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Nº 2, volume 11, artigo nº 4, Abril/Junho 2016
D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v11n2a4
“SENTIRÁS O GOSTO DE LIBERDADE”:
UMA REFLEXÃO SOBRE O DIREITO À LIBERDADE A PARTIR DA
OBRA „OS MISERÁVEIS‟
Salete Oro Boff1, Neuro José Zamam2
1
Pós-Doutora em Direito pela UFSC. Doutora em Direito pela UNISINOS. Professor do
Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Meridional - IMED – Mestrado. Grupo
de Pesquisa-CNPq Direito, Novas Tecnologias e Desenvolvimento. Grupo de Estudos em
Desenvolvimento, Inovação e Propriedade Intelectual-GEDIPI.
[email protected]
2
Pós-Doutor em Filosofia pela UNISINOS. Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do
Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Meridional - IMED – Mestrado.
Professor do Curso de Direito (graduação e especialização) em Direito da Faculdade
Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e cidadania da
ANPOF (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Filosofia).
Pesquisador da Faculdade Meridional. Coordenador do Grupo de Pesquisa:
Multiculturalismo, minorias, espaço público e sustentabilidade.
[email protected]
Meus amigos, nunca digam que há plantas más ou homens maus.
O que há são maus cultivadores.
Victor Hugo, Os Miseráveis
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o tema da liberdade a partir da obra “Os
miseráveis”, clássico romance de Vitor Hugo. O policial Javert pronuncia uma sentença
controversa dirigida ao prisioneiro Jean Valjean: “sentirás o gosto da liberdade”. Esse
contexto nos interpela sobre o valor da liberdade, as condições para exercê-la, o seu
alcance e sua relação com as desigualdades. As contradições de uma sociedade regida por
valores democráticos da igualdade, liberdade e fraternidade e a condenação de um homem
por causa do roubo de um pão para alimentar a família demandam uma reflexão sobre o
sentido da existência humana, a equidade social e as condições de justiça. Os dramas
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pessoais, as deficiências sociais, o sistema carcerário e as demandas por justiça estão
retratados nesse enredo e precisam de uma abordagem moral, política e jurídica. O valor da
liberdade está relacionado com o contexto social e as opções individuais. Os métodos
utilizados foram o indutivo e o monográfico e a técnica de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Direito. Liberdade. Justiça.
Abstract: This article aims to analyze the theme of freedom from work "Les Miserables," the
classic novel by Victor Hugo. The policeman Javert pronounced a controversial decision
addressed to the prisoner Jean Valjean, "you will feel the taste of freedom." This context
challenges us about the value of freedom, the conditions for exercising it, its scope and its
relationship with inequalities. The contradictions of a society governed by democratic values
of equality, liberty and fraternity and the conviction of a man for the theft of a loaf of bread to
feed his family require a reflection on the meaning of human existence, social equity and
justice conditions . Personal dramas, social deficiencies, the prison system and the demands
for justice are portrayed in this plot and need a moral approach, political and legal. The value
of freedom is related to the social context and the individual options. The methods used were
the inductive and the monographic and the technical literature.
Key-Words: Right. Liberty. Justice.
INTRODUÇÃO
“O espírito enriquece-se com o que recebe; o coração com o que dá.”
Victor Hugo
A obra de Vitor Hugo, “Os miseráveis”, retrata vários aspectos da existência
humana, o valor trabalho, a honra, o moral, a família, as contradições sociais, o
exercício do poder, a vergonha, a miséria, as relações humanas, a violência, o amor,
a política, as ilusões, entre outras. Elencar diversos temas representa a vontade de
expressar o conhecimento de uma obra em sua extensão ou mesmo a
impossibilidade de dominar um conteúdo vasto e complexo.
No início da obra, uma das frases de impacto que o policial Javert emite de
forma solene, sonora e com tom ameaçador é “sentirás o gosto da liberdade”
dirigindo-se ao ex-prisioneiro Jean Valjean. Esta afirmação, com a força da sua
manifestação, expressa o tema da presente análise - a liberdade - e permite refletir
sobre aspectos importantes da vida humana e das relações sociais, como: pode a
liberdade legitimar a injustiça social? Um homem perde a sua liberdade porque se
apropria de um pedaço de pão para saciar a fome? Qual é o peso da liberdade?
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Uma sociedade livre também é justa? O que é a liberdade? Qual o seu valor?
Na obra e no cotidiano da existência humana o exercício da liberdade está
diretamente relacionado com o contexto social, as condições políticas, as opções
pessoais e o seu valor existencial. A ausência de liberdade reduz e, por vezes,
condena uma pessoa à condição de ser não-humano. Jean Valjean é o símbolo
dessa situação contraditória. O „peso da liberdade‟, essa metáfora, representou a
impossibilidade de viver com dignidade. A prisão injusta impulsionou a fuga, a
negação daidentidade, uma vida escondida, o abandono social e a morte indigna.
