com quantos caracteres se faz literatur

Transcrição

com quantos caracteres se faz literatur
VII SEMINÁRIO DE PERQUISA EM LITERATURA E
CRIAÇÃO LITERÁRIA
A palavra reinventada:
com quantos caracteres se faz literatur@?
Montes Claros
2015
Realização:
Apoio:
ANAIS DO VII SEMINÁRIO DE PERQUISA EM
LITERATURA E CRIAÇÃO LITERÁRIA
A palavra reinventada: com quantos caracteres se
faz literatur@?
Organização:
Alba Valéria Niza Silva
Andrea Cristina Martins Pereira
Ingrid da Silva Marinho
Júnia Cleize Gomes Pereira
Montes Claros
2015
Reitor
Prof. João dos Reis Canela
Vice-Reitor
Prof. Antônio Avilmar Souza
Pró-Reitor de Pós-Graduação
Prof. Hercílio Martelli Júnior
Diretora do Centro de Ciências
Humanas
Profª. Mariléia de Souza
COMISSÃO CIENTÍFICA
Alcione Corrêa Alves (UFPI)
Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Mackenzie)
Ivete Lara Camargos Walty (Fapesp)
Juliana Gervason (CESJF)
Jurema Oliveira (UFES)
Lucia Teixeira de Siqueira e Oliveira
(UFF)
Márcia Marques de Moraes ( PUC-MG)
Maria Zilda da Cunha (USP)
Patrícia Kátia da Costa Pina (UEB)
Sebastião Lopes (UFP)
Chefe do Departamento de
Comunicação e Letras
Profª Maria Generosa Ferreira Souto
COMISSÃO ORGANIZADORA
Andrea Cristina Martins Pereira
(coordenação geral - Unimontes)
Alba Valéria Niza Silva (coordenação
geral - Unimontes)
Aroldo Pereira – Secretaria de Esportes,
Lazer, Turismo e Cultura – Montes
Claros (coordenação Geral)
Edwirgens Aparecida Ribeiro Lopes de
Almeida
Ivana Ferrante Rebello (Unimontes)
Osmar Pereira Oliva (Unimontes)
Rita de Cássia Silva Dionísio
(Unimontes)
Regina Silva Michelli Perim (UERJ)
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Telma Borges da Silva (Unimontes)
Mestrandos turma 2015:
Aimée Lafetá Guimarães
Alexandre Manoel Fonseca
Camila de Souza Ramos
Cristiane Rodrigues Antunes da Silva
Daniel Silva Moraes
Elizabeth Dias Lessa
Geraldo Ferreira da Silva
Ingrid da Silva Marinho
Júnia Cleize Gomes Pereira
Mariane Santos Peixoto
Mírian Peixoto de Freitas Santos
Patrícia Braga Ferreira
Samara Pereira Baleeiro Rocha
Silvana Mendes Cordeiro
Siméia de Brito Oliva Andrade
Thais Rios de Aguiar
Realização
Programa de Pós-Graduação em
Letras/Estudos Literários - PPGL
Departamento de Comunicação e
Letras/Unimontes
Arte
Samuel Reis
Finalização e publicação
Jeferson Silveira Santos de Andrade
Apoio
FAPEMIG
CAPES
FADENOR
Universidade Estadual de Montes
Claros/Unimontes
Nota ao Leitor
A correção ortográfica e gramatical dos
trabalhos apresentados é de inteira
responsabilidade dos autores.
Universidade Estadual de Montes
Claros – UNIMONTES
Campus Universitário Prof. Darcy
Ribeiro
Vila Mauricéia – Montes Claros – MG
Fone: +55 (38) 3229-8000 – Fax: +55
(38) 3229-8002 www.unimontes.
SUMÁRIO
CARTAS A OSVALDO ANDRÉ DE MELLO
Alba Valéria Niza Silva -----------------------------------------------------------------7
LUIZ FERNANDO CARVALHO: UM OLHAR DIFERENTE ONDE TUDO
PARECE IGUAL
Andrea C. Martins---------------------------------------------------------------------22
EPIGRAFE E REFERÊNCIAS BIBLICAS EM ―O PIROTECNICO
ZACARIAS‖ DE MURILO RUBIÃO
Camila Alves da Silva -----------------------------------------------------------------34
―DRAMA DE BÁRBARA HELIODORA‖ EM MADRINHA LUA, DE
HENRIQUETA LISBOA
Daiana Santos Machado--------------------------------------------------------------40
NAVEGAR É PRECISO: A CARTA DO ―ACHAMENTO‖ DO BRASIL
INTERMEDIADA PELO E-MAIL DE CAMINHA, DE ANA ELISA
RIBEIRO
Daiane Silva de Andrade ------------------------------------------------------------50
A INVENÇÃO DE UMA TERCEIRA MARGEM: DA DISSOLUÇÃO DO
SUJEITO AO DEVIR-RIO
Daniel Silva Moraes -----------------------------------------------------------------58
MORAL DA HISTÓRIA- A LITERATURA INFANTIL COMO PROCESSO
DE FORMAÇÃO, POR LÚCIA MIGUEL PEREIRA
Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida ----------------------------------------64
ESCRITURAS E TECITURAS: A CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA
SOB A ÓTICA DO ESCRITOR MONTESCLARENSE JOÃO LUIZ
MACHADO LAFETÁ
Enólia Nunes Ferreira Lopes ------------------------------------------------------72
A INSUBMISSÃO FEMININA NA NOVELA "ROQUE SANTEIRO" (1985)
Gabriela Miranda de Oliveira ------------------------------------------------------82
PÁGINAS EM BRANCO: AUSÊNCIA DA MULHER E O APAGAMENTO
DA ESCRITORA NEGRA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA
OITOCENTISTA
Geraldo Ferreira da Silva e Ivana Ferrante Rebello----------------------------92
CRÔNICAS DA VIDA REAL: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADE
CULTURAL BRASILEIRA NA OBRA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
Gustavo Souza Santos, Andréa Nogueira do Amaral Ferreira e
Josiane Santos Brant Rocha -----------------------------------------------------102
A SENSUALIDADE E SEXUALIDADE DA MULHER CIGANA EM LA
GITANILLA E CARMEN
Ianny Lima Maia -----------------------------------------------------------------------112
EROS VERBALIZADO NA POESIA DE MAX MARTINS: A LINGUAGEM
DO AMOR E DO DESEJO
Ingrid da Silva Marinho ------------------------------------------------------------121
―PRECISA-SE DE COZINHEIRA, QUE FAÇA ODES, POEMAS E
NOVELAS‖: A CORRESPONDÊNCIA ENTRE MULHERES DE LETRAS
Drª Ivana Ferrante Rebello ---------------------------------------------------------131
CORRESPONDÊNCIAS ENTRE MACHADO DE ASSIS E OS
BACHARÉIS EM DIREITO JOAQUIM NABUCO, MAGALHAES DE
AZEREDO E MÁRIO DE ALENCAR
Iuri Simões Mota --------------------------------------------------------------------- 143
EDSON LOPES, DILUIÇÕES EM ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO
Júlio Cipriano da Silva Neto
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos --------------------------------------------153
GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A FLORA EM PERSPECTIVA
Júnia Cleize Gomes Pereira -------------------------------------------------------161
OS PÁSSAROS COMO METÁFORA DE MUDANÇA EM ―HORA E A
VEZ DE AUGUSTO MATRAGA‖
Júnia Cleize Gomes Pereira --------------------------------------------------------169
COMO ESCREVER PARA AS CRIANÇAS: A IDEIA DE ALEXINA DE
MAGALHÃES PINTO SOBRE O INFANTIL E A LITERATURA
Laura Emanuela Gonçalves Lima
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos -------------------------------------------179
VIRTUDES PARA DELEITE DOS BRASILEIROS: A PRESENÇA DE
TEXTOS DE LÍNGUA PORTUGUESA N'O LIVRO DAS VIRTUDES
Leonardo Tadeu Nogueira Palhares ---------------------------------------------186
A AUTOFICÇÃO DE JEAN-LOUIS FOURNIER COMENTÁRIOS
ACERCA DA TRADUÇÃO DE OÙ ON VA, PAPA?
Luíz Horácio Pinto Rodrigues ---------------------------------------------------196
CORPOS
MARCADOS,
MENTES
ASSOMBRADAS:
A
RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NAS ADAPTAÇÕES DE O QUE É
ISSO, COMPANHEIRO?, ALGUMA COISA URGENTEMENTE,
BATISMO DE SANGUE E AS MENINAS
Marina Rodrigues de Oliveira ------------------------------------------------------207
O ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, FICÇÃO E FILOSOFIA
Mauricio Alves de Souza Pereira -------------------------------------------------216
RECEPÇÃO CRÍTICA EM O FILHO DO PESCADOR: DIVERGÊNCIA
OU CONVERGÊNCIA DE INTERESSES?
Noêmia Coutinho Pereira Lopes --------------------------------------------------225
AS MULHERES DE TIJUCOPAPO: O ORGANISMO TRÁGICO E O
DISCURSO DA MEMÓRIA-TRAUMA DE RÍSIA
Rafael da Silva Mendes -------------------------------------------------------------235
AS FACETAS EM BÁRBARA DE MURILO RUBIÃO
Priscilla Neves-----------------------------------------------------------------------245
SAINDO DO ESPAÇO DA REPRESENTAÇÃO:
A CRISE
CONTEMPORÂNEA NA LITERATURA DE SÉRGIO SANT’ANNA
Sarita Erthal ---------------------------------------------------------------------------252
DE SUBSERVIENTE A INSUBMISSA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
EM A DANÇA DOS CABELOS
Shantynett Souza Ferreira Magalhães Alves ----------------------------------261
INEXPLORADOS CAMINHOS POÉTICOS DE EMÍLIO MOURA
Viviana Pereira Silva ----------------------------------------------------------------271
CARTAS A OSVALDO ANDRÉ DE MELLO
Alba Valéria Niza Silva
Resumo: Pretendemos discutir no texto a seguir a presença de autores e obras que, a
partir da pesquisa realizada, do material levantado nos arquivos do escritor, de modo
especial as cartas, demonstram peso significativo na produção literária do poeta Osvaldo
André de Mello.
Palavras-chave: Osvaldo André de Mello; Cartas; Poesia.
Resumen: Se pretende discutir en el texto que sigue la presencia de autores y obras
que, a partir de la búsqueda realizada, del material levantado en los archivos del escritor,
de modo especial a las cartas, demuestran peso significativo en la producción literaria
del poeta Osvaldo André de Melo.
Palabras clave: Osvaldo André de Mello; Cartas; Poesia.
A carta enquanto gênero textual
A carta, como gênero textual, atesta o desejo humano de
permanência, assim como a poesia. A diferença entre ambas, entretanto,
é explicada por Maria José de Queiroz, no prefácio às Cartas à Noiva/Rui
Barbosa (1982):
Instrumento e meio de comunicação pessoal e confidencial,
quando não secreto, a carta escapa à divulgação a que
necessariamente se sujeitam os gêneros literários. E ao lograr
publicidade cumprem, freqüentemente, função ancilar: qual
seja, a de iluminar episódios e eventos biográficos – velados ou
ignorados -, explicar peculiaridades de comportamento,
justificar inclinações, ojerizas, compromissos e hábitos de vida.
Mais: o recuo a que geralmente obriga, pois a correspondência
pessoal nunca se difunde nem se publica à data da redação,
implica solução de continuidade e mudança de perspectiva. A
história da epistolografia padecerá portanto de todas as
vicissitudes e dos vícios decorrentes. (QUEIROZ, 1982, p. 10).
Por ser datada, a carta, de certa maneira, atualiza o passado.
Através das suas letras, ao leitor será possível rever e rearranjar fatos,
posicionamentos e impressões. Queiroz acrescenta que:
Os dados biográficos – acidentais ou de rotina,
conscientemente escamoteados ou não - emergem de um
7
fundo permanente de reserva e de sigilo. À devassa da
indiscrição ou da curiosidade descortina-se o universo moral do
processo e da confissão, implícito no enunciado singular.
(QUEIROZ, 1982, p. 11).
Maria José de Queiroz menciona três tipos de autores de carta:
―aqueles que delas se servem para expor ideias; os que, tendo poucos
fatos a contar, transformam em maravilhoso relatório os mínimos
incidentes de uma vida (...); e aqueles, finalmente, que escrevem porque
não podem fazer outra coisa, e lançam o próprio eu, comovente e vivo, na
sua correspondência‖ (MAUROIS apud QUEIROZ, 1982, p. 11).
É
preciso que se registre a existência de uma mistura desses tipos.
Pensamos que se encaixa, aqui, a primeira definição, mesclada à terceira,
por se tratar de correspondências em que predomina a visão ou a
impressão que as poesias de Osvaldo André – destinatário - causaram a
seus leitores - remetentes.
Em À Margem da Carta, Walnice Nogueira Galvão (1998) reitera o
inestimável valor das missivas para os estudos literários e, citando vários
autores que se utilizaram desse gênero, dentre eles Mário de Andrade,
diz:
Contam-se
aos
milhares,
dirigidas
aos
principais
contemporâneos modernistas, como Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Pedro Nava, Rodrigo de Mello Franco,
etc., ou mesmo aos da geração seguinte, como Fernando
Sabino. ―Nenhum outro epistológrafo brasileiro escreveu com
tal profusão e com tal originalidade‖, na afirmação de
Drummond. (GALVÃO, 1998, p.155).
Walnice Nogueira afirma que, nas citadas cartas, Mário de Andrade
―aconselha, admoesta, comenta, discorda, prega, teoriza, doutrina, corrige
poemas e escritos‖ (GALVÃO, 1998, p.155). Partindo do que foi dito,
acreditamos, como a ensaísta, encontrar, nas cartas, importantes
elementos para construção ou reconstrução de biografia, ideias e teorias
não influenciadas pela forma estética e ―um estatuto exclusivo devido à
8
qualidade impecável da escrita‖ (p. 156). Tudo isso reforça a ideia de que
elas possuem importante ―peso‖ para os estudos literários e:
Acrescente-se que quem se dedica a esses estudos acaba por
tornar-se aficionado de tudo quanto seja não só carta, mas
também memórias, diários íntimos, resenhas, rascunhos,
biografias, listas de palavras, anotações, manuscritos em geral.
Em suma, por qualquer material paralelo à obra literária.
(GALVÃO, 1998, p.156).
A afirmação acima reitera e valida o viés adotado por nós neste
estudo. Galvão salienta, ainda, que, na maioria das vezes, em se tratando
de pesquisa, chega-se às correspondências por mero acaso que logo se
transforma em necessidade. Podemos dizer que algo semelhante nos
aconteceu, pois, o interesse primeiro deste estudo, enquanto ainda
projeto, restringia-se ao acervo e sua marginália, bem como aos
manuscritos do autor em estudo. Diante dos ―papéis‖ do poeta,
constatamos a numerosa e valiosa correspondência que será, em parte,
transcrita e analisada a seguir.
Não há como negar que a vida deixa marcas na obra de um autor,
e estas podem ser utilizadas para compreendê-lo, ao mesmo tempo em
que a produção pode trazer à tona aspectos ―obscuros e silenciados na
vida do escritor‖. (BRANDÃO; OLIVEIRA, 2011, p. 97). No caso desta
pesquisa, a correspondência em análise é a passiva, que se traduz em
análises de ―pontos de contato, que carregam seus encantos enlaçando
vida (bio) e obra (grafema) (...) Já não mais estaríamos na pretensa busca
de verdades inabaláveis, mas pormenores, traços biográficos, alguns
gostos e inflexões. E mais: revelados não pelo escritor, mas pelo leitor‖.
(BRANDÃO; OLIVEIRA, 2011, p. 108).
Trataremos, sobretudo, a seguir, nas cartas selecionadas no
acervo de Osvaldo André de Mello, dos trechos em que dá o registro de
um momento cultural brasileiro, o do poeta e seu entorno, e, mais,
daqueles em que se percebe da parte do missivista uma intenção
9
pedagógica
(professoral?),
aperfeiçoamento
do
poeta
como
forma
iniciante.
de
Nesse
contribuir
sentido,
para
teve
o
papel
significativo o Movimento Agora, fundado em 1967, graças ao idealismo
de Lázaro Barreto, Sebastião Benfica Milagre e Fernando Teixeira, entre
outros. Vários elementos ligados ao Movimento, citados recorrentemente
nas cartas que serão apresentadas a seguir, alcançaram sucesso
estimulados pelo jornal literário Agora, de Divinópolis.
O ―Movimento Agora‖, sua importância e repercussões
Autores como Adélia Prado e Lázaro Barreto viram-se editados por
uma respeitada editora que é a ―Vozes‖, de Petrópolis. Osvaldo André de
Mello, estimulado por numerosos prêmios obtidos desde o início da
adolescência, lançou, aos dezenove anos, seu livro de estreia,
sugestivamente intitulado A Palavra Inicial (1969), garantindo desde logo
um lugar de destaque entre os valores jovens de Minas Gerais. A crítica
nacional lhe rendeu elogios que se estenderam a Portugal, ―Diário de
Lisboa‖ e ―Jornal do Algarve‖, bem como nos Estados Unidos, na Revista
Books Abroad e, na Espanha, jornal literário El Astillero. Esses são
exemplos das realizações do ―Agora‖.
Nomes como o de Waldyr Caetano e outros são alguns, além dos
citados anteriormente, que o ―Agora‖ descobriu e divulgou. Por outro lado,
o Movimento conseguiu atrair para o seu meio Bueno de Rivera, Affonso
Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Elias José, Mário de Oliveira, dentre outros.
Vários dos nomes acima citados, senão todos e mais alguns
figuram nas obras ou na correspondência do poeta, justificando a ligação
entre eles, seja através do Movimento, seja através da arte.
Não há como negar que o ―Agora‖ trouxe à tona talentos que
existiam e estavam latentes, marcando, dessa forma, a vida literária e
artística de Divinópolis e fazendo com que a cidade viesse a se tornar
10
respeitada como um dos núcleos culturais mais importantes de Minas
Gerais.
Conhecido dos escritores de Minas Gerais e do Brasil, José Afrânio
Moreira Duarte foi contista, ensaísta, crítico literário, entrevistador e
poeta. Ele apresenta suas considerações acerca do jornal literário e
sinaliza positivamente para os jovens escritores, como pode ser visto a
seguir:
Belo Horizonte, 4-3-68
Caro Oswaldo,
(...)
Espero que o ―Agora‖ não fique estagnado e que volte a circular,
ainda que sua periodicidade não seja mensal, mas bimestral ou trimestral.
Ou até mesmo que fique na base do jornal uruguaio ―EL CHÚCARO‖ que
―Aparece cuando sale y sale cuando puede‖. O importante é não parar.
Leio e releio seus poemas enviados com a carta. E cada vez gosto
mais de ―Igreja do ó‖ em que você revela mais seu talento de poeta e uma
extraordinária capacidade de síntese. Porém os outros trabalhos são
também bons. Só não gostei muito do poema que começa com ―o grito
ensina‖ – vejo que êle está de acôrdo com as tendências mais em moda
atualmente porém eu não gosto muito dessas tendências, embora não as
rejeite. Na poesia, prefiro o delicioso meio termo entre o tradicional e o
moderno, êsse meio termo ameno e agradável que a gente encontra em
Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Emílio Moura, Fernando Pessoa, Stella
Leonardos e em você, do poema premiado aqui em Belo Horizonte.
Estou mesmo com muita vontade de ir a Divinópolis, exclusivamente
para ver vocês, os jovens de ―Agora‖ – Afinal, vocês não são de Cataguases
mas também são azes (^)
Um abraço do
José Afrânio
11
Como se vê, a data da carta é anterior ao lançamento da primeira
obra de Osvaldo André, que é de 1969. O comentário acerca dos poemas
do escritor deve estar relacionado a produções avulsas.
O autor e a recepção crítica
Várias são as manifestações que dão notícias da publicação do
primeiro livro de Osvaldo André. Podemos citar nomes como o de Adão
Ventura, Ascendino Leite, Blanca Lobo Filho, Carlos Drummond de
Andrade, Edgard Pereira Reis, Francisco Iglésias, Hélio Teixeira, Jerry R.
James, Luis da Câmara Cascudo, Martins de Oliveira, Massaud Moisés,
Nélida Piñon, Nelly Novaes Coelho, Oscar Kellner Neto, Osman Lins,
Rosário Fusco, Stella Leonardos Cabassa, dentre outros. Também os
livros posteriores serão objeto de elogios, como se vê em cartas de Laís
Corrêa de Araújo e Affonso Ávila, Lázaro Barreto, Lacyr Schettino, Elias
José, Márcio Almeida, novamente Drummond (referindo-se com agrado à
apresentação ―lúcida‖ de Henriqueta Lisboa ao segundo livro), Yeda
Prates Bernis, José Afrânio, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, e tantos
outros.
A recepção crítica de A palavra inicial (e de outros livros do autor),
tal como a vemos nas cartas de que daremos notícia a seguir, é das mais
acolhedoras. Mesmo se levarmos em conta o caráter ―educado‖,
―generoso‖ de tal tipo de recepção, sobretudo se feita por amigos, ou por
escritores de maior renome que procuram com suas palavras estimular o
escritor que estreia nas letras, pode-se perceber no conjunto das
manifestações de que aqui trataremos uma admiração sincera pelo jovem
poeta de Divinópolis, capaz de escrever um livro não tão ―iniciante‖ assim,
como o título do livro sugere. Chama a atenção nesse conjunto de cartas
a presença acentuada de escritores mineiros consagrados, dos quais
muitas obras ocupam as prateleiras da biblioteca do autor, sugerindo
leituras até certo ponto inspiradoras de temas e escolhas poéticas de
natureza variada.
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Como ressalta Hans Robert Jauss (2002), em sua teoria da
―estética da recepção‖, as leituras das obras variam conforme a época em
que são feitas, e para isso o ―horizonte de expectativas‖ do leitor, um dos
conceitos-chave de sua teoria, é fundamental para a avaliação das
mesmas. Partindo de uma perspectiva dialética, as leituras de uma obra
de arte constituem um intercâmbio de experiências, um jogo de perguntas
e respostas.
É de se pensar, pois, que a obra de Osvaldo André de Mello
encontrou, dentro de certo horizonte de expectativas da época, uma boa
receptividade nos leitores/críticos de seu tempo. Por outro lado, se
pensarmos nas leituras feitas pelo poeta analisado, também ele sujeito a
essa troca dinâmica que se faz no ato de qualquer leitura, podemos
conjecturar que, tanto as obras daqueles escritores, presentes em sua
biblioteca, e de que ele se diz, abertamente, admirador, como as cartas
recebidas sobre seus escritos, terão permanecido como referência
substantiva para sua obra e terão tido seu peso na construção de seus
livros. Temas, lembranças, traços residuais de versos, visões de mundo
se mostram, nem sempre veladamente, nos versos do poeta de
Divinópolis, confirmando o diálogo intertextual.
Sobre o primeiro livro, A Palavra Inicial (1969), obedecendo a uma
ordem cronológica, começamos com a carta de Hélio C. Teixeira, poeta,
crítico literário desde a juventude, no Rio de Janeiro, e jornalista literário
muito respeitado, que escreve extenso texto contendo as suas
impressões sobre A Palavra Inicial (1969):
Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1969
Caro poeta Osvaldo André de Mello:
Acabo de receber um exemplar do seu livro ―A Palavra Inicial‖ e vejo que,
hoje, você completa dezenove anos. Felicito-o, pois, sinceramente e faço
votos para que você, durante o longo tempo de vida que tem pela frente,
continue fiel ao seu ideal de arte que já é autêntico.
(...)
13
―A Palavra Inicial‖ constitui, no entanto, uma realidade merecedora de
incentivo. Nesse livro, um poeta autêntico já se revela. (...) E o principal já
possui: o dom da poesia. Já sabe captar e transmitir o encantamento e o
mistério das coisas imponderáveis que escapam à percepção das
pessoas comuns. Já penetra no mais fundo sentido das idéias para
expressá-las em sua mensagem. (...), consegue demonstrar verdadeira
fôrça de sua capacidade criadora, como nos poemas ―A Tarde‖, ―Ao
Desconhecido‖ e ―Lição de Pedra‖, que são, a meu ver, os três pontos
mais altos de ―A Palavra Inicial‖.
Nesses poemas, você pôde realizar autêntica poesia moderna, livrando-se
do exagero e da extravagância que muitos confundem com técnica
modernista. Saiba, pois, que sobriedade e equilíbrio são indispensáveis a
qualquer expressão de arte, seja ela moderna ou tradicional. A tendência
do artista poderá obedecer a esse ou àquele processo, mas o resultado
de sua atividade terá sempre que ser equilibrado e sóbrio, para não fugir
aos princípios da estética, sem os quais não se consegue realizar a
verdadeira arte reveladora da beleza pura.
(...)
Como se vê, não importa ser moderno ou tradicional. O que importa é
ser autêntico e fiel à arte pura. É passageira a fama dos que obtêm
renome à
custa de extravagâncias. O tempo logo os põe no
esquecimento
completo. Os valores
genuínos é que passam à
posteridade. E todo espírito consciente não se submete aos caprichos
da moda. Atende, isto, sim, aos imperativos da razão, colocando, acima
de tudo, as regras eternas do bom gosto que, no terreno da arte,
conduzem o artífice à beleza ideal. E, sem essa beleza, não existe arte.
Prezado poeta, aí estão as palavras sinceras que eu tinha para dizerlhe, depois da leitura atenta do seu livro. Prossiga no rumo que escolheu,
de acordo com a mentalidade nova de nossa época, mas fiel sempre a
você mesmo, ao seu ideal, de arte, receba o mais cordial abraço do
amigo e admirador
Hélio Teixeira
Percebe-se, na correspondência acima, a presença de uma aula de
poesia.
Mais uma vez, Drummond escreve ao poeta, agora motivado pela
publicação de A Palavra Inicial – correspondência mencionada na
Introdução deste trabalho:
Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1969.
A segunda obra publicada por Osvaldo André de Mello é
A Osvaldo André de Mello,
Revelação do Acontecimento e é também foco das correspondências.
Meu agradecimento pela gentileza da oferta de A Palavra Inicial,
que abre de maneira expressiva a sua caminhada na poesia.
Cordialmente,
14
Carlos Drummond de Andrade.
Escolhemos a de Laís Correa de Araújo Ávila, poetisa, escritora e
jornalista. Ao lado do seu marido, o poeta Affonso Ávila, Laís C. Araújo
exerceu grande influência no meio literário de Minas Gerais, como
ensaísta, poeta e editora do Suplemento Literário de Minas Gerais, além
de titular da coluna Roda gigante, publicada regularmente durante muitos
anos no jornal Estado de Minas. A sua crítica é firme e pormenorizada,
passando pela parte gráfica até chegar aos versos de Osvaldo André.
Beagá, 10/6/74
Osvaldo André
Nem bem recebi o seu livro, já lhe escrevo, mas não só para agradecer como
pra botar a minha colher torta no seu angu. Vou por partes. Aspecto geral do
livro - muito bom. Talvez se a capa fosse em cores, ficasse mais atrativa.(...)
Mas o teu está bastante bom; a impressão, dentro, também melhorou
consideravelmente. (...)
Quanto à substância – assustou-me um pouco a primeira parte, pela
dramaticidade que você assume, pela impressão tensa que nos transmite, uma
apreensão da realidade que me parece pouco normal na sua idade, embora
comovente pelo testemunho humano que nos dá. A própria escolha da epígrafe
é uma perigosa aproximação com uma poeta que, essa sim, por razões que não
vale a pena saber, foi sempre usada pelas lágrimas. Mas ao jovem Adônis, ao
belo e tranquilo Osvaldo, o ―sentimento de mundo‖ não deve tocar. Para a sua
poesia, acredito sinceramente, não cabem ―as palavras velhas‖, que nem devem
ser ―reconsideradas‖ nem ―reinventadas‖, esse sentimento da ―própria destruição
verbal‖. Nós, os velhos, já cansados de tentar encontros e realizações, isso seria
compreensível. Não, mas lhe perdôo uma sensibilidade tão capaz de flagelar-se
na identificação com o outro. Por isso – e talvez também por motivos
simplesmente críticos – parece-me a segunda parte muito mais você, com outra
e diferente força de expressões, não mais no por dentro e bem mais no por fora,
isto é, no aspecto propriamente criativo do texto. ―Escavações no soneto, ―O
cabide‖, ―Roteiro de ida a Catas Altas‖ são poemas que se mantém por si,
independentes dessa empatia que se supões necessária a produtor/consumidor.
Talvez essa minha mania de ―palpitar‖ sobre trabalhos alheios (defeito de muitos
anos de ofício crítico) esteja errada. Mas se v. permite a minha idade e
experiência – coisas que os jovens detestam! – alguma ressalva eu lhe diria,
direi, já disse, que é nessa segunda e mais rigorosa etapa que v. legisla melhor a
sua poesia. Outra coisa que acho extremamente perigosa é que v. tem um talento
muito versátil e deve ser constantemente tentar a fazer demais. A cada dia me
convenço que a poesia é extremamente exigente e a opção por essa arte de
loucos é extremamente dolorosa. Não há o que ganhar com a poesia. Não falo, é
claro, de ganhar materialmente; isso é ponto passivo. Mas de que se perde de
nós mesmos, da gente como ser, da gente como vida, em cada poema escrito, ―a
cada poema concluído nesta ânsia‖. ... Agora vejo que estou amargurada e
transmitindo a v. esta amargura. Desculpe. Tudo é mesmo velhice, que v. deve
desprezar e esquecer. Para a frente, Osvaldo.
Meu abraço, Laís.
15
Mesmo confirmando o amadurecimento do poeta, Laís Araújo,
homenageada com a epígrafe mencionada – ela ―sempre usada pelas
lágrimas‖ – sente-se à vontade para, como ela mesma disse, ―botar a
colher torta no angu‖. Apesar de algumas ressalvas feitas, acreditamos
que em nada desmerece a poesia de Osvaldo, demonstrando sobretudo
atenção e dedicação à leitura que lhe foi oferecida, além de, acreditamos,
apresentar a visão de escritora mais experiente.
Com relação ao terceiro livro do autor, Ilustrações (1996), abrimos
espaço e damos destaque a duas correspondências. A primeira é de
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, eleito três vezes prefeito da cidade de
Ouro Preto e presidente da Associação Brasileira de Cidades Históricas,
além, é claro, de autor da apresentação à citada obra.
Prefeitura Municipal de Ouro Preto, 18-VI-96
Prezado Osvaldo André,
envio-lhe o texto de apresentação. Em meio à correria do final de meu governo,
consegui produzi-lo para não deixar de atender sua simpática solicitação. É bom
rever, com você, nossas cidades históricas. Espero que seja do seu agrado e
possa ser aproveitado como você achar melhor – orelha ou introdução. Com
minhas congratulações pela obra e pela volta ao livro, o abraço cordial do
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos
P.s. Devolvo-lhe os originais pois você pode precisar deles.
O texto escrito por Ângelo Oswaldo apresenta os novos poemas de
Osvaldo André de um modo bem especial – através da Paixão de Minas.
Vamos a ele:
16
A Kodak excursionista dos primeiros modernos revelou, na década de
vinte, a poesia das velhas cidades mineiras. Andar pelas Minas Gerais do ouro e
dos diamantes é acumular visões de poesia como nas seqüências de cinema.
Lavrada em solenes frontispícios ou e, em retábulos delirantes, plasmada na
paisagem, entrecortada em ângulos surpreendentes, suspensa nos morros e
derramada no cascalho, essa poesia visual de Minas provoca o texto como o
desafio que o minério propõe ao garimpeiro e ao ourives. Incita-o. E o faz ganhar
a página branca, tornando o poeta um ―ilustra-dor‖ instigante, um criador de
ícones.
A poesia se faz palavra fotográfica (luz escrita, literalmente) nas imagens
que o poeta retira dos impactos surgidos ao longo do caminho. Ouro Preto,
Mariana, Catas Altas do Mato Dentro, Caraça, Tiradentes, Serro, Minas Novas
estendem o périplo no mapa de Osvaldo André.
Mineiro de Divinópolis, ele perlustrou esses cenários ancestrais para
recolher as contemplações que compõem este volume. Transforma sua volta ao
livro, treze anos depois do último lançamento, no colóquio verbo-visual entre a
Minas que se vê e a que se lê.
A emoção do poema e o alumbramento da imagem se fundem no trabalho
do autor, que documenta, registra, mas também perquire e convoca a essência
da vertigem visual dos espaços históricos.
Osvaldo André de Mello, viajor das Minas, não enfeixa estes poemas
como a flor de olvido entre as páginas de um livro. Entrega-os como o código do
cartógrafo de territórios a serem desvelados. O leitor os receberá como senhas
do país que se eleva diante de si muitas vezes despercebidamente.
Com olhos de ler e ver, vamos reviver a paixão de Minas na viagem a que
nos conduz o poeta.
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos
Ouro Preto, novembro de 96.
Minas é ―fotografada‖ por Osvaldo André e colocada à disposição
daqueles que veem e leem com a emoção, como confirma Ângelo
Osvaldo.
Como dito anteriormente, o livro em destaque privilegia o espaço e
a visualidade das velhas cidades de Minas do ouro e dos diamantes.
Surgem paisagens dos espaços históricos, o que talvez tenha
17
proporcionado ver Minas através dos olhos do poeta e sentir ―identidade‖
nas citações.
A outra carta data de 27 de fevereiro de 1997 e é assinada por Laís
Corrêa de Araújo, que acrescenta, de forma atenciosa, o nome do seu
marido, Affonso Ávila, no fecho. Num tom diferente da carta anteriormente
enviada, a escritora e poeta agradece o ―belo presente‖ que fora enviado.
Beagá, 27. 2. 97
Osvaldo André
Sob a barreira das águas, a porta de Ouro Preto desapareceu
sufocada. As letras pungentes ―Minas não há mais‖ pautam o som das almas
dos inconfidentes que ―vagam pelas ruas e gritam de mudez espectral‖.
Tremem as texturas dos ossos antigos em lajes inseridas e pisoteadas nas
igrejas. Estamos voltando, tristes, de passeio por aí.
Mas encontramos e sabemos que subsistem os poetas nunc et
semper – segurando a verdade pesada dos púlpitos e imagens e anjos para
aliviar o sobressalto dos ―guardiões das chaves de Minas. Poetas como
Osvaldo André de Mello em suas ―Ilustrações‖ – traços limpos de novo cinzel
modelando a utopia e coragem de criar. Simples, quase totalmente retos nas
suas volutas de fantasmas? Artistas anônimos? Sedução? Íntimo passado
presente?
Obrigados somos – ler e entender as senhas de seu livro, manual de
redescoberta, sinais do formão de poeta e ―cata do oculto‖ sempre visível
para o olhar do viajante: ―nada menos visão.‖
Belo presente recebemos, Laís e Affonso
Como pode ser comprovado, a uma análise mais atenta, toda a
correspondência apresentada neste trabalho é relevante para construção
do perfil poético e artístico de Osvaldo André de Mello além, é claro, de
esclarecer pontos porventura ainda obscuros na sua obra.
Entendemos que, com um trabalho voltado para as fontes
primárias, caminhamos para a revitalização do texto literário. Como nos
lembra Souza, os acervos dos escritores estão eivados de material de
grande relevância – correspondências, entrevistas, biblioteca, etc. Sendo
18
assim, construímos, a cada momento, o nosso objeto de estudo, ao
lidarmos com os arquivos (SOUZA, 2011, p.41).
Ao examinarmos o acervo dos escritores, com as obras que o
compõem e elegermos o material para análise e o método a ser adotado,
marcamos ou apontamos para a crença de que é preciso transitar pelo
público e pelo privado, ou melhor dizendo, pela junção dos dois. Segundo
Eneida Maria de Souza:
O comportamento do crítico que se interessa pelos manuscritos
e bibliotecas autorais se pauta ainda pela lição de Walter
Benjamin, autêntico e apaixonado colecionador de livros.
Rodeado de mil tomos, de variada literatura, afirmava que o
bibliófilo, ao adquirir um livro velho, assumia o poder de lhe dar
nova vida. Na sua obra, Benjamin repete o processo
revitalizador do bibliófilo, transformando-se em colecionador de
citações, arrancando os fragmentos de seu contexto e os
organizando numa forma nova, sempre arbitrária e nunca
definitiva. Lê e coleciona, desloca a tradição, por um processo
simultâneo de conservação e destruição. Amplia este raciocínio
para ambiente privado do burguês, o qual se afasta do espaço
público e transforma sua casa – espaço privado e afetivo – em
santuário, lugar propício à criação da privacidade. A biblioteca
atua como materialização dessa privacidade, por se erigir como
lugar de encontro do colecionador com seu universo de
lembranças e de objetos auráticos, sejam eles de qual natureza
for. (SOUZA, 2011, p.44-45).
A partir do pensamento acima podemos, ainda, dizer, chamando à
discussão Edgar Morin, que a sociedade é o resultado das interações
entre indivíduos. Essas interações criam uma organização que possui
características próprias como a cultura e a linguagem que, por sua vez,
atuam sobre os indivíduos, criando a sociedade. Ou seja, ―os
indivíduos produzem a sociedade, que produz os indivíduos‖. (MORIN
apud SCHNITMAN, 1996, p. 48).
É pertinente citarmos também Antonio Candido e a sua Formação da
Literatura Brasileira, publicado pela primeira vez em 1959, em que o
autor menciona a existência e a importância da sociabilidade ou rede
entre escritores. De acordo com Candido, para haver literatura é
19
necessária a construção do que ele chamou de sistema ou ―Sistema
Orgânico Literário‖, como nos esclarece o Professor Flávio Leal (2011):
A Formação, com seu arcabouço teórico, realiza uma
distinção entre as manifestações literárias, termo caro e já
fixado por José Aderaldo Castelo em sua Presença, e o
próprio conceito de Literatura, que será entendido por
Candido como um sistema com sua organicidade, ou seja,
a Literariedade dos textos estará não mais no aspecto
imanentista de cada obra, mas sim em sua relação de
existência na sociedade e seus aspectos de produção,
recepção e tradição que farão a obra como objeto
existente em um sistema articulado por uma tríade
dinâmica e histórica (autor-obra-público). (LEAL, 2011).
Para a existência da literatura, é preciso que produtores
literários, receptores e mecanismo transmissor estejam interligados,
o que justifica a afirmação de que autores de ontem dialogam com
autores de hoje e dialogarão com os que ainda nascerão. Visões do
mundo, escolhas estéticas, assuntos, estilos, tons. As aproximações
ou confluências são múltiplas. Não existe poeta que não converse
suas intimidades com outras várias.
REFERÊNCIAS
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(1925-1944), escritas por Mário de Andrade. Fernando da Rocha Peres
(Org). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
BRANDÃO, Ruth Silviano; OLIVEIRA, José Marcos Resende. Machado
de Assis: uma viagem à roda de livros. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2011.
GALVÃO, Walnice Nogueira. À Margem da Carta. In: Desconversa
(ensaios críticos). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
LEAL, Flávio. A historiografia literária brasileira: História e Perspectivas.
Disponível
em:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero34/hisliter.htm.
Acesso em: 24 out. 2011.
20
MELLO, Osvaldo André. A palavra inicial. Divinópolis: Movimento agora,
1969.
MELLO, Osvaldo André. Revelação do acontecimento. Belo Horizonte:
Imprensa oficial, 1974.
MELLO, Osvaldo André. Cantos para flauta e pássaro: 3 estudos de
poesia. Belo Horizonte: Imprensa oficial, 1983.
MELLO, Osvaldo André. Meditação da carne. Belo Horizonte, 1997.
MELLO, Osvaldo André. Ilustrações. 2 ed. Divinópolis: Sidil, 1998.
MELLO, Osvaldo André. As mesmas palavras. Belo Horizonte: Veredas &
Cenários, 2012.
QUEIROZ, Maria José de. Prefácio In: BARBOSA, Rui. Cartas à noiva/
Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa: Civilização
Brasileira, 1982.
SCHNITMAN,
Dora
Fried.
(Org.)
