aproximação e
abordagem, porque o “incorporado” não tem consciência de seu próprio “eu”: ele é
“alugado” por “entidades” ou pelo “outro”, e necessita de um intérprete ou
intermediário. A “obrigação”, os procedimentos e os rituais dos terreiros dificultam a
análise e a pesquisa a um observador “estranho” ao processo. Não obstante, a relação
137
entre os terreiros é conflituosa e interpretativa, dando margem a afirmações e
convicções equivocadas e competitivas e a facções e descendências de toda ordem.
No breve espaço deste capítulo tentaremos entender as diferenças e
particularidades do pensamento ritual brasileiro, que aponta para algumas
considerações territoriais e espaciais sobre os grupos estudados. Os afrodescendentes
do Brasil sofrem a influência de diferentes culturas – católica, greco-romana,
muçulmana, judaica e protestante, esta última majoritária em nossa condição de país
em desenvolvimento -, que fizeram e fazem parte de nossa história. Em outro ângulo
paradigmático, aprofundamos o estudo das sociedades indígenas e negras africanas
(Kêtu, Nagô, Bantu) cujas influências, embora minoritárias no Brasil, são bastante
fortes no grupo de maracatu estudado. As influências de culturas milenares japonesa, chinesa e tibetana - não serão apontadas, dada a complexidade que existe,
nessas culturas, entre os estados alterados da mente e a respiração, a concentração e a
movimentação. O transe meditativo distancia-se do transe dos grupos estudados
(maracatu, boi e raves) pois depende basicamente da entonação de mantras134. No
transe meditativo a palavra tem uma enorme importância: quando perfeitamente
pronunciada e aliada à respiração e à cadência do mestre ou monge que dirige a
sessão religiosa, sua vibração induz a estados que podem ser compartilhados
coletivamente.
Nesse terreno delicado do transe e de suas manifestações encontramos um
ambiente culturalmente fértil. As tribos urbanas buscam informações e experiências
134
O trabalho de Holtzman (1994) mostra a importância da pronúncia correta do mantra e a vibração interna
repetitiva que chega ao cérebro provocando o transe meditativo.
138
que podem iluminar um novo caminho educacional, ou a boa interpretação dos
sedimentos culturais que formam a índole do brasileiro.
Na cidade de São Paulo os centros os templos, os terreiros de umbanda e
candomblé, e as casas de estudos de diferentes religiões convivem pacificamente, ao
contrário do que ocorre em outras metrópoles, em que há conflitos de rua,
perseguições, motins e guerras. A presença desses diferentes credos influencia até
mesmo os nossos dirigentes, que consultam videntes, pais-de-santo etc. para
desvendar o futuro e garantir sorte a seus governos.
Mas mesmo o multiculturalismo não impede que certos movimentos sofram
forte discriminação, embora esse assunto não seja objeto do presente trabalho. Árdua
é a tarefa de verificar como certos movimentos urbanos tornam-se populares e são
assimilados e desmistificados, e de que forma eles utilizam matrizes culturais
enraizadas em culturas distantes para ampliar suas sensações sensoriais e afetivas.
RITO SEM MITO
Era comum, na fundação das cidades gregas e romanas, a realização de rituais
destinados a acalmar os deuses e protegê-las do infortúnio, do mau-olhado, das
pestes e dos inimigos. Nesses rituais o labirinto era literalmente demonstrado nas
danças, nos movimentos e nos gestos, realizados de forma dualística para iludir,
confundir o “que vinha de fora”. E a figura do labirinto está ligada tanto à idéia de
morte quanto à idéia de vida, de renascimento, de florescimento.
“Em Roma, todos são estrangeiros, começando por Rômulo, que vem de
Alba Longa, por Tito Tácio e pro Numa, que são sabinos, por Mamúrio
139
Ventúrio, que é osco... a nova cidade não nasce de laços tribais já existentes, e
sim da reunião dos sem pátria que se congregam no refúgio aberto pro Rômulo.
O próprio rito da fundação da cidade é ensinado a Rômulo por especialistas
etruscos chamados expressamente para a ocasião. Contudo , entre a fundação
das cidades etruscas e a cidade de Roma, intui-se a mesma relação de trânsito
do mesmo para o mesmo que existe entre o escudo caído do céu e aqueles
reproduzidos pela arte de Mamúrio135. Roma é desde o início uma cidade
simulada, que, no entanto indiscernível de uma cidade verdadeira”. 136
Não é necessário muito esforço para identificar a semelhança entre Roma e
São Paulo, pois ambas foram fundadas por estrangeiros. Em São Paulo o estrangeiro
não é um turista, é um trabalhador. Em São Paulo é possível o anonimato, pois o
crescimento econômico imprime um ritmo acelerado e impessoal aos indivíduos. No
Rio e em outras cidades menores todos acabam se conhecendo, as turminhas reúnemse em pontos específicos, em bares e nas praias. Já em São Paulo, ao contrário, os
locais tomam a forma de suas tribos e identificam seus usuários. Os movimentos
tribais não são exclusividade de São Paulo; eles existem em todas capitais brasileiras,
e assumem características próprias e regionais.
Nossa cidade também é simulada, repetitiva, labiríntica e impessoal. Aqui
somos todos estrangeiros, as pessoas não se cumprimentam, os vizinhos não trocam
olhares ou afagos, nem mesmo nos elevadores. Há espaço para a individualidade, há
territórios férteis e sem controle (livres) para as tribos se desenvolverem.
“A arte do ferreiro Mamúrio não é, portanto, uma criação original,
independente e autônoma, nem a imitação falsificadora do modelo divino, mas
uma repetição tão exata que anula o protótipo ao mesmo tempo que o preserva.
135
Mamúrio, o ferreiro, por encomenda do Rei Numa, teria feito onze cópias do escudo caído do céu para que
ninguém pudesse roubá-lo. Essas cópias foram tão bem feitas que ficou impossível Numa reconhecer o
original. O escudo caído do céu é objeto de veneração e fato cultural, transformando-se na unidade temporal
do mês: os doze meses do ano do calendário de Numa.
136
Perniola (2000), p.224.
140
A sua arte não se opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem aceita
um papel subordinado ou dependente: ela se põe ao lado de tudo que é
oferecido, multiplicando-o, deslocando-o, introduzindo-o num trânsito do
mesmo para o mesmo. O triunfo da cópia é também extrema fidelidade ao signo
enviado pelos deuses, porque nenhuma variação é permitida; no entanto, essa
fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa do exemplar único, o torna
normal, regular, cultural. O sucesso da atividade humana é por isso destituído
de arrogância e de orgulho, é sem culpa, inocente”.137
A convivência harmoniosa de vários credos em São Paulo deve-se ao
tamanho, à repetição e à multiplicação da cidade ao infinito. Tais características
diminuem a força da natureza, e conseqüentemente a ação divina é diluída,
desmistificada, empobrecida. Por outro lado, aqui o sucesso da atividade humana é
inocente. Apenas crescemos, de forma desordenada, involuntária e ingênua. A
semelhança, a cópia, a adaptação têm caráter dissimulador, preservando conteúdos
opacos ao primeiro olhar.
“ Ars e urbs, operação artística e ordem política, têm seu ponto de encontro no rito, que é o
eixo da religião e da sociedade romana arcaica. Contrariamente à concepção mais difundida na
antropologia cultural e na história das religiões, que considera o rito dependentemente do mito, a
religião romana oferece o exemplo de um rito sem mito, de uma repetição extremamente precisa e
escrupulosa de atos culturais cujo significado originário é calado, esquecido, ignorado” 138.
Verificamos também em São Paulo, exatamente a estratégia romana de
manter unificada, na mesma cidade, estrangeiros de várias procedências sem dar
margem a atritos, cultivando a desmistificação da ação mítica e social. Perniola
prossegue em sua análise:
137
Perniola, op. cit., p.222.
