Finalmente, os textos - Comunidade de Práticas

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Finalmente, os textos - Comunidade de Práticas
VER-SUS – VALE DO SÃO FRANCISCO
VERÃO 2016
CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 1: Saúde da família: limites e possibilidades para uma abordagem integral de
atenção primária à saúde no Brasil
Ligia Giovanella et.al.
A atenção primária à saúde (APS) como estratégia para orientar a organização do sistema de saúde e responder as
necessidades da população exige o entendimento da saúde como direito social e o enfrentamento dos
determinantes sociais para promovê-la. A boa organização dos serviços de APS contribui à melhora da atenção com
impactos positivos na saúde da população e à eficiência do sistema1,2.
Na América Latina, nos anos oitenta, a abordagem seletiva de atenção primária foi preconizada por agências
multilaterais, tornando-se hegemônica a implementação de uma cesta mínima de serviços, em geral de baixa
qualidade3. Recentemente, países da região vêm desenvolvendo políticas para fortalecer a APS como estratégia
para organizar os serviços e promover a equidade em saúde renovando uma abordagem abrangente de APS4.
No Brasil, nos anos noventa, a concepção de APS também foi renovada. Com a regulamentação do Sistema Único
de Saúde baseada na universalidade, equidade e integralidade e nas diretrizes organizacionais de descentralização
e participação social, para diferenciar-se da concepção seletiva de APS, passou-se a usar o termo atenção básica em
saúde, definida como ações individuais e coletivas situadas no primeiro nível, voltadas à promoção da saúde,
prevenção de agravos, tratamento e reabilitação.
O Saúde da Família, inicialmente voltado à extensão de cobertura, com foco em áreas de maior risco social e
implantado a partir de 1994 como um programa paralelo "limitado, bom para os pobres e pobre como eles"5, aos
poucos adquiriu centralidade na agenda do governo, convertendo-se em estratégia estruturante dos sistemas
municipais de saúde e modelo de APS.
Em 2006, a Política Nacional de Atenção Básica, acordada entre gestores federais e representantes das esferas
estaduais e municipais na Comissão Intergestores Tripartite, ampliou o escopo da atenção básica e reafirmou a SF
como estratégia prioritária e modelo substitutivo para organização da atenção básica. Ponto de contato preferencial
e porta de entrada de uma rede de serviços resolutivos de acesso universal, a atenção básica deve coordenar os
cuidados na rede de serviços e efetivar a integralidade nas diversas dimensões6.
Hoje, a SF está presente em 94% dos municípios (29 mil equipes e cobertura populacional de 48% - o que
corresponde a 92 milhões de pessoas). Todavia, as experiências em curso revelam grande diversidade dos modelos
assistenciais vis-à-vis as imensas disparidades inter e intra regionais e desigualdades da sociedade brasileira. Assim,
nem sempre a ampliação de cobertura correspondeu à mudança do modelo assistencial preconizada pela
Estratégia7,8.
O artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa que objetivou analisar a implementação da SF com foco na
integração à rede assistencial e à atuação intersetorial em quatro capitais, para discutir as potencialidades da SF
como estratégia de atenção primária em saúde abrangente.
Implementar uma concepção abrangente ou integral de APS implica a construção de sistemas de saúde orientados
pela APS, articulados em rede, centrados no usuário e que respondam a todas as necessidades de saúde da
população. A integração ao sistema é condição para se contrapor a uma concepção seletiva da APS como programa
paralelo com cesta restrita de serviços de baixa qualidade, dirigido a pobres4. E a atuação intersetorial é condição
para que a APS não se restrinja ao primeiro nível, mas seja base a toda a atenção, contemplando aspectos biológicos,
psicológicos e sociais, incidindo sobre problemas coletivos nos diversos níveis de determinação dos processos
saúde-enfermidade, promovendo a saúde.
Problemas relacionados à integração do sistema e coordenação dos cuidados vêm recebendo atenção nas reformas
dos sistemas de saúde, com iniciativas para fortalecer a APS9. As propostas de fortalecimento da posição da atenção
primária no sistema decorrem do reconhecimento da fragmentação na oferta dos serviços de saúde e da
prevalência de doenças crônicas, que exigem maior contato com os serviços de saúde e outros equipamentos sociais
em um contexto de pressão por maior eficiência10,11.
A integração da rede de serviços na perspectiva da APS envolve a existência de um serviço de procura regular, a
constituição dos serviços de APS como porta de entrada preferencial, a garantia de acesso aos diversos níveis de
atenção por meio de estratégias que associem as ações e serviços necessários para resolver necessidades menos
frequentes e mais complexas12 com mecanismos formalizados de referência e a coordenação das ações pela equipe
de APS, garantindo o cuidado contínuo13. Integração, coordenação e continuidade são processos inter-relacionados
e interdependentes que se expressam em vários âmbitos: sistema, atuação profissional e experiência do paciente
ao ser cuidado.
Por sua vez, a atuação intersetorial é condição para uma APS abrangente, pois a APS envolve a compreensão da
saúde como inseparável do desenvolvimento econômico e social, significando a necessidade de enfrentamento dos
determinantes sociais dos processos saúde-enfermidade, o que exige articulação com outros setores de políticas
públicas14.
A ação intersetorial busca superar a fragmentação das políticas públicas e é entendida como a interação entre
diversos setores no planejamento, execução e monitoramento de intervenções para enfrentar problemas
complexos e necessidades de grupos populacionais15. Em saúde, a articulação intersetorial é imprescindível para
incidir sobre os determinantes sociais do processo saúde-enfermidade e promover a saúde. Os resultados de saúde
alcançados por meio da intersetorialidade são mais efetivos do que o setor saúde alcançaria por si só16,17. Na
perspectiva da APS no âmbito municipal, a atuação intersetorial se processa na ação comunitária no território,
articulação na SMS e articulação de políticas municipais.
A atuação intersetorial é prevista na SF. Esta atribuição é reafirmada na PNAB de 2006, que orienta ao
"desenvolvimento de ações intersetoriais, integrando projetos sociais e setores afins, voltados para promoção da
saúde"6.
Metodologia
Os estudos de caso correspondem a uma estratégia de pesquisa alicerçada em metodologias quantitativa e
qualitativa e diversas fontes de informação convergentes, trianguladas para responder às perguntas da
investigação18,19.
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Os municípios foram selecionados intencionalmente de modo a escolher experiências consolidadas. Os critérios de
seleção e as características das cidades selecionadas estão na Tabela 1.
A integração e a intersetorialidade foram analisadas nos âmbitos da gestão do sistema de saúde, do processo de
trabalho dos profissionais e do cuidado recebido pelas famílias. Foram levantadas informações dos gerentes
municipais com realização de entrevistas (77); profissionais das equipes SF com questionários auto-aplicados (1336)
e famílias cadastradas com aplicação de questionários estruturados nos domicílios (3312 famílias)(Tabela 2).
Os resultados foram organizados em dois campos: a posição da Estratégia na rede e os mecanismos de integração,
destacando o uso de tecnologias de informação.
Posição da Estratégia SF na rede assistencial
Nos municípios estudados, a Estratégia SF foi adotada com a perspectiva de mudança do modelo assistencial na
atenção básica, com a constituição da ESF como porta de entrada preferencial, visando à constituição de um sistema
integrado de serviços de saúde (Tabela 3).
Para a seleção de famílias cadastradas, foi desenhado plano de amostragem do tipo conglomerado em três estágios
de seleção: equipe SF como unidade primária de amostragem, agente comunitário de saúde (ACS) como unidade
secundária e, como unidade elementar, a família cadastrada. A pesquisa de campo foi realizada entre maio e
setembro de 2008.
Este artigo articula a análise de indicadores selecionados, cotejando resultados dos estudos com gestores,
profissionais e famílias, nos dois eixos de análise: integração da rede assistencial e atuação intersetorial.
Para análise da integração, foram investigadas diferentes dimensões. Na organização do sistema de saúde, buscouse identificar e examinar a implementação de instrumentos de integração como centrais de regulação,
monitoramento de filas de espera e estratégias de atendimento à demanda espontânea. Nos processos de trabalho,
foi examinado o uso dos instrumentos de integração e percepção dos profissionais sobre porta de entrada e garantia
de acesso à atenção especializada. Na experiência de recebimento de cuidado, foi verificada a existência de serviço
de procura regular e a constituição da USF como serviço de primeiro contato.
Na análise da intersetorialidade, foram identificadas estratégias de articulação intersetorial desenvolvidas e o papel
desempenhado pela Estratégia SF. A atuação intersetorial do Executivo municipal foi apreendida desde a
perspectiva da Secretaria Municipal de Saúde e de gestores de outras secretarias identificadas como tendo maior
articulação com a SMS. As dimensões de análise priorizadas foram: campos de atuação; abrangência da intervenção;
setores envolvidos nos níveis local (ESF) e central (SMS e outras secretarias); existência e funcionamento de fóruns
colegiados; e temas/problemas de intervenção intersetorial.
Resultados
Integração da Estratégia SF à rede assistencial
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Os municípios implementaram as ESF nas unidades básicas tradicionais e construíram novas unidades para a
implantação da SF em áreas sem oferta. Observa-se esforço para superar a duplicidade de modelos assistenciais na
atenção básica, na tentativa de transformar os centros de saúde em unidades modelares de SF. Em parte das
unidades, os especialistas da atenção básica funcionam como profissionais de suporte para as equipes SF do centro
de saúde. Para os gestores, esta medida permitiu definir uma lógica comum de organização da atenção básica,
evitando a dissonância entre diferentes propostas assistenciais (Tabela 3).
A regionalização do sistema municipal é também uma estratégia para garantia de acesso à média complexidade e
integração da rede das quatro cidades, investindo-se na formação de centros de especialidades médicas e serviços
de pronto-atendimento regionalizado para fornecer suporte na média complexidade às unidades de atenção básica
circunscritas aos territórios de abrangência (Tabela 3).
Os serviços de atenção primária têm se configurado como importante fonte de cuidado regular e porta de entrada
preferencial nos municípios estudados. Mais de 70% (em Belo Horizonte, 85%) das famílias cadastradas buscam o
mesmo serviço de saúde para assistência ou prevenção de saúde. Dentre estes, indicaram como serviço de primeiro
contato e procura regular o centro de saúde e/ou a unidade de SF: 75% (Belo Horizonte), 70% (Vitória), 70%
(Aracaju) e 50% (Florianópolis) (Tabela 3).
Menores proporções de moradores que estiveram doentes nos últimos trinta dias informaram ter buscado
atendimento nas unidades de SF ou centro de saúde, alcançando mais de 50% dos casos apenas em Belo Horizonte,
município no qual a preocupação em articular o atendimento das demandas espontânea e programada envolve
diversas estratégias e o atendimento à demanda espontânea é realizado diariamente. A menor proporção foi em
Florianópolis (28%), onde parte das USF atende grupos não prioritários somente uma vez por semana.
Os profissionais das equipes SF também reconhecem os serviços de atenção básica como a porta de entrada
preferencial. Mais de 80% dos médicos e enfermeiros nas quatro cidades concordaram com a afirmativa "A
população procura primeiro a Unidade de SF quando necessita de atendimento de saúde" (Tabela 3).
Mecanismos de integração da rede
Nos municípios, a integração da rede assistencial para garantia da atenção especializada é preocupação presente
nas ações e discursos dos gestores. Uma das principais estratégias identificadas para integrar a atenção básica à
média complexidade nos quatro casos foi a implantação de centrais informatizadas de regulação (Tabela 4).
Belo Horizonte, Florianópolis e Vitória optaram pelo SISREG, sistema de informação on-line disponibilizado pelo
DATASUS/MS, para gerenciar e operar centrais de regulação, desde a rede de atenção básica à especializada e
hospitalar, visando maior controle dos fluxos e otimização no uso dos recursos. Aracaju implantou o Terminal de
Atendimento ao SUS, vinculado ao cartão SUS.
A implantação do SISREG possibilitou a marcação imediata de exames e consultas especializadas, para
procedimentos com oferta suficiente, a definição de prioridades clínicas e o monitoramento das filas de espera.
Quando o paciente é remetido à fila eletrônica, a partir da classificação de riscos em alto, médio ou baixo em função
do diagnóstico, é definida a prioridade para atendimento. O sistema possibilita à equipe SF acompanhar o percurso
do usuário. Ainda como resultados da implantação do SISREG, foram mencionados pelos gestores locais: diminuição
do número de faltosos às consultas especializadas, diminuição das filas e tempo de espera, possibilidade de
redistribuir cotas entre centros de saúde, contratação de oferta em função da demanda, análise dos
encaminhamentos e maior imparcialidade no controle das agendas.
Belo Horizonte se destaca nas iniciativas de articulação da rede. Além do sistema de regulação informatizado, a SMS
incentiva a criação de comissões de regulação nos centros de saúde, com fluxo de estabelecimento de critérios de
priorização ascendente partindo do centro de saúde.
As estratégias de integração da rede e regulação do acesso à atenção especializada informadas pelos gestores são
confirmadas pelos profissionais. A maioria dos médicos e enfermeiros das equipes SF nos quatro municípios
reconhece a existência das centrais de marcação de consultas especializadas (Tabela 4).
A efetividade das ferramentas de integração é condicionada pela oferta. Os gestores das quatro cidades relatam
insuficiência de oferta da rede municipal para atender à demanda por atenção especializada, produzindo filas de
espera.
A facilidade de agendamento e agilidade no atendimento na percepção dos profissionais foram tidos como
indicadores de garantia de acesso à atenção especializada. A facilidade para realizar agendamentos para serviços
de média complexidade é diferenciada entre os casos estudados. 43% (Aracaju) e 49% (Florianópolis ) dos médicos
conseguiam realizar sempre ou na maioria das vezes o agendamento; em Belo Horizonte, a proporção foi de 81%
(Tabela 3). Os melhores resultados em Belo Horizonte podem ser atribuídos a uma melhor organização do sistema
e disponibilidade de oferta. Nos quatro casos, a maior dificuldade está no acesso a procedimentos de apoio à
diagnose e terapia. Metade ou menos dos médicos informou conseguir realizar o agendamento desses
procedimentos (Tabela 4).
A garantia do agendamento nem sempre incorre em maior agilidade de atendimento. O tempo médio de espera
para consultas especializadas de três meses ou mais foi estimado por 82% dos médicos (Florianópolis), 61% (Belo
Horizonte), 45% (Aracaju) e 34% (Vitória). Por outro lado, o agendamento para a maternidade foi relatado por mais
de 70% dos médicos em três cidades, o que indica melhora do acesso para atenção ao parto. Garantir outras
internações ainda não está sob a governabilidade dos profissionais SF. Menos de um terço dos médicos das ESF
informaram conseguir agendá-las (Tabela 4).
Na avaliação de mais de 80% dos médicos e enfermeiros das equipes SF dos quatro municípios, as longas listas de
espera são o principal problema para a integração da rede (Tabela 4).
A disponibilidade e transferência de informações são fundamentais à regulação e continuidade da atenção, o que é
reconhecido pelos gestores que vêm informatizando as unidades e implantando prontuários eletrônicos, presentes
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em Florianópolis e Belo Horizonte (Tabela 4). Belo Horizonte tem se destacado na informatização das informações
e na implantação de estratégias de TICs para suporte às equipes.
Nos quatro municípios, a oferta própria de exames e consultas especializadas está sendo inserida nos sistemas
informatizados de regulação e marcação; contudo, um desafio à integração da rede e garantia de acesso à atenção
especializada é a presença de diferentes prestadores de serviços de saúde. As capitais estudadas dispõem de
serviços especializados estaduais que não foram descentralizados e atendem a todo o estado.
Os obstáculos à integração são maiores em Vitória e Florianópolis, que há pouco assumiram a responsabilidade pela
gestão da atenção especializada. Em Vitória, os gestores admitem limites reais à integração da APS na rede
assistencial devido à baixa governabilidade do município sobre parte dos serviços especializados, sob gestão
estadual. A Programação Pactuada e Integrada mostra-se insuficiente para reduzir a fragmentação entre as redes
estadual e municipal, pois não há garantias de que as cotas programadas de procedimentos sejam distribuídas entre
as unidades de saúde municipais. A compra de serviços especializados da rede privada para superar a insuficiência
da oferta municipal é uma estratégia nem sempre bem-sucedida, seja pela inexistência de determinadas
especialidades, seja pela baixa remuneração oferecida pela tabela SUS.
Outro obstáculo destacado pelos gestores foi a ausência de políticas do Ministério da Saúde para o setor da média
complexidade. Os gestores argumentam que, apesar das dificuldades, os municípios têm políticas para garantir a
atenção secundária, o mesmo não ocorrendo no nível federal, que não dispõe de política e financiamentos
específicos à média complexidade.
Intersetorialidade
Nas quatro cidades, são desenvolvidas estratégias de ação intersetorial por meio de fóruns comuns com diversidade
de escopo (Quadro 1). Vitória e Belo Horizonte destacam-se pela presença de políticas municipais integradas de
abrangência municipal. Em Vitória foi adotado um modelo de gestão pública integrada que estabeleceu a
intersetorialidade como diretriz à construção das políticas públicas locais. Há um Comitê de Políticas Sociais,
integrado pelos gestores das secretarias municipais, que visa à articulação e integração entre os setores, e Câmaras
Territoriais, fóruns permanentes de gestores e técnicos das diversas instituições públicas, que buscam promover a
interface entre os setores para otimizar os recursos.
Entre as iniciativas do Executivo de Vitória, destaca-se o Projeto Terra Mais Igual, um programa de desenvolvimento
social e urbano e de preservação ambiental em áreas ocupadas por população de baixa renda, que visa promover
uma melhor qualidade de vida, através de ações sociais, ambientais, obras e serviços públicos. A SF participa do
projeto e os gestores municipais percebem maior resolutividade nas políticas quando há integração com a SF, em
particular com o ACS, posto que a capilaridade dos serviços de saúde facilita a difusão de iniciativas.
Em Belo Horizonte, foram criadas Câmaras Intersetoriais Permanentes de Políticas Sociais e Políticas Urbanas,
coordenadas por secretários municipais e subordinadas ao prefeito, que discutem o orçamento e a integração das
políticas. Foram instituídos grupos executivos para temas específicos e Núcleos de Intersetoriais Regionais, que
reúnem saúde, educação e assistência social para o acompanhamento do Bolsa Família. Há dois programas de
governo com articulação intersetorial: o BH Cidadania e o programa Vila Viva, que realizam ações integradas em
territórios com maior vulnerabilidade.
Na perspectiva dos gerentes de saúde de Belo Horizonte, o território local é a base das iniciativas de articulação
intersetorial e as ESF têm papel vital na identificação de situações de risco social e de saúde e potencial para
consolidar redes locais de serviços sociais.
A SMS de Aracaju desenvolve ações articuladas para enfrentar problemas específicos, como o combate à dengue,
e se integra principalmente com as secretarias de educação e assistência social (Quadro 1). Entre as iniciativas de
articulação intersetorial, temas como mobilidade urbana e meio ambiente e as experiências do Orçamento
Participativo e do Núcleo de Prevenção à Violência Doméstica. No nível local, a assistente social lotada na USF é elo
de ligação com o setor de serviço social, facilitando o acompanhamento das condicionalidades em saúde do Bolsa
Família.
Em Florianópolis, o desenvolvimento de ações intersetoriais é recente e com base em projetos específicos. Segundo
os entrevistados, o município busca articular as ações de saúde, educação e assistência social, sobretudo em relação
ao idoso, criança, população de rua e vigilância sanitária e ambiental. Mereceu destaque dos gestores a Comissão
de Promoção da Saúde Escolar, fórum que conta com representantes da SF, Educação, ONGs e escolas, coordenado
pelas secretarias de Educação e Saúde.
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A SF é apontada pelos gestores nas quatro capitais como estratégia potencial ao desenvolvimento de ações
intersetoriais; todavia, salientam que a participação do setor saúde nas iniciativas intersetoriais do Executivo
municipal poderia ser ampliada buscando-se um maior protagonismo.
A participação das ESF nas ações intersetoriais nem sempre se dá. Metade ou menos dos profissionais das ESF nos
quatro municípios participam de atividades conjuntas com outros setores para a solução de problemas da
comunidade (Tabela 4). Em Vitória e Aracaju, os profissionais que mais participam de ações intersetoriais são
enfermeiros (58% e 53%), em Belo Horizonte, ACS (34%) e, em Florianópolis, médicos (41%) (Tabela 5).
Entre os problemas encaminhados pelo ACS em atividades conjuntas no nível local com órgãos públicos, o tema
mais citado foi a escola/educação, compatível com a integração de longa data na história da saúde pública brasileira.
Também foram citados a coleta de lixo, moradia, urbanismo e esgotamento sanitário e segurança (Tabela 5).
A baixa participação em atividades intersetoriais é reconhecida pelas ESF como problema. Foi elevado o percentual
de médicos (>65%) nas quatro cidades que avaliam insatisfatória a capacidade de mediação de ações intersetoriais
para enfrentar problemas da comunidade.
Discussão: SF - uma estratégia de atenção primária integral?
No cotejamento dos resultados, há que se considerar o desenho do estudo orientado à análise de uma intervenção
em saúde pública complexa que, ao buscar avaliar as potencialidades da SF como estratégia de APS integral,
selecionou experiências consolidadas e exitosas na avaliação de gestores federais, limitando a generalização dos
resultados. Destaca-se a heterogeneidade de modelos de atenção básica implementados nos municípios
brasileiros8. A discussão dos resultados permite, entretanto, identificar potencialidades e limites dessa intervenção.
A análise da integração da rede e da intersetorialidade em experiências consolidadas da SF evidencia a
complexidade de promover mudanças do modelo assistencial e a permanência desses desafios na fase de
consolidação e indica descompassos no alcance desses dois objetivos pela gestão municipal.
Superar os efeitos da fragmentação que persistem na rede de serviços de saúde do SUS e potencializar a APS como
porta de entrada preferencial e centro ordenador e integrador das redes de serviços e das ações de promoção,
prevenção e recuperação da saúde é um dos principais desafios segundo os gestores municipais.
São distintos os mecanismos de implementação e os resultados alcançados na experiência de cada município, mas
os quatro casos apontam à construção de estratégias para superar o histórico insulamento das ações de atenção
básica. Nos municípios estudados, os esforços para integrar a Estratégia SF à rede de serviços foram avaliados
positivamente pelos gestores e reconhecidos pelos profissionais e famílias.
Uma rede integrada pressupõe uma porta de entrada preferencial que organize o acesso21. Nas quatro estudadas,
é a partir dos serviços de atenção básica com SF que se estrutura o atendimento e o acesso aos serviços
especializados com efetivação de uma porta de entrada preferencial em serviços de APS resolutivos (via lista
ampliada de medicamentos e maior acesso a exames complementares). Os resultados são coerentes com outros
estudos que identificaram um bom desempenho da SF com elevado escore para a porta de entrada22,23. A existência
de um serviço de primeiro contato, procurado regularmente a cada vez que o paciente necessita de atenção em
caso de doença ou acompanhamento rotineiro, facilita a formação de vínculos e a coordenação dos cuidados3.
O reconhecimento de que nenhuma instância isolada dos sistemas de saúde possui a totalidade dos recursos e
competências necessárias para resolver as necessidades de saúde de uma população implica a constituição de redes
integradas, que reconhecem a interdependência e, muitas vezes, os conflitos entre atores sociais e organizações
distintas em situações de poder compartilhado21.
Entre as iniciativas mais exitosas de integração da rede, destacam-se investimentos em tecnologias de informação
e comunicação, com a implantação de sistemas informatizados de regulação e prontuários eletrônicos. A criação de
serviços especializados próprios municipais representa esforço empreendido pelos gestores locais para garantia de
atenção secundária. A constituição de fóruns integrados de discussão entre a atenção básica e especializada, a
telemedicina e o apoio matricial também são estratégias com potencialidades para superar a distância entre
gerentes e profissionais dos dois níveis assistenciais e a fragmentação da rede.
Os quatro municípios apresentam em comum a decisão política do gestor municipal em implantar a Estratégia SF
para fortalecer a atenção básica no sistema de saúde municipal, fator imprescindível à expansão da SF. Mas, além
da vontade política, as experiências dos municípios apontam que a implementação da SF como centro ordenador e
integrador da rede de serviços de saúde é facilitada pelo legado institucional.
Belo Horizonte e Aracaju foram habilitadas pelas normas nacionais de operacionalização do SUS, como gestores
plenos do sistema de saúde, por um lado, exigindo a gestão municipal do sistema nos diferentes níveis de
complexidade e, por outro lado, permitindo-lhes maior autonomia na condução de processos articuladores da rede
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de serviços de saúde. Florianópolis e Vitória apenas em 2007, com o Pacto de Gestão, assumiram compromissos de
gestão da atenção especializada. Apresentam maiores dificuldades, identificadas pelos gestores, para a organização
da rede devido à baixa governabilidade sobre os serviços especializados do SUS em seu território.
A garantia de acesso à atenção especializada enfrenta uma série de dificuldades na implementação. Destaca-se,
contudo, o avanço na regulação das referências e no monitoramento das filas de espera com a implantação de
ferramentas informatizadas de regulação. Estudo de 2002 mostrava que os gestores já reconheciam o gargalo da
atenção especializada; todavia, não lhes era possível mensurar as filas de espera, muito menos regulá-las24.
Entre os obstáculos à constituição de rede, destaca-se a insuficiente oferta de atenção especializada, agravada pela
baixa integração com prestadores estaduais, ainda responsáveis em alguns municípios por grande parte dos serviços
de média complexidade. Maior interação pessoal entre generalistas e especialistas foi outro desafio destacado para
maior integração dos processos de trabalho, superando relações hierárquicas e o isolamento entre atenção básica
e especializada.
Não menos importante foi o discurso recorrente dos gestores municipais em relação à ausência de políticas federais
para a atenção especializada. A construção de redes integradas passa necessariamente por maior investimento em
serviços de média complexidade, nível assistencial considerado pelos entrevistados "o grande gargalo do SUS". É
imperativo avançar nas promessas de integralidade por meio da necessária desmercantilização dos níveis de
atenção mais complexos ou, no mínimo, de certo equilíbrio nas relações entre mercado e esfera pública na provisão
dessas ações à população.
No que concerne às iniciativas intersetoriais, as experiências são mais diversificadas. A atuação intersetorial é mais
abrangente quando responde a uma política municipal e a uma modalidade integrada de atuação governamental
diferente de projetos específicos ou emergenciais. A intersetorialidade é um processo dinâmico e complexo,
esbarrando sempre na tradição setorial, competitiva e hierarquicamente verticalizada que marca as organizações e
serviços públicos no país25.
Ainda que se reconheça que os esforços das práticas intersetoriais das ESF sofrem limitações, devido a uma posição
hierarquicamente inferior, atuando no nível local, estando na dependência da condução dos problemas por níveis
superiores26 e que o papel das ESF de mediadoras de ações intersetoriais está condicionado da ação articuladora
do governo municipal27, os resultados indicam que esta não é uma prática disseminada. Menos de um terço à
metade dos profissionais desenvolvem ações voltadas para solução de problemas da comunidade. Os resultados
pífios apontados pelas famílias para ação comunitária das ESF são coerentes com resultados de outros estudos que
mostram baixo escore para a "orientação comunitária" por usuários da SF22,23, ainda que melhores do que àqueles
das UBS tradicionais22.
Alguns gestores apontam a necessidade de reconhecer os limites de atuação das ESF uma vez que a articulação
intersetorial deve ser uma estratégia estruturante da ação do executivo municipal. Todavia, este não deveria ser
impeditivo ao empreendimento de ações comunitárias pelas ESF. Além da insuficiência de formação adequada dos
profissionais, a constatação de descompasso entre os avanços da integração e a incipiência da ação intersetorial
em parte dos casos estudados impõem perguntar sobre um possível antagonismo. Nos grandes centros urbanos, os
esforços necessários à garantia de acesso à atenção à saúde de qualidade e oportuna com organização de um
sistema municipal complexo esgotariam as possibilidades de investir na articulação intersetorial como iniciativa da
SMS?
A resposta requer investigação específica; contudo, pode-se apontar que os espaços de governabilidade do setor
saúde na intervenção sobre os determinantes sociais não estão predeterminados. A extensão na qual o setor saúde
toma a iniciativa e lidera a intervenção intersetorial depende do tipo de problema a enfrentar e deve ser flexível17.
Nas experiências pesquisadas, distintos cenários se apresentaram com diferentes ênfases conferidas pelos gestores
conforme os temas de intervenção. Ainda que com limites, o aumento das interfaces entre a saúde e os outros
setores para a construção da cidadania com o avanço das abordagens intersetoriais nas políticas de governo
municipais expresso na criação de câmaras para a gestão da política local e nas experiências de orçamento
participativo ampliaram a visão sobre os determinantes sociais da saúde.
Os obstáculos a superar para garantia de atenção integral são diversos - financeiros, oferta insuficiente e formação
inadequada de recursos humanos28,29. Todavia, os estudos realizados indicam as potencialidades da SF ser
implementada em uma perspectiva de APS abrangente, condicionada por adaptações locais do modelo com
ampliação dos recursos assistenciais e profissionais na UBS. Por sua vez, a atuação intersetorial para se efetivar
incorre em iniciativas mais gerais do Executivo municipal que respaldem as ações locais das ESF. As principais
iniciativas intersetoriais identificadas transcenderam a Saúde, eram lideradas por outros setores e correspondiam
a uma política desenvolvimento social municipal integrada.
Tomados como parâmetros para análise da implementação de uma APS abrangente, integração e intersetorialidade
são desafios, nem sempre convergentes, que persistem na fase de consolidação da Estratégia SF.
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 2: Iniquidades em Saúde no Brasil: Nossa Mais Grave Doença
Documento apresentado no lançamento da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde do Brasil —
Março 2006
INTRODUÇÃO As iniqüidades em saúde entre grupos e indivíduos, ou seja, as desigualdades de saúde que além de
sistemáticas e relevantes são também evitáveis, injustas e desnecessárias, segundo a definição de Margareth
Whitehead [da OMS], são um dos traços mais marcantes da situação de saúde do Brasil. A mortalidade infantil, cuja
média nacional em 2004 foi de 23,1 por mil nascidos vivos (NV), segundo dados do Ministério da Saúde, apresenta
grandes disparidades regionais, observando-se taxas inferiores a 10 por mil NV, em alguns municípios do Sul e
Sudeste e valores maiores do que 50 por mil NV, em áreas do Nordeste.
Segundo o relatório da Unicef de junho de 2003 sobre equidade na infância e adolescência no Brasil, a taxa de
mortalidade em menores de 5 anos (TMM5) em 1999 era de 57,4 por mil nascidos vivos, variando de 81,6 para o
quintil de renda mais baixo a 29,8 para o mais alto. De acordo com a escolaridade da mãe, a TMM5 variava de 93
para mães com menos de 4 anos de estudo a 30,4 para aquelas com mais de 8 anos de estudo. Os filhos de mulheres
brasileiras com até um ano de escolaridade têm uma probabilidade 23 vezes maior de chegarem analfabetos à
adolescência se comparados aos filhos de mulheres com 11 anos ou mais de estudo.
Há muito se reconhece que os principais determinantes dessas iniqüidades estão relacionados às formas como se
organiza a vida social. Já em meados do século 19 Virchow entendia que a “ciência médica é intrínseca e
essencialmente uma ciência social”, que as condições econômicas e sociais exercem um efeito importante sobre a
saúde e a doença e que tais relações devem submeter-se à pesquisa científica. Entendia também que o próprio
termo “saúde pública” expressa seu caráter político e que sua prática deve conduzir necessariamente à intervenção
na vida política e social para indicar e eliminar os obstáculos que dificultam a saúde da população.
Desde então muito se avançou na construção de modelos explicativos que analisam as relações entre a forma como
se organiza e se desenvolve uma determinada sociedade e a situação de saúde de sua população. Um dos principais
desafios destes modelos explicativos é o estabelecimento de uma hierarquia de determinações entre os fatores
mais globais de natureza social, econômica, política e as mediações através das quais estes fatores incidem sobre a
situação de saúde de grupos e pessoas. É este complexo de mediações que permite entender por que não há uma
correlação constante entre os macroindicadores da riqueza de uma sociedade, como o PIB, com os indicadores de
saúde. Evidentemente o volume de riqueza gerado por uma sociedade é elemento fundamental para proporcionar
melhores condições de vida e de saúde, mas há inúmeros exemplos de países com PIB total ou per capita bem
superior a outros que, apesar disso, detêm indicadores de saúde muito mais satisfatórios.
Nos últimos anos, aumentaram também em quantidade e qualidade os estudos sobre as relações entre a saúde das
populações, as desigualdades nas condições de vida e o grau de desenvolvimento da trama de vínculos e associações
entre indivíduos e grupos. Estes estudos permitem constatar que uma vez superado um determinado limite de
crescimento econômico de um país, um crescimento adicional da riqueza não se traduz em melhorias significativas
das condições de saúde. A partir desse nível, o fator mais importante para explicar a situação geral de saúde de um
país não é sua riqueza total, mas a maneira como ela se distribui.
Em outras palavras, a desigualdade na distribuição de renda não é prejudicial à saúde somente dos grupos mais
pobres, mas é também prejudicial à saúde da sociedade em seu conjunto. Grupos de renda média num país com
alto grau de iniqüidade de renda têm situação de saúde pior que a de grupos com renda inferior, mas que vivem
numa sociedade mais eqüitativa. Um estudo comparativo nos Estados Unidos da América revelou que os indivíduos
que vivem em estados com grandes diferenças de renda têm pior saúde que a daqueles com ingressos equivalentes,
mas que vivem em estados mais igualitários. O Japão não é o país com maior expectativa de vida do mundo apenas
por ser o país mais rico ou porque os japoneses fumam menos ou fazem mais exercício, mas porque é um dos países
mais igualitários do mundo.
Estudos vêm demonstrando que o principal mecanismo pelo qual as iniqüidades de renda produzem um impacto
negativo na situação de saúde é o desgaste do chamado capital social, ou seja, das relações de solidariedade e
confiança entre pessoas e grupos. Segundo vários autores, o desgaste do capital social em sociedades ineqüitativas
explicaria em grande medida por que sua situação de saúde é inferior à de sociedades em que as relações de
solidariedade são mais desenvolvidas. A debilidade dos laços de coesão social ocasionada pelas iniqüidades de
renda corresponde a baixos níveis de capital social e de participação política. Países com grandes iniqüidades de
renda, escassos níveis de coesão social e baixa participação política são os que menos investem em capital humano
e em redes de apoio social que são fundamentais para a promoção e a proteção da saúde individual e coletiva.
No caso do Brasil, o fardo é duplo pois, além de apresentar graves iniqüidades na distribuição da riqueza, há grandes
setores de sua população vivendo em condições de pobreza que não lhes permite acesso a mínimas condições e
bens essenciais à saúde. Além da renda dos 20% mais ricos ser 26 vezes maior que a renda dos 20% mais pobres,
24% da população economicamente ativa têm rendimentos menores que 2 dólares por dia. O tema da pobreza
também vem chamando a atenção de muitos autores, o que vem gerando uma mudança na maneira como a
entendemos e nas formas para combatê-la. Para estes autores, a pobreza não é somente a falta de acesso a bens
materiais, mas é também a falta de oportunidades e de possibilidades de opção entre diferentes alternativas.
Pobreza é também a falta de voz frente às instituições do Estado e da sociedade e uma grande vulnerabilidade
frente a imprevistos. Nesta situação, a capacidade dos pobres de atuar em favor de sua saúde e da coletividade está
bastante diminuída.
Para ser coerente com esta nova maneira de entender a pobreza, as estratégias para combatê-la devem incluir
tanto a geração de oportunidades econômicas como medidas que favoreçam a construção de redes de apoio e o
aumento das capacidades desses grupos para melhor conhecer os problemas locais e globais, para estreitar suas
relações com outros grupos, para fortalecer sua organização e participação em ações coletivas, para constituir-se
enfim em atores sociais e ativos participantes das decisões da vida social.
Infelizmente, estes e outros importantes avanços no conhecimento dos determinantes sociais das condições de
saúde e em particular das iniqüidades de saúde, encontrados na literatura científica brasileira e internacional, não
são acompanhados de um correspondente avanço na utilização desse conhecimento para a definição de políticas
de saúde no país.
Isto se deve em grande medida à debilidade das relações entre o processo de produção do conhecimento e o
processo de tomada de decisão sobre políticas e programas de saúde, o qual deveria basear-se em conhecimentos
e evidências. Ambos os processos costumam desenvolver-se por separado, com lógicas, agentes e espaços
institucionais específicos. Por outro lado, a aproximação entre pesquisa em saúde e políticas de saúde com vistas à
promoção da eqüidade não significa a despolitização das decisões sobre políticas em nome de uma racionalidade
centralizadora baseada em evidência científica.
Em geral não há prescrições categóricas de políticas baseadas em resultados objetivos de pesquisas, mas um leque
de opções que a ciência ajuda a delimitar. A seleção entre estas opções se faz num processo que é essencialmente
político, envolvendo diversos atores, com interesses diferenciados e eventualmente contraditórios. Para que haja
uma maior utilização de resultados de investigação para a definição de políticas é necessário instrumentar a atuação
desses diferentes atores, particularmente dos que usualmente estão excluídos do processo de decisão, buscando
diminuir as enormes iniqüidades de acesso a informações e conhecimentos.
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CADERNO DE TEXTOS
Não há, portanto, nenhuma contradição entre, por um lado, a promoção de políticas baseadas em evidência e, por
outro, a ampliação da participação social em sua definição. Na realidade, para que as políticas de saúde se
consolidem como políticas públicas voltadas a atender ao interesse público e à promoção da eqüidade é necessário
o fortalecimento do processo democrático de definição destas políticas, multiplicando-se os atores envolvidos, os
espaços e oportunidades de interação entre eles e instrumentando sua participação com o acesso eqüitativo a
informações e conhecimentos pertinentes.
A COMISSÃO NACIONAL SOBRE DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE
Preocupado com as iniqüidades que se verificam nas condições de saúde da população e no acesso aos serviços de
saúde e a outros serviços públicos que influenciam na situação de saúde, o governo brasileiro decidiu criar a
Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), no bojo de um movimento mundial em torno
deste tema, proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Na Assembléia Mundial da Saúde de 2004, o diretor-geral da OMS, Lee Jong-Wook, propôs a criação de uma
comissão para recomendar políticas públicas de saúde e externas ao setor saúde, assim como intervenções que
visem à melhoria das condições de saúde e à diminuição das iniqüidades. A Comissão de Determinantes Sociais da
Saúde (CDSS-OMS) foi criada em março de 2005 e terá três anos de existência.
A CDSS-OMS é um fórum estratégico mundial formado por lideranças políticas, científicas e da sociedade civil
organizada. A comissão tem como meta global a busca de eqüidade em saúde e lidera um processo mundial de
organização do conhecimento sobre os determinantes sociais da saúde com vistas a fortalecer as práticas e as
políticas voltadas para a diminuição das iniqüidades em saúde.
Entre os objetivos da CDSS-OMS, merecem destaque:
• sistematização de evidências sobre experiências e formulação de políticas que enfocam os determinantes sociais
em saúde;
• o fomento do debate com a sociedade, para a implantação de ações de
• enfrentamento dos determinantes sociais em saúde;
importantes iniqüidades de saúde, como o desemprego, a falta de acesso a moradia digna, ao sistema de
saneamento básico, a serviços de saúde e de educação de qualidade e a um meio ambiente protegido.
O monitoramento dessas iniqüidades e o estudo sistemático e aprofundado de seus determinantes deverão
permitir identificar pontos mais vulneráveis ao impacto de políticas públicas que buscam combatê-las. Para que
essas políticas sejam mais efetivas é necessário, portanto, por um lado, aumentar os conhecimentos sobre
determinantes sociais da saúde, suas hierarquias e mediações e, por outro lado, facilitar a incorporação desses
conhecimentos na definição e implantação das políticas. São estes os mais importantes desafios que a CNDSS se
propõe a enfrentar, com vistas a colaborar na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e humana.
Serão suas principais linhas de atuação:
• Estimular a melhoria da qualidade e completude das informações sociodemográficas nos sistemas de informação
oficiais da saúde, de forma a permitir o monitoramento das desigualdades sociais em saúde;
• Introduzir a temática dos determinantes sociais da saúde e das conseqüências das desigualdades na formação dos
profissionais de saúde;
• Fomentar e mobilizar os profissionais e gestores de saúde em prol de políticas públicas focadas explicitamente na
busca da eqüidade em saúde;
• Mobilizar a sociedade civil para a defesa do princípio da eqüidade na execução das políticas públicas pertinentes;
• Criar instrumentos que possibilitem a circulação, na sociedade, dos conhecimentos e direitos relativos aos
determinantes sociais da saúde;
• Criar fóruns intersetoriais para o debate do tema e estabelecimento de compromissos pactuados de
enfrentamento do problema, incluindo a discussão de modelos de políticas de curto, médio e longo prazo;
• Estimular a produção de conhecimentos sobre os determinantes sociais em saúde através de linhas específicas de
financiamento à pesquisa e de apoio à formação de investigadores;
• Incluir metas para redução das desigualdades sociais em saúde, de maneira explícita, nas políticas sociais;
• a definição de compromissos de médio e longo prazo com vistas a incorporar as desigualdades em saúde como
tema central da agenda da OMS.
Em julho de 2005, a Organização Pan-Americana da Saúde reuniu, em Washington, os países da região das Américas
e apresentou a proposta da CDSS-OMS, despertando o interesse sobre a temática. Após essa reunião, a Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde lideraram o processo
para a definição de uma agenda de atividades no Brasil, buscando respostas sociais organizadas para o
enfrentamento dos determinantes sociais da saúde no país.
Em março de 2006, ao completar tão somente um ano da criação da comissão mundial, apressa-se o Brasil a
participar desta iniciativa, com o lançamento da CNDSS brasileira.
A CNDSS é fruto de um processo de construção da Reforma Sanitária que já dura pelo menos quatro décadas e que
teve como um de seus pontos culminantes haver logrado que a Constituição Federal do Brasil, aprovada em 1988,
incorporasse o artigo 196, determinando que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Apesar deste e de outros avanços alcançados nas últimas décadas, constatados pela melhoria de alguns índices de
desenvolvimento social e pela criação de um Sistema Único de Saúde baseado nos princípios de solidariedade e
universalidade da assistência, grandes parcelas da população brasileira ainda sofrem de problemas geradores de
• Articular-se com outras iniciativas de políticas públicas de redução da pobreza e de riscos à saúde, a exemplo de
Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Fome Zero, Conselho Nacional de Segurança Alimentar
e outros;
• Promover a defesa e a indução de ações para o enfrentamento das desigualdades sociais em saúde no Brasil nas
três esferas de governo nos âmbitos Executivo e Legislativo;
• Garantir a inclusão e a execução, refletidas nos orçamentos públicos das três esferas de governo, de ações
dirigidas à redução das iniqüidades em saúde.
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 3: Declaração de Alma-Ata
CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE
Alma-Ata, URSS, 6-12 de setembro de 1978
A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida em Alma-Ata aos doze dias do mês de
setembro de mil novecentos e setenta e oito, expressando a necessidade de ação urgente de todos os governos, de
todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a
saúde de todos os povos do mundo, formulou a seguinte declaração:
I) A Conferência enfatiza que a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não simplesmente
a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível
possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores
sociais e econômicos, além do setor saúde.
II) A chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos
e em desenvolvimento, assim como dentro dos países, é política, social e economicamente inaceitável e constitui,
por isso, objeto da preocupação comum de todos os países.
III) O desenvolvimento econômico e social baseado numa ordem econômica internacional é de importância
fundamental para a mais plena realização da meta de Saúde para Todos no Ano 2000 e para a redução da lacuna
existente entre o estado de saúde dos países em desenvolvimento e o dos desenvolvidos. A promoção e proteção
da saúde dos povos é essencial para o contínuo desenvolvimento econômico e social e contribui para a melhor
qualidade de vida e para a paz mundial.
IV) É direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus
cuidados de saúde.
V) Os governos têm pela saúde de seus povos uma responsabilidade que só pode ser realizada mediante adequadas
medidas sanitárias e sociais. Uma das principais metas sociais dos governos, das organizações internacionais e de
toda a comunidade mundial na próxima década deve ser a de que todos os povos do mundo, até o ano 2000, atinjam
um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva. Os cuidados primários de
saúde constituem a chave para que essa meta seja atingida, como parte do desenvolvimento, no espírito da justiça
social.
VI) Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas,
cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e
famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter
em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte integrante tanto
do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento
social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da
comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente
possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado
processo de assistência à saúde.
VII) Os cuidados primários de saúde:
1 - Refletem, e a partir delas evoluem, as condições econômicas e as características socioculturais e políticas do país
e de suas comunidades, e se baseiam na aplicação dos resultados relevantes da pesquisa social, biomédica e de
serviços de saúde e da experiência em saúde pública.
2 - Têm em vista os principais problemas de saúde da comunidade, proporcionando serviços de proteção, cura e
reabilitação, conforme as necessidades.
3 - Incluem pelo menos: educação, no tocante a problemas prevalecentes de saúde e aos métodos para sua
prevenção e controle, promoção da distribuição de alimentos e da nutrição apropriada, previsão adequada de água
de boa qualidade e saneamento básico, cuidados de saúde materno-infantil, inclusive planejamento familiar,
imunização contra as principais doenças infecciosas, prevenção e controle de doenças localmente endêmicas,
tratamento apropriado de doenças e lesões comuns e fornecimento de medicamentos essenciais.
4 - Envolvem, além do setor saúde, todos os setores e aspectos correlatos do desenvolvimento nacional e
comunitário, mormente a agricultura, a pecuária, a produção de alimentos, a indústria, a educação, a habitação, as
obras públicas, as comunicações e outros setores.
5 - Requerem e promovem a máxima autoconfiança e participação comunitária e individual no planejamento,
organização, operação e controle dos cuidados primários de saúde, fazendo o mais pleno uso possível de recursos
disponíveis, locais, nacionais e outros, e para esse fim desenvolvem, através da educação apropriada, a capacidade
de participação das comunidades.
6 - Devem ser apoiados por sistemas de referência integrados, funcionais e mutuamente amparados, levando à
progressiva melhoria dos cuidados gerais de saúde para todos e dando prioridade aos que têm mais necessidade.
7 - Baseiam-se, nos níveis locais e de encaminhamento, nos que trabalham no campo da saúde, inclusive médicos,
enfermeiros, parteiras, auxiliares e agentes comunitários, conforme seja aplicável, assim como em praticantes
tradicionais, conforme seja necessário, convenientemente treinados para trabalhar, social e tecnicamente, ao lado
da equipe de saúde e responder às necessidades expressas de saúde da comunidade.
VIII) Todos os governos devem formular políticas, estratégias e planos nacionais de ação para lançar/sustentar os
cuidados primários de saúde em coordenação com outros setores. Para esse fim, será necessário agir com vontade
política, mobilizar os recursos do país e utilizar racionalmente os recursos externos disponíveis.
IX) Todos os países devem cooperar, num espírito de comunidade e serviço, para assegurar os cuidados primários
de saúde a todos os povos, uma vez que a consecução da saúde do povo de qualquer país interessa e beneficia
diretamente todos os outros países. Nesse contexto, o relatório conjunto da OMS/UNICEF sobre cuidados primários
de saúde constitui sólida base para o aprimoramento adicional e a operação dos cuidados primários de saúde em
todo o mundo.
X) Poder-se-á atingir nível aceitável de saúde para todos os povos do mundo até o ano 2000 mediante o melhor e
mais completo uso dos recursos mundiais, dos quais uma parte considerável é atualmente gasta em armamento e
conflitos militares. Uma política legítima de independência, paz, distensão e desarmamento pode e deve liberar
recursos adicionais, que podem ser destinados a fins pacíficos e, em particular, à aceleração do desenvolvimento
social e econômico, do qual os cuidados primários de saúde, como parte essencial, devem receber sua parcela
apropriada.
A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde concita à ação internacional e nacional urgente e
eficaz, para que os cuidados primários de saúde sejam desenvolvidos e aplicados em todo o mundo e,
particularmente, nos países em desenvolvimento, num espírito de cooperação técnica e em consonância com a
nova ordem econômica internacional. Exorta os governos, a OMS e o UNICEF, assim como outras organizações
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CADERNO DE TEXTOS
internacionais, entidades multilaterais e bilaterais, organizações governamentais, agências financeiras, todos os
que trabalham no campo da saúde e toda a comunidade mundial a apoiar um compromisso nacional e internacional
para com os cuidados primários de saúde e a canalizar maior volume de apoio técnico e financeiro para esse fim,
particularmente nos países em desenvolvimento. A Conferência concita todos a colaborar para que os cuidados
primários de saúde sejam introduzidos, desenvolvidos e mantidos, de acordo com a letra e espírito desta
Declaração.
TEXTO 4: Humanização: Um Breve Ensaio Sobre sua Trajetória Política na Saúde
Como política pública, a humanização via PNH1, foi pensada como possibilidade de enfrentamento e superação dos
desafios enunciados pela sociedade brasileira quanto à qualidade e à dignidade no cuidado em saúde, bem como
para redesenhar e articular iniciativas de humanização do SUS e enfrentar problemas no campo da gestão e da
organização do trabalho em saúde, é o que afirma Pasche et all (2011). Deduz-se então que a Humanização é um
movimento eminentemente político que denuncia e objetiva abarcar as necessidades dos atores envolvidos na
produção de saúde, quais sejam usuários, trabalhadores e gestores.
O SUS foi gestado em um período em que havia muitas proposituras de mudanças, do desejo de se fazer diferente
do que se vinha fazendo. Era o tempo da busca pela mudança e a humanização procura resgatar e promover a
manutenção dos princípios que nortearam a militância pelo SUS, bem como a densidade do que tal movimento
conseguiu expressar na concepção complexa do sistema de saúde. Este reencantamento, como uma ação coletiva,
requer uma alteração na comunicação, segundo Heckert (2009) et all. A resposta por esta alteração foi a
humanização da saúde.
Desde o início o processo de construção do SUS já apontava para necessidade da humanização na concepção e
operacionalização das políticas públicas de saúde em vários contextos, geralmente ligados à busca de melhoria na
qualidade da assistência à saúde do usuário e também ao reconhecimento iminente dos trabalhadores da saúde
(PAIM, 2009). No que tange ao usuário, a reivindicação era por mais acolhida, resolutividade e disponibilização de
serviços. Já pelo lado dos trabalhadores são postuladas melhores condições de trabalho e qualificação na formação
no intento de atender de maneira eficiente as demandas complexas que o processo saúde-doença os impõe.
Somando-se a isso a necessidade do alcance dos objetivos de uma assistência efetiva o bastante para cumprir com
os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade assumidos pelo SUS.
Anteriores à PNH existiam ações que eram desenvolvidas no campo da saúde pública buscando induzir práticas com
orientações humanizadoras, como o Programa de Atenção ao Parto e Pré-Natal e o Programa Nacional de
Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). Todavia, eram programas com pouca articulação, produzindo um
fazer fragmentado. Atribui-se a estas ações um caráter acrítico no que diz respeito aos modelos vigentes de atenção
e de gestão.
A partir da flagrante fragilidade das ações precursoras que o Ministério da Saúde ousou inaugurar a PNH,
enfatizando que a humanização “deve ser vista como política que transversaliza todo sistema: das rotinas nos
serviços às instâncias e estratégias de gestão, criando operações capazes de fomentar trocas solidárias, em redes
multiprofissionais e interdisciplinares” (BRASIL, 2008), o que implica a inclusão dos gestores, profissionais e usuários
na promoção de processos humanizados na produção de saúde, o que requer uma indissociabilidade entre os
modos de gerir e de cuidar.
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CADERNO DE TEXTOS
Neste aspecto os princípios da Humanização buscam fomentar autonomia e protagonismo de trabalhadores,
desdobrada, aberta, para que seus fios possam se estender e amparar, sob pena de cair em desuso se estiver
usuários e gestores, aumentando o grau de co-responsabilidade na produção de saúde, estabelecendo vínculos
dobrada.
solidários, participação coletiva na gestão, a transversalidade e a indissociabilidade entre atenção e gestão. Busca,
Dessa forma, também os serviços de saúde o são. Se estiverem dobrados com olhares localizados, atendimentos
enfim, transformar os modelos de atenção e de gestão dos processos de trabalho em saúde e compromisso com a
pontuais, várias possibilidades de atendimento são eliminadas e os serviços bloqueados como redes dobradas, pois
melhoria das condições de trabalho e atendimento. Entende-se por princípios aquilo que causa ou força a ação, ou
não é suficiente que se pense restritivamente em questões administrativas e burocráticas do direito de acesso a
que dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas (BRASIL, 2008).
serviços de saúde. Não que não sejam esses fatores relevantes, pois de fato o são, mas é preciso localizar no
Dessa forma, reafirma estes princípios e propõe outras reflexões do humano a partir do que é vivido nos serviços
universo institucional os agentes que irão colaborar para a construção conjunta de tais projetos, ou seja, o elemento
por todos que o produzem cotidianamente (usuários, trabalhadores e gestores da saúde). Sendo o princípio o que
humano deve ser valorizado em sua essência em detrimento do fazer verticalizado e pontual.
causa, força ou dispara algo, a transversalidade na PNH amplia a comunicação intra e inter grupos, transformando
Atualmente, vem crescendo o interesse pela humanização na área da saúde e cada vez mais recrudesce movimentos
os modos de se relacionar esse comunicar entre os sujeitos.
de Secretarias de Saúde para implantar a Política Nacional de Humanização. Entretanto, não basta implantar a
Sendo assim, transversalidade como princípio, compreende que a gestão e a atenção se articulam entre si,
PNH nos serviços de saúde, mas avaliar como as práticas têm se efetivado no concreto das experiências dos
diferenciando-se dos modelos verticais e hierarquizados ainda existentes em muitas realidades, buscando desfazer
trabalhadores e como tais práticas alteram os modelos de gestão.
as hierarquias, criar e fortalecer redes. Entendendo-se rede como apoio e sustentação das ações e políticas. Pois
A gestão precisa corrigir rumos e, possivelmente, experimentar outros dispositivos quando os que foram pensados
essa humanização encontra-se na contracorrente das concepções humanistas apoiadoras de determinadas visões
não estão resultando em novos modos de trabalhar. Embora as falas demonstrem alguma dormência em relação à
de homem, ancoradas na religião, nas ciências e na política permanentemente ligadas a juízos de valor
humanização, trata-se de um conceito e de uma prática extremamente importantes, que precisa ser tomada como
conservadores da realidade posta (FOUCAULT, 2008).
aspecto inerente à constituição de uma política pública de saúde de qualidade e ligada à garantia da saúde enquanto
Nesse processo de construção de um paradigma é proposto um método, entendendo-se método como um modo
direito social e fortalecimento da democracia e da cidadania.
de caminhar que esteja em concordância com esses princípios estabelecidos. Tal método, o método da Tríplice
Afinal, o que se espera, na prática, da humanização? Partindo dos dispositivos que são os modos de fazer, pode-se
Inclusão, propõe a inclusão de todos os sujeitos nos processos de produção de saúde e alteração nos modos de
enumerá-los como Acolhimento com classificação de risco; Equipes de Referência e de Apoio Matricial; Projeto
gestão dos serviços, de maneira a aumentar o grau de comunicação, afirmar a inseparabilidade entre atenção e
Terapêutico Singular e Projeto de Saúde Coletiva; Projetos de Construção Coletiva da Ambiência; Colegiados de
gestão e a corresponsabilização dos autores e atores desse processo, gestores, usuários e trabalhadores (os três
Gestão; Contratos de Gestão; Sistemas de Escuta qualificada para usuários e trabalhadores da saúde, ouvidorias,
componentes da aliança) como um caminho que está em construção atualmente (BRASIL, 2008).
grupos focais e pesquisas de satisfação; Visita Aberta, Direito de Acompanhante e envolvimento no Projeto
A PNH tem diretrizes que orientam suas ações e dispositivos que atualizam essas diretrizes por meio de ações,
Terapêutico; Programa de Formação em Saúde e Trabalho e Comunidade Ampliada de Pesquisa; Programas de
arranjos, tecnologias que disparam movimentos de mudança, o que demonstra o aspecto dinâmico da
Qualidade de Vida e Saúde para os Trabalhadores da Saúde e Grupo de Trabalho de Humanização. É necessário
implementação da PNH. Ou seja, em muitos momentos o aprender na implementação da PNH se dá no fazer. É
operacionalizar estes dispositivos.
importante que se atente para que os dispositivos sejam realmente utilizados, como tecnologias afirmadoras dos
princípios da humanização e, dessa forma, utilizados de acordo com as demandas específicas, considerando-se
Notas:
as particularidades e diferenças dos serviços e seus trabalhadores.