Sabe-se que o interesse e a reflexão sobre a liberdade integram as mais
remotas preocupações da humanidade. Os homens sempre desejaram viver livres,
decidir com autonomia, assim também, os povos lutaram pela liberdade e líderes
sacrificaram sua vida em vista desse fim. A escravidão e os cárceres evidenciaram
tempos de negativa da liberdade. Por outro lado, o direito de ir e vir e a livre
expressão são tradicionalmente postos como referências para se afirmar e
demonstrar onde existe liberdade.
Com essas considerações, objetiva-se, a partir dessa reflexão, debater a
contradição existente entre o valor da liberdade, o direito de exercê-la tanto
individualmente quanto na vida em sociedade e as condições para sua efetivação. E,
especificamente, pretende-se apontar as lacunas entre o dever de julgar e a
obrigação de fazer justiça; apresentar as deficiências humanas em relação às
sanções penais e fundamentar o valor moral da liberdade.
As referências para a fundamentação deste estudo terão como indicativo
prioritário a Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Federal
que elegem a liberdade como um direito fundamental, sustenta a estrutura jurídica e
a convivência democrática plural e multicultural.
O método que orientará esta abordagem é o indutivo que procura destacar os
aspectos essenciais da obra numa inferência do particular para o geral, para a
construção de um entendimento global sobre a temática da liberdade. O método
indutivo segue uma linha de raciocínio e argumentação onde, “as premissas
particulares consideradas inicialmente conduzem à conclusão, que será considerada
a parte geral, mais ampla, do que as premissas basilares” 1. As afirmações e os
1
ZAMBAM,N. J.; BOFF S. O.; LIPPSTEIN, D. Metodologia da pesquisa jurídica:
orientações básicas. Florianópolis: Conceito, 2013.
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fenômenos que compõem o conjunto da obra serão as referências simbólicas que
nortearão a argumentação.
A primeira parte desta exposição contextualiza a obra “Os miseráveis” de
Victor Hugo, a fim de oferecer os elementos básicos para o entendimento da
problemática da época, com o ambiente social e o romance como forma de explorar
e publicizar os dramas humanos agravados pelo contexto social. A segunda parte
fundamenta o valor moral da liberdade e sua relação com a formação da conduta
moral. Nas partes finais explicita-se liberdade como um direito humano fundamental,
as suas garantias constitucionais e, especialmente, como dimensão indispensável
para a realização humana e a inserção social.
2 “Os miseráveis”2
Prefácio
Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena
civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino
por natureza divino; enquanto os três problemas do século - a degradação do
homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela
ignorância - não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social;
em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda,
enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria,
livros como este não serão inúteis.
Victor Hugo
Hauteville-House, 1862.1
A obra “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, escrita em 1862, denota o contexto
francês do final do século XVIII e início do XIX, especialmente o momento histórico
da “Revolução Francesa”. A obra foi traduzida para várias línguas e no século XX se
tornou filme e musical da Broadway.
Na obra, o escritor denuncia as injustiças por meio de uma trama complexa,
envolvendo misticismo e fantasia ao tempo de condenação, retratando os anseios,
sentimentos e emoções da alma humana, assim como as contradições entre o bem
e o mal, a bondade e a crueldade.
2
Obra disponível em
https://books.google.com.br/books?id=VW0tBgAAQBAJ&pg=PT402&dq=os+miseraveis&hl=ptBR&sa=X&ei=rhadVfPvO4WkwATSjpSAAQ&ved=0CB0Q6AEwAA#v=onepage&q=os%20miserav
eis&f=false. Acesso em 01.06.2015.
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Jean Valjean, personagem principal, figura que se destaca em toda a história,
é preso por ter furtado pão para alimentar a família e que, em consequência da sua
tentativa de evasão, viu a sua pena permutada para trabalhos forçados nas galés.
Após cumprir a pena, foi libertado e, durante vários dias, andou, sem rumo, até
chegar a Digne, onde encontra uma mulher que lhe indica a casa do Bispo Myriel de
Digne para lhe amparar. Durante o acolhimento, Jean Valjean recebeu bons tratos,
mas, mesmo assim, durante à noite, enquanto todos dormiam, furtou pratarias
pertencentes ao bispo e foi-se embora com elas.
Na fuga foi surpreendido por polícias, que o conduziram à casa do bispo para
entregar o faqueiro e certificar-se de que a história do Jean Valjean correspondia à
verdade. O bispo, para espanto de todos, não o acusou e ainda lhe ofereceu dois
castiçais de prata, dizendo que o viajante tinha esquecido de os levar. Diante da
reação do bispo, o homem foi libertado.