138
Perniola, op. cit., p.230
141
“.A orientação que está na base de tal desmitificação, tão diferente da
desmitificação realizada pelo judaísmo, que considera a historia o âmbito no
qual se desenvolve a ação de Deus, aspira a instauração de uma “ordem“
suscetível de múltiplas determinações. O esvaziamento, a separação entre rito e
mito é a própria condição de ordem, que é tal apenas se reproduz tão bem o
protótipo a ponto de dissolvê-lo”139
Extraídos de um campo limitado de referências, os ritos ou atos simbólicos
têm estruturas fixas, os rituais nunca são novos: são reinventados, otimizados,
traduzidos e até caçados entre as culturas das sociedades marcadas pelo espetáculo.
Em sua ativação pela mídia os rituais criam um êxtase coletivo e temporal que
perdura enquanto as forças simulacrais estiverem agindo. Podem assumir caráteres
que vão do banal ao frívolo ou do religioso ao multi-sensorial.
Na década de 60, marcada pela contracultura, por grandes transformações
sociais e pelo movimento estudantil, os comportamentos conservadores – como os
rituais clássicos do batismo, do casamentos, os títulos, os prêmios etc. - eram
repudiados. Não vamos nos deter nesses ritos sem mitos ou na sua aversão, efetuada
ainda hoje pelos grupos mais jovens. Tampouco vamos celebrar aqui os mitos,
contradizendo o objetivo da pesquisa. Apresentaremos algumas matrizes dinâmicas
de grupos aculturados, de rituais que permaneceram à margem da sociedade desenvolvidos em seitas fechadas, em territórios isolados – e que influenciam os
grupos estudados, principalmente o do maracatu. Alguns não chegam a se tornarem
mitos, permanecem escondidos na periferia do olhar.
A cosmologia desses grupos que influenciam o maracatu e sua relação com o
presente, o passado e o futuro são fundamentais para entender a possessão do corpo:
139
Perniola, op. cit., p.230-231.
142
a riqueza de timbres e de cores assume um significado mítico e promove o transe.
Um sair do corpo que necessita de “tradutores” ou “intérpretes” para o “possuído”
entender a mensagem, a profecia, a cura ou desfazer o mau olhado, o mal-estar ou o
encantamento. Esses feitos e visões são entoados nas “loas” (cantigas) que trazem os
feitos em suas letras as histórias, dando força e emoção ao cortejo. Já conhecemos a
loa urbana do Baque Bolado e seu esforço para preservar e adaptar as transformações
da estrutura rítmica e dos signos coreográficos, que levaram a (re)elaborar o ritual do
maracatu na cidade grande.
RITO COM MITO
Nas sociedades tidas como primitivas, os ritos são um elemento central e
aproximam-se do mágico e do religioso, quando não do transcendental. Muito
distantes, portanto, dos nossos ritos presos ao mundo profissional, político, lógico e
cartesiano. Para entender essa cosmologia, podemos citar como exemplo os Nagôs,
que no período colonial estiveram presentes em Recife e na Bahia:
“Na diáspora, o espaço geográfico da África genitora e seus conteúdos
culturais foram transferidos e restituídos no “terreiro” . Fundamentalmente, a
utilização do espaço e a estrutura social dos três “ terreiros” tradicionais
Nagôs mantiveram-se sem grandes mudanças. Por sua extensão, reputação e
organização complexa, o Àxé Òpo Afònjá da “roça” de São Gonçalo d Retiro
constitui um modelo exemplar”140.
Santos mostra os espaços dos terreiros, que nasceram e se protegeram no
urbano e hoje estão nas periferias das cidades, conservando a força e a coesão social
140
Santos (1986),p.33.
143
entre os pais (pais-de-santo, mestre), seus filhos (grupo de iniciantes e de cabeça
feita) e os “de fora” (visitantes e amigos).
No presente estudo, abordaremos a concepção dos Nagôs sobre os planos
existenciais que convivem com o real e imprimem novos significados à morte, ao
futuro e ao passado. Essas categorias são de fundamental importância para o
entendimento do transe e da possessão do corpo, e são a chave para compreendermos
os cultos dos Eguns141, que possuem as vestes (e não o corpo) sem carne, sem
possessão com o afastamento do Ego (self).
“Os Nagô concebem que a existência transcorre em dois planos: o àiyé, isto
é, o mundo, e o òrum, isto é, o além. O àyé compreende o universo físico
concreto e a vida de todos os seres naturais que o habitam, particularmente os
ará-áyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade.
O òrum é o espaço sobrenatural, o outro mundo. Trata-se de uma concepção
abstrata de algo imenso, infinito e distante. É uma vastidão ilimitada- ode òrumhabitada pelos araorum, habitantes do òrum, seres entidades sobrenaturais”. 142
Os afro-brasileiros convivem com um mundo sobrenatural que aceita trocas,
presentes e que, no exercício do jogo de búzios, elucidado o presente pelo passado,
onde as ações já ocorreram. Podemos imaginar o tempo como um vetor que sai do
presente em direção ao atrás, aos ancestrais. Sob esse ângulo, o transe possessivo
africano assemelha-se ao transe revelador dos pitagóricos, que também direcionavase para trás no tempo. Cosmologicamente, as culturas africanas e afrodescendentes
141
Os Eguns ou Egunguns são entidades entre a Terra e as divindades ligadas aos nossos ancestrais. Durante a
pesquisa, estivemos na casa do Pai-de-Santo Sr. Domingos, em Itaparica (BA), que nos informou que a
energia de um Egun vem à terra agradecer o Oru (festa cantada na porta da Igreja aos orixás); depois do Oru
arranca-se a bandeira (estava colocada no mar), e algumas pessoas levam uma vela a Salvador, em
homenagem ao Senhor do Bonfim. No sábado é realizada a festa do Babá, em que os Eguns saem. A energia
deles é forte e não pode ser tocada, razão pela qual, nessa festa, as pessoas utilizam varinhas de madeira para
se protegerem dos Babas. Durante a festa as vestimentas são movimentadas somente pela força do espírito
dos Eguns.. Eles oferecem força, saúde e felicidade. A festa não pode ser vista por todos. É necessário ter
uma relação de parentesco ou receber um convite para poder participar do evento.
144
têm uma outra relação com o tempo presente: o transe é o elemento unificador que
elucida o “agora” por meio da incorporação das entidades. A música evocativa e
possessiva funciona como um “elo” possibilitador, facilitador e unificador dessas
potencialidades, conferindo ordem, coesão e disciplina ao terreiro.
RITO COM CULPA
Para os índios da selva amazônica os rituais com transe promovidos pela
ingestão de cipós alucinógenos assumem caráter incestuoso com forte conotação
sexual. Esses povos acreditam que, no “transe”, as visões evocam o início do mundo,
quando os seres habitantes da selva foram criados:
“Segundo os Tukano, depois de uma fase inicial de luminosidade indefinida,
de formas e cores em movimento, a cena se aclara e se definem detalhes
significativos. Vê-se a Via-láctea e o reflexo longínquo e fertilizador do sol; vêse a primeira mulher surgir das águas do rio e formar-se o primeiro par de
ancestrais. Vê-se o dono sobrenatural dos animais da selva e das águas; os
protótipos gigantescos dos animais de presa; a origem das plantas, da vida em
si. Também aparecem os princípios do Mal; os jaguares e as cobras, os
representantes das enfermidades e dos espíritos da selva que assediam o
caçador solitário”143.