1 Para se entender o significado real e concreto da humanização enquanto política nacional faz-se importante que
Pensar a PNH a partir do seu sistema de dispositivos leva a perceber a necessidade do tema nas redes de produção
se tenha conhecimento de seu conteúdo. A PNH se estrutura a partir de Princípios, Método, Diretrizes e
de saúde como um ponto de concatenação, que atualmente tem se configurado como o principal objetivo das ações
Dispositivos. Este estudo não visa uma caracterização ou descrição da PNH em si, mas busca conhecer os sentidos
da PNH (BRASIL, 2009). Acionar cotidianamente nos serviços de saúde o exercício da co-gestão, da comunicação
da humanização, porém, esta se encontra balizada pela PNH. Para maior entendimento da estrutura da PNH,
intra e intergrupos, ampliando o conceito de saúde como algo que não é apenas ausência de doença, implica em
sugere-se a leitura das diversas cartilhas disponíveis no site www.redehumanizasus.net e no site do Ministério da
promover e ampliar as redes de conversa, redes de produção de saúde, que, com seus fios entrelaçados, deve estar
Saúde.
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 5: As Redes de Atenção à Saúde
Referências:
A situação de saúde no Brasil
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Documento base para Gestores e Trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Editora
MS, 2008.
______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Documento base para Gestores e Trabalhadores do SUS. 4. ed.
Brasília: Editora MS, 2008.
______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Redes de Produção de Saúde. Brasília: Editora MS, 2009.
______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Redes de Produção de Saúde. Brasília: Editora MS, 2009.
FOUCAULT, M. Arqueologia das ciências e historia dos sistemas de pensamento. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
HECKERT, A. L. C.; PASSOS, E.; BARROS, M. E. B. Um seminário dispositivo: a humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) em debate. Interface – Comunicação, saúde, Educação, v.
13, supl. 1, p. 493-502, 2009.
PAIM, J. S., O que é o SUS? Rio de janeiro, FIOCRUZ, 2009.
PASCHE, Dário Frederico. PASSOS, Eduardo. HENNINGTON, Élida Azevedo. Cinco anos da Política Nacional de Humanização: trajetória de uma política pública – Rev. Ciência e Saúde
Coletiva, 16(11): 4541-4548 – 2011, Brasília – DF.
Os sistemas de atenção à saúde são respostas sociais deliberadas às necessidades de saúde da população. Assim,
ao se discutir uma proposta de organização do Sistema Único de Saúde (SUS), deve-se começar por analisar que
necessidades de saúde se expressam na população brasileira. A situação de saúde dos brasileiros é analisada nos
seus aspectos demográficos e epidemiológicos.
Do ponto de vista demográfico, o Brasil vive uma transição demográfica acelerada. A população brasileira, apesar
de baixas taxas de fecundidade, vai continuar crescendo nas próximas décadas, como resultado dos padrões de
fecundidade anteriores. O percentual de pessoas idosas maiores de 65 anos, que era de 2,7% em 1960, passou para
5,4% em 2000 e alcançará 19% em 2050, superando o número de jovens1.
Uma população em processo rápido de envelhecimento significa um crescente incremento relativo das condições
crônicas por que essas condições de saúde afetam mais os segmentos de maior idade. Os dados da Pesquisa
Nacional de Amostra Domiciliar do IBGE de 2008 mostram que 79,1% dos brasileiros de mais de 65 anos de idade
relataram ser portadores de, pelo menos, uma das doze doenças crônicas selecionadas2.
Por outro lado, na perspectiva epidemiológica, o país vivencia uma forma de transição singular, diferente da
transição clássica dos países desenvolvidos. Para a análise epidemiológica, vai se considerar o conceito de condições
de saúde, agudas e crônicas, que difere da tipologia mais usual que é doenças transmissíveis e doenças e agravos
não transmissíveis. Essa tipologia convencional tem sido muito útil nos estudos epidemiológicos, mas observa-se
que ela não se presta para referenciar a estruturação dos sistemas de atenção à saúde. Para organizar os sistemas
de atenção à saúde, o mais conveniente é separar as condições agudas, em geral de curso curto e que podem ser
respondidas por um sistema reativo e com respostas episódicas, das condições crônicas, que têm curso mais ou
menos longo e que exigem um sistema que responda a elas de forma proativa, contínua e integrada. Por isso, as
condições crônicas envolvem todas as doenças crônicas, mais as doenças transmissíveis de curso longo
(tuberculose, hanseníase, HIV/aids e outras), as condições maternas e infantis, os acompanhamentos por ciclos de
vida (puericultura, herbicultura e seguimento das pessoas idosas), as deficiências físicas e estruturais contínuas
(amputações, cegueiras e deficiências motoras persistentes) e os distúrbios mentais de longo prazo3,4.
Uma análise da mortalidade no Brasil indica que, em 1930, as doenças infecciosas respondiam por 46% das mortes,
mas que este valor decresceu para um valor próximo a 5% em 2000; ao mesmo tempo, as doenças cardiovasculares,
que representavam em torno de 12% das mortes em 1930, responderam, em 2000, por quase 30% de todos os
óbitos5. Em relação à morbidade, medida pela morbidade hospitalar, no ano de 2005, das primeiras quinze causas
de internações pelo SUS, nove foram por condições crônicas6.
A análise da carga de doenças, medida em anos de vida perdidos ajustados por incapacidade, demonstra que 14,7%
dessa carga são por doenças infecciosas, parasitárias e desnutrição; 10,2%, por causas externas; 8,8%, por condições
maternas e perinatais e 66,3%, por doenças crônicas7. O somatório das duas últimas, ambas condições crônicas,
indica que 75% da carga de doenças no país são determinados por condições crônicas, o que, ainda, exclui o
percentual de doenças transmissíveis de curso longo.
A situação epidemiológica brasileira distancia-se da transição epidemiológica clássica omramiana8, observada nos
países desenvolvidos, e tem sido definida, recentemente, como tripla carga de doenças por que envolve, ao mesmo
tempo, uma agenda não concluída de infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva; o desafio das
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doenças crônicas e de seus fatores de riscos, como o tabagismo, o sobrepeso, a obesidade, a inatividade física, o
estresse e a alimentação inadequada; e o forte crescimento das causas externas9.
O problema fundamental dos sistemas de atenção à saúde contemporâneos
A crise contemporânea dos sistemas de atenção à saúde que se manifesta, em maior ou menor grau, em todos os
países mundo, decorre de uma incoerência entre uma situação de saúde de transição demográfica e de transição
epidemiológica completa nos países desenvolvidos e de dupla ou tripla carga de doenças nos países em
desenvolvimento e o modo como se estruturam as respostas sociais deliberadas às necessidades das populações.
A situação de saúde de forte predomínio relativo das condições crônicas não pode ser respondida, com eficiência,
efetividade e qualidade, por sistemas de saúde voltados, prioritariamente, para as condições agudas e para as
agudizações de condições crônicas, e organizados de forma fragmentada.
Essa crise decorre da incongruência entre uma situação de saúde do século XXI, convivendo com um sistema de
atenção à saúde do século XX. Isso não deu certo nos países desenvolvidos e isso não está dando certo no Brasil,
nem no setor público, nem no setor privado.
Ham10 faz um diagnóstico dessa crise a partir de uma análise histórica dos sistemas de atenção à saúde, mostrando
que, até a primeira metade do século XX, eles se voltaram para as doenças infecciosas e, na segunda metade
daquele século, para as condições agudas e para as agudizações das doenças crônicas. E ressalta: O paradigma
predominante da condição aguda é um anacronismo. Ele foi formatado pela noção do século XIX da doença como
ruptura de um estado normal determinada por um agente externo ou por um trauma. Sob esse modelo a atenção,
a condição aguda é o que representa, diretamente, a ameaça. Mas a epidemiologia moderna mostra que os
problemas de saúde prevalecentes hoje, definidos em termos de impactos sanitários e econômicos, giram em
torno das condições crônicas. Na mesma linha, a Organização Mundial da Saúde4 adverte de forma incisiva: Os
sistemas de saúde predominantes em todo mundo estão falhando, pois não estão conseguindo acompanhar a
tendência de declínio dos problemas agudos e de ascensão das condições crônicas. Quando os problemas de
saúde são crônicos, o modelo de tratamento agudo não funciona.
Uma explicação para essa crise é feita por Bengoa11, quando assinala que os sistemas de atenção à saúde movemse numa relação dialética entre fatores contextuais como envelhecimento da população, transição epidemiológica
e inovação tecnológica e fatores internos como cultura organizacional, recursos institucionais, sistemas de
incentivo, estrutura organizacional e estilos de liderança e gestão. Os fatores contextuais, externos aos sistemas de
atenção à saúde, mudam em ritmos mais rápidos que os fatores internos, os que estão sob a governabilidade
setorial. Isso faz com que os sistemas de atenção à saúde não tenham a capacidade de adaptar-se, oportunamente,
às mudanças contextuais. Nisso reside a crise universal dos sistemas de atenção à saúde que foram concebidos e
desenvolvidos com uma presunção de continuidade de uma atuação voltada para as condições e eventos agudos,
desconsiderando a epidemia moderna das condições crônicas.
A transição da situação de saúde, juntamente com outros fatores como o desenvolvimento científico, tecnológico
e econômico, determina a transição da atenção à saúde. Por essa razão, em qualquer tempo e em qualquer
sociedade, deve haver uma coerência entre a situação de saúde e o sistema de atenção à saúde. Quando essa
coerência se rompe, como ocorre, neste momento, em escala global e no Brasil, instala-se uma crise nos sistemas
de atenção à saúde.
Os sistemas fragmentados de atenção à saúde
Uma análise dos sistemas de atenção à saúde, feita numa perspectiva internacional, mostra que eles são dominados
pelos sistemas fragmentados, voltados para atenção às condições agudas e às agudizações de condições crônicas.
Conceitualmente, os sistemas fragmentados de atenção à saúde são aqueles que se organizam através de um
conjunto de pontos de atenção à saúde isolados e incomunicados uns dos outros e que, por consequência, são
incapazes de prestar uma atenção contínua à população. Em geral, não há uma população adscrita de
responsabilização, o que impossibilita a gestão baseada na população. Neles, a atenção primária à saúde não se
comunica fluidamente com a atenção secundária à saúde e esses dois níveis também não se comunicam com a
atenção terciária à saúde, nem com os sistemas de apoio. Nesses sistemas, a atenção primária à saúde não pode
exercitar seu papel de centro de comunicação, coordenando o cuidado.
Os sistemas fragmentados caracterizam-se pela forma de organização hierárquica; a inexistência da continuidade
da atenção; o foco nas condições agudas através de unidades de pronto-atendimento, ambulatorial e hospitalar; a
passividade da pessoa usuária; a ação reativa à demanda; a ênfase relativa nas intervenções curativas e
reabilitadoras; o modelo de atenção à saúde, fragmentado e sem estratificação dos riscos; a atenção centrada no
cuidado profissional, especialmente no médico; e o financiamento por procedimentos12.
Os sistemas fragmentados têm sido um desastre sanitário e econômico em todo o mundo.
Tome-se o exemplo brasileiro. Pesquisa da Fiocruz da Bahia e da Unifesp, medindo a hemoglobina glicada de 6.700
portadores de diabetes em 22 centros clínicos brasileiros, evidenciou que o nível glicêmico só estava controlado
(valor igual ou inferior a 7%) em 10% dos portadores de diabetes tipo 1 e em 25% dos portadores de diabetes tipo
2. Além disso, verificou que 45% dos examinados apresentavam sinais de retinopatias, 44%, de neuropatias e 16%,
de alterações renais13.
Os resultados do controle do diabetes não são muito melhores nos Estados Unidos. Nesse país, havia oito milhões
de portadores de diabetes e um outro tanto sem diagnósticos. Dos diagnosticados, 30% não estavam controlados,
35% desenvolveram nefropatias, 58%, doenças cardiovasculares, 30 a 70%, neuropatias, pouco mais de 50%
realizaram o exame oftalmológico de rotina e a carga econômica da doença foi de noventa bilhões de dólares
anuais14.
Chama a atenção que, em dois países muito diferentes, os resultados dos desfechos clínicos do diabetes são muito
negativos, sendo que o Brasil tem um gasto per capita anual de US$ 427,00 e os Estados Unidos, de US $ 6.719,00,
o que sinaliza que o problema do manejo das condições crônicas não está no volume de recursos despendidos, mas
na forma como se organizam os sistemas de atenção à saúde6.
Recompondo a coerência entre uma situação de saúde de tripla carga de doenças e o sistema de atenção à saúde:
as redes de atenção à saúde
A solução do problema fundamental do SUS consiste em restabelecer a coerência entre a situação de saúde de
tripla carga de doenças, com predominância relativa forte de condições crônicas, e o sistema de atenção à saúde.
Isso vai exigir mudanças profundas que permitam superar o sistema fragmentado vigente através da implantação
de redes de atenção à saúde.
O conceito de redes de atenção à saúde
As redes de atenção à saúde são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si
por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar
uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde prestada no
tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa e de forma humanizada -, e com
responsabilidades sanitárias e econômicas por esta população6.
Dessa definição, emergem os conteúdos básicos das redes de atenção à saúde: apresentam missão e objetivos
comuns; operam de forma cooperativa e interdependente; intercambiam constantemente seus recursos; são
estabelecidas sem hierarquia entre os diferentes componentes, organizando-se de forma poliárquica, em que todos
os pontos de atenção à saúde são igualmente importantes e se relacionam horizontalmente; implicam um contínuo
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de atenção nos níveis primário, secundário e terciário; convocam uma atenção integral com intervenções
promocionais, preventivas, curativas, cuidadoras, reabilitadoras e paliativas; funcionam sob coordenação da
atenção primária à saúde; prestam atenção oportuna, em tempos e lugares certos, de forma eficiente e ofertando
serviços seguros e efetivos, em consonância com as evidências disponíveis; focam-se no ciclo completo de atenção
a uma condição de saúde; têm responsabilidades sanitárias e econômicas inequívocas por sua população; e geram
valor para a sua população.
Da definição operacional de redes adotada, fica claro que ela se aproxima, conceitualmente, da estrutura em redes
que implica missão única, objetivos comuns e planejamento conjunto e que se distancia da concepção
denetworking que conota interações informais fortemente impulsionadas pelas tecnologias de informação.
Os elementos constitutivos das redes de atenção à saúde
As redes de atenção à saúde constituem-se de três elementos: a população, a estrutura operacional e o modelo de
atenção à saúde.
A população
O primeiro elemento das redes de atenção à saúde e sua razão de ser é uma população, colocada sob sua
responsabilidade sanitária e econômica. É isso que marca a atenção à saúde baseada na população, uma
característica essencial das redes de atenção à saúde.
A atenção à saúde baseada na população é a habilidade de um sistema em estabelecer as necessidades de saúde
de uma população específica, sob sua responsabilidade, segundo os riscos, de implementar e avaliar as intervenções
sanitárias relativas a essa população e de prover o cuidado para as pessoas no contexto de sua cultura e de suas
preferências15.
A população de responsabilidade das redes de atenção à saúde vive em territórios sanitários singulares, organizase socialmente em famílias e é cadastrada e registrada em subpopulações por riscos sociossanitários. Assim, a
população total de responsabilidade de uma rede de atenção à saúde deve ser plenamente conhecida e registrada
em sistemas de informação potentes. Mas não basta o conhecimento da população total: ela deve ser segmentada,
subdividida em subpopulações por fatores de riscos e estratificada por riscos em relação às condições de saúde
estabelecidas. O conhecimento da população de uma rede de atenção à saúde envolve um processo complexo,
estruturado em vários momentos, sob a responsabilidade fundamental da atenção primária: o processo de
territorialização; o cadastramento das famílias; a classificação das famílias por riscos sociossanitários; a vinculação
das famílias à unidade de atenção primária à saúde/equipe do Programa de Saúde da Família; a identificação de
subpopulações com fatores de riscos; a identificação das subpopulações com condições de saúde estabelecidas por
graus de riscos; e a identificação de subpopulações com condições de saúde muito complexas.
A estrutura operacional
O segundo elemento constitutivo das redes de atenção à saúde é a estrutura operacional, constituída pelos nós das
redes e pelas ligações materiais e imateriais que comunicam esses diferentes nós.
A estrutura operacional das redes de atenção à saúde compõe-se de cinco componentes: o centro de comunicação,
a atenção primária à saúde; os pontos de atenção secundários e terciários; os sistemas de apoio; os sistemas
logísticos; e o sistema de governança da rede de atenção à saúde. Os três primeiros correspondem aos nós das
redes e o quarto, às ligações que comunicam os diferentes nós. E o quinto, o componente que governa as relações
entre os quatro primeiros.
O centro de comunicação das redes de atenção à saúde é o nó intercambiador no qual se coordenam os fluxos e
contrafluxos do sistema de atenção à saúde e é constituído pela atenção primária à saúde (unidade de atenção
primária à saúde ou equipe do Programa de Saúde da Família).
Há evidências de que os sistemas de atenção à saúde baseados numa forte orientação para a atenção primária à
saúde, contrastados com os sistemas de baixa orientação para a atenção primária à saúde, são mais adequados por
que se organizam a partir das necessidades de saúde da população; mais efetivos porque são a única forma de
enfrentar consequentemente a situação epidemiológica de hegemonia das condições crônicas e por impactar
significativamente os níveis de saúde da população; mais eficientes por que apresentam menores custos e reduzem
procedimentos mais caros; mais equitativos por que discriminam positivamente grupos e regiões mais pobres e
diminuem o gasto do bolso das pessoas e famílias; e de maior qualidade por que colocam ênfase na promoção da
saúde e na prevenção das doenças e ofertam tecnologias mais seguras para os usuários e profissionais de saúde1620.
Contudo, para que a atenção primária à saúde possa resultar em todos esses benefícios, deve ser reformulada para
cumprir três papéis essenciais nas redes de atenção à saúde: a resolução, a capacidade para solucionar mais de 85%
dos problemas de saúde de sua população; a coordenação, a capacidade de orientar os fluxos e contrafluxos de
pessoas, informações e produtos entre os componentes das redes; e a responsabilização, a capacidade de acolher
e responsabilizar-se, sanitária e economicamente, por sua população.
O segundo componente das redes de atenção à saúde são os pontos de atenção secundários e terciários, os nós das
redes onde se ofertam determinados serviços especializados, gerados através de uma função de produção singular.
Eles se diferenciam por suas respectivas densidades tecnológicas, sendo os pontos de atenção terciários mais
densos tecnologicamente que os pontos de atenção secundários e, por essa razão, tendem a ser mais concentrados
espacialmente.
Contudo, na perspectiva das redes poliárquicas, não há, entre eles, relações de principalidade ou subordinação,
características das relações hierárquicas, já que todos são igualmente importantes para se atingirem os objetivos
comuns das redes de atenção à saúde.
O terceiro componente das redes de atenção à saúde são os sistemas de apoio. Os sistemas de apoio são os lugares
institucionais das redes onde se prestam serviços comuns a todos os pontos de atenção à saúde, nos campos do
apoio diagnóstico e terapêutico, da assistência farmacêutica e dos sistemas de informação em saúde.
O sistema de apoio diagnóstico e terapêutico envolve os serviços de diagnóstico por imagem, os serviços de
medicina nuclear diagnóstica e terapêutica, a eletrofisiologia diagnóstica e terapêutica, as endoscopias, a
hemodinâmica e a patologia clínica (anatomia patológica, genética, bioquímica, hematologia, imunologia e
microbiologia e parasitologia).
O sistema de assistência farmacêutica envolve uma organização complexa, exercitada por um grupo de atividades
relacionadas com os medicamentos, destinadas a apoiar as ações de saúde demandadas por uma população,
englobando intervenções logísticas relativas à seleção dos medicamentos, à programação de medicamentos, à
aquisição de medicamentos, ao armazenamento dos medicamentos, à distribuição dos medicamentos, bem como
ações assistenciais da farmácia clínica, como o formulário terapêutico, a dispensação, a adesão ao tratamento, a
conciliação de medicamentos e a farmacovigilância.
A construção social das redes de atenção à saúde, para ser consequente, tem de ser suportada por informações de
qualidade, ofertadas por bons sistemas de informação em saúde. Os sistemas de informação em saúde
compreendem os determinantes sociais da saúde e os ambientes contextuais e legais nos quais os sistemas de
atenção à saúde operam; os insumos dos sistemas de atenção à saúde e os processos relacionados a eles, incluindo
a política e a organização, a infraestrutura sanitária, os recursos humanos e os recursos financeiros;
aperformance dos sistemas de atenção à saúde; os resultados produzidos em termos de mortalidade, morbidade,
carga de doenças, bem-estar e estado de saúde; e a equidade em saúde.
O quarto componente das redes de atenção à saúde são os sistemas logísticos. Os sistemas logísticos são soluções
tecnológicas, fortemente ancoradas nas tecnologias de informação, que garantem uma organização racional dos
fluxos e contrafluxos de informações, produtos e pessoas nas redes de atenção à saúde, permitindo um sistema
eficaz de referência e contrarreferência das pessoas e trocas eficientes de produtos e informações, ao longo dos
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pontos de atenção à saúde e dos sistemas de apoio, nas redes de atenção à saúde. Os principais sistemas logísticos
das redes de atenção à saúde são o cartão de identificação das pessoas usuárias, o prontuário clínico, os sistemas
de acesso regulado à atenção à saúde e os sistemas de transporte em saúde.
O quinto componente das redes de atenção à saúde são os sistemas de governança. A governança das redes de
atenção à saúde é o arranjo organizativo que permite a gestão de todos os componentes das redes de atenção à
saúde, de forma a gerar um excedente cooperativo entre os atores sociais em situação, aumentar a
interdependência entre eles e obter resultados sanitários e econômicos para a população adscrita. A governança
objetiva criar uma missão e uma visão nas organizações; definir objetivos e metas que devem ser alcançados no
curto, médio e longo prazos para cumprir com a missão e a com visão; articular as políticas institucionais para o
cumprimento dos objetivos e metas; e desenvolver a capacidade de gestão necessária para planejar, monitorar e
avaliar o desempenho dos gerentes e da organização. A governança das redes de atenção à saúde, no SUS, deve ser
feita por meio de arranjos interfederativos, coerentes com o federalismo cooperativo que se pratica no Brasil. São
as comissões intergestores que se materializam: no plano nacional, na comissão intergestores tripartite; nos
estados, nas comissões intergestores bipartite; e nas regiões de saúde, nas comissões intergestores bipartite
regionais.
O modelo de atenção à saúde
O terceiro elemento constitutivo das redes de atenção à saúde são os modelos de atenção à saúde.
Os modelos de atenção à saúde são sistemas lógicos que organizam o funcionamento das redes de atenção à saúde,
articulando, de forma singular, as relações entre a população e suas subpopulações estratificadas por riscos, os
focos das intervenções do sistema de atenção à saúde e os diferentes tipos de intervenções sanitárias, definidos
em função da visão prevalecente da saúde, das situações demográfica e epidemiológica e dos determinantes sociais
da saúde, vigentes em determinado tempo e em determinada sociedade. A necessidade de se mudarem os sistemas
de atenção à saúde para que possam responder com efetividade, eficiência e segurança a situações de saúde
dominadas pelas condições crônicas levou ao desenvolvimento dos modelos de atenção à saúde. Há modelos de
atenção à saúde para as condições agudas e crônicas.
As condições agudas e os eventos agudos decorrentes de condições crônicas agudizadas exigem, para o seu manejo
adequado, a implantação de modelos de atenção à saúde que, em geral, expressam-se num tipo de classificação de
riscos. Isso se deve a que, nas condições agudas, a variável-chave para a organização das redes de atenção às
urgências e às emergências é o tempo-resposta em relação ao risco. Os modelos de triagem nas urgências e
emergências mais avançados e que foram construídos numa concepção sistêmica são o modelo australiano, o
modelo pioneiro que usa tempos de espera de acordo com a gravidade; o modelo canadense, semelhante, mas
mais complexo que o australiano; o modelo americano, que opera com um único algoritmo e que se foca mais na
necessidade de recursos para o atendimento; o modelo de Andorra, que se articula em sintomas, discriminantes e
algoritmos, mas muito complexo e demorado; e o sistema de triagem de Manchester, que opera com algoritmos e
determinantes, associado a tempos de espera simbolizados por cinco cores e que tem sido usado em vários países21.
Por outro lado, os modelos de atenção à saúde, destinados à orientação dos sistemas de atenção à saúde, voltados
para as condições crônicas, são construídos a partir de um modelo seminal, o modelo de atenção crônica, o MAC22.
Dele, derivam várias adaptações aplicadas em diferentes partes do mundo, tanto em países desenvolvidos como
em países em desenvolvimento. Ele tem sido adotado, com modificações adjetivas, no Canadá, Reino Unido,
Alemanha, Rússia, Espanha, Austrália, Dinamarca, Holanda e em alguns países em desenvolvimento4,23-27. No Brasil,
Mendes6 propôs, também com base no MAC, um modelo de atenção às condições crônicas para utilização no SUS.
O MAC compõe-se de seis elementos, subdivididos em dois grandes campos: o sistema de atenção à saúde e a
comunidade. No sistema de atenção à saúde, as mudanças devem ser feitas na organização da atenção à saúde, no
desenho do sistema de prestação de serviços, no apoio às decisões, nos sistemas de informação clínica e no
autocuidado apoiado. Na comunidade, as mudanças estão centradas na articulação dos serviços de saúde com os
recursos da comunidade. Esses seis elementos apresentam interrelações que permitem desenvolver usuários
informados e ativos e equipe de saúde preparada e proativa para produzir melhores resultados sanitários e
funcionais para a população.
Há evidências abundantes e robustas, na literatura internacional, sobre os efeitos positivos do MAC, seja na sua
avaliação conjunta, seja na avaliação de seus elementos separadamente. O estudo avaliativo clássico desse modelo
foi realizado pela Rand Corporation e pela Universidade de Berkeley28 e teve dois objetivos: avaliar as mudanças
ocorridas nas organizações de saúde para implementar o MAC e estabelecer o grau em que a adoção deste modelo
melhora os processos e os resultados em relação às condições crônicas. Esta avaliação durou quatro anos e envolveu
aproximadamente quatro mil portadores de diabetes, insuficiência cardíaca, asma e depressão, em 51 organizações
de saúde e gerou uma grande quantidade de publicações que mostram que o modelo funciona. Vários outros
trabalhos de avaliação do MAC estão disponíveis na literatura. Alguns são de avaliação geral da aplicação do
modelo10,29,30, mas há trabalhos que avaliam a melhoria da qualidade dos serviços de atenção às condições
crônicas31; condições crônicas particulares32; aspectos organizacionais33 e avaliação econômica34.
As evidências sobre as redes de atenção à saúde
Há, na literatura internacional, provinda de vários países, evidências de boa qualidade de que as redes de atenção
à saúde podem melhorar a qualidade clínica, os resultados sanitários, a satisfação dos usuários e reduzir os custos
dos sistemas de atenção à saúde.
Esses resultados foram positivos em várias situações: na atenção às pessoas idosas35,36; na saúde mental37-39; no
controle do diabetes40-42; no aumento da satisfação dos usuários43,44; no controle de doenças cardiovasculares45; no
controle de doenças respiratórias crônicas46 e na redução da utilização de serviços especializados29.
Uma avaliação de 72 sistemas que utilizaram alguma forma de integração concluiu que os programas que
integravam a atenção primária à saúde com os outros níveis e que tinham uma população adscrita foram mais
efetivos e que seus usuários estavam mais satisfeitos43. Um ensaio randomizado verificou que a integração entre a
atenção primária e especializada à saúde permitiu a identificação de pessoas com alto risco de hospitalização e
reduziu o uso de serviços especializados44. Uma análise de catorze revisões sistemáticas e 29 ensaios randomizados
encontrou evidências de que as redes de atenção à saúde melhoraram o uso dos recursos e alguns resultados
clínicos selecionados e reduziram os custos da atenção29. Na Espanha, concluiu-se que existem evidências sólidas
de que os enfoques e intervenções dos sistemas integrados mostraram resultados positivos em vários âmbitos e
patologias25,47. Há evidências de que a integração de gestores e prestadores de serviços melhorou a cooperação
entre eles, deu uma maior atenção à gestão de caso, incentivou a utilização de tecnologia de informação e teve
algum impacto sobre os custos da atenção à saúde48.
No Brasil, o tema das redes de atenção à saúde é recente e não há experiências em escala, nem avaliações robustas.
Contudo, estudos de casos de experiências de redes de atenção à saúde indicam que elas, à semelhança do que
ocorre em países desenvolvidos, podem ter impacto significativo nos níveis de saúde, com custos suportáveis pelo
SUS49,50.
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TEXTO 6: A Saúde e a Centralidade da Luta por uma Constituinte Exclusiva e
Soberana do Sistema Político Brasileiro
Por Hugo Fanton
Durante a segunda metade da década de 1970 e nos anos 1980, o movimento da Reforma Sanitária
Brasileira conformou um campo de forças sociais mobilizadas em torno de um programa democratizante dos
serviços de saúde no Brasil, tendo como princípio norteador a saúde enquanto um direito, a ser efetivado de forma
radicalmente diferente do modelo médico assistencial privatista então vigente. Tratava-se de uma transformação
social que pressupunha a alteração das relações de poder na área da saúde, pela articulação entre entidades
sindicais e comunitárias, formação partidária e disputa por cargos legislativos e em instituições públicas,
combinados com a conformação do campo da Saúde Coletiva como produção acadêmica crítica relacionada ao
saber científico na área e pela construção de saberes em experiências de Educação Popular.
A articulação desse conjunto amplo e diversificado de práticas políticas e sociais ganhou expressão
pública nacional em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), cujo documento final consolida os
pressupostos construídos para nortear a política nacional de saúde, na medida em que fossem assegurados
constitucionalmente. Adotou-se um conceito ampliado de saúde, não mais em referência restrita à assistência
médica, mas relacionado a todos os seus determinantes, tais como trabalho, alimentação, habitação e transporte.
Reivindica-se a saúde enquanto direito universal e igualitário, dever do Estado, a ser efetivado por uma rede
regionalizada, que constituiria um sistema único, gratuito, de natureza pública, sob controle social e com
financiamento autônomo.
Nesse mesmo período, um conjunto mais amplo de movimentos sociais e sindicais brasileiros
reivindicavam a instalação de uma Constituinte Exclusiva e Soberana no país, uma Assembleia formada por
representantes eleitos com a finalidade exclusiva de elaborar a nova Constituição, a partir da soberania popular.
No entanto, não houve força política suficiente para isso, prevalecendo a tese das forças conservadoras, e foi
instalada uma Constituinte Congressual, ou seja, os parlamentares eleitos em novembro de 1986 acumulariam as
funções de congressistas e constituintes, mantendo-se subordinados à vontade das forças armadas, do poder
judiciário e do poder executivo.
Tal subordinação pode ser exemplificada por fenômenos como a participação dos “senadores biônicos”,
indicados pelos militares desde o “pacote de abril”, que compunham um terço do Senado e garantiam às forças
armadas uma bancada maior no Congresso, além da articulação do “Centrão”, que barganhava suas posições com
o Executivo em troca de cargos, concessões de rádio e televisão e outras benesses.
Apesar disso, a formulação consistente de uma proposta para a saúde, resultante da articulação política
historicamente consolidada pelo movimento sanitário, garantiu seu êxito na elaboração do Capítulo da Ordem
Social, que institui o modelo de seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.
O texto aprovado na Constituição aproximou-se bastante do proposto pelo movimento, obrigando o Estado
brasileiro a estender universalmente a atenção à saúde e integrar as estruturas governamentais na sua efetivação
enquanto um direito.
No entanto, os limites impostos ao texto aprovado, tais como ausência de percentual mínimo de
investimento na saúde pública condizente com sua expansão universalizante, bem como a não regulação do setor
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privado e da sua relação com o setor público, indicam uma correlação de forças desfavorável ao movimento popular
naquela conjuntura. E para além disso, permite-nos entender como a forma de organização do Sistema Político
Brasileiro influenciou diretamente no esvaziamento do conteúdo democratizante da Reforma Sanitária nas décadas
subsequentes.
De maneira mais geral, o vazio institucional e a ausência de um marco regulatório referente às relações
entre o público e o privado no Sistema Único de Saúde garante a ausência de controle público sobre o setor privado.
Este não só segue existindo como é dependente dos recursos públicos, por mecanismos como o acesso a
financiamentos de Fundos Públicos; permanentes renúncias fiscais; venda de planos de saúde ao funcionalismo;
isenções tributárias; dupla porta de entrada em hospitais públicos (que permite atendimento diferenciado nos
hospitais públicos a clientes de planos de saúde); renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas nas declarações de
imposto; e o não ressarcimento do Estado pelo atendimento dos clientes da iniciativa privada na rede pública.
No momento imediatamente posterior à promulgação da Constituição, ainda nos Governos Sarney e Collor, as
discussões do movimento sanitário sobre a proposta de Lei Orgânica da Saúde alertavam para a ameaça de sua
submissão ao fisiologismo político que caracterizavam as relações entre os três poderes. A consolidação de um
presidencialismo sustentado em coalizões multipartidárias, que até hoje representam majoritariamente as
diferentes frações de classe da burguesia, garantiu a ampliação da assistência médica supletiva e a implantação
distorcida do SUS. Na época, falava-se em um “drama estratégico” para a Reforma Sanitária, na medida em que a
definição das políticas de saúde estava subordinada às relações entre empresariado do setor e autoridades do
Estado, levando à centralização decisória e controle burocrático das ações, municipalização discriminatória e subfinanciamento.
Em continuidade, nos períodos Itamar e FHC houve a chamada “implosão” do conceito de Seguridade
Social e persistência do foco restrito da saúde na assistência médica. A criação de fundos de estabilização fiscal
permitiu a desvinculação das receitas da União que constitucionalmente deveriam ser voltadas para políticas
sociais. Para além disso, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), proposto pelo Ministério da
Administração e Reforma do Estado (MARE) nos anos 1995-2002, dá bases para a transferência da gestão de
serviços públicos às Organizações Sociais da Saúde (OSS), “entidades públicas não-estatais, submetidas a contratos
de gestão”, constituídas como pessoas jurídicas de direito privado. Essa agenda, que era preconizada pelo Banco
Mundial, garantiu mais um mecanismo de canalização dos interesses privados para o interior de um sistema
supostamente público, agora na organização da rede de atenção básica.
É parte do mesmo Plano a criação das agências reguladoras, dentre elas a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), prevista na lei 9.656/98, controlada pelos próprios empresários de operadoras de planos de
saúde a serem por ela reguladas e fiscalizadas. É expressão desse controle o acúmulo das dívidas em bilhões de
reais referentes ao necessário ressarcimento do SUS pelas empresas que utilizam serviços do setor público no
atendimento de seus clientes. Também a Agência de Vigilância Sanitária tem se tornado refém do agronegócio em
sua atribuição de fiscalizar o uso indiscriminado de agrotóxicos e a produção de sementes transgênicas.
Cabe destacar ainda os espaços de participação e controle sociais, como os conselhos e conferências, previstos
constitucionalmente em 1988 e garantidos por legislação específica. Apesar de tal configuração legal proporcionar
a incorporação de grupos sociais antes alijados dos processos decisórios na gestão do sistema de saúde, não foi
superado o maniqueísmo das relações da sociedade com o Sistema Político, o que torna esses espaços meros rituais
de legitimação de políticas e decisões que permanecem centralizadas nos órgãos administrativos e nos gabinetes.
Durante os governos Lula e Dilma, toda essa estrutura institucional, legal e técnico administrativa do sistema de
saúde permanece inalterada, ainda que as políticas de saúde tenham se somado às das demais áreas na melhoria
da qualidade de vida da população brasileira vivida nos últimos 12 anos. Ressalta-se que a conquista da saúde como
um direito e a construção do SUS desde 1988 proporcionou a extensão da rede de serviços básicos e ambulatoriais
para um conjunto bastante amplo da população, redução de taxas de mortalidade infantil e materna e ampliação
da cobertura vacinal, por exemplo.
No entanto, os limites aqui descritos à concretização da Reforma Sanitária remontam diretamente à
manutenção do controle do Sistema Político Brasileiro pelas classes dominantes de maneira geral, e das frações da
burguesia que atuam no setor saúde. Se concebermos o Sistema Político de maneira ampla, levando em conta o
Sistema Eleitoral e partidário, bem como os espaços e processos de democracia participativa e direta, podemos
estabelecer relações entre as atuais características da organização do sistema de Saúde no Brasil acima listadas e
nosso Sistema Político.
A configuração legal, normativa e administrativa da saúde advinda das disputas políticas enfrentadas
desde 1988 resultam, de maneira geral, da combinação entre o conjunto de regras que organizam os diferentes
espaços de exercício do poder e a atuação nesses espaços pelas diferentes forças sociais e políticas que compõem
a nossa sociedade. Esta atuação é desigual, na medida em que o conjunto de regras beneficia determinado grupo
social, no caso, as diferentes frações da burguesia. A possibilidade de financiamento empresarial de campanha, os
processos de definição de candidaturas no interior dos partidos, os diferentes mecanismos que favorecem quem já
ocupa espaços de poder, a dissociação entre disputa política e compromisso programático, a falta de transparência
e participação social na Justiça Eleitoral e no Sistema Judiciário como um todo, a imunidade parlamentar, votação
secreta, proporcionalidade dos votos, enfim, o conjunto articulado de regras existentes favorecem as classes
dominantes nos processos eleitorais, que por sua vez determinam a legislação e a institucionalidade das mais
diversas áreas, dentre elas a saúde.
Se tomarmos novamente como exemplo as relações entre a ANS e as operadoras de planos de saúde, as
doações de campanha permitem a composição de uma das maiores bancadas no parlamento, para atuarem em
combinação com um sistema regulatório que age independentemente de um marco de referência. A agência que
deveria regular é tomada por interesses particulares das empresas do setor, sem que sua legitimidade política se
assente em critérios democráticos. Pelo contrário, seus integrantes possuem competência “delegada”, definida por
critérios em nada transparentes.
Nesse sentido, a estrutura jurídico-política que privilegia os detentores do poder econômico vai além das
normas eleitorais e da composição partidária, fazendo referência ao burocratismo que caracteriza o Estado burguês,
ou seja, à hierarquização das tarefas do Estado de acordo com critérios formalizados de competência. Isto explica
tanto o papel de agências reguladoras e sua centralidade na concretização da política, como o esvaziamento dos
ditos espaços de participação popular. Os Conselhos e as Conferências, a quem legalmente cabe a definição e
execução de políticas na área, são simplesmente ignorados pelo Sistema Político como um todo.
Em suma: a sociedade fica de fora. Ou, mais precisamente, ficam excluídas as forças sociais comprometidas com a
democratização da saúde no Brasil, que representam 98% da população: o povo brasileiro. Relembremos que a
Reforma Sanitária remonta a uma transformação social que pressupunha a alteração das relações de poder. Se os
movimentos sociais permanecem em luta por uma saúde concebida enquanto “trabalho em condições dignas com
amplo conhecimento e controle dos trabalhadores sobre o processo e o ambiente de trabalho”, além de garantia
de alimentação, “moradia higiênica e digna; educação e informação plenas; qualidade adequada do meio ambiente;
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transporte seguro e acessível; repouso, lazer e segurança”, é preciso colocar a questão do poder no centro do
debate!
Levantar a bandeira da Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político Brasileiro significa
precisamente isso: participar ativamente da discussão da forma de se fazer política e exercer o poder no Brasil, que
hoje
é
profundamente
desigual,
em
favorecimento
da
burguesia.
Para enfrentar o fisiologismo, a corrupção, o sucatemento, a precariedade nas relações trabalhistas, enfim, as
questões todas aqui já listadas e tantas outras que perpassam a efetivação do direito à saúde no Brasil, é
fundamental recolocar na ordem do dia a necessidade de alterar o sistema de poder para realizar as mudanças
estruturais! É isso, precisamente, que a luta por uma Constituinte Exclusiva e Soberana por meio de um Plebiscito
Popular nos permite. Envolver-se na construção do Plebiscito abre ao movimento sanitário a possibilidade de
resgatar suas origens, desprendendo-se dos gabinetes de universidades, dos consultórios e de órgãos
administrativos, para construir força social em torno de um Projeto Popular para a saúde.
Já em 1988 Sérgio Arouca afirmava que a Reforma Sanitária escrita na Constituição nada representaria se não
ganhasse o espaço da comunidade, do lar, da fábrica, das escolas e ali efetivamente produzisse as transformações
para “o bem estar da população e para a construção de uma sociedade democrática, justa e independente”. Esse
desafio permanece atual e deve ser enfrentado, ainda que muitas vezes não seja fácil vislumbrar as possibilidades
de construção de uma alternativa de poder. Nos anos 1970, em uma conjuntura ainda mais adversa, o recém
formado movimento sanitário não se furtou desse dever. Pelo contrário, apostou na construção dessa possibilidade
a partir da unidade permanente entre as forças populares, tanto programática quanto no terreno das lutas,
estimulando experiências organizativas de base e sua articulação em torno de um programa amplo, nacional,
democrático e popular.
O Plebiscito Popular, enquanto instrumento político e ferramenta pedagógica, possibilita que nos
envolvamos exatamente em um processo com essas características. Na medida em que qualquer pessoa,
independente de sexo, raça, etnia, idade ou religião pode se envolver, organizando grupos em bairros, escolas,
igrejas, sindicatos, está colocada a tarefa de realizar trabalho de base, formação política e de ouvir as pessoas acerca
de que saúde queremos e qual sistema político a torna possível. Só assim se enfrenta os grupos que hoje operam o
sistema. É assim que sairemos da condição de meros espectadores para promover rupturas e protagonizar a
conquista de um Projeto Popular para a Saúde.
TEXTO 7: Retomar o Debate Sobre Reforma Sanitária para
Avançar o Sistema Único de Saúde (SUS)
INTRODUÇÃO
Nos anos 1970, a partir dos trabalhos seminais de Arouca (publicado tardiamente em 2003) e Donnangelo (1976),
uma profícua produção acadêmica inaugurou no Brasil o campo de conhecimento da Saúde Coletiva - intimamente
ligado ao projeto da Reforma Sanitária Brasileira. Esse intenso debate ficou documentado nas teses acadêmicas,
livros e artigos, sendo a Revista Saúde em Debate do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) o principal
veículo por onde circularam os autores e suas ideias. No entanto, as décadas de 1980 e em especial a de 1990 viram
escassear essa produção, grandemente canalizada para a análise das vicissitudes da implantação do Sistema Único
de Saúde e do processo de descentralização da política de saúde. Mesmo algumas publicações temporãs (como
GERSCHMAN, 1995; GALLO, 1995; LOBATO, 1995) devem ser mais bem incluídas como parte dos trabalhos de
pesquisa oriundos do NUPES - Núcleo de Estudos Políticos Sociais em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública,
onde se tentou manter, até o final dos anos 1980, a tradição de se aliar a análise dos processos históricos e
institucionais à produção de uma teoria da Reforma Sanitária, a qual permitisse a compreensão crítica e analítica
dos primeiros e orientasse assim a práxis política.
Recentemente, duas publicações retomaram a linha de produção sobre a Reforma Sanitária, embora a primeira
delas (FLEURY, BAHIA e AMARANTE, 2008) seja uma recopilação e organização dos artigos publicados até o número
23 da Revista Saúde em Debate, considerados pelos organizadores como os fundamentos da Reforma Sanitária, nos
seguintes eixos: i) a construção do campo de conhecimento da saúde coletiva; ii) a construção da estratégia política;
iii) teoria e tática da Reforma Sanitária. Já o livro de Paim (2008) é uma produção atual que se constrói na melhor
tradição dos debates da Reforma Sanitária, avançando no plano histórico à luz de uma rigorosa compreensão
teórica. O autor constata empiricamente o quase desaparecimento da temática da Reforma Sanitária na produção
das teses acadêmicas nas décadas recentes e sua substituição seja pela análise do movimento sanitário e sua forma
de participação institucional, seja pela análise da política de saúde. Por sua vez, Paim procura demonstrar que a
Reforma Sanitária Brasileira (RSB) não é apenas o movimento social que a propulsou nem meramente uma política
social e de saúde. Segundo o autor,
"parte-se da tese segundo a qual a RSB é constituinte de um projeto de reforma social (...) [sendo] o ângulo
privilegiado de análise a própria reforma sanitária, enquanto ideia, proposta, projeto e processo, ainda que só
analiticamente seja possível distingui-la do movimento, assim como o criador em relação à criação e à criatura..."
(PAIM, 2008:32)
Essa compreensão, a qual compartilhamos, afasta-se dos estudos que reduzem a Reforma Sanitária a uma imagem
objetiva de política social e à implantação institucional do SUS, o que leva a vê-la como um projeto frustrado,
inconcluso, desvirtuado. Compreender a dinâmica contraditória desse processo social de transformação representa
a possibilidade de revisitar os conceitos e marcos teóricos que permitiram o avanço de um projeto de tal
envergadura, mas que hoje carece de uma compreensão analítica que permita fazê-lo avançar criticamente.
Neste ensaio, formulamos nossas hipóteses analíticas sobre a concomitância nem sempre sinérgica entre os
processos interiores da RSB, o que nos permite reafirmar a necessidade atual de reduzir algumas hipertrofias e
visitar algumas áreas críticas, rompendo hiatos e continuidades que teimam em reduzir a RSB à institucionalização
do SUS. Para desenvolver nosso raciocínio abordamos primeiramente o histórico da proteção social no Brasil para,
a seguir, caracterizarmos a ruptura representada pela emergência do padrão constitucional de proteção social da
Constituição Federal de 1988, no qual o projeto da RSB foi constituinte e constituído, tema amplamente discutido
em todos os trabalhos que desenvolvemos nos últimos anos. No item sobre a Reforma Sanitária, retomamos as
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CADERNO DE TEXTOS
bases analíticas formuladas em sua origem, acrescidas agora da mencionada contribuição atual. Por fim, concluímos
com nossa tese sobre os dilemas atuais entre o instituinte e o instituído, cuja superação é condição para o avanço
da RSB.
HISTÓRICO DA PROTEÇÃO SOCIAL
As políticas sociais brasileiras desenvolveram-se, a partir do início do século passado, por um período de cerca de
80 anos, configurando um tipo de padrão de proteção social só alterado com a Constituição Federal de 1988. O
sistema de proteção social brasileiro, até o final da década de 1980, combinou um modelo de seguro social na área
previdenciária, incluindo a atenção à saúde, com um modelo assistencial para a população sem vínculos trabalhistas
formais. Ambos os sistemas foram organizados e consolidados entre as décadas de 1930 e 1940, como parte do
processo mais geral de construção do estado moderno, intervencionista e centralizador, após a revolução de 1930.
A construção do Estado nacional é um processo sempre inacabado, no qual vão sendo desenhadas as relações de
poder na institucionalidade do aparato administrativo, seja ele voltado para a implantação do projeto econômico,
seja ainda responsável pela reprodução da força de trabalho e incorporador das demandas políticas dos grupos
subalternos.
A opção por um dado formato de política social, que se cristaliza na combinação de modelos distintos para
diferentes segmentos dos trabalhadores, indica o lugar que cada um deles ocupa em uma dada correlação de forças,
além das tendências internacionalmente preponderantes. Os diferentes modelos de proteção social são resumidos
a seguir (FLEURY, 1994).
No modelo assistencial, as ações são de caráter emergencial, estão dirigidas aos grupos de pobres mais vulneráveis,
e inspiram-se em uma perspectiva caritativa e reeducadora. Estas ações organizam-se com base na associação entre
trabalho voluntário e políticas públicas, estruturam-se de forma pulverizada e descontínua, gerando organizações
e programas muitas vezes superpostos. Embora permitam o acesso a certos bens e serviços, não configuram uma
relação de direito social, tratando-se de medidas compensatórias que terminam por ser estigmatizantes. Por isso,
denomino essa relação de cidadania invertida, na qual o indivíduo tem que provar que fracassou no mercado para
ser objeto da proteção social.
No modelo de seguro social, a proteção social dos grupos ocupacionais estabelece uma relação de direito
contratual, na qual os benefícios são condicionados às contribuições pretéritas e à afiliação dos indivíduos a tais
categorias ocupacionais que são autorizadas a operar um seguro. A organização altamente fragmentada dos
seguros expressa a concepção dos benefícios como privilégios diferenciados de cada categoria, como resultado de
sua capacidade de pressão sobre o governo. Como os direitos sociais estão condicionados à inserção dos indivíduos
na estrutura produtiva, Wanderley G. dos Santos (1979) denominou essa relação de cidadania regulada pela
condição de trabalho.
No período da democracia populista (1946-1963), a expansão do modelo de seguro social vai fazer parte do jogo
político de intercâmbio de benefícios por legitimação dos governantes, beneficiando de forma diferencial os grupos
de trabalhadores com maior poder de barganha. Fenômeno este que ficou conhecido como massificação de
privilégios e implicou o aprofundamento da crise financeira e de administração do sistema previdenciário.
A inflexão que vão sofrer os sistemas e mecanismos de proteção social a partir da instauração do regime
burocrático-autoritário em 1964 obedeceu a quatro linhas mestras: a centralização e concentração do poder em
mãos da tecnocracia, com a retirada dos trabalhadores do jogo político e da administração das políticas sociais; o
aumento de cobertura, incorporando, precariamente, grupos anteriormente excluídos, como as empregadas
domésticas, os trabalhadores rurais e os autônomos; a criação de fundos e contribuições sociais como mecanismo
de autofinanciamento dos programas; a privatização dos serviços (em especial os sociais, como a educação
universitária e secundária e a atenção hospitalar).
Nos meados da década de 1970, a luta pela democratização adquire novas características e estratégias. Antes
confinada às universidades, aos partidos clandestinos e aos movimentos sociais, essa luta passa a ser localizada
também no interior do próprio estado. Primeiramente, a partir das experiências inovadoras desenvolvidas pelas
prefeituras oposicionistas eleitas em 1974; em segundo lugar, no interior dos órgãos centrais, responsáveis pelas
políticas sociais, buscando aproveitar a crise financeira e o modelo das políticas sociais para introduzir elementos
de transformação; em terceiro lugar, há um fortalecimento das capacidades técnicas dos partidos políticos e do
parlamento, que passam a tomar a problemática social como parte de suas plataformas e projetos de construção
de uma sociedade democrática.
O resgate da dívida social passa a ser um tema central da agenda da democracia, convergindo para ele movimentos
de natureza diversa. Esse processo intensifica-se na década de 1980 através do surgimento de um rico tecido social
emergente a partir da aglutinação do novo sindicalismo e dos movimentos reivindicatórios urbanos, da construção
de uma frente partidária da oposição, e da organização de movimentos setoriais capazes de formular projetos de
reorganização institucional, como o Movimento Sanitário.
Toda essa efervescência democrática foi canalizada para os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, que se
iniciaram em 1987. Em boa medida, a construção de uma ordem institucional democrática supunha um
reordenamento das políticas sociais que respondesse às demandas da sociedade por maior inclusão social e
equidade. Projetada para o sistema de políticas sociais como um todo, tal demanda por inclusão e redução das
desigualdades adquiriu as concretas conotações de afirmação dos direitos sociais como parte da cidadania.
A Constituição Federal de 1988 representa uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro,
consolidando, na lei maior, as pressões que já se faziam sentir há mais de uma década. Inaugura-se um novo
período, no qual o modelo da seguridade social passa a estruturar a organização e o formato da proteção social
brasileira, em busca da universalização da cidadania. No modelo de seguridade social, busca-se romper com as
noções de cobertura restrita a setores inseridos no mercado formal e afrouxar os vínculos entre contribuições e
benefícios, gerando mecanismos mais solidários e redistributivos. Os benefícios passam a ser concedidos a partir
das necessidades, com fundamentos nos princípios da justiça social, o que obriga a estender universalmente a
cobertura e integrar as estruturas governamentais.
Essa Constituição avançou em relação às formulações legais anteriores, ao garantir um conjunto de direitos sociais,
expressos no Capítulo da Ordem Social, inovando ao consagrar o modelo de Seguridade Social, como "um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência e à assistência social" (Título VIII, Capítulo II, Seção I, art. 194). A inclusão da previdência, da
saúde e da assistência como partes da Seguridade Social introduz a noção de direitos sociais universais como parte
da condição de cidadania, antes restritos à população beneficiária da previdência
O novo padrão constitucional da política social tem uma perspectiva publicista, isto é, que se caracteriza pela
universalidade da cobertura, pelo reconhecimento dos direitos sociais, pela afirmação do dever do Estado, pela
subordinação das práticas privadas à regulação em função da relevância pública das ações e serviços nessas áreas
e por um arranjo organizacional descentralizado.
A originalidade da Seguridade Social brasileira está dada em seu forte componente de reforma do Estado, ao
redesenhar as relações entre os entes federativos e ao instituir formas concretas de participação e controle sociais,
com mecanismos de articulação e pactuação entre os três níveis de governo. A organização dos sistemas de
proteção social deveria assim adotar o formato de uma rede descentralizada, integrada, com comando político
único e um fundo de financiamento em cada esfera governamental, regionalizada e hierarquizada, com instâncias
deliberativas que garantissem a participação paritária da sociedade organizada, em cada esfera governamental.
A REFORMA SANITÁRIA
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CADERNO DE TEXTOS
A Reforma Sanitária no Brasil é definida como uma estratégia política e um processo de transformação institucional
cujo projeto e trajetória de institucionalização implicaram a reformulação de um campo de saber. Emergindo como
parte da luta pela democracia, a Reforma Sanitária já ultrapassa três décadas, tendo alcançado a garantia
constitucional do direito universal à saúde e a construção institucional do Sistema Único de Saúde (SUS).