Novos
paradigmas,
cultura
e
subjetividade. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1996.
SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas: ensaios de crítica
biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
21
LUIZ FERNANDO CARVALHO: UM OLHAR DIFERENTE ONDE TUDO
PARECE IGUAL
Andrea C. Martins
(Doutora em Estudos de Linguagem - Unimontes)
RESUMO - O ensaio aborda o olhar e a consequente criação do diretor Luiz Fernando
Carvalho que, embora tenha quase toda a sua obra produzida para televisão, sempre
fugiu dos clichês, das fórmulas fáceis e repetitivas que costumam dar a tônica nos
programas destinados a esse veículo. Estudioso aplicado de técnicas e produções
cinematográficas de épocas e estilos diversos; amante do teatro, da pintura e da cultura
popular, recriador contumaz de obras literárias, Carvalho defende e busca o que ele
chama de uma televisão comprometida com a reeducação do telespectador, a partir das
imagens e dos conteúdos. Comumente chamado de ―maestro‖, Carvalho rompe a
barreira criativa geralmente imposta pelos índices de audiência, para impor uma estética
diferente onde tudo, ou quase tudo, parece igual.
PALAVRAS-CHAVE – Luiz Fernando Carvalho, televisão, estética.
ABSTRACT - The test on the look and the consequent creation of the director Luiz
Fernando Carvalho, although most of his work produced for television, always ran away
from clichés, the easy and repetitive formulas that usually give the keynote in the
programs designed for this vehicle . Studious applied techniques and film production
times and different styles; theater lover, painting and popular culture, contumacious
recreative literary works, Carvalho defends and seeks what he calls a committed
television with the re-education of the viewer, from the images and content. Commonly
called "maestro", Carvalho breaks the creative barrier usually imposed by audience
ratings, to impose a different aesthetic where everything, or almost everything looks the
same.
KEYWORDS – Luiz Fernando Carvalho, television, aesthetic.
A imagem inicial, em tela inteira, é de um dorso masculino, nu,
negro, suado, e de braços que se movimentam, ressaltando os músculos
volumosos. Para quem vem acompanhando os capítulos da narrativa da
qual o fragmento faz parte, ambientada em fazendas de cacau da Bahia,
em que diariamente se veem peões em atividades braçais, parece não
haver dúvida de que se trata de mais uma cena de trabalho árduo. Há
uma novidade, entretanto, a trilha sonora, geralmente composta de
canções brasileiras de temática regional, é aqui substituída por uma valsa
de Strauss.
Lentamente, a câmara se abre para desconstruir a primeira
impressão: nem peão, nem trabalho rural, trata-se de um homem
exercitando-se em um aparelho de musculação. O cenário é, pois, uma
academia de ginástica, por onde entra o personagem Damião, o jagunço
vivido pelo ator Jackson Antunes, em tudo destoando do ambiente:
22
bigodes fartos, cabeleira parcialmente escondida sob um chapéu de
caubói, camisa cuidadosamente abotoada e arrumada dentro de calças
jeans desbotadas. O cinto e as botas de couro dão o acabamento.
Sempre em câmara lenta e ao som de Strauss, Damião anda pelo
ambiente, causando o evidente contraste entre sua figura e a dos
usuários da academia. A trilha sonora, por sua vez, destoa tanto do
personagem, quanto do cenário, e reforça o estranhamento que a cena
provoca. Não por ser exótica, mas por ser poética, porque em todo o seu
estranhamento, a valsa de Strauss e o ritmo lento do movimento da cena
conferem poesia ao quadro.
Dando sequência à ação, Damião para em frente a Eliana, a moça
fina interpretada por Patrícia Pillar, por quem ele deixou a esposa e o
emprego de peão para ir para São Paulo, onde está agora. A câmara vai
do rosto rústico, queimado de sol, e o olhar sério, descontente e decidido
de Damião para os olhos azuis no rosto branco de Eliana, iluminado por
um sorriso largo e apaixonado, mas que vai murchando aos poucos, à
medida que ela lê o semblante do amante. Abruptamente, a música é
suspensa. Sem dizer nada, Damião dá as costas a Eliana e vai saindo da
academia. Agora são seus passos que ressoam pesados no ambiente.
Eliana levanta-se e vai atrás dele.
Trata-se de uma cena da novela Renascer, (Globo, 1993), escrita
por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Apenas
mais uma entre centenas de outras cenas que compõem essa trama de
213 capítulos, e que chama a atenção do telespectador mais atento pelo
trabalho minucioso com que foi construída, arquitetada em seus mínimos
detalhes, porque cada detalhe tem uma função na construção do sentido.
Não me aprofundarei na análise da cena, porque este não é o objetivo. O
exemplo serve apenas para introduzir algumas palavras sobre um diretor
que mesmo em se tratando de novelas, tradicionalmente o programa mais
popular da TV, nunca se contentou em apenas contar uma história, mas
que sempre procurou recheá-la de – pelo menos algumas – cenas
23
elaboradas com o máximo de requinte estético possível, considerando as
limitações que o ritmo intenso de produção impõe ao processo de criação
dentro desse formato.
Foi com cenas como essa que a novela Renascer, assim como os
capítulos iniciais de O rei do Gado (1996) e Esperança (2002), folhetins
posteriores em que se repete a dupla formada por Ruy Barbosa e
Carvalho, chegou a resultados ao mesmo tempo acessíveis e
sofisticados, cumprindo com êxito o objetivo de ser atraente às grandes
massas – os índices de audiência superaram a média esperada para o
horário – porém indo além, a ponto de agradar também a crítica
especializada.
Retomando a observação de Fiorin (2008), segundo a qual a
identificação do sujeito com o objeto artístico pode se dar pelo conteúdo
ou pela expressão; considerando ainda a observação de Duarte de que
em meio às atividades do cotidiano o telespectador não costuma estar
disposto a programas que ―exigem sua total atenção, o que é
incompatível com o ambiente familiar‖ (DUARTE, 2004, p. 58); e por fim,
levando em conta o interesse que as narrativas de temática rural escritas
por Ruy Barbosa sempre despertaram no público desde Pantanal, parecenos pertinente supor que o conteúdo de Renascer tenha sido, em
princípio, o responsável maior pela empatia com o grande público.
O efeito sensorial causado pelo plano da expressão, no entanto,
certamente acrescenta um algo a mais a todos quantos assistirem às
cenas, pois ainda que parte dos telespectadores não consiga identificar
ou explicar o que seja esse algo a mais, a beleza natural ressaltada pelo
modo de olhar da câmara fala por si mesma. Já o leitor criticamente
consciente, que sabe que há um arquiteto por trás de cada quadro, de
cada janela aberta, geralmente identifica-se, primeiro, com as escolhas
expressivas, com a linguagem utilizada pelo diretor. Pelo menos é o que
se depreende dessa fala da pesquisadora Ivana Bentes, durante
entrevista com Carvalho, por ocasião do lançamento do filme Lavoura
24
Arcaica (2001): ―... Renascer dá até uma legitimidade mesma, digamos,
artística para uma linguagem de televisão na hora em que apareceu, que
foi muito importante...‖ (BENTES, 2002, p. 30). Em outro momento da
conversa, ela afirma se lembrar de todos os primeiros capítulos da novela,
tão forte lhe ficou a impressão causada especialmente pela fotografia de
Walter Carvalho: ―tem alguns elementos ali que eu acho que já estavam
marcados e que vão reaparecer no [filme] Lavoura...‖ (Idem, p. 29)
Tanto a novela quanto o filme mencionados são, na verdade,
respostas aos longos anos de estudos e experiências com a linguagem
cinematográfica, empreendidos pelo diretor: Com apenas um curta e um
longa-metragem em sua bagagem cinematográfica, pode-se dizer que
Carvalho se formou em cinema para atuar em televisão, já que em seu
currículo, até o momento, predominam as produções para TV: um
documentário, quatro novelas, um especial musical, quatro casos
especiais, cinco minisséries, duas séries e quadros para o Fantástico,
citando apenas as atuações como diretor geral. Daí, talvez, o fato de
muitas vezes a linguagem que ele utiliza em seus trabalhos televisivos ter
sido comparada (ou confundida) com a linguagem cinematográfica, o que,
aliás, ele contesta:
No intuito de elogiar, as pessoas falam que meu trabalho na
televisão é cinema, mas eu discordo. Agradeço o elogio, mas
discordo. Cinema para mim é uma coisa e televisão é outra, e a
diferença é uma questão de linguagem. Em nenhum de meus
trabalhos para TV, tive o desejo de assistir aos episódios
emendados uns aos outros, partes com partes, como se
formassem um filme, porque sabia, de antemão, que não
constituiriam um filme. Pelo menos um ―filme‖ que me
interessaria realizar. (CARVALHO, 2008, s/p)
O que Carvalho sempre defende – e a seu modo, pratica – é um
respeito maior com o telespectador, uma nova ―missão‖ para a TV, que
esteja ―diretamente ligada à educação, a uma reeducação a partir das
imagens e dos conteúdos.‖ (CARVALHO, 2002, p. 31). Esse compromisso
maior com o aspecto criativo da obra, que lhe confere o status de diretor
autoral, é, sem dúvida, herança do Cinema Novo, - pelo qual ele confessa
25
ter sido fortemente influenciado, especialmente por Glauber Rocha,
representante maior do movimento que revolucionou o cinema brasileiro
nas décadas de 1950 e 1960. ―O Cinema Novo foi a versão brasileira de
uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da
burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação.‖
(XAVIER, 2001, p.57)
Essa política de autor, ainda segundo Ismail Xavier, é resultado do
diálogo empreendido pelo Cinema Novo, e depois pelo Cinema Marginal,
com um movimento empreendido por realizadores de diferentes partes do
mundo - Welles, Antonioni, Pasolini, Rossi, Resnais, Cassavetes, entre
outros
-
que
optaram
por
se
opor
ao
cinema
clássico
e
predominantemente industrial, pelo exercício livre da autoria, pela criação
de novos estilos, de forma a revitalizar a cultura cinematográfica: ―foram
cineastas cuja forma de exercer a sua consciência da técnica, da forma e
dos modos de produção ensejou um exercício da autoria que Pier Paolo
Pasolini sintetizou muito bem em sua noção do moderno como um
‗cinema de poesia‘‘‘ (XAVIER, 2001, p. 14). É, portanto, a experiência e a
visão estética desses revolucionários da linguagem do cinema que estão
na base da formação de Luiz Fernando Carvalho, tanto pelo contato
através do Cinema Novo, quanto pelo contato direto com a filmografia dos
grandes mestres. ―Sem dúvida nenhuma, eu tinha consciência de que
estava me alimentando para um dia conseguir me expressar‖, diz ele.
(CARVALHO, 2002, p. 22)
A estreia oficial em televisão foi como assistente de direção na
minissérie Grande Sertão: Veredas (1985). Antes disso, porém, a
amizade com o também diretor de TV Maurício Farias levou-o a fazer
alguns estágios em cinema: um pouco de tudo, como ele mesmo conta
(2002, p. 15), incluindo aí técnica de som, assistente de montagem e
assistente de direção. Ao lado dessas experiências iniciais, ele agregou
imersões nas melhores fontes de teoria e prática cinematográfica, com
Sergei Eisenstein, Tziga Vertov, André Bazin, Luis Buñuel, Pasolini,
26
Luchino Visconti e muitos outros. A disciplina História da Arte estudada
durante o curso inconcluso de Arquitetura foi decisiva em sua formação, e
a Faculdade de Letras contribuiu para estreitar relações com a literatura e
com a escrita de roteiros. Aliado a tudo isso, a dedicação que o fazia, já
em Grande Sertão..., debruçar-se sobre cada cena com o esmero de um
artesão:
Existiam trinta cenas no capítulo e, entre elas, duas que me
eram dadas. Eu estudava aquilo, virava noites estudando
aquelas duas ceninhas. Para mim aquelas duas cenas era a
coisa mais importante do mundo, como exercício da gramática
narrativa e de tudo, e eu me debruçava sobre as duas ceninhas
talvez até com um entusiasmo exagerado. Mas eu era um
jovem de 24 anos, sedento, então neste meu ímpeto cabia virar
a noite relendo as teorias de Vertov para aplicar na cena do dia
seguinte, era o alimento que eu tinha. (CARVALHO, 2002, p.
10)
Pelo pouco que já foi dito aqui sobre o diretor, não é difícil entender
de onde vem a singularidade presente na sua obra, mesmo nas mais
populares realizações que são as novelas. Pode-se dizer que Carvalho
sempre procurou e conseguiu fugir da ―massa indiferenciada‖ veiculada
pela TV, de que fala Machado (1992) e enquadra-se, guardadas as
particularidades da linguagem audiovisual, na afirmação de Fiorin sobre
os escritores: ―Quem escreve um texto literário não quer apenas dizer o
mundo, mas recriá-lo nas palavras, de forma que, nele, importa não só o
que se diz, mas também o modo como se diz.‖ (FIORIN, 2008, p.57) É
assim que Carvalho se comporta nos bastidores da televisão: um diretor
que não se contenta em apenas contar uma história, mas que procura
recriá-la através das imagens, dos sons, do ritmo, e do diálogo com
outras formas de expressão artística.
Falar em singularidade remete, inevitavelmente, à questão do
estilo, que é ―o conjunto global de traços recorrentes do plano do
conteúdo (formas discursivas) e do plano da expressão (formas textuais),
que produzem um efeito de sentido de identidade‖ (FIORIN, 2008, p. 96).
Portanto, quando Ivana Bentes diz que alguns elementos presentes em
Renascer irão reaparecer em Lavoura Arcaica, ela não está falando de
27
outra coisa senão do estilo que Luiz Fernando Carvalho vem imprimindo à
sua obra. Bentes se referia a elementos expressivos da fotografia
aplicados a outro ponto que une as duas obras: a temática rural, que
pertence ao plano do conteúdo.
A terra, aliás, e todas as questões ligadas a ela; a terra enquanto
símbolo de mãe, e enquanto sinônimo de brasilidade, é, assumidamente,
―o elemento mais primordial‖ na obra desse diretor, especialmente a partir
de Renascer, a primeira direção geral de uma novela, que foi também seu
primeiro trabalho após o período em que esteve no Nordeste em busca de
lembranças da mãe de quem ficou órfão aos quatro anos de idade. Desse
mergulho na região, Carvalho conheceu e internalizou elementos da
realidade e da cultura brasileira que vieram à tona em praticamente todos
os trabalhos posteriores, especialmente nos casos especiais – A farsa da
boa preguiça, Uma mulher vestida de sol – e mais recentemente nas
minisséries a partir de Hoje é dia de Maria. Mesmo na recente série
Suburbia, cuja temática é essencialmente urbana, a terra está presente
nas cenas iniciais gravadas no sertão das carvoeiras de Minas Gerais, e a
cultura popular emerge, em plena favela do Rio de Janeiro, num cortejo
religioso carregado de sons e imagens do interior do país.
A terra e tudo o que está ligado a ela, portanto, fornece ao mesmo
tempo os elementos dos planos do conteúdo e da expressão, já que este
se ajusta àquele pelas cores, pelos sons, pela luz, e por tudo, enfim. É
pela linguagem, portanto, que o estilo de Luiz Fernando Carvalho se faz
notar, o que confirma o pensamento de Norma Discini, que, relendo a
Retórica de Aristóteles, diz:
Aristóteles (384 a.C- 322 a.C) pode ser ponto de partida e de
chegada para novas reflexões sobre o estilo, que visem não
apenas ao que o texto diz. Considerando, por exemplo, as
partes componentes do sistema retórico, a inventio (o
conteúdo, de onde se extraem provas e argumentos
relacionados ao tema); a dispositio (a maneira de organizar ou
planejar as diferentes partes do discurso); a elocutio (as
escolhas da expressão que se adequarão ao conteúdo) e a
actio (a execução ou atualização do discurso, que supõe timbre
de voz e entonação, pausa e ritmo) sabemos que é na elocutio
28
que se consideram instaladas as bases do estilo. (DISCINI,
2003, p.16-17)
Não é difícil, portanto, encontrar em Lavoura Arcaica, o
inconfundível jogo de luz e sombras da fotografia de Walter Carvalho
utilizada em Renascer, que faz com que prevaleçam os tons em amarelo
e preto, e que se repete em praticamente todas as obras que vieram
depois. A imagem, ora excessivamente focada, ora totalmente desfocada
e certos enquadramentos e movimentos de câmara que produzem um
desvelamento gradual, como a cena citada no início deste texto, são
também opções recorrentes na obra de Carvalho. Há, enfim, uma
recorrência do olhar que vê – e mostra – a cena, assim como há um
cuidadoso trabalho com a própria mise em scène, essa palavra de sentido
até certo ponto indefinido, como sugere Aumont, mas que ele resume
como sendo ―a ‗composição dramática‘, a maneira de conjugar, de
declinar as figuras no espaço para atingir a expressividade máxima‖
(AUMONT, 2004, p. 162), e onde entram então todos os elementos
constitutivos da cena: o figurino, o cenário, os objetos de cena, a luz, etc.
Não podemos deixar de mencionar também a trilha sonora, que é
sempre marcante nas obras do diretor, seja pela originalidade e, portanto,
pela adequação dos sons ao universo da obra (Lavoura Arcaica,A Pedra
do Reino, Hoje é dia de Maria), seja pelo bucolismo causado pelo som
característico do vinil em canções antigas de Roberto Carlos (Afinal, o
que querem as mulheres e Suburbia), ou pelas inserções de sons e ritmos
da cultura popular (Renascer, Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino,
Suburbia, entre outras). E, evidentemente, não podemos deixar de
mencionar, ainda, todo o hibridismo de culturas, linguagens e épocas que
já rendeu ao seu estilo a pertinente definição de barroco, como nessa
análise de Ilana Feldman sobre A Pedra do Reino:
Na opera mundi de Luiz Fernando Carvalho, tanto em Hoje é
dia deMaria como, mais radicalmente, em A Pedra do Reino, a
encenação contempla, incorpora e devora, almejando totalizar
todas as formas de manifestação artística, que, ao gosto do
barroco, cujo sentido literal é ―acumulação‖, une e mistura
cinema, teatro, poesia, pintura, circo, ópera, literatura,
29
romance, odisséia, sátira, tragédia, picardias, cordel, maracatu,
papangus e novelas de cavalaria. Do popular ao erudito, da
artesania à tecnologia, da ancestralidade à busca da
nacionalidade, a mão barroca e o ―estilo régio‖ de Luiz
Fernando Carvalho orquestram excessos, intensidades,
contrastes, júbilos sem limite, jorros declamatórios e diversos
registros e linguagens. (FELDMAN, 2007, s/p)
Feldman está certa ao dizer que a incorporação de diferentes
linguagens estéticas é mais evidente em Hoje é dia de Maria e,
principalmente, A Pedra do Reino – à qual Capitu se junta no ano
seguinte. Entretanto, muito antes da realização dessas duas obras, já nos
primeiros trabalhos que levam a assinatura de Luiz Fernando Carvalho, é
possível perceber um flerte recorrente com outras artes, em especial o
teatro, a pintura, a literatura (em prosa, em poesia e em cordel) e,
sobretudo, o cinema. A origem da intimidade com o cinema, conforme já
foi dito, está na raiz da formação profissional. O mesmo se pode dizer da
pintura, tema central da História da Arte, disciplina preferida e uma das
poucas que ele concluiu no curso de Arquitetura. Quanto à dramaturgia,
ele confessa ―uma grande paixão pelo teatro como elemento mítico [...]
como negação do naturalismo...‖ (CARVALHO, 2002, p. 52) E a literatura
é a arte que está sempre na raiz de seus trabalhos, conforme ele mesmo
diz.
Já foi dito aqui mesmo neste capítulo que a linguagem televisual, em
sua origem, é um híbrido de outras linguagens, especialmente as do
rádio, do cinema, do teatro e da literatura. Jacques Aumont (2004)
acrescenta ainda a pintura, de quem o cinema (e, por extensão, a
televisão) teria herdado não só luz e cores, como a própria noção de
quadro, enquadramento, limitação do que vai ser apresentado. Portanto,
apenas dizer que Luiz Fernando Carvalho dialoga com outras artes
pareceria lugar comum. Acontece que o diálogo que ele empreende com
tais linguagens supera o que seria uma simples questão de forma
embutida no conceito de hibridismo enquanto origem da linguagem
televisual. O que se vê em suas obras é um diálogo através do qual se
busca a expressividade mesma de cada linguagem, expressividade esta
30
que atinge o seu máximo a partir de Hoje é dia de Maria, chegando aos
―excessos e intensidades‖ de A Pedra do Reino – mencionados por
Feldman – e Capitu, a ponto de causar algum estranhamento em parte do
público.
A aproximação com outros gêneros, entretanto, já se faz presente
em obras do início da carreira do diretor. É possível encontrar traços
fortemente teatrais nos casos especiais Os homens querem paz (1991),
Uma mulher vestida de sol (1994) e A farsa da boa preguiça (1995). A
literatura, não obstante ser a fonte para boa parte de sua obra –as
exceções talvez sejam as novelas, Os homens querem paz e Suburbia,
cujos roteiros são originais – é também elemento intrínseco a muitas
delas, especialmente no gênero cordel, como em Os homens querem
paz, A farsa da boa preguiça, Hoje é dia de Maria e A pedra do reino,
apenas para citar algumas.
A obra de Cândido Portinari foi inspiração para a concepção visual
de Hoje é dia de Maria, onde a presença da pintura, conforme abordamos
no artigo As cores de um sertão em preto e branco, ―especialmente no
céu do cenário da narrativa é tão forte que, misturada a outros objetos de
cena, ao figurino e à própria atuação dos personagens, deixa a nítida
impressão de que cada cena foi construída com o esmero de quem pinta
um quadro à mão.‖ (PEREIRA, 2009, p.39-40) Também em Lavoura
Arcaica, a presença de elementos pictóricos foi bastante ressaltada pela
crítica, e o próprio diretor admite influência de ―toda a pintura tenebrista
espanhola [...] com uma predominância dos fundos negros e a presença
dos dourados, que também dialoga com Rembrandt. As figuras alongadas
de El Greco entram por Caravaggio, Tziano, Van Gogh, Degas, Munch,
Millet, Cézanne...‖ (CARVALHO, 2002,p.101)
Ao falar das obras assinadas por Carvalho – ou por qualquer outro
diretor de cinema e TV – não podemos nos esquecer de que estamos
falando de obras audiovisuais, cuja elaboração é coletiva e, portanto,
recebe contribuição de diferentes criadores. Mas no caso desse diretor
31
especificamente, pelo estatuto de autoral a que já nos referimos, todas as
etapas de criação passam pelo seu crivo, e seu método de trabalho
envolve uma minuciosa busca pela sintonia perfeita entre os membros da
equipe, que quase sempre é a mesma em diferentes trabalhos. E a busca
de sintonia passa invariavelmente pela imersão de seus colaboradores –
dos atores à equipe técnica – no universo da obra a ser criada, às vezes
com uma antecedência quase exagerada.
A luz e o enquadramento de Lavoura Arcaica, por exemplo, foram
conversados com Walter Carvalho durante cerca de seis meses,
conforme conta o diretor. Para o mesmo filme, o elenco literalmente
―morou‖ na fazenda que serviu de locação durante três meses antes das
filmagens,
a
fim
de
incorporar
os
respectivos
personagens,
compartilhando espaços da casa e desenvolvendo as atividades inerentes
a cada um, como preparar e plantar a terra, ordenhar ovelhas, etc. A
equipe de produção de Hoje é dia de Maria foi submetida a palestras
sobre a obra de Portinari, o mesmo acontecendo com a equipe de Capitu
em relação a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Já para A pedra do
Reino, Carvalho selecionou todo o elenco entres atores nordestinos,
muitos deles moradores locais, por trazerem internalizados o espaço e a
cultura representados por Ariano Suassuna, mas também levou sua
equipe técnica para interagir com o reino de D. Pedro Dinis FerreiraQuaderna.
Enfim, o que fica dessa breve imersão no método de trabalho e na
obra de Luiz Fernando Carvalho, é que o título de maestro lhe cai bem,
pois é como maestro que ele comanda a orquestra em que transforma
cada obra que é oferecida ao público. É o que diz Walter Carvalho 1, cujas
palavras pegamos de empréstimo para encerrar este artigo:
O cinema do Luiz é um cinema de orquestra, é um cinema de
um cara que, de posse do seu roteiro, que seria a partitura,
quando ele levanta a batuta, um conjunto de coisas, de
músicos, de cantores, de cores, de cordas, de metais, se
1
Extraídas do Making-off (“Nosso diário”) de Lavoura Arcaica.
32
juntam num ritmo, numa velocidade, numa cor, num compasso,
num diapasão. (CARVALHO, 2007, s/p)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUMONT, Jacques. O olho interminável – cinema e pintura.(Trad. Eloísa Araújo
Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
BENTES, Ivana. In> CARVALHO, Luiz Fernando: Sobre o filme Lavoura Arcaica. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2002. P. 30.
CARVALHO, Luiz Fernando (et. al) Renascer. Rio de Janeiro: Central Globo de
Produções, 1993.
__________. Sobre o filme Lavoura Arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
_________. Rio de Janeiro, 2008. Entrevista concedida a Renato Félix.
Disponível em http://renatofelix.wordpress.com/2009/08/27/entrevistas-luizfernando-carvalho/. Acesso em 06/01/2012.
Perspectiva, 1989.
DISCINI, Norma. O estilo nos textos. São Paulo: Contexto, 2003
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palavra e imagem, Nº 16. São Paulo: EDUSP, 1992/93.
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OLIVA. Osmar Pereira (org.). Os nortes e os sertões literários do Brasil.
Montes Claros: Unimontes, 2009. Pg. 37-46
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
33
EPIGRAFE E REFERÊNCIAS BIBLICAS EM ―O PIROTECNICO
ZACARIAS‖ DE MURILO RUBIÃO
Camila Alves da Silva2
Resumo: Ao lermos o conto ―O pirotécnico Zacarias‖, do escritor mineiro Murilo Rubião,
facilmente somos levados a associá-lo com algumas passagens bíblicas. O conto é
introduzido por uma epígrafe bíblica do livro de Jó, que tem a função de nos antecipar
parte do que veremos no conto. Além da epígrafe, o nome escolhido para o personagem
principal do conto, Zacarias, é homônimo ao profeta menor bíblico. Durante o
desenvolver da história, outros símbolos podem ser associados às passagens da Bíblia,
mais precisamente às passagens ligadas aos profetas e ao apocalipse. O próprio Murilo
Rubião afirma em suas entrevistas que a Bíblia fora uma de suas fontes inspiradoras
para a sua curta obra de criações fantásticas. O conto escolhido para esta pesquisa é o
que apresenta maiores inferências intertextuais entre a Bíblia e a ficção fantástica já
produzida pelo escritos mineiro.
Palavras-chave: ―O pirotécnico Zacarias‖, Murilo Rubião, Bíblia, Referências, Intertexto.
Abstract: When we read the short story "O pirotécnico Zacarias" of the writer Murilo
Rubião, easily we are led to associate it with some biblical passages. The story is
introduced by a biblical reference of Job, which has the function of anticipate what we will
see along the tale. In addition, the name chosen for the main character of the story,
Zecharias, is the same name of a lower biblical prophet. During the development of the
story, other symbols can be associated with Bible passages, specifically the passages
connected to the prophets and the apocalypse. Murilo Rubião said in interviews that the
Bible was one of his sources of inspiration for your short work of fantastic creations. The
story chosen for this research is the one with larger inferences intertextual between the
Bible and the fantastic fiction ever produced by Murilo Rubião.
Keywords: "O pirotécnico Zacarias", Murilo Rubião, Bible, References, Intertext.
O escritor mineiro Murilo Rubião tinha por hábito a reescritura de
seus contos. Alguns chegaram a ter quatro republicações com alterações
promovidas pelo autor que abrangiam a substituição de palavras por
sinônimos, supressões, alterações de títulos, etc. O conto ―O pirotécnico
Zacarias‖ também fora republicado, sendo a primeira vez em 1943, na
edição de Abril da revista O Cruzeiro, e a segunda, ocorreu com a
publicação da antologia homônima ao conto, em 1974.
2
Graduada em Letras Espanhol pela Universidade Estadual de Montes Claros,
atualmente mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da
Universidade Estadual de Montes Claros.
34
Neste nosso trabalho trataremos das duas publicações e suas
especificações correlacionadas ao tema aqui em estudo, que serão as
inferências bíblicas possíveis de serem observadas no conto ―O
pirotécnico Zacarias‖ e que dão o caráter intertextual à obra. O primeiro
ponto que nos chama atenção, e de qualquer leitor assíduo dos contos de
Murilo Rubião, é a ausência da epigrafe bíblica na versão de 1943, já que
esta é uma marca nos contos rubianos. Porém, identificamos que esta
marca só começa a aparecer em sua primeira publicação de contos
reunidos, de 1947, O ex-mágico, mas somente em cinco contos dos
quinze é que encontramos as epígrafes, sendo que uma aparece nas
páginas iniciais da obra e as demais antecediam os contos ―Arco-Íris‖,
―Mulheres‖, ―Montanha‖, ―Condenados‖ e ―Família‖. Somente a partir de A
estrela vermelha (1953) é que todos os contos passarão a ter uma
epígrafe bíblica própria individual.
A epígrafe bíblica de Jó, XI, pertencente ao Antigo Testamento,
introduz o conto na versão de 1974 e o contista não a utiliza em seu
sentido de caráter religioso, mas como uma chave de leitura ou ampliação
do sentido da narrativa. ―E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como
a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a estrela
d‘alva.‖ (Job, XI, 17).
O livro de Jó é o primeiro dos livros poéticos na Bíblia hebraica,
alguns acreditam ter sido esse o primeiro livro a ser escrito da Bíblia. A
passagem conta a história de um homem crente em Deus que desfrutava
de uma vida de prestígio e posses e pessoas, e que foi subitamente
atingido por todos os lados, devastado, sugado até a sua base.
Entretanto, sua fé o fez suportar todas as provas, sendo daí a origem da
expressão popular ―paciência de Jó‖. A passagem é um emocionante
drama de uma pessoa que vai da riqueza à extrema miséria, e é restituído
em dobro por conta de sua fé.
35
A epígrafe se resume nas questões de fé e esperança, que mesmo
diante do mais grave problema, aquele que perseverar em sua fé não
haverá problema que o abalará.
Neste conto, não só a epígrafe nos faz retomar a Bíblia, mas
também o nome de nosso personagem principal, Zacarias. Zacarias é um
dos livros mais apocalípticos e messiânicos dentre todos os profetas
menores, explora o futuro, o vasto mar inexplorado do desconhecido, que
poderá deter alegrias ou terrores.
O futuro nos desperta grande interesse, algumas pessoas temem os
dias futuros e querem saber que mal podem espreitar no desconhecido;
outros consultam videntes e cartomantes na desesperada tentativa de
descobri-lo.
O profeta Zacarias encorajou o povo judeu a retomar a reconstrução
do templo, mas sua mensagem ultrapassou os muros físicos e as
questões daquela época. Com uma espetacular imagem apocalíptica, o
profeta descreveu com detalhes a vinda do Messias, aquele a quem Deus
enviaria para salvar o seu povo para reinar sobre toda a terra. O profeta
proclamou uma mensagem comovente de esperança de que o Rei logo
chegaria para a salvação de seu povo. Durante todo o conto
encontraremos este diálogo com a bíblia, principalmente com as histórias
que envolvem os livros de Jó e de Zacarias.
Antes de sua morte, o personagem Zacarias do conto de Murilo
Rubião, relata que no processo de sua passagem de vida para a morte,
ocorreu uma explosão de cores que se confundem com o explodir de
fogos de artifícios, mas quando ele relata que:
A princípio foi azul, depois, verde, amarelo, e negro. Um negro
espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho
compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue
pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo
esverdeado, tênue, quase sem cor. Quando tudo começava a
ficar branco, veio um automóvel e me matou. (RUBIÃO, 1974,
p.14)
36
O negro, o vermelho, amarelo-esverdeado e o branco são as
mesmas cores dos cavaleiros do apocalipse descritos na bíblia, mais
precisamente no livro de Apocalipse que revela a devassidão da
humanidade e retrata toda a autoridade de Deus.
¹E havendo o Cordeiro aberto um dos selos, olhei e ouvi um
dos quatro animais que dizia como trovão: Vem e vê!
²E olhei, e eis um cavalo branco: e o que estava assentado
sobre ele tinha um arco: e foi-lhe dada uma coroa, e saiu
vitorioso e para vencer.
³E, havendo aberto o segundo selo, ouvi o segundo animal,
dizendo: Vem e vê!
4
E saiu outro cavalo, vermelho; e ao que estava assentado
sobre ele foi dado que tirasse a paz da terra e que se
matassem uns aos outros; foi-lhe dada uma grande espada.
5
E, havendo aberto o terceiro selo, ouvi o terceiro animal,
dizendo: Vem e vê! E olhei, e eis um cavalo preto; e o que
sobre ele estava assentado tinha uma balança na mão.
6
E ouvi uma voz no meio dos quatro animais, que dizia: Uma
medida de trigo por um dinheiro; e três medidas de cevada por
um dinheiro; e não danifiques o azeite e o vinho.
7
E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal,
que dizia: Vem e vê!
8
E olhei, e eis um cavalo amarelo; e o que estava assentado
sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia: e foi-lhes
dado poder para matar a quarta parte da terra com espada, e
com fome, e com peste, e com as feras da terra. (BIBLIA,
APOCALIPSE, 6, 1-8, p.1814)
Os quatro cavalos aparecem quando os quatro primeiros selos são
revelados. Eles representam o julgamento divino sobre os pecados e a
rebelião dos homens. Os quatro cavalos representam uma antecipação
do julgamento final que ainda virá. A imagem dos quatro cavalos também
é encontrada no livro de Zacarias, 6, 1-8. Cada cavalo tem uma cor
diferente. Alguns entendem que o cavalo branco representa a vitória e
que seu cavaleiro deve ser Cristo (porque, mais tarde, Cristo cavalga para
a vitória montado em um cavalo branco). Mas como os outros três estão
relacionados ao julgamento e à destruição, é muito pouco provável que
esse cavaleiro seja Cristo. Os quatro fazem parte do desenrolar do
julgamento de Deus, e seria prematuro para Cristo surgir como um
conquistador. Algumas interpretações apontam que o cavaleiro branco
37
possa ser o falso cristo, o anticristo. Os outros cavalos representam
diferentes tipos de julgamento: vermelho para a guerra e derramamento
de sangue; preto para a fome; e amarelo para a morte.
Mais à frente, o mesmo trecho é repetido no conto logo após o
acidente e a ―morte‖ de Zacarias (RUBIÃO, 1974, p. 15). E no parágrafo
final do conto, mais uma vez o simbolismo da cor branca é retomada,
Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca
brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à
margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência se
transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para
exclusiva ternura dos meus olhos. (RUBIÃO, 1974, p. 19)
Este trecho pode ser associado com a esperança depositada no
branco baseada no trecho do livro de Apocalipse,
11
E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O que estava
assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro e julga e
peleja com justiça.
12
E os sus olhos eram como chama de fogo; e sobre a sua
cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito que
ninguém sabia, senão ele mesmo. (BIBLIA, APOCALIPSE, 19,
11-12, p. 1929)
No cenário da visão de João o céu se abre e Jesus aparece – dessa
vez não como um Cordeiro, mas como um guerreiro montado em um
cavalo branco (simbolizando a vitória). Jesus veio primeiro como um
Cordeiro para ser sacrificado pelo pecado, mas Ele voltará como um Rei
vencedor para executar o juízo (BIBLIA, 2 TESSALONICENSES 1, 7-10,
p.1695). E para os que se encontram mortos, ou em condição tão
desesperadora como a de Zacarias, nem morto e nem vivo, no livro de
Tessalonicenses, há a esperança de serem ressuscitados no dia do juízo
final,
13
Não quero, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos
que já dormem, para que não vos entristeçais, como os
demais, que não têm esperança.
14
Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim
também aos que em Jesus dormem Deus os tornará a trazer
com ele.
38
15
Dizemo-vos, pois, isto pela palavra do Senhor: que nós, os
que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, não precederemos
os que dormem.
16
Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com
voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; os que morreram
em Cristo ressuscitarão primeiro;
17
depois, nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados
juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos
ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. (BIBLIA, 1
TESSALONICENSES, 4, 13-17, p. 1690)
Como o próprio Murilo Rubião afirma em suas entrevistas, a Bíblia
fora um dos livros bases para a construção de seu conhecimento sobre o
fantástico. Apesar de ateu, o autor apresenta um exímio domínio sobre o
conteúdo bíblico, realizando com louvor o diálogo entre o conto e as
passagens apocalípticas que são consideradas as mais fantásticas e mais
abertas para uma diversidade de interpretações.
Em entrevista para o jornal Diário de Notícias, Rubião aproxima a
função do escritor com a função de um profeta bíblico, sendo que,
Os escritores são, de certa forma, profetas dos tempos
modernos. Eles fazem parte dessa vaga que incluem os
filósofos, sociólogos, etc., que consegue cristalizar as novas
noções éticas, as ideologias nascentes. Mas é o escritor,
através da literatura, que faz a síntese desse conhecimento e o
divulga para o povo. (RUBIÃO, 1975, s/p)
Sendo assim, na década de 1940, Murilo Rubião antevia o sucesso
do movimento literário fantástico que tomaria conta da América Latina e
do mundo, antevendo a explosão e sucesso de vendas de ―O pirotécnico
Zacarias‖ em 1974. Além de ―pai da literatura fantástica‖, tinha o dom
mediúnico de escritor à frente de seu tempo.
REFERÊNCIAS
BIBLIA. Bíblia de estudo e aplicação pessoal. Versão Almeida. Revista
corrigida. Editora CPAD, 2004.
RUBIÃO, Murilo. Diário de notícias. Porto Alegre, 30 de março de 1975.
RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. São Paulo: Ed. Ática, 1974.
RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. In: Revista O Cruzeiro. Rio de
Janeiro,
abril
de
1943.
39
―DRAMA DE BÁRBARA HELIODORA‖ EM MADRINHA LUA, DE
HENRIQUETA LISBOA
Daiana Santos Machado
(UNIMONTES)
Resumo: Henriqueta Lisboa, poetisa mineira, traz em seu livro de poesia Madrinha Lua,
a personagem Bárbara Heliodora. Em meio a tantos personagens históricos importantes
de Minas Gerias, Heliodora é a única mulher, que recebe um poema dedicado a ela,
intitulado ―Drama de Bárbara Heliodora‖. Neste poema elucidaremos sua posição em
pleno século XVIII como mulher, poetisa e ativista política no movimento da
Inconfidência Mineira. Dessa maneira, evidenciaremos sua resistência ao meio
conflituoso de sua época, sua superação e importância na construção da história e
identidade mineira.
Palavras- chave: figura feminina; história mineira; superação
Resumen: Henriqueta Lisboa, poetisa minera, trae en su libro de poesía Madrinha Lua,
el personaje Bárbara Heliodora. En medio de tantas figuras históricas importantes de
Minas Gerais, Heliodora es la única mujer que consigue un poema dedicado a ella,
intitulado "Drama de Bárbara Heliodora". En este poema elucidaremos su posición en el
siglo XVIII como una mujer, poeta y activista político en el movimiento de Minas
Conspiración. Por lo tanto, evidenciaremos su resistencia a los medios de confrontación
de su tiempo, su capacidad de superación y importancia en la construcción de la historia
e identidad minera.
Palabras clave: figura femenina; historia minera; superación
Ao longo de sua carreira literária, Henriqueta Lisboa foi agraciada
com diversos prêmios importantes, como o Prêmio Othon Bezerra de
Mello da Academia Mineira de Letras, em 1949, e o Prêmio da Câmara
Brasileira do Livro, por Madrinha Lua, em 1952. O Prêmio Brasília de
Literatura, pelo conjunto de sua obra, em 1971, e o Prêmio Machado de
Assis da Academia Brasileira de Letras, também pelo conjunto da obra,
em 1984. Dentre as homenagens que recebe estão a Medalha de Honra
da Inconfidência de Minas Gerais, em 1955, o título de ―Cidadã Honorária
de Belo Horizonte‖, em 1972, e o Diploma de Mérito Poético do Governo
do Estado de Minas Gerais, comemorativo dos 50 anos de sua poesia,
em 1979.