Aqui o transe novamente remete-se ao passado mítico (para trás), aos
ancestrais e à cura, por outras vias, mas o que ele tem de inovador é o seu conteúdo
sexual, erótico. Reichel-Dolmatoff (1976) aprofunda essa etapa simbólica do transe
indígena:
“A experiência alucinatória é, para o indígena, essencialmente uma
experiência sexual. Sublima-la é passar do erótico, sensual, a uma união mística
142
Santos, op. cit., p54.
143
Reichel-Dolmatoff (1986), p.80.
145
com a etapa mítica, a etapa intra-uterina, é o objetivo final alcançado por
alguns, mas desejado por todos”. 144
“Em primeiro lugar, é evidente que na interpretação que o indígena faz de
sua alucinações, operam processos de projeção e de feedback, de experiências
culturais prévias, quer dizer, de uma memória visual e circunstancial O
indivíduo viu, desde sua infância, duas categorias de modelos, a saber, os
oferecidos pela natureza e os que estão representados pelos artefatos humanos.
Os modelos oferecidos pelo meio ambiente físico são: a vegetação da selva
pluvial amazônica; os rios; as praias de areia; as nuvens; flores; frutos;
mariposas e algumas aves. Na interpretação das alucinações, as flores e frutas
figuram com freqüência e fala-se em pétalas, cipós , ramos , cachos e outras
formas vegetais; também se mencionam certas aves e fenômenos tais como os
astros , o arco –íris, a Via-Láctea e outros mais. Também se deve ter em conta
que, na semi-obscuridade da selva, as cores vivas de um jaguar são muito
chamativas, e que muita cobras Têm um colorido forte. De outro lado estão os
objetos manufaturados.
Desde a sua primeira infância o indivíduo viu os motivos decorativos na
cerâmica, nas entrecascas pintadas ou nas casas adornadas com grandes
desenhos, e seu significado lhe é explicado. Os adolescentes que ainda não
tomaram yaé já tem um vago conhecimento dos signos mais comuns: masculino,
feminino, incesto, exogamia. Pode-se pensar que em um estado de alucinação, a
pessoa protege sua memória cultural-visual sobre a confusa tela de cores e
formas e “veja” então certos motivos e personagens. As alucinações não
formam entre os Tukanos, um aspecto íntimo, secreto; pelo contrário, são
discutidas livremente, e mais, durante as alucinações, ocorre que uma pessoa
descreve suas visões e pergunte a outra o seu significado. Essa livre
comunicação de experiências poderia levar a um consenso, a uma fixação de
certas imagens, e, desse modo, qualquer que seja a visão, sua interpretação se
adaptaria a um modelo cultural”
144
Reichel-Dolmatoff, op. cit., p.81.
146
Figura 15 Motivos codificados dos Tukanos: 1 - Masculino; 2 - feminino; 3 - fertilizado; 4 - Útero
como passagem; 5 - Gotas de sêmen; 6 - Anaconda-canoa; ,7 - Frataria, * Grupo de fratárias*; 9
- Descendência; 10 - Incesto; 11 - Exogamia; 12 - Caixa de adornos; 13 - Via-Láctea; 14 - Arcoíris; 15 -Sol; 16 - Crescimento vegetal; 17 - Pensamento; 18 - Bancos; 19 - Maracas; 20 Forquilhas de charuto.
Podemos concluir que a cultura indígena, assim como as culturas africanas,
também socializa as suas experiências e depura seus significados à medida que o
grupo fortalece os vínculos que mantém entre seus integrantes, e entre o grupo e as
entidades desse mundo virtual-mágico ligado às suas origens míticas. Observamos
aqui um equívoco da cultura ocidental, que não compartilha o transe e segrega
historicamente a loucura e a magia.
Verificamos, com entusiasmo, que no Brasil, para nossa sorte, a miscigenação
das culturas africanas e indígenas conserva certos pontos axiomáticos que formam
paradigmas para entender o significado dos adornos, dos territórios e da presença da
147
água (feminino) no estabelecimento contato com as entidades (para ter “força” ou
ver o “saber” e a “cura”). Esses vetores culturais já foram (re)valorizados em várias
sedimentações ao longo de nossa história: no canibalismo indígena, nos quilombos,
nos terreiros, no canibalismo modernista e agora no neocanibalismo. Adiante
aprofundaremos esses aspectos, inter-relacionando tais experiências com a
virtualidade, a espacialidade e temporalidade do transe possessivos, e comparando-as
com o transe coletivo-individualista da cultura rave.
Assim, por opção paradigmática, atribuímos maior importância para à “curatranse” do que ao canibalismo, para não confundir esses “estados” com a violência e
o sentido “atrasado” que possam vir a ter. Somente culturas milenares apresentam
uma relação profunda com o transe (principalmente o transe meditativo), e estamos
bem longe de compreender essa ligação.
RITOS DE PASSAGEM
Os comportamentos e os estereótipos assumem a importância dos ritos de
passagem, que marcam etapas a serem cumpridas socialmente. Nas sociedades de
cultura eminentemente oral, os ritos assumem grande importância porque assinalam
passagens que transformam as hierarquias: o rito de passagem exorciza o perigo das
fases intermediárias, separa-as e são uma forma de negociação.
Nas sociedades africanas os ritos de iniciação marcam rupturas com o
passado. Os “iniciandos” são submetidos a privações de toda ordem, para adquirir os
conteúdos e terem moldados novos esquemas de pensamentos.
148
Alguns ritos são secretos, iniciáticos. Suas máscaras, drogas, cânticos, danças
e conteúdo não podem ser vistos ou presenciados por todos, para evitar que o
conteúdo seja diluído ou que o “saber” caia em mãos erradas ou despreparadas para
assumir tal responsabilidade.
As cerimônias, às vezes, restringem-se à família, mas mesmo nesses rituais
íntimos há presença de crianças e de idosos. O sobrenatural adquire um caráter
educativo, medicinal, unificador, tecendo e fortificando os laços culturais da família
e, ao mesmo tempo, ajudando os ancestrais a identificarem e protegerem todos os
membros daquela comunidade:
“Polo chamou-me do outro lado da rua e eu entrei na cassa do cugu.
Somente as pessoas da família estavam lá: uma mulher de meia-idade usando
pequenas botas de homem e fumando um pequeno cachimbo de barro, uma moça
bastante gorda e uma adolescente. A mulher explicou-me que ela era a “dona”
do cugu; era a dona da casa e seu primo, que tinha vindo a Trujillo para a feira,
estava tendo a oportunidade de oferecer um cugu aos pais dela, ambos nascidos
em Trujillo”
“Vejo que você tem um método diferente em seu trabalho. O gule não
deveria ser um pequeno monte de terá? Ou isso é o gule? Ele me disse que era o
gule, mas que, geralmente, ele não trabalhava assim, somente neste caso
particular, em que “ a senhora estava em trânsito”, um verdadeiro gule não
podia ser construído. “Por quê?” “É muito problemático.”. “Você quer dizer,
chamar a mulher mais velha da família para cuidar disso?.” Novamente a
mesma risada satisfeita. “Sim”, respondeu ele”essa é uma das coisas, a dona do
gule”“145
Cerimônias realizadas em Cuba, em Honduras e em outros países de forte
presença africana têm rituais protegidos ou mesclados à cultura católica. Embora
145
Coelho (2000), p.238-239.
149
bastante semelhantes nos conteúdos, é necessário um grande esforço etimológico
para identificar as diferenças e as origens geográficas desses cultos.
Em São Paulo, algumas festas populares realizadas por afrodescendentes
apresentam elementos semelhantes e, da mesma maneira, são famílias que ordenam
os cultos. Os rituais de passagem, cultos e “agradecimentos” fortificam dos laços
familiares e da comunidade. No dia de Cosme e Damião, a comida é elaborada
coletivamente, e as crianças são as primeiras a serem servidas. É costume receberem
balas, doces e presentes. A culinária também é regida pelo “gosto” do santo da
pessoa, e algumas tarefas são obrigatórias para agradar o santo .