A construção do projeto da Reforma Sanitária fundou-se na noção de crise: crise do conhecimento e da prática
médica, crise do autoritarismo, crise do estado sanitário da população, crise do sistema de prestação de serviços de
saúde (FLEURY, 1988). A constituição da Saúde Coletiva, como campo do saber e espaço da prática social, foi
demarcada pela construção de uma problemática teórica fundada nas relações de determinação da saúde pela
estrutura social, tendo como conceito articulador entre teoria e prática social, a organização da prática médica,
capaz de orientar a análise conjuntural e a definição das estratégias setoriais de luta.
Partindo da análise dos processos de trabalho e do conceito-chave de organização social da prática médica, tal
movimento opera uma leitura socializante da problemática evidenciada pela crise da medicina mercantilizada, bem
como de sua ineficiência, enquanto possibilidade de organização de um sistema de saúde capaz de responder às
demandas prevalecentes, organizado de forma democrática em sua gestão e administrado com base na
racionalidade do planejamento (FLEURY, 1988, p. 196).
As decorrências dessa construção teórico-política apontam na direção da centralidade que a atuação junto ao
Estado passaria a ter como campo privilegiado de intervenção e desenvolvimento das lutas políticas. No entanto,
essa mesma concepção pode ser responsabilizada pela estruturação de um movimento social - o movimento
sanitário - que se organiza em torno de uma proposta comum desde diferentes lugares, tais como a universidade,
os sindicatos de profissionais de saúde, os movimentos populares, o Congresso Nacional.
A saúde passa então a ser vista como um objeto concreto e complexo, síntese de múltiplas determinações, cuja
definição de Arouca (1982) compreende:
• campo de necessidades geradas pelo fenômeno saúde/enfermidade;
• produção dos serviços de saúde com sua base técnico-material, seus agentes e instituições organizados para
satisfazer necessidades;
• espaço específico de circulação de mercadorias e de sua produção (empresas, equipamentos e medicamentos);
• espaço de densidade ideológica;
• espaço de hegemonia de classe, através das políticas sociais que têm que ver com a produção social;
• construção de uma potência tecnológica específica que permita solucionar problemas tanto individual como
coletivamente.
A questão política que se coloca a partir dessa análise teórica é relativa às condições necessárias ao processo de
politização e democratização da saúde. A relação entre democracia e saúde é proposta por Berlinguer (1979) ao
postular que ambos são conceitos abstratos, e, mais que isto, orientações ético-normativas. Ainda que seja
necessário reconhecer os conflitos de interesses e a oposição entre as forças conservadoras e as reformadoras,
tanto no caso da democracia quanto no da saúde, tais conflitos não podem ser reduzidos a uma polarização
classista. Por outro lado, do ponto de vista estratégico, a luta pela universalização da saúde aparece como parte
intrínseca da luta pela democracia, assim como a institucionalização da democracia aparece como condição para
garantia da saúde como direito de cidadania.
A estratégia expansionista de uma hegemonia em formação consubstancia-se na saúde através dos projetos da
Reforma Sanitária, por meio dos quais se busca a concretização de:
• reconhecimento político e institucional do Movimento Sanitário como sujeito e dirigente do processo reformador;
• ampliação da consciência sanitária de forma a possibilitar o consenso ativo dos cidadãos (usuários e profissionais)
em relação ao processo transformador no setor, bem como a natureza social das determinações que incidem sobre
o processo saúde/doença e sobre a organização do cuidado médico;
• resgate da saúde como um bem de caráter público, embora contraditoriamente limitado pelos interesses gerados
pela acumulação de capital. Por conseguinte, trata-se de expressar o caráter de bem público da saúde,
consubstanciando-o na definição de uma norma legal e do aparato institucional que visam à garantia da sua
universalização e equidade (FLEURY, 1992, p. 31).
Os fundamentos teóricos que permitem a construção da estratégia política da Reforma Sanitária foram baseados
na compreensão de Gramsci do Estado integral, este entendido tanto o Estado como sociedade política, núcleo
político administrativo e coercitivo, como também o Estado ampliado na luta pela hegemonia, o que envolve a
disputa por significados e a construção de valores consensuais na sociedade civil. A compreensão do Estado integral
pressupõe a luta pelo poder como uma transformação molecular e processual, a guerra de posições, que, sem
ignorar os conflitos e a disputa por dominação, busca avançar na construção da hegemonia, ou direção intelectual
e moral (BUCI-GLUCKSMAN, 1980; COUTINHO, 1984). Para além de uma disputa que se dá no plano moral e cultural,
a construção de hegemonia opera por meio de uma disputa institucional, tanto na sociedade civil como no seio do
aparato material do Estado, onde se cristalizam as relações de poder, visto como uma arena estratégica de
enfrentamento de projetos em conflito, segundo a concepção de Poulantzas (1977). Nesse sentido, o domínio dos
instrumentos de gestão e a criação de novas formas de gestão que permitam a inovação e a alteração de poder no
seio do aparato administrativo estatal tornam-se estratégicos.
Paim (2008) cita Heller (1986, p. 167) ao fazer a distinção entre reforma geral e reformas parciais. Enquanto a
primeira propõe a transformação de toda a sociedade mediante reformas parciais, estas últimas, desconectadas de
um projeto de reforma geral, tendem a converter-se em veículo de manipulação, pois criam a aparência de
transformação de uma ordem social, mas ficam restritas a reformas das particulares e parciais instituições
concretas. Para o mencionado autor, o projeto da RSB, ao propor a transformação da ordem social desde a saúde,
insere-se na categoria de reforma geral, ainda que sua realização seja fruto de uma relação de forças que a
caracterizou como um processo de transformismo institucional, tendo como desfecho uma reforma parcial.
Para compreender o processo da Reforma Sanitária foram levantadas as seguintes hipóteses explicativas
(FLEURY,1990):
• a adoção de uma concepção ampliada de saúde como resultante das formas de organização social da produção,
mas também fruto das lutas populares cotidianas, ambas atuando na conformação de sua concretização histórica
e singular;
• a democracia é o processo de reconhecimento dos trabalhadores como sujeito político a partir de suas lutas, em
um processo mútuo de reconhecimento (auto e hetero) identidades sociopolíticas entre diferentes sujeitos;
• a incorporação das demandas sanitárias por meio de um conjunto de dispositivos legais e institucionais,
configurando distintas cidadanias, é, ao mesmo tempo, resultante da correlação de forças existentes e elemento
ativo na conformação de identidades políticas e sociais;
• as Reformas Sanitárias quase sempre emergem em um contexto de democratização e estão associadas à
emergência das classes populares como sujeitos políticos, geralmente em aliança com setores da classe média;
• são elementos desse processo reformador: a generalização da consciência sanitária; a construção de um
paradigma analítico fundado na determinação social da saúde e da organização das práticas; o desenvolvimento de
uma nova ética profissional; a construção de um arco de alianças políticas em torno da defesa do direito à saúde; a
criação de instrumentos de gestão democrática e controle social do sistema de saúde;
• o caráter político da Reforma Sanitária será dado pela natureza das transições democráticas experimentadas em
cada contexto nacional, sejam elas transições pactuadas ou transições por colapso do autoritarismo;
• o formato e o conteúdo político da reforma provirão da confluência de pelo menos alguns fatores, tais como: o
caráter político-ideológico da coalizão que impulsiona o processo de democratização e seus embates com a coalizão
conservadora; a articulação do processo da Reforma Sanitária com as estratégias de transição à democracia;
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CADERNO DE TEXTOS
o timing da Reforma em relação ao processo de democratização; a capacidade de alterar a cultura política
prevalecente em direção à universalização dos direitos e a garantia de práticas administrativas participativas;
• a sustentabilidade do processo de reforma dependerá da capacidade de promover mudanças efetivas no nível do
controle institucional, da qualidade dos serviços e da eficácia das ações e serviços, o que garantirá a preservação
do apoio social à reforma;
• a sustentabilidade do processo reformador dependerá da redução das restrições financeiras e de ordem política
à construção de um sistema amplo de proteção social; da capacidade de transacionar os conflitos gerados pelo
próprio processo reformador; da permeabilidade da burocracia e dos profissionais de saúde às mudanças;
• as perspectivas da Reforma Sanitária derivam da capacidade apresentada pela coalizão reformadora de imprimir
mudanças efetivas e no tempo justo sobre as estruturas institucionais de forma a evitar que o Estado filtre os
aspectos racionalizadores da proposta e mine sua base política.
Em síntese, a Reforma Sanitária brasileira tomou como ponto de partida o caráter dual da saúde, entendido como
a possibilidade de ser tomada, ao mesmo tempo, como valor universal e núcleo subversivo da estrutura social.
Como valor universal, torna-se um campo especialmente privilegiado para a construção de alianças suprapartidárias
e policlassistas. Como núcleo permanentemente subversivo da estrutura social, indica uma possibilidade sempre
inacabada em um processo de construção social de uma utopia democrática.
REFORMA SANITÁRIA E SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - DILEMAS ENTRE O INSTITUINTE E O INSTITUÍDO
O movimento que impulsionou a Reforma Sanitária brasileira colocou como projeto a construção contrahegemônica de um novo patamar civilizatório, o que implica uma profunda mudança cultural, política e institucional
capaz de viabilizar a saúde como um bem público.
Os princípios que orientaram esse processo foram:
• um princípio ético-normativo que insere a saúde como parte dos direitos humanos;
• um princípio científico que: compreende a determinação social do processo saúde/doença;
• um princípio político que assume a saúde como direito universal inerente à cidadania em uma sociedade
democrática;
• um princípio sanitário que entende a proteção à saúde de forma integral, desde a promoção, passando pela ação
curativa, até a reabilitação.
No entanto, a construção do Sistema Único de Saúde, aprovado na Constituição Federal de 1988, ocorreu em um
contexto em que a disputa ideológica favoreceu amplamente o projeto neoliberal, reorganizando as relações entre
Estado e sociedade em bases distintas daquelas pressupostas por seus formuladores.
Foram retomadas as orientações liberais que propugnam por uma forte redução da presença do Estado, seja na
economia seja nas políticas sociais. Para tanto, utilizaram-se instrumentos como a privatização das empresas
estatais e mesmo de serviços sociais, a redução da pauta e/ou valor dos benefícios sociais juntamente com o
aumento das dificuldades para alcançá-los, a introdução de mecanismos da economia de mercado como a
competição gerenciada na organização dos serviços sociais, a redução do papel de provedor do Estado com a
transferência dessa competência a organizações civis lucrativas ou não.
Ainda com relação ao aparato estatal, houve uma desmontagem das carreiras profissionais e dos núcleos
produtores de conhecimento e estratégias ligados ao projeto de desenvolvimento nacional, vistos como
comprometidos com a lógica, seja populista, seja intervencionista, do modelo econômico anterior, visto como
responsável pela crise fiscal do Estado.
O predomínio da lógica de acumulação do capital financeiro teve como consequência para as economias
endividadas dos países menos desenvolvidos sua inserção como exportadores líquidos de capital por meio do
pagamento dos juros sobre a dívida pública. A política pública passou a ter como objetivo central a estabilização
monetária, mesmo quando isto implicou o abandono do crescimento econômico como consequência de uma
política de juros que promoveu uma absurda transferência de recursos desde a área produtiva para o Estado, por
meio do aumento da carga tributária e desde o Estado para o capital financeiro, por meio do pagamento dos juros
sobre a dívida e os títulos públicos.
No âmbito cultural e social, houve uma transformação que acentuou valores como o individualismo e o
consumismo, com as elites e setores das altas capas médias orientadas cada vez mais para um padrão
norteamericano de sociedade de consumo, em detrimento de valores como a solidariedade, a igualdade e a
participação cívica. O divórcio entre uma classe média alienada da realidade nacional e a população marginalizada
da globalização reflete-se, na saúde, na existência de um sistema de seguros privados e um sistema público para os
mais pobres, mas ao qual os assegurados recorrem em várias situações.
O esgarçamento de um tecido social que começara a aflorar em décadas anteriores, com a forte presença dos
movimentos sociais e a negação das expectativas solidificadas com a transição à democracia, vai ter como
consequência a ausência de mecanismos de integração social, seja por meio de um mercado de trabalho que cada
vez é mais informal, seja por políticas de proteção social que não alcançam combater a exclusão e a desigualdade,
que marginalizam setores populacionais em situação de alta periculosidade e vulnerabilidades crescentes nas
grandes cidades. O aumento e a banalização da violência passam a ser o cotidiano das grandes cidades, revelando,
paradoxalmente, a incapacidade da democracia eleitoral de gerar mecanismos de coesão social.
Na área de políticas sociais, há uma substituição do modelo corporativo, de acesso limitado e fragmentado por
setores ocupacionais, por um novo modelo que se baseia na individualização do risco. Para aqueles que podem
pagar por seus riscos sociais, há uma explosão da oferta de seguros sociais em áreas como a saúde e as
aposentadorias. Essa expansão do mercado ocorre seja com a anuência e promoção do Estado por meio de
subsídios e renúncias fiscais, seja com a ausência de uma regulamentação efetiva que possa conter os abusos e
desrespeitos aos direitos dos consumidores. Só depois de fortalecido esse mercado, seria promovida sua
regulamentação, ainda recente e precária, permitindo que os portadores de seguros sejam também usuários do
SUS, que termina funcionando como um tipo de resseguro para alguns tratamentos.
Para a população mais pobre o princípio da individualização dos riscos vai se concretizar em programas de proteção
focalizados, cujos benefícios em serviços ou transferências de renda implicam requerimentos de provas de
necessidade e cumprimento de certas condicionalidades impostas aos beneficiários. Dessa forma, a política social
passa a funcionar como mecanismos simultâneos de promoção e controle social, desvinculados da condição de
exercício de um direito social.
Na luta ideológica pela construção da saúde como um valor público há um retrocesso importante, no qual a saúde
passa a ser vista como um bem de consumo e, mais do que isto, como um modelo de consumo caracterizado pela
ausência da dor e do sofrimento, a busca inesgotável do prazer e da construção no próprio corpo de um padrão
estético de beleza a ser atingido por meio de sucessivas intervenções (das tatuagens às cirurgias plásticas, passando
pelas vitaminas e anabolizantes).
Novamente, trata-se de um modelo social que prescinde de laços sociais, em que o outro se torna objeto e não é
um sujeito que deva ser mais que tolerado, reconhecido como igual, ainda que diverso, em um processo de
comunicação na esfera pública.
Este contexto no qual o movimento da Reforma Sanitária constrói a sua institucionalidade é pois altamente
desfavorável à implementação de políticas públicas universalistas e cheio de dilemas e contradições a serem
enfrentados. No entanto, a reforma sanitária prossegue e seu curso pode ser mais bem identificado a partir dos
seus processos constitutivos.
A construção do projeto da reforma se dão por meio de três processos que, embora simultâneos, têm compassos
distintos e tais descompassos geram novas tensões e algumas complementaridades. São eles os processos de
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CADERNO DE TEXTOS
subjetivação, de constitucionalização e de institucionalização. A subjetivação diz respeito à construção de sujeitos
políticos, a constitucionalização trata da garantia de direitos sociais e a institucionalização trata do aparato
institucional - incluindo os saberes e práticas - que garante a implantação das políticas de saúde.
Touraine (1966, p. 23) designa por sujeito
"a construção do indivíduo (ou grupo) como ator, através da associação de sua liberdade afirmada com sua
experiência de vida assumida e reinterpretada. O sujeito é o esforço de transformação de uma situação vivida em
ação livre; introduz a liberdade no que aparece, em primeiro lugar, como determinantes sociais e herança cultural".
Ainda afirma que
"Um indivíduo é um sujeito se, em suas condutas, consegue associar o desejo de liberdade com a filiação a uma
cultura e o apelo à razão; portanto, um princípio de individualidade, um princípio de particularismo e um princípio
universalista" (TOURAINE, 1966, p. 28).
Nesse sentido, a primeira etapa de luta pela democracia foi também aquela em que predominou a construção de
sujeitos políticos capazes de formular e conduzir o processo da Reforma Sanitária. Se nessa fase os atores políticos
assumem um caráter de movimento social - o movimento sanitário em suas várias expressões - à medida que a
institucionalização e a constitucionalização ocorrem, novos sujeitos emergem na cena política e passam mesmo a
ter nela o predomínio.
Em outras palavras, o êxito da reforma como fruto das lutas desse ator político, movimento sanitário, vai gerar,
contraditoriamente, a superação desse caráter de movimento vindo da sociedade civil como crítica ao Estado, em
direção a atores políticos que são parte da institucionalidade estatal, tais como os secretários municipais e estaduais
de saúde, os promotores públicos, a burocracia reformadora.
Se a hipertrofia da subjetivação pode representar uma tendência seja à individualização anômica, seja ao "basismo",
a hipertrofia da constitucionalização tem como consequência a judicialização da política e a hipertrofia da
institucionalização implica a burocratização dos processos sociais (a respeito de hipertrofias, ver SANTOS, 1994).
Na fase intermediária da reforma, houve uma crescente normalização do processo de descentralização, com um
emaranhado de normas operacionais e mecanismos de repasses de recursos financeiros que terminaram por
assegurar à burocracia central a preservação de poder, mesmo que isto tenha implicado o arrefecimento da política.
No entanto, o fortalecimento de atores políticos institucionais, como os secretários de saúde, gerou tensões
crescentes no exercício do poder compartilhado, acarretando conflitos que foram trabalhados a partir das esferas
de pactuação que haviam sido institucionalizadas, tendo gerado, no momento atual, o Pacto da Saúde, que inclui
os importantes Pacto pela Vida e Pacto de Gestão (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).
A desigual distribuição de recursos e poder entre os atores tende, todavia, a favorecer sempre os grupos de gestores
e os grupos corporativos, impedindo que os ideais da reforma se concretizem e garantam a centralidade do usuário
cidadão.
Este é o maior desafio da fase atual da reforma, que implica não apenas a garantia do acesso dos usuários, mas a
reorientação das lógicas burocrática e profissional, que atualmente organizam o sistema, em direção a outra lógica
que, por ter o usuário como central ao sistema de saúde, garante seus direitos desde a humanização do acolhimento
até a eficácia e resolutibilidade do cuidado.
Finalmente, caracteriza também a fase atual de implantação do SUS a presença marcante dos atores jurídicos e até
mesmo o desenvolvimento de um ramo do direito que ficou conhecido como direito sanitário. Esta é uma
consequência da constitucionalização do direito à saúde. No entanto, como a justiça tende a entender o direito à
saúde como um direito individual e não como direito coletivo, ela age em função daqueles pacientes que, por
possuírem maior informação e maiores recursos, são capazes de acioná-la quando têm seus direitos negados. Ao
atender a essas demandas individuais, a justiça impede o planejamento das ações de saúde e, muitas vezes, canaliza
os escassos recursos para procedimentos individuais em detrimento de ações coletivas.
Nesse sentido, é preciso retomar a perspectiva de difusão da consciência sanitária, como consciência política do
direito à saúde, já que está provado que não se cria a igualdade por decreto, somente por meio da lei.
Com relação à institucionalização, o SUS operou uma reforma democrática do Estado que, mesmo tendo enfrentado
todas as pressões dos governos que adotaram um modelo de reforma distinto e que pressupunha o esvaziamento
da função estatal de provedor, conseguiu não apenas se manter, como também servir de modelo para a
reorganização de sistemas de gestão compartilhada em outras áreas (como a assistência social e a segurança
pública).
O modelo de reforma do Estado embutido na institucionalização do SUS foi sustentável tanto por ter conseguido
manter uma coalizão reformadora orgânica e atuante, como por fazer o processo avançar com base na legislação
existente, ou seja, no que ficou conhecido como "o desafio de fazer cumprir a lei". Nesse sentido, subjetivação,
institucionalização e constitucionalização funcionaram de maneira sinérgica e complementar.
O SUS pode ser visto como um modelo de republicanismo cívico por sua capacidade, juntamente a outros esforços,
de permitir o revigoramento das instituições republicanas, seja no fortalecimento do Legislativo, com a atuação
cada vez mais qualificada da Comissão da Seguridade Social e da Família e com ação suprapartidária da Frente
Parlamentar da Saúde, seja na Justiça, ao desenvolver o direito sanitário ou ainda com a organização dos
procuradores públicos que atuam na saúde (através da AMPASA), seja no Executivo, ao introduzir um modelo de
cogestão e de redes de políticas.
O SUS reorganizou o Executivo através dos seguintes instrumentos e processos:
• mecanismos de participação e controle social representados pelos Conselhos de Saúde, existentes em cada uma
das esferas governamentais, com representação paritária de membros do Estado e de membros da sociedade civil.
Os Conselhos, para além de instrumentos de controle social, externos ao aparelho de Estado, devem ser entendidos
como "componentes do aparelho estatal, onde funcionam como engrenagens institucionais com vigência e efeitos
sobre os sistemas de filtros, capazes de operar alterações nos padrões de seletividade das demandas" (CARVALHO,
1997, p. 99);
• mecanismos de formação da vontade política, as Conferências de Saúde, realizadas periodicamente, em todos os
níveis do sistema, que, em uma interação comunicativa e deliberativa, coloca todos os atores sociais em interação
em uma esfera pública de comunicação, periodicamente convocada. Além de mecanismos de aprendizagem e
reconhecimento social, essa instância fortalece a sociedade organizada que participa do processo de construção
dos lineamentos políticos mais amplos do sistema, embora sem caráter vinculativo;
• mecanismo de gestão compartilhada, negociação e pactuação entre os entes governamentais envolvidos em um
sistema descentralizado de saúde. A suposição de interesses distintos e de câmaras institucionais de negociação
dessas diferenças e de geração de pactos de gestão é uma das grandes inovações desse modelo federativo inovador
que assume a diferenciação como realidade e a igualdade como princípio político e meta institucional.
Um federalismo diferenciado pelas desigualdades sociais e regionais existentes na sociedade brasileira, mas
igualado pela criação de mecanismos de descentralização, pactuação e participação que geram novas capacidades
e poderes locais.
A criação do SUS e sua revisão periódica, de forma a enfrentar as diferenças internas e as ameaças constantes
representadas pela ausência de recursos financeiros necessários e pela crescente presença do mercado de seguros,
tem sido um desafio constante. Ainda que se possa dizer que com isto se tenha alcançado o objetivo de construir
um valor público, de tal forma que a política de saúde seja hoje mais uma questão de Estado do que de governos,
certo é que a incapacidade de transformar as práticas cotidianas que desqualificam o usuário e o destituem dos
direitos humanos ao acolhimento digno e a atenção eficaz segue sendo um desafio para a democratização da saúde.
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A incapacidade de implantar um modelo integral de atenção à saúde, de reversão da predominância do modelo
curativo para um mode-lo preventivo, a incapacidade de as melhorias na gestão do sistema gerar melhorias
correspondentes na gestão das unidades, a falta de uma renovação ética nos profissionais do sistema de saúde, a
dependência de insumos e medicamentos cujos preços e condições de produção por grandes empresas
multinacionais fogem ao controle dos Estados nacionais, e muitos outros mais, são desafios presentes no momento
atual da Reforma Sanitária.
No entanto, a ênfase atual nos aspectos legais e institucionais termina por deixar de lado a necessidade de retomar,
permanentemente, o caminho da construção dos sujeitos políticos da reforma. A formação de identidades, a
difusão da consciência sanitária, a organização em coalizões sociais em defesa de uma reforma radical são as únicas
maneiras de superar os entraves atuais e aprofundar a democratização da saúde. A subversão continua sendo poder
pensar que a democratização da saúde é uma utopia para a qual, hoje mais do que nunca, temos condições de
construir e assim transformar o Estado e a sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
AROUCA, A. S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Rio de Janeiro. Fiocruz, 2003.
[ Links ]
AROUCA, A. S. Salud en la transición. II Seminário Latinamericano de Medicina Social. Manágua, 1982.
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TEXTO 08: O SUS e a Desigualdade no Brasil
Alexandre Padilha
Às vésperas do Natal, depois de dias de internação, felizmente a modelo e apresentadora Andressa Urach recebeu
alta hospitalar, com vida e pronta para se reabilitar. Durante todos esses dias, a imprensa e as redes foram ricas em
comentar sobre a vida da modelo, sobre boatos em relação a sua saúde, sobre técnicas estéticas, sobre a ditadura
da beleza e clínicas e mais clínicas. Raras matérias traziam uma informação que surpreende a todos: depois de um
périplo por clínicas particulares sem solução definitiva, foi em um hospital 100% SUS, do Grupo Hospitalar Conceição
(um dos poucos próprios do Ministério da Saúde) que a modelo teve a sua vida salva e a saúde reabilitada. Foram
médicos e profissionais de saúde que enfrentam todas as carências que estão presentes nos hospitais públicos, que
cuidaram da complicação decorrente do procedimento estético. Mais uma vez, neste ato, garantiram a modelo o
direito de todos os 200 milhões de brasileiros: o acesso a um sistema de saúde que busca ser universal. Nem no
meu maior devaneio SUSista esperava uma manchete do tipo: "Hospital do SUS salva modelo com complicações
em procedimentos estéticos realizados em clínica privada". Ou " Ao contrário de Miami, modelo não precisou pagar
antecipadamente por vida salva em Hospital do SUS". Mas é preciso falarmos alto para que esta, uma das
contradições da relação entre dois sistemas de saúde, público e privado, não passe desapercebida. Pelo tamanho
atual dos dois sistemas no Brasil, é fundamental que as contradições sejam cada vez mais enfrentadas, sob risco de
inviabilizarmos o projeto de um sistema público universal com qualidade e reforçarmos a iniquidade também no
sistema privado. O Brasil é o único país do mundo, com mais de 100 milhões de habitantes, que busca oferecer a
sua população o acesso universal a saúde. Nem mesmo as novas Constituições da América Latina, apelidadas de
bolivarianas, foram tão ousadas:" Saúde é DIREITO de todos e DEVER do Estado". Ao mesmo tempo, temos cerca
de 50 milhões de usuários de planos de saúde médico-hospitalares (eram 30 milhões em 2003) e 70 milhões,
incluindo planos odontológicos. Os números de ambos os sistemas impressionam ministros da Saúde e investidores
de todo o mundo. O caso similar a modelo, pacientes do sistema privado recorrerem ao SUS, por falta de cobertura
ou por situação de emergência é muito mais comum do que se imagina. Desde 2011, quando assumi o Ministério
da Saúde, implantamos um conjunto de mudanças de gestão para identificar quando isso ocorre. Com elas, buscase garantir o ressarcimento do plano de saúde ao SUS, porque é dele que se deve cobrar, não do paciente. Desde
então, as operadoras são obrigadas a emitir um número de cartão SUS para todo usuário de plano, permitindo ao
Ministério este rastreamento. Você que me lê e é usuário de plano de saúde tem número de cartão SUS e talvez
não saiba. De lá para cá, foram recordes sucessivos de recuperação de recursos para o SUS: em 3 anos, mais do que
em toda história da Agência Nacional de Saúde (ANS), criada em 2000. Mas muito precisa-se avançar nessa
cobrança, e o governo Dilma prosseguiu em novas medidas em relação a isso. O motivo mais comum de internação
no SUS por detentores de planos de saúde, acreditem: parto. Recentemente, correu as redes a notícia de turista
canadense, que teve parto de urgência no Havaí e, quando voltou para casa, recebeu conta de US$2,5 milhões para
pagar. Poderia citar outros exemplos em que somos usuários do SUS sem nem reconhecermos. Desde 2001, o Brasil
é recordista mundial de transplantes em hospitais públicos. O SAMU salva vidas sem perguntar o plano ou exigir
cheque. A vigilância sanitária estabelece regras e fiscaliza a comida dos restaurantes, inclusive os chiques, de preços
estratosféricos. As mesmas analisam risco a saúde de equipamentos, medicamentos, bebidas vendidas em massa,
cosméticos e produtos de estética. O próprio uso do HIDROGEL já estava condenado pela Anvisa, evitando novos
casos como o de Andressa Urach. Estas contradições da convivência de dois sistemas públicos e privado impactam
nos maiores desafios atuais de sobrevivência do projeto SUS: o seu subfinanciamento e a iniquidade no acesso aos
serviços. E criam um ambiente, no mercado de trabalho e no complexo industrial da saúde, que influencia
fortemente outro fator decisivo para uma saúde pública humanizada: a formação e a postura dos profissionais de
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CADERNO DE TEXTOS
saúde. Há um consenso suprapartidário no Brasil: a saúde pública é subfinanciada. A divergência é como resolver
este fato. Desde o final da CPMF, que retirou R$40 bilhões anuais do orçamento do Ministério da Saude, o Brasil
investe na saúde pública em média 3 vezes per capta menos do que parceiros sul americanos como Chile, Argentina
e Uruguai; cerca de 7 a 8 vezes do que sistemas nacionais europeus recentes como Portugal e Espanha, cerca de 11
vezes menos do que o tradicional Sistema Nacional Inglês. Ao mesmo tempo, segundo dados recentes publicados
pelo IPEA, a isenção fiscal referente aos planos de saúde no Brasil chegou a cerca de R$ 18 bilhões. Ou seja, o mesmo
Estado que não garante recursos suficientes para prover um sistema público para todos, co-financia a alternativa
para uma parcela da população, que se vê obrigada a pagar valores expressivos para ter acesso a saúde. Além disso,
o mesmo Estado suporta o atendimento de vários procedimentos que de alguma forma não são cobertos pelos
planos. A incorporação tecnológica, o envelhecimento da população e o impacto dos acidentes automobilísticos e
da violência urbana nos custos dos serviços de emergência e reabilitação, transformam esta equação, já precária,
em insustentável. Não a toa, a melhoria da saúde é a primeira demanda da população e ter um plano de saúde, o
sonho da nova classe trabalhadora. No último período, dois avanços importantes do governo Dilma foram
conquistados: a regra que estabelece quanto União, estados e municípios são obrigados a investir em saúde e a
vinculação de um percentual dos recursos do pré-sal. Mas precisamos avançar sempre. As opções para o
financiamento da saúde são uma das expressões da desigualdade não tão revelada no nosso país. É mais do que
hora de todos nós, que colocamos a redução das desigualdades como centro de um projeto político, enfrentá-las.
Se não o fizermos, perderemos a capacidade de interlocução com segmentos expressivos da classe trabalhadora,
que sofre com a baixa qualidade e os custos dos sistemas públicos e privados. Temos que ir para ofensiva no diálogo
com a sociedade e explicitar que ampliar o financiamento a saúde passa, necessariamente, por inverter o sistema
tributário injusto com o qual convivemos. Não é razoável, em um país como o Brasil, que alguém, ao receber R$ 60
mil em 12 meses de trabalho, paga 27% de Imposto de Renda, enquanto alguém que receber R$ 2 milhões de
herança, praticamente não será taxado. Em países como EUA (30-40%) França (45%), Alemanha, Japão (50%) as
alíquotas para heranças seriam outras. Estudos de 1999 mostram que imposto sobre fortunas no Brasil, entre 0,8%
a 1,2%, em fortunas acima de R$ 1 milhão, renderiam uma arrecadação de cerca de 1,7% do PIB, mais do que era
obtido pela CPMF. A formação e a conduta profissional é o outro território invadido por estas relações dos dois
sistemas público e privado. A batalha do Mais Médicos, as denúncias recentes de abuso sexual e preconceito por
alunos de medicina nas faculdades e a atitude absurda de algumas lideranças condenarem a campanha antiracismo
organizada pelo Ministério da Saúde só explicitaram o arcabouço de valores que influencia a formação dos nossos
futuros profissionais, de ambos os sistemas. No cerne, há duas correias de tensão, que se alimentam mutuamente.
Por um lado, um ideário liberal de exercício da profissão, que alimenta, desde os primeiros dias de graduação, uma
não aposta em um sistema público de qualidade e o desrespeito em relação aos seus usuários: pobres, mulheres,
negros, homossexuais e "gente não diferenciada". Por outro, um mercado dinâmico e lucrativo de tecnologia,
órteses, próteses, equipamentos, fármacos, serviços, publicações, congressos que financia uma visão cada vez
ultraespecializante da formação e da atuação em saúde. Não a toa, a investigação iniciada pelo Ministério da Saúde,
em Março de 2013 que teve luz recente graças a matéria de TV, e o Mais Médicos incendiaram o debate,
questionaram paradigmas e condutas. Não há nenhum profissional de saúde no Brasil, nem aquele que se
especializou em realizar procedimentos estéticos em clínicas privadas, que não tenha dependido do SUS para se
formar. Nos meus tempos de estudante de medicina cunhamos a frase: "chega de aprender nos pobres para só
querer cuidar dos ricos" Esta realidade desafiadora nos abre uma grande oportunidade. O entendimento de que
um sistema público dessa dimensão, em um país tão desigual e diverso como o nosso, gera plataforma continental
para um amplo complexo de indústria e serviços no campo da saúde. O Brasil será mais rico e menos desigual se
pudermos articular as duas perspectivas. Não será possível sustentar um sistema público de saúde sem crescimento
econômico e para tal é necessário colocarmos os 2 pés no universo da inovação tecnológica. Ao mesmo tempo, o
complexo de indústrias e de serviços da saúde não sobrevive no Brasil se desprezar o mercado interno impulsionado
pelo acesso a um sistema público, cada vez mais tecnológico. Usar o poder de compra do estado para fortalecer um
setor econômico que gere empregos e inovação tecnológica no Brasil teve, na Saúde, a sua experiência recente
mais exitosa. Ela foi calcada de um lado na ousadia, ao estabelecer o interesse público e nacional como o rumo a
ser seguido, e previsibilidade, regras que estimulassem o setor privado a fazer este jogo de interesse para o Brasil.
Beber dessa experiência é fundamental para fortalecermos a Saúde como um impulso, e não um peso a carregar,
na agenda de desenvolvimento do Brasil.
*Alexandre Padilha, médico, 43 anos, ex-Ministro da Coordenação Política de Lula e Saúde de Dilma e candidato a
governador de SP em 2014
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TEXTO 09: Atenção Primária em Saúde Enquanto Instrumento de Luta pela
Transformação da Sociedade
Thiago Cherem Morelli - Residente de Medicina de Família e Comunidade
“Lutar pra nós é ver aquilo
que o Povo quer realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.”
O debate sobre a formação dos profissionais médicos sempre esteve bastante presente no meio acadêmico. O
Movimento Estudantil teve papel central em vários momentos, buscando modificar a base curricular dos cursos de
Medicina, como forma de aproximar a formação das necessidades do povo, em um movimento claramente contra
hegemônico. Porém, uma das grandes dificuldades diante de tantos projetos distintos é saber qual modelo de
atenção à saúde que devemos defender e como isso interfere no modelo de formação que queremos.
Muitas vezes os estudantes se organizam, ocupam os espaços dentro da Universidade, mostram-se insatisfeitos
com a sua formação, mas não sabem qual caminho seguir. Um dos fatores que dificultam o estudo sobre Educação
Médica é a falta de bibliografia com o “nosso jeito de ver saúde”. A principal referência utilizada por esse texto foi
a tese de Doutorado em Educação do Professor Luiz Roberto Agea Cutolo. Assim, pretendemos auxiliar e
instrumentalizar os estudantes sobre o debate com relação ao tema formação médica, com uma ênfase especial
para o papel da Atenção Primária em Saúde nesse processo. Os termos Atenção Primária e Atenção Básica serão
utilizados nesse texto enquanto sinônimos.
Os currículos médicos pós Diretrizes Curriculares Nacionais
Para iniciar a construção do modelo de currículo que defendemos, é sempre importante fazer uma análise do atual
currículo das faculdades de Medicina, que tipo de profissionais elas estão formando e a que interesses essa
formação serve. Um primeiro “mito” que precisa ser esclarecido é que o processo de Reformas Curriculares dos
cursos de Medicina a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais, apesar de apresentar avanços, não modificou o
paradigma da formação dos Estudantes de Medicina. Ou seja, continuamos com um Modelo Biomédico de currículo
e de atenção à saúde.
O Modelo Biomédico
Em 1910, Abraham Flexner, publica um relatório a partir de uma pesquisa sobre o ensino da Medicina, que ficou
conhecido como “Relatório Flexner”. Dentre os apontamentos para a formação médica, ele propunha que o ensino
deveria ser feito sob um pensamento cartesiano, sendo o corpo humano considerado uma máquina que pode ser
analisada através de suas peças; a doença é o mau funcionamento dos mecanismos biológicos; e o papel do médico
é consertar um defeito no funcionamento dessa máquina (CAPRA).
O Relatório é dividido em duas partes: a primeira parte, o autor trás o debate principalmente com justificativas para
a utilização de laboratórios e hospitais, nos ciclos básico e clínico, respectivamente. Nos capítulos em que aborda o
ciclo básico, chamado de laboratorial, discorre sobre os dois primeiros anos do curso médico, com as disciplinas de
anatomia, histologia, embriologia, fisiologia e bioquímica (primeiro ano). No segundo ano, farmacologia, patologia,
bacteriologia e diagnóstico físico (FLEXNER). O enfoque biologicista não é mais predominante apenas, passa e ser
único e com a concepção que a Educação Médica deve estar dissociada das preocupações sociais, pensando que os
médicos não têm controle sobre esses elementos. Segundo Cutolo:
“Nos primeiros dois anos, o diagnóstico
relaciona-se com a utilização das salas
de autópsia e experimentos,
reproduzindo as doenças em
laboratório. Estes seriam potenciais
articuladores entre as disciplinas de
funções e estrutura normais (anatomia,
fisiologia, histologia) e a clínica
desenvolvida nos hospitais. Entende-se
que os achados de autópsia e as doenças
reproduzidas de forma experimental
dariam a... “... oportunidade de
comparar os achados laboratoriais com
os sintomas apresentados pelos
pacientes assistidos no hospital.”
(FLEXNER, 1910, p. 66,).
Quanto ao Ciclo clínico, segundo Flexner, ele deve ser desenvolvido essencialmente dentro do hospital (como um
“laboratório”). Esse ciclo clínico - hospitalar inicia-se no terceiro ano com as disciplinas de obstetrícia, doenças
infecciosas, clínica médica, pediatria, cirurgia, microscopia clínica e patologia. No quarto deveriam ser estudadas as
disciplinas de cirurgia e especialidades médicas. Quinto e sexto ano: internato hospitalar. O ensino centrado no
hospital é exposto com exaustão pelo autor, onde ele apresenta as características estruturais, como número de
leitos ideal, ventilação, iluminação e instalações (CUTOLO). Essa ênfase à formação hospitalocêntrica, demandava
a construção de um local específico para o seu desenvolvimento: o Hospital Universitário. Um ambiente cada vez
mais próximo da concepção de um “laboratório de investigação biomédica e clínica, e tornando-se, a principal
instituição de transmissão do conhecimento médico”.
Segundo Cutolo: Este segundo ciclo do curso teria como propósito claro o estudo das
doenças com suas implicações clínicas. “O estudo da medicina deve ser centrado na doença de forma individual e
concreta” (FLEXNER). A atividade relativa ao doente, propriamente dita, possui duas possibilidades. Uma primeira
é junto aos leitos de enfermaria, investigando através de anamnese e exame físico os doentes institucionalizados.
Uma segunda é de volta aos laboratórios, examinando materiais como líquidos, secreções, excreções e tecidos com
objetivo de complementação diagnóstica.
O objeto de estudo passa a ser os sistemas e os órgãos isolados do corpo deste indivíduo, e não mais o indivíduo,
favorecendo a disseminação das especialidades. Toda essa nova concepção de Educação Médica, apresentava um
claro objetivo: o desenvolvimento da indústria da doença, com o seu "complexo médico-industrial" e a ênfase da
tecnologia médica diagnóstica e terapêutica (exames complementares e medicamentos).
O modelo Biomédico “entra” com grande força dentro das faculdades de medicina dos EUA, gerando inclusive o
fechamento de diversas faculdades que não se adequavam aquele padrão de formação. Ao final da década de 40
do século XX, os estudantes de Medicina não tinham quase nenhum contato com professores médicos que exerciam
a “clínica geral”, e sua formação era completamente realizada dentro de um hospital. Assim, a formação estava
mais distante do contato com as enfermidades que os indivíduos apresentavam em sua vida cotidiana. Enquanto
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mais de dois terços das queixas dos pacientes envolvem enfermidades mais prevalentes e menos graves, que não
chegam ao atendimento hospitalar, os estudantes tinham contato com doenças graves e mais raras, durante seus
estágios na graduação (CAPRA). A prevalência das doenças passava a ter uma visão distorcida dentro dos hospitais
universitários, com uma experiência reduzida dos problemas comuns em saúde, estudados distantes da
comunidade, onde o contexto social do paciente era praticamente ignorado. Os estudantes, assim, se concentram
apenas nos aspectos biológicos das doenças, considerando o Hospital o ambiente ideal para a prática da medicina
especializada e orientada pelo complexo médico industrial (hospitais, indústria farmacêutica, de exames
complementares, altamente especializado).
Um novo caminho, com um antigo conceito
Mesmo com a visão reducionista do adoecimento enquanto uma anormalidade apenas biológica e com seu
tratamento dirigido a isso, diversas lacunas nesse processo não ficaram estabelecidas. Por exemplo, embora a
medicina contribuísse para a eliminação de certas doenças, muitos pacientes ainda não se sentiam saudáveis,
ou,mesmo com um tratamento bem sucedido, aquilo não restabelecia necessariamente a saúde do paciente.
Estudos epidemiológicos começaram a demonstrar que a influência da assistência médica foi muito pequena na
diminuição das doenças infecciosas, e que este processo estava muito mais relacionado com a melhora da qualidade
de vida da população, quando as principais doenças infecciosas declinaram muito antes da descoberta dos
antibióticos ou vacinas.
Com essa concepção de Medicina era impossível explicar, por exemplo, o aumento da incidência de câncer,
diabetes, hipertensão, sem discorrer sobre as mudanças no padrão alimentar das pessoas, aumento do estresse,
poluição ambiental, agrotóxicos, sedentarismo... Da mesma forma, o profissional formado, buscando apenas a
intervenção biológica no tratamento das doenças, sentia a impotência de exigir que seu paciente realizasse exercício
físico diário, quando sua carga de trabalho diária era extenuante. O Modelo Biomédico apresentava para os
estudantes um modelo de medicina totalmente insuficiente para a assistência de saúde da população, apesar dele
tentar “esconder” essas contradições dentro dos muros dos hospitais, distante das comunidades. Trazia um
conceito de saúde muito interessante ao modelo de sociedade de exploração, com o objetivo central de “consertar”
o paciente, pra que ele voltasse ao ciclo de exploração em seu trabalho, não modificando as causas reais do seu
adoecimento. O objetivo não era curar o paciente, mas permitir que minimamente ele se mantivesse apto a
continuar no mercado de trabalho. Não se busca mais a cura, porque ela envolve modificações estruturais da
sociedade e não permite os crescentes lucros do complexo médico industrial. Ou seja, o paciente com Lesões por
Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort) vai ser manejado para o
alívio da sua dor, mas a compreensão que ele só vai obter a cura com a mudança no seu processo de trabalho (o
que envolve a interrupção da exploração), não é mais visualizada por esse estudante ou profissional da saúde, com
essa formação biomédica. E essas contradições não se limitavam ao campo dos profissionais da saúde. A própria
população sentia que apesar dos grandes avanços na ciência médica, ainda se observava uma profunda crise na
assistência à saúde.
Diante disso, um antigo conceito de saúde, hegemônico em boa parte do século XIX, retorna ao debate: a
Determinação Social do Processo Saúde Doença. Esse conceito foi a base do debate do Movimento pela Reforma
Sanitária, que nasceu da luta contra a Ditadura Militar, e que buscava a democratização da saúde, em seu conceito
mais amplo. A compreensão desse movimento era de que Saúde era muito mais do que ausência de doença, e que
estava relacionada ao acesso a moradia, a terra, a alimentação de qualidade, a educação, emprego, lazer, acesso
aos serviços de saúde... Que “saúde define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado
momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas” (8a
Conferência Nacional de Saúde). Segundo Albuquerque:
“Essa é a essência da determinação social
da saúde e da doença: a forma como se
organiza a produção de vida em sociedade
determina diferentes formas de viver,
adoecer e morrer para diferentes grupos sociais”.
Um cuidado importante é o de diferenciar esse conceito do de “Determinantes Sociais”, que esconde a verdadeira
associação entre o modelo de sociedade em que vivemos e o modo como às pessoas adoecem. Os estudos de
determinantes sociais, pautados na epidemiologia tradicional, se limitam a identificar relações entre variáveis
sociais e eventos de morbimortalidade, com uma visão bastante higienista-preventivista, que não propõe mudanças
estruturais no modelo de exploração.
A partir do avanço do Movimento pela Reforma Sanitária, e o questionamento do papel dos profissionais da saúde,
associado a essas contradições, o modelo de formação dos estudantes de Medicina passa a ser questionado com
mais força. Com a criação da Associação Brasileira de Educação médica (ABEM), em 1963, alguns professores de
Medicina passaram a ampliar o debate e reconceituar o modelo de educação médica. Os próprios estudantes de
Medicina, antes mesmo da criação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), em 1986,
já questionavam a formação médica e o papel que a medicina exercia. A partir do Encontro Científico dos Estudantes
de Medicina (ECEM) em 1976, em Maceió, os estudantes de Medicina passam a discutir Determinação Social do
Processo Saúde Doença, a estrutura do Sistema de Saúde e a formação com mais consistência e importância
(BALLAROTTI).
Com a criação em 1991 da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM), diversas
entidades passaram a debater os rumos da Educação Médica no país, com o objetivo de preparar as mudanças na
formação médica. Em 2001, são criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina.
Porém, mesmo com os processos de Reformas Curriculares, a Escola Médica continua pautada no ensino hospitalar,
biologiscista, fragmentado, utilizando metodologia de ensino verticalizada, com grande ênfase nas
especialidades,medicalização e utilização de exames complementares. Ou seja, o problema metodológico da
formação não pode ser central nesse debate. A concepção hegemônica biomédica, mesmo questionada, permanece
intocada (CUTOLO). Pensar Educação Médica dissociada do debate do Sistema de Saúde e do modelo de Sociedade,
sem contemplar o conceito de Determinação Social do Processo Saúde Doença, só vai produzir reducionismos
reformistas.
A Atenção Primária em Saúde enquanto instrumento contra hegemônico
Diante dessa análise do paradigma biomédico e da transformação do modelo de Educação Médica, um debate
bastante central é o papel da Atenção Básica no processo de formação dos estudantes de Medicina e de
transformação da Sociedade. É importante ressaltar que o conceito de Atenção Básica defendido aqui difere
substancialmente das propostas de políticas governamentais (ditadas e financiadas pelo Banco Mundial), como
“cesta básica” de saúde para a população. Essa análise Governamental parte de pressupostos econômicos, com
objetivo de redução de custos com assistência médica, e não visando a qualidade de atendimento. Eles atuam em
uma perspectiva focalizada, entendendo a Atenção Básica como um plano de saúde de baixa complexidade,
dedicada a população pobre, no sentindo de minimizar a exclusão social e econômicas decorrentes da expansão do
capitalismo.
A Atenção Primária defendida aqui, pensando na estruturação de um sistema de saúde púbico, é à base desse
sistema (não só enquanto porta de entrada, mas como eixo central). Quando é colocada como instrumento contrahegemônico na luta pela saúde e pela transformação da Sociedade, podemos analisar sob duas perspectivas:
A Luta contra o complexo médico industrial
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A primeira delas é a defesa da Atenção Primária como forma de se contrapor ao fortalecimento do complexo médico
industrial. O modelo de atenção defendido tem como direcionamentos uma clínica resolutiva e próxima da
realidade dos problemas de saúde da população. O processo de diagnóstico difere daquele de outros níveis de
atenção, sendo a frequência de testes diagnósticos e a prescrição de medicamentos definitivamente menores
(STARFIELD). O Hospital é o ambiente onde os pacientes são obrigados a tomar medicamentos, onde os médicos
solicitam muitos exames e onde o paciente não tem autonomia.
A atenção subespecializada, devido ao enfoque fisiopatológico, falta de vínculo e atribuição de queixas a
enfermidades que não estão presentes, gera solicitação de exames excessivos, diagnósticos e tratamentos
inadequados e ansiedade aos pacientes.
O valor da espera observada na Atenção Básica é maior para definir tanto os problemas apresentados, quanto para
definir alternativas de tratamento. Por exemplo, um paciente chega a Unidade Básica de Saúde com uma queixa de
odinofagia (dor de garganta). O profissional responsável examina o paciente e não encontrando sinais de infecção
bacteriana, orienta o paciente a retornar caso não ocorra melhora do quadro.
Em uma emergência, ou mesmo em um ambulatório de especialidades, a chance de esse paciente sair com a
prescrição de um antibiótico, mesmo se tratando de um caso viral, é consideravelmente maior. Essa lógica de
formação e de fortalecimento da indústria farmacêutica e de exames complementares tem gerado a expansão de
diagnósticos, com a invasão do que é considerado doença para o que antes era considerado normal (STARFIELD).
Os fatores de riscos estão sendo considerados como doenças, sendo a medicalização de estados pré-doença e de
fatores de riscos se torna cada vez mais comum, com a expansão do comércio de medicamentos para pessoas antes
consideradas saudáveis.
Com uma visão “viciada” dos seus pacientes, o médico especialista acaba sempre pensando nas doenças mais raras
e na forma de descartá-las solicitando uma série de exames complementares (boa parte deles desnecessários). Eles
apresentam uma responsabilidade aumentada com as patologias de sua especialidade. E é isso que é passado para
os estudantes, com um currículo repetitivo e que segue critérios de relevância adotados por esses especialistas. Da
mesma forma, é a formação desses médicos que abastece o sistema privado de saúde e assim, o mercado da
doença.
Assim, para o complexo médico industrial, o modelo biomédico de formação é extremamente interessante, e lutar
pela atenção básica de qualidade é lutar contra o complexo médico industrial. O que não significa que não
precisamos de bons especialistas e que o Sistema de Saúde que defendemos não precisaria de Hospitais com
estrutura adequada. Mas, colocamos o papel central aqui da Atenção Básica, como forma de contrapor o que está
colocado enquanto modelo de assistência à saúde hoje. Para a formação, Cutolo defende que a presença de
superespecialistas nas escolas médicas seja algo necessário, embora o seu campo de atuação devesse ser prioritário
nos programas de residência médica.
Proximidade com o Povo
A segunda perspectiva de concepção de Atenção Básica, parte desse espaço como cenário privilegiado para
compreender a Determinação Social do Processo Saúde Doença. O ensino e a prática hospitalares criam um “muro”,
que dificulta a visualização das diferenças de classe e suas consequentes contradições relativas à saúde e doença.
No ambiente hospitalar, os pacientes apresentam patologias graves, com risco de vida, o que passa a impressão de
que a intervenção biológica, com medicamentos e exames, seja suficiente. O ensino dentro de um Hospital
Terciário, distante da realidade social da população, esconde a relação do modelo de sociedade com o processo de
adoecimento dos indivíduos.
O ensino extra-hospitalar deve ser uma experiência sólida, prolongada e iniciada desde o início do curso. Deve ser
a base do currículo para possibilitar o aprendizado do paciente enquanto indivíduo inserido em uma sociedade.
Segundo Cutolo:
“A comunidade pode ser o centro da atividade do ponto de vista clínico; pode ser um grande “laboratório” de
pesquisas, mas, sobretudo, deve possibilitar uma visão mais clara do complexo sistema do processo saúde-doença
e permitir reflexões e mudanças dentro de seu meio.”
O estudante de Medicina e o Médico militantes Atenção Primária em Saúde Enquanto Instrumento de Luta Pela
Transformação da Sociedade
Diante dessas análises, chegamos ao ponto de apresentar um novo direcionamento: o estudante de Medicina e o
Médico militando pela transformação da sociedade dentro do ambiente de Atenção Básica. A Determinação Social
do Processo Saúde Doença vai estar presente em qualquer atendimento em saúde, porém na Atenção Básica, como
apresentado até agora, esses elementos ficam evidentes e atingem uma expressão maior. E não apenas ficam mais
evidentes para o profissional, mas também para o próprio paciente. E essa poderosa arma de transformação social
pode e deve ser utilizada. O estudante de Medicina/Médico deve considerar a determinação para além do
diagnóstico. Deve utilizar esse conceito para executar ações que incidam sobre o processo de adoecimento das
pessoas.
Vários estudos têm demonstrado a importância política, social, ideológica e econômica dos médicos. Assim, esse
profissional deve apontar ao paciente o caminho para a construção de uma sociedade mais saudável e menos
desigual do ponto de vista material. Precisamos de uma formação que leve o Médico a abandonar sua posição
histórica de curador-preventivista ou de “ser neutro” e passar a ter uma postura crítica e de liderança, coordenando
transformações sociais (CAPELLO).
Outra compreensão é que tanto essa intervenção, quanto a nossa compreensão de Atenção Básica não serão
possíveis de serem aplicadas diante de uma realidade de precarização e privatização desse modelo. Não é possível
esperar a postura transformadora de um profissional que trabalha para atender a demanda reprimida daquela
população, sem o apoio multiprofissional, sem condições básicas para realizar seu papel... Como um profissional vai
realizar esse tipo de atuação, se, trabalhando dentro de uma Organização Social ou de uma Fundação Estatal de
Direito Privado ele corre seriamente o risco de perder o emprego? Por isso a importância de nos posicionarmos
criticamente contra os projetos de precarização e privatização desse modelo de atenção à saúde.
É necessário também estimular projetos de inserção dos estudantes na rede básica, desde o início do curso, porém
não apenas isso. Esses estudantes devem receber supervisão adequada, receber assistência estudantil, ter uma
estrutura que permita o atendimento adequado para a população e que possibilite de forma satisfatória a parte
pedagógica. Devem também conhecer verdadeiramente a realidade daquela comunidade, através de visitas
domiciliares, participação e intervenção nos conselhos comunitários e conselhos locais de saúde. Experiências de
internato rural, sob essa perspectiva, devem ser estimuladas.
Ou seja, além de visualizar a relação do modelo de Sociedade com a forma como as pessoas adoecem, esse
profissional deve intervir, construir vínculos duradouros, demonstrar essa relação para os seus pacientes e mobilizar
esse indivíduo para promover mudanças sociais. O Médico deve indicar ao seu paciente algo que podemos chamar
de “Prescrição Revolucionária”, ou seja, empoderar o indivíduo sobre seu processo de adoecimento, estimulando e
construindo um processo de mudança.
Portanto não se pretende dar à escola médica e ao modelo de atenção um papel de poder que modifique a estrutura
econômica da sociedade, mas entender a contribuição que eles têm no processo de transformação desta realidade
(CUTOLO).
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 10: Tendências Atuais das Políticas de Saúde Mental no Brasil:
Começo de Uma Nova História?