Os prêmios e homenagens acima elencados, além de tantos outros,
mostram o lugar de Henriqueta Lisboa no espaço literário e cultural do
seu tempo, de modo a se poder tomá-la como mulher privilegiada, por ter
ultrapassado os limites domésticos a que as mulheres em geral, nesse
40
período, estavam submetidas, e ter inscrito seu nome como poetisa e
intelectual de referência no país. O fato de ter sido a primeira mulher
eleita para a Academia Mineira de Letras o ressalta de modo evidente.
Como afirma Eneida Maria de Souza a respeito desse lugar ocupado pela
autora: ―Como escritora vivendo no meio intelectual dominado por
homens, sua posição firme e audaciosa rompeu barreiras e respondeu de
forma lúcida às críticas à sua poesia‖ (SOUZA, 2010, p. 34).
Apresentamos, a seguir, um trecho de entrevista que Henriqueta
Lisboa concedeu ao jornal O Estado de São Paulo, em 1984, no qual
comenta a recepção de sua obra no início de sua carreira, dando
destaque a essa sua condição de ―mulher poeta‖:
Mulher, além de mineira, escritora aparecida há cinqüenta
anos, as condições não me seriam favoráveis; e foi preciso
perseverança para prosseguir no trabalho, ou melhor, na força
de vocação. Todavia tive gratas compensações: a crítica me
apoiou desde o início, os colegas de ofício me têm dado
apreço, fui a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de
Letras, tenho sido distinguida com títulos de meu Estado e
tenho recebido prêmios de nível nacional [...] Se houve
preconceitos, eles já não existem (LISBOA apud PAIVA, 2006,
p. 118).
Henriqueta revela, nesse fragmento, que houve esforço de sua parte
por superar esse estigma que existia em relação ao lugar social da mulher
e afirmar-se como poetisa. Apesar de ter passado por dificuldades com a
crítica em relação a essa questão, a poetisa as superou, como sugere no
final de sua fala. Talvez pelo fato de ter surgido como escritora num
momento de revolução no campo intelectual e das letras no Brasil (o
Modernismo), o olhar sobre sua obra foi pouco marcado por preconceitos
desse tipo, voltando-se mais para suas qualidades intrínsecas.
É interessante, porém, notar como os primeiros críticos da autora
não viam a questão da feminilidade como alheia a essas qualidades
literárias. Como nos mostra Adriana Rodrigues Machado (2013), em
comentário a uma crítica produzida por autor identificado apenas como
41
―M‖ (publicada em jornal no ano de 1922), a poesia de Henriqueta se
destacava das demais marcadas pela emergência de uma voz feminina.
Citamos abaixo, um trecho desse texto recuperado pela pesquisadora:
[...] Os seus versos, alguns cheios de encantadora
simplicidade, iluminam-se de um suave panteísmo, que é como
um prolongamento dessa ―divina surpresa‖, que nos fere, e
impele o artista a enamorar-se, no primeiro instante de vida
emocional, da natureza, do firmamento, do espaço, da luz, que
o abençoa. [...] (―M‖, 1922, apud MACHADO, 2013, p. 31)
Essa relação entre feminilidade e qualidade literária (a Henriqueta
Lisboa mulher e poetisa ao mesmo tempo) foi destacada também por
Paschoal Rangel, em sua elogiosa apresentação da autora, intitulada
Essa Mineiríssima Henriqueta (1987). Entretanto, esse tom elogioso,
eleva a mulher e pouco enaltece a poetisa atribuindo-lhe características
mais de fêmea do que propriamente de ―poeta‖. Nota-se também, como o
título já sugere a referência à presença de Minas como dado demarcador
da personalidade literária de Henriqueta Lisboa. Vejamos, a esse
respeito, o trecho abaixo:
Quem é ela? Fêmea espantada inquietíssima silenciosa, toda
sobre-si e tão sobre-o-mundo, sobre o céu, a terra, o homem.
Tão poeta! Mineiríssima Henriqueta, de antiga árvore ibérica,
que deixou lembranças de Portugal pegadas no seu nome:
Henriqueta Lisboa. Quem é essa mulher? Ninguém sabe, como
―ninguém sabe Minas. Só mineiros sabem, e não dizem nem a
si mesmos...‖ ―Minas é cimo e fundo.‖ Assim, Henriqueta. E
quanto! (RANGEL, 1987, p.15)
Podemos observar, nesse trecho, um movimento ambivalente, que
vai do olhar sobre a Henriqueta poetisa para a figura feminina que a partir
dela se desvela. Quando pergunta sobre a poetisa, Rangel lembra-se da
Henriqueta mulher, com seu jeito inquieto e silencioso, ao mesmo tempo.
Retorna ao que encontraremos como uma característica de sua poesia, o
voo do espírito sobre o mundo físico, que estaria relacionado, como
sugere o crítico, à origem ibérica e mineira da autora. Depara-se, enfim,
com a impossibilidade de definir Henriqueta Lisboa, tanto como mulher
42
quanto como poetisa, já que, como uma típica mineira, ela vai ao alto e ao
fundo (dimensões contrastantes) num mesmo movimento, impedindo que
se a fixe num lugar único.
Rangel, ainda no mesmo estudo, melhor aprofunda esse olhar sobre
a personalidade literária da autora aludindo a constantes temáticas e
formais que encontraremos como determinantes em Madrinha Lua:
Ela [Henriqueta Lisboa] que parece tão em-si, de repente é
história, é geografia, Mariana, Caraça, Ouro Preto, Aleijadinho,
Bárbara Heliodora, o arcebispo Dom Silvério, é epopéia lírica,
romanceiro, é vibração religiosa, é infância, é metafísica,
―pousada do ser‖; é lucidez, é erudição, é agudez crítica, é
enigma (―reverberações‖), visão onírica, é cimo e fundo, lavras
e céu, isto e aquilo. (RANGEL, 1987, p. 15)
Em meio a tantos personagens e cidades históricas trazidas pela
poetisa no livro objeto de nosso estudo: Madrinha Lua; uma figura
feminina ganha atenção especial na de Henriqueta Lisboa em ―Drama de
Bárbara Heliodora‖, leia-se o poema que retrata a vida dessa
personagem:
―Bárbara bela
do norte estrela
que o meu destino
sabes guiar.‖
Quem é esse que assim canta
como quem está chorando?
Suas faces encovaram,
seus olhos se amorteceram,
sobre seus cabelos negros
cai uma chuva de cinza.
Ah! e havia tanta brasa
em torno de seus cabelos,
tanto sol na sua ilharga,
tanto ouro nas suas minas,
tanto potro galopando
nas suas terras sem fim.
Grão de poeira quando o vento
a madrugada castiga:
Já não é mais Alvarenga
Quem foi Alvarenga um dia.
43
Do galho cai uma fruta
verde sobre o lago fundo.
A árvore guardava a seiva
Toda nessa fruta verde.
A mão trêmula do poeta
mal sabe aquilo que escreve:
―Tu entre os braços
Ternos abraços
da filha amada
podes gozar‖
A essas horas, na distância,
vai pela tarde dorida
sob a chuva, entre salpicos
de lama, em caixão mortuário
sem enfeites nem bordados,
senão os que a lama asperge
no pano que cobre as tábuas.
Quando a alvura da açucena
se refugiava nas moitas,
Maria Ifigênia encontra
sua gruta para sempre.
É deveras a Princesa
do Brasil, essa menina
de madeixas escorridas,
de lábios esmaecidos,
de túnica mal vestida?
Essa, a mesma por quem vinham
da Corte os melhores mestres
de dança e língua estrangeira?
A de damascos e auréolas
a quem brotavam nos dedos
tíbios ramos de coral?
Linda, lendária Princesa,
por quem chora já sem lágrimas
pobre mulher desvairada
de olhos que olham mas não vêem.
Chora Bárbara Heliodora
Guilhermina da Silveira.
E em suas artérias corre
o sangue de Amador Bueno!
Chora, porém já sem lágrimas.
É de mármore seu rosto.
Seu busto cai sobre os joelhos:
flores que de trepadeiras
pendem murchas para o solo.
Talvez já nem saiba como
— para donaire da estirpe —
44
na ponta dos pés erguida
em hora periclitante
ousou admoestar o esposo:
―Antes a miséria, a fome,
a morte, do que a traição!‖
Valem muralhas de pedra
para represa dos rios,
certas palavras eternas
que decidem do destino.
(LISBOA,1980, p.27-29)
Bárbara Heliodora, única, mas imprescindível personagem feminina
que ganha voz através da poesia não só por ser mulher, mas por sua
importância na poesia (musa inspiradora para Alvarenga Peixoto) por seu
dom de poetisa, além de atuar como ativista política brasileira.
Antônio Sérgio Bueno em seu estudo ―Sinfronismo feminino‖ na
introdução de Madrinha Lua, sugere que o interesse de Lisboa por esta
personagem surge:
Talvez pelo fato de a protagonista ter sido mulher e poeta, o
Drama de Bárbara Heliodora tenha recebido de Henriqueta
Lisboa um tratamento tão soberbo. A verticalidade brutal da
―queda‖ da heroína, a terrível precariedade da ventura, chegam
ao paroxismo nos versos do poeta:
―Chora Bárbara Heliodora
Guilhermina da Silveira.
E em suas artérias corre
O sangue de Amador Bueno!
Chora, porém já sem lágrimas.‖
(BUENO. In: LISBOA,1980, p. 9)
Henriqueta Lisboa, assim, nos apresenta a figura de Bárbara
mulher, musa, esposa, heroína, e com estigmas, pelo seu sangue, sua
descendência. A poetisa evidencia o título de nobreza, ressaltado pela
referência ao sangue do bandeirante (Amador Bueno).
Entretanto antes de tudo, Bárbara é mulher, e é evidenciando suas
características de fêmea que a poetisa, acentuando o lirismo próprio de
sua poesia, inicia o poema: ―Bárbara bela/ do norte estrela/ que o meu
destino/ sabes guiar.‖ (LISBOA, 19980, pg.27).
45
Estes versos compõe
―Bárbara Bela‖ poema feito em cárcere pelo próprio marido, inconfidente e
poeta. Fazendo assim uma analogia dos acontecimentos da vida desta
personagem e o lugar de esposa/ mulher que esta ocupara.
Outros aspectos femininos são evidenciados, como por exemplo,
seus olhos e seus cabelos negros, entretanto seus encantos de mulher
estão ―amortecidos‖ pelas lutas, desgostos e sofrimentos dessa mulher
que tanto padece e até mesmo seu canto se assemelha ao pranto como
elucida a poetisa: ―Quem é essa que assim canta como quem está
chorando?‖ (LISBOA, 1980, p. 27)
Da vida dessa mulher bela, forte e determinada, destacaremos dois
acontecimentos marcantes em sua vida, que a transformara em ―pobre
mulher desvairada/ de olhos que olham mas não vêem‖ (LISBOA, 1980,
p. 27) tantos acontecimentos lhe fizeram sofrer, que parece não ser mais
a mesma mulher, como evidencia Lisboa: ―Já não é mais Alvarenga/
quem foi Alvarenga um dia‖ (LISBOA1980, p. 27). Dentre tais
acontecimentos trágicos mais marcantes temos: A participação de seu
marido na Inconfidência Mineira e a condenação do mesmo a degredo
perpétuo e a morte de sua filha com apenas treze anos de idade.
Desse segundo episódio sabe-se através dos relatos históricos que
do envolvimento de Bárbara com Alvarenga Peixoto, nasceu Maria
Ifigênia, e que com a idade de três anos, seus pais se casaram
oficialmente. Dez anos mais tarde Mª Ifigênia sofre uma queda de cavalo
que lhe levaria à morte. As estrofes do poema, aqui analisado, elucidam o
fato:
A essas horas, na distância,
vai pela tarde dorida
sob a chuva, entre salpicos
de lama, em caixão mortuário
sem enfeites nem bordados,
senão os que a lama asperge
no pano que cobre as tábuas.
Quando a alvura da açucena
se refugiava nas moitas,
Maria Ifigênia encontra
46
sua gruta para sempre.
(LISBOA, 1980, p.28)
Bárbara como mulher/ mãe, que então já estava sofrendo pela
distância do marido, agora não mais poderá ter a filha nos braços. Antes
de perdê-la, entretanto, a voz de Alvarenga, em degredo na África, no
poema diz ―Tu entre os braços/ ternos abraços/ da filha amada/ podes
gozar.‖ Algum tempo depois, a filha do casal falece. Heliodora como toda
mãe que ama incondicionalmente, sofre em demasia pela perda de sua
filha.
Do segundo episódio, há relatos de que, o minerador e proprietário
de grandes lavouras, Inácio José de Alvarenga Peixoto com muitas
dívidas e impostos em atraso e sobre pressão, se envolveu no movimento
da Inconfidência. Dessa participação resultou a inscrição latina ―Libertas
quae sera tamem‖ na bandeira de Minas Gerais, de sua autoria. Muitas
das reuniões dos inconfidentes aconteciam na casa dos Alvarenga nas
quais sua esposa, Bárbara, presenciara algumas e sempre apoiara seu
marido durante todo o movimento, e mesmo quando foi condenado por
participar do mesmo. Dessa trajetória de Bárbara, companheira fiel de seu
marido, Aureliano Leite, em A vida heróica de Bárbara Heliodora, enfatiza
que a personagem foi essencial na vida de Alvarenga Peixoto, acrescenta
ainda que:
...Ela foi a estrela do norte que soube guiar a vida do marido,
foi ela que lhe acalento o seu sonho da inconfidência do
Brasil…quando ele, em certo instante, quis fraquejar, foi
Bárbara quem o fez reaprumar-se na aventura patriótica. Disso
e do mais que ela sofreu com alta dignidade fez com que a
posteridade lhe desse tratamento de Harmonia da
Inconfidência. (LEITE, 1860)
Logo, percebe-se uma mulher companheira, mãe que teve uma
filha antes de consumar seu casamento, acontecimento incomum e
preconceituoso naquele tempo. Mulher que embora casada, ainda
preferiu conservar seu nome de solteira e que mesmo após a morte do
47
marido, cuidou da educação dos seus quatro filhos e administrou todos os
bens da família mesmo quando estes foram confiscados pela coroa. Tais
adversidades, entretanto, não foram maiores do que a coragem e a honra
de Heliodora como evidencia Henriqueta nos versos ―Antes a miséria, a
fome/ a morte, do que a traição‖ (LISBOA, 1980, p. 29).Além de tudo isso,
ousada para a época, Bárbara foi a primeira poetisa do Brasil. Por fim,
nas análise desta personagem por André Figueiredo Rodrigues em ―A
mulher na Inconfidência Mineira‖, concordamos que:
Analisar Bárbara Eliodora é difícil de fazer com objetividade,
porque reluz sobre a sua fronte a auréola do mito. Por ser
mulher sofredora por excelência, que viu seu marido arrancado
de casa e levado algemado ao Rio, e sentir na pele o desprezo
dos amigos, sua trajetória e histórias a fizeram entrar no
panteão das heroínas brasileiras. Bárbara Eliodora é
considerada a mulher-símbolo, o exemplo típico da mulher
mineira: culta, esposa dedicada, mãe de família e sofredora.
Ela foi, ainda, o vulto feminino que mais se destacou na
Inconfidência Mineira. (RODRIGUES, s.d, p. 34)
REFERÊNCIAS
BUENO, Antônio Sérgio ―Sinfronismo feminino‖. In: LISBOA, Henriqueta.
Madrinha Lua. Belo Horizonte: Coordenadoria de Cultura de Minas
Gerais, 1980, p.15-16.
LEITE, Aureliano. A Vida Heroica de Barbara Heliodora (em português).
[S.l.: s.n.], 1860.
LISBOA, Henriqueta. Madrinha Lua. Coordenadoria de Cultura de Minas
Gerais. Belo Horizonte, 1980.
LOBO FILHO, Blanca. A Poesia de Henriqueta Lisboa. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1966.
MACHADO, Adriana Rodrigues. Rosa plena: a sagração da poesia em
Henriqueta Lisboa. 2013. 311 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) –
Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2013
PAIVA, Kelen Benfenatti. Histórias de vida e amizade: as cartas de Mário,
Drummond e Cecília para Henriqueta Lisboa. 2006. 187 f. Dissertação
48
(Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
PEIXOTO, Alvarenga. Lira 21. In: LAPA, Manuel Rodrigues. op. cit., p. 3031. O refrão – ―Isto é castigo // que Amor me dá‖ – não se encontra
publicado na edição organizada por Joaquim Norberto em 1856 das obras
poéticas de Alvarenga Peixoto. Conferir: SILVA, Joaquim Norberto de
Souza e. Obras poéticas de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Garnier,
1856, p. 263-266.
RANGEL, Paschoal. Essa Mineiríssima Henriqueta. Belo Horizonte: O
Lutador, 1987.
RODRIGUES,
André
Figueiredo.
Disponível
http://www.histoecultura.com.br/artigos/03/AFR%20%20art%20AGL2012.pdf. Acesso em: 02 de Outubro de 2015.
em:
SOUZA, Eneida Maria de. ―A dona Ausente‖. In: ANDRADE, Mário de;
LISBOA, Henriqueta. Correspondência. Organização, introdução e notas
de Eneida Maria de Souza; transcrição dos manuscritos Maria Silvia Ianni
Barsalini. São Paulo: Editora Peirópolis; EDUSP, 2010.
49
NAVEGAR É PRECISO: A CARTA DO ―ACHAMENTO‖ DO BRASIL
INTERMEDIADA PELO E-MAIL DE CAMINHA, DE ANA ELISA
RIBEIRO
Daiane Silva de Andrade (Professora
Ensino Básico Técnico e Tecnológico)
IFNMG- Campus Araçuaí
RESUMO: A carta do escrivão real Pero Vaz de Caminha tem importância substancial
nas salas de aula por trazer discussões dos mais variados campos, sendo indispensável
para a compreensão da história e formação do povo brasileiro. Muito se tem discutido
também sobre seu suposto caráter literário gerado, entre outros motivos, pela
subjetividade de alguns trechos. Entretanto, é notório o quanto a linguagem do século
XVI traz algumas dificuldades para o aluno contemporâneo que, por vezes, se afasta
inicialmente desse texto alegando as dificuldades de lidar com uma versão mais arcaica
da língua. Este trabalho busca averiguar a forma como a escritora Ana Elisa Ribeiro
tenta, de maneira lúdica, mostrar o quanto a histórica Carta também pode ser pensada
em um contexto mais atual. As relações hipertextuais traçadas entre a carta do
―achamento‖ do Brasil e a versão moderna criada pela autora em forma de e-mail
permitem discussões comparativas sobre os gêneros textuais, destacando o caráter
atemporal da literatura.
Palavras-chave: literatura, hipertexto, educação, gêneros literários.
Abstract: The letter of the actual scribe Pero Vaz de Caminha has a considerable
importance in classrooms' discussions once it brings different points of view and it is an
indispensable tool to understand the history and formation of the Brazilian people. It has
discussed a lot about his supposed literary character generated, even because of, the
subjectivity of some passages. However, it is clear how the language of the sixteenth
century become difficult for the contemporary student comprehension and for this reason
they get apart from this texts and they complain when first have contact with this archaic
version language. This paper searches to determine how the writer Ana Elisa Ribeiro
tries, in a playful way, to demonstrate how this historic letter may also be valid in the
current days .The hypertext relations traced by the mentioned letter of Brazil and the
modern version created by the author in the form of e-mail allow comparative discussions
on the genres, emphasizing the timeless character of literature.
Keywords : literature, hypertext , education, literary genres.
É notório que as novas descobertas tecnológicas vêm, nas últimas
décadas,
transformando
a
vida
humana
em
vários
aspectos,
sobremaneira, no modo de aquisição de conhecimentos e nas muita
possibilidades de leitura. Tornou-se comum, para um leitor tipicamente
contemporâneo, clicar num link, ler uma tirinha, ouvir uma canção, assistir
ao trailer de um filme lançado recentemente, pesquisar a biografia de uma
celebridade. Ações que eram impossíveis, pelo menos de forma tão veloz
e simultânea, sem o aparato da tecnologia. Inserido nesse contexto, o
50
leitor vê-se seduzido por um universo plural que mescla imagens, sons,
cores, palavras.
Entretanto, essas transformações trazidas pela tecnologia não
deixam de trazer impactos ou amedrontar como historicamente aconteceu
com a aquisição da técnica de uso do fogo que gerou deslumbramento e,
simultaneamente, descoberta da dor que poderia ser causada por ele, por
exemplo.
Segundo Arlindo Machado, pesquisador da multiplicidade de
aspectos gerados pela tecnologia,
Com as tecnologias modernas de tratamento da palavra,
estamos assistindo a uma transformação tão importante no
modo de produção textual quanto aquela que, em outros
tempos, substituiu instrumentos como o pincel, o caniço e a
pena de ganso por caracteres móveis uniformes, ou suportes
como a pedra, o papiro, o pergaminho e o velino por folhas de
papel seqüenciais (MACHADO, 1996, p. 169).
Torna-se claro, através das considerações de Arlindo Machado, que
as evoluções geradas pelas descobertas, num misto de encantamento e
medo, modificam a sociedade gerando indagações e também outras
descobertas.
Sendo assim, o advento da internet tanto foi louvado devido aos
aspectos práticos que trouxe para o cotidiano, como também foi
vislumbrado de maneira apocalíptica como responsável pela morte de
práticas e funções há muito estabelecidas na sociedade.
De acordo com Pierre Lévy, o surgimento do ciberespaço ―tem um
efeito tão radical sobre a pragmática das comunicações quanto teve, em
seu tempo, a invenção da escrita‖ (LÉVY, 1999, p.114). Para ele,
certamente gerou, concomitantemente, admiração e espanto algumas
inovações trazidas pelo surgimento da escrita como a possibilidade de
comunicação entre pessoas separadas geograficamente e também a
perenidade fornecida ao discurso como, por exemplo, poder arquivar, de
maneira gráfica, as ideologias e/ou criações de alguém já falecido.
51
Seguindo também esse raciocínio, Jean–François Lyotard enfatiza
que a influência da multiplicação de máquinas informacionais será tão
grandiosa quanto o surgimento dos transportes, dos sons e das imagens
(LYOTARD, 2006, p. 4). As inovações não surgem de maneira passiva:
hábitos, o modo de pensar e até mesmo as relações humanas e históricas
são transformadas.
Passada a euforia inicial causada pelos recursos tecnológicos,
sobremaneira para a divulgação e permanência da obra literária,
despontaram discussões sobre o fim da linearidade, o texto fracionado, as
questões relacionadas à autoria, bem como o temor sobre o fim do livro
diante de tantos aparatos tecnológicos.
Dessa forma, indagações sobre os rumos da educação nesses
novos tempos foram ganhando espaço e surgiu a necessidade de
entender além das novas mídias, os gêneros textuais que nasciam com
esse ambiente virtual, pois, paulatinamente, gêneros digitais como o email, chat, blog, entre outros, despontaram.
Luiz Antônio Marcuschi
esclarece que os gêneros textuais são produtos das estruturas e
realidades de cada cultura sofrendo, assim influências das mais variadas
transformações sociais já que ―os gêneros não são categorias
taxionômicas para identificar realidades estanques.‖ (MARCUSCHI, 2002,
p. 4).
Sendo assim, Marcuschi (2002) ressalta a necessidade de
investigarmos os gêneros denominados digitais principalmente devido ao
uso compulsivo dos mesmos, às suas idiossincrasias estruturais e à
necessidade de se reavaliar conceitos solidificados sobre os gêneros
textuais.
É justamente nesse contexto de discussão como os gêneros digitais
vêm modificando a relação com a leitura e a escrita que nasceu este
trabalho. Diante da leitura do livro ―O e-mail de Caminha‖, da professora e
escritora mineira Ana Elisa Ribeiro, percebe-se um exemplo da inserção
dos gêneros digitais na própria literatura. Já pelo título, o leitor se depara
52
com uma junção de elementos contraditórios historicamente: o e-mail,
produto tecnológico do século XX, e a figura de Caminha que remete ao
contexto histórico de 1500.
Através desse título que se encaixa, no que Gérard Genette
denominou de títulos temáticos ―que indicam, qualquer que seja a
maneira, o ‗conteúdo‘ do texto‖. (GENETTE, 2009, p.74), já se depara
com elementos que são apresentados de maneira intertextual e também
paralela dentro da narrativa, uma vez que tanto é apresentada a narrativa
criada pela autora que, como base a ―Carta a El Rei D. Manuel‖ escrita
por Pero Vaz de Caminha, toma esse documento como hipotexto
(GENETTE, 2005, p. 12) para trazer para um contexto contemporâneo o
―achamento‖ das terras brasileiras e apresentá-lo de maneira jocosa por
meio linguagem das ferramentas de comunicação eletrônicas atuais como
o e-mail e o twitter; como também é apresentada a versão original da
carta de Caminha, possibilitando, assim, comparações entre a linguagem,
contexto, hábitos e ideologias de cada época.
Seria fácil cair na obviedade de traçar críticas ao livro aportando em
argumentos sobre as consequências de se ―facilitar‖ uma obra para o
aluno, restringindo os benefícios de contato com um texto histórico e de
clara importância, inclusive literária, para o país. Entretanto, é preciso
analisar o modo de construção do livro e observar a recepção do mesmo
pelos alunos para compreender as leituras que podem ser feitas d‘ ―O email de Caminha‖.
O e-mail é um gênero digital de grande circulação e bem presente
na rotina da maioria dos estudantes. Marcuschi esclarece que o e-mail
nasceu no início da década de 1970 e popularizou-se quase duas
décadas depois e também gerou ansiedades, uma vez que
Foi grandemente aperfeiçoado e vem sendo extremamente
utilizado, tendo sido vaticinado como ―o fim dos correios
tradicionais‖ e das cartas escritas. Contudo, isso não se
verificou, assim como os e-livros (livros eletrônicos) não
representam a menor ameaça aos livros impressos. Assim foi
também com o surgimento do telefone que parecia ser o
53
coveiro dos correios. No entanto, nada mudou nesse particular,
assim como a televisão não suplantou o rádio. (MARCUSCHI,
2002, p.21)
O autor ainda ressalta que, nesses gêneros, a linguagem pode
assumir, dependendo dos interlocutores, certa formalidade, mas a
linguagem predominante é não-monitorada, com grande interferência da
oralidade. O e-mail se aproxima, estruturalmente, da carta. Talvez seja
exatamente por esse motivo que a autora Ana Elisa Ribeiro escolheu
apresentar o documento considerado como ―a certidão de nascimento do
Brasil‖ nesse gênero digital.
O livro traz alusões à linguagem e comunicação nos meios
eletrônicos como, por exemplo, a explicação de Caminha ao Rei Dom
Manuel, de que hesitou se era melhor passar as informações através de
um blog, página do facebook ou usar o twitter; o uso das hastags em
vários momentos da narrativa como ―#partiuindias #tchauBelém #viagem
sem wifi‖ (RIBEIRO, 2014, p. 8), logo no início da viagem, ou
―#olharnãoarrancapedaço #xavecototal #vaiquecola‖ (RIBEIRO, 2014, p.
36)
no
momento
que
observou
as
primeiras
índias,
e
ainda
―#partiuPortugal #raça #missãocumprida #jávolto‖ (RIBEIRO, 2014, p. 79),
já no final da narrativa
Observa-se também a influência dos recursos tecnológicos em
elementos paratextuais como a capa, que traz ícones de comando do
universo cibernético, a fonte escolhida, o usos de caracteres da
informática nas ilustrações e descrições como a falta de wifi em
determinados momentos, o pedido do Rei para que Caminha usasse
também o recurso do skype para que ele pudesse visualizar a nova terra,
entre outros.
Entretanto, o aspecto da estrutura do gênero digital e-mail que
parece ter sido mais utilizado pela autora é justamente a linguagem mais
informal que garante uma maior proximidade de um leitor mais jovem.
Expressões como ―Desculpe aí qualquer coisa‖ (RIBEIRO, 2014, p. 9),
54
―Rolou uma tragédia‖ (RIBEIRO, 2014, p. 14), ―Estou aqui com soninho já‖
(RIBEIRO, 2014, p. 38), são comumente observadas na escrita de Pero
Vaz de Caminha. O Rei Dom Manuel também emite, por sua vez, dizeres
como ―Afff! Perdi uma nau então‖ (RIBEIRO, 2014, p. 14), ―Só isso?
Caraca!‖ (RIBEIRO, 2014, p. 15), ―#nãotáfácilpraninguém‖ (RIBEIRO,
2014, p.50), ―#desembucha‖ (RIBEIRO, 2014, p. 65). Inverossimilhança
pensar em um Rei respondendo a uma comunicação de maneira tão
solta? Não se pensarmos que, assim como a carta, o e-mail pode ser
construído de maneira mais objetiva ou subjetiva. A situação que delimita
o conteúdo e estilo. No caso, eles estão tratando o assunto ainda de
maneira não oficial, de forma simultânea aos acontecimentos.
E de que forma a Carta de Caminha ser apresentada de uma
maneira tão lúdica e contemporânea pode contribuir para as discussões
inerentes a esse documento tão necessárias em sala de aula?
Primeiramente é preciso frisar que todos os historiadores e
estudiosos da literatura são categóricos em atestar a Carta como um
documento importante. Envolta em mistérios por quase três séculos, a
Carta ficou esquecida porque muitos historiadores da época não lhe
deram importância. Ela foi publicada, pela primeira vez, somente em
1817, pelo padre Manuel Aires do Casal. Sua alcunha de ―Certidão de
Nascimento do Brasil só nasce no século XIX.
A Carta traz uma descrição detalhada da fauna, flora dos índios e,
principalmente do momento histórico que a tornou alvo de muitos estudos
e traduções. Encontra-se hoje no Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
em Lisboa. Apesar de toda essa importância histórica, muito se discute
sobre seu caráter de texto literário. Essa discussão também deve ser feita
com os alunos, apresentando a visão dos nossos maiores críticos
literários sobre o assunto.
Partindo desse princípio, é preciso voltar à indagação acima exposta
sobre o livro ―O e-mail de Caminha‖. Será que o texto de Caminha sofre
alguma perda ao ser colocado de forma paralela a uma versão tão
55
―facilitada‖. Para responder a essa pergunta, é preciso discorrer sobre
uma experiência feita, no primeiro semestre de 2015, em sala de aula,
com alunos dos 1º ano do Ensino Médio. Após estudarem o contexto
histórico do estilo de época Quinhentismo, previamente eles leram o livro
e procederam à discussão do mesmo em sala de aula. A maioria relatou
que a versão moderna da Carta, feita através de e-mail pela escritora Ana
Elisa Ribeiro, colaborou para a compreensão do texto original, fazendo
com que eles realmente conseguissem imaginar o choque cultural
advindo do encontro entre portugueses e índios.
Muitos citaram a dificuldade de compreender alguns vocábulos da
Carta que foram colocados de maneira desembaraçada pela narrativa de
Ana Elisa, ou ainda conceituados quando a autora coloca, ligados a
algumas palavras, boxes explicativos, criando uma espécie de link para
maior compreensão do texto. Em atividade escrita de análise da obra,
foram percebidos comentários sobre o caráter esclarecedor exercido pelo
livro como ―(...) Essa obra é uma grande contribuinte da composição da
identidade brasileira, pois permite uma leitura mais fácil de um texto
importantíssimo para a nossa história, fazendo com que mais pessoas
tenham acesso às informações culturais presentes no dito texto.‖
Pela observação dos aspectos aqui brevemente analisados,
percebe-se que ―O e-mail de Caminha‖ dialoga de maneira intertextual
com a Carta de ―achamento‖ do Brasil, tornando-a mais próxima do leitor
e presentificada no contexto atual. Partindo do pressuposto que o texto só
se realiza ou continua vivo em interação com o leitor, é preciso repensar
na função do mesmo.
O papel do leitor na narrativa é salientado por Roger Chartier, no
livro A aventura do livro, do leitor ao navegador. Segundo ele, é a partir da
maneira como o leitor, usando seus conhecimentos e experiências,
recebe o texto que este vai se realizar e tomar forma. Chartier ressalta
ainda que há uma ―[...] trilogia absolutamente indissociável se nos
interessamos pelo processo de produção de sentido. O texto implica
56
significações que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de
leitura, quando ele recebe ou se apropria desse texto de forma
determinada‖ (CHARTIER, 1998, p. 152).
Sendo assim, ao invés de uma percepção de que textos clássicos
estão sendo corrompidos pelo universo cibernético, é necessário enxergar
as novas tecnologias da informação e a linguagem que surge
consequentemente delas como novas ferramentas para leitura, escrita e
análise textual. É preciso navegar, mesmo que os meios para isso tenham
mudado e ainda que tenha sido transformada a forma de se relatar as
aventuras, porque o mar da leitura ainda continua cheio de mistérios a
serem desvendados.
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador:
conversações com Jean Lebrun / Roger Chantier. Trad. Reginaldo
Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Ed.
bilíngue. Trad. Luciene Guimarães; Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2005. (Caderno Viva-Voz).
GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999.
LYOTARD, Jean-François. A condição Pós-Moderna. 9ª ed. Trad. Ricardo
Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
MACHADO, Arlindo. O sonho de Marlamé. In Máquina e Imaginário: o
desafio das poéticas digitais. São Paulo: Edusp, 1996.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergente no contexto
da tecnologia digital. In.: GEL – GRUPO DE ESTUDOS LINGUISTÍCOS
DO ESTAO DE SÃO PAULO. USP – Universidade de São Paulo, 23-25
de maio de 2002.
RIBEIRO, Ana Elisa. O e-mail de Caminha. Belo Horizonte: RHJ, 2014
57
A INVENÇÃO DE UMA TERCEIRA MARGEM: DA DISSOLUÇÃO DO
SUJEITO AO DEVIR-RIO
Daniel Silva Moraes
RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo analisar o conto ―A Terceira Margem do
Rio‖, de João Guimarães Rosa, destacando a importância dos elementos imaginários na
construção da narrativa e dos personagens. O trabalho irá utilizar o conceito de
―imaginação‖ desenvolvido pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre, analisando como os
personagens do conto utilizam esta imaginação para se relacionar com o mundo e entre
si. Assim, o trabalho irá focar em elementos como a ―presença ausente‖ do pai; a criação
de uma figura idealizada de pai (substituindo a figura do patriarca ausente) por parte do
filho-narrador; e o conflito final entre real e imaginário. Por fim, o ensaio irá sugerir
enxergar o ―pai ausente‖ como uma ilustração que pode ser usada para ajudar a
compreender o conceito de ―imagem mental‖, conforme definido por Sartre.
Palavras-chave: imaginação; Guimarães Rosa; Sartre; imaginário; real
ABSTRACT: This paper aims to analyze the short story "A Terceira Margem do Rio‖ by
João Guimarães Rosa. It highlights the importance of imaginary elements in the
construction of narrative and characters. The work will use the concept of "imagination"
developed by the French philosopher Jean-Paul Sartre, analyzing how the characters of
the tale use this imagination in order to relate to the world and each other. Thus, the
work will focus on elements such as the "father‘s absent presence" ; the creation of an
idealized father figure (replacing the figure of the absent patriarch) by the son-narrator;
and the final conflict between real and imaginary. Finally, the essay will suggest to see
the "absent father" as an illustration which can be used to help understand the concept
of "mental image" according to Sartre‘s definition.
Key-words: imagination; Guimarães Rosa; Sartre: fancied (imaginary); real
Introdução
O escritor mineiro João Guimarães Rosa publicou, no ano de 1962, na
primeira edição do livro Primeiras Estórias, o conto ―A Terceira Margem do Rio‖,
que apresentou ao mundo a intrigante história de uma família que, morando às
margens de um rio caudaloso, ―de não se poder ver a forma da outra beira‖
(ROSA, 2001, p. 80), tem sua vida completamente alterada pela decisão do pai
de ir viver em um barco, sobre as águas desse mesmo rio.
A escolha incomum do pai, cujas motivações permanecem um
mistério mesmo após o final do conto, dá início a uma série de
questionamentos por parte dos demais integrantes do núcleo familiar, que
se veem obrigados a, assim como fez o patriarca, criar/inventar um novo
modo de viver.
58
Embora curto, o texto em questão é riquíssimo, dando margem
(com trocadilho, por favor) a inúmeras interpretações, em especial sobre
qual seria esta misteriosa ―terceira margem‖, o lugar/não-lugar para onde
o pai foi, sem jamais retornar.
O próprio Guimarães Rosa reconheceu, em carta enviada ao seu
tradutor para o francês, o livro Primeiras Estórias como sendo uma ―obra
aberta‖, conforme a definição de Umberto Eco (2001). Assim, o autor
encarava sua obra como naturalmente sujeita a mais de uma
interpretação:
Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o 'Primeiras
Estórias' é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma
série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume
pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica
espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um
ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista. Há pouco, com
poucos dias de diferença, um crítico, aqui, aludiu ao que há
nele, como sendo um 'transrealismo', e outro crítico dava à
coisa a denominação, aparentada, de 'realismo cósmico'. É um
livro contra a lógica comum, e tudo nele parte disso. Só se
apóia na lógica para transcendê-la, para destruí-la. (ROSA,
1963, internet)
Assim, diante de um conto que pode abrigar várias interpretações,
iremos abordar como a imaginação dos personagens determina os rumos
de suas vidas e da própria narrativa, já que esta imaginação modifica as
vidas de todos, de formas muitas vezes radicais. Assim, tentaremos
chegar a uma resposta para a seguinte questão: ―Qual é a importância
dos elementos imaginários na construção dos personagens e do lugar do
conto?‖.
Para isso, levantamos as seguintes hipóteses:
- A fuga do pai é uma catalisadora para a constituição de um outro
modo de vida/mundos possíveis: Conforme comenta Tania Rivera:
Nessa falta de beira, nesse rio-tempo sem direção nem
palavra, a partida do pai vem estabelecer uma margem. O pai
parte e reparte a cena do conto, corta o espaço da casa em
relação a um outro espaço inapreensível, disruptivo, duplicando
em outro espaço – esse ―subjetivo‖, se quisermos, o da
vivência do narrador – uma marca fundamental. (RIVERA,
2005, p. 83)
59
- A imaginação do filho cria a imagem do pai ―ausente‖: Conforme a
definição de Jean-Paul Sartre:
O ato de imaginação, como acabamos de ver é um ato mágico.
É um encantamento destinado a fazer aparecer o objeto no
qual pensamos, a coisa que desejamos, de modo que dela
possamos tomar posse. Nesse ato, há sempre algo de
imperioso e infantil, uma recusa de dar conta da distância, das
dificuldades. (SARTRE, 1996, p. 165)
- Ao deixar a casa e o convívio com as pessoas, o pai se funde
com o rio, tornando-se um com ele: Nas palavras do conto: ―(...) nosso pai
nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite,
da forma como cursava no rio, solto solitariamente.‖ (ROSA, 2001, p. 81)
Por trás de todas estas hipóteses, está a capacidade do ser
humano (simbolizados pelos personagens) de se inventar/reinventar,
criando e se adaptando às circunstâncias.