É comum que as pessoas que patrocinam as festas de transe possessivo
tornem-se responsáveis por tudo. Geralmente essas pessoas têm deveres para com a
comunidade, ou temem por sua saúde caso não cumpram as obrigações e os
preparativos. Assim, as cerimônias tornam-se ainda mais fechadas porque há
verdadeiros “donos”, que acabam privatizando as festas.
Nosso conhecimento sobre as cerimônias marcadas pela religiosidade afrobrasileira - Carnaval, festa de Iemanjá, festa do Divino, Bumba-meu-Boi, Folia de
Reis, Maracatu etc. - são estereotipados. Como anteriormente expusemos, a TV, o
rádio e os jornais difundem somente o aspecto profano dessas festas, mas há rituais
de passagem e relações territoriais ocultas que lhes imprimem significados
iniciáticos. A cultura brasileira é composta por elementos provenientes das culturas
africana, indígena e portuguesa. Em decorrência da sujeição a que foram submetidos
no período colonial, e da concorrência entre as diferentes irmandades - que
150
encantavam os grupos rivais, impedindo-os de saírem à rua -, os negros tiveram que
ocultar ou mesclar seus conhecimentos146.
Coelho (200) conclui, em seu diário de campo:
“A propósito do culto do gubida, ele me disse que esta palavra é na verdade
o nome de um poeta da antigüidade. As pessoas começaram a chamar o dogo,
que foi instituído por ele, de «dança do Gubida» e , com o passar do tempo,
tornou-se dança gubida, sem maiúscula. “Você sabe quem era este Gubida?”
“Não.” “Maomé”147 Engoli isso pasmo,mas não tive nenhum comentário
inteligente148”
Esse diálogo indica que os espíritos, os encantados e outras formas de
possessão guardam estreita relação com o islamismo e, portanto, atravessaram
desertos, montanhas, matas e oceanos, influenciando seus discípulos durante séculos,
em diferentes culturas e em territórios distintos. Assim, mesmo sem conhecer a
dança do Gubida, podemos deduzir que ela é composta por giros, repetições e
timbres agudos – emitidos pela voz ou por instrumentos metálicos -, pois o transe
possessivo tem raízes africanas e está ligado ao transe purificador sufista. A cultura
brasileira pode ser comparada às rochas localizada no fundo dos lagos e dos oceanos,
cujas camadas escondem fósseis de uma vida rica e intensa que ocorreu em outras
eras. O aparente deserto de nosso povo e de sua cultura guarda verdadeiros fósseis
146
Em Cajuru (MG), colhemos o depoimento do Sr. Luiz sobre os Ternos de Congadas: “Eu cheguei aqui em 13
de maio de 1927... nasci em Portugal em 16 de abril 1904 às 8 horas da manhã. Em Portugal, Figueira da
Foz, distrito de Coimbra Não tinha aquelas coisas que o povo falava... Aquele tempo até chorava na
despedida da festa.... hoje o povo não tá tão chorão...Cada um grupo de terno queria ser melhor que o
outro...eu já não alcancei muito essas coisas, esse tempo...enfim... hoje tá tudo mudado, né? O outro ia lá e
desamarra ele... batia caixa tá! tá! tá! Sai daí Perrenho... Vai embora, é isso aí! Tá amarrado... Tá
amarrado... Prá lá da ponte meu pai pegou a caixa e bateu!... Uma amarração: quando a festa acabou, tinha
acabado um terno de fora... tinha acabado... Ele reclamava que tinha que não ir tomar conta da Igreja... Mas
era um terno (terno de Congada e de Reis são grupos de músicos) do Paraíso... Tava amarrado, não saía...
Hoje não existe mais dessas coisas...”
147
Grifos nossos.
148
Coelho, op. cit., p.265.
151
vivos que esforçamo-nos por documentar, mas cuja análise, infelizmente, excede os
limites do presente trabalho.
RITO DO PODIUM
A investigação das (re)elaborações dos rituais possessivos nas diferentes
miscigenações ocorridas no Atlântico poderia ser objeto de outro estudo, e
esclareceria muitas sutilezas e aperfeiçoamentos entre a consonância musical, a
matemática, as nossas cognições e os estados alterados de consciência. Para
simplificar, admitamos que houve a preservação e a evolução do transe relacionado à
cura. Em regiões afastadas e distantes, ele permaneceu “protegido” geograficamente,
e pôde se desenvolver à margem das interferências da sociedade ocidental, que
geralmente distorce seus conteúdos ao retirar os ritos do âmbito da comunidade e da
família.
Os meios de comunicação venceram o isolamento geográfico, e apropriaramse do transe com a etnomuisic, a worldmusic e a música eletrônica.
Veremos, inicialmente, como alguns ritos, próprios do meio digital, também
promovem a socialização e a transmissão de conteúdos. A seguir, discorreremos
sobre a apropriação dos conteúdos iniciáticos pelas tribos da música eletrônica.
O entendimento do ritual do podium ou do feito talvez seja a contribuição
mais importante de nossa investigação. A sociedade divulga amplamente, através dos
meios de comunicação, as ações das tribos urbanas: rebeliões, pichações,
linchamentos, vandalismo, invasões de computadores e outras atitudes da
152
“decadência urbana”. Essa divulgação audiovisual torna-se uma propaganda, e o
resultado obtido é inverso àqueles esperado. As tribos urbanas colecionam seus
feitos, que são transmitidos verbalmente. Analisando o comportamento dos primeiros
hackers Turkle (1989) relata que a marca de cereais matinais Crunch fornecia um
apito de brinde nas embalagens. Um Hacker descobriu que o apito oscilava na
mesma freqüência dos ramais telefônicos, permitindo ligações à longa distância. O
Hacker recebeu o apelido de Capitão “Crunch” que ao. inciar uma chamada
telefônica, apitava e conseguia “abrir” o complexo sistema telefônico americano.
Com esse apito, era possível fazer inúmeras ligações gratuitamente:
“0 Crunch fez experiências com o apito durante vários anos. As suas proezas
tomaram-se cada vez mais extraordinárias, cada vez mais lendárias. O seu
«feito» mais mitificado ficou conhecido por «a chamada à volta do mundo».
Crunch sentou-se numa sala com dois telefones, na Califórnia. Utilizando o
apito e os seus conhecimentos de circuitos e de códigos telefônicos
internacionais, pegou no primeiro telefone e marcou o número do segundo. A
chamada começou na Califórnia, passou por Tóquio, Índia, Grécia, Pret6ria,
Londres, Nova Iorque c voltou à Califórnia - O segundo telefone tocou- Ele
falou para o primeiro telefone e ouviu-se no segundo, vinte segundos mais tarde.
Mas até isso se tomou monótono e precisou de variantes- Vencer significa tomar
o sistema e o desafio cada vez mais complexos. Por fim, havia quatro telefones e
ele telefonava a si próprio, à volta do Mundo, simultaneamente em dois
sentidos149”.
149
Turkle,. op. cit.,p.193.
153
Figura 16 Colourphon As imagens do projeto Herança Nacional foram produzidas fotografando
100 pessoas diferentes. As fotografias selecionadas eram (re)-criadas para produzir oito pessoas
não-existentes. A carne foi doada por estudantes da Artec, seus amigos e familiares. Qualquer
semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera casualidade. Nós não pagamos nenhuma conta de
cirurgião plásticos
150
.