Em uma rápida avaliação do processo aqui historiado, pode-se perceber que a reforma psiquiátrica brasileira tem
se apresentado, de forma geral, bem sucedida e os fatos e dados aqui apresentados demonstram que ela vem
alcançando alguns de seus objetivos, especialmente no que tange à provisão de recursos extra-hospitalares e
redução da internação asilar. Um dos êxitos da política de saúde mental atual foi ter conseguido o redirecionamento
do financiamento público e um maior controle sobre o funcionamento dos hospitais. Entretanto, os dados
discutidos apontam também para desigualdades regionais na inserção da Reforma Psiquiátrica nos estados da
federação.
Pode ser temerário afirmar que a era asilar tenha sido suplantada no Brasil, considerando que, em muitos casos, o
internamento psiquiátrico como ato de exclusão e isolamento ainda persiste em muitas localidades. O que se pode
afirmar é que a assistência à saúde mental no Brasil apresenta uma clara tendência para a perda de hegemonia
institucional do hospital psiquiátrico e aponta para uma nova convergência no modelo assistencial. Mas, o fato de
um serviço ser externo não garante sua natureza não-manicomial e sua qualidade. Uma das críticas mais
contundentes da Reforma Psiquiátrica diz respeito à identificação de certo processo de “reinstitucionalização” nas
políticas de saúde mental, que é demonstrado pela configuração de uma “CAPScização” do modelo assistencial, na
forma como os CAPS são colocados como “centro do sistema” (AMARANTE e TORRE, 2010, p. 130).
Integra ainda o processo de reforma psiquiátrica brasileira a disseminação do recurso dos psicofármacos nos
tratamentos terapêuticos, o que pode ser corroborado pelo aumento vertiginoso nos gastos de recursos federais
destinados ao pagamento de medicações “antipsicóticas atípicas”, que se amplia de 35.817 milhões, em 2002, para
263.440 milhões em 2009, valores excessivamente altos, se aproximando do custeio federal para toda a rede CAPS
no período considerado (BRASIL, 2010, p. 23). Se não se pode negar que os médicos são, de modo geral, levados a
receitar remédios (por uma série de fatores que não cabe aqui discutir), é verdade também que grande parte dos
usuários dos serviços espera do médico exatamente isso e, por vezes, identifica a boa consulta ou o bom tratamento
à prescrição de medicamentos.
Mas, mesmo considerando-se alguns possíveis exageros nessa medicalização em massa dos usuários dos serviços
de saúde mental, deve-se reconhecer a enorme importância dos psicofármacos como instrumentos terapêuticos.
Como afirma Perrusi (2010: 102-103), o uso de psicotrópicos produziu um processo de diferenciação na clientela
psiquiátrica, que não precisa mais ser identificada como reclusa no asilo, produzindo internamentos intermitentes
(com duração limitada) e possibilitando a boa parte dos pacientes o uso de serviços extra-hospitalares. Atualmente
no Brasil, assim como em muitos outros países, os serviços psiquiátricos e de atenção psicossocial são utilizados
voluntariamente pelos pacientes, identificados como “usuários”, no papel de doentes, ou seja, “num papel
reconhecido e sancionado socialmente, como qualquer outro serviço de saúde pública ou privada”, contribuindo
para minimizar o estigma da intervenção psiquiátrica. Como resultado conjunto da reforma institucional
(hospitalização do asilo + instituições extra-hospitalares), o portador do sofrimento psíquico pôde deixar de ocupar
uma linha biográfica, a carreira moral de paciente psiquiátrico, cujo resultado era a cronicidade do paciente, se
transformando em usuário.
“Assim, os estados psicóticos cronificados estão deixando de povoar os hospitais psiquiátricos e um bom número
de pacientes reencontrou o meio social, embora muitos sejam dependentes de uma assistência extra-hospitalar e
sofram de uma socialização precária. Talvez, a dependência dos serviços extra-hospitalares e da ajuda social seja a
grande contrapartida da reforma psiquiátrica” (PERRUSI, 2010, p. 103).
Atualmente, a visão do louco e da loucura como algo a ser excluído do convívio social tem sido amplamente
questionado na medida em que a proposta de desinstitucionalização vem sendo incorporada na agenda pública.
Mas, interessa saber também qual é a visão dos profissionais de saúde, da população em geral e dos familiares dos
portadores de sofrimento psíquico e como estes atuam neste processo.
Perrusi (2010, p. 103) salienta que o portador de transtorno mental, mesmo deixando de ser um recluso no asilo,
pode perseverar num estado de invalidez permanente ou sucumbir a uma exclusão social “aberta” ou outras formas
de exclusão, e até sofrer um processo de mendigação. Um dos maiores desafios da reforma psiquiátrica parecer ser
ainda a superação do estigma do “louco” como pessoa perigosa ou incapaz no imaginário social. A permanência do
estigma em relação ao portador de sofrimento psíquico pode colaborar na perpetuação da exclusão social, na
dificuldade de inserção no mercado de trabalho e na comunidade, na construção de relações afetivas e no
isolamento, muitas vezes levado a efeito pela própria família, na intenção de proteger seus membros do risco da
chacota e do escárnio social.
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 11: Lutas Sociais pela Saúde Pública no Brasil Frente aos Desafios
Contemporâneos
Marta Alves Santos
Introdução
Este artigo analisa as lutas sociais no âmbito da saúde, tendo como referência o movimento sanitário que surgiu
em meados dos anos 1970 e o movimento que ganha impulso nos anos 1990, a partir da privatização do Sistema
Único de Saúde (SUS). Para tanto, resgata a trajetória histórica da política de saúde no Brasil, como, também, as
formas de organização de luta para uma política de saúde mais equitativa.
Nesses termos, torna-se fundamental definir a categoria movimento social, e, através de suas concepções, articulála ao movimento da saúde em décadas diferentes. É relevante trazer um recorte sobre a política de saúde brasileira,
apontando considerações sobre dois momentos: antes e depois da consolidação do SUS.
O estudo está desenvolvido em três tópicos. O primeiro corresponde à discussão conceitual sobre movimento
social, baseada nos paradigmas clássicos e contemporâneos. Nessa dimensão, o segundo tópico traz uma
abordagem da política de saúde, resgatando sua história e concepções da década de 1970, com o movimento
sanitário. O último item apresenta algumas reflexões sobre a atual conjuntura e sobre o movimento contra a
privatização do Sistema Único de Saúde.
Movimento social: conceitos clássicos e contemporâneos
A gênese da categoria movimento social deu-se em 1840. Identificava o início do movimento dos trabalhadores da
Europa e desenvolveu-se no debate do marxismo para representar a organização racional da classe trabalhadora
nos sindicatos e partidos que tinham interesse em buscar a transformação socioeconômica das relações capitalistas
de produção. Até a década de 1960, a citada categoria fazia referência a qualquer tipo de reação revolucionária do
proletariado e dos sindicatos, assim como os partidos políticos comunistas representavam esse tipo de organização
(DOIMO, 1995).
No entanto, tal categoria indica uma profunda crise conceitual da temática, pois apresenta uma transmutação de
significados e concepções ao longo da história. Com as metamorfoses ocorridas no final da década de 1960, na
esfera produtiva, e a crescente institucionalização do conflito de classe nas sociedades capitalistas, ascendem
pensamentos que influenciam os parâmetros teóricos e marcam a configuração de outra forma de pensar a
categoria como: os novos movimentos sociais. Nas palavras de Doimo (1995, p. 40):
“Também a explosão dos movimentos espontâneos que sacudiram a Europa no final dos anos 1960, a
desmistificação dos regimes socialistas do Leste e a sucessiva erosão dos esquemas teóricos marxistas acabaram
por marcar a configuração de um novo tempo: o tempo dos novos movimentos sociais”.
Os novos movimentos sociais rejeitavam as expressões teóricas do liberalismo e do próprio marxismo e trouxeram
alguns eixos de debate sobre manifestações da contracultura, sobre as sequelas consequentes do capitalismo
avançado, como, também, a crítica ao consumismo e ao individualismo. Tais movimentos eliminam a centralidade
de um sujeito específico e os atores sociais são, agora, os participantes de ações coletivas.
Segundo Braz (2012), há um questionamento quanto ao potencial transformador de tais movimentos, pois
apresentam uma indefinição quanto aos caminhos possíveis para a transformação social. Essas lutas sociais são
percebidas e apresentam seu valor através de experiências vivenciadas e construídas pelos variados grupos sociais
que formam os sujeitos coletivos. O autor aponta os pensadores Castells, Lojkine e Touraine como referências no
debate sobre os novos movimentos sociais, por suas contribuições acerca da temática.
No Brasil, a categoria movimento social foi referenciada aos movimentos de reivindicações e de lutas urbanas nos
anos de 1970, limitados a determinados grupos que pressionavam o Estado a cumprir suas tarefas no campo social.
Nesse sentido, o potencial transformador dos novos movimentos sociais seria mais sociocultural do que político.
Braz (2012) afirma que, no caso brasileiro, o debate teórico sobre os novos movimentos sociais divide-se em três
fases: a fase conhecida como uma emergência de visão heróica dos movimentos sociais que se situa nos anos de
1970 e início de 1980. Outra, é a marcada pela crítica a uma análise romântica desses movimentos, compreendendo
a segunda metade dos anos de 1980. E, por fim, a última fase que se destaca no final dos anos 1980 e início dos
anos 1990 e aposta na criação de um espaço de diálogo entre os movimentos sociais com o Estado. Esta propiciou
a necessidade de superar as próprias características dos movimentos sociais, cultivadas nas décadas anteriores.
Esses movimentos no Brasil apontavam uma oposição ao Estado, buscavam assegurar a incorporação e a
consolidação dos direitos sociais, tornando-se sinônimo de movimentos urbanos. Os chamados novos movimentos
sociais apresentam-se como novas formas de participação e sinalizam uma crise do conceito originário da referida
categoria.
De acordo com Braz (2012, p. 127), “Esse período teve que enfrentar duas questões de natureza bem distintas,
ainda que complementares: por um lado, a exigência de criar uma cultura política de proposição que levasse ao
exercício da cidadania [...] e, por outro lado, a imperiosa necessidade de preservação da autonomia frente aos riscos
da cooptação inerentes ao processo de institucionalização em curso”.
As circunstâncias atuais apresentam novos desafios aos movimentos sociais que inscrevem a necessidade de
superar características advindas dos próprios movimentos de décadas anteriores, como também, de criar uma
cultura política que viabilize ações mais propositivas.
Movimento social pela saúde: movimento sanitário
Para compreendermos o movimento sanitário no Brasil e sua importância na história da política de saúde brasileira,
faz-se necessário resgatar, de forma breve, a trajetória histórica da saúde no país e o contexto que situa cada
momento de mudança da referida política. Assim, esse item procura enfocar o início da intervenção do Estado na
política de saúde brasileira, nos anos 1920 até os dias atuais.
A política de saúde no Brasil nasce atrelada à política da previdência social, vinculada à Caixa de Aposentadoria e
Pensões (CAPs). Na era Vargas (1930-1945), o governo criou o Ministério do Trabalho e elaborou uma vasta
legislação trabalhista que enquadrasse a questão social vivenciada no período. Criou, então, os Institutos de
Aposentadoria e Pensões (IAPs) organizados por categorias profissionais, garantindo a saúde aos trabalhadores
inseridos no mercado formal de trabalho: “Os direitos sociais aparecem aqui de forma particularista, obtidos através
da categoria profissional, e da ocupação exercida no âmbito do mercado, sendo a carteira de trabalho o certificado
legal da cidadania” (SIMIONATTO, 1997, p. 16).
Os IAPs, que dispunham de recursos financeiros, construíram seus próprios hospitais e introduziam, assim, os
primeiros serviços privados contratados por empresas. Caracterizava-se um investimento médico-hospitalar em
detrimento da atenção básica e, com isso, a consciência dessa questão torna-se visível no período, marcando um
impasse na política de saúde.
O governo militar, no período de 1964-1980, realiza a fusão dos IAPs com a criação do Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS). Esse fato aumentou o poder de regulação do Estado sobre a sociedade. O INPS possibilitou
o desenvolvimento do complexo médico-industrial na política de saúde: “A política de saúde no período de 1964 a
1974 desenvolve-se com base no privilegiamento do setor privado, articulada às tendências da política econômica
implantada. Suas principais características foram: a extensão da cobertura previdenciária, a ênfase na prática
médico-curativa orientada para burocratização do setor, a criação do complexo médico-industrial e a diferenciação
do atendimento a clientela” (BRAVO, 2004. p 27).
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CADERNO DE TEXTOS
Nos anos 1970, essa política enfrenta permanentes conflitos entre os interesses antagônicos apontados pelo setor
estatal, empresarial e a própria emergência do movimento social da saúde: o movimento sanitário1.
O movimento sanitário não aparece isolado do contexto histórico vivenciado nos anos de 1970 no Brasil.
Paralelamente, evidencia-se a crise do milagre econômico no país, que permitiu o surgimento no cenário político
de alguns atores sociais, como o sindicalismo operário, os trabalhadores rurais, um percentual da Igreja, alinhandose a certos grupos de trabalhadores, e, também, a outros movimentos sociais urbanos.
A dívida externa, a taxa inflacionária crescente e a recessão econômica possibilitaram desgastes para o sistema
econômico e ocasionaram a insatisfação de certos setores da média e da pequena burguesia, o que fortalecia os
movimentos sociais emergentes nesse período.
Destaca-se como um dos grandes movimentos sociais da época o da anistia, que buscou fortalecer outras correntes
políticas como o movimento feminino de anistia, o próprio movimento da Igreja Católica, organizador das
Comunidades Eclesiais de Base2, o movimento estudantil, que se organizava desde 1975, e ainda possibilitou a
realização de uma série de passeatas e protestos contra algumas regras do Estado.
Esse cenário de luta e os demais acontecimentos obrigaram o Estado a propor mudanças na política de saúde
brasileira como forma de enquadrar a questão social e canalizar as pressões populares. Modificações estas que não
deixaram de privilegiar o setor privado e os interesses empresariais. No entanto, foram necessárias que algumas
medidas, principalmente de caráter administrativo, fossem regulamentadas nesse período.
Temos, em 1974, a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, do Conselho de Desenvolvimento Social
e do Fundo de Apoio Social ao Desenvolvimento.
Outras medidas foram tomadas pós-1974, como a criação do Sistema Nacional de Saúde, em 1975.
Nesse mesmo período, as Conferências Nacionais de Saúde (CNS) concentravam-se como amplo espaço de debate.
Ocorreram, assim, a V CNS, em 1975 e a VI CNS, em 1977, que asseguravam em suas propostas, a participação da
comunidade na formulação, fiscalização e implementação da política de saúde.
Cabe salientar que as mudanças realizadas na Política Nacional de Saúde no período de 1974 a 1979 não dispunham
da participação da classe trabalhadora. Somente a partir de 1979, ocorre a incorporação de alguns sanitaristas que
buscavam fortalecer o setor público de saúde.
É nesta realidade de desmonte
dos direitos sociais e,
consequentemente, do SUS,
que se torna necessário
resgatar o protagonismo do
movimento social pela saúde
com a finalidade de superar as
propostas impostas pelas
agências internacionais do
grande capital.
O aumento do custo de vida e a crise econômica com a taxa de inflação a 200% agravam-se no país, a partir de
1979. Houve, portanto, queda das vendas, da produção e o aumento do desemprego com o arrocho salarial. O
período do governo Figueiredo (1979-1985) consolidou o aprofundamento da crise, entre 1980 e 1981, e
encaminhou o país a recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em 19823.
Esse cenário de tensão existente no Brasil desencadeou a consolidação do movimento sindical no período, pois a
oposição ao arrocho salarial e as políticas trabalhistas tornaram-se um bandeira de luta para milhares de
trabalhadores que consideravam insustentáveis as condições de vida vigentes. O sindicalismo brasileiro entre 1980
e 1984 concentrou sua luta na estabilidade do emprego e nos reajustes salariais de acordo com a inflação da época.
Tem-se ainda, em 1983, o movimento pelas eleições diretas para presidente, que envolveu milhões de
trabalhadores brasileiros insatisfeitos com o governo e teve adesão macica da sociedade4.
Esse quadro de tensão também afetava a política de saúde no Brasil, pois as medidas tomadas pelo governo não
conseguiam suprir as demandas apontadas, tais como, a unificação do preventivo e curativo e a formulação de uma
única Política Nacional de Saúde. Os movimentos sociais questionavam as distorções dessa política, desencadeando
a mobilização dos profissionais de saúde em torno de interesses coletivos.
A questão saúde e democracia ganha visibilidade e a relação entre ambas passa a ser apresentada constantemente
nas pautas dos movimentos sociais e em suas manifestações. A luta pela saúde ampliou-se e favoreceu a articulação
com outras entidades e movimentos populares. Destacavam-se, nesse período, como reivindicações das diversas
manifestações: a luta pelo saneamento, água, luz e postos de saúde; a luta pelo fortalecimento do setor público e
promoção da saúde e a luta pelas questões concretas da vida, impulsionada pelas Comunidades Eclesiais de Bases.
Esse campo de conflito propiciou o primeiro evento importante na Saúde: a VII Conferência Nacional de Saúde, em
1980, tendo como eixo central “a extensão das ações de saúde através dos serviços básicos”, que buscava
implementar um Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde e apresentava como pressupostos básicos a
extensão da cobertura, a integração dos serviços existentes dos diversos níveis de complexidade e a regionalização
do atendimento por área definida, assim como, a participação da comunidade.
Notifica-se, nesse período, uma ampliação do debate em relação à saúde que deixou de ser interesse apenas de um
determinado segmento da população para assumir uma dimensão política com vínculos estreitos ao debate da
democracia.
A situação econômica no Brasil agravou-se na época de elaboração da constituinte, pois houve o aprofundamento
da inflação e precisou novamente recorrer ao Fundo Monetário Internacional. Diante desse quadro econômico, o
movimento sindical começa a vivenciar algumas alterações com a diminuição das greves e das taxas de
sindicalizados no país. Os movimentos sociais apresentaram tendências de refluxo, caracterizado por uma
conjuntura adversa à mobilização.
A questão da saúde vivenciou avanços e recuos nesse período. Eventos relevantes ocorreram a partir de 1984, como
o seminário realizado pelas Secretarias de Saúde dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo e reuniões
de trabalho sobre as Ações Integradas de Saúde, entre outros. Esses eventos possibilitaram o V Simpósio sobre
Política Nacional de Saúde, que ocorreu em 1984, e tinha como objetivo apontar propostas e estimular o fomento
de vários fóruns de debate sobre a questão da saúde no Brasil.
As Ações Integradas de Saúde (AIS) em desenvolvimento desde 1983 viabilizaram a construção de um novo modelo
de atuar e de olhar a saúde, fundamentado na descentralização, na universalização do atendimento e na
participação comunitária.
Outro acontecimento considerado um marco histórico no que tange à política de saúde no Brasil foi a consolidação
da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, em Brasília. Contou com a participação de
quase 4.500 pessoas, dentre os quais, mil delegados a fim de discutir o rumo da saúde no país. Foi apontada nesse
evento a necessidade de reestruturar a política de saúde com a criação do Sistema Único de Saúde. Os principais
eixos discutidos foram: a saúde como direito de cidadania; a reformulação do Sistema Nacional de Saúde e o
financiamento setorial.
Após esse importante evento, o governo assumiu a bandeira da reforma sanitária, viabilizou as políticas de Ações
Integradas de Saúde e criou o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde em 1987, o SUDS. Em 1988, a
Constituição Federal integra a saúde, a previdência e a assistência social ao tripé da Política de Seguridade Social. À
saúde coube cinco artigos que juntos constituem um sistema único, pautado pelos princípios de universalidade,
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equidade, integralidade e da participação da comunidade através do controle social5, que resultou na criação do
SUS.
No entanto, o SUS foi criado em terreno adverso à sua proposta de universalidade e equidade, pois o projeto
econômico neoliberal, consolidado nos anos 1990 no Brasil, confronta-se diretamente com os princípios da reforma
sanitária, que é completamente questionada por esse projeto privatista articulado ao mercado.
O projeto privatista da saúde pauta seu discurso na política de ajuste, na contenção dos gastos públicos e na isenção
da participação popular na construção de uma política mais democrática. O discurso neoliberal aposta na
competitividade e no triunfo do individualismo6, cabendo ao Estado garantir o mínimo para atender as
comunidades mais vulneráveis.
São condições que desafiam a consolidação do SUS. Segundo Bravo (2004), identifica-se, já na década de 1990, dois
projetos em disputa nesta área: o projeto privatista e o projeto da reforma sanitária. O projeto do grande capital
defendido por agências internacionais apoia o processo de privatização e a constituição do cidadão consumidor.
Contudo, o projeto da reforma sanitária defende os princípios do SUS como a universalidade, a integralidade e a
participação social.
O projeto da saúde vinculado ao mercado e à privatização impõe ao Estado a garantia de efetivar apenas ações
mínimas na saúde, com caráter focalizado para atender o cidadão que não pode pagar pelo serviço. Essa proposta
visa o estímulo à privatização da saúde, fortalecendo um sistema para os consumidores e deixando o SUS restrito
apenas aos cidadãos pobres, por meio de programas precários e focalizados.
Movimento social pela saúde e contexto neoliberal
Como visto anteriormente, a construção do SUS é fruto da luta do movimento social, porém os anos seguintes
indicam novos rumos dessa conquista. As agências internacionais promoveram uma série de mudanças que
restringiu o papel do Estado e dificultou a consolidação legal do SUS7. Houve retrocesso nos canais de participação
e desrespeito à sociedade civil por parte do Estado, que não formulou nenhuma estratégia para alimentar uma
política descentralizada e participativa, conforme previsto nas diretrizes do sistema único de saúde.
Segundo Bravo e Menezes (2010), a política de saúde no Brasil sofre os impactos da política macroeconômica
consolidada com o questionamento da universalidade e a implantação de políticas focalizadas e precárias8.
Portanto, os desafios estão presentes para os que defendem o projeto da reforma sanitária e fazem parte do
movimento social na saúde, que, durante os anos 1990, apresentou uma postura defensiva a fim de resistir às
tentativas de mutilação dos princípios do SUS. Essa postura materializou-se em algumas conferências realizadas nos
anos seguintes, as quais buscavam fortalecer o controle social. Em 2003, destacou-se a 12ª Conferência Nacional
de Saúde, com a temática “A saúde que temos e a saúde que queremos”. Houve ainda, várias conferências temáticas
relacionadas à saúde bucal, do trabalhador, educação em saúde e à saúde indígena.
Em 2005, foi realizado o 8º Simpósio sobre a Política Nacional de Saúde, que, com a presença de mais de 800
participantes, formulou propostas de compromisso com os princípios da universalidade do acesso e a integralidade
das ações em saúde. Em 2006, foi organizado o Encontro Nacional de Conjuntura e Saúde, cujo objetivo era
fortalecer o projeto da reforma sanitária e reafirmar o debate para reconstrução de um novo campo político de
estratégias e ações que articulassem as diversas lutas na saúde.
Apesar de todos esses espaços de debate, construídos com a finalidade de afirmar o compromisso com os princípios
da reforma sanitária, a partir de 2007, surgem ideários contrários às propostas iniciadas nos meados dos anos de
1970. Assim, são criadas as Fundações Estatais de Direito Privado9, instituídas pelo poder público e sem fins
lucrativos, como proposições de enfrentamento dos mais preocupantes para os defensores do SUS.
Para compensar essas situações, foi realizada, ainda em 2007, a 13ª Conferência Nacional de Saúde, que apresentou
como tema central “Saúde e Qualidade de Vida” e buscou alimentar estratégia de participação social no
enfrentamento dos desafios postos pelo contexto atual, a fim de garantir a efetivação real do SUS.
A 13ª Conferência Nacional da Saúde marcou a rejeição da criação das Fundações Estatais do Direito Privado,
apontou para o aprofundamento de políticas universalistas e o respeito à autonomia dos conselhos de saúde em
relação ao governo. No entanto, o projeto da Fundação Estatal de Direito Privado mantém-se no Programa do
governo conhecido como “Mais Saúde”, criado em dezembro de 2007.
Com o objetivo de privatizar a saúde e neutralizar o controle social democrático, a proposta das Fundações Públicas
de Direito Privado passa a ser defendida com mais rigor em 2009, no Congresso Nacional.
Apresenta valores que desconfiguram o SUS e mutilam as conquistas adquiridas pela luta do movimento social da
saúde, longamente construídas. Nesses termos, apresenta-se a proposta do grande capital de privatizar a
previdência social e a saúde. A proposta para assistência social configura-se na focalização da pobreza, abrangendo
a população que apresenta maior vulnerabilidade social10.
O projeto do grande capital aponta a saúde não como direito universal, mas como um serviço que pode ser
comprado no âmbito do privado. A saúde torna-se mercadoria, vista como fonte de lucro e acumulação de capital.
Nesse sentido, vivencia-se um processo de privatização do SUS com os chamados novos modelos de gestão11, que
fortalecem a autonomia do mercado com abertura à iniciativa privada para os serviços de saúde.
Isto é, vivencia-se a privatização da saúde pública no Brasil.
Nessa dinâmica de privatização do SUS, surge a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde no Brasil, em maio
de 2010. Fruto das articulações dos fóruns de saúde dos estados de Alagoas, Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo, os
quais buscavam procedência de ação direta contra a lei12 que sugere as Organizações Sociais na gestão da saúde
pública. Esse movimento social apresenta como foco principal a luta em defesa da saúde pública, estatal e universal.
A Frente Nacional contra a Privatização do SUS objetiva romper com as bases do setor privado na saúde e fortalecer
os princípios da reforma sanitária. Esse movimento social possibilita a construção de espaços democráticos a fim
de resistir aos interesses do capital e, assim, enfrentar o processo de privatização da saúde. Marcou presença na
14ª Conferência Nacional de Saúde, pois confrontou as propostas das novas formas de gestão que expressam o
processo de desmonte do SUS. Nesse espaço, foi defendida a questão da ampliação do financiamento e dos recursos
para a saúde e foi exigida a imediata regulamentação da emenda que aprova 10% da receita corrente bruta para a
saúde e todos os seus níveis de atenção: básica, média e alta complexidade.
Os objetivos da Frente Nacional e dos fóruns materializam-se em desafios que surgem constantemente na luta pela
defesa da saúde pública, estatal e de qualidade e revela a importância do controle democrático nesse processo de
resistência contra as novas formas de gestão imposta pelo capital. Nesses termos, efetiva-se a capacidade que o
controle social possui para intervir na política de saúde, apresentando estratégias de fortalecimento das políticas
de democratização do SUS e, consequentemente, de resistência à privatização da saúde. Além disso, faz-se
necessário ressaltar que a participação da comunidade13 é uma das diretrizes apontadas no Sistema Único de Saúde
e sua efetivação ocorre via Conselhos e Conferências.
No entanto, notifica-se que os mencionados mecanismos de participação foram implementados num cenário de
globalização que amortece as lutas sociais e produz efeitos regressivos para a classe trabalhadora.
É nesse contexto adverso à ampliação e efetivação dos direitos sociais que os mecanismos de controle democrático
necessitam ganhar visibilidade a fim de criar estratégias de resistências à mercantilização da saúde pública, estatal
e de qualidade.
Torna-se essencial, portanto, reconhecer que os fóruns de saúde e a Frente Nacional contra a Privatização
inscrevem-se como novas formas de controle democrático, que agregam os movimentos sociais, com a finalidade
de garantir o processo de construção e consolidação completa do SUS, impedindo os interesses do grande capital,
o qual não mede esforços para mercantilizar a saúde pública.
Considerações finais
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CADERNO DE TEXTOS
A redefinição do papel do Estado, via formação de um Estado mínimo, e a autonomia do mercado perante a
sociedade capitalista indicam um cenário de globalização, de precarização e focalização das políticas sociais, de
novos mecanismos de gestão do trabalho e também da fragilização dos espaços de participação democrática.
Essa nova dinâmica de acumulação do capital vem provocando a ampliação da miséria e a consolidação da cultura
do consumo exagerado. Como apresenta Mota (1995), vivenciamos assim, a formação de dois tipos de cidadãos: o
cidadão consumidor e o cidadão pobre.
Esse fato reitera a noção de política social específica para os pobres: a assistência social. A política de saúde junto
à previdência social é direcionada ao cidadão consumidor, via processo de mercantilização. Constata-se, portanto,
a concretização de uma cultura privatista da Seguridade Social brasileira.
O direito à saúde (como os outros direitos sociais) vem sofrendo, de alguma forma, ataques do capital, seja pela
privatização, seja pela focalização e precarização dessas políticas. Mota (1995) assinala que o objetivo do capital é
privatizar e assistencializar a Seguridade Social.
O contexto atual indica desafios para a real efetivação do SUS, pois permite assistir a disputa entre dois grandes
projetos antagônicos na saúde. O privatista, que aposta na saúde como fonte de lucro e o da reforma sanitária, que
apresenta a saúde como direito social de caráter universal e estatal.
É nesta realidade de desmonte dos direitos sociais e, consequentemente, do SUS, que se torna necessário resgatar
o protagonismo do movimento social pela saúde com a finalidade de superar as propostas impostas pelas agências
internacionais do grande capital. Para tanto, torna-se relevante construir uma vontade coletiva de mobilização pela
saúde, que busque democratizar a consciência sanitária (compreendida como interesse da comunidade e direito
social) e que aposte na transformação da sociedade.
Referências
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______. Presidência da República. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8142.htm> . Acesso em: 12 jan. 2013.
______. Presidência da República. Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
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anos 1980 e 1990. São Paulo: Cortez, 1995.
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TEXTO 12: Participação e Controle Social na Garantia dos Direitos Humanos
Em nossa história política, a participação e o controle social têm adquirido significados distintos na luta pela
concretização dos direitos de cidadania. Como direito e prática política, tais conceitos possuem relação de
interdependência, embora, para fins didáticos, serão abordados distintamente.
Controle Social
Apresentaremos duas formas de abordagem do conceito de controle social. O primeiro, exercido pelo Estado sobre
os indivíduos e grupos. Historicamente assumiu várias modalidades e conteúdos, considerando as especificidades
dos modos de produção e os regimes políticos. A história ocidental exemplifica como “Controle Social” o exercício
do Estado nas suas funções clássicas de dominação. O segundo, refere-se à participação social na elaboração e
fiscalização de políticas públicas em contextos democráticos. O controle do Estado sobre os indivíduos ocorre tanto
por mecanismos jurídicos e políticos quanto por processos culturais e educativos. Dos castigos, dos mitos e dos
processos de socialização até a justiça e a segurança, atravessam dispositivos de controle do Estado. Enquanto em
um contexto autoritário, observa-se a redução da participação e o aumento de mecanismos de controle, em regime
democrático, o processo se inverte. No caso atual do Brasil, a Constituição de 1988 assegura juridicamente a
participação e o controle social como mecanismos de democratização dos direitos civis e políticos. Nesse sentido,
o termo controle social está intrinsecamente articulado a democracia representativa, que assegura mecanismos de
participação da população na formulação, deliberação e fiscalização das políticas públicas. Conferências e
Conselhos, por exemplo, são formas de participação social e mecanismos conquistados para exercer o controle
social.
Participação
Participação pode ser compreendida como um processo no qual homens e mulheres se descobrem como sujeitos
políticos, exercendo os direitos políticos, ou seja, uma prática que está diretamente relacionada à consciência dos
cidadãos e cidadãs, ao exercício de cidadania, às possibilidades de contribuir com processos de mudanças e
conquistas. O resultado do usufruto do direito à participação deve, portanto, estar relacionado ao poder
conquistado, à consciência adquirida, ao lugar onde se exerce e ao poder atribuído a esta participação.
“A participação é requisito de realização do próprio ser humano e para seu desenvolvimento social requer
participação nas definições e decisões da vida social.” (SOUZA, 1991, p. 83). A participação sempre esteve
comprometida com aquilo que Marx e Engels apontam como pressupostos da existência humana: “o primeiro
pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens e mulheres devem estar
em condições de viver para poder fazer história. E para viver é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação,
vestir-se e algumas coisas mais”.2
Vamos fazer uma rápida viagem pela realidade sóciopolítica brasileira no último século e verificar três formas
básicas de compreender a participação que se fizeram presentes.
A participação comunitária – surge no início do século XX, compondo a ideologia e a prática dos centros
comunitários norte-americanos. Nesse contexto, “comunidade” significa “agrupamento de pessoas que coabitam
em um mesmo meio ambiente, ou seja, compartilham o que se deveria chamar de condições ecológicas de
existência, independente dos fatores estruturais ou conjunturais que lhes dão origem” (CARVALHO, 1995 p.16). No
Brasil desenvolvimentista dos anos 50, as contradições geradas pelo crescimento econômico tornaram-se cada vez
mais evidentes: aumento da inflação, arrocho salarial, movimentos reivindicatórios da classe operária por melhores
condições de vida e trabalho, entre outros. Por outro lado, o processo de industrialização neste período, exigia uma
nova estrutura do mercado de trabalho, uma política de modernização, com ênfase na formação técnica e
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CADERNO DE TEXTOS
profissional competente e na especialização da mão-de-obra. Nesse cenário, a participação consistia em envolver
as comunidades na realização de atividades em que o trabalho da população teria uma direção desejável para o
sistema, quer dizer, deixava intocada a estrutura de classes e as relações de produção e de dominação. Nas décadas
de 1950 e 1960, a participação comunitária foi utilizada como dispositivo de controle do Estado em relação aos
aglomerados urbanos, como mecanismo de controle social. A medida em que o modelo neoliberal colocou
exigências para o Estado, no sentido de reduzir a sua participação na garantia dos direitos e responsabilidades
sociais, ocorreu a reedição das antigas práticas de colaboração da sociedade na execução das políticas sociais por
meio do voluntariado com apelo à solidariedade dos cidadãos.3
A participação popular – significa a crítica e a radicalização das práticas políticas opositoras ao sistema dominante
face ao agravamento das desigualdades sociais. Surge ao final da década de 1960 e se firma na década de 1970,
com a entrada dos novos movimentos sociais, fundamentais para o processo de redemocratização da sociedade e
do Estado brasileiro. No período da ditadura militar em 1964, a participação popular caracterizou-se como
estratégia da oposição e expressou a reação da população no regime ditatorial existente naquele momento.
Este período recente da história política brasileira, entre 1964 e 1984, como disse Chico Buarque, foi “uma página
infeliz de nossa história”.4 Denominado de “os anos do terror”, o golpe militar inaugurou, em 31 de março de 1964,
o período da Ditadura Militar, também conhecido como os anos de chumbo: colocou, por um lado, as lutas políticas
na clandestinidade, e por outro, aprofundou a política da arbitrariedade, usurpou as liberdades, prendeu, torturou
e matou centenas de militantes que se dedicavam à causa da defesa e da promoção dos direitos sociais, políticos e
econômicos. Foi o período dos atos de exceção, quando o controle era exclusivo do Estado sobre a sociedade. Os
direitos políticos foram suspensos. Em contrapartida, é desta época o surgimento de novos movimentos sociais na
luta por melhores condições de vida. Aqui, a categoria “comunidade” é substituída pela categoria “povo” que
significa, de acordo com Carvalho (1995 p.21), um determinado segmento da população excluído, marginalizado ou
subalternizado no seu acesso aos bens e aos serviços essenciais.
Trata-se de uma população excluída social, econômica e politicamente das decisões do Estado.
Apesar do terror do Estado e da ausência de democracia, os movimentos sociais resistiram e continuaram as lutas
por liberdade e por democracia.
Vários movimentos e organizações surgiram na década de 1970, em atos de resistência ao terror do Estado, em
defesa da redemocratização do País e de melhores condições de vida, como:
• O movimento contra a alta do custo de vida, liderado especialmente pelas mulheres nas periferias, com o apoio
das organizações eclesiais de base.
• O movimento pela anistia dos presos e exilados políticos, a Comissão de Justiça e Paz da arquidiocese de São
Paulo.
• No final da década de 1970, o movimento dos trabalhadores por melhores salários e contra o desemprego,
culminou com as grandes mobilizações do movimento sindical no ABC (região em volta da cidade de São Paulo
formada pelas cidades de Santo André, São Bernardo e São Caetano) o surgimento de lideranças dos trabalhadores.
A saturação da política repressiva do Estado e da ditadura militar, por um lado, e a mobilização contra a ditadura e
por liberdade política, de outro, provocou o chamado processo de abertura, que teve nas mobilizações pelas
eleições diretas para presidente da república o seu marco político.
A ditadura militar instituiu o processo de eleição indireta, por meio de um colégio eleitoral onde apenas os
deputados e senadores podiam votar no candidato a presidente da república. A campanha por eleições diretas,
conhecida como campanha pelas “Diretas Já” foi responsável pela mobilização de milhões de pessoas que foram
para as ruas e praças manifestarem-se a favor da eleição direta para presidente da república. A campanha foi
derrotada na votação histórica que manteve o colégio eleitoral, mas foi vitoriosa à medida que Tancredo Neves, em
1985, foi o último presidente eleito de forma indireta. O povo foi às ruas e resgatou seu direito a votar para
presidente e representantes em todos os níveis.
A participação social – é a nova modalidade de participação instituída na década de 1980, cuja categoria central
não é mais “comunidade”, nem “povo”, mas a “sociedade”. A participação da sociedade organizada ocorreu em
todos os níveis de pressão por liberdade e democracia. Nas manifestações de rua, na organização de agrupamentos
sociais, nas eleições, na organização dos trabalhadores urbanos e rurais, na organização e luta das mulheres contra
a discriminação e pela conquista de direitos, dos negros, dos estudantes, enfim, do empresariado, dos políticos, nas
mais variadas formas de manifestações. O processo de abertura abriu espaço para uma diversidade de interesses e
de projetos colocados na arena social e política. Teve sua sustentação na grande mobilização pelas “Diretas Já” e
na mobilização social dos diversos segmentos da sociedade civil organizada por inclusão, ampliação e
universalização dos direitos no processo Constituinte.
A década de 1980 foi, portanto, marcada por grandes mobilizações e profundas modificações na democratização
do País. Isto gerou conquistas e uma delas foi a criação, em 1983, do primeiro conselho da condição feminina, no
âmbito estadual, em São Paulo que estimulou a criação de órgãos similares em todo o País, até mesmo no âmbito
nacional. Estes conselhos foram espaços de conquista de cidadania, de participação e de controle social. No entanto,
tinham caráter apenas consultivo e, em alguns casos, de assessoria às políticas públicas para enfrentamento da
discriminação praticada contra as mulheres.
O poder centralizado desde 1930, deu lugar ao processo de participação, descentralização e redesenho do Pacto
Federativo aprovados na Constituição Federal de 1988, que desenhou a unidade nacional com as subnacionais, com
repasse de recursos e autonomia decisória para Estados e municípios, dando novo significado ao controle social e
à participação da sociedade civil nas decisões políticas.
Com a nova Constituição, os mecanismos de participação e de representação institucionalizam-se e os órgãos com
esta finalidade passam a ser não mais espaços de consulta, mas normativos, definidores de parâmetros e
deliberadores de políticas. É o que veremos em nossa próxima aula, que abordará o tema: “A constituição de 1988,
a democracia participativa e o surgimento dos conselhos”.
Referências:
SOUZA, Rodriane de Oliveira. (Participação e controle social). In: SALES, Mione Apolinário; MATOS, Maurílio Castro; LEAL, Maria Cristina (Org.). Política social, família e juventude: uma
questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 167-187.
SOUZA, Maria Luiza. Desenvolvimento de comunidade e participação. 3o ed. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1996.
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 13: Equidade só no Papel? Formas de Preconceito no Sistema Único de Saúde e o
Princípio da Equidade
Roberta Andrea et.al.
Introdução
A equidade no acesso às ações e aos serviços de saúde traduz o debate atual relativo á igualdade, prevista no texto
legal, justificando a prioridade na oferta de ações e serviços às populações mais vulneráveis aos riscos de adoecer
e morrer em decorrência da desigualdade na distribuição de renda, bens e serviços (Campos et al., 2006).
Dessa forma, é incluído na lógica do Sistema Único de Saúde (SUS) o princípio da discriminação positiva, buscando
assegurar prioridade no acesso às ações e serviços de saúde aos grupos excluídos, considerando as desigualdades
de condições decorrentes da organização social (Campos et al.,2006).
Estas, por sua vez, se dão pela própria sociedade que na busca de critérios para atribuir papéis sociais, se vale de
diferenças naturais como as de sexo, raça, força, estatura, inteligência, fecundidade, entre outras, transformandoas em desigualdades sociais, que se transpõe para o âmbito da saúde (Silva & Barros, 2002).
Junto ao cenário da desigualdade social vem à tona a manifestação do preconceito, que implica em inúmeras
complicações, não somente ao alvo, mas também ao preconceituoso, opondo-se aos princípios do SUS, que
determina o acesso à saúde como direito de todos, uma vez que impelem os indivíduos que sofrem preconceito a
se privarem desse direito pelo próprio medo/receio de serem submetidos a situações que os exponham como
inaceitáveis dentro dos moldes da sociedade padronizada como “ideal”.
Acaba-se por ferir, assim, principalmente, a equidade, uma vez que não se reconhece a diferença do outro, mas sim
a condena e exclui. Isto, na área da saúde, além de transgredir questões éticas, fomenta constantes discussões para
abordar estratégias para a diminuição dessas práticas.
Neste trabalho, abordaremos formas e práticas de preconceito ocorridas no acesso aos serviços de saúde e seu
impacto na concretização da equidade.
Objetivo
Discutir o princípio de equidade do SUS em relação ao preconceito, a partir de exemplos de situações de preconceito
de profissionais da saúde para com usuários do sistema.
Metodologia
Trata-se de uma revisão retrospectiva de artigos científicos e outros materiais publicados a partir de 1996, cuja
busca foi realizada em estudos indexados nas bases de dados na coleção Scientific Eletronic Library OnLine (SCIELO),
Centro de Informação e Referência em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP (CIR), Biblioteca Padre
Inocente Radrizzani e Núcleo de Documentação e Informação do Instituto de Saúde. Para a localização das obras
foram utilizados os seguintes descritores: preconceito, equidade em saúde, sistema único de saúde. Para refinar a
busca a essas combinações foram acrescidos outros termos pertinentes: preconceito, discriminação e acesso aos
serviços de saúde.
A partir da identificação dos títulos e resumos dos periódicos on-line, foi realizada a seleção dos materiais que
preencheram os critérios para sua inclusão, logo esses foram obtidos integralmente para leitura. Os critérios de
inclusão foram: publicações disponíveis on-line, redigidas em português, no período de 1996 a 2009 que tratavam
do preconceito vivenciado por usuários do SUS.
Equidade, preconceito e alienação
O SUS, criado pela Constituição de 1988, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da
saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências, através da lei nº.
8.080, de 19 de setembro de 1990. Cujo atendimento aos cidadãos é assegurado pelos princípios de universalidade,
integralidade e equidade.
O princípio de equidade diz respeito à adaptação da regra para situações especiais, para que se torne mais justa e
igualitária. É moldar a norma, para que seja sensível às peculiaridades de cada situação, ou seja, populações
vulneráveis pelo processo de exclusão social e cultural a que foram submetidas, devem ter garantido o atendimento
adequado à situação, a fim de se reduzir essa vulnerabilidade.
O preconceito diz mais do preconceituoso do que do alvo do preconceito (Crochik, 1997), é um tipo de acontecer
que pode desequilibrar a equidade. De acordo com o autor, os estereótipos culturais são roupagens que revestem
os objetos, e como o indivíduo é produto da cultura, este se apropria destes estereótipos e os modifica de acordo
com suas necessidades.
A prática humana de julgar que nossa consciência sabe e pode tudo, faz e pensa o que quer é determinada pelo
inconsciente, e ignoramos esta determinação (Chauí, 2001). Da mesma forma que na existência social, os seres
humanos julgam saber o que é sociedade, atribuem a Deus ou a Natureza a sua criação, se colocando como
instrumento dela, temos a alienação intelectual tripla em que: Primeiro, esquecem ou ignoram que suas ideias estão
ligadas às opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem... segundo esquecem ou ignoram que as ideias são
produzidas por eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram gravadas na própria realidade
e que eles apenas as descobrem e descrevem sob forma de teorias gerais... Terceiro, esquecendo ou ignorando a
origem social das ideias e seu próprio trabalho para criá-las, acreditam que as ideias existem em si e por si mesmas,
criam a realidade e a controlam, dirigem e dominam... As ideias se tornam separadas de seus autores, externas a
eles, transcendentes a eles: tornam-se um outro (Chauí, 2001, p. 173).
Preconceito e discriminação no SUS
a) Na atenção à saúde da mulher negra
A evidência da discriminação de populações negras nas unidades de saúde é revelada por Kalckmann et al. (2007),
que em sua análise os profissionais através da discriminação aumentam a vulnerabilidade desse grupo, criando uma
barreira ao acesso, afastando o usuário. O impacto disso reflete na invisibilidade das doenças mais prevalentes no
grupo, que interfere nos perfis de adoecimento e morte entre brancos e negros.
Este estudo contou com a análise de questionário entregue aos participantes do 2º Seminário de Saúde da
População Negra do Estado de São Paulo, em 17 de Maio de 2005. De 240 questionários devolvidos respondidos,
43,3% responderam que já perceberam alguma discriminação racial nos serviços de saúde. Destes, 60% referiram
ser de cor preta, 44,2% de cor branca e 40,8% de cor parda.
Santos, Guimarães e Araújo (2007) numa pesquisa da caracterização das desigualdades raciais ante a mortalidade
de mulheres adultas negras e brancas, residentes em Recife, capital de Pernambuco, entre 2001 e 2003 analisaram
que entre 2943 óbitos, 65,4% foram de negras e 34,6% foram de brancas.
Em todas as faixas etárias estudadas (20 a 59 anos), os autores apontaram que o risco de morte foi maior entre
negras do que em brancas. No caso de óbitos hospitalares, em estabelecimentos do SUS, a ocorrência prevaleceu
entre as mulheres negras, apontando uma forte relação entre pertencer à população negra e não possuir plano de
saúde. Enquanto nos estabelecimentos exclusivamente privados, identificou-se situação inversa, de mortalidade
proporcional mais elevada entre as brancas.
“A identificação de maiores coeficientes de mortalidade em mulheres adultas negras, com risco de morte quase
duas vezes superior ao observado para mulheres brancas, evidencia a dimensão do legado do passado escravista
da população negra, que produziu desigualdades resultantes do racismo e da discriminação racial” (Santos,
Guimarães & Araújo, 2007, p. 95).As formas de discriminação ao público feminino em relação a assistência à saúde,
pelos estudos encontrados, se referiram principalmente à assistência ao pré-natal e ao parto, cujas ações são
marcadas pela discriminação sobretudo por fatores educacionais e raciais.
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CADERNO DE TEXTOS
O desfavorecimento de mulheres de cor de pele negra e parda com menor nível de escolaridade (até o ensino médio
incompleto), em relação às mulheres brancas, durante a assistência ao pré-natal e ao parto no período de 1999 a
2001 em hospitais do município do Rio de Janeiro, revelado por Leal, Gama e Cunha (2005) tem relação direta com
a prevalência de gestações na adolescência entre as negras, que reflete no seu pior desenvolvimento nas esferas
sociais, a contar pela evasão escolar, déficit na qualificação profissional e dificuldade de entrada no mercado de
trabalho.
O acesso ao pré-natal adequado foi identificado por este estudo como elemento marcante de desigualdade, em
que menos de um quinto das mulheres negras pesquisadas com nível de instrução até o ensino médio incompleto
tiveram acesso, e a mesma tendência ocorreu entre as mulheres com ensino médio completo e mais, cujo pré-natal
adequado não cobriu metade das participantes. Convém lembrar que o Ministério da Saúde (2005a), através do
Manual de Pré Natal e Puerpério: Atenção Qualificada e Humanizada, estabelece como seis o número mínimo de
consultas de prénatal.
Além disso, foi revelada a dificuldade entre as mulheres em conseguir atendimento na hora do parto, em que quase
um terço das pardas e negras não conseguiu atendimento no primeiro local procurado revelando a falta de
acolhimento e ausência de planejamento para a assistência ao nascimento no município do estudo. Entre as negras,
o nível de instrução não se mostrou como diferencial, foram as mais penalizadas durante o parto vaginal, por em
maior proporção não terem recebido anestesia ao comparar-se com as mulheres brancas. Esse padrão de
peregrinação em busca do local de parto pelas mulheres e a pior assistência no pré-natal e durante o parto é
reforçado por Kalckmann et al. (2007).
Ambos os estudos comentados foram realizados antes da implantação pelo Ministério da Saúde (2004a), da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, cujo objetivo é a incorporação num enfoque de gênero, a
integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores, com base nos dados epidemiológicos e nas
reivindicações dos vários segmentos da população, incluindo as mulheres indígenas, presidiárias, vítimas de
violência, negras e trabalhadoras rurais. Essa política de forma geral reforça a necessidade de formas de
relacionamento entre os profissionais de saúde e suas usuárias, baseado no respeito mútuo para a integralidade da
assistência.
b) Na atenção à saúde de pessoas com HIV/Aids
O Programa Estratégico de Ações Afirmativas: População Negra e Aids, publicado pelo Ministério da Saúde (2005b)
afirma que apesar de no Brasil a epidemia de Aids apresentar tendência de estabilização, o número de casos vem
aumentando entre a população mais pobre, representando uma preocupação na saúde pública.
No Brasil o primeiro caso clínico de Aids ocorreu em 1983, com identificação restrita aos grandes centros urbanos
dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. O perfil epidemiológico nessa época caracterizado principalmente por
pacientes do sexo masculino, alto nível socioeconômico e com transmissão de caráter homossexual/bissexual
sofreu progressiva mudança ao final dos anos 80, com o acometimento de heterossexuais, mulheres, pessoas de
baixa renda e a disseminação da doença no país, em cidades de médio e pequeno porte (Sadala & Marques, 2006).
Este impacto foi semelhante ao observado nos países desenvolvidos, em que desde o início houve grande
mobilização a favor da prevenção, dos direitos dos pacientes e familiares, do acesso ao tratamento como
responsabilidade do estado e particularmente da luta contra o preconceito (Sadala & Marques, 2006).
Nesse sentido em 1996, o Brasil inaugurou o acesso aos medicamentos antirretrovirais na rede pública de saúde,
contrariando as recomendações do Banco Mundial, Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Orgazinación
Panamericana de la Salud (OPS) de que os países pobres devem investir os recursos na prevenção de novos casos e
não no tratamento (Ramos, 2004).
Entretanto, apesar do apelo de programas e ações, ainda existe um grande estigma e preconceito no atendimento
destes pacientes e, que acordo com Garcia e Koyama (2008), a discriminação associada ao HIV/Aids pode não
apenas dificultar/reduzir a procura pela realização do teste, mas também a busca de tratamento adequado nos
serviços de saúde após confirmação do resultado. “Conflitos relacionados com medo e preconceito têm sido e
continuarão sendo o principal problema na provisão de cuidados de saúde associados com HIV” (Tillett &
Matsoukas, citados por Acurcio & Guimarães, 1996, p. 38).
Sadala e Marques (2006), numa pesquisa com profissionais da saúde com abordagem sobre as experiências no
cuidado de pessoas com HIV/Aids, obteve depoimentos, como o demonstrado abaixo, que reflete na persistência
do preconceito despropositado por profissionais nos serviços de saúde.
“Nós temos percebido, na minha vivência, ainda preconceito, estigma e, dependendo da orientação sexual do
paciente, ainda se percebe muitas vezes funcionários fazendo comentários ‘ah, aquele lá é usuário de drogas’,
‘aquele lá é homossexual’, como se ele tivesse ido procurar o HIV” (P4 citado por Sadala & Marques, 2006).
c) Na atenção à saúde de usuários de álcool e drogas
Os serviços de saúde no Brasil apresentam relevante atraso na atenção à saúde de usuários de álcool e drogas,
como afirmam Machado e Miranda (2007), que a responsabilidade de intervenções nesta área surgiu no início do
século XX através de um aparato jurídico-institucional, com intuito de controlar o uso e comércio de drogas a fim
de preservar a segurança e saúde pública do país.
Até a década de 80 o Brasil não dispunha de dados epidemiológicos consistentes em relação ao uso de drogas,
apesar da existência do Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), órgão normativo que contava com
representantes de diversas áreas como: educação, segurança e até saúde segundo Machado e Miranda (2007). O
início dessas pesquisas no campo da saúde se iniciou em 1987 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas (CEBRID), que integrava o departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo
(Moraes, 2008).
Apesar do caráter repressivo e normativo, o CONFEN elaborou dois documentos que visavam ampliar sua atuação:
em 1988 foi criada a Política Nacional na Questão de Drogas, que reconhecia a necessidade de locais de referência
para prevenção e tratamento desses indivíduos e, em 1996, o documento denominado Programa Nacional
Antidrogas que, além de abordar itens anteriormente discutidos como necessidade de tratamento, manifestou
preocupação em relação ao aumento de casos de HIV entre usuário de drogas injetáveis, necessidade de aumentar
a capacitação de recursos humanos e estimular ações filantrópicas. Porém, todo encargo de efetivar e fiscalizar
essas ações, ficavam para a então denominada Secretaria de Planejamento das Ações de Segurança Pública e ao
Departamento de Entorpecentes, não havendo assim nenhuma articulação com políticas de saúde, tanto em 1988
com o então recém implementado SUS, quanto em 1996 com quase uma década de sua implantação (Machado &
Miranda, 2007).
Após sete anos, em 2003 foi implantada a atual Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas
(Ministério da Saúde, 2004b), que propõe assumir de modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar e
reabilitar os usuários de álcool e outras drogas como um problema de saúde pública.
As consequências desta secular dissociação são até hoje sentidas nos serviços de saúde por profissionais e usuários,
e se destaca pela falta de capacitação, que como Lima et al. (2007) abordou, os profissionais sentem dificuldades
em identificar e compreender os problemas relacionados ao vício.
As principais queixas relatadas pelos profissionais de saúde em relação aos usuários, neste estudo, foram: tumulto
causado pelos usuários e falta de adesão ao tratamento. Relatam ainda que, eles próprios possuem dificuldades em
lidar com os pacientes e acreditam que as questões envolvidas com o fator droga fogem de suas atribuições, se
encarregando apenas de funções técnicas, principalmente nos casos de HIV/AIDS. Somado aos problemas
apontados há o déficit de conhecimento dos profissionais sobre as políticas de saúde, como a de redução de danos,
que ainda gera controvérsia entre os profissionais, apesar de sua eficiência (Almeida, 2003).
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VER-SUS – VALE DO SÃO FRANCISCO
VERÃO 2016
CADERNO DE TEXTOS
A partir dos elementos estudados, pode-se fazer uma relação do atraso histórico com que a questão do conturbado
acesso do usuário de álcool e drogas ao sistema de saúde, entretanto, fatores como valores e ideologias mostramse importantes na relação profissional e usuário, uma vez que esta é uma das formas de manifestação do princípio
de equidade.
d) Na atenção à saúde da população idosa
No trabalho realizado por Berzins (2009), num serviço de emergência do SUS, constatou-se os maus tratos
dispensados aos idosos assistidos no local, e que algumas práticas de atendimento beiraram a violência. Os
participantes da pesquisa foram funcionários dessa unidade, que em razão de estarem como sujeitos do estudo
preferiram culpar o colega ou até mesmo a instituição, a perceber a realidade.