A partir do gesto do religioso, renova-se fé daquele homem e permite que
progrida, tornando-se um rico industrial. Nessa época conhece uma ex-empregada
da sua fábrica de nome Fantine, que, por força das circunstâncias, tornou-se
prostituta. Apega-se à mulher e promete-lhe trazer de volta a sua filha deixada aos
cuidados dos Thénardier, donos de uma taberna, os quais exploravam a criança de
forma desumana. Jean Valjean começa a ser perseguido pelo inspetor de polícia,
Javert, um guarda da prisão que segue a lei inflexivelmente, tem praticamente
certeza de que o prefeito é o ex-prisioneiro, que teria descumprido as exigências do
livramento condicional, de apresentar-se periodicamente.
Deste momento em diante Javert volta a persegui-lo. A mãe da menina morre
mas sua filha é resgatada por Valjean, que foge com ela. Refugiam-se num
convento e, após, instalam-se em Paris. Cosette apaixona-se por Mário, estudante
de direito que lutava pela causa da Revolução Francesa, abraçando a causa
popular.
Numa das lutas de rua, nas barricadas de Paris, Jean Valjean salva Mário da
morte num tiroteio contra as forças da ordem. Jean Valjean transportando Mário às
costas, sai da cena de batalha utilizando os esgotos de Paris. Depois de
restabelecido, Mário casa com Cosette e descobre que esta é senhora de uma
herança de seiscentos mil francos. Ao final da obra, Jean Valjean morre rodeado de
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Cosette e Mário, depois de uma vida de grande sofrimento, tendo-se transformado.
A trajetória dos personagens denota as contradições da condição humana. Os
principais, Jean Valjean e o próprio policial Javert, perseverante, obstinado e frio,
vivem sob a égide inabalável de princípios e ideais, a ponto de serem quase que
sufocados pelas consequências emocionais de seus próprios atos. Jean Valjean é
um homem que vive uma situação de miserabilidade no mesmo período em que
Napoleão III, Imperador da França, de 1852 a 1871, aumentara seus gastos com a
política externa francesa em busca de glória política. Essa figura representativa,
descrita detalhadamente por Victor Hugo evidencia as circunstâncias que o levaram
ao crime, tratava-se de uma situação social que deveria ser encarada francamente
pela sociedade em geral e pelas autoridades políticas em particular.
3 O valor moral da liberdade
A pobreza e o luxo são dois conselheiros fatais;
um ralha, o outro lisonjeia.
Victor Hugo, Os Miseráveis
A liberdade é um valor fundamental para a construção do sentido da
existência humana, tanto no sentido da realização pessoal, quanto da inserção
social, do equilíbrio das relações que ocorrem no cotidiano e na efetivação da
cidadania. A convicção sobre a impossibilidade de construir o conceito de pessoa e
de cidadão, desvinculado da liberdade, é uma conquista da humanidade.
Especificamente a evolução da democracia e da compreensão dos direitos
representa o reconhecimento e a eleição da liberdade como uma dimensão
privilegiada para a avaliação do sentido da existência humana e da justiça social.
A percepção do valor e das consequências da liberdade está na afirmação do
policial Javert quando dirige a sentença ao prisioneiro Jean Valjean – “sentirás o
gosto da liberdade”. A observação atenta dessa construção expõe à humilhação de
quem tem negado um valor tão caro. De outra parte denuncia a impossibilidade de
ser livre em situações adversas, ameaçadoras e contraditórias, como é o caso de
uma prisão. A condenação injusta ou por motivos banais a penas severas denuncia
a incapacidade, a limitação, a impossibilidade e a dificuldade de os homens
garantirem justiça.
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Na afirmação de Javert retrata-se um contexto de sarcasmo, desprezo,
humilhação e medo que demonstra a condenação de um sistema jurídico-penal
incapaz de julgar além dos limitados padrões da literalidade jurídica e a capacidade
humana de despersonalizar o semelhante e condená-lo às agruras do cárcere,
destituindo sua identidade no presente e no futuro. São as mazelas da sociedade,
do Direito, das instituições e da justiça, entre outras, presentes na obra que expõe a
França do final do Século XVIII e início do Século XIX.
Com a mesma intensidade, daquele olhar violento e desprezível de Javert,
existe a remessa à estrutura social, especialmente aos dirigentes e às pessoas com
responsabilidade política, que negam “o pão” ou “pedaços dele” a uma parcela
significativa dos seus habitantes. Furtar um pão para saciar a fome de sua família
custou a Jean Valjean 19 anos de prisão. O número 19 é sinônimo da afirmação
“sentirás o gosto da liberdade”. O que é a liberdade? Quem garante a liberdade?
Qual é o “gosto da liberdade”?
Compreender o valor moral da liberdade demanda a convicção que integra a
necessidade
de
um
convencimento
justificado
com
razões
suficientes
e
fundamentadas e, simultaneamente, as necessárias mediações sociais ou morais,
condições políticas e institucionais para a sua efetivação. A liberdade não pode ser
limitada a um valor metafísico, mas integra as convicções políticas da população e
pode ser visualizada no cotidiano da convivência humana e das relações sociais.