Imaginação e Memória
Quando analisamos o ponto de vista do filho-narrador, tratamos,
principalmente, sobre a questão da imaginação, já que o mesmo cria, em
sua mente, a imagem do pai que se ausentou. Jean-Paul Sartre definia a
imaginação como sendo o ―conhecimento por imagens‖ (SARTRE, 2008,
p. 15). Estas imagens, que ele chama de imagens mentais, são utilizadas
pela nossa mente como forma de apreender o mundo, permitindo que nos
relacionemos com objetos que não estão sendo percebidos com nossos
sentidos físicos (seja aqueles que não têm existência como aqueles que
existem, mas que não estão, atualmente, presentes), presentificando,
assim, objetos ausentes . Segundo Sartre:
A apreensão desses objetos faz-se sob a forma de imagens, o
que quer dizer que eles perdem seu sentido próprio para
adquirir um outro. Em vez de existir para si, no estado livre, são
integrados numa nova forma. A intenção serve-se deles como
meio de evocar seu objeto, tal qual nos servimos de mesas
60
moventes para evocar os espíritos. Servem como
representantes do objeto ausente, mas sem que suspendam
essas característica dos objetos de uma consciência
imaginante: a ausência. (SARTRE, 1996, p. 36)
É precisamente esta função da imaginação (a representação de algo
ausente) que o filho (assim como sua mãe e seus irmãos) retratado no conto
utiliza de seu imaginário para jamais permitir que seu pai, mesmo distante dos
olhos, deixe de fazer parte de sua vida, de seu dia a dia, o que fica claro na
seguinte passagem:
A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais
gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo
dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a
mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do
temporal. (ROSA, 2001, p. 83)
A questão da Memória também é importante no conto, já que
permeia toda a narrativa, como no seguinte trecho: ―Não, de nosso pai
não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que
esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória,
no passo de outros sobressaltos‖ (ROSA, 2001, p. 82-83). O filho conta a
história como se falando de acontecimentos distantes, ocorridos em um
passado remoto, trazendo uma narração que, ao final, revela estar sendo
feita em seu leito de morte, como podemos deduzir pelo final do conto:
―Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo.
Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me
depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para,
de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio‖ (ROSA,
2001, p. 85). Ele fala daquilo de que se lembra, e destaca, ao longo da
narrativa, passagens que ficaram marcadas fortemente em sua memória, por
causa de seu grande impacto emocional: ―E esquecer não posso, do dia em que
a canoa ficou pronta‖(ROSA, 2001, p. 80).
É a partir dessas lembranças, pois, que o nosso narrador vai
montando sua história. É importante destacar, porém, que segundo a
visão de Sartre, memória e imaginação são coisas inteiramente diversas:
61
Certamente, a lembrança parece, de vários pontos de vista,
muito próxima da imagem, e às vezes podemos extrair nossos
exemplos da memória para compreender com maior clareza a
natureza da imagem. Se evoco um acontecimento de minha
vida passada, não o imagino, lembro-me dele. Ou seja, não o
coloco como dado-ausente, mas como dado-presente no
passado. (…) Existe como uma coisa passada, o que é um
modo de existência real entre outros. (SARTRE, 1996, p.236)
Assim, ele afirma que a memória faz parte do processo de
constituição da imagem, mas não é, ela mesma, uma imagem.
No conto, uma das mais fortes características do personagemnarrador é justamente sua incapacidade de se libertar do passado, já que
o mesmo chega a afirmar não ter a capacidade de se esquecer dos fatos
vivenciados: ―E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou
pronta‖(ROSA, 2001, p. 80 – grifo nosso). Ao destacar sua incapacidade
de esquecer, o narrador explicita sua prisão em relação ao passado, que
o impede de viver o presente e avançar rumo ao futuro.
REFERÊNCIAS
ECO, Umberto. Obra Aberta: Forma e indeterminação nas poéticas
contemporâneas. (Tradução de Giovanni Cutolo do original Opera Aperta, 1962).
São Paulo: Perspectiva, 2001.
RIVERA, Tania. Guimarães Rosa e a psicanálise: ensaios sobre imagem e
escrita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
ROSA, João Guimarães. Carta de 14 de outubro de 1963 endereçada a
Jean-Jacques Villard. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/30/mais!/10.html>. Acessado em
07/09/2014.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
62
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação (tradução de Paulo Neves do original
L'imagination). Porto Alegre: L&PM, 2008.
SARTRE, Jean-Paul. O imaginário: Psicologia fenomenológica da imaginação
(Tradução
de
Duda
phénoménologique
de
Machado
do
l'imagination,
63
original
1940).
L'imaginaire:
São
Paulo:
Psychologie
Ática,
1996.
MORAL DA HISTÓRIA- A LITERATURA INFANTIL COMO PROCESSO
DE FORMAÇÃO, POR LÚCIA MIGUEL PEREIRA
Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida (UNIMONTES)
RESUMO: A escritora Lúcia Miguel Pereira foi uma das pioneiras mulheres a investir na
crítica literária brasileira. Ademais dessa sua reconhecida função, a mesma também
investiu na escrita romanesca não adquirindo muito destaque nessa função. Ao lado de
quatro romances intitulados Maria Luísa, Em Surdina, Amanhecer e Cabra-cega,
destinados ao público adulto nos quais a autora destaca a condição social da mulher nos
primeiros cinquenta anos do século XX, escreveu ainda, entre os anos 1939 e 1943,
títulos como A fada menina, Na floresta mágica, Maria e seus bonecos e A filha do Rio
Verde, narrativas que visavam a agradar a imaginação infantil. Como esse acervo infantil
encontra-se desaparecido, podemos depreender o posicionamento da escritora mineira
acerca da literatura para crianças através de registros críticos publicados em jornais do
Rio de Janeiro. Neles, revela que a arte literária pode ser entendida como um
instrumento de formação, isto é, um elemento pedagógico que evidencia, indica e
transforma a condição da criança/leitora.
Palavras-chave: ficção, crítica, literatura infantil
RESUMEN: La escritora Lúcia Miguel Pereira fue una de las pioneras mujeres a investir
en la crítica literaria brasileña. Además de su reconocida función, la misma también fue
novelista no teniendo mucho destaque en esa función. A lo largo de cuatro novelas
rotuladas Maria Luísa, Em Surdina, Amanhecer e Cabra-cega, destinadas al publico
adulto en los quales la autora destaca la condición social de la mujer en los primeiros
cincuenta años del siglo XX, escribió, entre los años 1939 y 1943 títulos como A fada
menina, Na floresta mágica, Maria e seus bonecos e A filha do Rio Verde, narrativas que
objetivan agradar a la imaginación de los niños. Como esta colección infantil no se
encuentra disponible, podemos inferir la posición de la escritora de literatura para niños a
través de los registros críticos publicados en periódicos de Rio de Janeiro. En ellas, se
revela que el arte literario puede ser entendido como una herramienta de formación
pedagógica que cambia la condición del niño/lector.
Palabras clave: ficción, crítica, literatura infantil
É preciso destacar, não somente no âmbito brasileiro, o foco dado à
literatura destinada a crianças marcava contornos de comportamentos
desejados, sobretudo pela classe dominante. Sendo assim, a literatura
infantil brasileira nasceu sob a influência dos contos de fadas e folclóricos
voltada para a explícita intenção moralizante. Contudo, no Brasil, há
poucos registros de escritoras que se empenharam nesse tipo de
literatura na transição do século XIX para o XX. Do período que
compreende os anos de 1890 a 1930, destacam-se as escritoras Carmen
64
Dolores, Júlia Lopes de Almeida e Madame Chrysanthéme, psedônimo de
Cecília Bandeira de Mello Vasconcellos e Lúcia Miguel Pereira.
Esta última é bastante conhecida como crítica literária, historiadora
da literatura, biógrafa de Machado de Assis e de Gonçalves Dias, porém
pouco lida como romancista, sendo que atuou na escrita para adultos e
para crianças. Desse legado romanesco, temos contato com os quatro
romances que visam à reflexão da condição social da mulher Maria Luísa,
Em Surdina, Amanhecer e Cabra-cega, mas foi-nos cerceada a
possibilidade de leitura dos quatro livros escritos para crianças intitulados,
A fada menina, Na floresta mágica, Maria e seus bonecos e A filha do Rio
Verde.
Produzidos
entre
1939
e
1943,
essas
obras
infantis
desapareceram das estantes dos leitores, sendo que, consequentemente,
nenhum estudo críticos tenha sido realizado sobre eles.
Já que não nos foi possível, até o presente momento, contatar essa
produção
infantil
da
autora,
resta-nos
refletir
acerca
de
seu
posicionamento sobre este tipo de literatura nos registros deixados como
crítica de textos de ficção, deixados entre as décadas de 30 e de 40 em
jornais e revistas. Entendendo que este público merecia uma atenção
especial dos escritores, Lúcia Miguel Pereira, além de focalizar as
crianças em alguma de suas ficções, expõe, sob teor crítico, sua leitura
sobre a magia que cerca o mundo infantil.
Distinguindo a literatura infantil daquela que visa a alcançar o
público adulto, Lúcia Miguel Pereira, escrevendo para o Boletim de Ariel
do Rio de Janeiro em julho de 1932, argumenta:
Poder escrever, não só para criança, mas ainda como criança,
é um precioso dom. Todos nós poluímos tão depressa a
frescura de imaginação, a espontaneidade necessárias para
isso. E, sobretudo, perdemos o sentido do ilimitado, das
possibilidades sem fim, quase do milagre, que torna imenso e
riquíssimo o universo infantil (PEREIRA, 1992, p. 243-244).
A autora destaca acima a distinção entre se escrever como e para
crianças, deixando entrever a inocência presente nos textos infantis, já
65
perdida pelos adultos. Ressalta também a pluralidade de sentidos, das
múltiplas possibilidades de leituras que o universo infantil propicia.
Contudo, é preciso ter presente que o texto literário, seja escrito
para adultos seja escrito para crianças, cumpre uma prática ética e social.
Por conseguinte, é recheado de ideologia, podendo ou não se
comprometer com o mundo referencial. Nesse sentido, a arte é social,
sofrendo e exercendo influência do e sobre o meio. Para Candido,
A arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores
do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de
sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático,
modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou
reforçando neles o sentimento dos valores sociais (CANDIDO,
2000, p. 20).
Sob esse pressuposto de que a arte influencia e é influenciada, é
que Lúcia Miguel Pereira trata a importância da literatura infantil.
Relevante anotar que nos registros da década de 30, o viés do
pensamento crítico se estrutura em torno da beleza da arte escrita para
crianças. Segundo ela, ―as crianças são muito sensíveis ao belo‖
(PEREIRA, 1992, p. 245) e só lhes interessam os livros que se vivem,
mais que aqueles que se lêem. Completa: ―Não sei bem em que residirá
essa diferença, mas é sensível; talvez esteja na qualidade da emoção que
comunicam, mais intelectual nos primeiros, nos últimos mais direta, mais
elementar, isto é, influindo nos elementos, nas fontes da sensibilidade‖
(PEREIRA, 1992, p. 245).
Ainda para a escritora, o belo e o deslumbramento em literatura
infantil se dão quando o maravilhoso e o quotidiano se sucedem sem
transição aparente. O extraordinário e a surpresa tornam o ambiente do
livro encantador. Citando como exemplo, Lúcia Miguel Pereira argumenta
que uma obra que merecia ser traduzida para a alegria das crianças
brasileiras por compor todos esses requisitos que conquistam as crianças
é o livro tcheco-eslovaco dos irmãos Capek, intitulado no inglês de Fairy
Tales. Nele, é evidente uma sensação de estar vendo o impossível
66
realizado e é notada uma dissolução das barreiras de aliar a fantasia às
coisas da vida comum, o que torna a obra muito agradável, inclusive para
os adultos.
Ainda ali, na década de 30, a crítica traz a problemática sobre os
tipos de textos adequados ao público infantil. E escreve, para o Boletim
de Ariel,
há quem condene, para a infância, a leitura dos contos de
fadas... Mas esses devem ter tido uma triste meninice, para
ignorarem assim que, nessa idade, tudo é conto de fada. Um
sabugo de milho é uma boneca, um cabo de vassoura é um
cavalo (PEREIRA, 1992, p. 246).
Ao destacar a importância da fantasia no universo infantil,
entendendo a relação da imaginação com a realidade, e ressaltando
também a relevância do texto infantil comunicar o mundo de fantasia
vivido pela criança. Ao exemplificar como os contos de fadas povoam o
universo infantil, faz uma alusão à representação tão bem expressa por
Monteiro Lobato no Sítio do Picapau Amarelo entre os anos 1920 até
1947, transformando objetos do cotidiano em personagens da imaginação
do pequeno público leitor. Nesse sentido, apresentando-se como um dos
motivadores de que a leitura para crianças abordassem temáticas do
próprio universo infantil, Monteiro Lobato se configura num dos mais
importantes escritores de literatura infantil do Brasil. Na trilha da prática
lobatiana, Lúcia Miguel elege essa destruição entre as barreiras dos fatos
comuns e a fantasia como um elemento primordial na concepção de um
bom livro para agradar o pequeno público. Antonio Candido, em artigo
intitulado ―Lúcia‖, destaca que a crítica, ―desde menina manifestou muita
capacidade fabulativa, criando um personagem, a princesa Rosa Violeta,
protagonista das histórias que inventava para as irmãs e apareceria mais
tarde nos seus belos contos infantis‖ (CANDIDO, 2004, p. 129).
É importante ressaltar que a literatura para crianças ganha força no
Brasil a partir dos escritos de Monteiro Lobato, contudo, segundo Ana
67
Maria Mauad (1999), os princípios da educação e instrução oitocentista
no Brasil registra que, paralela à literatura de caráter universal, prevalecia
uma literatura de cunho moralista, própria do século XIX, direcionada à
infância e à adolescência: formadora de caráter, de moral identificável,
com modelos de virtude, amor e desprendimento a serem seguidos pelas
crianças e jovens. A própria literatura romântica cumpria um modelo que
visava à educar as mocinhas dentro de um paradigma patriarcal.
Nos escritos para crianças, um dos matizes orientadores dessa
produção esteve muito relacionado à preocupação com o moralismo, ou
melhor, com o caráter didático que esses textos apresentam. Sobre essa
questão, Lúcia Miguel Pereira escreve para o jornal Correio da Manhã, do
Rio de Janeiro, no ano de 1945:
O problema do moralismo em literatura assume nos livros
infantis feição particularmente grave. De certo modo, toda obra
de ficção é moralista, já que, patenteando uma concepção de
vida, encerra forçosamente um sentido moral; por isenta, por
pouco concludente que seja, revela, mesmo a despeito do
autor, uma orientação tanto mais sugestiva e convincente
quanto mais involuntária e espontânea (PEREIRA, 1994, p.
52).
Entendendo que todo texto de ficção pretende-se moralista, se não é
escrito prioritariamente com essa função a mesma exerce quando
apresenta certa concepção de vida e espera-se que tal mensagem seja
assimilada pelo leitor. Como salienta Pereira, nas histórias para crianças,
os riscos de transgredir os limites entre o desejo de influenciar e a tomada
de posição, entre o moralismo e a atitude moral é mais acentuado que em
outras obras.
Lúcia Miguel Pereira também esclarece que, para um adulto, um
livro pode ser apenas fonte de entretenimento enquanto para uma criança
pode exercer função educativa. Completa:
Para um adulto, um livro pode ser mera distração, pode ser
simples documento, pode ser aceito parcialmente ou
68
parcialmente rejeitado: para um menino, que está sempre,
inconscientemente, aprendendo e assimilando, é muito mais
que isso: é um contato com a existência, é uma experiência
nova, é uma abertura para o mundo, é alguma cousa de vivo
que se incorpora à sua sensibilidade; desde que o interesse,
que lhe consiga captar a atenção, terá sobre ele uma influência
de cujos resultados não sabemos bem aquilatar, ignorantes
como somos das condições e disposições de cada jovem leitor
(PEREIRA, 1994, p. 52).
Compreendendo as dificuldades de se mensurar os limites da
assimilação de um texto por um jovem leitor, a crítica assegura que as
crianças são disponíveis e receptivas às leituras, mas não são passivas.
Dessa forma, ―o simplismo das chamadas leituras edificantes, onde se
pretende mostrar a virtude recompensada e o erro castigado provém de
um preconceito, de se julgar que as crianças são completamente
disponíveis, passivamente receptivas‖ (PEREIRA, 1994, p. 52). Para
exemplificar, a crítica argumenta que a reação de uma criança à leitura de
um texto pode surpreender. Um texto que se queira edificante pode
marcar na criança mais os traços do mal e esta nem perceber a lição que
lhe tentam dar. Segundo Pereira, é comum uma criança se ater com mais
acuidade aos detalhes de uma narração, repetindo seus pormenores, que
ressaltar seu sentido moral, por isso resulta inútil o moralismo.
Sem dúvida, a preocupação de ser sadio, de mostrar da
existência os aspectos mais nobres, não deve faltar ao gênero
dedicado a quem tem diante de si a vida toda, e precisa sentirse confiante. Mas pureza e otimismo são uma coisa, e
moralismo outra. A intenção de fornecer bons exemplos, de
inspirar sentimentos elevados será louvável, mas não basta e
tornar-se-á mesmo, em alguns casos, contraproducente – pois
é preciso não esquecer o espírito de contradição das crianças
(PEREIRA, 1994, p. 53).
Sem se prender ao moralismo, Lúcia Miguel Pereira entende que o
importante é que o livro saiba comunicar uma clara e alegre impressão de
sinceridade e de liberdade, de limpeza espiritual em todas as suas
instâncias, nas palavras escolhidas, na harmonia da frase, em cada
personagem em cada cena e nos conceitos expedidos, não ficando o
69
moralismo apenas na conclusão. Através de sensações intelectuais e
estéticas, buscar desenvolver o raciocínio em leituras agradáveis e
risonhas, que os façam pensar. Marina Warner explica que ―os narradores
dos contos de fadas sabem que um conto, para cativar, deve levar os
ouvintes ao prazer, ao riso ou às lágrimas, pois se falharem, ninguém
mais vai querer ouvir suas histórias‖ (WARNER, 1999, p. 449).
Na trilha dessa mesma reflexão que orienta o pensamento crítico da
transição do século XIX para o XX, Lúcia Miguel põe em relevo o gosto
pela leitura que se deve despertar no pequeno leitor. Para ela, muitos
livros incorrem no erro de serem infantis demais. Linguagens muito
simplificadas, temas banalmente cotidianos que não estimulam a
imaginação. Possível perceber como as crianças se interessam por obras
cujo alcance não apreendem inteiramente e que não foram escritas para
elas como Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver, Dom Quixote e até
certas peças de Shakespeare e de Corneille. Para as crianças, ―é pelo
senso poético que, instintivamente, se comunica com o universo; o
impossível não existe para ele, o maravilhoso lhe é tão próximo como o
quotidiano‖ (PEREIRA, 1994, p. 53). Como salienta Bruno Bettelheim, a
criança sabe que ―a verdade dos contos de fadas é a verdade da nossa
imaginação‖ (BETTELHEIM, 1980, p. 148).
E, nesse sentido, Lúcia Miguel Pereira já, no ano de 1945, critica o
fato de pedagogos combaterem as histórias de contos de fadas. Para ela,
―querer expulsar o irreal do mundo infantil é tentar - em vão- reduzir-lhe as
dimensões, abafar-lhe as ressonâncias, empobrecê-lo, amesquinhá-lo;
querer subordiná-lo estritamente à lógica é desconhecer o ímpeto criador
da imaginação ainda não sofreada pela vida‖ (PEREIRA, 1994, p. 53).
Diante do exposto, é preciso destacar que Lúcia exprime, nos textos
críticos examinados, a distinção de abordagem no texto infantil. Nesses,
antes de apresentar personagens que devem se comportar em situações
de virtudes, devem expor o campo de atuação infantil, seu universo
mágico, uma vez que a maior contribuição da literatura para crianças é o
70
despertar do gosto pela leitura, do desenvolvimento da imaginação, pois
esse universo é que fala à fantasia e aos sentidos das crianças, sendo
esta, de fato, a moral da história.
REFERÊNCIAS
BETTELLEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. (Trad. Arlene
Caetano) Rio de Janeiro: Paz e terra, 1980.
CANDIDO, Antonio. Lúcia. In: O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro
sobre azul, 2004. p. 127-132.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história
literária. 8.ed. São Paulo: Queiroz, 2000.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. (Trad. Hildegard
Feist) São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In:
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo:
Contexto, 1999. p. 137-176.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A leitora e seus personagens: seleta de textos
publicados em periódicos (1931- 1943), e em livros. Prefácio, Bernardo de
Mendonça; pesquisa bibliográfica, seleção e notas, Luciana Viégas- Rio
de Janeiro: Grafia Editorial, 1992.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Lúcia Miguel Pereira- escritos da maturidade.
Seleta de textos publicados em periódicos (1944- 1959), e em livros.
Pesquisa bibliográfica, seleção e notas, Luciana Viégas- Rio de Janeiro:
Grafia Editorial, 1994.
WARNER, Marina. Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus
narradores. (Trad. Thelma Médici Nóbrega) São Paulo: Companhia das
letras, 1999.
71
ESCRITURAS E TECITURAS: A CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA
SOB A ÓTICA DO ESCRITOR MONTESCLARENSE JOÃO LUIZ
MACHADO LAFETÁ
Enólia Nunes Ferreira Lopes
RESUMO: A crítica literária brasileira tem ao longo dos anos apresentado períodos de
intenso trabalho intelectual, com renomados autores e obras. Dentre estes, se encontra
o escritor montesclarense João Luiz Lafetá. Pretende-se, nesta pesquisa, evidenciar na
obra de Lafetá, os elementos que caracterizam a sua crítica, no que diz respeito aos
pressupostos metodológicos de gênero, de linguagem, de perspectivas histórico-sociais,
dentre outras nuances. Pesquisar em sua produção os modos como se apresentam as
dimensões marxista, psicanalítica e da teoria estética e, como se dá a em seus
construtos, a articulação dos nexos essenciais entre subjetividade e história social,
técnica literária e consciência política.
Enfim, revelar ao universo acadêmico norte-mineiro, o legado de Lafetá, enquanto
estudioso da literatura nacional, para a qual ele se faz tão importante, constitui o foco
deste projeto.
Palavras-chave: Crítica literária. João Luiz Machado Lafetá. Montesclarense.
ABSTRACT: The brazilian critical literature has, over the years, presented periods of a
intensive intelectual work, with renowned authors and works. Among them, is the miner
writer João Luiz Machado Lafetá. In this research, we intende to present the elements
that can characterize his criticism, with regards to his methodology, genre, language and
social-histhoric perspective, to research in his production, the form that he presents the
marxism, phsychoanalytic and the esthetic theory and how is possible to see in it, the
articulation between subjetivity and social-history, technical literature and political
conscience.
Finally, to show to the academic universe, the Lafetá collected work, as a researcher of
the brazilian literature, in,a field where he is so important, is the focus of this project.
Key-words: Critical. Literature. João Luiz Machado Lafetá. Montesclarense
Para Leyla Perrone-Moisés (1982, p.163), o discurso crítico dos
escritores é o mais investido, o mais interessado, o mais implicado e o de
maiores consequências: porque orienta a produção de suas próprias
obras, dando assim continuação à Literatura. Esta autora fala sobre a
falta de critérios estáveis que começaram a faltar aos escritores
modernos, desde que as academias começaram a se calar e as obras
deixaram de surgir sob a expectativa de um critério estável, sejam de
caráter moral, de gênero e de estilo e passaram a investir no desejo de
escrever com certo conforto.
72
Percebe-se então, que, no partir do Romantismo, os críticos
literários se valem de nova maneira de se expressar sobre a obra
avaliada, sejam estas obras do seu próprio tempo ou que tenham sidos
escritos em época anterior. Esta nova postura, ou esse renovar da crítica
literária, passa então a assumir características diversas, seja esta crítica
amadora ou profissional, o que parece contribuir para a cercear a
liberdade no uso de determinados critérios para a qualificação da obra,
cuja justificativa se assenta no fato de tentar se precaver quanto ao
julgamento a emitir. Tal prática, se concretiza no romantismo, de maneira
que então passe a predominar na análise, a possiblidade de um novo
julgamento, e que contemple o novo, o inusitado, o diferente, de modo a
romper com o modelo clássico e suas regras.
A crítica literária nacional, ao longo de sua história, tem
apresentado períodos de intenso trabalho intelectual, com o surgimento
de grandes nomes. Não caberia aqui nomeá-los, sob o risco de se
cometer injustiças. Dentre os vários autores que poderíamos citar, há um
que,
segundo
o
estudioso
Antonio
Candido,
(2004,
p.14)
tem
reconhecidamente, por parte de colegas, alunos e amigos, qualidades
raras e originais, de homem e de intelectual, cuja ausência continua
causando uma mágoa não cicatrizada. Este é João Luiz Machado Lafetá,
que parece ser, aos olhos da comunidade acadêmica norte mineira,
pouco revelado. Desnudar a obra de Lafetá, o seu legado enquanto
estudioso e crítico da literatura nacional, para a qual ele se faz tão
importante, constitui o foco deste trabalho.
O montesclarense João Luiz Machado Lafetá foi um nome atuante
na literatura brasileira nas décadas de 1970 e 1980 e construiu uma obra
rica e elaborada sobre sólidas raízes, tornando-se referência obrigatória
quando se refere à crítica literária neste país. Segundo Antonio Candido,
seu professor e orientador de estudos na Universidade de São Paulo:
73
A sua contribuição à crítica literária é muito importante,
sobretudo pela argúcia das análises e das interpretações. O
seu livro 1930: a crítica e o modernismo (1974) definiu de
maneira original o movimento que, na literatura contemporânea
do Brasil, deu lugar à passagem do ―projeto estético‖ dos anos
de 1920 ao ―projeto ideológico‖ dos anos de 1930, processo
que localizou, definiu e nomeou, incorporando seus conceitos,
o seu modo de ver ao cânon crítico. (PRADO, 2004. p. 11).
Desta maneira, constitui objetivo desta pesquisa, buscar em sua
escrita, as influências que se estabelecem pelas nuances do marxismo,
da psicanálise e da teoria estética, dimensões caracterizadoras da sua
obra, que interlaçadas, se constituíram em uma visão integrada e
instigante da crítica literária, permeada pelas suas múltiplas visões e
experiências sociais e culturais.
Segundo Prado (2004. p. 15) Lafetá
construiu uma perspectiva crítica extremamente reveladora, capaz de
surpreender na articulação da forma os nexos essenciais entre
subjetividade e história social, técnica literária e consciência política.
Em A dimensão da noite, o escritor Antonio Arnoni Prado (2004)
reuniu mais de quarenta textos — muitos deles inéditos em livro — que
desenham a trajetória intelectual completa de Lafetá, das primeiras
análises de peso nos anos 1970 até sua morte prematura em 1996.
Nesta, Lafetá traz ensaios penetrantes sobre o modernismo brasileiro,
com textos que analisam a obra de Mário de Andrade, Graciliano Ramos,
Ferreira Gullar ou Rubem Fonseca, alguns deles inéditos, mas não menos
intensos, em que numa narrativa clara, bem construída, e sobretudo,
inteligentes. Com a astúcia que lhe é facilmente perceptível e peculiar,
procura apontar, numa crítica incisiva e penetrante, os aspectos em que
as produções destes escritores, seus contemporâneos, avançaram ou se
confrontaram com os novos tempos.
Muitos são os indicativos da qualidade da obra de Lafetá. Para
Carlos Tavares (2005, p.8) ele faz parte da uma linhagem rara, que
agrega nomes como Oswaldino Marques, Davi Arrigucci Jr, Silviano
Santiago, Antônio Olinto, Alexandre Barbosa e Roberto Schwarz.
74
Para Lafetá, a literatura produzida na década de 1930 foi uma
continuidade daquilo que estava sendo produzido na década de 1920, e o
que diferencia os dois momentos é uma ênfase de foco. Segundo este, no
modernismo a ênfase estava voltada para a questão estética e durante os
anos 30 esse olhar teria sido deslocado para a questão ideológica.
Acredita-se que nesta pesquisa seja preciso ir em busca de outros
nomes, com o objetivo de construir os argumentos necessários à
fundamentação teórica, tendo em vista que revelar a crítica presente na
obra de João Luiz Machado Lafetá não é tarefa das mais simples. Pois
para Candido (2002)
O fato, porém, da pessoa do crítico ser a base do processo crítico,
não quer dizer que ela seja a sua razão de ser, nem que deva ser o seu
aspecto principal. Muito pelo contrário. Creio mesmo firmemente, que o
trabalho do crítico só começa quando ele ultrapassa a sua pessoa, num
esforço e colocar em primeiro plano aquilo que lhe parece a realidade da
obra estudada. Rejeito, portanto, integralmente – como por mais uma vez
já o tenha feito em artigo – o conceito impressionista que faz da crítica
uma aventura da personalidade, um passeio através das obras e dos
autores com o intuito exclusivo de penetração e de enriquecimento
pessoal.
Parece, então, que quando se fala em João Luiz Lafetá, os autores
os quais conviveram com ele e com sua obra, têm sempre considerações
importantes a fazer. Com sua morte, em 1996, Tavares (2005) diz que
―abriu-se um dos claros mais lamentados na vida universitária brasileira,
referindo-se à falta do Lafetá professor, crítico e ser humano de qualidade
excepcional que era‖.
Diante do desafio de expor as ideias de Lafetá, com o propósito de
discutir o lugar deste crítico no painel dos estudos literários brasileiros
sobre o modernismo, não se pretende fazer um julgamento da obra deste
estudioso, mas, contrapor a sua crítica, a partir das obras de outros
autores, cujos critérios de análise se assemelhem aos adotados pelo
75
montesclarense, pois segundo Derrida (1930), a crítica literária como
julgamento tornou-se teoricamente impossível. E ainda, para completar
este argumento, buscar nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, sobre os
críticos de inspiração psicanalítica ou psicológica, que buscam muito mais
nas obras, para muito mais do que as verdades que elas revelam, sendo
que o valor dessa é proporcional à capacidade do escritor em revelar
essas verdades: [...] ―Bons tempos do humanismo: os críticos valorizavam
a obra em função do que ela nos ensinava‖. (PERRONE-MOISÉS, 1982,
p.162)
Assim, pelas páginas de A dimensão da noite, de 30: Crítica ao
Modernismo (2004) e outras obras da escritura de Lafetá, pretende-se
buscar o que este autor nos revela sobre as possibilidades de releitura de
textos de autores por ele adotados. Os critérios a serem adotados para
esta análise serão definidos na medida em que a pesquisa seja feita, uma
vez que será necessário como procedimento metodológico, realizar um
levantamento bibliográfico, de toda a obra com caráter de crítica literária
do autor, sua trajetória enquanto escritor, as influências que podem estar
presentes em sua análise, para se tentar elencar os elementos pelos
quais ele se vale, em seus procedimentos de escritor-leitor, na releitura
das obras. E tentar, assim, expor os aspectos que se tornam relevantes
para compreender o fio condutor da sua análise. A proposta aqui feita,
parte do pressuposto de que [...] um texto se reescreve indefinidamente à
medida que é sucessivamente lido e, ainda mais, que ele se escreve no
momento em que é lido, já que a leitura é condição da escrita e não o
inverso, como antes se postulava (Roland Barthes, 1966, p.66)
É sabido que o papel do crítico literário, na história da literatura brasileira,
já passou por momentos gloriosos, como também por aqueles em que
recebeu estigmas como inferior, aleijado, impotente. Eis a desoladora
conclusão de um colóquio sobre a crítica, do ano de 1966, de Georges
Poulet, citada por Perrone-Moisés:
76
O crítico não é aquele que rouba a poesia do poeta, que se
enfeia com as plumas do pavão, que, por um dia ou uma hora,
toma o lugar do rei? [...] Um cego a que se emprestam olhos,
um não-poeta que recebe o dom da poesia, eis o que é um
crítico [...]. Digamos, em suma que eu me substituo por alguém
melhor do que eu‖ (PERRONE-MOISÉS, 1978).
Para Perrone-Moisés, esta ainda é a atitude de muitos críticos
contemporâneos. Mesmo que haja questionamentos tão contumazes
sobre a crítica literária, que há muitos anos são assunto dos textos
especializados, nas várias leituras em que se busca argumentos sobre o
tema, o que se percebe, pode-se arriscar dizer, é que o crítico, ao fazer
uma análise da obra, compromete-se definitivamente com ela. O leitor
passa, então, passa a compor o texto, é o elo de ligação entre o escritor e
o mundo. Vê-se que o papel do crítico então, tem uma importância
imensurável para o autor, pois ele, como o leitor, é que garante a
permanência e a continuidade da obra.
Essa trajetória da crítica literária no Brasil, permeada por
momentos de grande notoriedade e por outros de insignificância, parece
ter influência direta do momento histórico-social do país. É possível
perceber que da crítica de rodapé à crítica universitária, as tensões entre
o valor do crítico e seu papel social tem perpassado por momentos
distintos. Tendo em vista esses altos e baixos do papel do crítico e o
contexto em que se realizam os seus construtos analíticos, o modo como
influencia e sofre influência, propõe-se aqui, uma investigação científica
de caráter bibliográfico e documental que tenha como objetivo revelar
através das obras de Lafetá, qual foi o seu legado para a história da
crítica literária brasileira. Embora este seja mineiro de Montes Claros,
percebe-se que foi fora daqui, da sua cidade Natal, que construiu a sua
história, tendo primeiro atuado na Universidade de Brasília - UNB e
depois na Universidade de São Paulo - USP, dois dos maiores centros
acadêmicos brasileiros.
Nesta empreitada, constitui objetivo material, a elaboração escrita,
sob o molde científico, das características da produção crítico-literária
77
deste montesclarense, através dos livros e ensaios produzidos por este
durante a sua vida acadêmica, de modo a investigar, catalogar e propor
uma interpretação das suas obras. Através de levantamentos de acervos,
promover a leitura destas, e levantar os elementos norteadores da sua
crítica, como linguagem, gênero, contextos, dentre outros aspectos que
possam revelar, caracterizar e fundamentá-la. Acredita-se que, com esta
metodologia de pesquisa, seja possível o acesso à obra de Lafetá e a
manipulação das informações acerca do seu trabalho. E ainda, comparar
a literatura crítica de Lafetá com outras críticas de escritores brasileiros,
contemporâneos do mesmo e de renome nacional, a serem definidos
durante o levantamento bibliográfico e evolução dos estudos. O Estudo
bibliográfico permitiria, também, meios para ―definir, questionar, e
responder hipóteses já levantadas, ou mesmo suscitar outras que, ao
serem exploradas, podem trazer informações novas, importantes
indispensáveis ao estudo‖ (MANZO, 1971, p. 32 apud MARCONI;
LAKATOS, 2003, p. 44).
Outro caráter presente na pesquisa é a análise documental, uma
vez que buscará arquivos existentes sobre a vida e obra de Lafetá,
através da sua família, amigos, parentes, que possam contribuir para o
enriquecimento da mesma, assim como para comprovação dos fatos.
Conforme Cervo e Bervian (2002, p. 66), neste tipo de pesquisa
investigam-se os documentos para ―descrever e comparar modelos usos
e costumes, tendências, diferenças e outras características‖. As fontes
desta pesquisa podem ser extraídas de documentos escritos ou não
escritos, tais como depoimentos, relatos, vídeos, fotografias, gravações.
Os objetivos descritos neste projeto, embora possam parecer amplos e
complexos, tendem a se esclarecer na medida em que forem sendo
levantados os objetos, os meios, de modo que ela se encaminhe para o
seu corpus principal, qual seja revelar a crítica presente nas obras de
Lafetá, contrapondo-a a outros estudiosos seus contemporâneos, de
modo a identificar e caracterizar os possíveis elementos que o
78
diferenciam ou o associam a estes, assim como identificar os elementos
metodológicos, filosóficos, históricos e linguísticos constituintes de sua
produção crítica e
buscar apontar de que forma estes elementos
contribuíram para a crítica literária brasileira.
Enfim, espera-se, com a conclusão deste estudo, contribuir
especialmente para a comunidade acadêmica, com uma análise de
caráter científico, sobre a obra deste escritor, de modo a caracterizar os
elementos condutores de sua literatura crítica, e o que, em sua trajetória,
especialmente dos anos de 1970 a 1990, tenha feito com que ele se
tornasse um dos maiores nomes da literatura brasileira.
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81
Paz
e
Terra,
1982.
227
p.
A INSUBMISSÃO FEMININA NA NOVELA "ROQUE SANTEIRO" (1985)
Gabriela Miranda de Oliveira3
RESUMO: A telenovela, assim como a literatura, oferece uma rica possibilidade de
estudo acerca de seus personagens. Estudar a relação entre a mulher e a telenovela
bem como as construções das representações femininas transmitidas por esse veículo é
também compreender as relações de gênero e relações de poder existentes no cotidiano
de cada época. Este trabalho pretende estudar as identidades e os discursos femininos
da telenovela Roque Santeiro, que foi exibida no ano de 1985, após ter sido censurada
dez anos antes de sua exibição. Nesta telenovela há uma desconstrução dos valores e
paradigmas sociais que foram construídos em relação à postura das mulheres. A
infidelidade, a desvalorização da família, a emancipação feminina e principalmente outra
forma de "final feliz", sem casamentos, nem nascimento de crianças mostram a
singularidade das personagens femininas de Roque Santeiro.
Palavras-chave: Gênero. Telenovela. Roque Santeiro.
RESUMEN: la telenovela, así como la literatura, ofrece una rica oportunidad de estudiar
sobre sus personajes. Estudiar la relación entre la mujer y la telenovela y la construcción
de representaciones femeninas por este vehículo es también comprender las relaciones
de género y las relaciones de poder que existen en la vida cotidiana de cada temporada.
Este trabajo pretende estudiar los discursos femeninos y las identidades de la telenovela
Roque Santeiro, que fue exhibido en el año de 1985, después de haber sido censurados
diez años antes de su exhibición. En esta telenovela de una deconstrucción de los
valores y paradigmas sociales que se han construido en relación con la postura de las
mujeres. Infidelidad, la devaluación de la familia, la emancipación y sobre todo otra forma
de final feliz, no hay bodas, no hay nacimiento de los niños muestra la singularidad de
los personajes femeninos de Roque Santeiro.
Palabras clave: género. Telenovela. Roque Santeiro.
As pesquisas a respeito das telenovelas no Brasil compõem um
campo de estudo ainda pouco explorado. O primeiro estudo abordando
essa temática ocorreu vinte e dois anos após a exibição da primeira
telenovela brasileira, e de acordo com algumas pesquisas, essa demora
seria justificada pelo fato da novela ser um produto tipicamente feminino.
(SIFUENTES, 2009, p. 70). Sendo assim, estudar a relação entre a
mulher e a telenovela bem como as construções das representações
femininas transmitidas por esse veículo é também compreender as
relações de gênero e relações de poder existentes no cotidiano de cada
época. Este trabalho pretende estudar as identidades e os discursos
femininos da telenovela Roque Santeiro, que foi exibida no ano de 1985,
3
Mestranda em História- PPGH
82
após ter sido censurada dez anos antes de sua exibição. Nesta telenovela
há uma desconstrução dos valores e paradigmas sociais que foram
construídos em relação à postura das mulheres.
A telenovela é um gênero midiático inspirado em um modelo de
programação dos Estados Unidos denominado soap-operas (óperas de
sabão), assim chamados devido às multinacionais fabricantes de produtos
de higiene e limpeza que os patrocinam. Essas grandes empresas
patrocinavam esse tipo de produção visando vender seus produtos para o
público-alvo específico: as dona de casa.
E assim, através dos patrocinadores, das temáticas, e da própria
herança histórica da telenovela, é possível traçar a relação existente entre
as mulheres e as telenovelas. O estudo desse tipo de programação
midiática possibilita construir análises sobre as relações de poder
existentes nas relações de gênero. A autora Lírian Sifuentes analisa a
telenovela como ―mediação essencial na construção da identidade de
gênero, pois transmite, diariamente, o que é ser mulher e quais
comportamentos e ambições são permitidos à mesma‖ (SIFUENTES,
2009, p. 67).
A escolha da novela "Roque Santeiro" se faz em razão do fato desta
novela ter sido censurada pelo Regime Militar no ano de 1975, sendo
considerada ofensiva à moral e aos bons costumes da época. Dentre as
críticas presentes na obra, há uma carência de estudos acerca da
singularidade das personagens femininas. A novela ―Roque Santeiro‖ foi
escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva, tendo a colaboração de
Marcílio Moraes e dirigida por Paulo Ubiratan, Gonzaga Blota e Jayme
Monjardim.