Assim como Descartes, o Capitão Crunch estabeleceu uma máxima:
“virtualizo, logo existo!” Ao sentir sua voz atravessando o planeta nada, mas fez que
sentir seu corpo virtual se deslocar no espaço sem o peso do corpo real. Esse feito
não teria sentido algum se permanecesse no âmbito individual. Ao subir ao podium,
os feitos virtualizados devem ser devorados em conjunto. Os meios de comunicação
ocupam o lugar do podium, o neotribalismo é devorador de seus próprios feitos
mesmo a trás das máscaras e dissimulações.
150
Projeto National Heritage do artista multimídia londrino Mongrel Harwood et al.: Colourphon The images in
the National Heritage paper were produced by photographing 100 different people. The separate photographs
were then selectively cross-bred to produce eight non-existent people. Flesh was donated by students at Artec
and by friends and family. Any resemblance to persons living or dead is tough. We pay no plastic surgeon
bills. (www.mongreal.org.uk)
154
O corpo virtual independe da carne real: as imagens acima formam um nãocorpo, que questiona o preconceito racial. Assim, o corpo virtualizado é expatriado,
volátil, e tende a achar seu grupo ou sua comunidade independentemente do corpo
real.
De maneira inversa, um corpo exposto à iluminação óptica ou digital torna-se
volátil, e é devorado pelos corpos reais atados ao cotidiano massificado. Os
noticiários de TV que circulam na Internet têm maior liberdade. Assim, uma
emissora russa optou por despir seus âncoras nos noticiários divulgados pela rede, e
obteve sucesso e prestígio, rompendo o ostracismo a que os países anteriormente
comunistas estão submetidos na mídia.
Programas televisivos, como o Big Brother e seus clones expõem pessoas
normais, em uma casa aparentemente normal, à volatilização midiática. Dentro da
casa o rito do podium é estabelecido, com inúmeras tarefas banais a serem
cumpridas. A presença daqueles que estão dentro da casa é comandada, virtualmente,
por aqueles que estão do lado real (de fora). Quando saem da casa, “os eliminados”
comentam o que realmente aconteceu nos bastidores, quando seus corpos foram
compartilhados. Alguns momentos fora da iluminação óptica são extremamente
valorizados. Os segredos desses momentos são revelados em infinitas matérias sobreexpondo o corpo e a imagem reais - e acabam destruindo qualquer relação
anteriormente existente entre essas pessoas, ou formam novos agenciamentos pósvirtualidade. Sobe ao podium a pessoa que consegue domar o corpo virtualizado
coletivamente, e fazer com que sua personalidade seja bem degustada.
155
RITO DE SUBLIMAÇÃO
Alcançar o corpo virtualizado, coletiva ou individualmente, é uma meta das
tribos urbanas. O grupo estudado - Baque Bolado - tem uma forte relação com o
transe possessivo, obtido pela música percussiva. No decorrer da pesquisa,
presenciamos rituais de sublimação coletiva em várias apresentações: ao som das
alfaias, o corpo real deixava seu posto e juntava-se ao corpo coletivo
(músicos/platéia), formando o “Eu coletivo”. A maioria das pessoas do Baque tem
consciência dessa comunhão coletiva e sempre, ao término das apresentações, o
corpo real entra em estado de exaustão. A sensação de prazer é comungada e
sublimada por todos, e compensa os demorados ensaios e preparativos para as
apresentações. Sentir o “outro” através da música é uma experiência de sublimação
que provoca profundas alterações no corpo. Sentíamos uma necessidade compulsiva
de sempre melhorar as apresentações, e de darmos o melhor de nós. Essa sublimação
motivou algumas pessoas a trocarem o grupo pela própria família, e notamos que os
ensaios duravam mais de oito horas. O tempo para atingir a afinação entre os trinta
integrantes do grupo era cada vez maior, exigindo uma renúncia das vidas
individuais em função das necessidades coletivas.
Essa sublimação também foi detectada na cultura da música eletrônica. Os
DJs são os responsáveis pelo “vôo” da platéia: a sublimação. Mas o transe da música
eletrônica não é o mesmo que o do grupo Baque. Nas raves, a função do DJs e dos
VJs é a de bombardear sons rápidos e imagens, na tentativa de ocupar os cinco
sentidos da pessoa. O DJ e artista plástico Angelo Palumbo151 explicou-nos a
151
Angelo Palumbo foi entrevistado pela pesquisa é programador visual, artista plástico e VJ. Foi unsdos
primeiros artistas brasileiros a utilizar a técnica de plotagem em quadricromia. A técnica semelhante a um
xerox colorido na década de oitenta era cara, mas permitia a reprodução de imagens em adesivos, hoje a
156
diferença entre a repetição quotidiana e a repetição da música eletrônica, associada às
imagens icônicas.
“Tente imaginar uma situação que te acelere ou diminua seu batimento
cardíaco, ou então acelera ou diminua o nível de serotonina 152 na corrente
sanguínea. Então, a repetição acaba funcionando como uma hipnose. Ela,
justamente porque a. mente está ocupada em decifrar o código repetido
velozmente, entendeu, ela fica presa àquilo e àquela freqüência (...) subindo e
descendo. Aquilo te mantém em um estado elevado de consciência, um estado
alterado de consciência.
A rotina do dia-a-dia não tem nada a ver com a repetição de um batimento, a
rotina do dia-a-dia é muito mais um narcótico que te deixa sentado, cômodo... O
ser humano precisa... O estado natural do ser humano é de se sedentarizar, ficar
sedentário, procurar estar numa situação estável... Estabilidade.... Quando ele
alcançou aquela estabilidade, ele quer que aquilo se repita... Nada pode
acontecer... O vulcão não pode estourar... Isso vai tirar a estabilidade (...) A
partir do momento que perdeu a estabilidade, ele vai ter que se mexer... Você vai
ter que se preocupar com comida... Então, o que acontece se você ocupar sua
mente com teu trabalho diário, com a mesma novela? Ela vai te dar essa
garantia de estabilidade, mas não é verdade É confortante você ter aquela
garantia que tudo está na rotina. A rotina que te mantém ocupado numa
freqüência...”
propaganda utiliza essa técnica para personalizar carros, vidros e placas sinalizadoras. Atualmente desenvolve
seu trabalho com imagens rápidas associado ao som da música eletrônica.
152
Segundo Lapate op. cit., p.37: “A serotonina é encontrada nas formações reticulares, nas estruturas do
sistema Límbico e sua concentração é máxima na região hipotalâmica A serotonina age inibindo as
atividades e comportamentos. Está associada aos sentimentos de prazer e bem-estar. Manifestações da
produção baixa: alterações de humor, comportamento compulsivo e outros comportamentos inadequados. O
LSD interage com os receptores de serotonina”. Os trababalhos de Junqueira et al. (1985), p. 186-170.,sobre
a ação da serotonina: “ A serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT) é encontrada na glândula pineal dos
mamíferos, é um inibidor sináptico que diminui de forma muito acentuada, a sensitividade da pessoa à dor.
Atua como mediador químico nas terminações nervosas pós-ganglionares do sistema simpático. Entre os
neurônios ocorrem as ligações sinápticas, que fazem com que os estímulos cheguem ao cérebro. Sinapse:
Quando um ponto do axônio é estimulado artificialmente, o impulso nervoso é conduzido em ambas as
direções, a partir do ponto estimulado. Todavia, o impulso que se transmite em direção ao corpo celular,
atravessando-o e se encaminhando até as porções finais dos dendritos, não é capaz de excitar outros
neurônios. Esta excitação só ocorre com o impulso que se dirige à arborização final do axônio, o telodendro.