Em “Os miseráveis” essa é uma contradição que se torna explícita pelo
contexto das cenas, pelo aparato condenatório e pala força das expressões
linguísticas e simbólicas. A sociedade francesa pós Revolução de 1789 quando
havia escolhido os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade como ideais
para a superação do despotismo monárquico, da promiscuidade e da falência das
instituições percebe-se envolta na própria incapacidade de aliviar o peso da
escravidão à qual seu povo continua submetido. Nesse contexto, “sentirás o peso de
liberdade” é a evidência da falência de uma sociedade (ou Estado) movida por
grandes ideias, mas condenada pela sua contradição.
O prisioneiro Jean Valjean é a manifestação simbólica “do peso” da ausência
de liberdade e da permanência da escravidão com todo o seu significado político e
jurídico. A negação da liberdade e o seu valor moral genuíno está muito além da
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prisão física. Expressões como o trabalho sem sentido, a obediência sem metas, as
ordens sem objetivos, o olhar e o ir e vir sem direção, o nome sem identidade, a
revolta sem convicção, a paternidade sem cuidado, o esconder-se sem ter um lugar,
a Igreja sem um líder, a esposa sem o companheiro e a morte sem dignidade, são
encontros e desencontros que a obra “Os Miseráveis” expressa a fim de revelar o
que é a liberdade sem sentido e uma sociedade sem destino.
Considerar a liberdade como condição para a construção do sentido da
existência humana e a legitimidade da sociedade democrática têm como imperativo
moral a superação da escravidão (moderna escravidão), efetivando a característica
de „sujeito de direitos‟ aos cidadãos, tão cara às sociedades democráticas.
Superar as mazelas humanas e sociais e a necessidade de afirmação de uma
concepção de justiça que inclua o valor da pessoa, da liberdade e da ação política
com condições de ordenar justamente uma sociedade marcada por diferenças e
conflitos são retratadas por Rawls na explicação de sua Teoria da Justiça como
equidade:
Para tomar um exemplo extremo, escravos são seres humanos que não são
tratados como fontes de reivindicações, nem mesmo as reivindicações
baseadas em deveres ou obrigações sociais, porque não se considera que
sejam capazes de ter deveres ou obrigações. Leis que proíbem maltratar e
explorar escravos não se fundamentam em reivindicações feitas por escravos
em benefício próprio, mas em reivindicações oriundas quer de senhores de
escravos ou dos interesses gerais da sociedade (que não incluem os
escravos). Escravos são, por assim dizer, indivíduos socialmente mortos: não
são de modo algum reconhecidos como pessoas. Essa comparação com uma
concepção política de justiça que admite a escravidão evidencia porque
conceber os cidadãos como pessoas livres em função de suas faculdades
morais e de eles terem uma concepção do bem está intimamente ligado a
uma determinada concepção política de justiça.3
A modernidade elegeu a norma jurídica, os princípios morais e constitucionais
como instâncias normatizadoras e referências para as relações sociais e a garantia
da ordem, da equidade e da justiça. Entretanto, a tensão que acompanha “Os
Miseráveis” denuncia os limites e, quiçá, a sua incapacidade de dirimir, orientar,
solucionar ou ordenar conflitos e problemas, sejam cotidianos ou de maior
expressão como os denunciados na sociedade de então – a escravidão. O mesmo
dilema repercute na atualidade, por exemplo, em relação ao tráfico de pessoas.
3
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Tradução: Claudia
Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 33.
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Simbolicamente, as cenas que perpassam “Os Miseráveis”, o jogo de
perseguição entre Javert e Jean Valjean, com suas astúcias e estratégias,
finalizadas no retrato do encontro com a morte de forma trágica e incauta,
denunciam as dificuldades para avaliar as condições para a liberdade e, ao mesmo
tempo, a ânsia dos homens para atingi-la. Esse contexto dá condições para afirmar
a impossibilidade de conjugar o valor da liberdade sem as necessárias condições
sociais para o seu exercício. Com a mesma intensidade afirmamos que as garantias
de liberdade dadas pela arquitetura legal, por mais claras e lógicas, pela existência
de instituições ou mesmo pelo funcionamento de um ordenamento social são
insuficientes para a efetivação da liberdade tanto em nível individual quanto na
inserção social.
Assim, a obra “Os Miseráveis” é uma afirmação do direito à liberdade como
condição indispensável para a realização humana, a interação social e o
desenvolvimento, assim como a declaração do dever de cada homem torná-lo
presente em sua conduta.
4 O direito humano à liberdade
São mui pequenos os perigos exteriores;
os grandes estão no íntimo.