Eis alguns exemplos de situações que foram apontadas como prejudiciais no atendimento ao idoso: (1)
peregrinação: fazendo-os caminhar excessivamente até o local correto; (2) falta de escuta; (3) frieza, rispidez, falta
de atendimento, negligência; (4) maus tratos motivados por discriminação quando a questão é a idade; (5)
detrimento das necessidades e direitos do usuário; (6) proibição ou obrigatoriedade de acompanhantes com
horários rígidos e restritos.
Nessa ótica, os funcionários veem a velhice como uma coisa ruim, uma situação que não desejam a si próprios e os
discriminados por sua vez, não reclamam do mau atendimento por medo de não serem atendidos.
Discussão
A equidade em saúde refere-se à redução das diferenças consideradas desnecessárias, evitáveis, além de serem
consideradas injustas (Viana, Fausto & Lima, 2003). Nesse sentido todos os estudos caracterizaram uma oposição a
esse principio, revelado por atitudes banalizadas que acabam por definir cada vez mais o SUS como utopia diante
da realidade.
Em momento algum, o modelo, o período, os padrões sociais, os estilos de vida devem ser esquecidos ao pensarmos
em equidade. Vivemos num contexto de “turbulência permanente” uma analogia ao termo utilizado por
economistas e profissionais de marketing ao se referirem a crises quando elas se tornam uma condição permanente.
De maneira semelhante, percebemos que não existe resolução das iniquidades, os problemas em geral são
administrados.
A eficácia da luta contra as desigualdades sociais na saúde depende que decisores políticos e os profissionais
tenham uma boa compreensão do cenário atual, dos determinantes e da forma que os serviços de saúde podem
trabalhar para confrontá-los (Whitehead & Dahlgren, 2006).
Hoje, os esforços para redução das iniquidades na área da saúde, enfocam questões relativas à distribuição de
recursos financeiros (Luchesi & Souza, citados por Paim, 2006).
As condições de vida e acesso à saúde, no que diz respeito às desigualdades dos demais marcadores de posição
social, como por exemplo, gênero, educação, renda (Chor & Lima, citadps por Paim, 2006), raça, opção sexual,
idade, entre outros, vêm tardiamente sendo colocados em discussão pelos movimentos sociais, representando a
dificuldade de concretização da equidade numa sociedade extremamente desigual como a nossa (Paim, 2006).
A implantação de programas e políticas pelo Ministério da Saúde, como a Política Nacional do Idoso, em 2003,
Política Nacional de Atenção integral à Saúde da Mulher, em 2004, Política da Atenção Integral aos usuários de
Álcool e Outras Drogas, em 2003 e o Programa Nacional de DST/AIDS, em 1985, são tentativas de redução da
desigualdade.
Entretanto pensando numa dimensão mais ampla, como se pode operacionalizar programas ou políticas de saúde
que visam a redução de iniquidades se estas parecem não possuir uma articulação eficaz com outras redes sociais?
Estas não estariam favorecendo a manutenção de desigualdades, porém sob uma perspectiva menos agressiva pela
existência de programas e políticas?
Apesar da existência de tais ações por parte do governo e do esforço da mobilização de alguns movimentos sociais,
as manifestações preconceituosas e injustas mostraram o empobrecimento de expectativas positivas de uma
significativa parcela população brasileira. A compreensão de que a saúde é um recurso exclusivo para atingir outros
objetivos na vida, tais como melhor educação e emprego e que é, uma forma de promover a liberdade de indivíduos
e sociedades (Sem, citado por Whitehead & Dahlgren, 2006) é essencial.
Considerações finais
A literatura aponta o preconceito como um tabu no campo dos serviços de saúde, evidenciado, sobretudo pelo
déficit no preparo e conhecimento profissional acerca das políticas de saúde que integram o SUS. Revelado,
sobretudo através de posturas negativas e levianas de um indivíduo para com o outro, transformando a relação
profissional–paciente em um processo de dominação.
Profissionais de saúde precisam em sua formação cultivar e fortalecer a consciência de cidadania, reconhecer seu
semelhante como digno e merecedor do seu trabalho, afastando assim atitudes que contribuam para prejuízos e
marcas na saúde física e mental que o preconceito pode causar.
“Como a experiência e a reflexão são as bases da constituição do indivíduo, em sua relação com a cultura, sua
ausência caracteriza o preconceito” (Crochik, 1997). Talvez, a inexistência de discussão, entre os profissionais de
saúde, sobre o impacto da discriminação, bem como dos possíveis processos discriminatórios nos serviços, impeçam
reflexões e movimentos de mudança. É necessário o estimulo de discussões sobre o tema preconceito e equidade,
dentro dos serviços de saúde, e retomar, ao máximo, os princípios éticos que norteiam a prática profissional para
que o atendimento ao usuário seja norteado pelo SUS e não por crenças e valores sociais e/ou pessoais. Desta
forma, se faz presente a possibilidade de consolidação de políticas equitativas para o SUS.
As políticas públicas de saúde em geral são voltadas a justiça social, considerando as desigualdades de gênero,
idade, de classe, de raça e de expressão sexual. Assim, fazem parte desse contexto outros assuntos que não foram
abordados neste trabalho como: aleitamento materno, concepção, contracepção, aborto, doenças sexualmente
transmissíveis e violência sexual. Espera-se com isso que sejam asseguradas estratégias que viabilizem a promoção
da saúde e tratamentos adequados.
Por fim, fortalecer o processo de democratização e cidadania significa superar práticas patriarcais autoritárias e ou
homofóbicas. Significa também alterar os limites impostos pelo estado, no sentido de respeito à vida privada, bem
estar, transformação social e superação dos preconceitos e discriminações.
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VERÃO 2016
CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 14: Participação e Autonomia nos Espaços Interculturais de Saúde Indígena:
Reflexões a partir do Sul do Brasil
Introdução
A democratização das ações e dos serviços de saúde no Brasil, expressa no Sistema Único de Saúde (SUS)
em 1990, tem como base novas relações entre estado e sociedade. Os princípios e as diretrizes do SUS, forjados
ainda no Movimento de Reforma Sanitária a partir de 1976, estabelecem o papel central do usuário e deslocam o
eixo do poder das macroestruturas para os níveis locais e regionais, com a ampla participação de todos os setores
que compõem o cenário da saúde. No caso indígena, nove anos após a criação do SUS, o Decreto nº 3.156 (Brasil,
1999a) e a Lei nº 9.836 (Brasil, 1999b) determinaram as condições de assistência à saúde dos povos indígenas e o
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do SUS, respectivamente, tendo em vista as históricas
desigualdades e iniqüidades vividas por esses povos no Brasil. Posteriormente, essa legislação regulamentou a
Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), integrante da Política Nacional de Saúde (Brasil,
2002). O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena é organizado por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(DSEIs), compostos de postos de saúde dentro das Terras Indígenas, que contam com o trabalho dos Agentes
Indígenas de Saúde (AIS) e dos Agentes Indígenas de Saneamento (Aisan); pelos pólos-base, que incluem as Equipes
Multiprofissionais de Saúde Indígena (EMSI); e pelas Casas do Índio (Casai), que apóiam os serviços de média e alta
complexidade referenciados na rede do SUS (Brasil, 2004). Em algumas realidades, como no sul do Brasil, há postos
de saúde nas aldeias que incluem permanentemente a EMSI. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) é o órgão
encarregado pela coordenação, normatização e execução das ações de atenção à saúde indígena e os estados,
municípios, organizações governamentais e não-governamentais (ONGs) podem atuar complementarmente na
execução das ações (Brasil, 2004). Para a realização das ações e serviços de saúde aos povos indígenas, foram
definidos recursos financeiros suplementares àqueles já definidos no SUS, sendo as principais fontes (Diehl e col.,
2003): 1- o “Fator de Incentivo de Atenção Básica aos Povos Indígenas”, que é um componente do Piso da Atenção
Básica Variável, transferido do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos de Saúde do Distrito Federal e dos Municípios,
mediante a adesão e a implementação das ações a que se destinam e desde que constantes no respectivo Plano de
Saúde (Brasil, 1999c; Brasil, 2007); 2- o “Fator de Incentivo para a Assistência Ambulatorial, Hospitalar e de Apoio
Diagnóstico a População Indígena”, destinado para os estabelecimentos hospitalares que considerem as
especificidades da assistência à saúde das populações indígenas e que ofereçam atendimento a elas, em seu próprio
território ou região de referência (Brasil, 1999c); 3- os convênios celebrados entre a Funasa e estados, municípios
e/ou ONGs para a atenção básica. O Subsistema de saúde indígena, que deve garantir a universalidade, a
integralidade, a eqüidade e a participação comunitária, instituiu ainda o princípio da atenção diferenciada, que deve
levar em conta “as especificidades culturais, epidemiológicas e operacionais desses povos. Assim, dever-se-á
desenvolver e fazer uso de tecnologias apropriadas por meio da adequação das formas ocidentais convencionais de
organização de serviços” (Brasil, 2002, p. 6), ou seja, esse princípio é definido como uma diferenciação na qualidade
dos serviços. Também a partir da criação do Subsistema, o AIS ganha destaque como membro das comunidades
que deve servir como mediador entre os saberes tradicionais e os conhecimentos e recursos da medicina ocidental.
Outro aspecto relevante trazido pelo novo modelo de atenção é a participação indígena, na qual os diversos povos
tiveram que se organizar na forma de Conselhos de Saúde para o exercício do controle social. Desde os sete anos
da implantação do subsistema, são poucas as reflexões sobre a atenção diferenciada, o papel dos agentes indígenas
de
saúde
e
a
participação
e
controle
social.
Esse artigo traz uma reflexão crítica do modelo de atenção à saúde indígena implementado no final de
1999 com base nos aspectos acima citados. A partir de pesquisas realizadas no sul do Brasil, especificamente no
Estado de Santa Catarina, e na experiência de participação em instâncias de controle social, buscamos contribuir
para a avaliação, que é exígua até o momento.
Conceituação de “Atenção Diferenciada” na Política de Saúde Indígena
O princípio de atenção diferenciada no qual se refere a situação multicultural de ações e serviços de
saúde indígena foi expressa inicialmente na I Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, realizada em 1986.
A partir da reforma sanitária, a Conferência objetivava avaliar a situação de saúde dos índios e criar uma política
efetiva para os povos indígenas. Entre as recomendações (Krenak e col., 1988) relevantes para pensar a atenção
diferenciada, citamos duas: 1) garantir a participação política das nações indígenas na formulação, no
planejamento, na gestão, na execução e na avaliação das ações e dos serviços de saúde; 2) assegurar o respeito e o
reconhecimento das formas diferenciadas das nações indígenas no cuidado com a saúde. Essas recomendações vêm
sendo desde então incorporadas nas Conferências de Saúde Indígena, bem com na legislação geral para a saúde e
na específica à saúde indígena. Em 2000, foi lançada a primeira edição da Política Nacional de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas, sendo a segunda edição de 2002. Em referência às práticas indígenas de auto-atenção à saúde, o
documento reconhece “a eficácia de sua medicina e o direito desses povos à sua cultura” (Brasil, 2002, p. 13. Grifos
das autoras). Adiante afirma: “O princípio que permeia todas as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas é o respeito às concepções, [aos] valores e [às] práticas relativos ao processo saúde-doença
próprios a cada sociedade indígena e a seus diversos especialistas” (Brasil, 2002, p. 18). Em outra parte, a base
simbólica e a eficácia dos sistemas tradicionais são ressaltadas: Os sistemas tradicionais indígenas de saúde são
baseados em uma abordagem holística de saúde, cujo princípio é a harmonia de indivíduos, famílias e comunidades
com o universo que os rodeia. As práticas de cura respondem a uma lógica interna de cada comunidade indígena e
são o produto de sua relação particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente em que vivem. Essas práticas
e concepções são, geralmente, recursos de saúde de eficácias empírica e simbólica, de acordo com a definição mais
recente de saúde da Organização Mundial de Saúde (Brasil, 2002, p. 17). Para adequar as ações dos serviços de
saúde, o documento aponta para três vertentes: 1) a capacitação dos recursos humanos visando à preparação para
a atuação em contextos interculturais, por meio de cursos de atualização/aperfeiçoamento/especialização; 2) a
articulação com os sistemas tradicionais indígenas de saúde; 3) a formação e a capacitação de Agentes Indígenas
de Saúde como uma estratégia que visa favorecer a apropriação, pelos povos indígenas, de conhecimentos e
recursos técnicos da medicina ocidental, “não de modo a substituir, mas de somar ao acervo de terapias e outras
práticas culturais próprias, tradicionais ou não” (Brasil, 2002, p. 16. Grifos das autoras). Em 2004, a Portaria nº 70
reafirma estas três diretrizes de atuação, utilizando a palavra “integrar as ações da medicina tradicional” (Brasil,
2004, p. 2. Grifo das autoras) em vez de “articular”. Essa substituição tem implicações que serão exploradas
posteriormente.
O Papel dos AIS na Atenção Diferenciada
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CADERNO DE TEXTOS
A inclusão dos AIS nas ações e nos serviços de atenção primária à saúde indígena ocorreu a partir da
década de 1980, seguindo a tendência verificada para a população não-indígena, conforme recomendou a
Organização Mundial da Saúde em 1978, na Declaração de Alma-Ata. O AIS não é visto como um mero distribuidor
de medicamentos, mas como o “elo de ligação entre as sociedades indígenas e o sistema de saúde diferenciado”.
Ao AIS tem sido atribuída uma função estratégica fundamental “como agente de transformação, na busca da
melhoria da qualidade de vida e autonomia de seus respectivos povos” (Brasil, 1996, p. 8).
A partir da criação dos Distritos Sanitários, em 1999, e do aumento significativo no orçamento designado
para a saúde indígena, o número de AIS capacitados e contratados para trabalhar com as Equipes Multiprofissionais
de Saúde Indígena (EMSIs) nas Terras Indígenas aumentou, no intuito de desenvolver formas de atenção
diferenciada e de incrementar a participação dos índios nos serviços de saúde, bem como contribuir para a
qualidade dos serviços em um contexto intercultural. Com objetivos semelhantes, o cargo de Agente Indígena de
Saneamento (Aisan) foi criado em 2004. Dos 2.000 AISs estimados em 2000, o número subiu para 5.106 em 2006.
Para subsidiar uma análise da qualidade dos serviços de saúde em contextos interculturais, bem como o
controle social, e avaliar a operacionalidade da atenção diferenciada na atenção primária dos povos indígenas, foi
organizada uma equipe no final de 2003 para pesquisar o papel do AIS entre os Kaingang da Terra Indígena (T.I.)
Xapecó e da T. I. Laklãnõ, Santa Catarina, no âmbito do Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul. O projeto
visava ao acompanhamento e à análise do papel do AIS na atenção básica, com ênfase na sua formação, nas visões
dos AISs acerca da atenção diferenciada à saúde e nas ações delegadas a eles sob as perspectivas da organização
dos serviços e dos próprios AISs, bem como as dificuldades enfrentadas. Os AISANs foram incluídos na pesquisa
quando possível, porém, devido à sua inserção recente na EMSI, a contribuição deles para as discussões foi mínima.
Para fins comparativos com outros contextos, é importante lembrar que a situação dos índios do sul do país,
diferente da região amazônica brasileira, é marginal em termos sociais, espaciais e econômicos. Podem ser
considerados os pobres entre as populações mais favorecidas que rodeiam suas Terras Indígenas e, como
conseqüência sofrem de doenças endêmicas e carenciais e suas condições sanitárias são insatisfatórias. Os índios
nessa região têm contato intenso com a sociedade envolvente e suas vidas cotidianas manifestam a apropriação de
objetos, valores e práticas da cultura popular, incluindo as de alimentação, de saúde e de religião, porém, sua
identidade étnica ainda tem raízes na cultura autóctone e representa uma visão de mundo altamente diferenciada
daquela existente entre os colonos e fazendeiros que os cercam.
O AIS em Santa Catarina
A despeito da importância e da centralidade delegadas ao papel do AIS nos documentos da Funasa, a
pesquisa em Santa Catarina demonstrou que a realidade é bastante diferente, apontando várias limitações que não
permitem a realização de um serviço básico que poderia ser caracterizado como atenção diferenciada. Aspectos
definidos pelos documentos oficiais como fundamentais à formação e à atuação dos AISs estão sem resolução na
prática, ou seja, poucos recebem capacitação, seu papel é mal-definido e ambíguo, a seleção dos agentes é
determinada em grande parte por processos políticos internos e externos, a relação com os profissionais de saúde
é hierarquizada e burocratizada, e a noção de atenção diferenciada é pouco compreendida tanto pelos AISs como
pelos outros profissionais da EMSI.
Nossa pesquisa documental e de campo observou uma alta rotatividade dos AISs. As causas da alta
rotatividade dos AISs estavam relacionadas em parte às formas de contratação e de seleção dos AIS, ambas
marcadas por processos políticos internos e externos à T.I. Os recursos financeiros para a contratação tinham
origem no convênio com a Funasa ou no repasse do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Municipais de Saúde.
Dessa forma, a responsabilidade de contratação podia ser do município e de uma ONG indígena, caso da T.I. Xapecó
em 2004: uma parcela dos AISs do mesmo pólo-base era empregada pelo município, via Programa Saúde da Família
(PSF), e a outra pela ONG. Essa situação gerava uma certa divisão entre os AISs em relação às atividades e lealdades.
Não obstante, em ambos os casos, a seleção dos AISs não passava por um processo de escolha democrática, apesar
de esforços dos técnicos locais para garantir o cumprimento das diretrizes que indicam a contratação dos
profissionais que formarão as EMSIs. No caso das relações internas da comunidade, a escolha do AIS dependia das
alianças e facções, do parentesco, da liderança ou da religião. Esses aspectos formam parte da própria dinâmica
ligada às particularidades culturais da organização social e suas redes de obrigações e favores No caso de
contratação por municípios, ela acabava, muitas vezes, sendo influenciada por forças políticas locais, marcadas por
clientelismos e faccionalismos partidários. Pressupomos que essa tendência não constitui característica isolada,
mas sim advém de um contexto estrutural inerente à própria dinâmica política nacional, observada especialmente
em municípios de pequeno porte, cujo controle social e presença do poder público federal são restritos.
A alta rotatividade dos profissionais de saúde nas EMSIs não é uma particularidade somente desse DSEI,
mas uma realidade nos outros 33 DSEIs do país (Garnelo e col., 2003), e ela tem um impacto preocupante na
formação das equipes. A capacitação de forma contínua é um pilar da preparação dos membros das EMSIs para o
trabalho. Não obstante, observou-se que até o período pesquisado poucos cursos haviam sido oferecidos pela
Funasa para os AISs e para os outros profissionais. Esse fato, somado à alta rotatividade, resultava em despreparo
significativo para o serviço.
Além da escassez de cursos de capacitação, pode ser questionada também a contribuição potencial para
a atenção diferenciada dos que têm sido oferecidos pela Funasa. Logicamente, o conteúdo programático de sua
formação deve ser pensado de forma cautelosa para que não se limite à aprendizagem puramente de cunho
biomédico, mas sim que incorpore elementos próprios e pertencentes aos sistemas de atenção à saúde encarnados
nas culturas e práticas locais. É necessário sempre ter em vista a neutralização da construção de novas hierarquias
de conhecimentos no campo da atenção à saúde, já que o modelo biomédico é preponderante e hegemônico frente
a outros que podem também apresentar grande eficácia. Uma análise dos Módulos para “Educação Profissional
Básica para Agentes Indígenas de Saúde” elaborados pela FUNASA (Brasil, 2005a, 2005b, 2005c, 2005d, 2005e,
2005f) indica que o treinamento dos AISs, quando existe, está orientado basicamente à aprendizagem de práticas
biomédicas.
Atividades, competências e relação com a equipe
As atividades delegadas aos AISs são amplas e podem ser agrupadas em quatro funções gerais: 1) Visitas
domiciliares; 2) Educação e orientação sobre cuidados de saúde e informações sobre o sistema de saúde e seu
funcionamento, incluindo os programas especiais de saúde; 3) Preenchimento dos vários formulários, como ficha
de visitas com assinatura de membro da família, relatórios mensais de suas atividades e outros solicitados pela
equipe; e 4) participação nas atividades de controle social. Em Santa Catarina, os cuidados de atenção primária são
Alta rotatividade, seleção e capacitação dos AISs
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CADERNO DE TEXTOS
delegados ao auxiliar ou ao técnico de enfermagem, sendo os AISs proibidos de realizar tarefas mínimas, como
tomar a temperatura, medir a pressão arterial e aplicar injetáveis.
Na lógica da organização profissional, o AIS é membro de uma equipe hierarquizada em conhecimentos
e funções. Espera-se que o AIS, nas suas visitas regulares, atue como elo de comunicação e educação entre as
famílias e os demais membros da equipe. Assim, ele deve anotar e comunicar necessidades de consultas e riscos à
saúde, acompanhar a administração dos medicamentos, transmitir informações sobre consultas e programas de
saúde e acompanhar os doentes necessitando de serviços na rede de referência do SUS. As visitas domiciliares e
seu registro nos formulários tornavam as atividades ambíguas e sem justificativa clara para os agentes. Diante das
proibições de realizar cuidados de atenção primária, expressaram o enfrentamento de expectativas contraditórias
por parte da EMSI e da comunidade. Assim, percebiam que eram cobrados pela comunidade no sentido de tomarem
decisões que não estavam no rol de suas funções ou para as quais não foram preparados adequadamente. Como
nos afirmou um AIS, “os índios pensam que somos médicos”. Também, os AIS se perceberam culpabilizados pelos
membros da comunidade em relação às falhas dos serviços do restante da EMSI ou quando o médico não aparecia
numa consulta marcada pelo agente.
Nossas observações de campo constataram que muitas visitas foram realizadas de uma maneira pontual,
às vezes somente para conseguir a assinatura da família e, em alguns casos, as visitas não foram realizadas em todas
as casas, apenas aquelas em que se sabia haver alguém doente. Outros fatores que influenciaram a regularidade
das visitas foram: o quadro de faccionalismo político existente, que fazia com que o AIS não visitasse regularmente
as famílias rivais; e as distâncias a serem percorridas até as casas (é importante lembrar que os AIS não tinham
transporte próprio).
O preenchimento dos formulários das atividades realizadas se tornou a atividade principal de supervisão
e os AIS manifestaram frustração com os inúmeros formulários e planilhas que precisavam completar. Idealmente,
o trabalho dos AISs deve ser acompanhado e supervisionado, com treinamento contínuo. Na ausência de
acompanhamento, as reuniões de supervisão têm como foco central os formulários a serem preenchidos pelos AIS
mensalmente, eliminando o tempo dos AISs com seus supervisores que deveria ser dedicado a uma discussão que
efetivamente trataria dos problemas enfrentados pelos agentes no seu dia-a-dia.
Houve avaliação por parte dos AIS sobre o exercício de habilidades específicas de outros profissionais da
equipe. Eles distinguiam, segundo sua percepção, os profissionais de saúde que estavam ao lado dos índios e os que
demonstravam preconceito, por exemplo, uma AIS citou um enfermeiro que manifestou uma atitude de
moralização e superioridade quando argumentou contra o uso do fogo de chão nas casas indígenas, acusando-os
de sujos.Nossas observações das interações entre os AISs e os profissionais indicaram momentos de tensão entre
eles, nos quais os agentes foram colocados em papel de subordinado. As relações hierárquicas e desiguais marcam
os AISs e outros membros da equipe e sua administração – em sua maioria composta de não-indígenas–, que por
sua vez estão inseridos em um contexto de relações históricas de intolerância étnica.
Atrelada a essas acusações e conflitos, está a pressão exercida pelos gestores para que os AISs trabalhem
todos os dias, oito horas por dia, impondo uma agenda, um ritmo e uma relação com o trabalho que não condizem
com “o sistema indígena”. Por sua vez, os AISs, que recebem em média um salário mínimo por mês, sabem que os
membros da equipe com maior formação escolar e acadêmica têm salários infinitamente maiores que os seus e
trabalham vertiginosamente menos horas do que eles nos Postos de Saúde.
Apesar de ser definido como um representante da comunidade que participa dos serviços e das
atividades de controle social, eles, como membros contratados da equipe, percebem que a Funasa é seu chefe,
criando uma situação de conflito de papel. Demonstrou-se ainda que há uma falta de receptividade por parte da
equipe e do gestor para a contribuição dos AISs nos processos de participação e controle social. Outra ambigüidade
é a ausência de reconhecimento profissional da categoria de Agente Indígena de Saúde. Os participantes da
pesquisa expressaram essa situação por meio da frustração pela falta de reconhecimento dos membros da EMSI e
ainda mais pelos profissionais de saúde na rede de referência do SUS.
Segundo Oliveira, a inserção institucional dos AISs é incipiente e conflituosa. Uma solução para isso tem
sido formar os AISs como auxiliares de enfermagem, categoria profissional que se assemelha mais ao perfil de AIS
(Mendonça, 2005). No caso de Santa Catarina, os AISs realizando ou com esperanças de realizar cursos de Auxiliar
de Enfermagem, perceberam nesta maneira uma forma de garantir seu reconhecimento institucional e também a
segurança do emprego.
Mediação entre saberes e atenção diferenciada
Como visto pela análise acima, o papel do AIS como mediador entre as práticas indígenas e os serviços
biomédicos é uma visão pouca realista. O tema da atenção diferenciada não foi espontaneamente levantado nas
nossas entrevistas, nem com os profissionais de saúde nem com os AISs. As respostas dos AISs quando perguntamos
nos grupos focais especificamente sobre o significado da atenção diferenciada, indicaram que para eles o conceito
refere ao aspecto de acesso universal e igualdade na qualidade de serviços.
Ao perguntarmos especialmente sobre os saberes tradicionais de saúde, a maior parte dos AISs afirmou
ter pouco conhecimento de práticas indígenas e referiu os mais velhos, freqüentemente as mulheres, como
detentoras desses “segredos”.
Pesquisas realizadas ao longo dos anos entre os povos Jê do Sul têm apontado para a existência de vários
tipos de especialistas em cura e que continuam atuando de forma intensa (Oliveira, 1996, 1997; Haverroth, 1998;
Crépeau, 2002; Rosa, 2005). A diversidade de conhecimento e especialistas é bastante variável, devido à
incorporação de conhecimentos exógenos às práticas de cura. O trabalho desses especialistas e de outras pessoas
que também têm certa atuação nas questões de saúde reflete uma cosmologia complexa, que atualmente pode
incorporar aspectos religiosos das igrejas existentes nas T.I., dependendo da experiência do indivíduo. O papel das
plantas nesse universo cosmológico é fundamental e o conhecimento sobre elas também é diversificado,
representando uma forte incorporação das plantas da medicina popular brasileira. A diversidade de especialistas e
práticas se interpõe, resultando um sincretismo no qual os valores são reelaborados pelo grupo e identificados
como próprio deles.
O Controle Social no Subsistema de Saúde Indígena
Nas novas relações entre a sociedade e o estado, o controle social sobre ações e recursos do estado toma
dimensões importantes, configurado na participação popular. A participação social em saúde, definida em Machado
(1986, p. 299) como “o conjunto de intervenções que as diferentes forças sociais realizam para influenciar a
formulação, a execução e a avaliação das políticas públicas para o setor saúde”, está institucionalizada por meio
dos conselhos de saúde e das conferências de saúde.
A Resolução nº 333/2003 amplia a definição de conselho de saúde como o “órgão colegiado, deliberativo
e permanente do SUS em cada esfera de governo”, salientando que o “processo bem-sucedido de descentralização
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CADERNO DE TEXTOS
tem determinado a ampliação dos conselhos de saúde que ora se estabelecem também em conselhos regionais,
conselhos locais, conselhos distritais de saúde, incluindo os conselhos distritais sanitários de saúde indígena” (Brasil,
2003, p. 4. Grifos das autoras). Com a criação e a operacionalização do subsistema de saúde indígena (Lei nº
9.836/1999 e Decreto nº 3.156/1999), a participação indígena em organismos colegiados, como Conselhos
Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e Conselhos Locais de
Saúde Indígena, é assegurada por direito. Chama a atenção que segundo o Decreto nº 3.156/1999, reiterado pela
Portaria nº 70/GM/2004, aos Condisi compete somente aprovar e acompanhar a execução do Plano Distrital de
Saúde Indígena, acompanhar as ações dos conselhos locais de saúde indígena e exercer o controle social das
atividades de atenção à saúde indígena, não especificando o seu papel enquanto proponentes de políticas de saúde
para os povos indígenas. Isso contraria a Resolução nº 333/2003, que aponta na sua terceira diretriz a “participação
da sociedade organizada, garantida na Legislação, torna os Conselhos de Saúde uma instância privilegiada na
proposição, discussão, acompanhamento, deliberação, avaliação e fiscalização da implementação da Política de
Saúde, inclusive em seus aspectos econômicos e financeiros” (Brasil, 2003, p. 4-5. Grifo das autoras). Com a criação
de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas a partir de 1999, foram estabelecidos os respectivos Condisi e
inúmeros Conselhos Locais espalhados pelas Terras Indígenas. Os Condisi, que seguem a lógica de paridade
estabelecida para os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, podem ser considerados “os novos
espaços de construção de identidades sociais e de direitos, (...) vale dizer, a constituição e dinâmica dos novos
espaços da política, que não aqueles tradicionalmente reconhecidos” (Cohn, 2003, p. 10).
A reflexão aqui apresentada sobre o controle social na saúde indígena está baseada na experiência de
participação em um Condisi (Interior Sul), na interpretação de atas de reuniões desse Conselho, bem como na
participação como membro na Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI), Comissão que faz parte do Conselho
Nacional de Saúde.
O DSEI Interior Sul e o Condisi Insul
O DSEI Interior Sul, com população indígena estimada em torno de 30 mil pessoas, pertencentes às etnias
Kaingang, Guarani, Xokleng, Krenak e Terena, tinha sede nas instalações da Coordenação Regional/ Funasa-SC, em
Florianópolis (o novo DSEI Sul-Sudeste mantém a sede em Florianópolis) e os pólos-base eram localizados em Bauru
(SP), Londrina (PR), Guarapuava (PR), Chapecó (SC), José Boiteux (SC) e Passo Fundo (RS). Desde a criação desse
DSEI até agosto de 2006, cerca de cinco coordenadores foram indicados, todos não-indígenas.
Representatividade e rotatividade
As reuniões do Condisi Insul revelavam os conflitos gerados por uma ambigüidade de papéis dos seus membros,
não ficando claro, muitas vezes, quem eles estavam representando. Alguns indígenas eram contratados pela Funai
ou Funasa, mas atuavam no Conselho como representantes dos usuários, por exemplo, em uma reunião, um índio
perguntou: “Eu trabalho para Funai e sou índio. Quem eu represento?” Nesse sentido, ao mesmo tempo que
deveriam trazer para a discussão as demandas das comunidades que representavam, suas atuações poderiam ser
vigiadas (e cobradas) pelas instituições empregadoras.
Em relação à representação não-indígena, embora na composição dos conselhos de saúde (Brasil, 2003)
esteja garantida a participação de gestores e prestadores de serviços (na proporção de 25%) e de trabalhadores de
saúde (25%), no caso desse Conselho Distrital boa parte do seu conjunto estava diretamente envolvida com a gestão
e a operacionalização do DSEI. É necessário ainda salientar que entre os três conselheiros representando os
trabalhadores (em torno de 8 % do total do Condisi), dois eram servidores da Funai ou da Funasa, ocupando cargos
de chefias administrativas, portanto, a representação não-indígena estava comprometida, pois, sendo a maioria
vinculada à gestão e à prestação de serviços no Distrito, ela se tornava fiscal de si própria, o que nos faculta
questionar a efetividade do Conselho.
O modelo de organização e funcionamento dos Condisi, que na teoria deve reproduzir os conselhos de
saúde não-indígenas, não condiz com a realidade dos povos indígenas, pois conforme Garnelo e col. (2003, p. 80)
há “incongruência entre a noção de representatividade genérica demandada pelo sistema de saúde e os modos
tradicionais de legitimidade e representatividade de líderes indígenas”. À semelhança do processo de seleção dos
AISs, as escolhas dos conselheiros indígenas também se dão com um forte referencial das lideranças e dos processos
políticos locais. Esta situação, que deveria gerar uma multiplicidade de vozes representativas dos membros das
comunidades, acabava na vocalização de interesses particulares.
O Condisi Insul era determinado pela dimensão burocrático-administrativa em detrimento da dimensão
política: as questões discutidas eram em sua maioria operacionais, com a vocalização de denúncias e demandas
individualizadas. Isso implicava em baixa capacidade dessa instância de influir no processo de participação e
controle social (gestão, programação, execução e avaliação) ou mesmo de negociar interesses divergentes.
A dinâmica de funcionamento do Condisi, portanto, se traduzia em uma representatividade marcada
pela institucionalização e pela burocratização do processo de participação e controle social e pela troca constante
de conselheiros indígenas (tanto locais quanto distritais), apontada por um índio como um problema. Se por um
lado, a rotatividade de membros dos Conselhos pode traduzir um maior exercício democrático no âmbito da
sociedade, por outro no caso indígena são poucos os índios que têm entendimento e domínio da estrutura
burocrático-administrativa e das políticas de saúde. A troca ocorria sem que os conselheiros indígenas, de modo
geral, tivessem a possibilidade de apreender o seu papel e conhecer a dinâmica da política e das ações em saúde.
Processos de centralização
A institucionalização e a burocratização apontadas acima refletiam em centralização dos processos
decisórios, alijando os conselheiros, em especial os indígenas. Outro aspecto que enfatizava a centralização era a
falta de interlocução entre o Conselho Distrital e os Conselhos Locais, citada tanto pelos conselheiros indígenas
quanto pelos não-indígenas. Além da não articulação entre o Condisi e os Conselhos Locais, a falta de interlocução
com a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI), e, por conseqüência, com o Conselho Nacional de Saúde
(CNS), também foi observada
A centralização também dizia respeito ao local das reuniões, sempre em Florianópolis. Mais de uma vez
foi solicitado que as reuniões do Condisi fossem realizadas em municípios do DSEI que têm índios, visando aproximar
os gestores municipais e melhorar o controle social; porém, o revezamento dos locais nunca foi respeitado pela
Funasa e pela chefia do DSEI.
As visitas dos conselheiros distritais às áreas indígenas e sua aproximação das lideranças indígenas (vistas
como maneiras de descentralizar o poder) foram reivindicadas pelos conselheiros indígenas, para que os
conselheiros conhecessem melhor a realidade e se sensibilizassem para o papel do Conselho Distrital e do controle
social; contudo, isso não aconteceu. Lançando um olhar mais amplo, é importante destacar o papel que vem
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CADERNO DE TEXTOS
assumindo o Fórum Permanente de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena. Criado em 2005, mas
oficializado em 2006 (Brasil, 2006b), possui competências que se sobrepõem àquelas definidas para os Conselhos
indígenas, o que poderá significar o deslocamento do processo de participação e de controle social pelas
comunidades, centralizando-o em uma organização. Além disso, estando “a assessoria técnica e logística ao Fórum”
(Brasil, 2006b, p. 3) a cargo da Coordenação de Apoio à Gestão e à Participação Social do Desai/Funasa, pode-se
depreender uma maior hegemonia dessa instituição na participação indígena e no controle social.
Capacitação
O tema capacitação de conselheiros foi motivo de debates e solicitação em mais de uma reunião do
Condisi. Como prioridade na capacitação, o “conhecimento das leis para não perder o controle”. Segundo um índio,
“para ser conselheiro tem que ser político.” Isso nos leva a sugerir que a visão dos índios sobre a participação e o
controle social é muito mais o exercício da política do que a realização de intervenções que influenciem a
formulação, a execução e a avaliação das políticas públicas para o setor saúde. Durante participação na IV Oficina
de Saúde Indígena, durante o III Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (Florianópolis, 2005),
um representante indígena da CISI salientou que: Atualmente o movimento indígena reivindica DSEI autônomos;
realização das capacitações; seleção dos profissionais de saúde pelos conselheiros; controle dos recursos
repassados e dos incentivos hospitalares; que o Fórum Permanente de Presidentes dos Conselhos Distritais seja
responsável pela capacitação dos conselheiros, visando autonomia do Controle Social. O controle social é a base da
participação indígena, mas há aparente contradição entre institucionalização do controle social e sua liberdade de
atuação, fato que resulta em menor poder de controle indígena sobre a gestão da saúde. Que capacitação é
oferecida para os Conselheiros Locais? Com base em que necessidades? Como se ensina protagonismo, já que
protagonismo é luta política, que está fora das capacitações? Atualmente se ensina a percorrer a burocracia, mas
não se ensina a questioná-la. Enquanto o movimento indígena não tomar para si a responsabilidade pela
capacitação dos Conselheiros, não haverá controle social. A contundência da fala acima não encontra reflexos na
realidade. O Desai/Funasa tem sido o responsável pela capacitação de multiplicadores indígenas para o controle
social. Em 2003, em Curitiba, foi realizado o Seminário de Avaliação do Controle Social nos DSEIs, o qual apontou o
perfil desses multiplicadores: entender de política de saúde pública e indígena, conhecer a realidade das
comunidades que compõem o DSEI, saber ler e escrever, conhecer o movimento indígena de sua região, ser indicado
pelo conselho local ou distrital, não fazer uso de bebida alcoólica, entre outros. Os conteúdos compreendiam desde
histórico das políticas de saúde no Brasil (SUS, Conferências de Saúde), funções dos conselhos, até elaboração de
projetos e planejamento de ações. Podemos concluir, portanto, que a incumbência da capacitação para o gestor,
definindo o perfil dos conselheiros e a função dos conselhos, significa falta de autonomia para a participação
indígena e o controle social.
Considerações Finais
As pesquisas demonstram claramente que os princípios da atenção diferenciada, tão bem elaborados
nos documentos oficiais, ainda não se tornaram uma realidade, seja na forma de participação da comunidade e
controle social, seja na formação de equipes multiprofissionais para trabalhar em situações multiculturais. Fica
evidente a partir de pesquisas e de discussões com os gestores que ainda não há um consenso do que seja atenção
diferenciada. Para os AIS significa o acesso a serviços primários separados e com qualidade, além da prioridade na
atenção secundária e terciária. Para os administradores e profissionais de nível superior trata da questão “cultural”,
porém com pouca compreensão do que isso implica na prática. Os documentos da Funasa, seguindo a política da
Organização Mundial da Saúde, indicam que o caminho é “articular” ou “integrar” as práticas tradicionais de
cuidados à saúde. Não está claro se os serviços de atenção primária devem articular-se com as práticas tradicionais
ou integrar-se às elas. A primeira implica o reconhecimento da legitimidade dessas práticas, e a segunda indica a
instrumentalização a partir do viés biomédico.
Os profissionais não reconhecem que as fronteiras entre os serviços oficiais de saúde e as práticas das
medicinas indígenas são permeáveis. As práticas de saúde com origem na cultura indígena e as da biomedicina não
são as únicas tradições médicas no campo social e não operam como entidades distintas. É necessário reconhecer
que o campo social da saúde é permeado por várias tradições e inovações nas práticas de auto-atenção e é mais
bem conceituado como uma situação de “intermedicalidade” (Greene, 1998; Follér 2004). Assume-se que os
saberes tradicionais são mais bem entendidos como práticas de autoatenção inseridas em um contexto dinâmico
de intermedicalidade, que “se refere aos discursos e apropriações de conhecimentos, aos processos de hegemonia
locais e globais, às negociações interculturais e à produção de medicinas híbridas” (Langdon, 2004, p. 48). Não existe
uma oposição a priori entre o sistema “tradicional” e a biomedicina. Observações têm demonstrado exatamente o
contrário, ou seja, que os índios reinterpretam, re-significam e se apropriam de elementos e práticas da medicina
ocidental (Langdon e MacLennan, 1979; Langdon e Rojas, 1991; Langdon, 1994; Morgado, 1994; Greene, 1998;
Novaes, 1998; Diehl, 2001; Garnelo e Wright, 2001; Garnelo, 2003). A situação de intermedicalidade emerge na
negociação de saberes e de forças de poder entre os atores sociais, sendo melhor pensar, portanto, as práticas de
saúde nas comunidades indígenas como resultados de processos sócio-históricos e não de processos biológicos. É
de nosso entendimento que a articulação entre as práticas de saúde está sem possibilidade de realização no
funcionamento atual do subsistema de saúde indígena e que freqüentemente o discurso é moralizante e revela
preconceitos sobre as práticas de autoatenção da comunidade, sejam indígenas ou não.
Para nós, a operacionalização da atenção diferenciada deve priorizar a garantia da participação política
das comunidades indígenas em todo o processo de planejamento, execução, gestão e avaliação dos serviços; porém,
nossas pesquisas apontam que a não preparação para o trabalho em contextos multiculturais, junto com as
tendências de centralização, burocratização e institucionalização, impedem a efetivação dos processos
participatórios, tanto nas EMSIs quanto nos Conselhos. Atualmente, o problema maior é a falta de recursos ou de
planejamento para a realização de cursos, embora haja expressiva demanda para capacitação tanto por parte dos
AISs quanto dos índios nos Conselhos. É difícil julgar a adequação do conteúdo dos cursos devido à escassa
realização, mas uma das poucas avaliações aponta para estratégias didáticas inapropriadas (Garnelo, 2001). Nosso
exame dos módulos para capacitação dos AISs, publicados na página eletrônica da Funasa (Brasil, 2005a, 2005b,
2005c, 2005d, 2005e, 2005f), indica que o conteúdo trata na maior parte de procedimentos e informações
biomédicas e não de temas orientados para preparar os índios com a competência necessária para a participação
no processo de democratização da saúde e atenção diferenciada. Foi recorrente entre os AIS a falta de comunicação
entre as comunidades e as EMSIs e a visão em nível local e distrital, já que os profissionais de saúde “não conhecem
a realidade”.
Como apontam Varga e Adorno (2001), a manutenção da estrutura tradicional da Funasa, evidenciada
pela verticalidade de suas tradicionais linhas de mando e tomadas de decisão, significou que não houve uma
transformação do planejamento, da execução e da avaliação dos serviços de saúde.
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CADERNO DE TEXTOS
A operacionalização das ações em saúde e a condução das reuniões dos Conselhos
São caracterizadas por processos burocrático-administrativos, que são pautados por hierarquização de
papéis e hegemonias tradicionais. Os índios, ocupando somente o cargo de AIS ou de conselheiros e empregados
pelas instituições envolvidas, têm papéis ambíguos entre interesses da comunidade e interesses de seus
empregadores.
No caso dos AISs, eles não representam os saberes indígenas e não estão preparados para realizar um
papel de mediação, ocupando um papel ambíguo sem reconhecimento como profissional em uma equipe
hierarquizada, com tarefas bem definidas entre os membros. Em ambos os casos, a realidade indica que os
profissionais e outros não-indígenas envolvidos nesse processo continuam operando com uma práxis caracterizada
por uma forte centralização e burocracia, sob a hegemonia do modelo biomédico, enquanto aos indígenas restam
suas interpretações do que seja necessário para adequar suas ações e aproveitar as novas oportunidades oferecidas
pelo sistema. Apesar das considerações apontadas, o aumento do número de indígenas contratados como Agentes
Indígenas de Saúde e a paridade de representação nos Conselhos são elementos importantes no processo de
implantação do modelo de atenção à saúde indígena. O AIS e os conselheiros indígenas fazem parte da reivindicação
central das organizações indígenas na constituição da política de saúde indígena, visando a maior participação nos
serviços de saúde, seja no planejamento, na gestão, na avaliação ou no controle social. Há, porém, a necessidade
de um olhar crítico sobre a operacionalização do subsistema e a organização burocrática e hierarquizada que
permeia todas as relações, durante as interações dos membros (AIS ou não) da EMSI com os índios, ou durante as
reuniões dos Conselhos.
Langdon, E. J; Diehl, E. E. (2007). Participação e Autonomia nos Espaços Interculturais de Saúde Indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saúde Soc. São Paulo, v.16, n.2, p.19-36,
2007.
TEXTO 15: Medicina Complementar no SUS: Práticas Integrativas sob a Luz da
Antropologia Médica
Introdução
O campo das práticas integrativas, alternativas ou complementares em saúde no Brasil contemporâneo constitui
fenômeno de crescente visibilidade. Tais recursos têm sido apropriados e difundidos por clínicas particulares,
comunidades tradicionais, igrejas, movimentos sociais e entidades não governamentais, com abrigo também em
serviços públicos de saúde. Essas práticas e métodos de atenção em saúde passaram a ser investigados e validados
por organismos governamentais, de tal modo que recentemente o próprio Ministério da Saúde implantou
regulamentações de estímulo à difusão da Medicina complementar.
A par disso, um conjunto variado de estudos – racionalidade não biomédica adotada por médicos alopatas (Barros,
2000), representações sociais acerca da Medicina alternativa (Queiroz, 2000), experiência de rezadeiras em
unidades de saúde (Galindo, 2005), novos paradigmas para a medicina (Luz, 2005), Medicina complementar e
corporeidade (Andrade, 2006 e 2007), práticas alternativas como opção à medicalização social (Tesser e Barros,
2008) – vem se avolumando no exame, na avaliação e no acompanhamento dessas opções e cuidados em saúde.
Essas pesquisas se somam a um repertório de diversas investigações (Spencer e Jacobs, 1999; Novey, 2000;
Martinez, 2003) e entidades de referência internacional, com destaque para a Organização Mundial da Saúde –
OMS (WHO, 2002), que se interessam por esse importante assunto em saúde pública.
Com o advento de políticas nacionais no SUS que promovem cuidados integrativos (Medicina Natural e Práticas
Complementares, em 2005; Práticas Integrativas e Complementares; Plantas Medicinais e Fitoterápicos, ambas em
2006), é oportuno aprofundar a análise da dimensão sociocultural e da eficácia terapêutica desses métodos, bem
como compreender o lugar que a Medicina complementar vem assumindo ao se tornar serviço disponível ao usuário
do SUS. Tal discussão nos conduz necessariamente aos fundamentos paradigmáticos desses cuidados em saúde,
assim como à questão da integralidade que, sendo princípio do SUS, orienta as políticas públicas do setor.
O objetivo deste trabalho, ao examinar as práticas integrativas e complementares no SUS, é contemplar aspectos
de sua recente institucionalização, refletir sobre os fundamentos paradigmáticos de sua ação terapêutica e analisar
o caráter integral e complexo de sua aplicação, tendo por interlocução determinados ângulos antropológicos. As
fontes principais para a elaboração deste artigo são os discursos oficiais sobre a Medicina complementar, conforme
encontrados em documentos da OMS (Promoção de Saúde, Estratégia de Medicina Tradicional, 2002/2005) e do
Ministério da Saúde do Brasil (Política Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares, Política Nacional
de Práticas Integrativas e Complementares), alguns estudos especializados no tema e a bibliografia antropológica
em saúde.
Práticas Integrativas e Complementares: campo de atuação em meio a confluências paradigmáticas
Práticas integrativas e complementares em saúde constituem denominação recente do Ministério da Saúde para a
Medicina complementar/alternativa, em suas ricas aplicações no Brasil. Esse campo de saberes e cuidados desenha
um quadro extremamente múltiplo e sincrético, articulando um número crescente de métodos diagnósticoterapêuticos, tecnologias leves, filosofias orientais, práticas religiosas, em estratégias sensíveis de vivência corporal
e de autoconhecimento. Esse amplo acervo de cuidados terapêuticos abriga ainda recursos como terapias
nutricionais, disciplinas corporais, diversas modalidades de massoterapia, práticas xamânicas e estilos de vida
associados ao naturalismo e à ecologia.
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CADERNO DE TEXTOS
Em face da heterogeneidade de cosmologias, doutrinas médicas e princípios terapêuticos, a definição conceitual
dessas práticas constitui desafio nada simples, como verificamos em estudo anterior (Andrade, 2006). Tais cuidados
em saúde, por conseguinte, recebem distintas denominações como as de práticas tradicionais, populares, não
ocidentais, complementares, holísticas, brandas, alternativas e integrativas. Seu enquadramento enquanto
racionalidade terapêutica3 frequentemente é realizado pelo contraste epistemológico com os parâmetros da
medicina científica. Esta, assentada no paradigma newtoniano-cartesiano, concebe o corpo humano como um
“grande engenho”, sendo a fisiologia e a anatomia de base mecanicista. Foco na enfermidade (doutrina das
doenças), agressividade de medicamentos, hipervalorização da tecnologia e acentuada especialização constituem
outros traços do modelo médico científico dominante, embora o mesmo apresente inegavelmente consideráveis
avanços para a saúde pública.
Por sua vez, as Medicinas alternativas e complementares, conforme diversos estudos apontam (Queiroz, 2000;
Tesser e Barros, 2008; Martinez, 2003), seguem um paradigma distinto4. Em linhas gerais, essas abordagens da
saúde e da doença, da diagnose, dos tratamentos terapêuticos e das doutrinas que lhes dão suporte concebem o
ser humano como ser integral, não identificando barreiras entre mente, corpo e espírito, ao contrário do que faz a
medicina convencional. Elas sinalizam para uma visão da saúde entendida como bem-estar amplo, que envolve uma
interação complexa de fatores físicos, sociais, mentais, emocionais e espirituais. Nessa perspectiva, o organismo
humano é compreendido como um campo de energia (e não um conjunto de partes como assume o modelo
biomédico), a partir do qual distintos métodos podem atuar. Trata-se de uma visão integrativa e sistêmica a exigir
uma terapia multidimensional e um esforço multidisciplinar no processo saúde/doença/cura. Esse paradigma é
denominado bioenergético, privilegiando a “visão do todo”, para a qual se enfatiza a integração dos cuidados
(Andrade, 2006). Na classificação da OMS, essas modalidades médicas são apresentadas em duas definições básicas:
Medicinas tradicionais –MT e Medicinas complementares e alternativas – MCA (WHO, 2 002). A primeira congrega
saberes, práticas e crenças nativas em diferentes culturas. A segunda diz respeito a cuidados em saúde que não
estão integrados ao sistema dominante de atenção médica. Em ambos os casos, prevenção, diagnóstico e
tratamento de enfermidades físicas e mentais são conduzidos com certa eficácia e legitimidade social.
Tanto nas formulações da OMS, nas diretrizes do Ministério da Saúde quanto nas indicações dos estudos
referendados acima, toma corpo uma determinada confluência nessas diferentes racionalidades e modelos
médicos. Por isso, então, a ideia de complementar e integrativo, o abrandamento político das resistências a esses
princípios, a implantação desses métodos nas políticas públicas, e sua legitimação pelo Conselho Federal de
Medicina, como no caso da homeopatia e da acupuntura anos atrás. Tais acomodações, entretanto, estão longe de
extinguir os questionamentos e dúvidas sobre a eficácia desses recursos terapêuticos.
Nessas investidas e aproximações, a ideia de alternativo como escolha unilateral para uma opção clínica, e mesmo
enquanto posição político-ideológica, perde força diante dos esforços pela cooperação e complementariedade
entre a biomedicina e essas práticas etiológico-terapêuticas. Assim, chega-se a uma área de confluência,
certamente não consensual, em que iniciativas interdisciplinares são incentivadas. Esse movimento ganha
expressão nas diversas formulações que instituem políticas nacionais voltadas para a atenção em saúde. Nessa
discussão, como procuramos mostrar a seguir, a ideia de integralidade ganha evidente recorrência e centralidade.
As diferentes ênfases e ângulos desse tema repercutem para além dos fatos clínicos e das realidades médicas.
Finalmente, tal zona de confluência expressa a manifestação localizada de uma transição paradigmática, como
acentua Martins (2003), na qual o campo médico ortodoxo abre-se para novos sistemas de cura, caminhando no
sentido da humanização das práticas clínicas e da inclusão de outros fatores diagnóstico-terapêuticos.
João Tadeu de Andrade e Liduina Farias Almeida da Costa - Saúde Soc. São Paulo, v.19, n.3, p.497-508, 2010
TEXTO 16: Reestruturação Produtiva e Consequências para o Trabalho em Saúde
INTRODUÇÃO
Para estudar o trabalho em saúde, hoje, é necessário considerar o contexto atual de um mundo
organizado sob a hegemonia do modo capitalista de produção, em intenso processo de internacionalização da
economia, fortemente dependente do mercado financeiro, vivendo um intenso processo de reestruturação do
modelo de produção e sob a ofensiva da política do Estado neoliberal.
Segundo Mattoso (1995), o cenário produtivo e de relações sociais que vivemos, atualmente, caracteriza
uma crise estrutural do “modelo de desenvolvimento norte-americano ou fordista" que configurou-se no póssegunda guerra mundial e conseguiu o maior período de prosperidade econômica da história do capitalismo. O
modelo de desenvolvimento fordista combinou a produção em massa de produtos padronizados com políticas
públicas de garantia de emprego e· de direitos de cidadania, conseguindo grande elevação da produtividade, do
comércio e do consumo, associada a uma redistribuição de renda a favor dos assalariados, propiciando, assim, o
acesso da maioria da população, dos países capitalistas desenvolvidos2, aos benefícios do desenvolvimento
econômico.
Esse padrão de desenvolvimento não resultou de uma determinação econômica e sim de uma complexa
gama de fatores que contribuíram para que esse modelo se tornasse hegemônico e garantisse o intenso dinamismo
da economia capitalista, no pós-segunda guerra. Para Mattoso e Singer, os interesses do capital foram limitados
por uma intensa luta dos trabalhadores, que foi capaz de impor mudanças na forma de gestão econômica, no papel
e estrutura do Estado, na relação salarial e no padrão de consumo (Mattoso, 1995, Singer, 1989). Constitui-se o
Estado do Bem Estar Social - welfare state, que concilia a propriedade privada dos meios de produção com uma
gestão mais democrática da economia e com significativa elevação do padrão de vida para a maioria da população.
No final dos anos 60 esse modelo entra em crise, especialmente nos países capitalistas centrais. Cresce
a insatisfação dos operários com o modelo taylorista-fordista de execução de tarefas maçantes e repetitivas, ainda
que bem pagas. Os operários rompem com a disciplina imposta pelo capital colocando em risco a taxa de mais-valia
e a estabilidade do padrão produtivo. Nesta mesma época ocorrem enormes transformações culturais e explosões
sociais, sindicais e extra sindicais (como o maio de 68 francês, o outono quente italiano e outras), impedindo o
aumento da produtividade pela intensificação do ritmo de trabalho. As empresas aumentam os preços dos produtos
gerando inflação e questionam os compromissos assumidos no welfare state, passando a assumir políticas que
prejudicam as conquistas trabalhistas.
As mudanças são de tal envergadura que os estudiosos definem o processo como um novo padrão
produtivo, perceptível a partir dos anos 70, nos países capitalistas desenvolvidos e, no Brasil, nos anos 90. Esse novo
padrão produtivo, caracteriza-se, de um lado, pela introdução de novos materiais, pelas inovações tecnológicas e
pela intensificação do uso da tecnologia microeletrônica e, de outro, pela descentralização da produção (inverte-se
a tendência de verticalização das empresas, crescendo a terceirização, a complementação intersetorial, algumas
vezes formando redes) e por mudanças nas formas de organização e gestão do trabalho. Esse processo tem ocorrido
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com maior intensidade na produção industrial e nos setores de ponta da economia mas tem afetado todos os
setores da produção na sociedade.