A narrativa se passa na fictícia cidade de Asa Branca, que foi
saqueada por um grupo de ladrões liderados por um bandido chamado
Navalhada. Nesse contexto, um cidadão ―asabranquense‖, conhecido
como Roque Santeiro, devido à sua habilidade de modelar imagens de
Santos, para proteger o povo, enfrenta os ladrões e é morto. Essa é a
83
versão que em Asa Branca foi propagada durante 17 anos, tomando uma
proporção imensurável quando a figura de Roque Santeiro é santificada,
cultuada e mitificada. A partir disso, muitos moradores da cidade, se
tornam adeptos à exploração comercial da fé, onde, comercializando
objetos relacionados a Roque Santeiro, acabam enriquecendo. A história
de supostos milagres realizados pelo Santeiro que virou Santo,
movimenta o turismo na cidade, e tem divulgação nacional. Em meio a
tudo isso, aparece uma suposta viúva, que através de uma história
duvidosa, relata ter casado com o Roque e apresenta certidão de
casamento, dessa maneira se torna uma das maiores beneficiárias de
toda essa história. Mesmo que alguém da população duvide, não poderá
ir contra, visto que esta, além de uma personalidade forte, é aliada ao
Coronel Sinhozinho Malta, fazendeiro de muitas posses e muito influente
na região. No momento em que Luiz Roque Duarte, Roque Santeiro, volta
para a terra natal e descobre todas as mentiras, fraudes e construções
em volta da sua imagem, os beneficiários da exploração do mito, se
desesperam. Dessa forma se dá a problematização da novela.
A dona da boate, Matilde e também dona da pousada de maior
sucesso de Asa Branca é interpretada pela atriz Yoná Magalhães, ―(...) na
novela faz o papel de Matilde, a sensual e bem-sucedida dona da primeira
boate da cidade, que traz as dançarinas e o streap-tease para Asa
Branca.‖ (HAMBURGER, 2005, p. 106).
Em Roque Santeiro, Matilde é mencionada na novela como
empresária do ramo do turismo, pois administra a ―Pousada do Sossego‖
e a boate ―Sexus‖. A personagem é uma mulher decidida e bem sucedida
em seus negócios. Durante a telenovela se mostra independente, sempre
dizendo que não precisa de um homem ao seu lado para ser realizada.
―Sapos, são todos sapos. Príncipe encantado só existe na imaginação
romântica da gente.‖ (Novela Roque Santeiro, 1985). Após essa fala,
Matilde é questionada por uma de suas funcionarias que pergunta se ela
possui essa opinião por ter se desencantado. Matilde responde que a
84
mulher só chega a essa conclusão através de uma ―tomada de
consciência, de uma lucidez, assim se alcança a independência.‖ (Novela
Roque Santeiro, 1985). O diálogo citado está presente na cena 109, que
foi escrita por Agnaldo Silva. Matilde produz um discurso incomum na
televisão, o qual nas novelas anteriores não é abordado. Sua participação
em Roque Santeiro fortalece a ideia de que essa novela veicula
representações femininas distintas e inovadoras.
A personagem Tânia, também ilustra uma mulher com novas
condutas. Na novela é interpretada pela atriz Lídia Brondi, é a filha do
fazendeiro Sinhozinho Malta que foi criada no Rio de Janeiro. Tânia é
uma ―jovem contestadora que vive em atrito com o pai.‖ (MEMORIA
GLOBO, 2012). A personagem não concorda com várias atitudes do pai e
não tem medo de expor sua opinião.
O ideal de modernidade é usado como mecanismo de atração
midiática. As produções de telenovelas na tentativa de atrair uma grande
quantidade de telespectadores, principalmente as mulheres, exploram o
campo das novidades, como novos figurinos, novos adereços, novos
penteados, novas perspectivas, novas formas de ser, facilitando a
identificação de um maior número de mulheres, para que a representação
possa agregar algum valor na vida da telespectadora. ―O moderno se
concebe, então, como o novo, o diferente, o que gera rupturas, o que
amplia as perspectivas, mas também o que adentra territórios
desconhecidos fomenta linguagens inéditas, estende suas coberturas de
expansão e impacta outras ordens de vida social.‖ (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 125).
Logo no início da telenovela, Tânia começa a namorar o
personagem Roberto Matias, interpretado pelo ator Fábio Júnior. No
entanto, Sinhozinho Malta não é a favor do relacionamento da filha e
quando descobre, no capítulo 106, que a filha passou a noite com o
namorado, se desespera e diz que precisa defender a honra de sua filha.
Tânia contesta defendendo que o pai vive em um mundo diferente do
85
dela, e Sinhozinho Malta diz que ―o mundo é uma coisa só, a moral
também é uma coisa só, é para todo mundo.‖. (Novela Roque Santeiro,
1985). Nesse momento Tânia diz a Sinhozinho Malta que não era virgem
desde quando veio do Rio de Janeiro, o pai fica sem reação, dizendo que
a filha estava muito diferente. Na cena descrita acima Tânia, que
representa um ideal de modernidade, desafia o patriarcalismo pregando
uma liberdade sexual para o universo feminino.
Uma das únicas mulheres casadas na telenovela Roque Santeiro, é
a personagem interpretada pela atriz Cássia Kiss, do qual o nome
Lugolina de Aragão é poucas vezes mencionado na telenovela, onde
todos a chamam de Lulu. Ela é casada com o personagem Zé das
Medalhas, que trabalha com o comércio de artigos religiosos na cidade. O
casal vive em situação de conflito, onde a esposa, durante várias vezes,
tenta se divorciar do marido, mas não obtém sucesso.
O comerciante mantém a esposa trancada em casa, como uma
prisioneira, e a primeira aparição de Lulu em Roque Santeiro, é quando a
personagem foge de casa e vai até a boate que havia sido inaugurada em
Asa Branca. No momento em que Zé das Medalhas a encontra na rua, há
uma sequência de agressões, que começam na rua e terminam no quarto
do casal. Zé das Medalhas conduz a esposa de maneira agressiva até a
casa, enquanto a personagem grita. O comerciante humilha a esposa e
trata a mesma como uma propriedade.
Assim que entram em casa, ele chega a ameaçá-la de morte e
critica a roupa da esposa dizendo: ―Que vergonha, meu Deus que
vergonha! Lulu, eu sou um empresário, eu estou prosperando na vida, eu
tenho que ter uma mulher que seja descente, que se dê ao respeito, e
você me sai com essa porcaria de vestido?‖(Novela “Roque Santeiro”,
1985). Então Lulu diz que seu vestido é igual ao das mulheres da
televisão, que não há nada de errado. Diante disso o marido proíbe a
personagem de ver televisão e rasga seu vestido.
86
O discurso do personagem Zé das Medalhas, quando proíbe a
mulher de ver televisão, reporta o pronunciamento do oficial especializado
no combate a propaganda subliminar, citado no início desse capítulo, em
que alerta acerca do perigo das representações femininas na televisão. O
personagem Zé das Medalhas pode ser visto como uma crítica à
manutenção das tradições, pois seu personagem é caricato e em diversos
momentos atrapalhado. Telespectadores tomam os personagens e
tramas de novela como modelos de comportamento, tipos ideais de
comportamento,
que
compartilham
com
os
outros
brasileiros
telespectadores (HAMBURGER, 2005, p. 144).
Assim, a autora Esther Hamburger, analisa o fenômeno de projeção
por parte do público, que é ilustrado em Roque Santeiro nas cenas acima
do casal Zé das Medalhas e sua esposa Lulu. A personagem de Cássia
Kiss sente-se ―pertencer a certa comunidade imaginária‖ (HAMBURGER,
2005, p. 144) por estar com uma roupa igual a que viu na televisão.
Apenas duas personagens são casadas na novela Roque Santeiro,
a Lulu que sofre com as exigências do marido conforme exposto acima. E
Dona Pombinha, a primeira dama da cidade. Interpretada pela atriz Eloísa
Mafalda, a personagem se comporta como uma beata que nutre um
casamento de muitos anos. No início da novela, a Dona Pombinha é
devota de Roque Santeiro, seguidora radical da religião Católica e se
mostra bastante autoritária no relacionamento conjugal. Gradativamente o
prefeito Florindo Abelha tem sua imagem cada vez mais caricaturada, de
um homem submisso e sem iniciativas. Seu marido é um homem calmo
que em nenhum momento maltrata sua esposa.
Dona Pombinha é uma personagem que apresenta uma inovação na
teledramaturgia no que tange ao posicionamento da mulher casada.
Enquanto, na mesma novela, a outra personagem casada é reprimida
pelo marido e sofre agressões por parte do mesmo, Dona Pombinha
representa uma postura de fere o patriarcalismo.
87
Todavia, a personagem mantém a postura de uma beata, figura
clássica e sempre presente nas telenovelas assinadas por Dias Gomes.
Dona Pombinha não aceita a inauguração da boate na cidade de Asa
Branca e organiza várias manifestações em defesa da ―moral e dos bons
costumes‖. Com uma postura caricaturada, Dias Gomes critica o
patriarcado, mesmo com as personagens que tentam reafirmar os
discursos patriarcais.
A Mocinha, filha de Dona Pombinha e interpretada por Lucinha Lins,
figura uma personagem que critica a tradicional ―mocinha‖, e no decorrer
da novela não se destacou, mesmo sendo uma das personagens centrais.
―Mas isto não é privilégio da televisão, ela está apenas dando imagens
elétricas às imagens mentais construídas em romances literários do
século XVIII, conhecidos como água-com-açúcar, a heroína romântica e
virgem a espera do príncipe encantado.‖ (LOPES, 2007). Esse tipo de
heroína já não atende aos anseios da sociedade contemporânea.
A personagem se veste como uma beata e anda pela cidade em
companhia da mãe e das religiosas de Asa Branca. Porém durante a
telenovela, por ter passado por decepções amorosas e religiosas, sofre
mudanças comportamentais que ajudam a entender a crítica presente
nessa personagem.
No início da telenovela, a ex-noiva de Roque Santeiro, que jurou não
se entregar a nenhum homem em virtude da morte do noivo, tem
constantes brigas com a ―viúva‖ Porcina, devido a Mocinha não aceitar e
não acreditar na história contada pela viúva. Nas discussões Porcina
chama Mocinha de ―viúva virgem‖, como forma de rebaixar a personagem.
Após a volta de Roque Santeiro para cidade e o reencontro com
Mocinha, a personagem ao descobrir a farsa do Santo que sempre foi
devota, se decepciona com o ex-noivo e também com todas as mentiras
sociais da cidade. Como uma espécie de epifania, ocorre uma mudança
na personagem na forma de ser e de agir.
88
Durante esse momento de mudanças, Mocinha desenvolve um
comportamento estranho, dizendo ver tudo sujo a sua volta. Passa o dia
inteiro limpando a casa, e toma banhos muito demorados, que por vezes
os pais da moça precisam arrombar a porta do banheiro para ver se ela
estava bem. Chega a dizer que não quer mais viver, porque o mundo não
faz mais sentido já que tudo está sujo, inclusive ela.
Até o fim da telenovela, Mocinha sofrerá alguns distúrbios de
comportamentos, como o que foi citado, o que levará outros personagens
da trama, incluindo sua mãe Pombinha e o pai, Prefeito Florindo Abelha, a
julgarem que a moça estava ficando doida. Nenhum dos parentes de
Mocinha procurou tratamento para a mesma e a personagem termina
sozinha desiludida com as pessoas, com os relacionamentos amorosos,
com a Igreja e com tudo que a rodeia.
Dentre as personagens que compõem o elenco da novela, a que
mais se difere das representações das novelas anteriores é a viúva
Porcina. O excesso de ornamentos e a forma espalhafatosa de ser,
compõe o figurino da viúva Porcina.
A viúva Porcina incorpora elementos tidos como inadequados para
uma mulher em
sua
representação, como hábitos vulgares.
A
personagem não tem filhos e em nenhum momento da novela fala sobre a
maternidade. Como as outras personagens femininas dessa telenovela,
Porcina não se casa no último capítulo.
Com isso, percebe-se que a personagem não segue o papel
destinado à mulher em uma sociedade patriarcal, onde procriar, zelar pelo
bem estar da família e do lar constituem uma máxima comportamental.
Levando em conta que a mídia desempenha um papel na naturalização
das relações de poder socialmente construídas, “Roque Santeiro”
contribui para a propagação de um modelo alternativo de ―ser mulher‖,
naturalizando um novo tipo de protagonista.
Inicialmente a Viúva Porcina seria a vilã da história em virtude da
mentira que a insere no contexto da novela, em que finge ser viúva de
89
Roque Santeiro. Contudo, diante da boa recepção da personagem, a
mesma se torna protagonista.
A música tema de Porcina também acompanha o sucesso da
personagem. Escrita por Sá e Guarabyra e interpretada pelo grupo Roupa
Nova, a música ―Dona‖ foi uma das canções mais tocadas nas rádios
brasileiras no ano de 1985. Em alguns versos da música, a letra oferece
informações importantes da personagem, como em: ―Não há pedra em
seu caminho, não há ondas no teu mar, não há vento ou tempestade que
te empeçam de voar‖. (SÁ E GUARABYRA, 1985). A ideia de liberdade,
onde nada lhe impedirá de alcançar seus objetivos, e a transgressão aos
padrões machistas, em que a mulher é dona de si, faz com que a música
seja compatível com o propósito da personagem.
Percebe-se que a telenovela Roque Santeiro, critica não só a
repressão da mulher nos relacionamentos conjugais, mas também a
repressão exercida pela igreja. Dessa maneira, buscamos analisar o
processo de mudança no perfil de heroína da telenovela, bem como a
singularidade das representações das personagens da novela Roque
Santeiro na mídia brasileira.
REFERÊNCIAS
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Santeiro Nacional. Vol. 2. Som Livre, 1985.
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90
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http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273230813,00.html Acesso em: 11 de Fevereiro de 2013.
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Ortiz. Telenovela - História e produção. 2 ed. São Paulo: Editora
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Intérprete: Roupa Nova. In: Roque Santeiro Nacional. Vol. 1. Som Livre,
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FAMECOS. Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 131-146, 2011.
91
PÁGINAS EM BRANCO: AUSÊNCIA DA MULHER E O APAGAMENTO
DA ESCRITORA NEGRA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA
OITOCENTISTA
Geraldo Ferreira da Silva4
Ivana Ferrante Rebello5
RESUMO: O presente artigo reflete sobre o panorama histórico nacional e suas relações
com o apagamento da escritora, na historiografia literária brasileira. A ausência da
escritura de mulheres, no Brasil colonial e até início do período imperial, é decorrente da
transplantação cultural, oriunda da invasão portuguesa ao Brasil que suprimiu a cultura
literária oral indígena e africana e implantou o pater famílias. Nesse cenário, destaca-se
com rara exceção, a escritora afrodescendente, Maria Firmina dos Reis, autora do
primeiro romance abolicionista do Brasil, Úrsula.
Palavras-chave: Escrita de gênero. Escrita afrodescendente. Historiografia literária.
ABSTRACT: This article reflects about national historical scene and its relations with the
deletion of the writer, in the Brazilian literary historiography. The absence of scripture of
women in colonial Brazil and up to the beginning of the imperial period, is the result of
cultural transplantation from the Portuguese invasion to Brazil that suppressed the literary
culture oral indigenous and African and arranged the pater families. In this scenario,
stands out with rare exception, the afro-descendant writer, Maria Firmina dos Reis,
author of the first abolitionist novel of Brazil, Úrsula.
Keywords: Gender writing. Afro-descendant writing. Literary historiography.
O Brasil foi uma nação invadida por europeus – como os demais
países que formam o Continente Americano – razão por que a influência
europeia fez-se sentir de forma majoritária em todos os aspectos da
sociedade brasileira.
A expansão colonial portuguesa foi avassaladora no tocante à
economia, agricultura, religião, cultura, arte, música, teatro, línguas.
Comportamentos emocionais e sociais foram impostos aos nativos de
Pindorama. O choque cultural e étnico foi intenso.
Os lusos, ao perceberem que a terra era produtiva e estava sendo
invadida por outras nações europeias, dividiram-na em capitanias. Seus
4
Mestrando em Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros
– Minas Gerais – UNIMONTES – [email protected] e [email protected]
2015.
5
Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da
Universidade Estadual de Montes Claros – Minas Gerais – UNIMONTES - Orientadora
92
donatários, então, a cata de braços fortes que dessem vazão a seus
propósitos colonialistas, deram início ao tráfico negreiro, comercializando
negros africanos e os escravizando, em terra brasileira, para que estes
trabalhassem na agricultura e na pecuária.
Nos campos da cultura, religiosidade e linguagem, os invasores
portugueses anularam e não reconheceram os fazeres culturais e
artísticos dos índios e dos negros africanos e brasileiros. Foi
desconsiderada, principalmente, sua literatura oral, que era ampla e
diversificada em cada tribo e nação nativa ou escravizada.
Célia Regina dos Santos e Vera Helena Gomes Wielewicki (2003),
afirmam que ―a marginalização dos textos indígenas e negro-africanos é
um reflexo, no ambiente letrado, do estatuto subordinado dessas culturas
no espaço mental brasileiro – na estrutura da sociedade nacional‖.
Outros, que são chamados de ―textos de viagem‖ e que Risério (1993)
intitula de ―relatos etnográficos‖ são considerados como fonte de
germinação da Literatura Brasileira, porém excluem a magnitude da
tradição oral das populações indígenas como nos referem as autoras:
Tais textos revelam a marginalização do índio no que tange à
opção textual lusocêntrica como representante e formadora de
nossa literatura nacional. A análise desses textos prova-nos
que a história da crítica literária brasileira não reconhece a
existência do que Risério (1993) chama de ―textualidades
extraliterárias‖ ou criações textuais ―extraeuropeias‖. Ou seja,
apesar de serem ágrafas, as culturas indígenas aqui
encontradas possuíam uma arte verbal muito rica e
diversificada, a qual Risério (1993, p. 39) denomina poemúsica.
Nessa perspectiva, a ―poesia dos índios‖ seria o início da
criação textual em nossos trópicos (SANTOS e WIELEWICKI,
2003, p. 338).
Segundo Risério (1993), a poesia do índio brasileiro foi mencionada
pelo escritor francês Ferdinand Denis que esteve aqui no Brasil no
período de 1816 a 1819 e escreveu sobre nossa literatura o Resumé de
Histoire littéraire du Brésil salientando o tema natureza-indianismo que no
séc. XIX foi referendado pelo Romantismo, porém, a literatura indígena e
93
afrodescendente foram e continuam relegadas
ao acaso e ao
esquecimento porque estas produções espontâneas destes textos extraeuropeus não tiveram uma tradição escrita/impressa, portanto, impeliu o
grafocentrismo a relegá-los num plano inferior, marginal e ou mesmo
inexistentes até mesmo pelas academias.
A invasão portuguesa no Brasil foi uma violação, em todos os
sentidos, não só no campo histórico e territorial, mas também na esfera
pessoal. Se a discriminação estendia-se aos nativos indígenas e ao negro
escravizado, em relação à mulher, também considerada inferior e sem
privilégios intelectuais, a exclusão também se fazia notória.
Quando os lusos chegaram ao Brasil não trouxeram suas esposas
para se arriscarem nessa perigosa aventura, e sim os eunucos que
faziam os serviços do lar, inclusive os de mulheres na cama. Mas, em
contatos com as índias nuas, que tinham ―comportamentos liberais‖ (grifo
nosso) em relação ao estereótipo de mulher submissa ao marido e aos
princípios religiosos da cultura machista, prevalecente na Europa e no
Oriente, os invasores consideraram-nas como mulheres sensuais,
promíscuas, sem moral e sem proteção do marido e da religião, como nos
orienta Maria Lúcia Rocha-Coutinho:
No início da colonização, a família – baseada em uma união
legalizada – era praticamente inexistente no Brasil. Isto se
deveu ao fato de que os portugueses, na sua maioria, não se
transferiam para a nova terra com intenção de se estabelecer
definitivamente. Desta forma, suas mulheres geralmente
permaneciam em Portugal e eles mantinham aqui relações
irregulares com índias e escravas (ROCHA-COUTINHO, 1994,
p. 66).
Na colônia portuguesa do Brasil, o comportamento promíscuo foi
incorporado pelos brancos primeiro à índia e, mais tarde, à negra, à
mulata sensual. (TELLES, 1989, p. 02) O atentado à liberdade da índia e
da negra ao seu corpo, à sua sexualidade e à sua união estável com seu
possível pretendente se deu por parte do colonizador porque este
94
supunha ter propósitos de união respeitável com sua esposa, senhora
branca, fiel, dedicada a faina familiar, que ficou em Portugal ou na
reclusão da casa grande e que servia ao seu esposo de maneira
assexuada, conforme orientação da Igreja Católica.
O nascimento da família de origem patriarcal portuguesa/católica
surgiu no Brasil mediante objetivos políticos e econômicos de apossar o
imenso território que hoje forma o Brasil que estava sendo invadido por
outras nações europeias, para tanto, criou-se concessão das capitanias
hereditárias e das sesmarias para a produção agrícola e exploração das
reservas minerais, principalmente as auríferas. Surgiu, portanto, uma
família atípica que englobava em seu núcleo, nem só a esposa e os filhos
legítimos e ilegítimos, mas também os escravos, agregados e concubinas.
O poder patriarcal envolvia, além da família, todos os que viviam na
proteção do senhor latifundiário. Nascia, portanto, o pater familias, como
nos informa Maria Lúcia Rocha-Coutinho:
Estas primeiras famílias formavam grupos autônomos de
produção, administração, justiça e autodefesa e sua autoridade
máxima era o pater familias, que detinha o poder não apenas
sobre os escravos, empregados e agregados, como também
sobre seus filhos e sua esposa. O poder dos patriarcas,
ampliado pelo isolamento dos grupos familiares que, no seu
início, eram relativamente poucos, era do interesse e, portanto,
reforçado pela própria Coroa portuguesa que, assim, melhor
podia controlar sua colônia (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.
670).
O patriarcalismo, transplantado da cultura europeia e oriental e
internalizado à força aos habitantes do Brasil não se limitava apenas à
família, mas à sociedade, à política, à economia agrícola e agropecuária
escravocrata, e perdurou, como modelo do mandonismo do homem sobre
a mulher, até metade do século XIX, impondo a cozinha, as prendas
domésticas e o papel de mãe e de dona do lar, de geradora de filhos
herdeiros às suas esposas, filhas e agregadas e às escravas a função de
escrava, tanto na cozinha, na senzala, na roça e na cama, como nos diz
Eduardo de Assis Duarte:
95
Tais exemplos ressaltam a força de permanência de uma
imagem que atravessa os séculos e marca a representação
das descendentes de africanos na literatura brasileira. Em sua
origem, esta configuração se vincula ao instituto do trabalho
forçado, à consequente poligamia dos brancos e à posição
indefesa das escravas frente ao assédio dos patriarcas, de
seus filhos e agregados [...] (DUARTE, 2009, p. 11).
Essa realidade patriarcal/mandonista imposta à mulher branca,
índia, esposa ou solteira, era duplamente incidente sobre a mulher negra.
Era-lhe negada a participação na vida social e cultural, seus direitos de ir
e vir e a posse do seu próprio corpo.
As ideais doutrinais da contrarreforma e os comportamentos sociais
e emocionais sugeridos por elas eram os objetivos da Igreja Católica e da
coroa portuguesa no tocante à religião e a conquista de um povo à
catequese e ao império lusitano, uma vez que o governo português não
tinha interesses em criar escolas nos países colonizados, porque os filhos
de portugueses estudavam em Portugal. Essa realidade na educação do
Brasil perdurou do início da colonização até meados do século XVIII.
Havia também as escolas leigas: aquelas em que o professor
detinha uma formação incompleta, não tinha o magistério, porém exerciao, ensinava na casa grande as primeiras instruções de gramática e
matemática aos filhos e parentes próximos dos senhores fazendeiros. Aos
pobres, negros e índios eram oferecidas a negação da escolarização,
como afirma o texto:
Para a população de origem africana, a escravidão significava
uma negação do acesso a qualquer forma de escolarização. A
educação das crianças negras se dava na violência do trabalho
e nas formas de luta pela sobrevivência. As sucessivas leis,
que foram lentamente afrouxando os laços do escravismo, não
trouxeram, como consequência direta ou imediata,
oportunidades de ensino para os negros. São registradas como
de caráter excepcional e de cunho filantrópico as iniciativas que
propunham a aceitação de crianças negras em escolas ou
classes isoladas – o que vai ocorrer no final do século.
Algo semelhante se passava com os descendentes indígenas:
sua educação estava ligada às práticas de seus próprios
96
grupos de origem e, embora fossem alvo de alguma ação
religiosa, sua presença era, contudo, vedada nas escolas
públicas (LOURO, 2004, p. 445).
Além disso, a educação nestes tempos era ministrada por homens.
Poucas mulheres sabiam ler, e, quando liam, seu universo de leitura
restringia-se às receitas de bolos, pontos de bordados, algumas poesias,
livros sacros e alguns compêndios da literatura clássica greco-romana.
Portanto, temos uma dificuldade imensa em encontrar mulheres que
soubessem ler e escrever, nos séculos XVIII e início do XIX, uma vez que
poucas mulheres estudavam em escolas secundárias. A pouca instrução
que recebiam era voltada para o objetivo de serem esposas, donas de
casa, e raríssimas tinham acesso aos livros além de sofrerem
repreensões dos esposos, quando se dedicavam à prática da leitura.
Quando surgiu a prosa de ficção, as reações da crítica e dos leitores
concentravam-se
em
considerá-la
perniciosa,
sobretudo
para
as
mulheres, que poderiam ter seu caráter e comportamento alterado pelo
um hábito da leitura.
A crítica reproduzia o pensamento sobre a forma como os textos
foram recebidos por uma camada de intelectuais e identificava a leitura de
romances como moralmente perigosa, se comparada às leituras eruditas
que
ampliavam
o
conhecimento
e
aos
textos
religiosos
que
aperfeiçoavam o espírito. Márcia Abreu faz uma análise comparativa do
que significava ler romances, no século XVIII, em relação à leitura de
outros tipos de textos:
Embora fonte de inconvenientes físicos, há leituras que valem
a pena, enquanto outras são unicamente perniciosas. Dentre
essas, muitos incluem a leitura dos romances, tida como
perigosa pois faz com que se perca tempo precioso, corrompe
o gosto e apresenta situações moralmente condenáveis. A
leitura de romances traz à baila discussões de natureza ética,
religiosa e intelectual, tanto mais acaloradas quanto mais se
percebe a disseminação do gênero e sua influência sobre os
leitores.(...) Enquanto a leitura das belas letras tem por objetivo
formar um estilo e ampliar a erudição e as leituras religiosas
visam aprimorar o espírito e indicar o caminho da virtude e da
97
salvação, a leitura dos romances parece sem finalidade
(ABREU, 2002, p. 225).
Tal conceito sobre a leitura de romances provinha das ideias
pautadas por alguns eruditos que tinham como modelo para a excelência
dos textos o padrão clássico ou os textos religiosos, que serviam como
parâmetro para avaliar a boa leitura. Apesar da repressão e censura, no
século XVIII, algumas mulheres liam e escreviam seus cadernos de
poesias e memórias que se perderam em seus baús de recordações, uma
vez que não tinham apoio das academias, da imprensa, de seus esposos e
da sociedade. Eram atividades, em sua maioria, feitas às escondidas, e em
raras ocasiões.
A imprensa era eminentemente masculina, bem como os intelectuais
brasileiros, que só registraram, do período, a pouquíssima literatura feita
por homens, a maior parte deles de origem nobre, que estudaram em
Portugal ou nas raríssimas universidades brasileiras, ou ainda aqueles
pertencentes a alguma academia literária.
Pesquisadoras, entre elas Zahidé Lupinacci Muzart desenvolvem
pesquisas no resgate de mulheres escritoras no Brasil nos séculos
passados, visando a reescreverem uma nova historiografia que inclua a
mulher escritora. Dada a dificuldade de encontrar textos e escritoras do
século XVIII, as pesquisas, entretanto, contém maiores registros de
escritoras do no século XIX.
Do século anterior, ela, Zahidé, cita apenas três nomes de mulheres
escritoras, no livro: Escritoras brasileiras do século XIX: antologia /
organizado por Zahidé Lupinaccin Muzart – 2. ed. ver. – Florianópolis:
Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.
Preferimos privilegiar no nome do livro o século XIX e,
aparentemente, esquecer as três escritoras de séculos
anteriores – Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel e
Bárbara Heliodora. E isso porque todas as outras 49 escritoras
ou são nascidas no século XIX ou, mesmo no século XVIII,
como Maria Josefa Barreto, Maria Clemência da Silveira
98
Sampaio, Beatriz Brandão, Delfina Benigna da Cunha e
Ildefonsa Laura César, somente publicaram suas obras no
século XIX (MUZART, 2000, p. 28).
Percebem-se as ausências das mulheres na Historiografia literária,
obviamente inspiradas nos mesmos requisitos que apagaram o nome
delas da História do Brasil, salvo raras e inspiradoras exceções.
Poucas foram as mulheres, que, na metade do século XIX, no
período imperial, conseguiram estudar, ler os romances ingleses,
franceses traduzidos e os produzidos por brasileiros. Mesmo sem a
aprovação dos maridos e pais, empreenderam esforços na luta pelos
seus direitos com participação em movimentos sociais e literários,
desenvolvendo suas escrituras em artigos de jornais e romances de
folhetins. Entre essas pioneiras podemos citar: Nísia Floresta Augusta,
Ana Luísa de Azevedo Castro, Amélia Rodrigues, Luísa Amélia de
Queirós, Narcisa Amália, entre outras. Seus nomes não constam dos
compêndios literários brasileiros, e, quando aparecem, resumem-se a
poucas linhas ou a notas de rodapé.
Nesse cenário de exclusão, destaca-se um caso singular na nossa
literatura: a escritora negra Maria Firmina dos Reis que nasceu em 1825,
em São Luís, Maranhão, filha de pai desconhecido, carregando o pesado
adjetivo de ―bastarda‖, num país e época com forte influência patriarcal.
Muito jovem, aos 22 anos, dedicou-se ao magistério após vencer um
concurso público. Paralelamente às atividades, como professora, em
Guimarães/MA, Maria Firmina empreendeu participação constante na
imprensa de São Luís/MA, publicando diversas poesias, crônicas e
contos.
Em 1859, aos 34 anos, publica o romance Úrsula, uma de suas
obras mais marcantes. O romance é tido, por diversos historiadores, não
apenas como o primeiro romance abolicionista brasileiro, mas também
como o primeiro romance da literatura afro-brasileira. Nele a autora
inscreve sua condição de mulher, negra, bastarda e pobre. A defesa que
99
o romance enceta da liberdade do negro, seguida de denúncias sobre os
males da escravidão, identifica, pela primeira vez na literatura nacional, a
condição do afrodescendente vista pela perspectiva do negro.
Ao publicar a obra, Maria Firmina adotou medidas preventivas:
Úrsula foi publicado sob o pseudônimo de ―Uma Maranhense‖. A ausência
do nome da escritora revelava o apagamento da voz da mulher negra, no
panorama da literatura nacional. No prólogo do romance, a autora
declarou que ―pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e
mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação
dos homens ilustrados.‖ (REIS, 2009, p. 13) A consciência da escritora
era, antes de tudo, uma denúncia. Sua vida e sua luta pela liberdade dos
escravos e pela igualdade entre homens e mulheres está a requerer
maiores pesquisas.
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100
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em: 21-07-2015.
101
CRÔNICAS DA VIDA REAL: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADE
CULTURAL BRASILEIRA NA OBRA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
Gustavo Souza Santos6
Andréa Nogueira do Amaral Ferreira7
Josiane Santos Brant Rocha8
RESUMO: É do feitio da crônica usufruir de linhas temporais e condimentá-las com
recursos, estilos e táticas linguístico-simbólicas ambientadas no usual, tornando-o
extraordinário, e no comum, tornando-o um espetáculo narrativo, descritivo e informativo.
A cultura e o cotidiano são a enseada literária desse gênero, e este se valida na vida
social em seu consumo e proveito, como em sua produção e apreciação, propiciando
trocas de experiências entre leitores e escritores em um vórtice cultural rico e valioso à
dinâmica social. Desse modo, este estudo empenhou-se em analisar as representações
da cultura e identidade brasileira nas crônicas de Luís Fernando Veríssimo, tecendo
leituras sobre a relação entre literatura e cultura, tendo por corpus sua obra Comédias da
Vida Privada (1996). Através das investigações literárias e culturais em torno da crônica
e da brasilidade, empreendeu-se um observatório das crônicas da vida privada da ficção
e da realidade, nas representações difusas nos textos do autor.
Palavras-chave: Crônica. Luís Fernando Veríssimo. Cultura. Brasilidade.
ABSTRACT: It makes part of the chronicle using timelines and seasoning them with
resources, styles and linguistic and symbolic tactics acclimated in the quotidian making it
extraordinary, and in the common, making it a narrative, descriptive and informative
spectacle. Culture and quotidian are the literary cove in this genre and it is validated in
social life in its consumption and profit as in its production and assessment, providing
experiences exchanges among readers and writers in a rich cultural vortex and valuable
to the social dynamics. Thus, this study undertook to examine how representations of
culture and Brazilian identity in Luís Fernando Veríssimo‘s chronicles developing analysis
about the relations between literature and culture, having as a corpus the book Comédias
da Vida Privada (Comedies of Private Life). Through the literary and cultural
investigations through chronicle and Brazilianness, it was undertaken an observatory of
the chronicles of the private life of fiction and reality in the diffused representations in
Veríssimo‘s texts.
Keywords: Chronicle. Luís Fernando Veríssimo. Culture. Brazilianness.
INTRODUÇÃO
A gênese da crônica remonta a meados do século XVI e já nessa
época, o gênero em construção se constituía de combinações entre
realidade e ficção, como elucida Sant‘Anna (2000). O autor ainda explica
que a crônica despontou como um gênero histórico tendo por substrato os
medos e superstições acerca das terras indianas e americanas em
6
Mestrando em Geografia pela Unimontes, docente das FIPMoc.
Mestre em Letras/Estudos Literários pela Unimontes e docente das FIPMoc.
8
Doutora em Ciências do Desporto pela UTAD, docente da Unimontes e FIPMoc.
7
102
descobrimento recente. No século XIX, assumiu-se factual nas mãos de
José de Alencar e Machado de Assis e, passa no século XX, a se tornar
um dos principais gêneros do rádio e do jornal, e hoje se deflagra na
hipermídia (SANT‘ANNA, 2000).
Sá (1999) destaca que no Brasil, as crônicas se abrigaram
inicialmente à sombra dos folhetins. A princípio tratava-se de uma
miscelânea de elementos com fins informativos e que, paulatinamente,
com o desenvolvimento dos folhetins a crônica tomou parte na frondosa
sombra oferecida pelos jornais. A pauta que se deleita no cotidiano e tece
literatura no corriqueiro sempre foi recorrente. Bender e Laurito (1993)
salientam que a crônica sempre possuiu um tom despretensioso, flexível
e leve para aguçar o paladar imersivo do leitor.
É do feitio da crônica usufruir de linhas temporais e condimentá-las
com recursos, estilos e táticas linguístico-simbólicas ambientadas no
usual, tornando-o extraordinário, e no comum, tornando-o um espetáculo
narrativo, descritivo e informativo. Prova isso sua etimologia, do grego
khronus que indica tempo. A crônica assume com maestria sua relação
com o tempo nas vivências humanas e seus gestos em historicizar as
coisas, narrar acontecimentos, fazer memória e compartilhá-las. Por isso,
no gênero não é o assunto abordado o cerne de sua construção
linguística e significante, e sim a temporalidade, isto é, o sabor que a
brevidade e os momentos dispensam da condição humana no tempo.
No Brasil, a crônica é tida como bigenérica, isto é, um hibridismo
entre jornalismo e literatura. Massaud (2012) afirma que a crônica se
espraia entre o factual e o literário, emprestando cor e tom aos
acontecimentos, criando uma atmosfera rarefeita que não se desprende
da atualidade, mas se imiscui do fantástico. Essa condição híbrida,
completa Sant‘Anna (2000), torna a crônica um gênero fugidio à aura dos
manuais literários, todavia sem perder seu fragor. Sem a densidade, mas
aninhando-se ao conto, à poesia e o ensaio, a crônica perfaz seu próprio
103
caminho ressaltando o estilo de sua linguagem pessoal e comunicando-se
soberana com seu leitor.
A cultura e o cotidiano são a enseada literária desse gênero, e este
se valida na vida social em seu consumo e proveito, como em sua
produção e apreciação, propiciando trocas de experiências entre leitores
e escritores em um vórtice cultural rico e valioso à dinâmica social. Desse
modo, este estudo empenhou-se em analisar as representações da
cultura e identidade brasileira nas crônicas de Luís Fernando Veríssimo,
tecendo leituras sobre a relação entre literatura e cultura, tendo por
corpus sua obra Comédias da Vida Privada (1996). Através das
investigações literárias e culturais em torno da crônica e da brasilidade,
empreendeu-se um observatório das crônicas da vida privada da ficção e
da realidade, nas representações difusas nos textos do autor.
ENTRE AS CRÔNICAS DA VIDA PRIVADA E DA VIDA REAL
De si, Veríssimo se diz ―gigolô das palavras‖:
Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com
elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso
delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são
perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não
raro peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto
passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo
dominar por elas. Não me meto em sua vida particular. Não me
interessa seu passado, suas origens, sua família, nem os que
os outros já fizeram com elas. Se bem que não tenha o mínimo
escrúpulo em roubá-las de outros quando acho que vou ganhar
com isso (VERÍSSIMO, 1982, p. 27).
Seu texto é consagrado pela sátira de costumes, declamando com
ironia e cumplicidade os suplícios cotidianos, as imperfeições das
pessoas, a política, a vida social, os costumes, as vivências e os
relacionamentos, como dissertam Duarte (2007) e Madeira (2005). Na
mesa, na rua, em casa, no trabalho, no imaginário e em praça pública,
tempo e espaço, modernidade e vida privada são roteirizados de maneira
104
cálida e bem condimentada em seu estilo leve e certeiro. O humor que
ruboriza e faz deleitar não se opõe a crítica reflexiva que sua obra
também remete. Um painel completo onde o ordinário se manifesta
extraordinário na proposta retrátil e energética de seu texto, tornando-se
efervescente na exploração da vida privada e das identidades nela
atreladas.
Em Comédias da Vida Privada (1994), o cotidiano de cenas e
cenários privados são postos a prova com as mais diversas situações nas
quais o trivial se espetaculariza. Veríssimo articula o imaginário, o factual
e recombina com a tessitura de sua criação literária sempre sob a
umidade inventiva do humor, da ironia e do sarcasmo. A brasilidade
desliza por suas crônicas e a identidade é deflagrada em cada história
que, sob um corpus espaciotemporal, permite identificações imediatas e
associações pontuais sob uma conjuntura narrativa. Isto é, as crônicas da
vida privada de alcunha de Veríssimo ganham aderência às crônicas da
vida real do leitor e de seus pares na quotidianidade.
A brasilidade nas crônicas e comédias da vida privada
Diálogos com o pai, situações com a mãe, a presença dos tios, os
cunhados sempre próximos, os amigos no bar, os vizinhos em derredor, o
Mendocinha, o Dr. Pompeu e a Regininha. Personagens dos quais as
comédias da vida privada entregam ao leitor mais do que figuras que
entornam excentricidades e espirituosidade narrativa, mas elos humanos
prontamente identificáveis e próximos seja na memória, na circunstância
ou no imaginário.
Na temporalidade emoldurada por Veríssimo, tais personagens
dispensam características fundantes de uma brasilidade que se estampa
das crônicas de sua ficção para as crônicas da vida real. Todavia, são
micronarrativas sem a aquiescência da ficção típica que o autor entrega
ao leitor. É uma interlocução entre comuns não estereotipados nem
aditivados, mas comuns que acessam um palco onde a trivialidade
105
ganham da leitura um holofote que se adere às conexões mais
enraizadas de brasilidade.