Victor Hugo, Os Miseráveis
A liberdade é uma característica fundamental do homem, nela está a
referência para avaliar a própria dignidade. Eis uma marca que faz parte da natureza
humana. A possível negação despersonalizada e impede o desenvolvimento, a
interação, a integração, o exercício da cidadania e a própria auto estima. O Estado
a reconhece no ordenamento jurídico e garante o seu exercício e, em outras
situações e por diferentes motivos, também a regula e a restringe. O valor, a
definição ou a extensão da liberdade possui vários significados que correspondem a
períodos históricos com seus contextos ou a concepções humanas, jurídicas,
filosofias ou teológicas. Sublinham Bittar e Almeida 4 “a liberdade, enquanto escolha
de valores, é que dá especificidade à pessoa humana; é só ela em todo o universo
que é capaz de criar um mundo contraposto ao da natureza, o mundo ético 5”. Nesse
4
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
direito. 11. ed.São Paulo: Atlas, 2015, p. 636.
5
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
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contexto se pode afirmar que o exercício da liberdade torna o homem radicalmente
humano.
A humanidade acompanhou a evolução do conceito de pessoa, igualdade e
liberdade de forma conexa, dependente, complementar e, em outras ocasiões,
divergentes, contraditórias e excludentes. Conforme a referência, pode ser
considerada como a oposição ao autoritarismo, ausência de coação, a possibilidade
de se fazer aquilo que se quer, ou mesmo, como contrária ao cativeiro.
Na antiguidade Aristóteles descreve a liberdade no sentido econômico,
jurídico e político. A liberdade se baseava na partilha do poder social entre todos os
cidadãos. Destaca, “é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não
agir, é o princípio para a escolher entes alternativas possíveis” 6.O homem livre
participa da vida da cidade: “Sendo a pólis a culminância de todo o processo de
integração e desenvolvimento humanos, e a ela aplicando-se o justo político, é
natural que para o viver familiar se apliquem também regras de convívio que, além
de definirem o justo político, constituem o justo doméstico”7.
Posteriormente, no período medieval afirma-se a doutrina cristã como aquela
dimensão revelada que orienta o agir humano no mundo. De São Paulo o mundo
herdou a convicção de que o cristianismo é uma doutrina da liberdade. Conclui
Reale: “com o advento do cristianismo, opera-se uma distinção fundamental e
definitiva entre política e religião, entre a esfera do estado e a órbita de ação própria
do homem, o qual deixa de valer como „cidadão‟ para passar a valer como homem” 8.
E, na modernidade configura-se o processo de proteção e garantia da
liberdade, isto é, o entendimento de seu valor e a necessidade de poder ser exercida
por todos independente de condições predispostas. Rousseau foi uma referência
para essa evolução porque: “O contrato aparece como forma de proteção e de
garantia da liberdade, e não o contrário9”. Ou seja, “A liberdade contínua íntegra
após a adesão ao pacto, agora com a garantia de um Estado que a reforce10”.
direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 636.
ARISTOTELES. Ética a Nicomaco. Lisboa: Veja, 1998.
7
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 160.
8
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 636.
9
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 324.
10
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
6
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No Século XX o exercício da liberdade, a igualdade e o valor da pessoa
adquiriram o seu status moral mais elevado com a Declaração dos Direitos
humanos. A eleição dos direitos afirma a capacidade de todos e a necessidade de
exercê-los independente de pré-condições. Está afinada a condição de sujeito de
direitos e concebida, por consequência, a possibilidade de classificação em
categorias ou escalas decrescentes, seja econômica, seja política ou outra qualquer.
A liberdade alcança o seu valor moral. Com especial maestria destacam Bittar e
Almeida,
A Declaração de 1948 foi a forma jurídica encontrada pela comunidade
internacional de eleger os direitos essenciais para a preservação da
dignidade do ser humano. Trata-se de um libelo contra o totalitarismo. Seus
30 artigos têm como objetivo principal evitar que o homem e a mulher sejam
tratados como objetos descartáveis11.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma consagração do direito
à liberdade como dispositivo moral e legal fundamental para a realização humana, o
equilíbrio social, o ordenamento econômico e as relações entre povos e culturas.
Atualmente, pode-se afirmar que os Direitos Humanos integram as convicções
profundas das democracias e fomentam reivindicações, proposições e organizações
que os têm como referência para sua atuação.
Acompanhando as constituições dos países democráticos são pautadas pela
defesa e busca da concretização dos Direitos Humanos. Sem essa prerrogativa não
se pode defender ou estruturar um ordenamento social equitativo, seguro e estável.
Com isso afirma-se que a retórica da democracia precisa ser fundamentada nesses
direitos.
Sinaliza o enunciado da Declaração dos Direitos Humanos, de forma
categórica, a importância da liberdade para as diferentes áreas da existência
humana, para o exercício dos direitos individuais, alcançando as relações
internacionais, como se verifica em:
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal
comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo
11
direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 329.
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do
direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 718.
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de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente
esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por
promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de
medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o
seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre
os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos
12
territórios sob sua jurisdição. (grifo dos autores)
Os enunciados que seguem a Declaração representam o conjunto de direitos
fundamentais para que uma sociedade oriente o seu funcionamento, estruture suas
instituições, consagre a sua legislação, desenvolva o conceito de pessoa como
sujeito de direitos e invista na sua organização para buscar incessantemente a
efetivação dessa meta.