As consequências destas mudanças para o trabalho são motivo de intenso debate e lutas entre capital e
trabalho, bem como de muitos estudos e pesquisas. O processo está em curso e resulta da dinâmica das lutas dos
diversos segmentos e classes sociais em defesa de seus interesses. Portanto, não há tendências irreversíveis. No
entanto, algumas consequências nefastas para os trabalhadores já estão claramente colocadas como o aumento do
desemprego, da concentração de renda, da desigualdade e a da pobreza.
Os trabalhadores de saúde, colocados neste cenário, tem que assumir o desafio de refletir sobre como
este processo está afetando o setor saúde. E preciso analisar os impactos positivos e negativos, tomando como
referência o já produzido em relação ao trabalho em geral e em relação ao conjunto da sociedade humana. Mas é
preciso considerar as especificidades do setor saúde, o que se constitui em um profícuo campo de estudos, nas mais
diversas modalidades de investigação.
Este texto foi elaborado, considerando uma pesquisa realizada sobre o trabalho em hospitais na região
sul do Brasil, nos anos de 1994 a 1996, cujos resultados estão publicados no livro "Reestruturação Produtiva e
Trabalho em Saúde no Brasil”, de minha autoria. Além disso, conta com conclusões de estudos recentes realizados
junto à rede pública de serviços de saúde em Santa Catarina por alunas do curso de Mestrado em Enfermagem da
Universidade Federal de Santa Catarina, como Argenta,1999, Martins, 1999; Gaio, 2000.
A referência para a análise do fenômeno foi a teorização sobre trabalho, com base no materialismo
histórico-dialético e uma revisão crítica das reflexões da Sociologia das Profissões.
O TRABALHO EM SERVIÇOS E O TRABALHO EM SAÚDE
TRABALHO EM SERVIÇOS
O chamado setor de serviços, ou setor terciário da economia, cresceu durante todo o século XX. Este
crescimento intensifica-se nos últimos 30 anos e tem sido apontado como uma das características do processo
recente de transformações no mundo do trabalho.
Os trabalhadores deste setor têm grande diferenciação entre si, no que diz respeito a prestígio, níveis
salariais e tipo de atividades desenvolvidas, mas unificam-se por executarem atividades diferentes da produção
material do tipo industrial (Braverman, 1981). Fazem parte deste grupo desde o office-boy até o gerente, os
funcionários públicos, profissões Iiberais3, os trabalhadores dos serviços privados, do setor financeiro, do comércio
e nos serviços das chamadas organizações do terceiro setor.
Na sua composição, destaca-se a expressiva participação de mulheres e de jovens como já apontava MiIIs
(1979) em estudo realizado nos EUA, nos anos 50. Essa característica mantém-se até hoje e também encontra-se,
no setor, idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais.
O resultado do trabalho em serviços pode ser um produto independente e passivei de negociação no
mercado - como os alimentos produzidos em um restaurante ou a produção e o consumo são indissociáveis,
ocorrem simultaneamente - como a prestação de serviços de saúde (Braverman. 1981 , Marx, 1969).
O setor de serviços, apesar da imensa diversidade de atividades, de formas de produzir e de lógica
organizacional, é parte da totalidade socio-histórica e modifica a sua organização e processo de trabalho no
conjunto da dinâmica social que provoca mudanças na produção material industrial. Foi influenciado pelo trabalho
parcelado e pela gestão taylorista-fordisla, e, também, está sendo influenciado pelas inovações tecnológicoorganizacionais do processo recente de reestruturação produtiva.
CONSIDERAÇÕES SOBRE PROFISSÃO E TRABALHO EM SAÚDE
Para refletir sobre o trabalho em saúde é necessário transitar, também, pela teorização produzida pela
Sociologia das Profissões.
Problemas de saúde existem desde os primórdios da humanidade e a assistência aos doentes sempre foi
um trabalho diferenciado, desenvolvido por individuas, reconhecidos pelo grupo, como dotados de capacidade e
conhecimento especial.
Ao longo da história, as concepções de saúde-doença, as práticas assistenciais, as formas de
desenvolvimento do trabalho, a divisão do trabalho e, também, o processo de formação profissional e de produção
de conhecimentos, modificaram-se. Porque essas práticas desenvolvem-se em sociedades especificas, sendo
influenciadas pelo modo de produção hegemônico, pela cultura e pela forma de organização da produção nos
setores mais dinâmicos da economia.
Pode-se afirmar que, de modo geral, o trabalho em saúde na Idade Média era desenvolvido por múltiplos
agentes que atuavam em "ramos", em atividades específicas, da assistência em saúde. Eram boticários, tisicas,
práticos, cirurgiões, barbeiros, e outros. Um trabalho que identificava-se com o TRABALHO DO TIPO ARTESANAL.
Essa designação corresponde ao trabalho desenvolvido por produtores especializados em determinado ramo de
atividade, que detinham controle sobre o seu processo de trabalho. Isto é, dominavam o conhecimento necessário
para a produção, responsabilizavam-se pela reprodução desses conhecimentos e pela formação de novos
profissionais; eram proprietários dos instrumentos de trabalho; controlavam o ritmo da produção e o preço do
produto.
As características de um trabalho PROFISSIONAL resgatadas pela sociologia das profissões, tem origem
naquele TRABALHO ARTESANAL desenvolvido na Idade Média. No entanto, para discutir profissão, hoje, é preciso
considerar a historicidade do conceito, para avaliar a possibilidade de sua aplicação. É preciso considerar as
profundas modificações ocorridas no trabalho, e nas profissões, com a estruturação do modo capitalista de
produção, bem como as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, nos últimos 30 anos. Isso posto, acredito que
para estudar trabalho e profissão em saúde é necessário analisar o fenômeno na sua inserção histórico-social,
relacionando o macro cenário com as características especificas do desenvolvimento do trabalho no setor. É preciso
avaliar se a teoria existente explica a realidade. A realidade do mundo do trabalho atual é mais complexa que o
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instrumental teórico produzido pela sociologia das profissões é capaz de explicar. Acho que a articulação daquela
vertente teórica com a teorização de Marx, sobre processo de trabalho, aliada às teorizações recentes sobre
trabalho industrial e trabalho em serviços, constitui-se em um caminho profícuo para análise do trabalho em saúde,
na realidade atual.
Do que existe produzido a respeito do conceito de profissão, considero útil entender PROFISSÃO como
a qualificação que detém um grupo de trabalhadores, especializados na realização de determinadas atividades, e
que dominam os conhecimentos que fundamentam a sua realização. Os profissionais controlam a produção e
reprodução dos conhecimentos necessários ao seu trabalho, através do ensino e da pesquisa. Os membros da
profissão estabelecem regras para o exercício profissional do grupo, fixadas em lei e/ou compartilhadas pelo grupo
e legitimadas pela sociedade em que vivem. Organizam-se em entidades do tipo associativo, de modo a garantir o
respeito às regras estabelecidas, a buscar o aprimoramento profissional e a desenvolver medidas de defesa do
grupo. No que diz respeito ao "controle sobre o processo de produção·, e a questão da autonomia profissional, não
me parece ser mais uma característica que pode ser considerada sem contextualizar a complexidade das formas de
organização do trabalho coletivo introduzidas pelo modo de produção capitalista, com o parcelamento de tarefas
e a gerência cientifica (Pires, 1989,1998).
medicações; uma orientação nutricional, etc. Envolve, basicamente, a realização de uma avaliação da situação de
saúde seguida da indicação e/ou realização de uma conduta terapêutica/assistencial.
O processo de trabalho dos profissionais de saúde tem como finalidade a ação terapêutica de saúde;
como objeto o indivíduo ou grupos doentes, sadios ou expostos a risco, necessitando medidas curativas, preservar
a saúde ou prevenir doenças; como instrumental de trabalho os instrumentos e as condutas que representam o
nível técnico do conhecimento que é o saber de saúde e o produto final é a própria prestação da assistência de
saúde que é produzida no mesmo momento que é consumida.
O trabalho pode ser desenvolvido de forma autónoma na relação profissional-cliente, geralmente na
modalidade ambulatorial ou no domicílio do cliente. Pode, também, ser desenvolvido em instituições, como parte
do trabalho coletivo, seja em hospitais, clínicas ou empresas. As instituições, sejam ambulatoriais ou hospitalares,
podem desenvolver-se no âmbito público, privado ou em organizações do terceiro setor. No trabalho coletivo, os
diversos profissionais de saúde desenvolvem parte do trabalho que tem como resultado, como produto, a
assistência de saúde. São atividades diferenciadas, que estudadas nas suas especificidades, permitem identificar
produtos distintos. Esses trabalhos, no conjunto, resultam na assistência a seres humanos que são totalidades
complexas.
O TRABALHO EM SAÚDE
O setor saúde é parte do selar de serviços, compartilha características do processo de produção no setor
terciário da economia, ao mesmo tempo que tem características especificas. As mudanças nos setores mais
dinâmicos da economia, seja na indústria, seja nos serviços, influenciam o setor saúde.
Atualmente, grande parte da atenção à saúde, prestada à população urbana do planeta desenvolve-se
em serviços de saúde institucionalizados, que organizam o seu funcionamento e processo de produção, dentro de
determinadas sociedades e sob influências diversas, como:
a) as regras resultantes do jogo político entre interesses divergentes que determinam as políticas vitoriosas em cada
momento;
b) os modelos administrativo-gerenciais hegemônicos adotados pelos setores de ponta da economia;
c) a tecnologia disponível e aplicável na área;
d) o paradigma hegemônico de produção de conhecimentos científicos e as características intrínsecas ao processo
específico de produção do ato assistencial em saúde;
e) o tipo de instituição, seja pública, privada ou do chamado terceiro setor. Estas instituições funcionam segundo
lógicas diferenciadas, bem como são influenciadas pelas determinações da fonte financiadora.
O trabalho assistencial em saúde é um trabalho essencial para a vida humana. O produto é indissociável
do processo que o produz, é a própria realização da atividade. A prestação do serviço - assistência de saúde - pode
assumir formas diversas como a realização de uma consulta; uma cirurgia; um exame-diagnóstico; a aplicação de
O trabalho em saúde é hoje, majoritariamente, um trabalho coletivo realizado por diversos profissionais
de saúde e diversos profissionais ou trabalhadores treinados para realizar uma série de atividades necessárias para
a manutenção da estrutura institucional.
O trabalho é compartimentalizado, cada grupo profissional se organiza e presta parte da assistência de
saúde separado dos demais, muitas vezes duplicando esforços e até tomando atitudes contraditórias.
O médico é o elemento central do processo assistencial em saúde a nível institucional. Os demais
profissionais participam da assistência, subordinando-se às decisões médicas mas cada categoria profissional
mantém certa autonomia de avaliação e tomada de decisões.
O ato assistencial em saúde envolve um conhecimento sobre o processo que não é dominado pela
administração da instituição e nem existe uma equipe de técnicos e gerentes que determinem qual é a tecnologia
assistencial que será empregada e qual o papel de cada trabalhador, como ocorre em empresas da produção
material. Os profissionais envolvidos dominam os conhecimentos para o exercício das atividades específicas de sua
qualificação profissional. Os médicos, ao mesmo tempo que dominam o processo de trabalho em saúde, delegam
campos de atividades a outros profissionais de saúde como enfermagem, nutrição, fisioterapia, ele. Esses
profissionais executam atividades delegadas, mas mantém certo espaço de decisão e domínio de conhecimentos,
típico do trabalho profissional. Tomam decisões, desde que elas não contradigam as decisões médicas, salvo por
acordo entre as partes.
No espaço institucional, convivem características do trabalho assalariado e da divisão parcelar do
trabalho, com características do trabalho profissional do tipo artesanal.
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No espaço autônomo das diversas profissões em saúde, ao relacionarem-se com os clientes/usuários
que necessitam de seu trabalho profissional, predominam as características do trabalho profissional do tipo
artesanal.
Apesar dos poucos estudos existentes sobre como o processo de transformações do mundo do trabalho
está influenciando o setor saúde, é passível apontar que características do processo de reestruturação produtiva
estão presentes no setor, e fazer considerações sobre o impacto do mesmo nas diversas dimensões do processo de
trabalho em saúde.
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O TRABALHO EM SAÚDE
Características do processo de reestruturação produtiva no setor saúde
A DINÂMICA DOS SERVIÇOS DE SAÚDE NO CONTEXTO ATUAL
- O setor saúde usa intensivamente as chamadas novas tecnologias.
Os serviços de saúde fazem parte das atividades imprescindíveis para a vida em sociedade, e, quando os
custos envolvidos na sua produção passam a ser inviáveis economicamente, não existe ·um· caminho tendencial a
ser seguido e diversas saídas são possíveis.
Considerando a teorização de Offe (1991), a respeito da dinâmica do setor de serviços e confrontando
com os dados das pesquisas e a bibliografia disponível sobre a dinâmica dos serviços de saúde, encontrei que, em
situações de crise, as alternativas utilizadas para sobrevivência dos serviços de saúde podem ser: a introdução de
inovações tecnológico-organizacionais; a redução da força de trabalho; a redução da força de trabalho qualificada;
a introdução de medidas para o aumento do rendimento do trabalho; o congelamento ou redução de salários; a
precarização das relações de trabalho; a externalização, dentre outras. A implementação, de uma ou outra medida,
ou de um conjunto delas, depende de diversos fatores, especialmente da capacidade dos diversos grupos e classes
sociais fazerem valer os seus interesses.
Quando essas medidas não são suficientes, no caso dos serviços privados, se não houver outras formas
de injeção de recursos públicos ou privados, os serviços podem simplesmente fechar, como ocorre nas demais
empresas capitalistas. Os serviços rentáveis são mantidos e a responsabilidade sobre o oferecimento dos serviços
não rentáveis, mas que são essenciais, passa para a sociedade em geral e para os governos, em particular.
Se o problema da elevação dos custos de produção e manutenção, está ocorrendo nos serviços públicos,
a opção por uma ou outra estratégia de racionalização, bem como, as decisões sobre investimentos e rumo dos
investimentos, dependem de múltiplos fatores como, a visão política da instituição, a política governamental
relativa à saúde, os interesses das diversas categorias profissionais, considerando o peso político das mesmas e a
capacidade de suas organizações em influenciar decisões. Dependem, também, da capacidade das organizações
sindicais e políticas, dos trabalhadores em geral, e das organizações representativas dos clientes fazerem valer as
suas demandas.
Se a elevação dos custos ocorre em instituições do chamado terceiro setor, podemos encontrar
diferenças, uma vez que a "orientação para valores” mobiliza uma capacidade "extra” de doação das pessoas ao
trabalho, inclusive aceitando períodos ou horas de trabalho não pago. A opção para a saída da crise pode ser a
busca de novos financiadores, estabelecer um consórcio de financiadores ou trocar de financiador. Pode ocorrer
repasse do ônus financeiro ao usuário; podem ser elaboradas medidas para controle da demanda.
O IMPACTO DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO TRABALHO EM SAÚDE
Equipamentos de tecnologia de ponta, os chamados novos materiais e os avanços da bio-engenharia e
da engenharia genética estão presentes no setor. Mudam os instrumentos de trabalho e as tecnologias empregadas
para exames diagnóstico e, também para tratamentos. Encontra-se, por exemplo, bombas de infusão; tomógrafo
computadorizado; laser em cirurgias; experiências para aplicação de medicamentos por meio de adesivos elétricos;
terapias genéticas e tantos outros. A disponibilidade desses equipamentos e o uso de tecnologia diagnóstica e
terapêutica, no caso brasileiro, tem uma distribuição absolutamente desigual, se considerarmos o conjunto dos
serviços de saúde.
- Em relação as inovações tecnológico-organizacionais pode-se dizer que uma tendência, bastante
significativa é a ampliação da terceirização.
Esta tendência verifica-se especialmente nos hospitais. Sendo possível encontrar uma mudança na
estrutura verticalizada dos hospitais. Encontra-se, até, uma estrutura física e organizacional semelhante a de
"redes” encontrada nas empresas da produção material. No Brasil, esta estrutura "em rede" é mais visível nos
hospitais privados considerados de ponta e que existem nos grandes centros urbanos.
- Em relação a organização do trabalho e modelo assistencial.
O setor saúde usa, intensivamente, equipamentos considerados de tecnologia de ponta e muito pouco
as novas tecnologias de organização do trabalho. O trabalho em saúde, seja em instituições públicas ou privadas,
quando realizado por múltiplos exercentes mantém fortes características da lógica taylorista e do paradigma
positivista de ciência, concomitantemente com características do trabalho profissional. Majoritariamente, pode-se
identificar as seguintes características:
a) inexistência de coordenação da assistência prestada pelos diversos grupos de profissionais de saúde,
bem como de instâncias de planejamento coletivo e de espaços conjuntos de avaliação da assistência prestada;
b) compartimentalização / fragmentação do trabalho assistencial, onde cada grupo profissional se
organiza e presta parte da assistência de saúde separado dos demais, muitas vezes duplicando esforços e até
tomando atitudes contraditórias;
c) convivência de características do trabalho parcelado com características do trabalho do tipo artesanal;
inexistência de práticas interdisciplinares no processo assistencial em saúde, de modo que a especialização do
conhecimento ao invés de possibilitar avanço, gera fragmentação e alienação
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d) identificação de quem recebe a assistência de saúde como “paciente” e não como um ser humano
que tem características individuais e direito de decidir sobre a sua vida.
setores dentro dos serviços que têm perdido postos de trabalho com a reestruturação produtiva, como é o exemplo
dos bancos.
Impacto das mudanças nas diversas dimensões do processo de trabalho
No entanto, o uso de equipamentos de tecnologia de ponta aumentou o rendimento do trabalho nas
instituições assistenciais, permitindo uma ampliação dos serviços com o mesmo contingente de força de trabalho
(Pires, 1998). Com o mesmo número de trabalhadores, foi possível atender mais pessoas, correspondendo a uma
das funções da mecanização citadas por Offe (1991), de que a mecanização possibilita a manutenção do serviço
com um menor contingente numérico de força de trabalho.
- Em relação ao emprego.
O aumento do desemprego é uma das consequências negativas mais significativas do processo de
reestruturação produtiva. Segundo Mattoso (1995), nos países da OCDEI, em 1993, já existiam 30 milhões de
desempregados e, considerando-se o planeta, em 1998, os desempregados somavam 800 milhões (Rossi, 1998).
Infelizmente, chegamos ao ano 2000, sem qualquer mudança nessa tendência de crescimento.
No Brasil, em 1997, segundo o IBGE, a taxa de desemprego, era de 7,30% da PEA (percentual da
População Economicamente Ativa), correspondendo a 5,08 milhões de trabalhadores sem emprego (Toledo, 1998).
O desemprego, no Brasil, aumentou muito na década que fechou o milênio, e várias causas tem sido apontada.
Primeira, a abertura da economia sem preparo das empresas, as quais acabaram quebrando no processo de
concorrência com os produtos produzidos em outros países. Segunda, o aumento da taxa de juros, remunerando o
capital financeiro internacional e com poucos incentivos para o crescimento econômico. Terceira, a intensificação
da reestruturação do processo de produção, com investimento em tecnologia poupadora de mão de obra - bastante
visível no selar industrial e em setores de ponta dos serviços como o setor bancário.
No entanto, na saúde, os estudos realizados, até hoje, não mostram um aumento do desemprego
(Nogueira, 1987, Pires, 1998). Ao contrário, alguns estudos apontam que há um acréscimo de postos de trabalho
no setor, com perspectiva de continuar crescendo (Drucker, 1995, Dimenstein, 1998).
Apesar da provisoriedade destes dados, pode-se sistematizar algumas explicações de por que, ao
contrário dos outros setores, não se verifica, atualmente, um aumentado desemprego em saúde:
a) A utilização de equipamentos de tecnologia de ponta, no campo da saúde, não substituiu o trabalho
humano de investigação, avaliação e decisão sobre a terapêutica, nem o trabalho humano nos tratamentos de
forma geral. Não substitui os cuidados, bem como, para a utilização de qualquer equipamento é preciso decisão
humana, programação para o funcionamento da máquina, definição de parâmetros e avaliação constante das
informações fornecidas pelas mesmas. Os equipamentos são utilizados no tratamento de seres humanos que têm
reações individuais e precisam ser tratados e avaliados como individualidades;
b) Parte significativa dos equipamentos de tecnologia de ponta são utilizados para investigação
diagnóstica e não substituem o trabalho de investigação clínica, de modo que são acrescentados novos
instrumentos ao trabalho assistencial, os quais, muitas vezes, requerem locais especiais, com pessoal preparado
para manuseio (Nogueira, 1987a, 1987b);
c) O desemprego mais significativo tem ocorrido no setor industrial, sendo que o setor de serviços tem
aumentado o número de empregos durante todo este século (Maoso, 1995, Saboia, 1992). Apesar disso, existem
Associando estes fatores ao aumento da externalização (terceirização) e do auto-serviço, a médio prazo
pode ocorrer uma redistribuição do emprego em serviços e a longo prazo poderá ocorrer mudanças na tendência
aluai de crescimento do emprego em saúde.
No que diz respeito a relações contratuais, condições de trabalho e segurança no emprego.
Encontra-se diversas formas de relações contratuais no conjunto do trabalho em saúde. Também
existem diferenças entre as categorias profissionais em saúde. No entanto, é possível afirmar o predomínio do
trabalho assalariado e o aumento das formas de precarização do trabalho.
a) Trabalho autónomo - o profissional desenvolve atividades na instituição sem vínculo empregatício e
sem contrato de prestação de serviços. Dispõe de autorização da instituição para utilizar os serviços e equipamentos
da mesma no atendimento de seus clientes. O profissional tem controle sobre o ritmo e preço do seu trabalho,
apesar dos constrangimentos legais e institucionais causados pela legislação e normatização vigente, relativa a sua
atuação profissional e às regras estabelecidas pela instituição. A remuneração do trabalho do profissional autônomo
é feita pelo cliente. Esse tipo de relação de trabalho é mais encontrada entre os médicos de hospitais privados e,
também, no trabalho de médicos, odontólogos, psicólogos, e outros, que oferecem serviços em consultórios
particulares (relação profissional X cliente). Na enfermagem é mais rara a atuação em consultórios particulares mas
a relação de trabalho autônomo tende a crescer na modalidade de enfermagem domiciliar.
b) Prestação de serviço - profissionais, grupos cooperativos ou empresas podem ter contrato de
prestação de serviço com as instituições como anestesistas, fonoaudiólogos, e outros. O indivíduo ou grupo tem um
contrato com a instituição que o obriga a cumprir determinadas regras, horários e prestar determinados serviços.
A remuneração pode ser feita pela instituição ou o profissional pode receber uma taxa básica da instituição
acrescida de remuneração direta pelos clientes ou através das empresas de convênios de saúde. Esse trabalho pode
ter-se originado de setores da "instituição mãe" que foram terceirizados.
c) Assalariamento - caracteriza-se pela venda da força de trabalho por um salário. É a relação de trabalho
majoritária, com diferenciações entre as diversas categorias profissionais. Há grandes diferenciações em relação a
salário, garantia de emprego e jornada de trabalho. Pode ocorrer empresariamento dentro de uma profissão - um
profissional é proprietário da instituição e assalaria o trabalho de colegas.
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d) Precarização do trabalho - a multiplicidade de relações contratuais e de trabalho encontradas neste
processo recente de reestruturação produtiva, tem sido chamadas, pelos defensores, de flexibilização e, pelos
críticos, de precarização das relações de trabalho. Na saúde, apesar de não dispormos de pesquisas com dados
nacionais que permitam estudos comparativos sobre a força de trabalho em saúde, podemos apontar a existência
crescente de trabalhadores com contratos temporários, ou contratados para realizar atividades especiais, sem as
garantias trabalhistas que gozam os demais trabalhadores assalariados da instituição. Gomo nos demais setores da
produção, a terceirização na saúde tem sido utilizada pelos empregadores, tanto do setor público quanto do
privado, para diminuir os custos com a remuneração da força de trabalho e para fugir das conquistas salariais e
direitos trabalhistas dos trabalhadores efetivos da empresa-mãe (instituição-original) (DIEESE, 1993, Pires, 1998).
- Em relação a qualificação dos trabalhadores.
Tanto pode ser utilizado um trabalho mais qualificado para permitir a realização de um trabalho mais
criativo e eficiente e não apenas mecânico, quanto pode aumentar o parcelamento do trabalho e a utilização de
trabalho desqualificado (cumprir tarefas delegadas, por exemplo, apenas verificar e registrar os dados fornecidos
pela máquina sem entender o seu funcionamento nem o significado dos dados obtidos).
No que diz respeito a qualificação da força de trabalho em saúde, os dados sobre a força de trabalho em
enfermagem, que representa mais de 50% da força de trabalho em saúde, apontam uma melhora. Aumentou o
percentual de enfermeiros em relação à equipe de enfermagem. Na última pesquisa nacional ABEn/GOFEN, de 1983
(publicada em 1985), os enfermeiros eram 8,5% da equipe de enfermagem. Em 1997, analisando os dados do
GOFEn, verifica-se que os enfermeiros correspondem a 12,55% da equipe de enfermagem (considerando-se um
total que não inclui os agentes comunitários de saúde). Em 1983, os atendentes de enfermagem) eram 63,8% da
equipe de enfermagem e, em 1997, são 25,45% da equipe. No entanto, acredito que essa modificação resultou,
principalmente, das lutas desenvolvidas pela enfermagem organizada nos anos 80. Os profissionais de enfermagem
passaram a intervir no cenário político em saúde e a fazer campanhas pela valorização da profissão, conseguindo
atualizar a Lei do Exercício Profissional, conquistando a aprovação da Lei 7498/86. Esta nova Lei, apesar de suas
imperfeições, foi um incentivo para a mobilização (de parte da categoria) pela profissionalização dos atendentes de
enfermagem, bem como forçou o reconhecimento das autoridades sanitárias da importância do trabalho
profissional da enfermagem. Essa situação está em intenso processo de mudança, pois, com a criação da categoria
do agente comunitário de saúde, o governo está, novamente, investindo na estratégia de diminuição de custos,
colocando, aceleradamente, no mercado de trabalho um enorme contingente de trabalhadores treinados para o
exercício de ações específicas de saúde. Trata-se de trabalho precário, no sentido dos direitos trabalhistas, ao
mesmo tempo que o governo sinaliza que para cuidar em saúde não é necessário um trabalho profissional.
dominam os conhecimentos relativos aos equipamentos e aos quadros clínicos, ficam sem elementos para avaliar
as decisões médicas, podendo ser lesados com gastos adicionais que beneficiarão a instituição e/ou o médico.
- Em relação a saúde dos trabalhadores. O uso de equipamentos de tecnologia de ponta tem facilitado o
trabalho provocando menos desgaste da força de trabalho mas pode haver, também, consequências nefastas para
a saúde dos mesmos, como, por exemplo, as consequências dos ruídos dos equipamentos nas unidades de terapia
intensiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cenário para os trabalhadores em geral e para os de saúde é extremamente adverso, complexo, e exige
de nós grande capacidade de reflexão teórica para entender os problemas atuais. Exige, fundamentalmente,
capacitação política dos trabalhadores para estabelecer formas de luta que enfrentem as ofensivas do capital e as
políticas neoliberais na busca da valorização do seu trabalho e de respeito às suas necessidades. Exige, ainda, a
coragem para superar a fragmentação e pulverização das entidades representativas fortalecendo iniciativas de
organização profissional em entidades unitárias, que representem sindicalmente e profissionalmente os diversos
grupos especializados de trabalhadores. Uma organização profissional para pensar a necessidade de formação, de
conhecimentos, de formas éticas de ação, com vistas a mostrar para a sociedade a sua importância e utilidade. Mas
é fundamental, também, a organização horizontal c1assista que articula as diversas entidades representativas de
trabalhadores em uma central sindical, com vistas ao desenvolvimento de lutas conjuntas, no âmbito das políticas
globais. Enfim, são fundamentais a organização profissional e a organização classista.
É preciso refletir sobre o conjunto das profissões de saúde, suas especificidades e onde se articulam,
contextualizando o debate na complexa realidade atual. É preciso refletir sobre o processo de reestruturação
produtiva e como ele se expressa no setor saúde, especialmente as suas consequências para a qualidade da
assistência e para os trabalhadores em saúde.
O campo é vasto para pesquisas, seja as de cunho local que podem fornecer uma visão mais detalhada
da complexidade do fenômeno, quanto podem contribuir para análises comparativas. São relevantes os estudos
históricos que permitem entender o fenômeno ao longo do tempo e, também, são necessários estudos sobre o
perfil da força de trabalho, que caracterize, dentre outros aspectos, o quadro das relações contratuais no selar
saúde e da situação do emprego e desemprego no setor.
PIRES, Denise. Reestruturação produtiva e conseqüências para o trabalho em saúde: implicaciones para el trabajo
en salud. Rev. bras. enferm. [online]. 2000, vol.53, n.2, pp. 251-263. ISSN 0034-7167.
- No que diz respeito as vantagens e desvantagens da utilização de equipamentos de tecnologia de ponta
para os clientes. Pode-se perceber que alguns procedimentos ficaram menos invasivos, propiciando uma
recuperação mais rápida dos clientes e com menos complicações. Alguns tratamentos tomaram-se menos
dolorosos e alguns diagnósticos puderam ser feitos mais rápidos e com maior precisão. No entanto, os
equipamentos de tecnologia de ponta podem trazer prejuízos aos pacientes/clientes porque, como os clientes não
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TEXTO 17: Saúde e Comunidades Quilombolas: Uma Revisão de Literatura
INTRODUÇÃO
A cor da pele pode ser vista como manifestação biológica na figura humana, mas também pode se mascarar em
expressão racializada da biologia, quando exposta à atitudes segregadoras dentro da sociedade. Os termos raça e
etnicidade são categorias sociais, mais do que biológica, referente a grupos que têm em comum uma herança
cultural.As desigualdades raciais, nas condições de saúde das populações, permanecem sendo um grande problema
de saúde pública em vários países, como expressão de diferenças biológicas, disparidades sociais e discriminação
étnica1,2.
Durante séculos, as comunidades negras rurais constituíram processos que possibilitaram a construção de uma
significativa rede de relações socioculturais, econômicas e políticas; a formação de quilombos está no cerne destes
acontecimentos1,3.
Reconhecidas oficialmente pelo Estado brasileiro em 1988, principalmente com a afirmação de seus direitos
territoriais por meio do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição (ADCT), as
comunidades quilombolas despertam uma série de questões socioeconômicas, espaciais, jurídicas e culturais que
fazem parte da discussão sobre o que representam os quilombos contemporâneos na atualidade e sobre a sua
efetiva inserção cidadã1,4.
É preciso ampliar a discussão do direito à saúde, que é uma das premissas básicas do SUS, levando-se em conta que
o acesso ao mesmo, passa ainda pelas condições sociais e econômicas da população e não apenas de sua condição
étnica. Mas sem perdermos de vista que a universalidade do SUS, que seria o pleno acesso aos serviços públicos de
saúde e de qualidade, para toda a população brasileira ainda não se efetivou na prática. Para o Ministério da Saúde,
a política de inclusão da população quilombola inicia-se, efetivamente, em 2004 com a Portaria n.º 1.434, de
14/7/20045, que criou um incentivo para a ampliação de equipes de estratégia da saúde para as comunidades
quilombolas3,5.
Contextualizando este tema tão relevante e tão atual, é grande a necessidade de compreensão por todas as
profissões ligadas à área de saúde, uma vez que a efetividade das ações só é possível quando os recursos humanos
se apoderam do conhecimento norteador destas atividades. Este estudo realiza uma abordagem revisional na
literatura científica atual, com o intuito de apresentar aos profissionais de saúde uma reflexão sobre as questões
pertinentes às populações quilombolas e suas dificuldades na defesa de seus direitos de acesso à atenção em saúde.
MÉTODO
Para o desenvolvimento deste estudo sobre saúde e as populações quilombolas, foram realizadas buscas de
literatura científica nas seguintes bases de dados on-line/portais de pesquisa: Pubmed/Medline, Scielo, LILACS e
BIREME. Os descritores e expressões utilizados durante as buscas nas bases de dados foram: quilombolas, saúde de
quilombolas, quilombos, desigualdade social, vulnerabilidade social, critérios raça/cor e saúde, atenção a saúde de
quilombolas, quilombolas e saúde da família. Foram utilizados os artigos publicados nos últimos 10 anos, os quais
correspondem aos anos de 2000 ao ano de 2010, de qualquer idioma, que apresentassem relevância relativa ao
tema pesquisado. Também foram utilizados documentos e publicações governamentais, extremamente
importantes para definições e conceitos. Foram achados 52 artigos, tendo sido excluídos os artigos publicados antes
do ano 2000 e/ou que não contemplassem o texto completo. Os artigos foram estudados em sua plenitude e
compilados a partir do eixo central da pesquisa.
REVISÃO DA LITERATURA
Quilombos, Quilombolas e Racismo
A palavra "quilombo", que em sua etimologia bantu quer dizer acampamento guerreiro na floresta, foi popularizada
no Brasil pela administração colonial, em suas leis, relatórios, atos e decretos, para se referir às unidades de apoio
mútuo criadas pelos rebeldes ao sistema escravista e às suas reações, organizações e lutas pelo fim da escravidão
no País. Essa palavra teve também um significado especial para os libertos, em sua trajetória, conquista e liberdade,
alcançando amplas dimensões e conteúdos. Pensar um quilombo pode levar, e constantemente leva, a um impulso
quase inconsciente de imaginar um local habitado por negros que, numa luta sangrenta, buscam a liberdade com a
fuga, retirando-se do campo mais direto de batalha para continuarem em outras frentes de luta. A casa grande e a
senzala sempre foram espaços de organização e luta política. Fugir dos grilhões, que aprisionavam a uma situação
de exploração máxima, foi, sem dúvida, uma forma de resistir ao sistema escravista e de alcançar a liberdade2, 3.
Escravos fora do trabalho significavam perdas irreparáveis para o senhor fazendeiro que, com a fuga, via fugir seu
fundamental meio de produção; daí organizar batalhões de regaste de negros dos quilombos, escolhendo para tal
ação lugares estratégicos. A imagem do quilombo como refúgio, como foco de resistência, é diversamente
reconstruída a cada novo momento, para reafirmar a luta de uma minoria étnica. Imagem marcante, com toda a
sua potência, sobre uma população que, de certo modo, favoreceu a aprovação de dispositivos constitucionais em
1988, garantindo a todos os remanescentes de quilombos, descendentes de ex-escravos, ou aos que se
autorreconhecem como tal, o direito ao território por eles habitado. Fato marcante da história do Brasil, no período
pós-abolição, é que os negros foram expulsos das regiões centrais da cidade. Eles foram perseguidos, pois eram
vistos como símbolo do não-desenvolvimento e da não-civilização. Essa situação promoveu uma divisão territorial
dos espaços urbanos e rurais em que foi definindo uma territorialidade, quando os grupos "de cor" foram se
estabelecendo em lugares segregados, como as comunidades quilombolas2,6-9.
Durante o processo de redemocratização brasileira, que culminou na Constituinte de 1988, levantou-se a voz do
senador Abdias do Nascimento; que proclamava ser necessária a presença da maioria afro-brasileira em todos os
níveis de poder, e reafirmava o quilombismo como um movimento político não segregacionista, que busca o poder
político realmente democrático9-11. Os livros de História do Brasil sempre ensinaram os acontecimentos pósescravidão relegando a segundo plano os assuntos relativos ao racismo; mascarando as graves questões sociais e
discriminatórias que empurraram a população negra para os níveis mais inferiores de atenção e assistência
governamental6,7,9,12.
Dentro do contexto das chamadas populações tradicionais no Brasil, é um desafio conceituar aquilo que chamamos
de população quilombola. Optamos por enquadrar este grupo étnico, como um grupo minoritário dentro da
população negra, a exemplo da metodologia utilizada pelo Ministério da Saúde. Ainda podemos utilizar o conceito
de comunidades remanescentes de quilombos do Governo Federal, que é utilizado pelos Ministérios e pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária, por meio da Instrução Normativa N.º16, de 24 de março de 2004 que
diz em seu artigo terceiro e quarto: "Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos
étnicoraciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Consideram-se terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos toda a terra utilizada para a
garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, bem como as áreas detentoras de recursos
ambientes necessários à preservação dos seus costumes, tradições, cultura e lazer, englobando os espaços de
moradia e, inclusive, os espaços destinados aos cultos religiosos e os sítios que contenham reminiscências históricas
dos antigos quilombos"9,13.
A população quilombola ainda luta por igualdade de direitos, pela posse e regularização fundiária de suas terras,
pela ampliação de uma cidadania plena e pela equidade na saúde pública no nosso país. Os quilombolas estão
distribuídos por todo território nacional, e muitos ainda vivem em comunidades formadas por forte vínculo de
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parentesco, mantendo ainda vivas tradições culturais e religiosas. Os membros da comunidade estão ligados a
trabalhos rurais, ou culturas de subsistência, e muitos dependem de programas de transferência de renda, como o
Bolsa Família, entre outros7, 9,14.
O racismo surge na cena política brasileira, como doutrina científica, quando se avizinha à abolição da escravatura
e, conseqüentemente, à igualdade política e formal entre todos os brasileiros, e mesmo entre estes e os africanos
escravizados. Jamais pode ser visto apenas como reação à igualdade legal entre cidadãos formais, que se instalava
com o fim da escravidão; foi também o modo como as elites intelectuais reagiam às desigualdades regionais
crescentes que se avolumavam entre o Norte e o Sul do país, em decorrência da decadência do açúcar e da
prosperidade trazida pelo café. Porém, as gerações atuais não devem e nem podem conceber a existência de um
apoio sistemático ao crescimento desta relação desigual.15 A união dos componentes ligados ao racismo
(desigualdades, iniqüidades, segregação, exclusão étnica) fortalece um sistema altamente retrógrado, distancia as
pessoas e coloca o país em rota de colisão com os organismos internacionais de Direitos Humanos. É muito difícil
ao homem contemporâneo explicar as razões de tamanha luta em defesa de algo que representa a essência da
figura humana, aponta-se a esperança quando os jovens emitem seus brados de inclusão e igualdade9, 11,13-15.
Saúde e Quilombolas
As diversas definições de determinantes sociais de saúde (DSS) expressam, com maior ou menor nível de detalhe,
o conceito atualmente bastante generalizado de que as condições de vida e trabalho dos indivíduos e de grupos da
população estão relacionadas com sua situação de saúde. Para a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais
da Saúde – CNDSS (2007), os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e
comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. A
Organização Mundial da Saúde – OMS (2008) adota uma definição mais curta, segundo a qual os DSS são as
condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham. O principal desafio dos estudos sobre as relações entre
determinantes sociais e saúde consiste em estabelecer uma hierarquia de determinações entre os fatores mais
gerais de natureza social, econômica, política e as mediações através das quais esses fatores incidem sobre a
situação de saúde de grupos e pessoas, já que a relação de determinação não é uma simples relação direta de
causa–efeito. Inegável é, portanto, que grupos que foram historicamente perseguidos e/ou excluídos, enfrentem
horizontes obscurecidos quanto ao acesso em saúde16,17.
O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Ou seja: saúde não representa a
mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social. Dependerá de valores
individuais, dependerá de concepções científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das doenças.
Aquilo que é considerado doença varia muito. Houve época, em que o desejo de fuga dos escravos era considerado
enfermidade mental: a drapetomania (do grego drapetes, escravo). O diagnóstico foi proposto em 1851 por Samuel
A. Cartwright, médico do estado da Louisiana, no escravagista sul dos Estados Unidos. O tratamento proposto era
o do açoite, também aplicável à "disestesia etiópica", outro diagnóstico do doutor Cartwright, este explicando a
falta de motivação para o trabalho entre os negros escravizados18.
É imprescindível, para a compreensão dos temas atuais de saúde que após o reconhecimento constitucional (1988)
da saúde como direito, a implantação inicial do Sistema Único de Saúde se deu em um contexto desfavorável à
expansão de políticas sociais universalistas. A condução nacional da política de saúde foi unificada no Ministério da
Saúde, cujo modelo de intervenção expressou uma fragilidade do planejamento integrado e a preponderância de
estratégias de curto prazo. Apesar de os planos serem previstos nas leis da saúde como instrumentos de gestão das
três esferas de governo, durante os anos noventa, o Ministério da Saúde não elaborou um plano nacional de saúde
que explicitasse o diagnóstico situacional, diretrizes, prioridades e recursos de forma abrangente. Assim, as
populações outrora alijadas dos processos de crescimento na atenção em saúde continuaram permanecendo à
margem desta nova realidade19,20.
Sempre que se trata de políticas especiais, um grande número de profissionais e pesquisadores busca debater se
esta é necessária ou não, e atentam quase sempre para as questões de densidade populacional ou mesmo de
dispersão territorial, e a indicação numérica do movimento quilombola. A Secretaria Especial de Promoção da
Igualdade Racial – Seppir (2010) estima a existência de 3.900 comunidades quilombolas em todo o país,
acrescentando a esta estimativa a de que tais comunidades corresponderiam a 325 mil famílias, numa razão de
pouco mais de 80 famílias por comunidade. Este, ao menos do ponto de vista das manifestações públicas desta
secretaria, é o horizonte populacional para o qual ela tem a função de articular as várias políticas públicas, dispersas
por diferentes ministérios, fundações e secretarias. O número de comunidades registradas nas atuais políticas
públicas, porém, estabelecido por meio do processo de certificação da Fundação Cultural Palmares, é de 1.739. Se
aplicássemos a mesma razão de 80 famílias por comunidade usada na estimativa da Seppir, isso nos levaria a pouco
menos que 145 mil famílias atendidas13,21,22.
O Governo Federal incluiu em suas ações e propostas futuras algumas iniciativas que estão concentradas no PAC
Quilombola e são quase completamente centradas em obras de saneamento e infraestrutura. No relatório do
Ministério da Saúde, por sua vez, as ações voltadas à população quilombola estão, em geral, marcadas pela ideia
de "incentivo à equidade", por meio da extensão da cobertura de ações já existentes, tais como o Programa de
Habitação e Saneamento, as ações de segurança alimentar e nutricional e a Estratégia de Saúde da Família (ESF).
Além disso, fala-se também na "realização de oficinas de mobilização social e educação em saúde" específicas e na
inclusão, entre os critérios de elegibilidade para financiamento e execução de projetos de saneamento em
municípios com população menor que 30 mil habitantes, da presença de comunidades quilombolas, além dos
assentamentos e reservas extrativistas13,21-23.
Com objetivo de atingir um financiamento mais eqüitativo a Portaria do Ministério da Saúde (GM/MS nº 1.434), de
14/07/04, estabeleceu um adicional de 50% no valor dos incentivos de Saúde da Família e Saúde Bucal para
municípios com menos de 30.000 habitantes (menos de 50.000 na Amazônia Legal) e com Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) menor ou igual a 0,7. Também foi implementado este diferencial no valor para as
equipes que atuam em áreas de assentamentos rurais e de quilombolas em municípios que não se enquadravam
nos critérios anteriores. Importante destacar que pela primeira vez foram empregados indicadores de condições
sociais como critério para diferenciar os repasses federais aos municípios para financiamento do SUS. Tais medidas
beneficiaram 3008 municípios (2010) (54,06%), sendo que os 2281 municípios mais pobres do país passaram a ter
50% a mais nos valores dos incentivos para todas as suas equipes (41,01% do total de municípios brasileiros) e 727
municípios para aquelas equipes que cobrem populações de assentamentos rurais e remanescentes de
Quilombos21-26.
A visão de vulnerabilidade social é, usualmente, referida nos quilombos em relação à saúde e à doença. A
morbimortalidade, tanto de origem infectocontagiosa quanto crônico-degenerativa, compõe o repertório de
reflexão desta rede de causalidade da insegurança. A importância do recorte étnico/racial na assistência e na
atenção em saúde relativa às doenças e às condições de vida da população negra, permite que sejam identificados
contingentes populacionais mais suscetíveis a agravos à saúde, como hipertensão e anemia falciforme13, 22,26-28.
A política governamental brasileira para a Saúde Bucal compreendeu que se deve "ampliar e qualificar o acesso ao
atendimento básico", garantindo serviços odontológicos em todas as unidades básicas de saúde, incluindo áreas
rurais, de difícil acesso e de fronteiras nacionais, com atendimentos em horários que possibilitem o acesso de
adultos e trabalhadores a esse tipo de assistência, inclusive com a implantação, pelo setor público, de laboratórios
de próteses dentárias de âmbito regional ou municipal. Foi enfatizada a importância de "implementar ações de
saúde bucal junto às populações remanescentes de quilombos, após ampla discussão com as suas organizações, a
fim de se garantir o estabelecimento de um programa de atendimento de caráter não-mutilador, universal, integral
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CADERNO DE TEXTOS
e com equidade, e que considere as experiências e os valores culturais relacionados às práticas higiênicas e
dietéticas de cada povo quilombola"5,9,22,29,30.
Quando se pensa nas comunidades quilombolas e seu acesso às políticas de saúde, não há como fechar os olhos ao
grave problema das crianças. As comunidades, em sua maioria, caracterizam-se pelo forte vínculo com o meio
ambiente. As famílias destas comunidades vivem da agricultura de subsistência, sendo a atividade econômica
baseada na mão de obra familiar, para assegurar os produtos básicos para o consumo. As crianças aprendem a lida
na roça desde muito tenra idade. As condições sanitárias destas populações são insuficientes; a maior parte não
possui água tratada e nem esgoto sanitário. Outra característica importante dessas comunidades é a ausência de
serviços de saúde locais, fazendo com que, ao surgirem doenças, seus habitantes sejam obrigados a percorrer
grandes distâncias em busca de ajuda. Todas estas questões acabam por aumentar o baixo índice de indicadores de
saúde entre as crianças quilombolas22, 26,29-31.
A doença falciforme e a hipertensão arterial têm sido registradas com freqüência nos dados coletados junto às
comunidades quilombolas. Evidentemente que, a ausência de água tratada e a falta de condições sanitárias ideais,
tem provocado o relato substancial de surtos de diarréia e doenças dermatológicas entre grande quantidade das
populações remanescentes de quilombos. A grande problemática está em oferecer saúde integral combinada com
a manutenção das crenças e tradições destes grupos. Cabe aqui ressaltar que, muitos povos quilombolas, ainda se
utilizam de práticas alternativas e do uso de plantas consideradas por eles como medicinais28-34.
A falta de perspectiva com relação ao futuro e ao crescimento pessoal, somados às difíceis condições de moradia e
a falta de uma política de valorização do homem do campo, tem sido apontados frequentemente como causa do
alto índice de alcoolismo e tabagismo entre as populações quilombolas. Enfermidades decorrentes destes hábitos
nocivos à saúde e a exacerbação de outras condições estabelecidas, demonstram a necessidade de uma estratégia
especial junto a estes grupos populacionais7, 10,12, 32.
A modernidade exige do profissional de saúde saber investigar a forma como a comunidade constrói suas
representações de mundo, as quais interferem diretamente nas práticas relacionadas à saúde que, por sua vez, ou
reafirmam as representações ou as transformam. A forma com que as pessoas produzem práticas relacionadas à
saúde está diretamente ligada a seu cotidiano e às relações que constroem entre si e com o ambiente que as cerca.
O conhecimento e o respeito às noções de saúde que cada comunidade possui são necessários, uma vez que muitas
vezes estas não concordam com os paradigmas da medicina ocidental, mas regem a vida das comunidades e
possuem sua própria eficácia. Ao agir com esta consciência, a nação verá de fato o controle social do SUS e,
conseqüentemente, um melhor resultado em suas abordagens do aspecto inclusivo9, 30,34-36.
A Fonoaudiologia vem buscando sua inserção definitiva e plena junto às várias diretrizes estabelecidas pós SUS,
onde intenciona participar dos processos preventivos e curativos desde sua origem. Neste contexto, é preciso a
conscientização de que o fonoaudiólogo não é somente um especialista, já que sua formação inclui questões
culturais, emocionais, físicas, ambientais e econômicas. O SUS abriu uma porta ao fonoaudiólogo, através da
Estratégia de Saúde da Família, vertente da Saúde Pública que propõe uma compreensão ampliada do processo
saúde-doença e a reflexão sobre o modelo de atenção à saúde segundo os princípios do SUS, embasando-se numa
prática intersetorial e interdisciplinar e considerando o indivíduo e sua inserção na família e na comunidade. Para
que o profissional de Fonoaudiologia não fique alijado do processo inclusivo permeado pela Estratégia de Saúde da
Família, é necessário estar atento às sinalizações dos interesses manifestos pelo Governo Federal. Quando o próprio
Governo Federal oferece compensações e incentivos financeiros no intuito de aumentar a assistência à Saúde de
determinado grupo, é interessante que todos os trabalhadores se envolvam e se acerquem deste conhecimento
para que possam oportunizar novas frentes de atuação.37-40
O assunto "saúde de quilombolas" é extremamente novo e ainda há muito por debater e avançar neste caminho. A
literatura demonstra que ainda existe uma grande disparidade na Atenção à Saúde no Brasil, e que é necessário o
envolvimento social e profissional para alteração desta realidade. A Fonoaudiologia tem buscado sua inserção plena
no contexto da Saúde Pública; e o trabalho com os grupos de vulnerabilidade podem alçá-la à posição pretendida.
É fundamental que todas as profissões de saúde despertem para este grande desafio, e possam se unir numa
corrente inter, multi e transdisciplinar, aumentando a proximidade a importantes grupos de brasileiros que, por
uma motivação triste de nosso passado, estiveram e ainda estão excluídos do processo atual de desenvolvimento.
FREITAS, Daniel Antunes et al. Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. Rev. CEFAC [online].
2011, vol.13, n.5, pp. 937-943. Epub May 20, 2011. ISSN 1982-0216
CONCLUSÃO
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 18: Racismo Institucional: Um Desafio para a Equidade no SUS?
Introdução
Estudos nacionais e internacionais evidenciam que há desigualdades importantes entre a saúde de brancos e
negros, homens e mulheres, explicitando interações sinérgicas entre desigualdades sociais, raciais e de gênero
(Williams, 1997; Silvério, 2002, Oliveira, 2002). Não há como negar o peso da dimensão étnico-racial nos profundos
problemas sociais que assolam o país, "(...) bloqueando relações, possibilidades de participação, inibindo
aspirações, mutilando práxis humana, acentuando a alienação de uns e de outros, indivíduos e coletividades" (Ianni,
2004, p. 23).
A discriminação por cor/raça, na maioria das vezes de forma velada, em virtude de leis que a proíbem, perpetrada
por meio de "(...) mecanismos de expressão que não ferem abertamente essas normas" (Pereira e col., 2003, p. 95),
determina diferenças importantes no acesso e na assistência nas diferentes esferas da sociedade, como, por
exemplo, na menor oportunidade de escolarização, "(...) na polícia e outras forças de autoridade e controle social
através de prisões ilegais e detenções arbitrárias (...), na justiça, como reflexo da falta de informação e da relação
melhor rendimento econômico/melhor defesa e de penas distintas, (...)" (Lopes, 2005).
Estas diferenças no âmbito dos direitos e do espaço público configuram o racismo institucional, definido como: "O
fracasso coletivo de uma organização para prover um serviço apropriado e profissional para as pessoas por causa
de sua cor, cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos
que totalizam em discriminação por preconceito involuntário, ignorância, negligência e estereotipação racista, que
causa desvantagens a pessoas de minoria étnica" (Documento da Comission for Racial Equality, 1999 apud Sampaio,
2003, p. 82).
Na área da saúde, estudos recentes têm evidenciado "que as desigualdades quanto à saúde e [à] assistência
sanitária dos grupos étnicos e raciais são óbvias e que, das explicações de tais desigualdades, o racismo é a mais
preocupante" (Organización Mundial de la Salud, 2001, p. 7).
As pessoas tornam-se impotentes diante de uma situação não explícita de discriminação. A sensação de impotência
é igual ou maior do que a vivida diante da agressão física, porque as vítimas não encontram acesso a recursos e a
apoios adequados para se protegerem do agravo e de suas conseqüências indesejáveis (Lopes, 2003).
A prática do racismo institucional na área da saúde afeta preponderantemente as populações negra e indígena. A
invisibilidade das doenças que são mais prevalentes nestes grupos populacionais, a não inclusão da questão racial
nos aparelhos de formação, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a qualidade da atenção à saúde, assim
como o acesso aos insumos, determinam diferenças importantes nos perfis de adoecimento e morte entre brancos
e negros (Loureiro e Rozenfeld, 2005; Lopes, 2005a; Batista e col., 2005).
O racismo minimiza as possibilidades de diálogo das pessoas com os serviços, interfere na auto-estima e,
conseqüentemente, contribui de forma decisiva na saúde, especialmente mental dos usuários (Silva, 2005; Lopes,
2005b). Por conseguinte, quando presente nos serviços, reforça, quando não agrava, a exclusão social.
Este trabalho tem como objetivo relatar os resultados de uma sondagem acerca da existência de racismo nos
serviços de saúde.
Um Pouco de História...
No final do século XV e início do XVI, a Europa estava no seu apogeu "(...) como dona dos mares e do dinheiro e
como pedestal do homem branco senhor do mundo, (...)" (Carvalho, 1984, p. 10). Imbuídos dessa ideologia, os
conquistadores europeus – especificamente espanhóis e portugueses – iniciaram a colonização da América recém
descoberta implementando um sistema produtivo baseado na mão-de-obra escrava (Davidoff, 1986).
Assim, populações inteiras de indígenas foram escravizadas e exterminadas (Carvalho, 1984; Sivanandan, 2002),
com o beneplácito da Igreja Católica, que, comungando com o ideário da superioridade dos brancos europeus sobre
os demais povos, considerava os indígenas "(...) 'sub-homens', os filhos de Cam, nascidos para ser escravos, e que
podiam, por conseguinte, ser escravizados ou exterminados" (Sivanandan, 2002).
A adoção sistemática dessa prática resultou na redução da mão-de-obra escrava indígena e, para supri-la, os
europeus voltaram os olhos para a África, dando início à escravidão negra, igualmente placitada pela Igreja Católica,
por governantes e por intelectuais como Montesquieu, que, como diz Freitas (1985, p. 12), "(...) fundamentou na
religião o racismo antinegro", ao afirmar que: "Não se pode admitir a idéia de que Deus, que é um ser infinitamente
sábio, tenha colocado uma alma, sobretudo uma alma boa, em um corpo completamente negro" (Montesquieu
apud Freitas, 1985, p. 12).
A África, assim, sofreu durante séculos uma espoliação sistemática, levada a efeito por traficantes de escravos e
governos europeus (Carvalho, 1984). As "(...) idéias racializadas das épocas prévias se congelaram em uma ideologia
racista sistêmica para condenar toda a gente de 'cor' à inferioridade racial e cultural" (Sivanandan, 2002), sendo
justificada, portanto, a sua escravidão.