A criação de Veríssimo monta então cenários com personagens que
condensam em sua micronarrativa e eventos nos quais circulam como
personificações representativas da quotidianidade que se desvela no
perfil imersivo do leitor. Em outras palavras, no encontro com as histórias
e seus personagens, a obra projeta o leitor para um arquétipo dinâmico
de identidade e cultura, onde a brasilidade e seu perfilamento são
marcadores que tornam a leitura cadente e orientada a reminiscências e
visões de mundo.
Entre identidades e coletividades, Comédias da Vida Privada
promove o alinhavo de sujeitos e situações, identidades e coletividades,
configurando a relação autor/criador e leitor/continuador da criação em
uma grande família brasileira. Família de classe média, trajada de
realismo, empoderada pelo enfrentamento da vida e composta por ritmos
que sob a cumplicidade, generosidade e ironia narrativas de Veríssimo,
ganham um viço penetrante e mais do que apenas alusivo.
Essas comédias da vida privada desvelam uma brasilidade alegre,
não por um cinismo e ocultamento narrativo, mas pelos influxos que o
humor e o próprio gênero da crônica permitem. Os problemas, os
fracassos, as contrariedades e os acasos tornam-se espetáculos nos
quais o privado – sempre atraente – sob a atmosfera da crônica fazem
entreter, refletir e agir ao mesmo tempo. Uma brasilidade figurativas, mas
não menos plausível se reflete nas construções textuais e amarram
sentidos e conexões pareadas com as ideias de Brasil, de vida e
factualidade que o leitor possa ter e que o autor transbordou sob sua
criação.
Na brasilidade dessas comédias da vida privada, a vida real trafega
representativa e visível, sem o emudecimento das grandes narrativas,
sem o torpor da densidade narrativa que outros gêneros podem promover
– não fazendo aqui uma crítica, mas diferenciando a crônica e lhe
106
lançando lume. Assim, é possível explorar nas crônicas de Comédias da
Vida Privada como lócus privilegiados de íntimos, bizarros e secretos
desejos. Os desfrutes, as consternações, as emoções e as sujeições da
vida cotidiana são potencializados em cada crônica com uma vivacidade
irônica que expande a identificação entre panorama literário, repertório e
cultura identitária. Com esse vórtice literário e intersubjetivo, um
dispositivo de identificação e imersão leitora se associa a uma produção
literária imiscuída culturalmente.
Encontros entre literatura, cultura e brasilidade
As peripécias e tramas insólitas de que as crônicas de Veríssimo
dispensam em Comédias da Vida Privada se amalgamam na realidade
que se entrecruza às memórias do leitor, suas vivências ou sua
consciência sobre o cotidiano que compõe e recompõe sua experiência
de vida. A crônica se potencializa em um veículo cuja nau é o imaginário
e os ventos condutores são as microestruturas cotidianas fecundas,
divertidas e permissivas.
O microcosmo da vizinhança, as relações familiares, a vida social,
os ódios, os desejos, os querer-ser e os querer-ter se misturam
produzindo uma tessitura narrativa que se imiscui da cultura cotidiana e
se apresenta irrestrita no formato do gênero crônica. Tal efeito possibilita
às crônicas e comédias da vida privada da ficção se arrolarem às crônicas
e comédias da vida privada do aqui e do agora, em uma sucessão de
leituras, peças imaginativas e composições emocionais e espirituosas. Em
Veríssimo, o gênero a condimentação de uma brasilidade que se revela
nas entrelinhas irônicas, nas descrições espirituosas e em toda sorte de
carga emocional que sua palavra sustenta.
O relacionamento entre literatura e cultura não é novo, todavia
apresenta elucubrações e um fervilhar de perspectivas sempre fecundas
aos estudos literários. Isto porque as instâncias literária e cultural
convergem por um caminho comum imbricando perspectivas de suas
107
alçadas específicas, seja no jogo linguístico e na expressividade da
produção literária, seja na tessitura simbólica e construtiva entre sujeitos e
coletividades. Olinto (2008) discute que a linguagem – aqui entendendo a
literatura – em sua expressividade discursiva funciona como uma
entidade institucional na orientação da cognição individual sob o aporte de
significados culturalmente aplicados.
Nas acepções sobre a cultura, está aquela que a vê saberes
coletivos acionados em processos cognitivos e comunicacionais em torno
de comportamentos, atos e memórias. Nesse sentido, a produção literária
e as formações culturais em torno de sua complexidade, se anelam e se
acoplam mutuamente como fenômeno socializante e de matiz humana e
existencial (SINDER, 2008; MASSAUD, 2008). Afinal, os caminhos entre
literatura e cultura são inócuos mutuamente, como assegura Souza
(2008).
Estudos sobre a cultura, sua representatividade e dimensão
(GEETZ, 2008; WAGNER, 2012; LARAIA, 2014) tem se fundamentado,
como explicita Olinto (2008), a partir do entendimento da pertença dos
indivíduos ao próprio processo cultural. Isto significa apontar que os
estudos de cultura apontam para uma tendência contemporânea de
autocompreensão, de uma visão a partir de dentro sobre como valores,
princípios e aspectos identitários se estabelecem e não tão somente a
princípios régios vistos de fora do próprio processo cultural onde
pertencem os indivíduos. Partindo do princípio que a literatura constitui-se
simultaneamente patrimônio e prática cultural (SOUZA, 2008), seu escopo
e produção se constituem matéria de incidência cultural e espelho
reflexivo de sua conjuntura (HALL, 2013; COSTA, 2011).
Olinto (2008) salienta que a cultura é um objeto disciplinar referente
à observação, análise, comparação e integração de práticas culturais que
emergem e se mesclam por interferências inter e transculturais. Assim, a
produção literária que, observa e funde-se à realidade para expressar-se
e dar-se, forma um importante receptáculo e expositor de matizes
108
culturais diversos, derivados das relações autor/leitor (FOUCAULT, 2006)
e com forte apelo sobre sujeitos e coletividades. Nesse ínterim, as
proposições que se ancoram a este estudo ganham relevância e
substância ao articular o discurso literário – que se torna embebida da
realidade e, portanto, de influxo cultural – à dimensão do objeto de sua
locução, o alvo de sua expressão, seu sentido e espírito próprio.
A identidade nacional e os elementos que constroem a natureza
cultural do Brasil são temas abrangentes e foram alvo de grandes estudos
e obras (DAMATTA, 1997a; 1997b; 2004; RIBEIRO, 2006; 2008). Dos
ensaios antropológicos de Roberto Damatta (1997a; 1997b) e Darcy
Ribeiro (2006) ao painel áureo de João Ubaldo Ribeiro (2008), o território,
o tempo, o espaço, o brasileiro, hábitos, costumes, práticas e contextos
nacionais são entrelaçados a fim de se costurar o tecido plural e opulento
da identidade do Brasil. Na obra de Veríssimo não é diferente. O autor
construiu através de crônicas, contos, romances e cartuns tratados,
visões, criações e sátiras sobre o ordinário trivial do brasileiro, tornandose estimado, de grande leitura e influência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo concorre por uma brasilidade com reflectância literária.
Nas crônicas de Comédias da Vida Privada, Luís Fernando Veríssimo
delineia com sua escrita irônica e versada no cotidiano, um ordinário
extraordinário que nada mais representa do que a cultura brasileira ela
mesma, partilhada no dia a dia, recombinada e complexificada no tempo e
no espaço.
Do gênero, pode-se constatar sua eficácia bigenérica de trafegar
entre o conto e o jornalismo tendo o tempero corrigido pela
quotidianidade, a brevidade e a criação do autor. Tais características
tornam a crônica um gênero espaço e um gênero tempo, isto é, hábil em
promover interações espaciotemporais, logo, prontamente identificáveis
junto ao leitor. Essa acepção consagra a crônica como representante do
109
cotidiano que sob o pulso de Veríssimo se torna um observatório da
cultura.
A brasilidade e as identidades que se espraiam nos textos das
crônicas e comédias da vida privada são peças de identificação de um
vórtice cultural mais amplo e que no entrecruzamento cultura e literatura,
expiram e inspiram pelo retrato do aqui, do agora, da memória, da
percepção e das construções socioculturais que são parte do autor, do
leitor e de todos e cada um.
REFERÊNCIAS
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prática. São Paulo: Scipione, 1993.
COSTA, Gracilene Dias da. Currículo, narrativas culturais e processos
identitários. Currículo sem Fronteiras. v. 11, n. 2, p.54-69, jul./dez. 2011.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis.
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Para
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__________________. O que faz do brasil, Brasil? 8 ed. São Paulo:
Rocco, 1997b.
DUARTE, Sílvia Maria Silva. A percepção da ironia nas crônicas de Luís
Fernando Veríssimo. 2007. 102 p. Dissertação (Mestrado em Letras).
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2007.
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HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2 ed. Belo
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. São
Paulo: Zahar Editora, 2014.
MADEIRA, Ana Maria Gini. Da produção à recepção: uma análise
discursiva das crônicas de Luis Fernando Veríssimo. 2005. 106 p.
110
Dissertação (Mestrado em Linguística). Faculdade de Letras UFMG,
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SANT‘ANNA, Affonso Romano de. A Sedução da Palavra. Brasília:
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SINDER, Valter. Considerações sobre Antropologia e Literatura: o ensaio
como escrita da cultura. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHOLLHAMMER,
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VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias da Vida Privada. São Paulo:
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Glória Bordini. Porto Alegre: L&BM, 1982.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
111
A SENSUALIDADE E SEXUALIDADE DA MULHER CIGANA EM LA
GITANILLA E CARMEN
Ianny Lima Maia9
RESUMO: Por muito tempo, o corpo feminino era desconhecido e, por isso causava
tantos equívocos. Chegou a ser considerado como impuro, imperfeito e algumas de suas
funções biológicas eram tidas como abomináveis, fazendo com que as mulheres
reprimissem sua sexualidade e fossem temidas, tendo-as como um símbolo do pecado.
Uma das representações literárias de sensualidade e sexualidade que temos é a da
figura cigana. Sabemos que a literatura constrói estas personagens ciganas muitas
vezes como promíscuas, avassaladoras e permissivas, mas que, na realidade, esconde
uma sociedade extremamente machista. As duas obras aqui pesquisadas, La
Gitanilla (1614), de Miguel de Cervantes e Carmen (1845), de Prosper Mérimeé,
demonstrar-nos-á dois perfis distintos de personagens ciganas que carregam estes
estigmas da sensualidade e sexualidade.
Palavras-Chave: Sensualidade. Sexualidade. Mulher. Cigana.
RESUMEN: Durante mucho tiempo, el cuerpo femenino era desconocido y, por tanto,
hizo que muchos malentendidos. Llegó a ser considerado como impuro, imperfecto y
algunas de sus funciones biológicas se tomaron como abominable, haciendo que las
mujeres reprimen su sexualidad y eran temidos, que tiene como símbolo del pecado.
Una de las representaciones literarias de la sensualidad y la sexualidad lo que tenemos
es la cifra gitana. Sabemos que la literatura construye estos personajes gitanos a
menudo como promiscuas y permisivas abrumador, pero que en realidad esconde una
sociedad muy machista. Ambas obras aquí encuestados, La Gitanilla (1614), de Miguel
de Cervantes y Carmen (1845), de Prosper Mérimée, nos mostrará dos perfiles distintos
de personajes romaníes que llevan estos estigmas de la sensualidad y la sexualidad.
Palabras-Llave: Sensualidad. Sexualidad. Mujer. Gitana.
Assinalamos que ser mulher não é mais enigmático que
ser homem, pois o autêntico enigma é o da sexualidade
humana em geral.
Maria das Mercês Maia Muribeca
Por muito tempo, o corpo feminino era desconhecido, e por isso
causava tantos equívocos. Chegou a ser considerado como impuro,
imperfeito, e algumas de suas funções biológicas eram tidas como
abomináveis. Na Idade Média, muitas mulheres foram queimadas vivas
pela santa inquisição, por causa da libido feminina, uma vez que estas
filhas de Eva ainda representavam o pecado.
A psicóloga Maria das Mercês Maia Muribeca afirma-nos sobre as
mulheres: ―Ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, ela foi
9
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros.
112
responsabilizada por induzir o homem à traição e ao pecado‖
(MURIBECA, 2010, p. 101), ou seja, durante longos séculos, as mulheres
ainda eram inferiorizas por causa de seu sexo. Muitos anos depois, já no
fim do século XIX, o psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), em seus
estudos, relata-nos as possíveis origens dos traumas femininos, que,
segundo ele, viria da infância da mulher, que a psicologia chama de
castração. Como toda teoria foram-lhe apontados pontos positivos e
negativos, uma vez que a teoria é sustentada na insatisfação feminina por
não ter o órgão genital masculino.
Todavia, devemos nos ater à sexualidade das ciganas estudadas,
mas antes de tudo devemos destacar os costumes ciganos sobre a
temática. Segundo Clébert (1965), o povo gitano é abertamente contra a
homossexualidade e a uma vida extraconjugal. Caso venha a ocorrer o
adultério, as punições são diferentes.
Para
o
homem
que
expuser
sua
esposa
a
vexames
e
constrangimentos, o casamento é anulado imediatamente, e este corre o
risco de ser excluído do grupo. No caso da mulher adúltera, ela terá seus
cabelos raspados como um sinal de sua infidelidade e sofre violência, no
caso mutilações, como nos informa Clébert: ―(...)
los etnólogos han
recogido casos preciosos, tales como un ojo arrancado, dientes rotos,
orejas arrancadas‖ (CLÉBERT, 1965, p. 158). Podemos inferir que há a
desigualdade até mesmo nos castigos.
Sabemos que a literatura, em sua maioria constrói personagens
ciganas, como promiscuas e levianas, mas como podemos comprovar no
trecho acima, com as punições apontadas, estes atos tornam-se
repreensíveis, inclusive Clébert (1965) nos indica que na realidade não
existe prostituição cigana. Todavia, os pudores desta casta de mulheres
não correspondem com os nossos costumes ocidentais. Para elas, os
seios não são considerados partes sensuais e sexuais, portanto, os expor
não causa nenhum constrangimento.
113
Por outro lado, partes como músculos, pernas e ventre devem ser
tampados, adequadamente. Raramente são expostos em danças típicas
ciganas: ―Evidentemente, las danzas de las gitanas revelam una gran
parte de sus piernas y muslos, pero, cosa notable solos los gitanos
ven
en
ellas
un
espectáculo erótico‖ (CLÉBERT, 1965, p. 158).
Devemos ressaltar que o erotismo na dança não é algo intencional e
como um bom exemplo, em La gitanilla, tanto homens como mulheres
tinham o gosto em ver Preciosa dançar, ou seja, não é cogitado, ou
intencionado provocar sexualidade e insinuações aos homens e
expectadores.
Nas obras, objetos de estudo, depreendemos que as personagens
têm algumas atitudes muito diferentes, principalmente no que tange ao
ego e ao desejo. Como podemos perceber em nossas leituras, enquanto
Preciosa não gostava de receber galanteios, Carmen fazia questão de
responder a cada olhar atrevido e carregado de cortejamento. Esta
convivia com muitos homens do seu bando, enganava a qualquer um e
ainda usava roupas sinuosas, como podemos observar no trecho:
―Llevaba una falda roja, bastante corta (...) Iba acomodándose la mantilla
para que no se le viera la garganta y un ramo de acacia que le salía del
pecho‖ (MÈRIMÈE, 2005, p. 73). Diante disso, podemos dizer que
Carmen era uma mulher que exalava sensualidade, mistério e não tinha
nada de pudores, talvez por isso atraísse tantos homens.
A autora Suzana Pravaz, em seu livro Três estilos de mulher, traznos o modelo de uma mulher sensual e da qual se encaixa perfeitamente
a nossa cigana: ―Seu território é a relação com os homens, sua tarefa é
conquistar o olhar e a atenção afetiva das pessoas que a rodeiam. O êxito
supremo era ser a escolhida, a favorita do Homem Máximo, o mais
desejado, cotado e inacessível dos prêmios‖ (PRAVAZ, 1981, p. 59).
Para Carmen, a conquista era o melhor da relação, porém quando o
conquistado já não lhe bastava, ela o descartava facilmente. Sobre o
comportamento da cigana, Buades nos fala: ―Aproveita seus encantos
114
para atraí-los, conquistá-los, despojá-los de sua dignidade e depois jogálos fora como se fossem objetos fúteis‖ (BUADES, 2006, p. 229).
Em contraponto, temos Preciosa, mulher discreta e arraigada a seus
valores. Ela sempre buscava cantar poemas românticos, que não
ofendessem a honra nem a moral dela e de ninguém. Em muitas de suas
falas sobre seus princípios, podemos destacar o seu discurso para Don
Juan: ―Una sola joya tengo, que la estimo en más que a la vida, que es la
de mi entereza y virginidad, y no la tengo de vender a precio de
promesas
ni
dádivas‖ (CERVANTES, 1938, p. 39), vemos que a
virgindade era algo de apreço da personagem e podemos colocar
algumas considerações do porquê desse apreço.
Primeiro porque a
novela era exemplar e essa exemplaridade se refletia nas personagens
de Miguel de Cervantes. A segunda é a verdadeira ―genética‖ de
Preciosa, uma vez que ela é nobre, logo tem a ―predisposição‖ ao
refinamento e boa conduta.
Outro fato é a de ser cigana, sabendo que estas davam muita
importância à castidade, uma vez que a sociedade cigana é machista,
todavia apresenta um discurso ambíguo. Quem nos comprova isto é Colin
Thompson, quando nos afirma que: ―Para ella, la virginidad de la que se
precia tiene un valor más espiritual que físico; simboliza la libertad del
alma y el dominio que quiere ejercer sobre el cuerpo‖ (THOMPSON,
2001,p. 89),
ou
seja,
que
a virgindade de Preciosa
significa sua
dignidade como mulher, que pode fazer suas próprias escolhas.
Devemos destacar que a virgindade, por muitos anos, foi cultivada
pelas moças como símbolo de sua pureza e motivador para o bom
casamento, preceito criado tanto pela religião, quanto pela sociedade.
Entre os ciganos, como já foi falado, há uma grande importância na
virgindade de uma mulher, como podemos observar no trecho: ―(...) las
muchachas que se entregan con amor, tienen circusntancias atenuantes.
En general, la cuestión de la virginidad no se plantea hasta el momento
del matrimonio‖ (CLÉBERT, 1965, p. 152), ou seja, o ato sexual só pode
115
ocorrer mediante o casamento. Preciosa, portanto, mantém-se virgem,
todavia em Carmen, deixa-se subentendido a liberdade sexual da
personagem, uma vez que mantinha vários amantes. Entretanto,
podemos notar que a honra está presente nas duas narrativas.
Em La gitanilla, por várias vezes, nos é exaltada a honra de Preciosa
e de Don Juan /Andrés, mesmo quando este entra para o grupo cigano.
Roubar lhe causava muito mal, por isso criou outros meios para
sobreviver. Acerca deste gesto Luisa López Grigera comenta ―(...) el jóven
Cristiano de buena família se marcha con ellos por amor de Preciosa, y se
mantiene sin cometer ninguno de los delitos tópicos de los gitanos‖
(LÓPEZ GRIGERA, 1994, p. 156), além de manter sua promessa de
esperar a decisão da ciganinha de se casar ou não ―(...) pues entrambos
habremos guardado honestamente y con pontualidad lo que nos
prometimos‖ (CERVANTES, 1938, p. 83). Revisitando a criação de
Cervantes, notamos a importância da honra, na manutenção dos
compromissos e do cumprimento das regras, como nos assegura Lopes
Grigera
Precisamente el narrador atribuye esa honestidad firme al
hecho de su agudeza, cosa que se corresponde con las
teorías de la moral aristotélica: el obrar y operar siguen al
conocer la verdad, al distinguir entre el bien y el mal
(LÓPEZ GRIGERA, 1994, p.158).
Em Carmen, percebemos uma preocupação de Don José com a
honra de Carmen ―Y como además era la primeira vez que mostraba ante
mi algo del recato de las mujeres honradas, fui bastante simple para creer
que se había realmente corregido de sus modales de antaño‖ (MÈRIMÈE,
2005, p. 113). Vemos que ele se preocupava com a mudança de atitudes
de Carmen, uma vez que ela mesma não se importava com as opiniões
alheias e nem como suas ações poderiam repercutir.
Uma vez que estamos falando sobre este assunto, não podemos
deixar de falar de outro tema recorrente nas duas obras: a liberdade, que
116
segundo nos afirma a mestre Marcella Macêdo Sampaio de Souza, em
sua dissertação O Amor, a liberdade e a morte: diálogos entre A Casa de
Bernarda Alba e Os sete gatinhos explica que: ―Libertar, senso comum, é
um verbo associado a manifestações de júbilo, quase sempre
relacionadas com a reparação de um estado anterior de aprisionamento,
físico ou espiritual‖ (SOUZA, 2002, p. 49). Dessa maneira, apreendemos
que a liberdade não condiz somente com a prisão física, mas também,
com a mental e com a sentimental.
Sabemos que a liberdade é à base de uma vida cigana e nômade.
Os ciganos procuram, ao máximo, não terem raízes, não terem moradia
fixa. Muitos não têm documentação, não guardam objetos dos que já
foram e se quer registraram sua cultura. Com isso, nota-se que a
liberdade é fundamental como nos afirma: ―Os ciganos prezam, acima de
tudo, a liberdade‖ (MARSIGLIA, 2008, p. 60). Nas narrativas, o discurso
das personagens não poderia ser diferente, inclusive há nas duas obras
falas muito parecidas. Vejamos: Carmen diz para Don José já prestes a
morrer: ―(...) pero Carmen será siempre libre. Caló nació y caló morirá‖
(MÈRIMÈE, 2005, p. 155).
Preciosa diz algo muito parecido para Don Juan e ao velho cigano:
―Estos señores bien pueden entregarte mi cuerpo, pero no mi alma, que
es libre, y nasció libre, y ha de ser libre en tanto que yo quisiere‖
(CERVANTES, 1938, p. 55). Como se vê, devemos salientar novamente
que a sociedade cigana é sexista e quando fazemos a leitura dos
conselhos dados pelo velho cigano, podemos comprovar isto, quando
Colin Thompson nos chama a atenção dizendo: ―(...) no es dificil llegar a
la conclusión de que Cervantes está condenando una sociedad masculina
que se dedica con una ferocidad bestial a la opresión de las mujeres‖
(THOMPSON, 2001, p. 89), ou seja, este dizeres das personagens são a
reafirmação para elas mesmas e para os outros, que serão livres até que
elas morram. Pois não será uma sociedade ou um homem que decidirá
117
seu destino, como se a liberdade fosse um lema cigano. Neste caso da
mulher cigana, a liberdade é a base de suas vidas.
Souza ainda nos aponta que ―Muito do que se diz sobre a liberdade
remete ao exercício da sexualidade e, neste âmbito, com o subjugo da
mulher numa sociedade (...)‖ (SOUZA, 2002, p. 50), de comum acordo
com a citação, a personagem Carmen sempre desejou o amor e uma
relação afetiva, mas de forma que respeitasse sempre sua liberdade ―(...)
No quiero que me den ordenes, y menos que me obliguen. Quiero ser
libre y hacer lo que se me antoje‖ (MÈRIMÈE, 2005, p. 140). A
personagem necessita de sua liberdade para sentir-se plena. Clébert
(1965) nos aponta que os ciganos são unidos pelo amor à liberdade, por
estarem sempre fugindo das amarras da sociedade, e sempre sendo
donos de si mesmos. A culpa de Carmen é desejar tanta liberdade, como
identidade cultural, já que a causa maior dos gitanos é a necessidade vital
de ser liberto.
Preciosa também afirma que precisa de sua autonomia: ―(...) sepa
que comigo há de nadar siempre la liberdad desenfadada‖ (CERVANTES,
1938, p. 40). A todo o momento, a personagem fala de sua condição a
Andrés, que se quiser tê-la como esposa, primeiro terá que aceitá-la com
uma mulher livre. E mais uma vez nos apoiamos na seguinte afirmação:
―El humorismo cervantino ve en ellos a personajes interesantes, por lo
menos, e incluso a personajes «libres» en un mundo con poca libertad‖
(CLÉBERT, 1965, p. 9), ou seja, Miguel de Cervantes escreveu Preciosa
como uma revolucionária, que desejava a sua independência numa
época,
cuja
liberdade
lhe
era
pouca,
e
em
uma
sociedade
sobrecarregada de preconceitos.
Das colocações feitas neste texto, devemos ressaltar a importância
que a figura cigana tem nas duas obras, visto que são ícones da nação
espanhola, representando uma dança, uma cultura, um estereótipo e um
povo discriminado que encontrou na vida nômade traços inconfundíveis
que nos permite identificá-las como sinônimo de beleza, alegria e
118
sensualidade. Para Preciosa, há muita importância a sua virgindade e a
sua liberdade. Já para Carmen a liberdade era crucial, mas não somente
a liberdade física, mas a liberdade de amar, de se expressar e morrer
lutando por seus ideais. Carmen é a representação do anti-herói. As
divergências entre Carmen e Preciosa enriquecem a vastidão do mundo
cigano. Esta altruísta e pura e aquela lasciva e jactanciosa.
REFERÊNCIAS
BUADES, Josep. M. Os espanhóis. São Paulo: Contexto, 2006.
CERVANTES, Miguel de. Novelas Ejemplares. (Edición, introducción y
notas de Pedro Henríquez Ureña). Buenos Aires: Editora Losada, S.A,
1938. Vol.1.
CLÉBERT, Jean Paul. Los Gitanos. Prólogo del Dr. Julio Caro Baroja.
Barcelona: Aymás, S.A. Editora, 1965.
LÓPEZ GRIGERA, Luisa. La Retórica en la España del Siglo de Oro:
teoría y práctica. Salamanca: Universidad, 1994.
MARSIGLIA, Luciano. A saga cigana. A história e os segredos do povo
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Ed.256, p.80 – 85, set. 2008.
MÈRIMÉE, Prosper. Carmen. 2. Ed. Buenos Aires: Longseller, 2005.
Clásicos de Siempre.
MURIBECA, Maria das Mercês Maia. Das origens da sexualidade
feminina ao feminino nas origens da psicossexualidade humana. Estudo
de Psicanálise, Aracaju, n.33, p.101-108, julho, 2010.
PRAVAZ, Susana. Três Estilos de Mulheres: a doméstica, a sensual, a
combativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SOUZA, Marcella Macêdo Sampaio de. O Amor, a Liberdade e a Morte:
Diálogo entre A Casa de Bernarda Alba e Os Setes Gatinhos. 109.
Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Pernambuco. Recife,
2002.
119
THOMPSON, Colin. Horas hay de recreación, donde el afligido
espíritu descanse: reconsideración de la ejemplaridad en las Novelas
ejemplares de Cervantes. Actas del V Congreso de la AISO, Frankfurt:
Christoph Strosltzki (ed.), Iberoamericana, Vervuerl, 2001.
120
EROS VERBALIZADO NA POESIA DE MAX MARTINS: A LINGUAGEM
DO AMOR E DO DESEJO
Ingrid da Silva Marinho (UFPA/UNIMONTES)
RESUMO: Este estudo debruça-se sobre a poesia de Max Martins, no sentido de sugerir
ligações de sua poética com o erotismo - veia criadora de pulsão e de continuidade na
poesia, considerando a linguagem como fio condutor de sua produção, apresentando
uma escritura marcada por um rigoroso trabalho com a palavra, a poesia fertilizada pelo
verbo. Eis que surge a linguagem do amor e do desejo na poesia de Max, a partir de um
Eros verbalizado pelo poeta. Para além, farei uma breve contextualização do
modernismo, enfatizando a literatura produzida em Belém do Pará, referente à época de
produção de Max Martins. Em seguida, Eros traça seu caminho até chegar na linguagem
do amor, passeando pelo Banquete, e do desejo do Poeta-Édipo, quem nos revela os
enigmas de sua Poesia-Esfinge.
Palavras-chave: Max Martins. Poesia. Eros. Amor. Desejo.
RESUMÉ: Cette étude se prenche sur le poésie de Max Martins, dans le sens à suggérer
des liens de sa poétique avec l‘érotisme – veine créatrice d‘impulsion et de la continuité
dans la poésie, en considérant la langue comme le fil conducteur de sa production, en
présentant une écriture marquée par in travail rigoureux avec le mot, la poésie fécondé
par le verbe. Voici le language de l‘amour et du désir dans la poésie de Max a partir d‘un
Eros verbalisé par le poète. Ensuite, Eros trace son chemin jusqu‘à l‘obtenir le language
de l‘amour, en promenant par le Banquet, et le désir du Poète-Édipo, qui nous révèle les
enigmes de da Poésie- Sphinx.
Mots-clés: Poésie, Erotisme, L‘amour, Désir, Max Martins.
É possível entender o erotismo como uma atividade de significação
e subjetividade humana, no sentido de ser uma experiência interior, um
mecanismo de ligação entre seres descontínuos os quais, por meio da
relação erótica, procuram estabelecer uma relação de continuidade com o
outro, mas também com o todo, com o cosmo. Nessa visita ao estudo do
erotismo, encontrei o poeta Max Martins, condutor de meus passos por
esse caminho, quem sabe, duvidoso. Superados os percalços, este
trabalho propõe analisar as manifestações do erotismo em seus poemas,
considerando a linguagem como fio condutor de sua produção poética,
sem que o erotismo tenha, apenas, a finalidade de reprodução e/ou
prazer, mas sim o acasalamento entre palavras cuidadosamente
fecundadas para suas poesias.
121
Max da Rocha Martins nasceu em 20 de junho de 1926, em Belém
do Pará. Filho de Eurico Martins, estudou no Colégio Paes de Carvalho e
frequentou o Central Café, acompanhado por uma geração de intelectuais
formada por Benedito Nunes, Jurandyr Bezerra, Cauby Cruz, Mário
Faustino, Paulo Plínio, todos orientados pelo professor Paulo Mendes.
Um grupo que formaria a mais brilhante geração literária da história
belenense. Em 1952, publicou seu primeiro livro O estranho, seguido por
Anti-retrato (1960), H’era (1971), O ovo filosófico (1975), O risco subscrito
(1976), A fala entre parênteses – com Age de Carvalho (1982), Caminho
de Marahu (1983), 60/35 (1986), Não para consolar (1992), Para ter onde
ir (1992) e Poemas reunidos (2001).
Na tragédia Édipo-Rei10, de Sófocles, é a esfinge que Édipo11
encontra em seu caminho trágico. Ele lhe decifra o enigma e, como
consequência, a esfinge atira-se ao mar para morrer. No entanto, antes
que isso ocorresse, a esfinge lá esteve a devorar os que não resolviam
seu enigma. Ou me decifras ou te devoro, dizia a estranha mulher de
pedra. Segundo SANT‘ANNA (1993), os estudiosos desse mito assinalam
duplicidade de seu significado, sendo ao mesmo tempo uma imagem
ligada ao amor e à morte. Mas para Max Martins, a poesia é esfinge
fácil/dedilhável12, puro amor à palavra.
Max, o Poeta-Édipo soube decifrar o enigma da Poesia-Esfinge.
Fez parte de uma geração de intelectuais que frequentava as reuniões do
Central Café, em Belém, liderada pelo professor Francisco Paulo
Mendes, o Chico Mendes. Para o Poeta-Édipo poesia é:
Eu não sei, busco saber o que seja. Pergunto para ela... A
poesia é sempre uma dúvida. Começa que a palavra que a
gente tem a ilusão... mente a si mesmo de que a palavra é a
coisa, mas nunca é a coisa. É como diz o mestre zen budista:
10
“Rei de Tebas, que matou seu pai, casou-se com sua mãe, trouxe por seus atos infame a peste e a
desolação ao seu povo, culminando no suicídio da mãe-esposa, na cegueira voluntária do herói
(que fura os olhos), no seu banimento e na execração de seus filhos, [...].” (CHAUÍ, 1984, .55)
11
Aquele que arrancou os próprios olhos depois que viu o assassínio e o encesto que cometera.
(SANT’ANNA, 1993, p.76)
12
Poema No princípio era o verbo. (MARTINS, 2001, p.209)
122
Não confunda a lua com o dedo apontando para a lua.
(MARTINS, 2000, p.03)
Como artesão da palavra, o Poeta-Édipo soube elevar o nível
linguístico da Poesia-Esfinge às composições estéticas que comprovam
todo um trabalho e uma preocupação com um estilo próprio e diferenciado
de fazer poesia, trabalhando com o léxico à medida que construiu uma
composição entre imagem e palavra.
Os poemas de natureza erótica do ―Mestre- Aprendiz‖13 refletem
situações existenciais; o erótico se manifesta além do carnal, onde a
poesia procura se apresentar por meio de uma constante busca do
autoconhecimento. No poema Koan14, segundo Nunes (2000), é possível
notar essa relação como elemento de força, erotizando a natureza (terra),
―a união de dois numa só carne com a penetrante escavação semânticoetimológica de venérea palavra castiçamente latina (fodere = cavar)‖.
(NUNES, 2000, p. 28) O desvelado verbo sexualiza a natureza.
Cavo esta terra – busco num fosso
FODO-A!
agudo osso
oco
flauta de barro
sôo? (MARTINS, 2001, p. 280)
Caldas (2000) afirma que, na poesia de Max, o erotismo se
distancia do sexo puro e simples – o qual tem o objetivo apenas de
procriação e/ou desejo- e se aproxima do autoconhecimento; passa a ser,
então, Anti-retrato. O Mestre- Aprendiz desvela o corpo do poema, entre a
carne e o osso do poema15 escava a terra à procura da palavra, do verbo
carnal, nos confins do poema, onde erotismo e poesia se aproximam.
E o verbo se fez carne
escrita
se precipita
esfinge fácil (MARTINS, 2001, p. 209)
13
Título do prefácio Max Martins, Mestre-Aprendiz, escrito por Benedito Nunes, do livro Não
para Consolar, publicado em 1992.
14
Livro H’era.
15
Poema Duas figuras (MARTINS, 2001, p.67)
123
O verbo brota do sêmen de Eros e, Eros do corpo das letras. Eros
semeia e é semeado e, a poesia fertilizada. Mas o poeta vai além. Ele
trabalha a palavra em função de sua sonoridade e de sua imagem na
composição geral do poema, apresentando uma escritura marcada por
um rigoroso trabalho com a palavra – o próprio gozo da palavra dita / da
palavra lida: Vida16.
Nas palavras de Lutero, amar é o mesmo que odiar a si mesmo; e
nas palavras de Santo Agostinho, o amor mata o que fomos, o que
podemos ser, o que não fomos. Seria o amor um nó, no qual se amarram,
indissoluvelmente, destino e liberdade, como Octávio Paz (1994, p.39)
afirmou? Para responder as infinitas indagações a respeito, o autor
relembra o surgimento da filosofia do amor, que segundo ele surgiu na
Grécia e destaca Platão como o primeiro filósofo do amor, também poeta.
Fedro e O Banquete, de Platão, são os dois diálogos consagrados ao
amor. De acordo com Macedo (2001): Esses discursos são véus e
máscaras que ocultam e revelam a natureza de Eros, em um jogo
discursivo a oscilar entre o elogio e a verdade, entre mostrar e esconder a
verdade do amor. (p.18)
Platão, em O Banquete, mostra algumas inversões do amor. A
condenação ao Eros sexual nos discursos de Fedro e de Pausânias é
uma discussão que perdura até os dias de hoje. No discurso de Fedro
não está explicito as desgraças que Eros passa causar ao homem por
causa do desejo sexual. Eros ora aparece como maravilhoso, digno de
admiração dos deuses, ora como vergonhosa, mas em nenhum caso
(exceto em Aristófanes) a relação de amor se constitui a partir da
reciprocidade. O amor instaura entre os seres humanos, não uma luta
desigual pela posse do objeto amado, mas, como Platão deixa claro, uma
erótica fundada na habilidade de transfigurar-se ambos a si mesmos e
vencerem os degraus da paixão amorosa e do desejo e, com mais forte
razão, do conhecimento e da contemplação.
16
Poema Eu, poema (MARTINS, 2001, p.143)
124
A linguagem do amor também enobrece a poesia. Os versos de
Max Martins. Ao passear os olhos na prazerosa leitura de Platão, vi
também nos versos de Max o Amor: a fera17. A menção ao verso moderno
nos remete à caracterização de uma poesia mais livre, uma poesia nua.
Corpo e poesia se misturam. O tema do amor se anuncia desde 1960,
com a publicação de Anti-Retrato, segundo livro de Max Martins. Nele a
equivalência entre erótica e a poética aparece na construção das
metáforas do corpo feminino como mediadoras do trabalho artístico com
as palavras. ―A pá nas minhas mãos vazias/ [...] Cavo esta terra-busco
num fosso/FODO-A/ agudo osso/oco/flauta de barro/soo?‖18 – Max
Martins inscreve sua arte no genuíno reino de Eros, aquele que espreita
na escuridão. O ato poético, desse modo, se faz escrita, ato fundador:
língua e erotismo se enlaçam indefinidamente, aguçando os sentidos
humanos. Nessa imersão, difícil é para o leitor distinguir o caráter erótico
do trabalho lapidar com a linguagem. Ambos fundam a linguagem poética
do Poeta-Édipo, conforme se pode ler a seguir: poema Copacabana.
Copacabana
Preamar de coxas
sugestão de pelos
úmidos
no verde-mar-azul
Os sexos derramam-se na areia
(conchas)
furam as ondas
(seios)
baixam palpitam
As coxas abertas frescas
Dentro o mar lhes canta
planta
a branca espuma do amor
e esfria. (MARTINS, 2001, p.336)
No poema acima, Max Martins manifesta o amor, tema que tomará
proporções muito maiores nas demais obras e assumirá o posto de centro
gerador dessa poesia; a temática do amor carnal está sempre às voltas
17
18
Poema Amor: a fera, in MARTINS, Max. Poemas reunidos 1952-2001. p.301.
Poema Koan, in MARTINS, Max. Poemas reunidos 1952-2001. p.280.
125
com a poesia de Max. A lírica de Max Martins é marcada por estar
desnudada e sem tabus; ela se apresenta sem vestes diante dos olhos do
leitor, que nela passeia, desfrutando de todo o prazer (ou angústia) que
dela jorra. Nessa lírica, entrelaçados intimamente estão o erotismo e a
poesia. Nas palavras de Octavio Paz (1994):
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem
afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda
uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição
complementar [...] A imaginação é o agente que move o ato
erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em
cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. (p.12)
Assim como o erotismo, a poesia destina-se a provocar prazer no
mundo, no seu exterior. Ambos destinam-se aos mesmos fins, contudo
utilizam-se de meios diferentes. O erotismo se realiza através do corpo, já
a poesia o faz por meio do verbo. A linguagem de Max acende a ―caixa de
Pandora‖19 do amor – O amor escreve / escreve / apaga escreve /
lambe20. O amor pode ser agora, como foi no passado, uma via de
reconciliação com a natureza. Na poesia de Max Martins, as dimensões
do erotismo e do poético se entrelaçam, tal como o amor e a natureza
materializam-se na plenitude da experiência erótica. O poeta bebe o vinho
do amor, come a carne e o osso do poema.
Marilena Chauí (1990), no texto Laços do desejo, apresenta um
histórico do erotismo que parte de uma visão primordial muito ligada às
forças da natureza, uma força cósmica ordenadora do mundo, até os dias
atuais. A reflexão presente no artigo de Chauí (1990) consiste em
construir um percurso filosófico do desejo desde o século XVII, a fim de
perceber que o sentido atual de erotismo não é mais o mesmo de outras
épocas. O que era natural passa a ser interditado, o sentido foi
transmutado após o ―desencantamento do mundo‖, ou seja, a chegada da
modernidade, que a autora considera ―ideias e práticas desenvolvidas na
19
É um artefato da mitologia grega tirada do mito da criação de Pandora, a primeira mulher criada
por Zeus.
20
Poema Humor (MARTINS, 2001, p.92)
126
Europa a partir do século XVII, sob os imperativos da racionalização de
todas as esferas do real [...]‖ (CHAUÍ, 1990, p.19).