Pode-se dizer que, geralmente, cada neurônio transmite impulsos apenas através do seu telodendro e só os
recebe de axônios de outros neurônios. A cada transmissão do impulso nervoso de um neurônio para outro
depende de estruturas altamente especializadas, as SINAPSES. Estas se encontram nos locais de contato de
um axônio com os dendritos ou pericário(s?) de outros neurônios. Embora a maioria das sinapses se
estabeleça entre o axônio e o dendrito (axodendrítica), ou entre o axônio e o pericário ou corpo celular
(axossomática), há também sinapses entre denários (dendrodendríticas) e axônios (axioniônicas). Há uma
tendência recente de considerar também como uma sinapse a terminação nervosa em células efetoras, tais
como células glandulares e musculares”.
157
Assim, podemos verificar que o transe das raves não remete ao passado, mas
agem no presente, saturando os sentidos com imagens e sons bombardeados em alta
freqüência, que ocupam a mente. O transe das tribos da música percussiva, apesar de
profano e (re)elaborado, tenta uma comoção coletiva que estimula os sentidos visual
e auditivo. Entretanto, ambos buscam uma sensação extra-cotidiana, e procuram
estímulos que desprendem o indivíduo da rotina. A velocidade, a freqüência e os
ritmos “atuam” no corpo humano em uma sublimação coletiva, característica dos
anos 90. As substâncias psicotrópicas ou psicoativas não são exclusivamente
“drogas” algumas substâncias são naturais e tem propriedades pertubadoras da
atividade cerebral. A dependência não está circunscrita ao toxicômono mas, à toda a
sociedade mediatizada do esportista ao espectador de TV: a produção da
dopamina153,
noroadrenalina154
eacetilcolina155
são
substâsncias
presentes
naturalmente nas endorfinas. E Palumbo acrescenta:
153
Segundo Lapate op.cit. , p.35: “A dopamina dá prazer e entusiasmo. Pode ser elevada por um abraço, um
beijo -assim como pelas sensações que vêm das drogas. Não é apenas uma química que transmite sinais de
prazer, mas pode, de fato, ser a molécula-mestra do vício. Ela também desempenha um poder extraordinário
sobre a capacidade de aprender e a memória. É encontrada em altos níveis no sistema límbico -e
principalmente ao nível dos gânglios basais. Sabe-se que existem cinco receptores principais de dopamina: d
I, d2, d3, d4, e d5. Nas psicoses e esquizofrenia, eles agem sobre a dopamina. A função psicótica está
principalmente nos receptores d2. E os medicamentos que atuam nos receptores d2 têm se comprovado como
os de maior eficácia e menores efeitos colaterais. Efeitos provocados: sua concentração pode influir na
excitabilidade, na euforia Read Montague (Centro de Neurociência Te6rica da Escola de Medicina
Houston's Baylor) sugere que se pense na dopamina como um prêmio que o cérebro distribui com
parcimônia às redes de neurônios para se aumentar as escolhas de sobrevivência. Manifestações do excesso
de produção: associado ao comportamento psicótico, incluindo alucinações e paranóia, e pensamentos
bizarros da esquizofrenia. Manifestações da baixa produção: nos gânglios basais, ocasionando tremores
relacionados com o Mal de Parkinson. O que une todas as drogas que alteram o humor é a; incrível
capacidade de elevar os níveis de dopamina no cérebro.”
154
Lapate op.cit., p.36 “Noradrenalina Encontra-se em diversas partes do encéfalo. Sua concentração é máxima
na região hipotalâmica, sendo encontrada também no sistema límbico, no tálamo, e nas projeções do córtex
frontal e cerebelo. Efeitos provocados: vivacidade, concentração, emoções positivas e a analgesia (supressão
da dor). Manifestações do excesso de produção: comportamento impulsivo e ansiedade. Manifestações da
baixa produção: depressão, dificuldade de concentração “
155
Lapate, op. cit. p.37: “Acetilcolina É encontrado nos terminais dos neurônios motores periféricos, nos
nervos que estão associados aos músculos do esqueleto e que permitem o movimento voluntário. No sistema
nervoso central a acetilcolina é encontrada no c6rtex motor e numa área conhecida como núcleo basal que
está abaixo do tálamo. A acetilcolina está relacionada à vivacidade, à capacidade de aprendizagem, ao
humor e ao sono. No Mal de Alzheimer, há uma perda de acetilcolina e de suas estruturas dependentes. Há
perda de funções associadas, como a memória. A nicotina imita os efeitos da acetilcolina”.
158
“Tudo funciona para o DJ na velocidade... Não é só a questão do ritmo, mas
(do) volume de som... Se você confina um cara num volume de som alto prá
caralho, ele vai sentir uf, uf, uf, uf, o pulsar do negócio, então isso vai tá
influenciando ele... Entendeu? São (...) essas coisa que influenciam também o
estado alterado de consciência. Por exemplo: um estado alterado de consciência
muito insignificante pode ser causado até pelo próprio carro... Quando você
guia um carro numa estrada, a uma alta velocidade, você esta viajando (...)
nervoso, ou com pressa de chegar.. Não sei se você já sentiu essa energia
chegando em casa... Tá meio louco eufórico... Tá meio..... você sabe que o pneu
girando capta energia com o atrito no asfalto: ele faz com que o carro acumule
energia, e o carro transmite. Tanto é que algumas fábricas criaram uma
borracha que vai batendo no asfalto para descarregar essa energia, não é?
Então tudo pode te dar sensação, algumas pesadas outras mais brandas, como
essa que eu estava falando”.
Identificamos que a repetição da música eletrônica tem função diferenciada
da música percussiva do Baque e dos outros grupos. Assim, desenvolvemos um
quadro comparativo para entender essas pequenas diferenças que vão nos permitir
estabelecer uma rica diferenciação do transe ligados às tribos dos anos noventa.
159
QUADRO SONORO COMPARATIVO
Decidimos analisar seis músicas gravadas por profissionais utilizando CD
comerciais. A pesquisa obteve em campo gravações com boa qualidade sonora, mas
não teve acesso as músicas étnicas de outros países. Para efeitos de equalização e
nível sonoro buscamos as referências sonoras brasileiras também em CD descartando
as gravações feitas. Inicialmente testamos vários softwares sonoros que faziam
estatísticas de freqüência (Sound Forge, Vegas, Cooledit), mas os resultados que
apresentaram eram incompreensíveis. Assim, optamos por analisar as músicas com
um software utilizado pelos DJs para mixar as músicas. Essa ferramenta permitiu a
visualização da música como um todo, e possibilitou a ampliação da onda sonora
digitalizada. Selecionamos seis músicas que têm relações diretas com o transe ou
com estados de consciência alterados e as digitalizamos:
1.
Baques de Maracatu do CD Manifesta da Banda do Baque
Bolado.(Mestre Valter França e Banda do Baque), faixa 08 com 2´27´´. Homenagem
a Mestre Valter e ao Maracatu estrela Brilhante.
2.
Boyobi música cerimonial noturno para os espíritos Yadoumbé
quando recebe o Bobé do povo Bayaka (pygmeus) das florestas da África
Central..Boyobi at Spear-Hunting Camp (part one) CD Ellipsis Arts. Faixa 03 com
5´52´´, Sarno(1995).
3.
Pedra Rolando ritmo coco do CD Zambê Projeto Nação Potiguar - RN
faixa 03.com 2´47´´.
4.
Procession Aãda (Le´fu) do CD Maroc Hãdra des Gnaoua
d´Essaouira. Radio France. Faixa 01 com 5´18´´.
5.
Zkir by Naqshbandi Sufis of Turkestan, CD Trance 2- Musical
expeditions Ellipsis Arts. Faixa 01 com 19´37´´.
6.
Rave Experience DJ Rica Amaral- Trama, sem título. Faixa 07 com
7´02´´.
160
Em seguida à digitalização o computador pode calcular as bpm (batidas por
minuto) Os resultados obtidos foram mostrados na tela do computador:
Figura 17 Relação das músicas em função dos batimentos por minuto (bpm).