Em 1855, a publicação do livro Ensaio Sobre as Desigualdades Raciais, de Arthur Joseph Gobineau, começa a dar à
ideologia racista uma validade "científica" (Carvalho, 1984; Sivanandan, 2002). O autor defendia no livro "(...) a
'superioridade' inata do 'ariano', ramo superior da raça branca, destinado a governar sobre os demais" (Carvalho,
1984, p. 10). Essa teoria encontrou eco no pensamento racista, popularizando ainda mais a questão das hierarquias
sociais dos indivíduos.
Enquanto Isso, no Brasil...
No Brasil, o racismo tem suas raízes na escravidão e, por conseguinte, na "anulação dos valores da cultura negra
feita pelos colonizadores como forma de legitimar a dominação" (O Negro..., 1986, p. 3). A força desse racismo pode
ser medida pelo fato de a escravidão ter dominado a história do Brasil por mais de três séculos, sendo o último país
do mundo a aboli-la. Como afirma Freitas (1985, p. 12), "Nenhuma outra região do Novo Mundo foi tão
completamente modelada e condicionada pela escravidão quanto o Brasil. Simplesmente, a escravidão fez o Brasil".
Não se pode afirmar, sem incorrer em erro, o número exato de africanos trazidos ao Brasil desde a segunda metade
do século XVI até 1850, quando o tráfico de escravos passou a ser considerado crime, por meio da Lei nº. 851 Lei
Eusébio de Queirós, de 4 de setembro de 1850 (Brasil, 2007). Diversos historiadores se debruçaram, e ainda o fazem,
sobre o tema, mas o que se tem são apenas estimativas das mais diversas (Moura, 1994), nunca abaixo de 3 milhões.
Para Alencastro (2006), "(...), mais de 4 milhões de africanos foram deportados para o Brasil entre 1550 e 1850,
tornando o Brasil o agregado político americano que recebeu a maior parte dos africanos desembarcados no Novo
Mundo".
Apesar desses números, a situação dos negros não melhorou após o 13 de maio de 1888. Embora não havendo a
lavratura de qualquer instrumento jurídico-institucional impondo barreiras legais aos ex-escravos, a extinção da
escravatura não extinguiu o racismo no país. A Lei Áurea deu aos negros "o estatuto de pessoas juridicamente livres"
(Arruda, 1995, p. 7), mas não os livrou da exclusão e da discriminação, pois a ideologia racista permaneceu, "(...) a
ideologia segundo a qual o negro, homem inferior, pode e deve ser discriminado" (Freitas, 1985, p. 12).
Consonante com esse ideário, a classe dominante brasileira optou pela imigração de europeus brancos, com o claro
intuito de "branquear" o país (Freitas, 1985; Rolnik, 1986; Heringer, 2002; Barreto, 2004).
Como diz Rolnik (1986, p. 3), essa opção "(...) implicou também a formulação de uma teoria social a raça negra
estava condenada pela bestialidade da escravidão e a vinda de imigrantes europeus traria elementos étnicos
superiores que, através da miscigenação, poderiam branquear o país, como 'uma transfusão de puro e oxigenado
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CADERNO DE TEXTOS
sangue de uma raça livre'. A operação substituição da mão-de-obra escrava significou, portanto, a redefinição do
lugar do negro na sociedade de escravo a marginal".
A ideologia do "embranquecimento (branqueamento)" representou, então, "a passagem do racismo de dominação
ao racismo de exclusão" (Sodré, 1995, p. 6), pois, para os detentores do poder, "(...) negro livre não servia para
trabalhar. A posição de marginalidade do negro em relação a esta nova configuração social seria, então, justificada
através da idéia de inferioridade cultural da raça negra, característica responsável pela 'inadaptação' dos libertos a
uma relação mais moderna de trabalho" (Rolnik, 1986, p. 3).
Devido a essa "inadaptação", aos negros sobraram "as ocupações improdutivas" (Freitas, 1985, p. 13): emprego
doméstico, biscates, enfim, as ocupações subalternas (Freitas, 1985; Moura, 1985). Nascia assim uma massa de
miseráveis, "(...) herdeiros de tudo aquilo de negativo que os blocos de poder do Império e da República legaram
como herança econômica, política, social e cultural aos escravos e ex-escravos" (Moura, 1985, p. 15).
Em linhas gerais, o desemprego, o analfabetismo, a subnutrição, a fome e a doença que assolam sobremaneira os
negros, são reflexos de uma ideologia excludente que "(...) continua pesando, através do racismo ambíguo e
dissimulado do brasileiro, a esmagar não apenas economicamente, mas, também, psicológica, cultural e
existencialmente a grande população não-branca do Brasil. O racismo é, assim, a arma ideológica através da qual
os opressores discriminam os não-brancos para manter os seus níveis de privilégio, como, antes, os senhores de
escravos da mesma forma procediam" (Moura, 1985, p. 15).
Apesar de recentes leis antidiscriminatórias e da melhoria da imagem do negro, sua real condição na sociedade
brasileira ainda é de desvalorização. Na esfera governamental, observa-se que "(...) as iniciativas de combate às
desigualdades raciais ainda têm um alcance limitado e podem ser mais facilmente identificadas nos documentos e
recomendações do que por meio de ações práticas" (Heringer, 2002, p. 62). Por sua vez, no âmbito social, "ainda
há discrepâncias entre 'imagem e prática' a respeito da segregação e discriminação racial no nosso país, onde,
freqüentemente, vemos pessoas afirmarem que o povo brasileiro está se tornando um povo mais homogêneo, mas
em todo momento flagramos evidências de práticas discriminatórias na vida cotidiana" (Barreto, 2004, p. 245).
Assim, pressupõe-se que a sociedade brasileira contemporânea permanece racista e esse racismo também está
presente no Estado e, conseqüentemente, nas instâncias governamentais (nos aparelhos formadores, nos serviços
de atenção aos cidadãos, nas políticas públicas, dentre outros). O governo, ao não dar a devida visibilidade às
desigualdades raciais existentes na sociedade, ao não ter uma política explicita de combate ao racismo, colabora
para a sua institucionalização.
O presente artigo tem como objetivo relatar a sondagem de opinião sobre a existência de racismo nos serviços de
saúde e subsidiar a discussão de racismo institucional entre os profissionais de saúde.
Metodologia
Estudo exploratório aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde, com análise de questionário
auto-aplicável, com informações sobre as variáveis demográficas e sociais (idade, sexo, cor/raça, escolaridade,
estado civil, ocupação, religião), questões sobre a percepção dos participantes acerca do racismo e relato de
experiências vivenciadas, entregue aos participantes do 2º Seminário de Saúde da População Negra do Estado de
São Paulo, ocorrido no Município de São Paulo, em 17 de maio de 2005.
O seminário realizado anualmente é dirigido às lideranças do movimento negro, gestores e profissionais do SUS, e
tem como objetivos instrumentaliza-los e sensibiliza-los sobre os principais temas/problemas de saúde da
população negra.
Considerando-se o registro de inscrições, 553 pessoas participaram do evento, das quais 294 (53,2%) se
autodefiniram de cor preta, 103 (18,6%) de cor parda, 147 (26,6%) de cor branca, 5 (0,90%) indígena e 4 (0,72%) de
cor amarela; 285 (51,5%) residiam na capital, 178 (32,2%) no interior, 80 (14,5%) na Grande São Paulo e 10 (1,8%)
em outros estados.
Dos questionários distribuídos, 240 (46,3%) foram devolvidos respondidos. A análise dos dados foi feita por meio
do programa EpiInfo e SPSS 8,0 for Windows. As respostas às perguntas sobre percepção de discriminação racial
nos serviços de saúde foram analisadas segundo o significado das mensagens (Bardin, 1977).
Resultados e Discussão
A população estudada caracterizou-se por um predomínio (71,3%) de pessoas que se autodeclararam negras –
considerou-se o critério adotado pelo IBGE1 – somatório dos que se autodefinem como de cor preta (45,8%) e de
cor parda (21,3%), sendo agregados também os 4,2% que se autodefiniram como da "população negra".
Os questionários foram respondidos majoritariamente por mulheres (66%), a idade dos respondentes variou de 14
a 68 anos, com média de 38,5 (+12,81) e mediana de 39 anos; 77,1% exerciam atividade remunerada e 9% estavam
desempregados. No tocante à escolaridade, 25,8% tinham curso superior completo, e apenas 2,1% não tinham
nenhuma instrução formal.
Apesar do predomínio de participantes da religião católica (58,8%), as demais religiões também estiveram
presentes: evangélica (15,8%), espiritismo Kardecismo (9,7%), candomblé e umbanda (8,1%), e budismo (0,4%),
assim como os ateus e sem religião, 1,4% e 4,8%, respectivamente. Chama a atenção a proporção de não resposta
a essa questão (13%).
No total, 43,3% (104) responderam que já perceberam alguma discriminação racial nos serviços de saúde, 60%,
44,2% e 40,8%, entre os de cor preta, branca e parda, respectivamente. A proporção de pessoas que relataram ter
vivenciado o racismo foi muito maior que a encontrada na pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo (2004),
realizada com a população em geral. Essa pesquisa constatou que o setor saúde é o principal local discriminador,
pois 3% dos entrevistados relataram ter sofrido discriminação ao buscar cuidados de saúde (1% brancos, 3% pardos,
6% pretos e 3% indígenas).
Não se pode deixar de considerar que a amostra do presente estudo é diferenciada comparada à população, em
termos de escolaridade e de consciência/sensibilidade diante da questão.
A partir da leitura dos relatos de racismo vivenciados, diretamente ou por meio de algum conhecido, e levando-se
em conta o conceito de vulnerabilidade (Ayres e col., 1999; Lopes, 2003) foram criadas as seguintes categorias para
a análise: restrição ao acesso e/ou ao atendimento (40 pessoas), qualidade do atendimento ao pré-natal e ao parto
(14) restrição ao acesso e qualidade do atendimento específico a anemia falciforme (12), e relacionado às relações
entre os profissionais de saúde (10). No total, 28 pessoas afirmaram ter vivenciado situação de discriminação na
saúde, mas não relataram o acontecido.
Para maior detalhamento, buscou-se identificar os sujeitos envolvidos nos relatos, e para tanto, criou-se as
seguintes categorias: "leu e/ou escutou sobre pesquisas", aconteceu "com a própria pessoa", aconteceu "com
parentes ou amigos", "não-especificado".
Foram mais freqüentes os episódios vividos pela própria pessoa, como profissional ou como usuário, 37% (39) do
total, proporção que passa a 41,8% (28) quando se considera os que se declaram de cor preta. Entre os relatos
vividos pela própria pessoa, verifica-se que a cor é uma variável que interfere na intensidade com que o racismo
é percebido. Resultado similar ao observado por Oliveira e Barreto (2003), ou seja, há mais relatos de pessoas que
se autodefinem como de "cor preta" do que entre os que se dizem da "cor parda".
As falas apresentadas são fragmentos de histórias vividas, ou melhor, sofridas e devem ser entendidas como a
materialização do racismo institucional. A análise destas situações deve ser vista como alternativa para o
enfrentamento do problema, contribuindo com elementos para que os profissionais de saúde possam refletir sobre
a própria prática.
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CADERNO DE TEXTOS
Restrição do Acesso aos Serviços e Atendimentos à Saúde
Nesta categoria foram reunidos os relatos que descrevem formas diversificadas de afastar o usuário dos serviços
de saúde, em diferentes tipos de atendimento.
A análise de situações percebidas como discriminatórias revela que as atitudes parecem estar ligadas à ideologia
do dominador que perpassa o cotidiano estando introjetada nos profissionais, como, por exemplo, acreditar que as
pessoas negras são "mais fortes e resistentes à dor", como: "Negro não adoece" (51 anos, auxiliar de enfermagem,
preta); "Não é uma coisa assim fácil de falar, sinto que somos tratados com mais displicência" (51 anos, jornalista,
cor preta); "Eu estava com muita dor e a médica falava: que é isso? Não dói tanto" (23 anos, professora, parda);
"Rapaz! Um negão desse tamanho sentindo dor?" (55 anos, agente comunitário de saúde, cor preta); "Médicos
atendem de forma diferente infratores negros e brancos" (37 anos, agente educacional da Febem, cor preta).
Há uma tendência a minimizar as queixas.
"A discriminação está presente em todos os setores da vida brasileira" (28 anos, psicólogo, cor parda); "Na rotina
dos nossos serviços, é muito comum a utilização de palavras discriminatórias, que afastam as pessoas" (36 anos,
enfermeira, cor branca).
Em várias situações são usadas palavras, ou melhor, insultos, que, segundo Guimarães (2000), têm a função de
manter as relações estabelecidas historicamente. Para o autor, esses insultos são mensagens para que o cidadão
negro não se esqueça de seu lugar subalterno nas relações e retorne ao seu lugar inferior. É interessante refletir
sobre o significado que palavras como "negão", "negro", "preto", "roxinho", etc., assumem, especialmente, quando
acompanhadas de atitudes como as descritas, elas trazem o passado de humilhação e subordinação, falam mais
que de uma simples cor.
Outras situações mostram como se dá o impedimento ao acesso e ao atendimento com eqüidade, revelam formas
de acirramento das desigualdades:
"No Hospital X o médico me destratou e disse que preto tem que morrer em casa" (54 anos, cabeleireira, cor preta);
"Comigo, a GO (ginecologista) não quis me examinar, eu disse que estava com corrimento e coceira" (48 anos,
desempregada, cor preta).
"O meu tio foi vítima de assalto, chegou baleado no PS e foi tratado como assaltante" (55 anos, auxiliar de
enfermagem, cor preta); "A enfermeira se negou a examinar minha sobrinha" (24 anos, atendente de lanchonete,
cor preta); "A população quilombola não tem acesso aos serviços públicos de saúde" (40 anos, psicólogo, cor preta);
"Vi uma senhora, ao não concordar ou entender a prescrição, ouvir do médico: a senhora é uma velha negra e sem
diploma, eu que estudei, sei o que estou fazendo" (52 anos, presidente de ONG, cor preta).
"No Hospital X, a médica nem examinou a minha filha, passou um remédio para sarna, ela nem me ouviu falando
que eu achava difícil, ela não tem contato com animal; levei a outro médico e ele descobriu um processo alérgico"
(30 anos, enfermeira, cor preta).
A maioria dos relatos envolve o médico, mas os outros profissionais, como enfermeiro, psicólogo, auxiliar de
enfermagem e recepcionista, também, foram citados.
Associar a cor da pele ao baixo poder aquisitivo, naturalizando o processo, parece ser uma constante: "A
recepcionista demorou para me dar atenção e quando eu entreguei o cartão do convênio, ela olhou duas vezes para
mim, pediu o meu RG, coisa que não havia feito com outras pacientes brancas, ela parecia não acreditar que eu
pudesse pagar o convênio. Nos tratam como um ser de segunda categoria, até mesmo a solicitação do documento
de identidade, pode ser interpretado como 'tirar a prova real', será que essa pessoa realmente é beneficiária deste
plano?" (32 anos, enfermeira, cor preta).
Vale salientar que os relatos não se restringem aos serviços públicos de saúde, incluem também renomados planos
de saúde.
Não se pode deixar de considerar/refletir que atitudes como as relatadas pelos participantes, além de afastar os
usuários dos serviços, interferem de forma negativa na construção de suas identidades.
Qualidade do Atendimento ao Pré-Natal e Parto
Os relatos mostram que as situações de discriminação são mais freqüentes quando as pessoas estão mais
fragilizadas, como durante a gravidez e durante o parto: "Escutei a recepcionista (pré-natal) falar: negra é como
coelho, só dá cria" (43 anos, diretora de ONG, cor preta); "No parto do meu último filho não me deram anestesia"
(43 anos, auxiliar administrativa, negra); "O médico nem examinou a gestante negra" (40 anos, coordenador de
conselho de cultura, negro); "No pré-natal, só mandavam emagrecer eu nem sabia o que era eclampsia, quase
morri" (28 anos, professora primária, cor preta).
Essas falas são compatíveis às encontradas por Leal e col. (2005), que revelam que as pretas e pardas recebem pior
assistência ao parto e no pré-natal nas maternidades do Rio de Janeiro. As autoras concluem que as mulheres negras
peregrinam mais em busca de local para o parto, têm pior pré-natal e proporções maiores delas não recebem
anestesia.
Qualidade do Atendimento à Anemia Falciforme
A anemia falciforme é a doença hereditária mais comum do Brasil, considerando a população geral, com maior
prevalência entre os afro-descendentes, é causada por uma mutação do gene da hemoglobina que determina a
alteração da forma dos glóbulos vermelhos, que se tornam parecidos a uma foice. As hemáceas agregam-se e
dificultam a circulação do sangue nos pequenos vasos do corpo. Com a diminuição da circulação ocorrem lesões
nos órgãos atingidos, podendo causar dor, inchaço, insuficiência renal, hepática, pulmonar, cerebral, priapismo, dor
de cabeça, convulsões, derrame, desmaios, etc. Provoca grande variabilidade clínica, alguns pacientes têm um
quadro de grande gravidade e estão sujeitos a inúmeras complicações e freqüentes hospitalizações, outros
apresentam uma evolução mais benigna (Zago, 2001).
"Quando um paciente negro chega ao hospital com crise de dor por anemia falciforme, é tratado como viciado em
'dolantina' e 'franol'" (20 anos, presidente de ONG, negra);"Os médicos sabem pouco ou desconhecem a anemia
falciforme" (52 anos, médico, branco); "O meu menino tinha dor no braço e eles engessaram" (48 anos, socióloga,
branca ); "Eu sentia um cansaço, e me sentia culpada por não dar conta dos serviços de casa, eu estava quase
acreditando que era preguiçosa, daí no pré-natal descobriram que eu tinha uma alteração nos glóbulos vermelhos"
(34 anos, professora, parda ); "A gente vê muitos casos de anemia falciforme que não recebem tratamento
específico" (42 anos, diretora de Escola de Samba, cor não declarada); "Quando a gente fala que é falciforme, eles
olham para gente, não acreditam" (52 anos, assistente social, negra).
Segundo estimativas da OMS, nascem, anualmente, no Brasil, 2500 crianças com a patologia, das quais 20% morrem
antes dos 5 anos de idade por complicações relacionadas a ela, por não ser um tema de domínio dos profissionais
de saúde, há dificuldades para o diagnóstico adequado, o que contribui para o sub-registro dos óbitos causados por
ela (Anvisa, 2005).
As falas indicam a persistência da situação mostrada pelo estudo clínico, que ouvindo 80 pacientes, identificou que
para 90% deles o diagnóstico só aconteceu quando tiveram acesso a algum setor do Hospital das Clínicas da
Unicamp, pois até então tiveram apenas tratamento sintomático (Silva e col., 1993).
Os relatos também denunciam a inexistência de serviços que possam atender a população, resultando em
peregrinação em busca de resolução, levando ao diagnóstico tardio que, segundo os especialistas, é o maior
problema para o controle da patologia.
O desconhecimento dos procedimentos adequados para controlar as crises de dor e demais sinais e sintomas da
doença contribui para o afastamento do paciente dos serviços de saúde, além de impingir sofrimentos que
poderiam ser evitados. Isso sem considerar as mortes advindas da doença, pois, estima-se que muitos morrem sem
diagnóstico.
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O priapismo, que é um estado de ereção dolorosa, causada pela obstrução dos vasos do pênis, e que geralmente
ocorre espontaneamente, é confundido com excitação sexual, o que encontra respaldo nos estereótipos veiculados
na mídia: o homem negro sempre disposto a ter relações sexuais e a não trabalhar.
"Meu filho sofria de priapismo, e quando era adolescente, a enfermeira me disse que ele era 'um neguinho safado'"
(48 anos, psicóloga, branca).
Relações entre os Profissionais de Saúde
Apesar de em menor número, os relatos também apontam situações de racismo institucional que ocorrem entre os
dirigentes e o trabalhador, entre os trabalhadores e entre usuários e trabalhadores negros.
"Muitos não são admitidos por que são negros" (60 anos, técnico químico, negro);"Os cargos de direção e de alto
escalão são preenchidos por pessoas brancas" (48 anos, coordenador de cursos, pardo); "A médica branca me
destratou e fez alusão a minha cor" (50 anos, psicóloga, negra); "Meu marido é médico, foi questionado se tinha
competência" (46 anos, professora, negra); "A usuária não quis que auxiliar de enfermagem negra aplicasse vacina
em seus filhos" (52 anos, educadora de saúde, parda).
Conclusão
Os resultados evidenciam que a população negra vem sendo discriminada nos serviços de saúde, tanto como
usuários, quanto como profissionais. Embora os relatos, na sua maioria, remetam a serviços públicos, os planos
privados também foram citados.
Lembrando que um dos princípios básicos do SUS é a eqüidade, ou seja, os serviços de saúde devem oferecer
tratamentos diferenciados e específicos para os desiguais, visando reduzir diferenças de vulnerabilidade das
populações. No caso da população negra, que é mais vulnerável a várias patologias pelo processo histórico de
exclusão social, econômica, política e cultural a que foi submetida, cabe aos serviços de saúde garantir
atendimentos adequados, que reduziriam essa vulnerabilidade. No entanto, verificou-se que os serviços de saúde,
por meio de seus profissionais, aumentam a vulnerabilidade destes grupos populacionais, ampliando barreiras ao
acesso, diminuindo a possibilidade de diálogo e provocando o afastamento de usuários.
No caso específico da anemia falciforme, patologia genética de maior prevalência entre a população negra, a sua
invisibilidade nos serviços de saúde, a ausência de informação sobre ela nos aparelhos formadores (universidades),
a falta de informação/formação específica para os profissionais, inclusive nos Pólos de capacitação e a inexistência
de programas de atenção aos portadores é a expressão material do racismo institucional.
Os relatos das situações de discriminação apresentados, casos reais, apesar de partirem de uma amostra de
conveniência do município de São Paulo, podem contribuir para que os profissionais reflitam sobre as próprias
atitudes e práticas. Não se pode deixar de considerar que o racismo se evidencia nas interações entre pessoas, e
que mesmo o profissional não considerando que teve uma atitude racista, ao não escutar a percepção do sujeito
que sofreu a ação, está contribuindo também com o racismo institucional. Além disto, as instituições, ao não terem
um posicionamento explícito e espaços onde essas condutas sejam discutidas, são coniventes e institucionalizam o
racismo.
A inexistência da discussão sobre o impacto do racismo na saúde e nos aparelhos de formação, dentre eles nos
cursos oferecidos pelos Pólos de Educação Permanente para profissionais médicos, enfermeiros e dentistas,
reforçam o racismo na saúde.
Por fim, sejam usuários, sejam profissionais, não se pode negar que a vivência da discriminação racial interfere
sobremaneira na construção das identidades e na produção dos sujeitos, e conseqüentemente na saúde das
pessoas. Assim, é importante que os efeitos sociais do racismo sejam relatados para que as instituições adotem
medidas para a sua desconstrução, se não na sociedade como um todo, pelo menos nas suas dependências.
Para tanto, faz-se necessário estimular discussões sobre o tema e desenvolver estudos que, além de dar visibilidade
às iniqüidades, possam contribuir para a compreensão de como as discriminações atuam sobre a saúde da
população negra. Além de ser fundamental que, considerando a dimensão territorial e a diversidade étnico-racial
do Brasil, se promovam estudos no país, buscando identificar diferenças regionais. O racismo institucional deve ser
aferido para que seja entendido como indicador da qualidade do atendimento prestado à população.
Espera-se que os resultados contidos neste artigo possam servir de subsídios para outros estudos que se
proponham a investigar o impacto do racismo na saúde, bem como para a adoção, por parte dos poderes
constituídos, de medidas efetivas para a redução das iniqüidades raciais e, especificamente, para a promoção de
políticas realmente eqüitativas no âmbito do Sistema Único de Saúde.
KALCKMANN, Suzana; SANTOS, Claudete Gomes dos; BATISTA, Luís Eduardo and CRUZ, Vanessa Martins da.
Racismo institucional: um desafio para a eqüidade no SUS? . Saude soc. [online]. 2007, vol.16, n.2, pp. 146-155.
ISSN 1984-0470.
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TEXTO 19: Luta pela Terra
A História da luta pela terra
O Brasil é um dos países com maior concentração de terras do mundo. Em nosso território, estão os maiores
latifúndios. Concentração e improdutividade possuem raízes históricas, que remontam ao início da ocupação
portuguesa neste território no século 16. Combinada com a monocultura para exportação e a escravidão, a forma
de ocupação de nossas terras pelos portugueses estabeleceu as raízes da desigualdade social que atinge o Brasil
até os dias de hoje.
Lei de Terras
Em 1850, mesmo ano da abolição do tráfico de escravos, o Império decretou a lei conhecida como Lei de Terras,
que consolidou a perversa concentração fundiária. É nela que se encontra a origem de uma prática trivial do
latifúndio brasileiro: a grilagem de terras – ou a apropriação de terras devolutas através de documentação forjada
– que regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade rural e formalizou as bases para a
desigualdade social e territorial que hoje conhecemos.
Resistências Populares
Nos países centrais do sistema capitalista, a democratização do acesso à terra, a reforma agrária, foi uma das
principais políticas para destravar o desenvolvimento social e econômico, produzindo matéria prima para a
nascente indústria moderna e alimentos para seus operários.
No Brasil, nem mesmo as transformações políticas e econômicas para o desenvolvimento do capitalismo foram
capazes de afrontar a concentração de terras. Ao longo de cinco séculos de latifúndio, também foram travadas
lutas e resistências populares. As lutas contra a exploração e, por conseguinte, contra o cativeiro da terra, contra a
expropriação, contra a expulsão e contra a exclusão, marcam a história dos trabalhadores. A resistência
camponesa se manifesta em diversas ações e, nessa marcha, participa do processo de transformação da
sociedade.
Desde meados do século 20, novas feições e formas de organização foram criadas na luta pela terra e na luta pela
reforma agrária. Nas diferentes regiões do país, contínuos conflitos e eventos formaram o campesinato no
princípio da segunda metade do século passado.
A ditadura implantou um modelo agrário mais concentrador e excludente, instalando uma modernização agrícola
seletiva, que excluía a pequena agricultura
O regime militar foi duplamente cruel e violento com os camponeses.
Por um lado - assim como todo o povo brasileiro – os camponeses foram privados dos direitos de expressão,
reunião, organização e manifestação, impostos pela truculência da Lei de Segurança Nacional e do Ato
Institucional nº 5. Por outro, a ditadura implantou um modelo agrário mais concentrador e excludente, instalando
uma modernização agrícola seletiva, que excluía a pequena agricultura, impulsionando o êxodo rural, a
exportação da produção, o uso intensivo de venenos e concentrando não apenas a terra, mas os subsídios
financeiros para a agricultura.
A Terra e sua função social
E com o ímpeto combativo de nossos lutadores e sindicalistas, nos empenhamos também na construção da nova
constituinte, aprovada em 1988, quando conquistamos, entre outras vitórias, os artigos 184 e 186, que garantem
a desapropriação de terras que não cumpram sua função social.
Art. 186 - A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e
graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Governo Collor aumenta repressões
O neoliberalismo toma conta do país, causando a fragmentação da classe trabalhadora e o avanço do capital.
Em novembro de 89, acontecem pela primeira vez no país, eleições diretas que elegem o presidente Fernando
Collor de Melo.
O governo Collor foi caracterizado por uma forte repressão contra a luta dos Sem Terra. Foi durante o governo do
seu vice, Itamar Franco, que foi aprovada a Lei Agrária (Lei 8.629), fazendo com que as propriedades rurais fossem
reclassificadas com a regulamentação da Constituição. Essa ação fez com que não existissem mais vieses jurídicos
que impossibilitassem as desapropriações. Até 1993, quando foi regulamentada a Lei Agrária, não foi possível
realizar desapropriações para este fim.
Criação da Via Campesina
Em 1993 é criada a Via Campesina, um movimento internacional que aglutina diversas organizações camponesas
de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres camponesas e comunidades indígenas dos
cinco continentes.
O Estado abandona a agricultura familiar
Sob o primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1994-1998), além do aumento do êxodo rural
(provocado pela ação dos bancos contra pequenos agricultores endividados), o Brasil testemunhou também os
dois maiores massacres da segunda metade do século 20: Corumbiara (1995), em Rondônia, e Eldorado dos
Carajás (1996), no Pará.
No mesmo período foram criadas duas medidas provisórias persecutórias para quem ocupava terras, e foi
implantado o Banco da Terra, uma política de crédito para compra de terras e criação de assentamentos em
detrimento das desapropriações. Foram destruídas as políticas de crédito especial para a Reforma Agrária e
assistência técnica criadas durante o governo José Sarney (1985-1990), prejudicando as famílias assentadas e
intensificando o empobrecimento.
FHC clona assentamentos
Embora FHC tenha propagandeado que realizou a maior Reforma Agrária da história do Brasil, seu governo nunca
possuiu um projeto de reforma agrária real. Durante os dois mandatos, a maior parte dos assentamentos
implantados foi resultado de ocupações de terra. Todavia, o número de assentamentos implantados foi
diminuindo ano a ano.
Para garantir as metas da propaganda do governo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário “clonou”
assentamentos criados em governos anteriores e governos estaduais, registrando-os como assentamentos novos
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criados por FHC. Essa tática criou confusão tamanha que, ao final do seu mandato, nem mesmo o Incra conseguia
afirmar quantos assentamentos foram realizados de fato.
O avanço da luta pela terra
Após dezesseis anos de existência, o MST já tinha atuação em 23 estados, 1,5 milhão de pessoas, 350 mil famílias
assentadas e 100 mil vivendo em acampamentos. Foram construídas associações de produção, comercialização e
serviços, além de cooperativas associadas e de agroindustrizalização. No setor de educação no ano 2000 o MST já
contava com 1500 escolas públicas nos assentamentos, 150 mil crianças matriculadas e cerca de 3500 professores
em escolas onde se desenvolve uma pedagogia específica para o campo.
Agronegócio ‘recria’ as sesmarias
Com a eleição do presidente Lula, em 2002, havia uma grande expectativa dos sem-terra por todo o país de que,
enfim, aconteceria a reforma agrária. No entanto, a situação da agricultura tem se agravado para os pequenos
agricultores e assentados. O modelo agrário-exportador se acentuou, dividindo nosso território em ‘sesmarias’ de
monoculturas, como soja, cana-de-açúcar e celulose, além da pecuária extensiva. A aquisição de terras por
estrangeiros também atinge níveis nunca antes registrados.
Incentivado pelo governo, o agronegócio tem como lógica a exploração da terra, dos recursos naturais e do
trabalho, por meio do financiamento público.
Além disso, o agronegócio se utiliza grandes extensões de terra para a monocultura de exportação, baseada em
baixos salários, no uso intensivo de agrotóxicos e de sementes transgênicas. Num contexto de crise econômica
mundial, não tem condições de produzir alimentos para a população ou criar postos de trabalho para os
agricultores.
população que vive de seu próprio trabalho e que precisa de um novo modelo de organização da economia, com
renda e emprego para todos.
Certamente, continuaremos na luta, juntos, na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária,
como é o sonho de todo brasileiro honesto e trabalhador.
Com isso, os Sem Terra apresentaram seu novo programa agrária à sociedade, que tem como base de fundo na
produção agrícola a matriz agroecológica. Neste sentido, o MST está debatendo com sua base e seus aliados um
programa novo de Reforma Agrária. Uma Reforma Agrária que deve começar com a democratização da
propriedade da terra, mas que organize a produção de forma diferente. Priorizando a produção de alimentos
saudáveis para o mercado interno, combinada com um modelo econômico que distribua renda e respeite o meio
ambiente. Queremos uma Reforma Agrária que fixe as pessoas no meio rural, que desenvolva agroindústrias,
combatendo o êxodo do campo, e que garanta condições de vida para o povo. Com educação em todos os níveis,
moradia digna e emprego para a juventude.
Certamente, continuaremos na luta, juntos, na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária,
como é o sonho de todo brasileiro honesto e trabalhador.
Acessado em “Nossa História, no site do MST (http://www.mst.org.br/nossa-historia/inicio)
Disputa entre dois modelos agrícolas
A partir do século 21, o campo brasileiro foi hegemonizado de forma mais intensa pelo agronegócio, cujo modelo
econômico tinha em seu centro apenas as exportações, os bancos e os grandes grupos econômicos, por isso o
discurso que se hegemonizou é o de que a Reforma Agrária não fazia mais sentido.
Com a expansão e consolidação do agronegócio, a complexidade do debate em torno da questão agrária
aumentou, e os Sem Terra tiveram que qualificar o debate. O capital estrangeiro, as transnacionais, os grandes
grupos econômicos tomaram conta da agricultura no país, para exportar matérias-primas, produzir celulose e
energia, para sustentar o seu modo de consumo.
No entanto, mais do que nunca a Reforma Agrária era algo necessária. Uma reestruturação não só da
concentração da propriedade da terra no Brasil, mas do jeito de produzir. O que estava em jogo é a disputa entre
dois modelos de sociedade e produção agrícola, ou seja, a disputa entre os projetos da pequena agricultura,
voltada para a produção de alimentos para o consumo interno, e do agronegócio, baseado em monocultivo e
voltado à exportação.
A Reforma Agrária Popular
Ao longo do último período, os Sem Terra aprofundaram o debate em torno da questão agrária, e a luta pela
Reforma Agrária ganhou um novo adjetivo: Popular.
Popular, pois o Movimento percebeu que a Reforma Agrária não é apenas um problema e uma necessidade dos
Sem Terra, do MST ou da Via Campesina. É uma necessidade de toda sociedade brasileira, em especial os 80% da
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 20: “Queremos Diminuir a Apropriação que a Medicina faz da Vida Cotidiana”
Entrevista – Paulo Amarante
Publicação: 01/11/2014
Desde o início da década de 1970, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Paulo Amarante,
acompanha de perto as mudanças no cuidado às pessoas com transtornos mentais. Mais do que isso, participa
ativamente dessas mudanças, como um dos pioneiros da luta antimanicomial no Brasil. Avesso a instituições, como
ele mesmo afirma, Paulo orientou-se pelo pensamento daqueles que procuraram fazer uma psiquiatria centrada
no sujeito, não na doença. “David Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra,
planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito”, observou, nesta
entrevista à Radis. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial
(Laps/Esnp/Fiocruz) Paulo critica a redução da reforma psiquiátrica a uma simples reforma de serviços. E defende
uma reforma da cultura. “É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro”.
Como surgiu seu interesse pela psiquiatria?
Começou cedo, durante a faculdade [de Medicina], porque meu irmão já era psiquiatra. Meu pai brincava que a
Reforma Psiquiátrica era uma briga minha com meu irmão, já que eu parti para a linha antimanicomial, da qual sou
um dos fundadores no Brasil. Sempre tive uma aversão muito grande às instituições. Fui do diretório acadêmico, do
movimento estudantil secundarista, fui expulso do colégio... Aliás, tenho uma história longa de expulsões; na escola,
por causa do movimento estudantil e porque escrevia um jornalzinho com questionamentos, denúncias de
situações do colégio, em um momento de ditadura militar. Sempre foi difícil para mim ser enquadrado.
O que encontrou no Hospital Colônia Adauto Botelho, onde travou seu primeiro contato com a Psiquiatria?
Em 1974, fui trabalhar no hospital, em Cariacica, periferia da Grande Vitória (ES). Foi um impacto grande. Na época
havia 800 internos, em uma instituição que talvez não pudesse acolher adequadamente nem a metade disso. Muito
mau cheiro, ausência de condições mínimas de habitação, descaso, boa parte dos pacientes nus – isso era comum
em hospitais e um dos argumentos era que os pacientes não gostavam de usar roupa, uma verdade, depois de
tantos anos esquecidos e sem privacidade; mas não usar roupa era um sintoma, uma consequência. Eu e um colega,
João Batista Magro, que também éramos músicos, começamos a reunir os internos para ouvir música, quando ainda
não se falava em musicoterapia. Então, fui chamado por um diretor, que disse não ser digno para um médico tocar
violão em uma instituição, que tirava a seriedade da profissão. Eu respondi que falta de seriedade era aquilo que
acontecia no hospital, pessoas desnutridas, abandonadas, nuas, mal cuidadas.
A atividade com música foi intuitiva ou já estavam influenciados por autores?
Intuitiva. Nunca tinha ouvido falar de Franco Basaglia, da antipsiquatria. Ou, talvez, tivesse ouvido, mas dentro da
faculdade certamente não – não se tocava e ainda não se toca praticamente no nome desses autores. Quando
apresentei o trabalho de conclusão da minha especialização em 1978, no Rio, fui advertido por estar usando autores
contrários à Psiquiatra, como Basaglia, David Cooper, Ronald Laing. O título era Pedagogia da Loucura, reputando
que os hospitais ensinavam as pessoas a serem loucas. Eu parti da história de um interno que ficou 40 anos no
Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com a justificativa de ser supostamente homossexual. Como não havia ninguém
para dar lhe alta e, depois, sob o argumento de que não poderia ser cidadão responsável, ficou décadas internado.
Também fiz um filme sobre ele, um dos primeiros sobre loucura. O contato com os autores aconteceu quando vim
para o Rio, na Uerj, e trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro, onde nos reuníamos em grupos de estudos.
Veio para o Rio imaginando que aqui seria diferente?
No último ano da faculdade, em 1976, vim fazer o internato no Rio com essa expectativa. O primeiro contato com
o Instituto de Psiquiatria [da UFRJ] não foi ruim. Era uma clínica universitária, com 30 leitos, 15 femininos e 15
masculinos, aquele padrão de enfermaria, com prédio administrativo no meio – sempre houve nessas instituições
a preocupação de que os pacientes não fizessem sexo. Eram pacientes de livro, como a gente chama na Medicina,
pacientes clássicos: a paciente com sífilis cerebral, o paciente esquizofrênico paranoico com delírio místico.
Moravam no hospital porque eram pacientes de aula: quando tinha aula do tema, eles eram levados para a sala,
sem qualquer constrangimento.
Se o paciente melhorasse, atrapalhava…
Se tivesse alta, acabava a aula. Alguns citavam os próprios sintomas, já tinham as aulas decoradas. A professora
perguntava: “A senhora ouve vozes?” E a paciente respondia: “Ouço, sim, estou ouvindo a voz da senhora”.
A psiquiatra Nise da Silveira trabalhava no hospital nessa época. Havia afinidade entre vocês?
Ela trabalhava em outra linha. Era psiquiatra, mas odiava psiquiatras, como gostava de dizer. E eu respondia: eu
também, para provocá-la. A Nise acreditava que o psiquiatra era irrecuperável, e tínhamos que mostrar que estava
errada. Os primeiros questionadores da psiquiatria foram psiquiatras: Franco Basaglia, Ronald Laing, David Cooper,
Thomas Szasz, Aaron Esterson. No Brasil, também: eu, Pedro Gabriel, Ana Pitta, Jairo Goldberg, todos psiquiatras
na fundação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Era preciso criar uma outra psiquiatria, não uma
antipsiquiatria – Basaglia dizia que o termo antipsiquatria podia dar margem a incompreensões. Ele procurava fazer
uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. A psiquiatria errou por focar na doença, fato abstrato, que
tomou como fato objetivo, concreto, no modelo das ciências naturais. Cooper observava que a psiquiatria usava o
mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto,
se tem sujeito. Nise chegou a buscar pesquisas demonstrando que nossa linha de trabalho estava equivocada. Nós
dávamos alta aos pacientes e ela dizia que eles não tinham preparo para a vida social, que seriam vítima de
violência, abuso. A internação representava um certo cuidado, na visão dela. Existem pessoas do campo da reforma
psiquiátrica que têm esse pensamento, mas instituição nunca é proteção; favorece mecanismos de violência,
controle, perda de autonomia.
O que os levava a defender a internação?
A pesquisa mostrou que, quando aumentávamos as altas, aumentavam também as reinternações, e o dado estava
correto. Por isso, tivemos a preocupação de criar uma rede forte de suporte externo, não só de serviço de saúde,
mas também familiar. Nise teve papel importante, porque mostrava que outras formas de trabalho eram efetivas.
Ela marcou por se recusar a aplicar eletrochoque, por não acreditar que medicação era o grande tratamento. Mas
tivemos que tensionar com ela, porque isso tudo poderia ser feito também fora dos hospitais. No final da vida, ela
nos apoiou.
Como era a conjuntura nessa época pré-mobilização dos trabalhadores de saúde mental?
De 1976 em diante, começou a haver um movimento de mudança no sindicalismo médico e no conselho de
Medicina no Rio. Um exemplo foi a criação do Reme, Renovação Médica, em que médicos questionavam a medicina.
Faziam parte nomes importantes, como Carlos Gentile de Mello [Radis 131], que denunciava a mercantilização da
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saúde, e outros mais jovens, como Sergio Arouca e Reinaldo Guimarães. No mesmo ano, fiquei sabendo que haveria
uma reunião para fundar um centro de estudos de saúde, e se criou o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos em
Saúde]. De uma vez só, conheci [José Gomes] Temporão, Arouca, Reinaldo [Guimarães], Eleutério Rodriguez Neto,
Eric Jenner, Hésio [Cordeiro]. Sempre gostei de escrever, tinha uma máquina portátil, como se fosse o notebook de
hoje, e logo me viram como redator do grupo. Tenho comigo o projeto original do SUS – A questão democrática na
área da saúde –, que levamos ao simpósio na Câmara dos Deputados, em outubro de 1979. E apresentei no mesmo
dia o documento Assistência psiquiátrica no Brasil: setores público e privado, o primeiro da reforma psiquiátrica
brasileira. Dentro do Cebes, surgiu a ideia de se criarem núcleos de saúde do trabalhador, saúde da mulher e saúde
mental – fiquei responsável por este último. Era um cenário muito favorável, chegamos a ganhar o conselho de
medicina por um período.
Como se deu sua demissão da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), junto a dois colegas, episódio que se
tornou marco do movimento?
Em 1978, comecei a trabalhar na Dinsam e notei ausência de médicos nos plantões, deficiências nutricionais nos
internos, violência (a maior parte das mortes causada por cortes, pauladas, não investigadas e atribuídas a outros
pacientes). Investigamos, e as conclusões deram muito problema. Outra denúncia era da existência de presos
políticos em hospitais psiquiátricos, inclusive David Capistrano, pai, um dos fundadores do Partido Comunista (Radis
143) – e existem fortes indícios de que era ele mesmo. Havia médicos psiquiatras envolvidos em tortura e
desaparecimento de presos políticos – a Colônia Juliano Moreira [no Rio] tinha um pavilhão onde só entravam
militares. Fui chamado na sede da Dinsam e demitido, com mais dois colegas. Oito pessoas, entre elas, Pedro Gabriel
Delgado e Pedro Silva, organizaram um abaixo-assinado em solidariedade a nós. Depois, mais 263 pessoas foram
demitidas. Isso caracterizou um movimento. Conseguimos manter a crise da Dinsam, como chamávamos, na
imprensa por mais de seis meses.
E essa discussão ganhou corpo…
Em 1978, dois eventos importantes aconteceram, um deles, o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no início de
outubro, em Camboriú (SC). Era um evento clássico de Psiquiatria. Nós nos reunimos em um grupo e o invadimos.
Já havia uma articulação em rede: em Minas Gerais, o João Magro; na Bahia, Naomar de Almeida Filho e Luiz
Humberto, que depois foi deputado federal; Ana Pitta, em São Paulo. Um médico conhecido, já idoso, Luiz
Cerqueira, que deu nome ao primeiro Caps no Brasil, levantou questão de ordem para que o congresso
reconhecesse a importância do nosso movimento, e esse ficou conhecido como o congresso da abertura. No Rio,
houve o 1º Simpósio de Políticas, Grupos e Instituições, organizado por Gregorio Baremblitt e Chaim Samuel Katz,
dois psicanalistas que vinham rompendo com a psicanálise, até então restrita aos médicos. Eles trouxeram para a
discussão Franco Basaglia, Thomas Szasz, Erving Goffman, David Cooper, Ronald Laing e Shere Hite, com grande
destaque na imprensa.
A comunicação está sempre presente nas suas respostas — cobertura da mídia comercial, denúncias da mídia
alternativa, experiência pessoal com comunicação e saúde, a apropriação por grupos de pacientes...
Sempre gostei de escrever. Criei logo um jornalzinho do movimento, com letras recortadas e coladas uma a uma
para formar os textos, porque não tinha equipamento. Como eu estava proibido de entrar em qualquer hospital da
Dinsam, ia para a porta distribuir o jornal. Buscamos a apropriação dos meios pelos pacientes, como parte do
entendimento de que eles são sujeitos, atores políticos. Daí a ideia de experiências como a TV Pinel [no Rio de
Janeiro], a rádio e a TV Tan Tan [em Santos]. Muitos profissionais ainda trabalham a partir da concepção de que
fazer jornalzinho é terapia, e não é. É intervenção política, de cidadania, são outras formas de mostrar o mundo, de
pensar a diversidade. Hoje existem vários jornais impressos, tevês e rádios comunitárias, com nomes muito
criativos, como Antena Virada, TV Parabolinoica e Rádio Delírio Coletivo. São iniciativas importantes, que constroem
uma outra noção de identidade desses sujeitos.
Quando se deu sua vinda para a Fiocruz?
Fui convidado várias vezes, mas recusava. O Arouca me chamou em 1982, para trabalhar em planejamento, e eu
não conseguia me soltar da saúde mental. Trabalhei com o Arouca quando ele assumiu a secretaria de Saúde do
estado do Rio [em 1987], com a tarefa de abrir 33 centros de saúde mental. Quando deixou o cargo, ele e Sonia
Fleury me convidaram a criar um núcleo de saúde mental na Fiocruz e aceitei. A Sonia tinha acabado de lançar
Reforma sanitária: em busca de uma teoria e, em analogia, eu escrevi Reforma psiquiátrica: em busca de uma teoria.
Eu falava que não se deveria reduzir a reforma psiquiátrica a uma reforma de serviços e nem a uma simples
humanização do modelo manicomial, ideia que persiste até hoje — “ser mais humano com os coitadinhos”.
Defendia que era preciso trabalhar com protagonismo, autonomia; ver esses sujeitos como sujeitos diversos, porém
sujeitos. É um desafio dos Caps ainda hoje. Deslocam a tutela para tecnologias menos violentas e invasivas, mas
ainda tutelam. Há muita dificuldade em aceitar que as pessoas são diferentes e devem ser diferentes. Minha luta
atual é que se pode até suspender a medicação. Isso para médico é um absurdo: eles não acreditam que se possa
ser um psicótico sem tomar antipsicótico. É um mito que a indústria farmacêutica criou, que só há um jeito dele se
manter vivo, tomando remédio.
O movimento pedia a superação do modelo psiquiátrico. Isso parcialmente se deu na assistência, mas a
medicalização continua.
Há uma confusão sobre a superação do modelo assistencial hospitalar asilar manicomial, que está em processo
razoável, embora hoje haja novas formas de institucionalização, como as comunidades terapêuticas e as instituições
religiosas. O Luiz Cerqueira calculava que o Brasil tinha de 80 mil a 100 mil leitos psiquiátricos no final dos anos
1970. Hoje, são em torno de 30 mil leitos. De fato, reduzimos. Criamos Caps, estamos criando projetos de
residências, que já são 2 mil, projetos de economia solidária, projetos culturais. Chamamos de dispositivos de saúde
mental. Mas nosso trabalho se concentrou na desospitalização. Quando falamos em desmedicalização, não estamos
falando em diminuição do medicamento, e sim na diminuição do papel da medicina. Queremos diminuir a
apropriação que a medicina faz da vida cotidiana, o discurso médico sobre a vida. Isso não conseguimos. Um desafio
hoje da reforma psiquiátrica é a formulação discursiva muito médica, por exemplo, as pessoas são contra o
manicômio, mas não abrem mão do conceito de depressão tal qual utilizado pela indústria farmacêutica.
Como lidar com o que se chama de epidemia de depressão?
Temos que pensar até que ponto o próprio aparato psiquiátrico está produzindo essa epidemia — uma discussão
central, que não é feita devido ao controle da produção de conhecimento pela Psiquiatria e pela indústria
farmacêutica. Boa parte da chamada crise mundial de aumento da depressão é produzida pela Psiquiatria, que não
está se preparando para evitar, mas para produzir a depressão. Os relatórios contribuem para que pessoas se
identifiquem como depressivas. Os intelectuais orgânicos da indústria farmacêutica têm muito claro que é possível
aumentar o número de diagnósticos de depressão ensinando a ser depressivo. “Você chora muito? Tem ideias de
morrer?”. Isso produz identificação e as pessoas não dizem que estão tristes e sim que estão depressivas. [Michel]
Foucault ensinou que a pesquisa diagnóstica produz diagnóstico. É a produção social da doença.
No final dos anos 1980 começam a surgir iniciativas alternativas ao manicômio: em 1987 o primeiro Caps e, em
1989, a reforma em Santos (SP). Como se pensavam essas novas formas de cuidado?
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As alternativas — ambulatórios, hospitais-dia, centros de convivência — começaram a aparecer no início dos anos
1980, quando deixamos de ser oposição e fomos para o Estado de alguma forma. Em 1987, foi criado o primeiro
Caps, em São Paulo, com o nome do Luiz Cerqueira. Mas ainda não havia essa concepção de rede, território e
integralidade. O marco inovador foi a experiência de Santos, em 1989. A cidade tinha sua primeira prefeita eleita
democraticamente, Telma de Souza, de esquerda — antes havia prefeitos biônicos, indicados pelo Estado. E ela fez
uma revolução na prefeitura, nas políticas públicas como um todo. Na saúde, o secretário era David Capistrano Filho
(Radis 143), mentor intelectual do Cebes, uma expressão do movimento sanitário. Ele levou à frente uma
intervenção na clínica Anchieta, que tinha alta mortalidade. Não quis reformar, mas sim criar uma estrutura
substitutiva e territorial — foi a primeira vez que apareceram essas expressões. Hoje se fala muito em rede
substitutiva e territorial. A primeira gestão municipal que trabalhou com o projeto aprovado do SUS, ainda que não
regulamentado, foi a de Santos.
Como avalia a participação social nas políticas de saúde mental?
A participação está diminuindo. O SUS perdeu o espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório, e virou
mais um sistema de saúde. E o mesmo aconteceu na reforma psiquiátrica: queríamos transformar a vida, a relação
da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços. Houve redefinição do
usuário, tido não mais apenas como paciente, mas que não chegou a ser o ator social que queríamos ter — é ator
coadjuvante das políticas. Vai nos congressos, nos conselhos, mas não tem força.
E como está a rede de atenção psicossocial hoje?
Desde o início desse processo, levantei a preocupação com os Caps funcionando em horário comercial,
descontextualizados do território, como ambulatórios multidisciplinares. Por que fazer uma oficina de teatro dentro
do Caps em vez de usar o teatro da cidade? E não basta transformá-los em Caps 24 horas. Vão ser minimanicômios,
quando deveriam ser a substituição. É necessário mudar as bases conceituais dos serviços: as noções de doença,
terapia, cura, tratamento. Se o ideal for a remissão total dos sintomas, não vai ser alcançado, com ou sem
medicamento. Sempre se tem a ideia de uma normalidade abstrata. E o mais cômodo é medicar, apontar que a
doença é do indivíduo, está nos neurotransmissores, fazer o controle bioquímico e tutelar pelo resto da vida.
Que reflexões sua doença recente, um câncer e complicações decorrentes, provocou sobre a institucionalização?
A doença me marcou muito, por minha posição anti-institucionalizante. Minha experiência com hospitais é muito
negativa: a relação do aparato médico com o sujeito. Me rebelei muito, questionei, pela perda de autonomia, de
identidade. Os profissionais infantilizam e objetificam o paciente. Não sei se a expressão é humanizar, porque
humanização me parece mais um conjunto de rituais. Defendo a mudança profunda na qualidade da relação com
as pessoas que estão em tratamento. E fiquei pensando nos caminhos que escolhi. Depois da crise da Dinsam, as
pessoas foram voltando para o atendimento clínico e eu segui com a discussão do direito à saúde. A ideia de reforma
psiquiátrica é limitada, porque o que eu buscava era uma reforma da cultura. É culturalmente que pessoas
demandam manicômio, exclusão, limitação do outro. Busquei a transformação da relação da sociedade com a
loucura. E mudar cultura é um processo longo, muito demorado.
Autor:
Bruno Dominguez
TEXTO 21: Discurso de Abertura da 15ª Conferência Nacional de Saúde, da presidenta do
Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro
1. CUMPRIMENTOS
• autoridades da mesa
• autoridades presentes
• CNS, mesa diretora, comissão organizadora da 15ª, conselhos estaduais e municipais
• delegados, delegadas, convidados/as nacionais, internacionais, por credenciamento livre
• centrais sindicais
• aposentados, pensionistas
• movimento feminista e de mulheres
• movimento indígena
• camponeses
• movimento comunitário
• movimento popular de saúde
• movimento negro
• movimento LGBT
• movimento de estudantes
• pessoas com deficiências
• pessoas com patologias
• igrejas e pastorais
• trabalhadores: medicina, enfermagem, psicologia, odontologia, nutrição, fisioterapia, terapia ocupacional,
farmácia, serviço social
• gestores e prestadores dos 3 níveis da gestão
• parceiros e aliados (conselhos de políticas públicas e de direitos, jornalistas, acadêmicos, pesquisadores
• convidados internacionais: Mexico, El Salvador, Equador, Venezuela, Bolívia, Peru, Colõmbia, Argentina, Uruguai
2. CONTEXTO DA CONFERÊNCIA
A etapa nacional da 15ª consagra os esforços e o compromisso do conselho nacional de saúde, dos conselhos
estaduais e municipais, e de diversas entidades e movimentos sociais que tem por missão histórica a defesa do
direito universal à saúde e a defesa do sistema único de saúde como forma de redistribuição de riquezas, de
proteção social a classe trabalhadora, de respeito aos direitos humanos, de justiça social. Desenvolvemos uma luta
contra-hegemônica, crítica, mas propositiva, ainda que num ambiente político adverso, de baixo crescimento
econômico, e de contra-ofensiva de uma elite endinheirada, raivosa e preconceituosa. De uma contra ofensiva de
forças conservadoras que se utilizam da crise política e econômica para criminalizar a política e os movimentos
sociais, desastibilizar o governo democraticamente eleito, impor políticas neoliberais, impor a volta do estado
mínimo, redução de direitos e de gastos sociais, visando manter seus interesses ainda que isto signifique o sacríficio
e até a morte de milhões de brasileiros. Trata-se de uma agenda politicamente reacionária, economicamente liberal
e socialmente conservadora. O brasil é ainda um país muito desigual, injusto e excludente. Por isso que defender o
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SUS é defender um Estado democrático, de direito e laico. É acreditar num projeto civilizatório que está em
permanente disputa, e que exige construção democrática com participação social e popular.
Esta luta não pode ser travada descontextualizada da realidade política-social e economica do país e do mundo
globalizado. Em diversos países, em especial nos continentes europeu e latinoamérica, onde a lógica da acumulação
do capital é também muito perversa, a proposta frente à crise do capitalismo é de cesta básica (cobertura universal
de saúde) e de piso de proteção social. E a luta por sistemas universais de saúde segue sendo um contraponto à
hegemonia capitalista que dissemina sistemas de seguro parciais, fragmentados e segmentados. Por esta razão, o
Conselho Nacional de Saúde estabeleceu uma estratégia e uma agenda de mobilização em defesa do direito
universal à saúde, em defesa do sus e da democracia buscando unificar o povo e impulsionar a retomada de
bandeiras históricas.