Chauí (1990) encerra seu artigo com a questão: ―Que é, pois, o
desejo?‖. Após tantas reflexões em torno de várias concepções, podemos
afirmar que Chauí chega ao mesmo ponto que Bataille (2004), isto é,
define o desejo como a busca de uma satisfação que nunca vai ser
atingida. Além disso, ele é o esforço do sujeito de se manter distante da
morte; nas palavras da autora, é ―manifestação consciente do esforço
individual de autoconservação na existência‖ (CHAUÍ, 1990, p.56).
Entender que os territórios do desejo de Max, nos torna atentos e
dispostos a mergulhar nas águas de jogos verbais; o poeta redesenha os
territórios da linguagem, liberto de cobertas e coberto de prazer e desejo
traz em si a demanda diária de uma poesia em essência germinativa:
―pois que há uma canção em ti/submarina/ [...] Eu/Eros/quero/te dizer,
disseminar, minar-te‖ (MARTINS, 2001, p.91)
Um corpo
Por ele canto
escrevo-falo
pelo eu dum osso
Cresce nele um sopro
um corpo
escorre o seu discurso
Tu és o leito
Eu o leitor
e nisto leito
deito
o aquilo dito
lido líquido
que o sangue supre
a pele sua
e me interpela: escrevo-amo?
Dizer não é
Tudo é interdito
ou não se vê
tão perto
E disto nisto
escrevo-escravo (MARTINS,2001, p.247)
A erotizada palavra-corpo de Max Martins, no poema acima, nos dá
uma ideia em que portos a poesia de Max irá ancorar. Paz (1994) afirma:
―A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação,
127
que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal‖
(p.12). A metáfora, então, seria a sexualidade transfigurada em erotismo.
E como assevera o autor, o sexo tem como sentido primeiro a procriação,
mas o erotismo não, pois ele não alcança a funcionalidade procriadora, é
sexo em ação e tem o fim em si mesmo. Logo, a linguagem poética de
Max Martins é em sua essência erotismo; ela erotiza a linguagem ao
desviar a língua de seu intuito primeiro, o de comunicar. Por isso, o texto
poético é diferente do informativo, sua comunicação é mais velada, não
inacessível, ele se comunica com o espírito humano. A poesia-corpo de
Max Martins não se detém em manifestar os desejos carnais, mas gera
em suas entranhas novas concepções de corpo. Em torno do círculo
rodeado por metáforas, o poeta escava as palavras, a poesia e o amor
seguem – o poema é a sede que o desejo de uma sede maior sacia21.
Segundo Nunes (2000), o amor é o tema central em Anti-retrato, velado,
sob a metonímia do corpo feminino – As coxas abertas frescas22, da
carnalidade – Teu, meu corpo / sangrando de ti23.
Se é verdade que o amor sexual é o tipo gerador de todo outro
amor, conforme NUNES (2000), não é menos certo que uma poesia
erótica é, antes de tudo, como a de Max, uma poesia carnal do corpo
todo.
Max Martins desejou uma poesia, que tem como componente
fundamental a busca permanente pela palavra mutante, as quais conduz
para um lugar de imagens; imagens que deslizam dentro do poema; a
poesia como matéria da poesia.
(...) o poema se faz de conteúdo e forma, desse acasalamento,
o poema é uma grande cópula entre as palavras. Essa é outra
coisa que me interessa do erotismo na poesia, as palavras se
casando, a palavra que puxa a palavra. (MARTINS, 1990, p.06)
Em suma, os corpos do poema se encontram plenamente
reconciliados na unidade ―absoluta‖ do acontecimento erótico-amoroso,
21
Poema Edmond Jábès: as palavras elegem o poeta (MARTINS, 2001, p. 377)
Poema Copacabana (MARTINS, 2001, p. 336)
23
Poema Sangrando de ti (MARTINS, 2001, p. 167)
22
128
em torno do círculo rodeado por metáforas, o poeta escava as palavras; a
poesia e o amor seguem. O desejo de Max foi encontrar o gozo da
palavra, renovando sua linguagem poética, através do verso livre, do jogo
com as palavras e da ruptura com o tradicional. O Poeta-Édipo desvenda
o enigma da Poesia-Esfinge, viola a linguagem e equilibra o desejo da
poesia e do amor, do verbo e do corpo, em um só espelho, líquido e livre.
Max adotou o erotismo da palavra. A palavra escolhida. O verbo
certo para compor suas linhas de labor poético. O ato de fazer amor com
as palavras, simulação de um ato físico, erótico, agora com outros corpos.
Nos poemas de Max Martins aqui transcritos, a palavra encontra-se numa
estreita relação entre Arte erótica e Arte poética, entre sexualidade e
linguagem; aparece como motivo centralizador, que traz pelo fio condutor
de Eros uma escrita marcada pelo labor poético.
REFERÊNCIAS
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BONAPARTE, Marie. Chronos, Eros, Tanatos. Paris: Denoel, 1948.
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2001.
MARTINS, Max. Poemas reunidos: 1952- 2001. Belém: EDUFPA, 2001.
MARTINS, Max. Poetas do Pará: depoimento. [28 de junho, 2000]. Belém:
Jornal O Liberal. Entrevista concedida a Tito Barata.
129
NUNES, Benedito. Max Martins, Mestre- Aprendiz. In Revista Asas da
Palavra. v. 5, n.11. Belém: Unama, 2000.
MARTINS, Max. Entrevista concedida ao Jornal O Liberal. Belém, 15
març. 2001.
PAZ, Octávio. A Dupla Chama: amor e erotismo. Trad. Wladyr Dupont.
São Paulo: Siliciano, 1994.
PAZ, Octávio. Conjunções e disjunções. Trad. Lúcia Teixeira. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
MARTINS, Max. Entrevista concedida ao Jornal A Província do Pará.
Belém, 16/06/1990.
PLATÃO. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém:
EdUFPA, 2011.
SANT‘ANNA, Affonso. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em
nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
130
―PRECISA-SE DE COZINHEIRA, QUE FAÇA ODES, POEMAS E
NOVELAS‖: A CORRESPONDÊNCIA ENTRE MULHERES DE LETRAS
Drª Ivana Ferrante Rebello
(Universidade Estadual de Montes Claros- UNIMONTES)
RESUMO: A análise da correspondência de três escritoras – Cecília Meireles,
Henriqueta Lisboa e Lúcia Machado de Almeida, num período que compreende a década
de quarenta até 1963, revela a cumplicidade de mulheres escritoras e uma complexidade
de papeis que confundem as reflexões de intelectuais com as questões rotineiras, como
os afazeres domésticos e os problemas de saúde. Essas correspondências, que se
encontram no Acervo de Escritores Mineiros, da UFMG, evidenciam questões singulares
do fazer literário feminino e elucidam um movimento de bastidores que se formava, rumo
a uma consciência sobre o lugar da mulher escritora no panorama literário nacional.
Palavras- chave: Correspondência; Cecília Meireles; Henriqueta Lisboa; Lúcia Machado
de Almeida.
Abstract: This article analyzes the correspondence of the three writers - Cecilia Meireles,
Henriqueta Lisboa and Lúcia Machado de Almeida, between forty to sixty, the twentieth
century. This correspondence reveals the complicity of women writers in their roles as
intellectuals and housewives. The letters show expressions of women's writing and allow
reflection
on
the
place
of
women
in
the
national
literary scene.
Key words: Correspondence; Cecília Meireles; Henriqueta Lisboa; Lúcia Machado de
Almeida.
Escrever cartas, antes de ser uma reconhecida forma de interação
social, é um ato intrinsecamente ligado à memória e, como tal, também
ligado ao arquivamento do eu. Mas para que se escrevem cartas? Para
conhecer e ser conhecido; para se informar, expressar opiniões e
sentimentos, narrar acontecimentos; para alívio próprio, para ser lido por
um ou por muitos. Escreve-se, antes de tudo, para conhecer a si mesmo,
como observa Mário de Andrade em carta a Henriqueta Lisboa:
―escrevendo eu parece que consigo penetrar mais fundo em mim‖
(CARVALHO, 1991, p. 119).
A carta, tal como a memória, é marcada pela lembrança e pelo
esquecimento, é um discurso lacunar que nasce da ausência de algo ou
de alguém. Como queria Foucault (2004, p.156), escrever é uma
objetivação da alma, uma introspecção seguida de uma abertura para o
131
outro. Se escrever cartas também é uma forma de arquivar-se, vale
lembrar as considerações de Philippe Artières sobre o arquivamento do
eu:
O arquivamento do eu não é uma prática neutra, é muitas vezes
a única ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e
tal como desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é
simbolicamente preparar o próprio processo: reunir peças
necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a
representação que os outros têm de nós (ARTIÈRES, 1998, p.
31).
Ao arquivar-se nas cartas, além de uma defesa prévia para
representações que os destinatários tenham criado, o escritor também
prepara sua encenação e, de forma intencional, deixa exposta uma ou
várias imagens de si mesmo, o que configura uma atitude que em nada
se aproxima da imparcialidade. O arquivamento do eu, assim, seria uma
forma de controle e de resistência, pois, arquivando-se, o escritor
controlaria sua imagem pública e resistiria ao esquecimento, reafirmandose no cenário intelectual.
A correspondência enviada por Cecília Meireles a Henriqueta
Lisboa constitui-se de um conjunto de cartas inéditas, que retratam
aspectos biográficos e inquietações, principalmente ligadas ao fazer
literário. Os arquivos de Cecília encontram-se lacrados por seus
herdeiros, o que impossibilita a reconstituição do diálogo estabelecido
entre duas importantes figuras femininas do cenário das letras nacionais.
Assim, no caso das cartas enviadas por Cecília Meireles, foram estudados
apenas os originais que se encontram na Sala Henriqueta Lisboa, no
Arquivo de escritores mineiros, UFMG.
Em carta datada de 16 de fevereiro, de 1945, Cecília Meireles
confessa a Henriqueta: ―Sabe o que eu acho cada vez mais admirável? A
amizade entre gente de letras, principalmente quando essa gente é do
nosso sexo.‖ Na observação da autora de Romanceiro da Inconfidência,
ler-se-ia um desconforto e a necessidade da construção de um lugar
132
outro, que contemplaria um perfil de mulher e de escritora, ainda pouco
explorado pelos estudiosos da escrita de gênero.
A correspondência de Cecília Meireles endereçada a Henriqueta
Lisboa constitui-se de um conjunto de 42 cartas e sete cartões, enviados
no período de 1931 a 1963, sendo mais intensa a troca de cartas entre
1942 e 1949. Trata-se de um importante material de pesquisa, pois
contém informações biográficas, reflexões sobre o processo de criação
literária, a recepção da crítica, e notícias a respeito de publicações das
autoras.
No conjunto de cartas assinado por Cecília, há uma certa
cumplicidade entre as correspondentes, o que não se observa nas cartas
de Drummond ou nas de Mário de Andrade. Tal cumplicidade se nota, por
exemplo, em assuntos desusados entre os missivistas masculinos como o
pedido de 122 informações sobre que tipo de traje usar nas noites da
capital mineira, ou ainda em comentários irônicos sobre a crítica literária
feita nos jornais e a atitude do ser humano. Os desabafos de problemas
pessoais, relativos à saúde, à administração da casa, à solidão e ao
excesso de trabalho, também são temas constantes.
Às vezes, o tom bem humorado cede lugar à angústia causada pelo
ritmo alucinante de trabalho e pelas condições de saúde desfavoráveis,
como se observa na carta de 19 de março de 1945: ―sou obrigada a
trabalhar tanto, em coisas inadiáveis, por debaixo dos remédios estou
como uma coisa partida‖. Rodeada pelas responsabilidades da vida
privada, da administração da casa e das atividades de escritora, Cecília
apresenta-se atordoada e angustiada diante do tempo restrito para o
grande número de atribuições. Em carta de 27 de abril de 1945, escreve:
―Estou precisando muito libertar-me de tantos compromissos, de tantas
ocupações. Preciso aprender a dizer não‖. No ano seguinte, a situação
não é diferente; Cecília escreve em carta de 14 de agosto: Minha cara
Henriqueta: apresso-me em responder à sua carta de hoje, porque de tal
forma anda a minha vida que não posso garantir senão o imediato. Tenho
133
passado as mais tenebrosas desventuras, estou como um boxeador
arrasado, com as mãos no estômago, caído de bruços no trabalho. O
excesso de trabalho rende à autora uma sensação de exaustão tão bem
representada pela metáfora do boxeador abatido na luta ou pela ―coisa
partida‖.
Cecília cria, assim, para sua interlocutora, imagens poéticas que
retratam a inquietude e o cansaço diante das inúmeras atribuições. Seu
desalento exemplifica as dificuldades de se buscar a ocupação de um
espaço na vida profissional, como se lê em carta de 14 de agosto de
1946:
Os meus padecimentos são os da época, porém agravados pelo
fato de eu ser bem dizer uma pessoa só (todos saem cedo e só
voltam para o jantar) – e a casa por ser muito grande e não
haver maneira de ajustar os interesses da casa com os das
empregadas. Por minha vez, com todos os compromissos que
tenho, não posso controlar o serviço como é preciso,
infelizmente – e confio tanto em todos que estou sempre fazendo
o papel de uma grande boba.
Tais queixas, entretanto, ultrapassam o ambiente doméstico:
abrangem o meio intelectual e a convivência com o próprio ser humano:
―Estou em luta com os 4 elementos clássicos e mais o 5º, que é o homem,
- o mais terrível de todos...‖, desabafa Cecília em carta de 16 de janeiro
de 1945. A autora, em certos momentos, manifesta cansaço e afirma que
escrever para os jornais estava cada dia mais enjoativo e que até os livros
já a estavam aborrecendo.
Cecília afirma, em 19 de agosto de 1945, estar exausta com seu
ritmo alucinante de trabalho e com seus padecimentos:
Sinto uma profunda necessidade de recolhimento, depois de
tanto dinamismo. Creio ter conquistado meu direito à solidão,
pelo que tenho feito e sofrido pelos outros, infatigavelmente.
Tudo que sabia, já disse, tudo que podia, já dei. Agora só se me
acrescentar. E para isso não vejo outro modo que o de
concentração e síntese. Talvez nos transfigure.
134
O desencanto de Cecília se dá com seus pares e com a própria vida.
Mas em outros momentos, o discurso é literariamente intencionado e
eivado de imagens poéticas, perpassadas pelo humor, como se observa,
por exemplo, na missiva de 14 de agosto de 1946:
Hei de sugerir ao Carlos que escreva a ―Elegia do Poeta
assassinado pela cozinheira‖. O Carlos fará isso muito bem, com
um trinchante que já estou vendo a gotejar e a fumegar,
atravessado no coração do poeta, agarrado àquilo como um
frangalho de bife. Os livros nas estantes rezarão abrindo e
fechando folhas, e dos retratos familiares cairão lágrimas
enormes, como as resinas dos cajueiros. A cozinheira dançará a
dança de Salomé – salvo seja – com o garfo na destra e o prato
na sinistra, e os passarinhos cairão desmaiados das árvores
porque um poeta transformado em bife significa uma safra
colossal do mar transformada em sopa, de flores em salada e
paisagens enroladas em omeletes. Significa a prepotência dos
pançudos e o aniquilamento dos etéreos. A sua morte e a minha!
Pobres de nós!
Ao falar sobre o excesso de atribuições domésticas, a escritora,
ainda assim, deixa entrever em suas palavras um cuidado estético e uma
intenção literária. A carta, neste caso, lembra-nos uma crônica, gênero
tão conhecido e praticado pela poetisa nas páginas dos jornais em que
escreveu.
O diálogo intertextual estabelecido no fragmento também se dá com
o texto bíblico, quando ela relaciona a figura da cozinheira – causadora
das aflições domésticas de Cecília – com a de Salomé – causadora do
infortúnio de João Batista. Ao relatar os problemas e dificuldades
pessoais, Cecília retrata também as inquietudes comuns a outras
mulheres que, como ela, ocupavam cada vez mais o lugar de escritora e
intelectual. Nesse sentido, a história de uma se torna a história de muitas,
o que, certamente, é significativo para compreendermos e conhecermos
melhor o contexto e as condições em que se encontravam as mulheres
que participaram do meio literário em meados do século XX.
135
Em carta a Henriqueta, datada de 17 de outubro de 1949, Cecília
Meireles menciona, de forma irônica, a crítica masculina e reafirma uma
cumplicidade necessária entre escritoras:
O mais admirável não é V. dizer tantas coisas boas a meu
respeito (isso não é admirável, mas espantoso!). O mais
admirável é você fazer um artigo40 como os nossos colegas
varões deviam aprender a fazer, isto é, estudando os autores e
as obras, em lugar de distribuírem elogios a torto e a direito
apenas porque possuem uma coluna de jornal e alguns amigos
que desejam celebrizar... Ah, Henriqueta, eu nunca fui feminista,
mas acho que vou acabar sendo, por me convencer de que as
mulheres têm mais talento e seriedade que os homens. Os
responsáveis por isso são, de um lado, eles e do outro V.
Quando eu aparecer de colarinho alto e bengala para combater
os que usam esses acessórios como emblemas naturais, irei
prevenindo: ―Foi Henriqueta que me decidiu a tanto!‖ Será meu
grito de guerra. E todos me deixarão passar, porque é em nome
do Anjo-Henriqueta que enfrento a multidão.
A brincadeira direcionada à amiga mineira reafirma a defesa da
capacidade feminina, e aproxima as correspondentes em uma espécie de
cumplicidade contra o sexo oposto. A crítica de Cecília às feministas, de
certa forma, reproduz o estereótipo da mulher masculinizada ―de colarinho
alto e bengala para combater os que usam esses acessórios como
emblemas naturais‖. Interessante é que, de certa forma, a imagem
construída por Cecília coincide com a imagem da mulher escritora criada
e criticada duramente por alguns na imprensa. Provavelmente trata-se de
―Cecília Meireles‖, texto inserido posteriormente em Convívio poético:
Porque hoje em dia, quando se ouve falar numa mulher que
escreve, ninguém procura saber o que essa mulher escreve; dizse logo, ‗ela escreve‘, e pelos olhos passa uma figura de mulher
masculinizada, tipo de sufragista, pisando duro, sobraçando uma
pasta e calçando sapatos ‗Brogue‘.
A estilização da figura feminina, presente às vezes no próprio
discurso da mulher, é consequência de fator cultural, que pressupõe a
alegria, a boa educação e a pureza como atributos femininos, e é
claramente expressa em diferentes meios sociais. As representações da
136
imagem feminina na época eram estabelecidas pelo estereótipo de
mulher bem comportada, como evidenciam os jornais guardados por
Henriqueta Lisboa. Nestes, há sempre elogios à figura discreta e bem
educada da poetisa mineira que, desde sua estreia, encantava a todos
pela presença ―delicada e recatada‖.
Há, nos artigos e notas publicados no início dos anos 20, uma
concepção preconceituosa em relação à mulher escritora. Abgar Renault,
em artigo intitulado ―Musa‖, de 1926, afirma que dois nomes mereceram
destaque entre as escritoras no Brasil, Francisca Júlia e Gilka Machado;
―uma, excessivamente cerebral; outra, excessivamente instintiva; ambas,
ao cabo, pouco femininas‖. Para o autor, Henriqueta Lisboa viria se juntar
a poucos nomes da literatura nacional, como Cecília Meireles, já que
ambas realizaram uma arte feminina cujo principal pressuposto era a
sensibilidade poética. Seguindo tais parâmetros, Renault (1926) afirma:
É bem feminina a sua arte, quero dizer, é uma arte sentida, na
qual nada é disfarce ou maquillage. Sua arte é pouco artificiosa.
Nem malabarismos de palavras, nem chinezices de expressão.
Simplicidade, sobriedade, elegância, todas tocadas de uma
comovida emoção – eis as qualidades melhores de seus versos.
Não descambar para a vulgaridade, nem desviar-se para o
extravagante.
Renault deixa claro em seu artigo certa aversão às mulheres
escritoras. O autor é enfático e até sarcástico, ao dizer que ―escrever
versos é tanto quanto diferente de empunhar um baton de rouge ou um
arminho de pó de arroz‖, palavras que vêm ao encontro de sua postura já
declarada em 27 de janeiro de 1926, numa carta sobre Henriqueta, na
qual afirma que os versos de Fogo fátuo, primeiro livro da poetisa enviado
a ele com uma ―generosíssima dedicatória‖, tinham lhe despertado
admiração:
Tem um verdadeiro talento essa moça, não acha? Finura,
elegância, presença, assim de formas como de expressões [...]
e, sobretudo, uma rara feminilidade, qualidade, a meu ver, tanto
ou quanto efusiva entre as musas femininas. [...] faço questão de
expressar a admiração que em mim despertaram os versos de
137
Henriqueta Lisboa, em mim... que sou tanto séptico a propósito
de inteligência de mulher...
A resistência à mulher intelectual era visível. Valéria Lamego (1996),
no artigo ―A musa contra o ditador‖, relata um desentendimento referente
ao prêmio da Academia Brasileira de Letras, recebido por Cecília
Meireles, pelo livro Viagem. Segundo Lamego, Cecília disputou o
concurso com ―vinte e oito obscuros candidatos‖ e, diante de tantos
concorrentes, a comissão do concurso resolveu atribuir um prêmio único a
Cecília Meireles. Tal decisão irritou a imprensa e causou insatisfação em
146 alguns acadêmicos, entre os quais estavam Fernando de Magalhães
e Alceu Amoroso Lima. O impasse levou a uma divisão do prêmio: o
primeiro lugar dado a Viagem e o segundo, a Pororoca, de Vladimir,
Emanuel, autor amazonense. Contudo, o conflito não estava ainda
resolvido, pois Cecília, que ficara incumbida de discursar na entrega do
prêmio, teve seu discurso submetido à censura, o que não era comum, se
se tratasse de autores masculinos, e, somente depois, liberado. Ofendida,
ela se recusou a ler o texto na cerimônia. Tal episódio, sem dúvida,
contribuiu para certa mágoa que se revela nas palavras a Henriqueta.
Cecília, em 1945, critica, sobretudo, os arranjos políticos inerentes à
escolha dos eleitos para a Academia. E prossegue: ―Henriqueta, seja
sempre assim alada! Se a Academia lhe tocar nas asas, liberte-se! Devia
haver uma Academia Etérea para V‖.
As dificuldades de participar ativamente da vida intelectual não se
restringiram à desconfiança de muitos intelectuais, abrangeram também o
espaço doméstico e a rotina cotidiana das mulheres nesse momento. As
queixas sobre a administração da casa é tema frequente nas cartas de
Cecília às amigas mineiras. Em vários momentos, relata a Henriqueta os
problemas domésticos que a afligem, a falta de arrumadeira e cozinheira,
o tamanho da casa, as ausências do marido, como nesta carta de 9 de
julho de 1946:
138
Cara Henriqueta: V. sabe o que é mudar-se uma pessoa para
uma casa de dois andares, com um jardim em ziguezague, que
deixa as barrigas das pernas duras como queijos, estando a
casa ainda em obras, [...] e ficar-se na dita casa sem nenhuma
criada, porque a zona é populosa em sambistas, mas
desconhece cozinheiras, copeiras e outras profissionais? Depois
de um ano de lutas tremendas, consegui arranjar, há quinze
dias, duas empregadas, com as quais estou muito satisfeita. Mas
como nunca se pode ter sossego, no momento em que penso o
problema resolvido, as duas dão para interromper as suas
relações diplomáticas.
Tais considerações marcam o lugar de fala da escritora e as
diferenças de classes sociais se evidenciam de forma bastante explícita.
O conflito constante da patroa com as empregadas domésticas reforçam
as distâncias entre as classes privilegiadas e abastadas e as pobres, e
exemplificam, sobretudo, as relações de poder existentes no âmbito do
espaço privado.
Em correspondência com Lúcia Machado de Almeida, as questões
domésticas retornam:
Andei fatigadíssima, e não estou ainda muito melhor. Os
assuntos domésticos tem-me dado, tanta preocupação, que já
estamos arrependidos da bela casa que arranjamos. Toda a
minha vida está embaraçada com essas massadas de
criadagem. [...] Para que vejas a gravidade do problema, basta
que numa carta se lhe consagre tão longo capítulo, havendo na
vida mil coisas interessantes, empolgantes, alucinantes de que
tratar. É isso justamente que eu não perdoo à divisão de
trabalho: que eu não possa escrever as minhas coisas, porque
ninguém quer fazer o meu almoço nem a minha cama, sem, em
compensação, escrever o que eu deixo de escrever. Porque eu
até gostaria muito que outra pessoa fizesse por mim o que eu
tenho necessidade de fazer, e decerto, se isso acontecesse, iria
preparar almôndegas e quibebes com muita arte e engenho. Se
anunciássemos: ―Precisa-se de boa cozinheira que faça odes,
poemas e novela, de diferentes maneiras, propondo-se a patroa
a realizar os quindins e macarrões que ela deixar de fazer‖?
Achas que apareceria alguma?
A construção discursiva de Cecília para tratar das questões
domésticas que a afligiam parece seguir um modelo de escrita que parte
da confissão, mas busca na ironia o tom criativo para tratar do tema. Ao
tratar de assuntos ligados ao ambiente comezinho, da dona de casa e
139
esposa, a verve da escritora transforma o relato do cotidiano em textos
carregados de imagens e metáforas.
Ao falar dos problemas de saúde de Lúcia Machado de Almeida,
Cecília também recorre à inventividade e ao humor:
Cara Lúcia: a estas horas V. deve estar curada, se os meus
pensamentos tiverem a força atômica que pretendem. Pois logo
que V. me contou aquelas histórias pulmonares, a Sereia sua
parenta, e eu, sua amiga, nos pusemos em transe, e ela com o
seu doce violino e eu com a minha fanhosa voz, imploramos as
potências marinhas que trouxessem todas as coisas melhores do
mundo, para você. [...] Na certa, os deuses mandam isso por
tapeação, para nós ficarmos desgostosas, de queixo caído, e
envergonhadas: mas lá em Belo Horizonte, que nós daqui não
vemos, devem estar oferecendo à Lúcia as coisas mais
adoráveis do ultra mundo, e devem acalentá-la, e criar invenções
dentro da cabeça dela, e deixá-la todinha em sonho, que é a
coisa melhor que pode acontecer a um mortal!
Para consolar a amiga de suas aflições de saúde, Cecília Meireles
recorre a uma imagem que aparece com alguma frequência em seus
livros: a sereia. O diálogo promovido entre a ficção – a personagem sereia
– e a realidade – a doença da amiga – é significativo para
compreendermos como a Literatura misturava-se ao cotidiano dessas
mulheres e serve-nos ao ensejo para desvendar um retrato de mulher na
poesia ceciliana, como se pode ler no poema Sereia, da obra Viagem:
Linda é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
- quem os pudera enxugar
Cecília aproxima a mulher à sereia, ao canto, à solidão e à
ambiência noturna, valores que manifestam, em sua poética, uma
condição feminina. Assim, diz a primeira estrofe. Todavia, esta mulher,
que é a sereia – logo se saberá – é aquela que canta enquanto chora. No
transcorrer do poema, vê-se que ela canta para expressar seus pesares;
porém, ao dizê-los tão lindamente nesse canto, ela salva o mundo.
Entretanto, de tanto cantar – tal como a cigarra – ela se exaure. Ou seja:
140
o mesmo canto com que ela ajuda o mundo a sonhar é aquele que a
mata, como afirma a última estrofe:
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.
(pp.279-280)
Este poema parece explicar qual é o destino do canto que os
outros poemas do livro exortavam. Se, de fato, uma das encarnações do
feminino em Cecília Meireles parece ser, pois, a sereia, não posso deixar
de concluir que, através dessa emblemática, a mulher perfaz, nesta obra,
um trágico circuito. Ela é aquele ser indulgente e magnânimo, capaz de
transformar a dor em música para dar alma e enlevo ao mundo; todavia,
enquanto executa sua heroica missão tutelar, acaba morrendo em nome
desta. Presente em versos como os do poema ―Sereia‖, de Viagem, ou
em textos como a crônica ―A Sereiazinha‖, publicada inicialmente na
Folha de São Paulo, em 05 de maio de 1964, essa figura mítica é
transportada para o gênero epistolar, também no vocativo, a designar a
―Azul Sereia Lúcia‖, aproximando a vida da criação.
Em outra carta de Cecília, datada de 8 de setembro de 1945, ela
menciona a Lúcia sobre sua personagem:
Mas para alegrar V. que está doentinha, adiantarei que a Sereia não
canta, como as outras: a Sereia toca violino sem arco! E tem um furo no
alto da cabeça, por onde entra e sai a inspiração! De lado, parece um
barco; de frente é igual a uma bomba. Tem cabelos compridos, usa
brincos e travessa [?]! Que é que V. acha? Dizem que veio da Espanha,
que veio de Portugal – já a encontraram no alto de uma igreja do Peru –
e afinal vamos fundar a Confraria da Sereia, que não será uma Nossa
Ordem Social ou Política, mas uma Nossa Ordem Lírica e mística.
Em linguagem metafórica, Cecília Meireles designa como parte da
―Confraria da Sereia‖ aqueles ou aquelas capazes de enxergar o mundo
com a sensibilidade da arte, especialmente da arte poética. Nesse grupo
estariam as amigas Henriqueta Lisboa e Lúcia Machado de Almeida.
141
A ―Confraria da Sereia‖, poeticamente aludida na correspondência
de Cecília Meireles a suas amigas escritoras, funda, no imaginário de
quem lê as cartas entre amigas, uma construção de desassossego e de
resistência, em que se inscreve um lugar ainda pouco discutido, posto
que perpassado, ainda, de certo mal-estar: o da mulher e seu papel
compósito de dona-de-casa e intelectual.
REFERÊNCIAS
ACERVO HENRIQUETA LISBOA – Acervo de Escritores Mineiros –
UFMG.
ACERVO LÚCIA MACHADO DE ALMEIDA – Acervo de Escritores
Mineiros – UFMG.
LAMEGO, Valéria. A musa contra o ditador. Folha de São Paulo. São
Paulo, 4 ago.
1996.
MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
142
CORRESPONDÊNCIAS ENTRE MACHADO DE ASSIS E OS
BACHARÉIS EM DIREITO JOAQUIM NABUCO, MAGALHAES DE
AZEREDO E MÁRIO DE ALENCAR
Iuri Simões Mota24
RESUMO: Machado de Assis partilhou da amizade de vários juristas, muitos formados
em São Paulo, no largo de São Francisco, outros em Recife/Olinda. Certo é que o
escritor mantinha um contato assíduo com diversos bacharéis, constatação que é
possível com base na análise da vasta correspondência trocada entre ele e os seus
amigos bacharéis em Direito. Vários estudiosos catalogaram as correspondências de
Machado, que foram publicadas por diversas editoras. Nas cartas, o escritor abordava
assuntos variados, perpassando por questões literárias e teóricas, até questões
pessoais, dependendo da intimidade com o correspondente. Três amigos próximos a
Machado de Assis, os bacharéis em Direito Joaquim Nabuco, Magalhães de Azeredo e
Mário de Alencar, mantinham uma constante troca de correspondências com o autor. A
análise dessas cartas possibilita verificar a ligação de Machado com o universo jurídico
do século XIX, bem como a sua amizade com os bacharéis.
Palavras-chave: Machado de Assis. Correspondências. Bacharéis.
ABSTRACT: Machado de Assis shared the friendship of several legal experts, many
trained in São Paulo, in Largo de Sao Francisco, another in Recife/Olinda. It is certain
that the writer kept a frequent contact with several graduates, finding that it is possible
based on the analysis of the vast correspondence between him and his friends bachelors
in law. Several scholars cataloged the Machado matches, which were published by
different publishers. In the letters, the writer addressed different issues, passing by
literary and theoretical questions, to personal issues, depending on the closeness to the
correspondent. Three close friends to Machado de Assis, the bachelors of law Joaquim
Nabuco, Magalhães de Azeredo and Mário de Alencar, maintained a constant exchange
of correspondence with the author. The analysis of these letters enables check Machado
connection with the legal world of the nineteenth century, as well as his friendship with
the alumni.
Keywords: Machado de Assis. Matches. Graduates.
Machado partilhou da amizade de vários juristas, muitos formados
em São Paulo, no largo de São Francisco, outros em Recife/Olinda. Certo
é que o escritor mantinha um contato assíduo com diversos bacharéis,
constatação
que
é
possível
com
base
na
análise
da
vasta
correspondência trocada entre Machado de Assis e seus amigos
bacharéis em Direito.
24
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros. Mestrando em
Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros. Professor das
Faculdades Santo Agostinho. E-mail: [email protected]
143
Vários estudiosos catalogaram as correspondências de Machado de
Assis, que foram publicadas por diversas editoras. A análise de algumas
dessas publicações possibilita notar que não são completas, constando
absolutamente todas as correspondências do autor. Os organizadores
certamente selecionam o material, seja intencionalmente, seja por
dificuldades de acesso.
Tomando por base uma dessas publicações, a coletânea Machado
de Assis Obra Completa, da editora nova Aguilar, organizada por Afrânio
Coutinho, foi possível realizar um levantamento sobre a abrangência do
ciclo de relações de Machado de Assis com bacharéis em Direito.
Relacionando todos os nomes destinatários das correspondências de
Machado apresentadas pela referida edição e pesquisando suas
bibliografias, é possível concluir que, do total de 30 (trinta) destinatários,
11 (onze) eram bacharéis em Direito, ou seja, 37% (trinta e sete por
cento) das pessoas com as quais Machado de Assis se correspondia
eram juristas.
A verificação de que mais de um terço dos correspondentes de
Machado tinha formação jurídica reforça a ideia de que o autor convivia
amplamente com bacharéis e mantinha com eles uma constante troca de
pensamentos sobre variados assuntos. Essa constatação possibilita
compreender como Machado conhecia bem as características típicas do
bacharel em Direito e podia reproduzir caracteres adequados para formar
um personagem, ou até mesmo balizar toda uma narrativa.
Nas cartas, Machado abordava assuntos variados, perpassando por
questões literárias e teóricas, até questões pessoais, dependendo da
intimidade com o correspondente. O escritor evitava assuntos políticos e
não se posicionava com relação a polêmicas, no máximo fazia referência
a algum fato notório, mas sem expressar opiniões próprias. Manteve nas
cartas o mesmo recato que o caracterizou no trato pessoal, toda crítica
que quis emitir sobre o contexto social que o cercava não fez diretamente,
mas por meio dos inúmeros textos literários que produziu. Nas cartas,
144
pouco se ouviu a voz de Machado de Assis sobre as querelas do seu
tempo, mas o tom irônico de Brás Cubas, as contradições de Bentinho, a
força conquistadora de Capitu, as teorias de Quincas Borba, e as
incontáveis vozes que permearam romances, contos e crônicas,
marcaram decisivamente a sociedade, como a expressão nítida dos
conflitos humanos.
Maria
Cristina
Cardoso
Ribas,
na
obra
Onze
anos
de
correspondência: os machados de Assis, discorre sobre a postura
reservada de Machado nas cartas, considerando:
Machado, na correspondência, não desfere golpes demolidores
na estrutura social em que se insere. Sua performance
epistolar não inclui contar singularidades, fazer confidências, a
não ser as esperadas acerca de sua doença, relatar fatos que
comprometeriam seus amigos ou conhecidos, tampouco
polemizar
sobre
o
Império,
Canudos,
escravidão,
abolicionismo, questão militar, República. Diante dessa
formatação da correspondência, mesmo assim é mais útil, para
o intérprete, ler o texto pelo viés das negativas sem, de
imediato, traduzi-las meramente com o rótulo de omissão,
indiferença, comprometimento pessoal com alguma das partes
envolvidas ou absenteísmo político – estigma alimentado mais
pelo preconceito do que pelo conhecimento efetivo desses
textos. (RIBAS, 2008, p. 42).
As cartas comprovam que Machado manteve um zelo constante
para preservar a sua imagem, sem demonstrar nódoas que pudessem
comprometer, de alguma forma, a visão respeitosa que o conjunto da
sociedade tinha dele. A sua estratégia foi exitosa, pois até mesmo os
críticos mais severos mantiveram por ele considerável admiração.
Dos correspondentes bacharéis em Direito que Machado de Assis
mantinha,
cabe
destacar
três
personalidades:
Joaquim
Nabuco,
Magalhaes de Azeredo e Mário de Alencar, que chamam a atenção por
razões diversas, como o número de correspondências, ou o trato mais
íntimo demonstrado na escrita, ou pela relevância do conteúdo discutido.
A análise dos nomes escolhidos colaborará na verificação da ligação do
autor com o universo jurídico.
145
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em Recife em 19
de agosto de 1849, filho do Senador José Tomás Nabuco de Araújo e de
Ana Benigna Barreto Nabuco de Araújo, ―em 1865, seguiu para São
Paulo, onde fez os três primeiros anos de Direito e formou-se no Recife,
em 1870.‖25.
Começou na carreira diplomática como adido de primeira classe em
Londres, depois em Washington, de 1876 a 1879. Joaquim Nabuco
ingressou na política quando eleito deputado geral, passando a defender
vigorosamente a abolição da escravidão no Brasil. Segue trecho em que
Celso Uemori, no artigo Joaquim Nabuco, um jacobino contra a
aristocracia? aborda essa transição para a política e o impacto gerado na
sociedade pela luta abolicionista de Nabuco:
O jovem que queria ser poeta, admirador de Renan, a quem
conhecera pessoalmente, que não tinha nenhum interesse pela
política, deu lugar ao reformista social que lutou pela abolição
da escravidão. Os intérpretes dos seus discursos, elaborados
nesses quase dez anos, definiram-no como o político e
intelectual ―radical‖, o ―desertor da sua classe e raça‖, o
―socialista-cristão‖, ―a voz isolada‖ ou o ―liberal radical‖, o
homem público que ―enxergou além de seu tempo‖ e contrariou
a classe a que pertencia ao se colocar na defesa de libertos,
escravos e demais trabalhadores livres, da abolição sem
indenização e da ―reforma agrária‖. (UEMORI, 2005. p. 66).
Filho da elite do Nordeste brasileiro, Nabuco sempre se interessou
por poesia e literatura; trilhando um caminho típico da aristocracia
brasileira, bacharelou-se em Direito e seguiu para a carreira na
diplomacia e posteriormente na política. Entretanto, como deputado,
empreendeu grandes esforços abolicionistas, posição que contrariou boa
parte da elite escravocrata, que passou a considerar Nabuco um traidor
da sua própria classe.
Mesmo com os ataques e ofensas, Nabuco continuou firme com o
discurso abolicionista, tornando-se uma das principais lideranças na
defesa da abolição da escravidão sem o pagamento por parte do Estado
25
Biografia disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras.
146
de nenhum tipo de indenização aos proprietários. Por sua luta incessante,
teve seu nome marcado como herói na história brasileira, reconhecido
como um homem de pensamento moderno e vasta intelectualidade.
Joaquim Nabuco manteve um contato próximo com Machado de
Assis, como bem expressa o seguinte trecho do artigo Joaquim Nabuco,
artista de José Américo Miranda:
(...) em 31 de janeiro de 1865, no folhetim ―Ao acaso‖, do Diário
do Rio de Janeiro, Machado de Assis havia-se referido
elogiosamente ao ―jovem estreante da poesia‖ Joaquim
Nabuco. Já no dia seguinte, 1º. de fevereiro, o ―jovem
estreante‖ escreveu sua primeira carta a Machado de Assis.
Foi o início de uma correspondência que se prolongou por
aproximadamente 43 anos. A última carta veio dos Estados
Unidos, onde Nabuco era embaixador, datada de 3 de
setembro de 1908 – 26 dias antes da morte do grande escritor,
autor de Dom Casmurro. (MIRANDA, 2010, p. 35).
Machado de Assis e Joaquim Nabuco trocaram correspondências
por um longo período, cartas e amizade que duraram até o final da vida
de Machado. Nabuco foi um dos principais colaboradores para o
desenvolvimento do projeto de fundação da Academia Brasileira de
Letras, sendo o fundador da Cadeira nº 27.