A razão pública de uma sociedade democrática precisa integrar os Direitos
Humanos na sua identidade. Isso demanda dos cidadãos, especialmente dos seus
líderes, a necessidade de exercerem os seus direitos e, com a mesma intensidade,
reconhecerem o direito dos demais. Essa dimensão universal imprime a
característica de igual dignidade a todos os seres humanos.
Na obra “Os Miseráveis” ocorre a exposição da contradição entre o direito à
liberdade e à prisão injusta, isto é, por motivo banal e sem o necessário
esclarecimento das circunstâncias individuais, familiares e sociais. A prerrogativa de
Javert, “sentirás o gosto da liberdade”, demonstra no conjunto subsequente de
cenas a negação desse direito básico e a instrumentalização do valor da liberdade.
A justa prisão é a negação da liberdade, logo a injustiça.
Verifica-se que o trabalho forçado, a mentira do religioso, a prostituição da
esposa, a escravidão da filha, a desumanidade do cárcere e uma sociedade sem
instituições e estruturas, seja para a solução de conflitos ou a garantia de condições
de sobrevivência aos seus, não pode ser considerada livre.
Na França pós Revolução como na atualidade, a obra aponta para a
necessidade de a liberdade poder ser visualizada no cotidiano da vida social e
constituir a marca do humano em meio às ainda gritantes contradições. É preciso
uma cultura de direitos e liberdade visando à justiça social.
12
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm . Acesso em 12 jul.
2014.
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Tanto no sentido moral quanto político, a demanda por mais justiça está em
conexão com a ausência de liberdade, o que pode ser percebido no preconceito e
nas declarações recheadas de fanatismo em estratos significativos das sociedades,
não poucas vezes entre os mais esclarecidos e influentes. Essa relação complexa é
retratada por Amartya Sen13 “essa aparente vitória da ideia e do uso dos direitos
humanos coexiste com certo ceticismo real, em círculos criticamente exigentes,
quanto à profundidade e coerência dessa abordagem.” Deixa-se transparecer que
existe “uma certa ingenuidade em toda a estrutura conceitual que fundamenta a
oratória sobre direitos humanos.”
Eleger os Direito Humanos como um imperativo universal demonstra a sua
força moral e o compromisso dos demais com a sua efetivação nas diferentes
instâncias. Especificamente em relação ao direito à liberdade, a condução da
exposição dos direitos é um compromisso com a liberdade concebida como um
direito humano fundamental. Direito à vida, de ir e vir, à propriedade, ao lazer, à
associação, entre outros, indica as demandas que ainda ressentem a necessidade
de uma avaliação com múltiplas referências sobre as condições de justiça nas várias
partes do mundo.
“Os Miseráveis” denuncia, especificamente, duas dimensões que reduzem o
homem à condição de meio ou objeto (res, coisa), isto é, a comercialização, como
uma das ameaças que contrastam com a capacidade e as concepções morais
desenvolvidas ao longo da história. Primeiro, Artigo IV: “Ninguém será mantido em
escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em
todas as suas formas” e, segundo, Artigo V: “Ninguém será submetido à tortura, nem
a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. A persistente contradição
entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a prática social, é a
demonstração da desqualificação do humano e a sua condução à situação mais
degradante porque vítima de um semelhante que, ao se impor como autoridade,
proprietário da verdade e com pretensão de superioridade mais que divina, usando
da sua autoridade, força ou poder demonstra o seu nada e a sua insignificância
diante de outro humano.
13
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 261.
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O “sentirás o peso da liberdade” tem, nesse contexto, a força de demonstrar
de forma indireta e, conforme as circunstâncias, também, categórica, que, quanto
maiores as convicções sobre as garantias de liberdade e as condições para a sua
efetivação, haverá menos desumanização e, com mais intensidade, são garantidos
os direitos fundamentais, seja para a realização individual, seja para a estruturação
política de uma sociedade justa e equitativa.
5 O direito à liberdade na Constituição Federal brasileira
“A quem tem o coração morto,
os olhos nunca choram.”
Victor Hugo, Os Miseráveis
A convivência em sociedade exigiu do homem comportamentos que conciliam
a sua liberdade individual à regulamentação da liberdade. Esse fato, entretanto, não
retira do valor „liberdade‟ o protagonismo basilar dos direitos fundamentais.
Como valor comum dos povos, a liberdade representa uma conquista e é
resultado de lutas. Os ordenamentos jurídicos assumem a observância desse valor e
se propõem a regulamentar e efetivar, por meio de normas fundamentais de alta
relevância, sem a quais a dignidade da pessoa humana restaria comprometida ou
incompleta. Mesmo considerando
a norma jurídica, de forma geral, como um
comando de repressão, que controla e limita as condutas humanas, indicando o que
é permitido ou do que é proibido ou do que é facultado, para equilibrar as tensões
sociais, o Direito se completa com a liberdade. Pretende-se, por conseguinte, o
equilíbrio entre os dois conceitos e a intrínseca relação que deve ser mantida entre
eles. Assim, o direito à liberdade resguarda uma reciprocidade com as condutas
moral e legal, que são o critério objetivo para o legislador balizar sua ação normativa
no quadro de valores respaldados pela sociedade.