Para essa empreitada o software escolhido foi o MixMeister. A primeira
música com maior bpm, entre as demais músicas, foi Pedra Rolando que é um coco
do grupo Zambê de Natal (RN). A segunda foi uma música eletrônica, sem título,
mixada pelo DJ Rica Amaral. Essas duas músicas obtiveram os maiores índices de
bpm. Para comparar as freqüências e os pulsos das duas músicas ampliamos o som
digitalizado. As ondas sonoras digitalizadas apresentaram semelhanças entre os
pulsos e na sua configuração.
O quadro também mostrou as músicas do grupo Baque Bolado e a música dos
Gnawa com bpm próximas, e pulsos semelhantes. As elipses (figura 18) mostram
“picos” parecidos e podemos observar a regularidade dos picos da música eletrônica
que são de forma repetitiva.
161
Nas duas músicas, com bpm mais altas, observamos a mesma semelhança
entre a visualização das ondas sonoras digitalizadas: ambas apresentam uma
regularidade de pulsos com formas semelhantes esses pulsos estão na média de 140
bpm.
Figura 18 Os picos dos pulsos apresentam formas regulares e desenhos semelhantes.
Analisando os picos de freqüência das músicas com bpm semelhantes,
identificamos uma similaridade acentuada entre os pulsos. Apenas a música dos
pigmeus não apresentou o mesmo tipo de configuração regular (figura 19) entre a
dinâmica, os pulsos e a freqüência. Esses picos na música dos Bayacas apresentam a
162
configuração em forma de patamar, indicando talvez a dissonância utilizada pelo
povo Bayaca. Não tivemos acesso a um software que analisasse as dissonâncias.
Figura 19 Pulsos em forma de patamar revelam uma dissonância
Comparado as músicas do Baque Bolado com o Hãdra percebemos que elas
apresentam um número próximo de bpm. Analisando seus picos de freqüência
observamos a mesma semelhança do coco dos Zambes com a música eletrônica:
pulsos regulares com a mesma configuração.
163
Figura 20 Pulsos da música do Baque com o Hãdra Marroquino apresentam
semelhanças
O computador permite essas comparações visuais do som, que podem ser
interpretadas. Há semelhanças entre pulsos (batidas) por minutos entre as músicas
selecionadas. Sabemos que, em nossos ouvidos, as batidas da música influenciam os
batimentos cardíacos e quanto mais alta for a sua freqüência, a tendência é de
aumentar os batimentos cardíacos e há a liberação das endorfinas na corrente
sanguínea. Concluímos que o coco, por ser uma música de trabalho, ajuda à liberação
das endorfinas com sua alta pulsação que, por sua vez, possibilita a suportar a dor
física do trabalho repetitivo. Confirmamos pelas entrevistas com os DJs e pela
164
participação em várias raves, que a música eletrônica (de pulsação alta) também
estimula a liberação de endorfinas, ajudando transportar ao estdo de êxtase e ao
esforço prolongado da dança. Nas raves é há um lugar especial para uma pausa onde
se recupera a normalidade do fôlego e dos batimentos cardíacos. Vejamos a
comparação das músicas com os estados físicos156 e a freqüência em bpm:
Figura 21 Comparação entre as músicas, a freqüência cardíaca e os estados físicos máximos.
156. Guyton (1989), p. 210- 211. “A freqüência rítmica da contração das fibras musculares no nodo SA
humano é de aproximadamente 72 batimentos por minuto, enquanto que o músculo atrial humano tem ritmo
da ordem de 40 a 60 batimentos por minuto e o ventrículo de apenas 20 batimentos por minuto. Visto que o
nodo SA tem freqüência mais elevada do que qualquer outra região do coração, os impulsos originados no
nodo SA são propagados para os átrios e para os ventrículos, estimulando essas regiões tão rapidamente que
nunca conseguem ficar lentificadas até seus ritmos naturais. Como resultado, o ritmo do nodo SA passa a ser
o ritmo de todo o coração, razão por que o nodo SA é chamado de marcapasso do coração.
Repouso - não treinado- Débito sistólico: 75 ml- Freqüência: 75/min.
Repouso – treinado- Débito sistólico: 105 ml- Freqüência: 50/min.
Máximo - não treinado -Débito sistólico: 110 ml- Freqüência: 195/min.
Máximo – treinado- Débito sistólico: 162 ml -Freqüência: 185/min.
A eficácia do bombeamento cardíaco de cada batimento é de 40 a 50% maior no atleta muito treinado do que
na pessoa não treinada, mas, em repouso,ocorre uma redução correspondente da freqüência cardíaca”.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No início da pesquisa, conhec
íamos somente o transe que ocorre em cerimônias religiosas protestantes que
é fartamente divulgado pelas rádios e TVs “religiosas”. O transe protestante dessas
seitas procura “espantar os demônios” e purificar a alma dos fiéis ao custo de
valiosos dízimos. Muitos mestres de Maracatu, Congadas e Terno de Reis sentem
dificuldades de manter suas companhias -como o Seu Salustiano- e infelizmente,
acabam se rendendo ao protestantismo.
No presente estudo, buscamos identificar e registrar outros tipos de transe,
mapeando os territórios da tribo percussiva. O transe de comoção dessa tribo guarda
fortes ligações com os transes possessivos e de “cura” dos terreiros. Os sons, timbres
e ritmos gravados em campo apontam algumas relações entre o aparato sensorialvisual-auditivo humano e o êxtase. Desta forma, selecionamos cinco músicas com as
características mencionadas, e comparâmo-las à música eletrônica, que provoca o
transe pela anestesia dos sentidos. Tal comparação permitiu-nos constatar que as
músicas percussivas aqui investigadas - como o coco - procuram, tanto quanto a
música eletrônica, desligar a mente, promovendo a sensação de união que fortalece o
grupo.
Uma das características das tribos dos anos noventa é sua preocupação em
promover manifestações que levem ao êxtase coletivo. Diferentemente dos
agenciamentos estudados por Maffesoli (2000) - relacionados à força motriz de
grupos que apresentam condutas sociais de exclusão e de identificação, como a máfia
italiana – não nos ativemos, neste trabalho, aos aspectos ligados à exclusão, à
166
violência e à religião, optando por investigar a influência da consonância musical, e
suas implicações físicas e matemáticas, sobre o aparato cognitivo humano. A
investigação mostrou que:
1. Os sons de alta e baixa freqüências, as harmonias e as dissonâncias repetitivas e
cadenciadas promovem os Estados Alterados de Consciência (EAC). Isso explica
a presença de vozes agudas, femininas ou de crianças, e de tambores harmônicopercussivos nos rituais e festas das tribos estudadas. A necessidade de obter
timbres metálicos foi um dos fatores que motivou os povos africanos e árabes a
desenvolverem a metalurgia. As características apontadas estão presente nas
canções dos pigmeus, nos ritos possessivos africanos, nos rituais indígenas
brasileiros, nos terreiros de candomblé e umbanda, nas folias de reis, no bumbameu-boi e em outras manifestações sonoras. Assim, estudos mais aprofundados,
que analisem especificamente essas freqüências e harmonias dissonantes que
alteram nossos sentidos, devem ser implementados.
2. A exposição a esse tipo de timbre não ocorre somente nos ritos iniciáticos, mas
no contato direto e indireto com os meios eletrônicos de última geração - das
festas rave ao videogame. A massa sonora e visual digital é elaborada
propositalmente para ocupar os cinco sentidos dos indivíduos, provocando
evidentes alterações psicológicas e modificações no aparato motor-cognitivo, o
que leva a novas associações e (re)elaborações de espaços e territórios: essa é a
base do neotribalismo.