Denunciamos as causas e os efeitos das crises, avaliamos a situação de saúde na visão do povo, propomos diretrizes
e ações para incidir sobre os planos de saúde – 2016 a 2019, realizamos conferências livres, plenárias populares,
pré-conferências; estratégia de mídia: redes sociais lançamento da frente nacional em defesa do sus e da
democracia – marcha e ato político.
3. MOBILIZAÇÃO
• 4706 Conferências Municipais (85% do território nacional),
• 26 Conferências Estaduais e do Distrito Federal,
• 17 UF realizaram CMS em 100% dos municípios (Centro-Oeste e Nordeste)
• 20 mil pessoas pelas CES
• 985 mil em todo processo de mobilização
4. BALANÇO GERAL
O Brasil tem um dos maiores sistemas públicos e universais de saúde e já está na 15ª edição das Conferências de
Saúde. Nosso desafio não é fazer diagnóstico da situação de saúde, nem mesmo formular propostas para o SUS
para os próximos 4 anos. Nos últimos 27 anos, o Brasil avançou na construção de um sistema público universal. E
naquilo que avançamos, o povo que usa o SUS reconhece e avalia o sistema de forma razoável pra cima. Um
sistema descentralizado e planejado num país de proporção continental – autonomia entre os 3 níveis de gestão,
organizado e relativamente estruturado num país econômica, social e culturalmente desigual e diferenciado, mas
não equacionou problemas e contradições intrínsecas a construção de uma política social, ainda que num regime
capitalista. É universal mas não é acessível e nem resolutivo para todos.
É um dos maiores orçamentos da esplanada, mas insuficiente para atender as necessidades do seu povo. As regras
para o seu efetivo financiamento nunca foram bem definidas e nem resolvidas. Tem o segundo maior contingente
de trabalhadores do país (3 milhões), mas que não é devidamente valorizado e respeitado nem por gestores
públicos e privados nem pela sociedade. Tem relação público-privado pouco regulada, alimentando a lógica da
mercantilização do direito, do consumismo de serviços, da cultura política clientelista, e de transferir a
responsabilidade da administração pública para entidades pára-estatais que visam lucro e eficiência. Tem um pacto
inter-federativo que agiliza o repasse de recursos fundo a fundo, pactua níveis de responsabilidades, ações e
serviços de saúde, mas sozinho tem se mostrado ineficiente para atender as demandas do povo e garantir serviços
públicos de qualidade. Tem participação social com sujeitos autônomos organizados e propositivos, mas em muitos
lugares ainda submetido à tutela e à cooptação de governos e partidos.
5. AVALIAÇÃO DO SUS NA VISÃO DO POVO – O RECADO DAS RUAS
5.1. Do ponto de vista do direito universal, do acesso e da qualidade do atendimento
a) Denúncia contra a PEC 451
b) A avaliação da Atenção Básica foi positiva – Mais Médicos, Redes de Atenção (Urgência e Emergência, CAPS);
Farmácia Básica e Popular; as políticas de equidade.
c) As queixas dizem respeito à MAC (tempo de espera e falta de transparência na regulação); judicialização (acesso
aos medicamentos e tratamentos); protocolos referência e contra referências
d) Denúncias:
• Violação de Direitos Humanos (preconceito, discriminação, marginalização, de intolerância, e
autoritarismo e hierarquização social decorrentes de classe, classe, raça, gênero, geração, orientação
sexual, credo e cultura, fazendo da 15ª. CNS um terreno de luta pela transformação das relações de
poder e das relações sociais);
• Surgimento de novas doenças que acometem a classe trabalhadora (síndromes); epidemias (dengue,
chikungunya e zika vírus);
• Violência no trânsito decorrente do aumento do uso de automóveis e de motocicletas. Política para
diminuição;
• Violência social que acomete mais a juventude negra e os mais pobres;
• Violência sexual, doméstica e intrafamiliar que atingem mulheres, meninas e idosos; • Saneamento;
• Questão agrária e indígena que ameaça retirar direitos dos povos indígenas, quilombolas,
camponeses, ribeirinhos, extrativistas e pescadores;
• Questões ambientais como a democratização no acesso e qualidade da água; maior regulamentação
dos agrotóxicos com banimento dos venenos internacionalmente proibidos; denúncias de hidroelétricas
e mineradoras, poluição, desmatamentos, queimadas e maus tratos a animais.
Os conteúdos emancipatórios e libertários do sus vem da Luta Popular:
• A saúde da mulher pelo movimento feminista e de mulheres;
• A saúde mental da luta antimanicomial;
• Saúde do trabalhador pela luta sindical;
• Saúde bucal pela luta dos desdentados e odontólogos;
• Consultório na Rua por causa do MNPRUA;
• Educação Popular em Saúde – MOPS e ANEPS;
• Práticas Integrativas e Complementares – saberes tradicionais;
• Saúde ambiental e segurança alimentar pelos camponeses, assentados, extrativistas, atingidos por
barragens, indígenas, sanitaristas e ambientalistas, PRONARA;
• Saúde da população negra, LGBT, deficiências, idosos, crianças e adolescentes por conta dos
movimentos populares, das pastorais.
5.2. Do ponto de vista da gestão do trabalho e educação
• Fortalecer o papel regulador do estado na formação de profissionais de saúde de acordo com as
necessidades de saúde da população e do SUS;
• Valorização das equipes multiprofissionais;
• Extinção da terceirização no serviço público;
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• PCCS pelo regime jurídico único e acesso por concurso público;
• Criar e regulamentar a carreira profissional de saúde coletiva e gestão hospitalar;
• Jornada de trabalho - 30 horas para categorias, Enfermagem
• PL 4330/2004 que generaliza a terceirização para o setor público e privado;
5.3. Do ponto de vista econômico
• Rebatimento da proposta de ajuste fiscal que ameaça paralisar a economia nacional e tirar emprego
e renda da classe trabalhadora;
• Alerta do impacto da atual situação financeira e orçamentária do país sobre o Sistema Único de Saúde.
A situação é dramática - eminência de redução, fechamento e deteriorização da qualidade de ações e serviços
ofertados, como as cirurgias eletivas, insumos laboratoriais e hospitalares, procedimentos de média e alta
complexidade, farmácia popular.
O histórico subfinanciamento do SUS e do desfinanciamento.
A piora do quadro pelos baixos valores alocados no orçamento federal para atender a aplicação mínima
constitucional não são mais suficientes para cumprir com as despesas compromissadas ou pactuadas com estados
e municípios.
• A saída é o apoio a PEC 01-A/2015;
• Criação de uma contribuição sobre as grandes movimentações financeiras;
• Taxação das grandes fortunas;
• Mudança da política econômica, com o início imediato da redução da taxa de juros por uma outra
política econômica voltada para o crescimento econômico com inclusão social;
• Fortalecer a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação que promova a produção industrial
de insumos indispensáveis a saúde pública, incentivando a produção local, para ampliar a garantia de
insumos, medicamentos e equipamentos para toda população;
• Manter a autonomia da CONEP e fortalecer os comitês de ética em pesquisa com seres humanos, x
PL 200/2015, que coloca em risco os voluntários de pesquisa clínica e os direitos dos participantes.
5.4. Do ponto de vista do modelo de atenção e da gestão do SUS
• Regionalização;
• Limites com gasto com pessoal imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF);
• Crítica à terceirização dos serviços, com vínculos trabalhistas distintos, distorções salariais,
fracionamento do sistema e comprometimento da atuação de equipes multiprofissionais;
• As entidades pára-estatais, como as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de
interesse público, continuam denunciadas como um mecanismo facilitador do desvio de finalidade
pública e de corrupção.
RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADO
• Capital estrangeiro na assistência à saúde no brasil - o domínio desses investimentos podem
inviabilizar o acesso dos usuários aos serviços do sus e dos planos coletivos de saúde;
• Apropriação da infraestrutura já instalada – AMIL comprou Hospital Samaritano (Bahia), Memorial
São José e Santa Joana (Recife);
• Pode remeter para a dolarização das tabelas de serviços, aniquilar os serviços suplementares ao sus e
aviltar os preços de planos de saúde;
• Papel da ANS e do controle social deve ser a defesa do patrimônio nacional, proteger os beneficiários
de planos de saúde e do SUS;
• Impedir que a direção da ANS seja ocupada por pessoas vinculados ao setor privado.
PONTO DE VISTA POLÍTICO
• Fortalecimento do controle social e controle interno e externo;
• Planos de saúde;
• Eleição livre e direta dos conselhos, autonomia financeira, poder deliberativo.
REPÚDIO
• PEC 171/1993 que propõe reduzir a maior idade penal;
• PEC 215/2000 que transfere para o legislativo a aprovação de demarcações das terras indígenas, dos
territórios quilombolas e áreas de preservação ambiental;
• PL 5069/2013 que contraria o direito da mulher de realizar a interrupção da gravidez nos casos
previstos em lei e pune profissionais de saúde que atendem mulheres em situação de estupro;
• PL 3722/2012 que revoga o estatuto do desarmamento;
• PL 4148/2008 que acaba com a exigência do símbolo da transgenia em alimentos, e as recorrentes
tentativas de manutenção do financiamento privado de campanhas eleitorais e de golpe na democracia.
DEFESA PROJETO CIVILIZATÓRIO – PARA SEGUIR ...
• A continuidade dos resultados da 15ª CNS e de seu caráter político e popular dependerão da aposta
que usuários, trabalhadores e gestores da saúde farão na luta democrática e cidadã que significa a defesa
do SUS;
• As bandeiras históricas devem seguir ganhando forças, pois o Brasil só vencerá esta crise se fizer uma
reforma democrática e popular do estado;
• É preciso manter os setores populares mobilizados na defesa de um projeto de desenvolvimento:
- que assegure a soberania nacional;
- um sistema político democrático;
- o caráter público dos meios de comunicação social;
- o crescimento econômico integrado ao desenvolvimento nacional com garantia e emprego
e combate às desigualdades de renda;
- direitos sociais e financiamento das políticas de proteção social;
- maior poder de regulação do estado sobre o capital privado e os direitos sociais;
- reforma urbana;
- reforma agrária;
- investimentos em habitação, saneamento e transporte público;
- preservação do ambiente e o manejo sustentável dos recursos naturais;
- produção de alimentos saudáveis pela agricultura familiar camponesa;
- acesso universal a serviços públicos de qualidade de saúde, educação, previdência e
assistência social.
- conferência de seguridade social e desenvolvimento
SUPERAR O ABISMO ENTRE O DIREITO FORMAL E O DIREITO REAL É A NOSSA LUTA! É REIVENTAR A UTOPIA!
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CADERNO DE TEXTOS
TEXTO 22: A Produção da Saúde e a População do Campo: Uma Experiência no Assentamento da Reforma
Agrária em Pernambuco
1. Introdução
A população do campo, em específico no Brasil, além de ter grande influência econômica e social para o país, está
marcada historicamente pela sua origem, por ter sido alvo de políticas de interesse agrário extrativista, da
concentração de terras, do monocultivo e da pouca industrialização. Até hoje, os pequenos agricultores ainda são
desvalorizados pela concepção histórica e pela distinção entre as grandes propriedades (propriedade capitalista) e
pequenas propriedades (propriedade familiar), que o Brasil mantém e reforça¹. Enquanto a propriedade capitalista
tem como princípio a exploração dos trabalhadores que não possuem os instrumentos e materiais de trabalho nas
grandes concentrações de terra, a propriedade familiar é instrumento direto de trabalho por quem a possui, ou
seja, é propriedade do trabalhador1.
A partir desta diferenciação do camponês, possuidor de seus meios de produção, julgou-se importante conhecer o
que caracteriza esta população do campo, organizada por um movimento social, na sua produção em saúde. Quais
os hábitos, os contatos com o meio ambiente e com os meios de trabalho que norteiam o processo saúde-doença
desta população? Exigem atenção diferenciada pela saúde? Como resgatar as ações necessárias para que a saúde
no campo seja efetiva, integral e um direito inerente a todos? A saúde da população do campo no Brasil tem, em
sua história, diversas caracterizações pelo seu meio de produção estar especificamente vinculado à terra. Contudo,
os meios de produção para este fim sempre foram mais privilegiados pelo Estado, do que as próprias condições de
vida e de trabalho que o camponês estabelece com este meio em que vive.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, o Estado conjuntamente com a população, tem o dever de incentivar
propostas que apontem para intensificar a produção de saúde no campo, através das melhorias das condições de
vida, trabalho e prevenção de doenças. Esta concepção já vem sendo discutida desde 1950, com o surgimento das
primeiras formas organizadas de trabalhadores rurais. Nas últimas décadas, os movimentos organizados ganharam
força neste setor até que, em 2011, é lançada a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da
Floresta (PNSIPCF). Tal política busca contribuir na ampliação do conceito de saúde, na afirmação desta como um
direito, dependente de determinantes sociais, econômicos e culturais, políticos e ambientais, colaborando com o
cumprimento do que é estabelecido na Constituição².
É importante ressaltar que hábitos diferenciados, rotinas e processos de trabalhos característicos do campo
necessitam de uma atenção especial da saúde, que quando preconizada universalmente, deve respeitar os
diferentes modos de vida ofertando práticas de saúde integrais, que não estejam somente vinculadas aos seres
humanos, mas também com a terra. Para a população do campo, esta relação tem íntima afinidade com os meios
de produção, com as condições sociais e de trabalho, com os processos que geram e mantêm a vida.
O objetivo deste estudo é analisar o que caracteriza a população do campo na produção de sua saúde, a partir da
vivência junto a um Movimento Social, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a fim de descrever as
características que identificam a produção de saúde na população do campo, refletir as propostas do MST sobre a
produção de saúde no campo, expor as formas de cuidado em saúde pelos agricultores e familiares e refletir a
relação entre movimentos sociais e promoção à saúde.
São poucos os estudos sobre a saúde da população do campo, especialmente relacionados à ampliação do conceito
de saúde e às formas de implementação da Política. Neste sentido, é importante ratificar este conceito ampliado
de saúde, que apoiado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), deve ter apoio científico para assegurar atendimentos
com qualidade e condições de acesso que priorizem a população do campo em sua especificidade. Estudos desse
tipo podem subsidiar possíveis ações vinculadas à forma dinâmica que vivem e discutir as barreiras de acesso
perante os serviços do SUS que ainda existem.
Com isso, investigar a produção da saúde é entender quais são os espaços de trocas e sua dimensão comunicacional
para que a saúde seja efetivada, compreendendo onde as motivações interacionais se localizam e como poderiam
ser melhoradas, através da garantia desse direito, a fim de existir a liberdade em produzir saúde no campo. Para
isso, considerou-se necessário partir do embasamento teórico de como acontecem as relações de poder e produção
econômica no campo, pois estas determinações se relacionam com os modos de vida da população do campo em
geral, e do assentamento onde ocorreu este estudo, em particular, e com os meios de produção em saúde que
adotam.
Desenvolvimento agrário e o neoliberalismo
O Brasil, inserido na economia mundial no século XXI, presencia a fase do capitalismo financeiro globalizado, onde
a acumulação se dá através do capital financeiro, do mercado de ações, sob o controle dos bancos, que passam a
comprar ações de médias e grandes empresas. Este capital passa a controlar a produção de mercadorias (na
indústria, na agricultura, nos minérios), para assim atribuir maior lucro da mais valia produzida pelos
trabalhadores3.
Na agricultura, especificamente, o capital financeiro também foi gerando concentração, através da compra de ações
de médias e grandes empresas de diferentes setores. Com isso, perpassa hoje toda a produção, desde as máquinas,
os agrotóxicos e as ferramentas, as sementes, a organização das agroindústrias, o comércio, até o consumo.
Adicionado a esta concentração, diversas regras mundiais foram impostas pela Organização Mundial do Comércio
(OMC), Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, “normatizando o comércio de produtos agrícolas, de
acordo com o interesse das grandes empresas, que obrigavam os governos a liberalizarem o comércio desses
produtos”3.
Estes subsídios no Brasil acontecem através de isenções fiscais nas exportações ou importações para a grande
produção agrícola. “Temos 50 maiores empresas transnacionais que controlam a maior parte da produção e
comércio agrícola mundial”3. Com isso, pequenos agricultores necessitando de créditos bancários para sua
produção, não recebem financiamento se não obedecerem ao modo de produção agrícola imposto por essa
agricultura industrial.
“os preços médios dos produtos agrícolas a nível internacional já não tem mais relação com o custo médio de
produção e o valor real, medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário. Mas, são resultados dos
movimentos especulativos e do controle do oligopólio dos mercados agrícolas por essas grandes empresas.”3
As grandes empresas dominadoras destes mecanismos compulsórios de comercialização das safras subjugam desta
forma, o produto do lavrador, pois estes passam a trabalhar para estas empresas, nos chamados “sistemas
integrados”, conservando a propriedade nominal da terra e mantendo a parcela principal, o lucro, com as empresas.
Devido a isso, os preços dos produtos agrícolas nas cidades são altos. Em contrapartida, o pequeno agricultor recebe
cada vez menos1, pois necessita comprar, a elevados preços, insumos como o adubo, semente, fertilizante,
inseticida, etc. “Na verdade, estamos diante da transferência de renda do pequeno agricultor para o grande
capital”1.
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CADERNO DE TEXTOS
Para um pequeno agricultor conseguir ter condições plausíveis de trabalho e de vida, necessita de incentivos
provenientes de políticas garantidas por leis. De acordo com o autor, embora seja reconhecido pelo governo que a
maior parte da alimentação do Brasil é produzida pelos pequenos agricultores, poucos incentivos no âmbito
nacional foram criados para estes produtores, inviabilizando a produção de recursos no campo e,
consequentemente, sua produção de vida1.
E é esta precária condição de vida e de trabalho em que a população do campo permanece que denota a
necessidade de articulação social na busca de direitos sociais: “novas configurações de exclusão social presentes
em nossa sociedade: se não mais prevalece o padrão de integração social via trabalho... é a partir dele que se explica
a coesão social como um valor em si ou as forças de superação daquelas realidades sociais.”4
Neste cenário, os movimentos sociais, principalmente na América Latina, estão vinculados à situação de carência
em que se encontram os indivíduos nele engajados: “Noutros termos, é a situação de carência, como um processo
subjetivo e individual que compreende escolhas entre carências diversas, que acaba sendo o fator nuclear que, de
um modo geral, provoca a organização de determinados grupos em movimentos sociais, e que acaba por associálos aos critérios de legitimado.”4
Para a autora, estes são os novos sujeitos coletivos no cenário político, de diferentes espaços tradicionalmente
definidos pela concepção liberal clássica de democracia, pois possuem como característica um forte traço de luta
por conquistas na efetivação de demandas e direitos sociais, “conduzindo a grandes lutas reivindicativas contra um
aparelho de dominação que rege cada vez mais o conjunto da sociedade, orientando-a para certo tipo de
desenvolvimento, mas em nome da coletividade”4.
A implementação do neoliberalismo no Brasil reforça um novo modelo agrícola que deixa de desenvolver a indústria
nacional para atender às demandas de um mercado externo, com o fornecimento de matérias primas agrícola,
consolidando a divisão mundial da produção de bens e do trabalho, e o papel dos países do hemisfério sul. Neste
cenário político, histórico e cultural que o MST amplia esta discussão para questionar o modelo agrícola adotado
pelo Brasil, que se utiliza do agronegócio para atender esta subordinação ao capital financeiro, deixando clara a
disputa existente entre diferentes e incompatíveis modelos agrícolas no país.
O Movimento que surge nos anos 80 com a ideia principal de democratizar a propriedade de terra, como uma forma
de reprodução dos camponeses, de integrá-los ao mercado interno e de aumentar sua renda, melhorando assim a
vida das famílias envolvidas, atualiza seu discurso e sua plataforma política.
Com isso, a discussão atual do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra é de que essa disputa deixou de ser apenas
pela ocupação de terras pelos camponeses, pois estes serão cooptados também pelo agronegócio que visa, através
da compra ou arrendamento, se apossar dessas terras, a fim de atingir as demanda desse mercado externo. Passa
a lutar por um novo modelo agrícola para o país, o que exige novas correlações de forças desses camponeses e os
grandes proprietários rurais, o capital financeiro e as empresas transnacionais.
Este modelo visa defender um novo programa de reforma agrária, que seja popular, não mais apenas dividindo a
propriedade de terra, mas também construindo alianças entre todos os movimentos camponeses e destes, com
outros setores sociais envolvidos em mudanças estruturais. O objetivo é ampliar a luta pelo controle das sementes,
da agroindústria, da tecnologia, dos bens da natureza, construindo dessa forma um novo projeto de país afinado
com necessidades do povo brasileiro5.
Além da busca originária da terra, o MST luta pela garantia de seus direitos sociais, se diferenciando em ser um
movimento de massas que opta por renúncia à exploração social, política e econômica, buscando desenvolver
diferentes formas de consciência6. Para o autor, “Sem Terra deixa de ser categoria social para se tornar nome
próprio, identificando um grupo social que decidiu ser sujeito para mudar de condição social por meio da
organização política”.
Mais especificamente, para este trabalho, debater o direito à saúde conjuntamente com as definições deste
movimento é refletir a produção da saúde e as possíveis ações norteadoras diferenciadas, que alcancem a
efetivação deste direito para a população do campo.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e a Saúde
Para o MST, “o Estado deve garantir e defender a saúde de toda a população, implementando políticas públicas de
soberania, segurança alimentar, de condições de vida dignas, como medidas preventivas às doenças”7.
O Movimento defende que o SUS deve ser ampliado e melhorado, “combinando com o Programa de Saúde da
Família (PSF) preventivo, incluindo o atendimento médico-odontológico e de enfermagem”. Preconizam também,
o combate a todas as formas de mercantilização e transformação em objeto de lucro o atendimento à saúde,
defendendo a organização pelo Estado, e formações massivas dos profissionais de saúde8.
Esta bandeira, definida pelo Movimento, provêm de uma longa discussão sobre a produção e promoção da saúde.
Para este artigo, opta-se pelo conceito de Promoção à Saúde expressos na primeira Conferência Internacional sobre
Promoção da Saúde, em Ottawa, Canadá, em novembro de 1986, que delineou conceitos baseados nos progressos
alcançados com a Declaração de Alma-Ata para os Cuidados Primários em Saúde.
Deste modo, define-se: “Promoção da saúde é o nome dado ao processo de capacitação da comunidade para atuar
na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. Para
atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social os indivíduos e grupos devem saber identificar
aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente.”2
Considerou-se importante que, a partir desta Conferência, a saúde passa a ser vista como um recurso para a vida,
que enfatiza os recursos sociais e pessoais, as capacidades físicas e que vai além da responsabilidade exclusiva do
setor saúde. Assim, para reduzir as diferenças no estado de saúde da população, as ações de promoção objetivam
assegurar oportunidade e recursos igualitários para capacitar todas as pessoas a realizar seu potencial.
Para outros autores, como Dejours9, há algum tempo vem sendo debatido que saúde deixou de ser o completo
estado de bem-estar físico, mental e social. Acreditam que este estado ideal é ilusório, uma ficção, não é
concretamente atingido. Para o autor, o estado de saúde não necessariamente é um estado de calma, de ausência
de movimento, de conforto e de ociosidade, é justamente algo que muda constantemente. É quando se torna
possível a luta contra os problemas, de tal modo que se acalme e que se resolvam os conflitos internos. A saúde
existe em diversos planos na vida dos seres humanos, independentemente de onde moram, se no campo ou na
cidade. A busca pela saúde, caminha para o transformar-se de cada indivíduo, o que não é necessariamente, acabar
com a angústia dos mesmos9.
Neste sentido, o campo do trabalho e os modos de vida oferecem um campo de ação para que os trabalhadores e
toda população concretizem suas aspirações, suas ideias, seus desejos. É quando os seres de direitos têm
possibilidades de escolher seu trabalho, sua organização, sua produção, abre-se um campo de aspirações flexíveis
para que os trabalhadores possam adaptá-la a seus desejos, às necessidades de seu corpo e suas variações de seu
estado de espírito: “a saúde é quando - ter esperança é permitido”9.
Ampliando este conceito, Ayres10 reflete sobre o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre
ser mediada por saberes na interação entre dois ou mais sujeitos. Seria, neste sentido, desmistificar o conhecimento
e intervenção normativas na saúde, a higiene pública e a higiene social que, “cederam rapidamente lugar a uma
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CADERNO DE TEXTOS
higiene centrada na tradução cientificista e individualmente centrada das tecnologias de cuidado em saúde. Ainda
que tenham experimentado um momento mais caracteristicamente coletivo, público e politicamente consensual
são de conhecimento e intervenção normativas na saúde”10
Com isso, para o autor, destaca-se progressivamente a incapacidade das ações de assistência à saúde de se
provarem racionais, para se mostrarem sensíveis às necessidades das pessoas e se tornarem cientes de seus
próprios limites. É a necessidade de superar a restrição da racionalidade instruída pelas ciências biomédicas e
otimizar a interação, enriquecer novos horizontes para que a presença do outro seja afetiva, de interações
intersubjetivas, ricas e dinâmicas, transpassando a conformação individualista, rumo às esferas coletivas,
institucionais e estruturais de intervenção.
Completando, ter saúde não se limita a aspectos fisiopatológicos do corpo, mas assume as necessidades sociais dos
indivíduos como expressão histórica do movimento e suas potencialidades. Na medida em que as carências
comprometem, motivam e mobilizam as pessoas, a saúde vai deixando de ser apreendida em sua dimensão
individual. Se o sujeito, a partir da mobilização, passa a se constituir como “sujeito coletivo”, dialogando com a
construção dialética que perpassa as determinações sociais e culturais, geradas pelo modo de produção e
organização da sociedade em que se inserem11.
A Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSICF), lançada em dezembro de
2011, dialoga com estas perspectivas quando define como princípios e diretrizes a transversalidade como estratégia
política e a intersetorialidade como prática de gestão norteadora. A valorização de práticas tradicionais, como
reconhecimento da dimensão subjetiva, coletiva e social dos saberes tradicionais da população do campo e da
floresta; a promoção de ambientes saudáveis, contribuindo para a defesa da biodiversidade; a participação social,
com estímulos e qualificação dos sujeitos; entre outros, são objetivos da Política na perspectiva de diminuir as
iniquidades em saúde.
2. Caminho metodológico
Este estudo é de abordagem qualitativa, refletindo sobre a prática experimental do projeto de extensão “A
Residência no campo – uma experiência com o MST” ao qual a pesquisadora foi participante. Este projeto foi
submetido à apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Pernambuco (CAAE No.
14879213.2.0000.5192).
Os participantes tiveram seus nomes preservados e assinaram inicialmente o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, onde declaram que compreenderam e ficaram cientes da possibilidade de produções acadêmicas a
partir das atividades realizadas. Este projeto foi de iniciativa dos residentes em saúde dos programas de Residência
Multiprofissional das Universidades Federal e Estadual de Pernambuco e do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães,
contando também com a participação de um estudante da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Foram
realizadas vivências quinzenais com os assentados, oficinas de formação com o MST, reuniões dos residentes e com
a Secretaria de Saúde do Município.
Foram feitas relatorias de todas as atividades realizadas e um diário de campo da pesquisadora. Para este estudo,
foram analisados além das relatorias e do diário de campo, outros documentos como o Diagnóstico Rural
Participativo (DRP) dados da ficha A das famílias e o Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), em um
número de 30 documentos selecionados de um total de 96 relatorias e documentos produzidos pelo Projeto de
Extensão e 8 relatórios de diário de campo12. Os documentos e relatorias foram analisados, de acordo com
Bardin13 em três etapas: pré-análise, com a escolha dos documentos a serem submetidos de acordo com a
formulação de hipóteses e dos objetivos a serem atingidos; a exploração do material: leitura e seleção nas relatorias
do conteúdo de acordo com os temas pré-definidos; e o tratamento dos resultados juntamente com sua
interpretação.
Para o tratamento dos resultados, foi utilizado o quadro sinóptico, metodologia esta que primeiramente se
categoriza o conteúdo selecionado de acordo com sua ordem semântica, ou seja, o tema. Dentre os temas mais
discutidos nas relatorias dos encontros presenciais no assentamento, quatro quadros sinópticos foram
préformulados, agrupando estes temas mais aparentes: gênero; educação; movimento social e assentamento;
promoção à saúde. Devido à relevância e grande quantidade de conteúdo para os objetivos da pesquisa, somente
um deles foi explorado (Promoção à saúde),
O quadro possibilitou agrupar as seleções de conteúdo de acordo com o tema, a fim de explorar o material e obter
um resumo geral de cada subtema para ser analisado de acordo com referenciais teóricos específicos. Para isso, foi
utilizado a regra de pertinência “os documentos retidos devem ser adequados enquanto fonte de informação, de
modo a corresponderem ao objetivo que suscita a análise”13.
Assim, a divisão dialogou com os princípios e estratégias da promoção em saúde (Política Nacional de Promoção à
Saúde), com as bandeiras de luta do Movimento Social em questão, conjuntamente com a Política Nacional de
Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Delimitou-se então os subtemas em três categorias: trabalho
em grupo, identidade camponesa, (Organização); percepção da saúde pelos assentados, lazer, alimentação, plantas
medicinais, alcoolismo e doenças e assistência, a fim de observar o conceito ampliado de saúde, (Produção em
Saúde); água, agrotóxico, lixo, (Identidade e Lutas).
O Diagnóstico Rural Participativo (DRP)
Esta metodologia utilizada foi de relativa importância para o projeto, pois possibilitou analisar conjuntamente com
os assentados o foco das intervenções em produção em saúde realizada na primeira etapa (seis primeiros meses)
dedicadas ao diagnóstico e conhecimento da população com a qual iria se trabalhar. Para o DRP, em específico,
estudou-se a Cartilha do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), desenvolvido por Faria & Neto14 no
“Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional e Sustentável – PADIS” - com o objetivo de apoiar iniciativas,
articulações e parcerias locais, voltadas para o enfrentamento de problemas socioambientais.
De acordo com os autores, não há diálogos sem sujeitos, sem aqueles que se expõem e se dispõem às trocas, deste
modo, o DRP viabiliza ferramentas para compor os diálogos através da mediação dos mesmos no planejamento
e/ou monitoramento de ações14.
O Diagnóstico Rural Participativo possibilita trabalhar com uma linguagem comum ao grupo de discussão, permitir
a participação de alfabetizados ou não, num mesmo grupo, facilitar o diálogo entre os participantes e destes com a
equipe de pesquisadores. Também, tem como objetivo despertar a discussão sobre problemas e potencialidades
da realidade em questão, permitir o levantamento e a análise do conhecimento coletivo, trabalhar com as
percepções das pessoas que residem no local, facilitar a verificação de informações obtidas no processo de
diagnóstico e utilizar materiais que são conhecidos como folhas, sementes, papel, etc14.
As principais ferramentas utilizadas nos dois encontros dedicados ao DRP no assentamento foram: mapa falado
(trata-se de um desenho representativo do espaço ou território que está sendo objeto de reflexão); calendário
sazonal (construção de uma tabela na qual um dos eixos é sempre o tempo, dividido em meses ou dias e vão sendo
inseridos elementos simbólicos e de variação significativa naquele período em questão); matriz FOFA (os
participantes apontam suas fortalezas, oportunidades, fraquezas e ameaças do assentamento); jogo dos gêneros
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(casais escolhidos no grupo respondiam perguntas de tarefas realizadas no cotidiano, a fim de pontuarem o gênero
que mais responde sim para a tarefa realizada); fluxo de produção (debate sobre os produtos cultivados,
desenhando um fluxo de para quem vendem, quem colhe, e o que dá mais dinheiro e todas as suas questões
envolvidas); matriz de prioridades (lista dos fatores e situações que ocorrem no assentamento, referente à
necessidade de mudanças para a boa sobrevivência de todos)14.
O Assentamento
O Assentamento de Jaboatãozinho foi o escolhido para a realização do projeto, quando residentes em saúde (saúde
da família e saúde coletiva), em discussão com o Setor de Saúde do MST do Estado de Pernambuco, debateram as
condições facilitadas de transporte e as poucas ações de saúde na região. O assentamento Jaboatãozinho está
localizado no município de Moreno, na microrregião metropolitana do Recife, a 42 km da capital de Pernambuco.
Como informado no Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA)12, faz limite ao norte, ao sul, ao leste e ao
oeste com engenhos de cana-de-açúcar. A população é de aproximadamente 300 pessoas, 72 famílias e 22
agregados.
De acordo com a relatoria nº3, “o acesso ao assentamento, em relação a capital (Recife), dispõe de três conduções
urbanas diferentes, no caso dois ônibus e ou moto táxi, na última parte do percurso. Internamente, as casas são
distantes uma das outras, necessitando de ônibus (linha municipal) ou transporte privado para se locomover”12. A
partir disso, explorou-se através de reuniões com os representantes do Assentamento e alguns moradores o
contato inicial, que aceitaram desenvolver conjuntamente um projeto de extensão baseado na perspectiva de
educação popular para explorar e criar diferentes formas de produzir e pensar saúde. É através destas ações, que
esta pesquisa analisará os meios de produção em saúde desta população.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1. Organização
De acordo com o diagnóstico rural participativo realizado na primeira etapa do projeto, destacou-se como a
problemática principal a falta de trabalho coletivo, pois se identificou que, através dele, muitas soluções para os
principais problemas listados poderiam ter andamento, se trabalhassem em grupo e discutissem com mais
frequência. Nessas discussões, muitas falas descreveram a necessidade do trabalho em grupo:
“sabemos trabalhar para o engenho, para o patrão, mas nunca para nós”; “ninguém quer saber de nada”; “quando
tem mutirão as pessoas não participam, vocês que vem de fora dão mais valor do que os daqui de dentro”; “a ideia
de cooperativa nunca foi pra frente”; “ as mulheres não se reúnem” Ninguém se preocupa com os outros, falta
parceria. Mas como fazer isso? Não da pra obrigar ninguém”; “estamos acomodados” [...] (Relatório DRP nº2)12
E quando houve a pintura do casarão do Assentamento, realizada pelo MST, um dos principais questionamentos
surgiu perante esta problemática: “vocês de fora vem aqui fazer algo pra “nóis”, coisa que “nóis” deveria estar
fazendo.” (Assentado- diário de campo nº9).
Devido a esta situação, foi desempenhado um trabalho com objetivo principal desta temática, através de um
assunto em comum com a situação do campo e a saúde: hortas coletivas de plantas medicinais, na intenção do
resgate e fomento das relações e construções comunitárias entre as famílias do assentamento, que vivem isoladas
cada qual em sua parcela de terra.
Observamos que, “apesar do reconhecimento de alguns assentados pelo projeto, onde destacaram a grande
importância das atividades, já que estava reunindo as pessoas para discutirem e sentirem a necessidade da
mudança, lembraram que o trabalho em Jaboatãozinho ainda se organiza de forma muito individual”; (Relatório
DRP nº2)12;
“Observou-se que, um dos assentados trabalhou sozinho em uma das hortas”; (Diário de campo nº22)12;
“Houve o reconhecimento da responsabilidade das famílias onde foram realizadas as oficinas, em serem
multiplicadoras das ações realizadas durante toda a execução do projeto e sobre as hortas de plantas medicinais e
que era necessário existir uma motivação, uma necessidade vinda das próprias pessoas, e que mesmo assim é difícil
de acontecer e de mudar, motivar novas atitudes para que as pessoas se engajassem nas atividades”; (Diário de
campo nº26)12
Deste modo, pode-se trabalhar a temática de trabalho grupal relacionado às hortas comunitárias na perspectiva de
que a Promoção à Saúde traz como diretriz na Carta de Ottawa (1986)15 o trabalho através de ações comunitárias,
desenvolvendo prioridades e estratégias, tomadas de decisão, visando à melhoria das condições de saúde. Dado
que os próprios assentados questionaram suas problemáticas em relação às condições de vida, observaram que
dentro do próprio assentamento há dificuldades de mobilização e organização para o trabalho em conjunto.
Este ponto foi observado ainda como desafio para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, quando descrevem
no Programa Agrário do VI Congresso Nacional do MST8, na proposta de um Programa de Reforma Popular, a
necessidade de organizar a produção com base em todas as formas de cooperação agrícola como mutirões,
associações, cooperativas, empresas públicas e cooperativas de prestação de serviço (p. 39)8, o que dependeria
essencialmente das mobilizações e ações em conjunto de um assentamento. Porém, se não existe mobilizações ou
interesse para soluções das condições de vida dos próprios assentados, como trabalhariam de forma conjunta para
melhorar seus meios de produção?
Azevedo & Pelicioni16 descrevem em seu artigo sobre promoção da saúde e agroecologia, a dimensão social de
modernização do meio rural que não se ajustou às condições da agricultura familiar, pois reduziu o conhecimento
agrícola tradicional, bem como seus hábitos de vida, que foram desvalorizados.
Também foi refletido por Stedile17, nos textos de formação sobre a questão agrária, que há a necessidade de
resistência de toda a comunidade camponesa, como classe que defende seu espaço territorial frente aos interesses
do capital para poder sobreviver e resistir. Nas suas palavras, “a força das organizações camponesas não se mede
por seus programas ou pela justeza de suas propostas e ideias, a força dos camponeses se mede pela capacidade
que tiveram de reunir muita gente, em torno do mesmo objetivo, juntar número de pessoas. E juntar muita gente
é fazer luta de massa”17.
3.2. Produção em saúde
O objetivo geral do projeto em questão foi trabalhar práticas que viabilizassem novos pensamentos em saúde no
campo, conjuntamente com o saber dos assentados, tendo em vista que são agentes multiplicadores de saúde,
eliminando a perspectiva vertical e de apenas garantir assistência às doenças, ou seja, buscando enfatizar as
condições de vida. Esta questão foi problematizada entre os assentados que questionaram:
“tem gente aqui que nunca foi no médico, não cuidam dos dentes” (Assentado)12; “necessidade do serviço
odontológico e com crianças, onde o projeto neste formato não serviria”. (Relatoria nº 7)12.
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Refletindo sobre o cotidiano dos assentados, o projeto também reforçou a criação de atividades de lazer visando
“melhorar a convivência entre os mesmos, a intenção era reativar os momentos de encontro, confraternização, que
pudessem fortalecer os vínculos comunitários” (Relatoria nº 13)12.
Foram realizadas atividades como exibição de filmes, grupo de teatro – Caravana Tapioca1, seguido de reflexão e
debates com os assentados. Estes “recordaram que, um antigo morador tocava e muitos ficavam ali conversando e
cantando noite adentro” (Diário de campo nº 16)12.
Na apresentação de teatro, “apareceram moradores que nunca apareciam nas reuniões, a escola ficou lotada,
houve muitas risadas” (Relatoria nº 25)12.
E nas discussões e buscas pelos depoimentos “refletiram que gostariam de ter aquilo mais vezes e que o casarão
poderia ser um espaço em potencial de cultura, que aquilo também era saúde, ser feliz” (Diário de campo nº26)12.
Outro aspecto relevante ao cotidiano foi a alimentação, pois as atividades realizadas aos fins de semana
intensificavam as vivências, onde os residentes dormiam na casa dos assentados, a fim de trocar experiências fora
da realização das atividades e também presenciar o modo de vida, ser e estar no mundo como camponês.
Foi possível observar “alimentação pouco variada, sem consumo de frutas, verduras, legumes naturais, mesmo que
o acesso aconteça pelas feiras do município e outros próximos dali, para produção, compra e comercialização”.
(Relatoria nº 10)12.
Em algumas casas, havia muita utilização de temperos prontos, miojo e carnes com gordura, frango e peixes fritos
no café-da-manhã, no discurso de que a comida tem que ser forte e ter sustento, se não, não consegue trabalhar
(Relatorias nº 20, 21, Diário de campo nº 22 e 26)12.
Contudo, a assistência em saúde também foi um aspecto observado na convivência em Jaboatãozinho.
Presenciouse “um dos jovens adoecido, que foi levado para o hospital de ambulância, mesmo não sendo grave, mas
por não existir outra possibilidade” (Relatoria nº 20)12.
Em reunião com a Secretaria de Saúde do município, as doenças negligenciadas foram as principais citadas, devido
ao grande número de leishmaniose e esquistossomose identificadas durante as vivências: “outra assentada mostrou
suas feridas devido à leishmaniose e disse que tomou 30 dias de injeções para se curar” (Diário de campo nº 22)12.
E “O posto de saúde foi eleito pelos moradores como a principal melhoria que eles necessitavam”, de acordo com
o Diagnóstico Rural Participativo nº 212. Na atenção Primária: “o assentamento tem cobertura de uma Unidade
de Saúde da Família com uma das assentadas sendo a Agente Comunitária de Saúde há 14 anos. Ela relatou que são
92 famílias cadastradas (300 pessoas com os agregados) e a principal dificuldade é o acesso e a distância entre as
casas e destas com a USF (a USF mais próxima se encontra à 4km de distância do assentamento no município de
Massaranduba), o que inviabiliza a realização efetiva de seu trabalho.” (Relatoria nº6)12 Com informações diretas
da ficha A das famílias, observou-se: “Em conversa com a mesma, relata que as mulheres têm pouca adesão aos
exames de prevenção, há grande quantidade de hipertensos (43), em situações de emergência recorrem ao telefone
público para ambulância os atender, as doenças prevalentes são leishmaniose, esquistossomose e alcoolismo (25),
e as campanhas de vacinação são feitas no assentamento.
A rede Inter setorial, apesar de existir se localiza basicamente em outros municípios: Centro de Referência da
Assistência Social – CRAs e o Centro de Especialidades Odontológicas - CEO em Moreno, já a Maternidade, policlínica
e Hospital mais próximo, se localizam em outro município.” (Relatorias nº6)12
Outro fator de relevância na assistência foi a presença de alcoolistas nesta população onde um dos assentados
relatou sofrer de sintomas, mesmo já parado de beber “em processo de abstinência sofre com os sintomas
(agressividade, alucinações e tremores)” (Relatoria nº 7)12. E outro assentado que para realizar atividades do
projeto, “G. estava alcoolizado” (Relatoria nº 20)12.
Assim, as hortas coletivas de plantas medicinais foi o tema escolhido para a segunda etapa do projeto (os seis
últimos meses), devido a observação de que: “Havia cultivo com ervas e plantas medicinais em uma pequena parte
do quintal de vários assentados” (Relatoria nº 10)12 “eu planto pra dar pros outro, o homi que tá com muita
gordura no sangue, plantei e separei pra ele” (Assentada – diário de campo nº 22)12
O tema foi discutido e definido após avaliação e apresentação do Diagnóstico Rural Participativo com os assentados:
“muitos sabiam dizer o uso, como cultivavam, em sua maioria babosa, capim santo, erva cidreira, boldo, com
empolgação relataram casos familiares - meu avô já curou até epilepsia, só com as plantas” (Assentado – relatoria
nº 14)12.
Contudo, a maioria assumiu não dar muita importância para as plantas porque não repassavam este conhecimento
para seus filhos, assim como esse conhecimento foi adquirido. Reconheceram que a valorização do plantio simples
da terra não acontece, pois compram os mesmos produtos no mercado e na feira, quando já tem no próprio quintal
(Relatorias nº 15, 27 e Diário de campo nº 16)12.
Através destes dados, foi observado que, mesmo o assentamento possuindo uma Agente Comunitária de Saúde, a
mesma tem dificuldades de acesso pelas casas serem distantes uma das outras, além da USF de referência ser de
difícil acesso.
Assim, mesmo havendo cobertura sistemática pela atenção primária do SUS, o acesso da população não
necessariamente é garantido, muito menos a sua adesão aos programas e atendimentos fornecidos. Este fato pode
acontecer com comunidades do campo, quando a equipe como um todo (ACS, enfermagem, médicos e
odontólogos) não se aproximam dos costumes e dificuldades desta população, não criando vínculos e parcerias para
que a mesma se sinta acolhida e apoiada pela equipe de saúde.
Este princípio aparece como diretriz na PNIPCF (2012), quando se preconiza a valorização de práticas e
conhecimentos tradicionais, com o reconhecimento da dimensão subjetiva dessas populações e a garantia da
informação e comunicação em saúde, prezando pela diversidade cultural. O fato dos assentados estarem distantes
dos mecanismos de assistência à saúde aparece também no estudo de Bohes & Fernandes18 como um elemento
de determinação para a saúde o isolamento geográfico de áreas rurais, acessibilidade limitada que agrava a situação
de saúde dos indivíduos.
Este estudo buscou compreender a prática de cuidado pelas enfermeiras em áreas rurais, classificada como um
desafio, “pelo fato de encararem diversas estruturas, culturas, crenças e valores, exigindo negociação do saber
profissional com famílias de complexas dinâmicas e de diferentes gerações (...) conhecer a influência da localização
geográfica, da condição econômica, do trabalho, da etnicidade e do gênero na saúde das famílias”. Uchoa et Al19
também descreve em seu artigo sobre a satisfação do Programa de Saúde da Família em dois municípios na zona
rural do Rio Grande do Norte, que os principais problemas em saúde foram relacionados às doenças crônicas como
hipertensão e diabetes e a incorporação de uma concepção de necessidades de saúde centrada na doença. Analisa
a falta de iniciativas multidisciplinares e intersetoriais como enfrentamento das condições adversas daquela
população.
A identificação de elementos chave das condições de vida desta população é uma prioridade na implementação de
estratégias de assistência que, nas limitações dos profissionais, não necessariamente intensificam iniciativas de
saúde e produção de vida desta população com especificidades, ficando apenas na visão vertical da assistência e no
enfrentamento de doenças. Processos paralelos devem acontecer, porém, a adesão dos usuários do campo, o
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trabalho de promoção de saúde e as ações assistenciais podem se complementar, enquanto prática de atenção
primária, se incorporam a perspectiva de Educação Popular em Saúde.
Esta perspectiva, já em 2012, foi concretizada na Política de Educação Popular em Saúde (PNEP – SUS)20 que
preconiza processos educativos intencionalmente direcionados à promoção da autonomia das pessoas, entre os
saberes populares e técnicos – científicos, à cidadania, violência, opressão. Para que o cuidado em saúde se
fundamente numa estratégia singular, processos que busquem a formação, a produção de conhecimentos, a
intersetorialidade e a democratização do SUS devem incluir a educação que não se faça ‘para’ o povo, mas ao
contrário, ‘com’ o povo.
No estudo de Lara et al21 sobre os aspectos culturais das práticas dos Agentes Comunitários em Saúde em áreas
rurais em Minas Gerais, aparece o fato de a prática de educação em saúde na Estratégia de Saúde da Família (ESF)
utiliza saberes e costumes populares relacionados à utilização de chás e ervas medicinais, eventualmente
conciliados com as terapias medicamentosas e prescrições biomédicas.
Os autores relatam que concretiza-se o desenvolvimento das prioridades na tomada de decisão e definição de
estratégias, visando a melhoria das condições de saúde e o desenvolvimento do empowerment comunitário, no
processo saúde doença da comunidade local. São experiências compartilhadas de culturas herdadas que exercem
influências sobre as atividades cotidianas da população, “tornando possível o desenvolvimento de ações de
promoção da saúde e prevenção de doenças”21.
3.3. Identidade e Lutas
Foi observado que, algumas características da maioria dos assentados, ainda se apresentam enfraquecidas como:
as relações de cooperação, organicidade para luta de seus direitos constitucionais não assegurados, falta de
interesse em reuniões, disponibilidade, comunicação, o que reforça a invisibilidade no campo (Relatoria nº 13)12.
Alguns desses aspectos influenciam costumes cotidianos e modos de vida dos assentados. Como o lixo que, “na
maioria das casas ainda era queimado. Uma das assentadas ainda jogava o lixo pela janela, mesmo prometendo à
R., liderança do local, que iria queimá-lo” (Relatoria nº 21)12.
Para a preparação da horta de plantas medicinais, havia o lixo espalhado pelo local, e o assentado que mora próximo
dali, disse “o lixo não faz mal ao solo”, contudo muitos argumentaram que o tempo de decomposição demoraria e,
por isso, precisariam recolhê-lo e todos participaram da tarefa (relatoria nº 20)12. Outro exemplo é a presença de
alguns direitos, que ainda não são totalmente garantidos, mesmo em 15 (quinze) anos de assentamento, como o
acesso à água e a pouca mobilização para tal: “No assentamento, há um rio que cruza quase todas as parcelas,
porém, não abastece a casa dos moradores e nem é utilizado para irrigação, isto somente se o assentado, por
condições próprias fazer mecanismos para tal, como a compra de bombas. Como exemplo, a casa de M. utiliza água
de cacimba da parcela do vizinho e não tem água encanada, assim como a escola municipal.” (Diário de Campo nº
1 e 26)12
No mesmo sentido acontece com os agrotóxicos, quando se comprovou que a maioria dos assentados ainda usa e
não conseguem construir uma alternativa aos mesmos. Na relatoria nº 10, mostrou que, “muitas famílias visitadas
no assentamento utilizam o monocultivo (cana de açúcar), queima e agrotóxicos para revender às usinas mais
próximas”. No caso da mandioca, também utilizam fertilizantes, onde uma das assentadas tinha grande quantidade
de fertilizantes químicos guardados na varanda de sua casa, pois a terra não respondia mais sem ele (Relatoria
14)12, onde com consciência relatou “o grande beneficiário é a indústria, pois a cada ano a quantidade de
fertilizante necessária para terra produzir aumenta” (diário de campo nº 26)12. São poucas as famílias que cultivam
alimentos frutíferos para comercialização e para o próprio cultivo.
Miranda et al22 conclui, em seu estudo sobre o neoliberalismo e os agrotóxicos, que a adoção dos princípios do
neoliberalismo norteadores do modelo de desenvolvimento do Brasil, a partir da década de 90, apenas prioriza o
atendimento aos compromissos internacionais, especificamente ao capital financeiro, permanecendo a
propriedade de terra em grandes latifúndios, reforçando a incorporação tecnológica, expulsando trabalhadores do
campo, associados à falta de investimentos na infraestrutura básica para a população.
Deste modo, os poucos camponeses que sobrevivem no Brasil em busca de uma vida melhor, acabam como resume
Rigotto et al23 em seu estudo, caracterizando-se de acordo com a classificação descrita: “alguns (camponeses) se
tornam “parceiros” das grandes empresas para ter delas a possibilidade de comercialização (que uma política
pública poderia oferecer) e assim recebem a imposição de um pacote tecnológico que inclui os mesmos agrotóxicos,
sem contar, entretanto, com o aporte técnico para proteger seus familiares ou seus poucos empregados”.23
De algum modo, a superação desta prática pode acontecer com o envolvimento com lutas comunitárias, como neste
estudo da autora. Num processo de luta contra a contaminação da água, foi demonstrado em sua pesquisa os riscos
e os impactos à saúde humana, em audiências públicas na Câmara Municipal, na Assembleia Estadual na Chapada
do Apodi no Rio Grande do Norte, que resultou a proibição da pulverização aérea no município, onde a participação
ativa do Movimento intensificou a luta, principalmente após o assassinato de um líder comunitário.
Portanto, pensar em intensificar diferentes formas de produção agrícola e organizações de lutas para a busca dos
direitos à infraestrutura no campo e incentivos é também produzir saúde, visto que a falta dos mesmos, como
apresentado, prejudica as condições de promoção à vida. Pelicioni & Azevedo24 debatem algumas alternativas
para estes modelos agrícolas através da agroecologia como possibilidade de fortalecimento do agricultor familiar
se manter no meio rural com dignidade, conservação ambiental, minimizando gastos e o transporte de alimentos.
Destacou-se também a questão do sabor do alimento produzido “que deve ser diferente, mais gostoso”24, pois não
utiliza nenhum tipo de produtos bioquímicos.
Este é um debate que deve ser ampliado quando se discute promoção à saúde no campo e seus meios de produção.
Quais são as formas alternativas existentes que os agricultores podem exercer para produzir melhor bem estar e
autonomia na sua conexão com a terra? Até que ponto profissionais da saúde entram em contato com esses
determinantes? O próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Terra tem, como alguns de seus principais
compromissos retificados no VI Congresso do MST fevereiro de 20148, priorizar a produção de alimentos saudáveis
à saúde dos produtores e dos consumidores e a preservação da natureza; produção agrícola agroecológica com a
abolição do uso de agrotóxicos; e a terra, água, flora e fauna, minérios e sol devem estar a serviço do povo e
preservados para as gerações futuras.
Sendo este, um debate ao qual o Movimento deve ampliar para com os órgãos e os responsáveis pela saúde. No
documento, identifica-se a saúde como um dos cernes principais da construção pela Reforma Agrária Popular: o
campo como um local de bom viver, com direitos respeitados e condições dignas de vida, tendo em vista que, a
transformação social se insere como compromisso de luta, não só dos camponeses, mas de toda a sociedade8.
4. Conclusão
Pode-se observar através deste estudo características específicas da população do campo inerentes a uma
concepção de vida que tem como campo norteador a possibilidade de mobilização e luta um Movimento de massa.
Características estas que passaram a ser preconizadas e observadas pela saúde com mais atenção pela Política
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Nacional Integral em Saúde das Populações do Campo e da Floresta. Ao expor as formas de cuidado de um
assentamento específico, observou-se que ainda existem poucos investimentos na saúde dos camponeses,
principalmente por serem os que sofrem as principais influências de uma escolha neoliberal capitalista de um país
que prejudica a vida do pequeno agricultor na forma de produzir, se manter e realizar de forma autônoma sua
produtividade econômica, social, cultural e principalmente de saúde e vida.
Ressalta-se a necessidade de organização política e de grupos em assentamentos relacionado ao Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra, que mesmo tendo seus princípios e diretrizes contra-hegemônicos, ainda buscam ampliar
o debate sobre os meios de melhorar e criar condições de vida que se atentem de forma holística para a saúde,
para além de uma luta classista contra a propriedade de terras, mas que não se distancie de sua base, fomentando
novas possibilidades de produção da saúde.
Outro aspecto relevante é o papel do profissional em saúde, mais especificamente do Residente em Saúde no
contato com as particularidades da população do campo, que, ao se aproximar destes, podem se sensibilizar, criar
e fomentar produções em saúde voltadas para a relação com a natureza, respeitar diferentes costumes e dialogar
com a produção de novos meios de serviço e atendimento à saúde no campo, através da Educação Popular.
Retifica-se a necessidade de ampliação acadêmica, de serviços e estudos nesta área pelos profissionais de saúde
que, ao utilizar Programas de Residência como educação permanente no SUS, podem fomentar produções
específicas, na perspectiva de ressignificação da saúde nos assentamentos e da construção de outros projetos como
uma Residência Multiprofissional e Interdisciplinar de Saúde no Campo, ainda inexistente em nosso país.
http://www.reformaagrariaemdados.org.br/biblioteca/artigo-e-ensaio/produ%C3%A7%C3%A3o-dasa%C3%BAde-e-popula%C3%A7%C3%A3o-docampo-uma-experi%C3%AAncia-no-assentamento-de
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