As primeiras marcas de regulamentação da liberdade no Brasil estão
registradas ainda, na época da colônia, como no movimento pela liberdade da
Inconfidência Mineira, contra o despotismo da Metrópole. Com a Independência, as
Cartas Constitucionais que se seguiram passam a prever as garantias dos direitos
civis, políticos, sociais e difusos dos cidadãos, fundados na liberdade. A Constituição
Federal de 1988 expressa em seu catálogo aberto de direitos e garantias
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fundamentais o direito à liberdade de querer/fazer aquilo que é legal, moral e normal.
O direito e a garantia da preservação da dignidade jurídica da pessoa
humana, característica do ser humano, implica e completa-se pela efetiva somatória
de todos os direitos fundamentais, incluindo a liberdade, na medida de ser manifesta
na autodeterminação do ser humano.
Amparados nessa ideia, vários dispositivos na Constituição Federal brasileira
de 1988 expressam o direito à liberdade. Inicialmente, já no preâmbulo, tem-se o
valor „liberdade‟, como um dos pilares do Estado brasileiro. Na sequência no art. 5º,
II, imprime-se que somente as leis podem limitar a liberdade individual, assim
também o art. 5º, IV expressa que é livre a manifestação do pensamento, sendo
vedado o anonimato. Não é tolerado o exercício abusivo desse direito, em
detrimento da honra de alguém. Na mesma senda, o art. 5º, V contempla o direito de
resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à
imagem. Associam-se o direito de liberdade de consciência e de crença (de foro
íntimo) e, mais, o direito de liberdade de culto (exteriorização da crença),
Além desses, podem-se citar a liberdade de cátedra prevista no art. 206, II,
revelando-se na liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar e de divulgar o
pensamento, a arte e o saber; a liberdade de informação jornalística, presente no
art. 220 e parágrafos; a liberdade científica e artística traduzida na proibição de
censura, art. 220, §2º- “é vedada toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica ou artística”; a proibição de restrições à manifestação do pensamento
(publicação), conforme o art. 5º, IX; a vedação à censura ou licença prevista no art.
220, §6º: “a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença
de autoridade”.
Destacam-se ainda, a liberdade artística, o direito de informação previsto no
art. 5º, XIV e XXXIII, “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações
de seu interesse particular”. Do mesmo modo, o direito ao habeas data, inserido no
art. 5º, LXXII, que garante o direito ao conhecimento do conteúdo das informações
constantes de bancos de dados públicos ou abertos ao público, e à possibilidade da
retificação desses dados. A liberdade de informação jornalística; a liberdade de
locomoção exposta no art. 5º, XV, “é livre a locomoção no território nacional em
tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer
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ou dele sair com seus bens”, garantia da liberdade de locomoção por meio da ação
de habeas corpus.
Incluem-se a liberdades de expressão coletiva, compreendendo a liberdade
de reunião, estabelecida no art. 5º, XVI; a liberdade de associação para fins lícitos,
art. 5º, XVII a XXI. A liberdade de ação profissional, art. 5º, XIII, “é direito de cada
um exercer qualquer atividade profissional”.
Dentre os direitos relacionados à liberdade, o direito de „ir e vir‟ é parte
integrante do direito à liberdade pessoal e está diretamente vinculado ao enredo da
obra “Os Miseráveis”. Esse direito, compreende a locomoção ou a liberdade de
circulação, conforme o art. 5º, inciso XV, "é livre a locomoção no Território Nacional
em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
permanecer ou dele sair com seus bens". Esse preceito inclui o direito de
permanecer, o direito de deslocamento, a pé ou por veículos dentro do território
nacional, o de sair e o de entrar no território nacional.
No regramento brasileiro, essa regra constitucional aplica-se tanto aos
brasileiros (natos ou naturalizados) como aos estrangeiros (para esses sendo
exigido, para circular em território nacional, passaporte). O direito de circulação (ou
liberdade de circulação) consiste na faculdade de deslocar-se de um ponto para
outro pela a via pública ou afetada ao uso público.
Conforme consta no texto constitucional, o direito de ir e vir não é absoluto,
porque sujeito às limitações contidas no próprio dispositivo. A Constituição tem que
ser interpretada no seu todo, logo, o direito de ir e vir, como todos os direitos, tem,
inicialmente, como limite natural o direito do outro. A observância desse limite
natural é indispensável à convivência social pacífica.