O processo de aprendizagem humano é permeado pela interação com o(s)
grupos(s) ou comunidade(s) e com o meio em que o indivíduo habita. Inicialmente, a
organização social era calcada no plantar, no caçar e no colher. A proteção e o abrigo
garantidos pelas cidades originaram novos agenciamentos, até a angústia
duchampiana: a velocidade dos signos e sua impessoalidade. Criamos máquinas
167
complexas, que interagem com o nosso processo de evolução. A coevolução a partir
do feedback positivo157 incide sobre a nossa carga genética. Assim, temos que:
“quanto maior o valor de sobrevivência de uma variação, maior a contribuição
que ela dá para o aumento da probabilidade de sobrevivência e reprodução do
indivíduo em que se manifesta, e conseqüentemente também é mais intensa a
pressão seletiva a seu favor”158.
O grande feedback positivo e agenciador das tribos em seus novos territórios
voláteis é o transe promovido pela música eletrônica. Para melhor entender esse
processo, é necessário compreender, sob a óptica do pensamento complexo, as
diferentes forças que atuam sobre o tecido urbano e que não podem ficar confinadas
à visão estreita da violência e da exclusão. Não que não haja violência nesses
processos sociais, mas, se nos restringirmos a esse aspecto, será impossível entender
as tribos não violentas, como é o caso do Baque, que se assemelha a muitos outros
grupos urbanos que lutam pela sobrevivência na cidade grande. O estudo e a análise
dos diferentes processos levaram-nos a concluir que, na área de comunicação, as
investigações devem ter um caráter multidisciplinar; que não podemos hesitar em
utilizar as novas teorias e máquinas, que auxiliam a mente aguçada do pesquisador a
encontrar novos horizontes.
A velocidade de crescimento do cérebro humano ao longo da evolução da
espécie assusta aos paleontólogos159 que, comparando-a à velocidade média de
crescimento cerebral de outras espécies, concluem que essa “anormalidade” humana
157
Feedback positivo é a informação decorrente da soma entre a informação genética, o feedback das máquinas e
a cultura.
158
Oliveira (1999), p.85.
159
Há 4 milhões da anos nosso cérebro tinha um volume de 400 a 600cc. Por volta de 200.000 – 100.000 anos
a.C. surge o Homo sapiens, dotado de habilidades como construir ferramentas, elaborar linguagens, conceber
mitos e implementar uma complexa organização social.
168
pode ser explicada pelo feedback positivo postulado pela teoria da coevolução.
Outros fatores também contribuíram para a evolução do homem, como sua condição
de bípede (a adoção da postura ereta), a capacidade de fabricar ferramentas, o
desenvolvimento da linguagem e o polegar opositor (capacidade de pegar os objetos
com os dedos e não com as mãos).
O fato é que o homem que hoje existe sofreu uma coevolução que lhe
forneceu capacidades e potencialidades, mas seu aparelho genético não sofreu
grandes alterações ao logo dos milhares de anos de sua presença na terra. Isso
provoca inúmeras controvérsias que não serão aqui explicitadas, mas vale ressaltar
que a capacidade que o homem tem de acumular informações assemelha-se ao
hardware dos computadores. A caixa craniana desenvolve-se durante a infância, e os
cuidados maternos, a boa alimentação e a influência cultural são fatores
determinantes para o desenvolvimento das aptidões adquiridas, formando um
conjunto de potencialidades. A fala e a escrita são dependentes da cultura e do
desenvolvimento lingüístico da sociedade em que o indivíduo nasce. A fala está
ligada às aptidões geneticamente desenvolvidas, o que não ocorre com a escrita, que
pode ou não ser desenvolvida pois integra o quadro das aptidões potencializadas.
As aptidões que podem ser desenvolvidas culturalmente (escrita, música etc.)
não modificam o nosso código genético a curto prazo, mas influenciam a velocidade
de crescimento cerebral, potencializando nosso cérebro a conceber melhores
cognições entre os hemisférios, a guardar cada vez mais informações, a estabelecer
níveis densos de raciocínio. No século XXI, o cérebro do homem tem a novidade de
ser auxiliado por redes telemáticas (Internet, inteligência artificial, VRML etc.), o
que leva à formação de um verdadeiro sistema homem-máquina sobreposto ao
169
mundo real, um verdadeiro hipercortex160 virtual. Os estados alterados de
consciência são a mola propulsora de novos agenciamentos, e logo integrarão o
nosso dia-a-dia, levando-nos a absorver a riqueza que a cultura brasileira apresenta
nesse aspecto. A música vem fazendo bom proveito dessa fonte há muito tempo.
Assim como nos distanciamos da semiótica, do discurso do excluído e da
sociologia, procuramos neste trabalho, visualizar as tribos urbanas em relação ao
tempo e ao espaço. Essas duas categorias físicas têm imbricações com a filosofia e a
cosmologia, razão pela qual debruçamos-nos sobre as tribos que têm como
referencial a busca pelas raízes brasileiras. Nesse momento deparamo-nos com a
delicada questão das drogas, e verificamos que o som percussivo age, sobre alguns
neurotransmissores, de maneira semelhante a elas161. Na sociedade atual, a imagem
tem sido privilegiada, em detrimento do texto e do som, que são relegados a um
plano secundário. Os DJs e VJs estão bastante adiantados no que concerne ao
processo de integrar o som à imagem, e de retirar dessa fusão os EAC que permitem
a indução ao êxtase coletivo das raves. As investigações realizadas na área de
comunicação não acompanharam o grande salto dado pelas tribos urbanas dos anos
noventa e essa questão tem, a nosso ver, aproximações equivocadas.
Concluímos o presente estudo verificando as hipóteses formuladas, e
visualizando o “eu coletivo” volatilizado se agrupando e formando tribos. O corpo
virtualizado movimenta-se pela mímese: como no trânsito urbano, às vezes sem
160
Ascott (1997).
161
Lapate op. cit., p.35: “Neurotransmissores: são substâncias químicas (aminas), presentes no tecido nervoso,
que emitem sinais, produzidos no interior dos neurônios e liberados pelas pontas alongadas e finas, os
axônios. Os sinais recebidos estimulam a membrana dos neurônios. os axônios influenciam a atividade
cerebral em muitas regiões, inclusive no nucleus accumbens, a estrutura primitiva que é uma das chaves dos
centros cerebrais do prazer. os neurotransmissores estão expostos a todos os pensamentos e emoções, e
aprendizado; eles carregam os sinais entre todas as células nervosas do cérebro, ou neurônios.Todos os
estados de ânimo são sintomas do funcionamento de neurotransmissores”.
170
pensar, acabamos imitando os movimentos de outro carro ou de outra pessoa. Esse
“vagar” em trânsito é o cimento dos novos agenciamentos e dos novos estados
perceptivos das tribos.
A cultura rave acerta quando diz que as novas drogas não fazem parte da
“festa”: elas são complementares. A toxicomania não é a mola propulsora dos
novos estados perceptivos. O que faz “festa” é a interação entre a música ritmada e
as imagens digitais processadas pelo computador. O grupo Baque Bolado não utiliza
as máquinas e a música eletrônica, mas apropriou-se do transe xamânico e tornou-se
visível no território volátil das tribos.
Esperamos que o esforço despendido na realização deste trabalho auxilie
futuras investigações sobre a questão urbana, com menor carga de preconceitos e
maior profundidade. Finalizando, cumpre-nos ressaltar que tomamos alguns cuidados
para não revelar aqui os conteúdos xamânicos de forma inapropriada. Desta forma,
as imagens obtidas foram alteradas digitalmente, com o objetivo de preservar o
verdadeiro tesouro constituído pela cultura iniciática brasileira.
171
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