Especialmente relacionando com a obra “Os Miseráveis”, a personagem do
inspetor personifica a concepção positivista do Direito, com a percepção de tudo o
que é legal é, apenas por ser legal, “justo”. Durante todo o tempo de prisão o
inspetor vê a lei como forma, sem preocupação com seu conteúdo, valorizando-se
sobremaneira o procedimento, sem espaço para a análise das questões materiais
(direito).
A punição rígida aplicada a Jean Valjean, a pena desproporcional, a
crueldade da prisão, a eternização da sentença e a seletividade penal em todas as
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suas dimensões pelo „crime‟ cometido, atualmente se enquadraria na esfera da
insignificância penal. Do mesmo modo, em outros aspectos reveladores da liberdade
a interpretação e aplicação do Direito, ainda, é descontextualizada e desconectada
da proposta do atual texto constitucional, das linhas mestras do Estado Democrático
de Direito, calcadas na inscrição e na garantia da efetivação do direito.
6 Considerações finais
A reflexão sobre o valor moral da liberdade e a correspondente extensão para
a dimensão de um direito humano e constitucional possibilita uma reflexão que
envolve a explicitação do seu significado para cada pessoa individualmente e o
necessário desejo de efetivação sob ângulo mais amplo, isto é, a liberdade precisa
ser percebida no cotidiano da convivência humana, nas relações sociais e na
atuação das instituições. Sem essa concepção ocorre a limitação ou restrição ao
domínio dos interesses, instituições ou concepções que buscam enquadrar a
liberdade em parâmetros ou concepções restritas, instrumentalizadas ou para
legitimar interesses individualistas e corporativos.
O “Os miseráveis” é uma produção que, ao expor a injustiça social e a vida de
um homem “ao peso da liberdade”, retrata os limites, dilemas e impotências da
época em flagrantes contradições com a Revolução Gloriosa e seus notáveis valores
de igualdade, liberdade e fraternidade, historicamente avaliada como um dos
eventos que representou uma forte evolução.
A democracia cujo aprimoramento e estabilidade ocorridos nos últimos 200
anos
é
um
fato
sem
precedentes,
convive
com
inúmeras
limitações,
especificamente, quando considerado o acesso e o exercício das liberdades.
Retratos evidenciados em o “Os miseráveis” continuam denunciando líderes,
instituições, pessoas, governos e interesses que impedem, ofuscam, negam e
manipulam a liberdade. As denúncias de tortura no Brasil e nas prisões do mundo,
por exemplo, nas de Guantánamo, após a invasão ao Afeganistão, a venda de
sentenças, a prisão de pobres sem direito à defesa e a ausência de sanções para os
mais abonados, entre outras, revelam a atualidade da produção literária e artística e
o objeto desta pesquisa.
A liberdade adquire valor moral sendo caracterizado, simultaneamente, como
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meio e fim da existência humana. Nenhum homem é humano quando nele inexiste a
liberdade. Outrossim, inoperante é a liberdade quando arquitetada segundo
discursos com riqueza de vocábulos e largueza de argumentos, porém vazia de
visualizações. “Sentirás o gosto da liberdade”, nesse patamar, é a expressão
genuína de um valor moral insosso.
Tanto quanto a democracia, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
representa o indicativo que expressa a capacidade humana de superar situações
que puseram em risco a racionalidade e a própria condição humana, tantas vezes
denunciada. Explicitamente nos referimos ao Holocausto e a legitimidade jurídica
dos regimes de exceção que dominaram parte do século passado. O “Os
miseráveis” desaprova a legislação que condena um homem por causa do “roubo de
um pão” e com a mesma perspicácia uma sociedade que se cala diante situações
dessa natureza e capaz de sancionar essas mesmas ações.
A legitimidade da Declaração Universal será consentida e a adesão dos
povos eficaz quando as atitudes e a atuação dos homens e instituições que
representam o seu contraditório diminuírem ou forem extintas. Nessa dinâmica, a
afirmação “sentirás o gosto da liberdade” terá o alcance de seu significado moral e
não a pobreza de uma metáfora desumana e socialmente molestada como em “os
miseráveis”.
Nesse compasso, o texto constitucional de 1988, evidencia como valor basilar
a liberdade, já no preâmbulo, na disposição nos princípios fundamentais do Estado
brasileiro e, notoriamente no capítulo dos direitos e garantias individuais,
espraiando-se em vários dispositivos, relacionando a liberdade ao direito à livre
expressão, ao direito de resposta, ao direito de imagem, à intimidade, à vida privada,
à liberdade de consciência e de crença, à liberdade de informação, à proibição da
censura, ao acesso ao habeas corpus, ao habeas data, ao mandado de segurança,
entre outros.
Por certo que à previsão constitucional do valor da liberdade se somarão
outros valores e direitos na orientação da interpretação e aplicação das normas,
como o valor da dignidade do ser humano, o que levará a implementação das
capacidades humanas e à cidadania emancipatória.
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Referências
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Data de submissão: 31/07/2015
Data de aceite: 20/06/2016
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