Nas cartas Machado e Nabuco tratavam de poesia, literatura,
trabalho, cotidiano, dentre outros assuntos. É notório que a partir de certo
ponto os correspondentes tornam-se mais íntimos, como mostra o trecho
da despedida de Machado em uma carta de 1882: ―Vou para fora, como
disse, mas Você pode mandar as suas cartas com endereço à Secretaria
da Agricultura. Adeus, meu caro Nabuco. (...) Adeus, e escreva ao amigo
do coração Machado de Assis.‖. (ASSIS, 2011, Tomo II, p. 214).
Durante três anos, de 1881 a 1883, Joaquim Nabuco esteve em uma
espécie de exílio voluntário em Londres, após uma derrota política no
Brasil. Momento em que ampliou a sua produção literária e o seu contato
com entidades abolicionistas internacionais. Durante esse período,
escreveu a importante obra O Abolicionismo, publicada em 1883. Nas
147
correspondências,
é
possível
encontrar
um
Machado
de
Assis
incentivador e motivador, rendendo apoio e conforto ao amigo:
Pela minha parte, creio escusado dizer a afeição que lhe tenho,
e a admiração que me inspira. A impressão que Você me faz é
a que faria (suponhamos) um grego dos bons tempos da
Hélade no espírito desencantado de um budista. Com esta
indicação, Você me compreenderá.
Adeus, meu caro Nabuco, Você tem a mocidade, a fé e o
futuro; a sua estrela há de luzir, para alegria dos seus amigos,
e confusão dos seus invejosos.
Um abraço do Amigo do Coração (ASSIS, 2011, Tomo II, p.
224).
Machado não trata diretamente sobre a luta de Nabuco pela
abolição, mas expressa a admiração que sente pelo amigo e demonstra
empolgação sobre suas possíveis conquistas. Essas circunstâncias
colocam Machado de Assis como um dos motivadores de um dos maiores
nomes do abolicionismo brasileiro.
Os correspondentes trocavam também textos literários, para
promover a permuta de observações e sugestões. Nas últimas cartas,
Nabuco e Machado trataram amplamente sobre questões voltadas à
Academia Brasileira de Letras.
As cartas comprovam a amizade e a mútua admiração existente
entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Os dois compartilharam
experiências
e
demonstraram
sintonia
de
ideias,
influenciando
decisivamente um na vida do outro. No caso de Machado, essa influência
certamente colaborou na construção da sua escrita.
Outro importante nome presente nas correspondências de Machado
de Assis é o de Mário de Alencar, nascido no Rio de Janeiro em 30 de
janeiro de 1872, filho do ilustre romancista José de Alencar. ―Fez os
primeiros estudos no Colégio Pedro II, obtendo o título de bacharel em
ciências e letras, e formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo.‖26.
Mário e Machado mantinham uma comunicação próxima por meio
das cartas, dividindo ideias e acontecimentos importantes da vida. Foi por
26
Biografia disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras.
148
meio de correspondência que Mário informou a Machado sobre o seu
noivado e posteriormente sobre o casamento, em determinado trecho de
uma das cartas ele justifica a necessidade de informar esses fatos por
escrito: ―Sendo o meu noivado o primeiro ato sério da minha vida,
entendo eu que participar-lho por escrito é um dever da respeitosa
amizade que lhe tenho.‖ (ASSIS, 2011, Tomo III, p. 55).
Os
acontecimentos
da
vida
de
Machado
também
eram
acompanhados com atenção por Mário, como no difícil momento
profissional enfrentado por Machado no ano de 1898, quando ele foi
colocado em disponibilidade do serviço público ativo, ficando afastado do
cargo de diretor da Diretoria-Geral da Viação, adido à Secretaria da
Indústria. O fato aconteceu em decorrência de mudanças no regulamento
do Ministério, que passou a exigir no cargo de Diretor um profissional
formado. Mário de Alencar foi um dos primeiros a render apoio ao amigo,
como consta nos comentários de Irene Moutinho e Sílvia Eleutério,
organizadoras da edição pela Academia Brasileira de Letras das cartas de
Machado de Assis:
Machado ficou magoadíssimo, embora recebesse vencimentos
integrais e apesar das palavras amáveis do ministro. Machado
comentou que lhe faziam um enterro de primeira classe. A
primeira reação foi a de Mário de Alencar, que em carta do
mesmo dia disse que mal podia crer na notícia de que
Machado ficara ―adido à Secretaria de Indústria‖. Mário fala em
―espanto indignado‖ e em sua revolta com esse ―ato iníquo do
governo.‖ Como consolo, Machado devia lembrar-se de que o
pai do missivista, José de Alencar, ―quando o magoavam e
abatiam os dissabores políticos, se refugiava no seio das
Letras, onde as alegrias são puras e o consolo infinito.‖. O
agradecimento de Machado segue no mesmo dia 1º de janeiro:
―A sua carta é ainda uma voz do seu pai e foi bom citar-me o
exemplo dele; é modelo que serve e fortifica.‖ (ASSIS, 2011,
Tomo III p. XVII).
No complicado momento enfrentado por Machado, as palavras de
consolo, incentivo e amizade foram rapidamente encaminhadas por
Mário, que, valendo-se do exemplo do pai, José de Alencar, recomendou
a Machado abrigo no âmbito das letras. Alguns pontos em comum, como
149
a característica reservada e o enfrentamento da epilepsia, certamente
contribuíram para o estreitamento das afinidades entre Mário e Machado,
que nas correspondências compartilhavam angústias e fraquezas, mas
também promoviam o incentivo e a motivação mutuamente.
Mário de Alencar mantinha uma grande amizade com outro
importante correspondente de Machado, o diplomata Magalhães de
Azeredo, nascido no ano de 1872, bacharelou em Direito em 1893 na
Faculdade de Direito de São Paulo, pouco tempo depois de formado
ingressou na carreira diplomática em 1895. Azeredo começou a
corresponder-se com Machado quando tinha apenas 17 anos, iniciando
uma amizade que perdurou até a morte do consagrado escritor. As cartas
entre Machado e Azeredo, a partir de 1889, foram intensas e tratavam de
questões variadas, como literatura, cotidiano, política, fatos pessoais e
amizades em comum.
Nos anos finais de Machado de Assis, a correspondência com
Magalhães de Azeredo ganha destaque pela confiança que o escritor
depositava no jovem bacharel e diplomata, praticamente todos os fatos
importantes que aconteciam com Machado eram retratados nas cartas,
que totalizaram mais de 90 correspondências. A importância que
Machado dava a estas cartas era diferenciada, situação que contribui
para a consagração de Magalhães de Azeredo, como aborda o seguinte
trecho da compilação de cartas de Machado organizadas e comentadas
por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério e editadas pela Academia Brasileira
de Letras:
Ao contrário das dezenas de cartas escritas e recebidas por
Machado que se perderam irremediavelmente ou jazem no
fundo de um velho baú de colecionador, as trocadas entre
Machado e Azeredo foram guardadas até o fim pelos dois
correspondentes. Sentindo-se próximo da morte, Machado
pediu a Veríssimo que devolvesse a seu autor os originais das
cartas dele recebidas. Posteriormente Azeredo doou todo esse
acervo epistolar à Academia Brasileira de Letras. E eis como
um escritor pouco valorizado hoje em dia chegou à posteridade
pelo mero fato de ter tido o dom de relacionar-se com o maior
escritor do Brasil. (ASSIS, 2011, Tomo III, p. VIII).
150
A correspondência com Machado eternizou Magalhães de Azeredo,
que não tinha nenhuma obra literária em destaque e como diplomata seria
mais de um de muitos. Entretanto, a intensidade e intimidade que
alcançou com Machado possibilitou a sua notoriedade. Azeredo foi ―um
dos dez intelectuais convidados para integrar o quadro dos fundadores da
Academia Brasileira de Letras. Escolheu para patrono Domingos
Gonçalves de Magalhães, a quem coube a cadeira nº. 9. Foi o mais novo
dos fundadores, aos 25 anos.‖27. O ingresso de Azeredo como fundador
da Academia Brasileira de Letras teve a influência direta de Machado de
Assis, que atuou ativamente para viabilizar o convite.
As cartas entre Machado e Azeredo mostram um Machado de Assis
afetuoso, com o coração aberto a uma sincera amizade. Saudoso das
notícias e dos textos literários que o amigo enviava, interessado nas
histórias sobre outras sociedades, disposto a partilhar da sua experiência
para aconselhar e orientar o jovem amigo. A diferença de idade entre
Machado e Azeredo era de 33 anos, mas a afinidade entre os dois fica
evidente nas correspondências, como se fossem amigos de infância.
A admiração é o elo que liga essas duas personalidades, Machado
via em Azeredo um futuro promissor, um jovem talento. Azeredo via o
mestre, gênio das letras, já amplamente reconhecido. Mas o que faria um
dos grandes escritores brasileiros, já envelhecido, se interessar pela vida
de um jovem rapaz? A resposta pode ser analisada por meio de uma
famosa frase grafada na obra Dom Casmurro: ―O meu fim evidente era
atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.‖
(ASSIS, 2008, p. 12).
Machado apreciava acompanhar a trajetória de Azeredo, retratada
por meio das cartas, era como se vivenciasse experiências que não pôde
ter. O ambiente da faculdade, os estudos e o percurso para a obtenção do
bacharelado, depois as viagens para vários países, a troca cultural com
diversas sociedades.
27
Biografia disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras.
151
Por meio das correspondências de Machado de Assis com os
amigos bacharéis em Direito é possível compreender como o servidor
público e escritor, sem formação jurídica, podia conhecer tanto sobre
bacharéis, as suas técnicas, os seus instrumentos e as suas vivencias.
Todo esse conjunto de relações de Machado possibilitava que o escrito
conseguisse construir personagens com caracteres representativos da
realidade, retratando com esmero a sociedade que o cercava.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo II,
1870-1889 / coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida,
organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. – Rio de
Janeiro: ABL, 2011.
ASSIS, Machado de. Correspondência de Machado de Assis: tomo III,
1890-1900 / coordenação e orientação Sergio Paulo Rouanet; reunida,
organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. – Rio de
Janeiro: ABL, 2011.
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Organizada por Afrânio Coutinho.
10. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 2ª ed. – São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2008.
MIRANDA, José Américo. Joaquim Nabuco, artista. V. 19. O Eixo e a
Roda. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
RIBAS, Maria Cristina Cardoso. Onze anos de correspondência: os
machados de Assis. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; 7 Letras, 2008.
UEMORI, Celso Noboru. Joaquim Nabuco, um jacobino contra a
aristocracia?. V. 13/14. São Paulo: Lutas Sociais (PUCSP), 2005.
152
EDSON LOPES, DILUIÇÕES EM ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO
Júlio Cipriano da Silva Neto
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos
Resumo: Edson Lopes, escritor ribeirinho de Minas Gerais, traz em sua obra infantil
―Historinhas Integrais em Prosa e Verso‖, Editora All Print, 2014, a cultura dos
piraporenses, privilegiando, assim, o rio São Francisco com suas narrativas e histórias
de ficção que parecem estar diluídas nas próprias águas do rio. Seu livro, resultado de
um trabalho conjunto com seus alunos, é produto de oficinas de escrita em uma escola
de bairro periférico da cidade de Pirapora. Propõe-se, nesta comunicação, refletir sobre
a metodologia e recursos expressivos que o autor utiliza na obra citada, bem como sobre
as manifestações identitárias dos sujeitos infantis que colaboraram com esta produção.
Palavras-chave: Edson Lopes, Literatura de Minas Gerais, Literatura infantil.
ABSTRACT: Edson Lopes, riverside writer of Minas Gerais, brings in its child labor
"Short stories integrals in Prose and Verse," Publisher All Print, 2014, the culture of
piraporenses, thus focusing on the São Francisco River with their narratives and stories
fiction that seem to be diluted in the very waters of the river. His book, the result of a joint
effort with their students, is the product of writing workshops in a school in suburb of the
city of Pirapora. It is proposed in this paper, reflect on the methodology and expressive
resources which the author uses in the cited work, as well as the identity manifestations
of children's subjects who collaborated on this production.
Keywords: Edson Lopes, Minas Gerais Literature, Children's Literature.
Escritor barranqueiro contemporâneo, Edson Lopes nasceu em
Curvelo, Minas Gerais, e reside há 16 anos em Buritizeiro, onde foi
professor de literatura. Atualmente, é professor de português no município
vizinho, Pirapora, onde desenvolveu sua obra Historinhas integrais em
Prosa e Verso na escola Municipal Professora Maria Coeli Ribas Andrade
e Silva junto a seus alunos. O autor considera a literatura infantil como
instrumento para ir além do plano real, meio transfigurador para outros
universos:
A literatura em minha vida tem como principal o
papel de me salvar de mim. Da grande bobagem
que sinto de me desintegrar, de escapar para o
vácuo. A literatura me lembra da existência de
muitos mundos além do meu, mundos a
transfigurar, a reinventar. Sinto-me um poeta, um
médico, um louco, uma criação criadora (Edson
Lopes, 2014).
153
Tratamos aqui nesse ensaio a literatura infantil como algo lúdico e
fantástico, capaz de nos transportar para momentos bons, felizes e até
mesmo tristes. Para Maria Helena Frantz, ―a literatura infantil é também
ludismo, é fantasia, é questionamento, e dessa forma consegue ajudar a
encontrar respostas para as inúmeras indagações do mundo infantil,
enriquecendo no leitor a capacidade de percepção das coisas.‖ (Frantz,
2001, p.16).
No livro Historinhas integrais em prosa e verso, Edson inova na
metodologia de escrita literária tradicional e passando a escrever junto
aos alunos a partir de histórias relatadas por esses. Contrapondo o
método usual, no qual se dá através de um adulto escrevendo para
crianças afim de transmitir, através da escrita, os conhecimentos julgados
interessantes para esse público.
Cecilia Meireles em Problemas da literatura infantil nos mostra tal
forma tradicional mencionada:
Em suma o ‗o livro infantil‘, se bem que dirigido à
criança, é de invenção e intenção do adulto.
Transmite os pontos de vista que este considera
mais úteis à formação de seus leitores. E
transmite-os na linguagem e no estilo que adulto
igualmente crê adequados à compreensão e ao
gosto do seu público (MEIRELES, 1979 p. 29).
Edson Lopes em entrevista, 2015, conta como se deu o processo
de criação literária a partir de suas aulas. Encontrou algumas dificuldades
no ensino, mas nada impedisse sua vontade de lecionar. No começo o
professor dividia a sala de aula com outra professora, mas devido as
complicações que se ocasionaram, buscou outra alternativa, indo ocupar
o espaço aberto da escola. Em baixo de árvores Edson encontrou a
solução para o problema. Organizava cadeiras e mesa e esperava a
companhia de seus alunos para iniciar sua aula. Disposto de materiais
mais lúdicos e interativos como leitura de música e canto, Edson buscou
atingir todos os seus alunos. Sendo esses em que em sua maioria não
154
sabiam ler ou escrever, portanto e acompanhavam através do canto e de
figuras.
O autor ribeirinho faz uso dessa didática para despertar a
curiosidade e hábito de leitura em seus alunos. Inovado sua metodologia
incentivando os alunos a contar histórias a partir de suas vivências e o
modo como eles viam o mundo ao redor, transformando assim a vida de
cada criança com o uso da literatura.
Segundo José Eustáquio Romão, Revista Nova Escola, 2008, a
pedagogia freireana, considera o sujeito da criação cultural não de forma
individual, particular, mas sim como o coletivo, tendo em vista que em
sala de aula tanto professor quanto aluno aprendem e produzem juntos,
sendo necessário equidade nas relações afetivas e democráticas,
garantindo o direito a todos de se expressarem. ROMÃO, José Eustáquio.
Um dia comecei a pedir a eles para contarem
coisas que eles imaginavam ou que acontecia
em suas vidas, comecei a anotar em um
caderno. Lembro-me de um dia em que li, em
uma aula, um conto de um livro de Português,
em que um grupo de meninas fizeram uma
dinâmica com outra em particular, incentivando-a
a brincar com as palavras, criando aliterações e
assonâncias, o que deu origem ao poema Bichos
de Versos, que faz parte do livro (LOPES,
Edson, 2015).
Historinhas integrais em prosa e verso trás o poema Bichos de
verso:
Bichos de versos
No universo da criança, a palavra é lavra de letras,
Deixa-se quase ver o pensamento que chove da nuvem chamada sonho.
Um par de olhinhos intensos abarca um mundo imenso em torno.
São passarinhos que passarão por aqui: bem-te-vi, que ainda não viu
Curiosidade de curió, sabiá que só sabe que nada sabe.
A criança torna-se obsoleto o soletrar, sem se dar conta,
Afinal de contas, um pá não lavra letras?
A criança faz-se face à literatura.
Assim, e dado em prosa ou verso a cada bicho o seu nicho:
A mosca masca música de zumbir;
O mosquito mescla mau humor com amor entre ficar ou sumir;
Um gafanhoto é garfado grafando uma frase errado
Arranhado por uma aranha loira e lesa que se viu viúva;
Uma libélula liberta de teia alheia tolhe-se, atabalhoada,
155
Na incerteza de tomar a reta ou a curva;
Ali, ao lado, inalado e ilhado em si,
Um calango cala, faz tranquilo o quilo ao rés do barranco;
Olhando, desconfiado, ao redor da rua, um caramujo caga e mija,
É liso, mas lento, sem pernas, mas manco.
Entretanto, a mente da criança toma um tranco e trava, que pateta!
Parar quando estava quase virando poeta!
A partir da leitura do poema podemos aferir o uso de recursos
humorísticos e rimas feitas pelas crianças, dando melodia ao texto
literário. No poema Bicho de Pé podemos perceber a escrita das jovens
que utilizam de recursos linguísticos já citados anteriormente que utiliza
também
o
fenômeno
antropomorfismo,
que
consiste
em
dar
características humanas aos animais.
O autor, associa sua obra ao escritor Guimarães Rosa, no que
tange os métodos da escrita literária, Edson Lopes, 2015: ―Na Verdade, a
viagem do Historinhas Integrais em Prosa e Verso poderia ser
considerada uma ação inspirada em Guimarães Rosa, sem querer ser
pretensioso e já sendo. Ouvir histórias e "estórias", transformá-las em
literatura.‖
Guimarães rosa, famoso escritor mineiro, fala das narrações das
memorias e histórias que ocorrem ao longo da vida:
Está no nosso sangue narrar estórias; já no
berço recebemos esse dom para toda a vida.
Desde pequenos, estamos constantemente
escutando as narrativas multicoloridas dos
velhos, os contos e lendas, e também nos
criamos em um mundo que às vezes pode se
assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a
gente se habitua, e narrar estórias corre por
nossas veias e penetra em nosso corpo, em
nossa alma, porque o sertão é a alma de seus
homens (ROSA, Guimarães.).
Esta citação refere-se a necessidade de escrever histórias,
mostrando a necessidade dos homens em deixa-las perpetuadas no
tempo. Narramos os acontecimentos ao longo da vida, passando de
geração em geração. Isto é, segundo Guimarães é inerente a natureza
humana que perpassa e fica gravado ao longo do tempo, seja de forma
156
oral, ou através dos livros de autores apaixonados por consultar o
passado para escrever na literatura as aventuras dos outros, como faz
Edson em seu livro, com ajuda de seus alunos.
O autor mineiro ressalta a importância do Velho Chico que está de
forma diluída, como são as almas em todo corpo, como é a poesia nos
textos literários que se dizem em prosa, em todos os textos de Historinhas
Integrais em Prosa e Verso. Revela também como o contato com o rio
São Francisco influencia em sua escrita. ―Gosto muito deste rio, que
passa, praticamente no fundo de meu quintal. Pesco, nado, divirto-me
muito nele. Ao mesmo tempo, entristeço-me por conhecer de leitura e de
ouvido, que aqui vivem há mais tempo que eu.‖
Historinhas integrais em prosa e verso trás o poema Sorria, Rio!:
Sorria, Rio!
Nosso Velho Chico
Peleja, tristonho,
Mas há de vir chuva
Alegrar os dias,
Enchê-lo de águas
Tão fartas de peixes,
Fazer com que o rio
De novo sorria.
A partir da leitura do poema, percebemos a preocupação das
crianças com o rio São Francisco, o qual passa por uma resseção hídrica,
Agencia Nacional de Águas, 2014. Edson afirma em entrevista,2015 que:
―...a alma dos pequenos ribeirinhos de Pirapora, a alma dos periféricos
meninos do Bairro Cidade Jardim, faz parte do corpo das águas de nosso
rio da unidade nacional.‖ Para o nosso autor barranqueiro, após sua obra,
ratifico, produzida em conjunto com seus alunos, a Escola Coeli Ribas e
esses alunos inseridos no contexto de bairro periférico nunca mais serão
os mesmos. Pois a literatura desenvolvida, por menos que pareça,
transfigura, transforma, muda o mundo. ―Basta que leiamos um simples
poema para, ao terminarmos, sentirmos que já não somos os mesmos.‖
(LOPES, Edson,2015).
157
Ainda em tempo, o autor afirma que alguns textos têm raízes
diferentes: o poema musical "Peleja de Gente e Rato", foi escrito em
2011, por ocasião de uma visita à Coeli Ribas de Bernardo Sabino, Filho
de Fernando Sabino. Essa visita contribuiu com conhecimento biográfico
dessa legenda literária brasileira, muita literatura: "Peleja de Gente e
Rato" é uma paráfrase musical do livro e conto "O Ratinho Curioso", de
Fernando Sabino. (ANEXO).
Ainda sobre o livro o autor afirma que alguns textos foram criados
para jograis, como o que parafraseia Os três porquinhos e outro que cita a
Branca de Neve, além de "Cantiga do último cariri", que conta de forma
poética nuances da origem de Pirapora e de seu povo. (ANEXO).
O trabalho transformador de Edson Lopes evidencia o poder do
professor em mobilizar uma comunidade, junto a família dos alunos e o
corpo docente da escola, usando a literatura como instrumento
transformador de vidas. Melhorando a sociedade escolar, e dando
oportunidades para cada criança. Lutando diariamente e nunca
desanimando,
Edson
Lopes
utiliza
dessa
didática
inovadora,
abandonando o método engessado da sala de aula.
Para finalizar, deixo o poema Criança dessa maravilhosa obra,
Historinhas integrais em prosa e verso:
Criança
Criança
É uma obra
De (fazer) arte.
REFERÊNCIAS
LOPES, Edson. Historinhas Integrais em prosa e verso. 1. ed. Pirapora,
Minas Gerais: Ed. All Print, 2014, p. 1-40.
FRANTZ, Maria Helena Zancan. O ensino da literatura nas séries iniciais.
3. ed. Ijuí – RS: Ed. UNIJUI, 2001, p.16
158
LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO,
Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991. p. 62-97.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3 a edição. São
Paulo, Summus, 1979, p. 29.
CRISE HÍDRICA FAZ CHESF DIMINUIR VAZÃO DO RIO SÃO
FRANCISCO.
s/p.
Disponível
em:
<http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2015/05/crise-hidrica-faz-chesfdiminuir-vazao-do-rio-sao-francisco.html>. Acesso em: 02 de outubro de
2015.
ROMÃO, José Eustáquio. Revista Nova Escola, 2008. s/p. Disponível em:
<http://revistaescola.abril.com.br/formacao/mentor-educacao-consciencia423220.shtml?page=all> Acesso 02 out. 2015
Júlio Cipriano da Silva Neto atualmente é graduando do curso de Letras/Português da
Universidade Estadual de Montes Claros.
ANEXOS
159
Figura 1: Cantiga Peleja de gente e rato.
160
GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A FLORA EM PERSPECTIVA
Júnia Cleize Gomes Pereira
(Mestranda – UNIMONTES/FAPEMIG)
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Telma Borges
(UNIMONTES)
RESUMO: Esta proposta tem por objetivo apresentar os resultados parciais do projeto
de Pesquisa ―Enciclopédia do grande sertão‖, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em
Literatura e afins – Nonada, mais especificamente sobre a flora presente em Grande
Sertão: veredas de João Guimarães Rosa. Durante a pesquisa, fizemos leituras de
bibliografias referentes ao tema e leituras minuciosas do romance, catalogando a flora
que o compõe. Feito isso, realizamos uma busca da etimologia, da serventia e dos
nomes populares dos vegetais encontrados; estudamos ainda, livros e dicionários
especializados em botânica, comparando com os termos da flora empregados por
Riobaldo em seu discurso. Resultado de tal trabalho foi uma monografia que se
transformou em verbete, este que irá integrar uma enciclopédia organizada pelo Grupo e
que contribuirá para o avanço da fortuna crítica rosiana.
Palavras-chave: Literatura de Minas Gerais. Guimarães Rosa. Flora.
ABSTRACT:This proposal aims to present the partial results of the research
"Enciclopédia do grande sertão", the Interdisciplinary research Group in Literature and
the like - Nonada, more specifically on the flora present in Grande Sertão: veredas written
by João Guimarães Rosa. During the research, were made bibliographies readings on
the topic and detailed readings of the novel, cataloging the flora that compose it. Thus,
we conducted a search of etymology, the usefulness and popular names of plants found;
study also books and specialized dictionaries in botany, comparing with the terms of flora
used by Riobaldo in his speech. As a result of this work a monograph has been done and
it turned into entries, this one will integrate an encyclopedia organized by the Group and
will contribute to the advancement of Rosa's critical fortune.
Keywords: Minas Gerais Literature. Guimarães Rosa. Flora.
O presente artigo é resultado parcial dos estudos realizados junto ao
projeto de pesquisa ―Enciclopédia do grande sertão‖, cujo objetivo foi
analisar os vegetais existentes em Grande Sertão: veredas. Dado o tema,
veio a necessidade de verificar a relação desses vegetais com o enredo,
ações e personagens da narrativa.
A flora está representada no romance com espécies típicas do
cerrado: capins, ervas, arbustos e árvores que são empregados na
alimentação, na medicina, em jardins e em outras serventias. Algumas
dessas espécies ganham certo destaque, como o buriti, o mais citado no
relato e que, como outras, ganharam o mundo nas páginas de Guimarães
Rosa.
161
No decorrer deste trabalho, falaremos sobre a presença desses
vegetais e apontaremos possíveis simbologias e importância para o
desenvolvimento da narrativa. Segundo Mônica Meyer, ―Em Grande
Sertão: Veredas pode-se dizer que a natureza não se apresenta como um
palco, cenário ou moldura onde se desenrola a ação, mas está dentro de
cada personagem e cada um faz sua natureza‖ (MEYER, 2008, p. 25).
Assim, partimos do pressuposto de que a vegetação não se
apresenta somente como um plano de fundo em Grande Sertão: veredas,
ela tece a trama da vida de Riobaldo, personagem principal, e delineia a
singularidade da vegetação do sertão e sua relação com o ―homem
humano‖.
É registrado no romance em estudo as tradições do sertanejo, as
indescritíveis belezas cênicas e a fabulosa biodiversidade da fauna e da
flora do Cerrado, registros estes que revelam um vasto mundo: o sertão
dos Gerais. Na flora, Guimarães identifica as árvores, as flores e frutas
dando realce às suas cores, aos cheiros e aos seus nomes populares,
uma maneira de catalogar o saber do povo sertanejo. Esses vegetais
revelam o potencial da flora na alimentação, na medicina, no fornecimento
de madeira e em outras formas de manejo que favorecem as populações
locais. São destacados na obra o pequi, o jatobá, a macaúba, a imburana,
o pau d‘óleo, o tamboril, o agrião, a mangaba, a mandioca, o maracujádo-mato, o joazeiro, o olho-de-boi, a peroba, o pau-pombo, o capimcapivara, o buriti, entre tantos outros. Dentre as espécies citadas,
destacamos para este trabalho o pequi, o buriti e a ―flor do amor‖. Assim,
exemplificaremos
e
concretizaremos,
ainda
que
parcialmente,
a
importância dos vegetais no romance e suas simbologias.
O pequi, da família Caryocaraceae, tem como nome popular: pequi,
piqui, piquiá, piqui-do-cerrado. O pequizeiro é habitual no bioma do
cerrado, produz fruto (o pequi) e tem uma grande variedade de uso. Do
pequi se come a polpa fresca, em conserva ou na forma de farinha, doce
ou licor; sua madeira é utilizada na construção de dormentes, esteiros de
162
curral, fabricação de móveis, etc; o óleo da poupa é extraído e utilizado
para pratos típicos e uso medicinal; o chá das folhas serve como
regulador do ciclo menstrual; há também o uso na cosmética e na
tinturaria. (ALMEIDA et al, 1998, p. 106-108).
A polpa amarela do pequi, com seu sabor e aroma marcantes, tem
seu uso cada dia mais diversificado na culinária. A castanha que fica
escondida dentro do caroço do fruto também é saborosa e muito nutritiva,
podendo ser consumida in natura ou como ingrediente para elaboração
de pratos salgados, doces e pães. Essa castanha do pequi tem coloração
branca e um sabor exótico que, para alguns, assemelha-se ao sabor de
queijo.
O pequizeiro é uma planta muito versátil, no que diz respeito às suas
utilidades, pois dela se aproveita praticamente tudo. Na língua indígena
da região seu fruto é chamado de ―casca espinhenta‖, isso porque seu
caroço é dotado de muitos espinhos e tem que haver certo cuidado ao
roer o fruto. Outra expressão usada para designar o pequi é ―carne‖ do
cerrado. Além das proteínas, poliglicerídeos e carboidratos necessários
ao organismo, contém alto teor de pró-vitamina ―A‖ em sua polpa.
(ALMEIDA et al, 1998, p. 108-109).
Em Grande Sertão: veredas, os pequizeiros, além de caracterizarem
a vegetação típica do Cerrado, são mencionadas suas serventias como
alimento, o uso da sua madeira, o uso no comércio local e também como
marcador de tempo, pela sua floração. Vejamos alguns trechos do
romance em que o narrador cita o pequi e seus diferentes desempenhos
práticos na vida do sertanejo:
O Garanço se regalava com os pequis, relando devagar nos
dentes aquela polpa amarela enjoada. Aceitei não, daquilo não
provo: por demais distraído que sou, sempre receei dar nos
espinhos, craváveis em língua. (ROSA, 2001, p. 200).
De como, no prazo duma hora só, careci de ir me vendo
escorando rifle e alvejando, em quentes, em beira de mato e
campo, em virada de espigão, descendo e subindo ramal de
ladeirinhas pequenas, e atrás de cerca, debaixo de cocho,
trepado em jatobá e pequizeiro, deitado no azul duma laje
163
grande, e rolando no bagaço doce de cana, e rebentando por
dentro de uma casa. (ROSA, 2001, p. 246).
A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de
demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do
cerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muito forte,
geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só
um de nós era que ia lá – para não desconfiarem. Ia o
Jesualdo. A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um
encomendava o que queria. (ROSA, 2001, p. 310).
Tomando o tempo da gente, os soldados remexiam este
mundo todo. Milho crescia em roças, sabiá deu cria, gameleira
pingou frutinhas, o pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no
chão, veio veranico, pitanga e caju nos campos. (ROSA, 2001,
p. 319).
Ao analisar tais passagens sobre o pequi, verificamos que Rosa
caracteriza o fruto destacando sua cor e seu consumo; como uma espécie
de esconderijo e instrumento que auxilia na guerra; o uso do licor no
comércio, ou seja, como fonte de renda; o consumo da bebida pelos
jagunços, uma espécie de divertimento e no estabelecimento da
passagem do tempo pela floração e frutificação. O amadurecimento do
pequi, por exemplo, acontece em uma determinada época, só se frutifica
de
novembro
a
fevereiro.
Assim, para dizer da passagem do tempo e de sua relação com o
deslocamento dos soldados no espaço do confronto, o narrador opta por
fazer o tempo se desenrolar na frente do leitor por meio de uma descrição
que atribui ao tempo a materialidade da natureza em seu processo
contínuo de renovação: as roças crescem, os animais reproduzem, as
flores viram brotos, depois frutos que caem, como o pequi que, maduro,
cai no chão sinalizando o fim de um ciclo – o da reprodução – e o início
de outro – o do consumo, momento no qual a natureza, pródiga que é, se
oferece ao homem como sustento. Ao escolher a natureza para fazer o
leitor visualizar o transcurso do tempo, o narrador opta por fazer o leitor
não ser apenas informado do tempo que os soldados demoraram por ali,
mas o ser poeticamente informado desse tempo de guerras entre
164
jagunços e soldados, um tempo que não é tecnicamente, mas
naturalmente mensurado.
Como já foi dito anteriormente, o buriti é, de longe, a espécie mais
citada na obra de Guimarães Rosa; pertence à família Palmae
(Arecaceae) e tem como nomes populares: buriti, carandá-guaçu,
carandaé-guaçu, miriti, muriti, palmeira-buriti, palmeira-dos-brejos.
O buriti também é encontrado na região do cerrado, em locais
alagados ou acompanhando os cursos de águas permanentes. Sua
imagem está associada a terrenos férteis, ricos em água, plantas e
bichos. É utilizado para as mais diversas finalidades pelo povo do sertão;
dele se obtém abrigo, alimento e até mesmo transporte. As seguintes
passagens de Grande sertão: veredas dão uma dimensão do potencial de
utilização e da ecologia do buriti:
O senhor estando lembrado: aqueles cinco, soturnos homens,
catrumanos também, dos Gerais, cabras do Alto-Urucuia. Os
primeiros que com Zé Bebelo tinham vindo surgidos, e que com
ele desceram o Rio Paracatu, numa balsa de talos de buriti.
(ROSA, 2001, p. 512).
Topar um vivente é que era mesmo grande raridade. Um
homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma mulherzinha
fiando a estriga na roca ou tecendo em seu tear de pau, na
porta de uma choça, de buriti toda. (ROSA, 2001, p. 398).
Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas
um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa
de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta.
(ROSA, 2001, p. 400).
Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver – na
verdade, também, ele aproveitava para tratar de vender bois e
mais outros negócios – e trazia para mim caixetas de doce de
buriti ou de araticum, requeijão e marmeladas. (ROSA, 2001, p.
131).
Cabeça de um se bolou, redondante, feito um coco, por cima
da palha de buriti que cobria uma casa de vaqueiro. (ROSA,
2001, p. 352).
Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-buriti, sempre
ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Suçuarana, e
que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte
no Rio Pandeiros. (ROSA, 2001, p. 71).
165
Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que
esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já
frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus-buritizais
levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as
escadas com ele, em cima de mesa foi posto. (ROSA, 2001, p.
614).
Entre a vasta utilidade do buriti, verificamos em Grande Sertão:
veredas diversos usos, como exemplificados acima: o buriti na fabricação
da balsa e da porta, o consumo da sua polpa: é usado para fazer doce e
farinha; usa-se a palha para cobrir casas.
Na última passagem citada, Riobaldo lamenta a morte de Diadorim
que, por sua vez, foi quem o ensinou a admirar os pássaros e a ver as
―cores do mundo sertanejo‖. Com Diadorim, Riobaldo passou a ver
natureza do sertão com outros olhos; por isso relaciona a morte d(o)a
amad(o)a com a natureza: ―meus-buritizais levados de verdes...‖ (ROSA,
2001, p. 614). O buriti é uma palmeira verde, assim como os olhos de
Diadorim. Com a morte desse, é como se os buritis tivessem perdido sua
cor e, por extensão, todo o sertão; tendo em vista que, para Riobaldo, o
verde intenso do sertão, e que ele passou a apreciar, é uma projeção do
verde dos olhos de Diadorim. É, portanto, no verde dos olhos de Diadorim
que está a cor, a vida desse sertão universal. Morto ele, é como se com
ele morresse também o sertão pelo bloqueio de sua cor mais vibrante.
Além dessas passagens, é importante observar que nas veredas
sempre tem buritis e onde tem buriti tem águas. Como diz Riobaldo, ―o
buriti é das margens‖ (ROSA, 2001, p. 393), ―não se aparta das águas carece um espelho‖ (ROSA, 2001, p. 325). Com isso, é perceptível que o
buriti é vital para a vereda, ele é o caminho das águas do sertão.
No romance rosiano, temos ainda espécies vegetais com uma
pluralidade de significados e usos, como é o caso da ―flor do amor‖, uma
flor branca e perfumada que se parece com um lírio. Essa ―flor do amor‖,
significante deslizante, tem a ver com a relação entre Riobaldo e três
mulheres.
166
Na narrativa essa flor tem vários nomes, pois ao indagar sobre o
nome da flor, tem-se diferentes respostas. A flor tem o nome de casacomigo para Otacília, dorme-comigo para Nhorinhá e Liroliro quando
Diadorim pergunta a Otacília o nome da planta.
Riobaldo, em sua trajetória de jagunço, experimentou diferentes
situações amorosas; cada um desses amores teve importância particular
em sua vida e por cada uma dessas mulheres nutriu um tipo de
sentimento diferenciado. Os gregos fazem três tipos de distinção de amor,
usavam a palavra de acordo com o tipo de amor a que se referiam: Ágape
é um amor sentimental, fraternal e espiritual; podemos relacioná-lo ao
amor de Otacília; Eros se refere ao amor sexual, carnal e que
relacionamos a Nhorinhá; por fim, temos o Philos que é um amor
vinculado a amizade e que pode ser relacionado a Diadorim e, nesse
caso, também a um amor impossível.
Otacilía sente por Riobaldo um amor sentimental; é ela quem o
oferece estabilidade, fidelidade e afeto constante. Por tais motivos é que é
relacionada à flor casa-comigo. Diferente de Otacília, Nhorinhá é o amor
carnal; por ser prostituta, representa o amor físico e é com ela que
Riobaldo vive momentos de profunda satisfação, por isso é relacionada à
flor dorme-comigo. O último de seus amores, Diadorim, é quem
representa para ele um amor inexplicável e impossível, proibido. Um amor
que se apossa do jagunço como um feitiço, um encanto que o perseguiu
ao longo de sua travessia; esse é um amor travestido de amizade, relativo
ao nome da flor, quando denominada liroliro. Essas três denominações,
referindo-se a três tipos de pessoas, a namorada, a prostituta e ao amigojagunço, simbolizam no romance os diferentes discursos sobre o amor.
Além dessas relações baseadas nos significados das palavras,
analisaremos as estruturas das palavras relacionando-as aos seus
respectivos significados. Casa-comigo tem letras iguais no começo de
cada palavra, dorme-comigo tem letras diferentes no começo das
palavras, ambas formam um locução, cujos vocábulos se unem por meio
167
do hífen. Liroliro é uma palavra dobrada, repetida, espelhada. Podemos
associar que em casa-comigo há um casamento entre as palavras, por
meio da letra ―c‖ que se repete no início de cada uma. Na segunda
palavra – dorme-comigo – não há essa combinação, por isso, pode
remeter a uma relação passageira; e, por fim e ironicamente, a palava
liroliro, sem hífen, com identidade absoluta entre as palavras que a forma,
é a expressão metafórica de relação interdita.
Assim, percebemos que na narrativa de Riobaldo a flora que
compõe o sertão físico caracteriza o costume sertanejo, os hábitos
alimentares, auxilia na contagem do tempo, ou seja, está integrada à vida
do sertanejo. Já a flora que configura o estado da alma, simboliza os
seres criando uma relação com o ―homem-humano‖, seus crespos,
venturas
e
desventuras,
sabores
e
dissabores;
é
a
natureza
metaforizando as humanas paixões.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA,
S.P.
de; PROENCA,
C.E.B.; SANO,
S.M.; RIBEIRO,
J.F. Cerrado: espécies vegetais úteis. Planaltina: EMBRAPA-CPAC,
1998.
BRAGA, Renato. Plantas do Nordeste: especialmente do Ceará. 3. ed.
Fortaleza: Editora ESAM, 1976.
MEYER, Mônica. Ser-tão Natureza: a natureza em Guimarães Rosa. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Florestas Anãs do Sertão: o cerrado na
história de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 19 ed., 2001.
168
OS PÁSSAROS COMO METÁFORA DE MUDANÇA EM ―HORA E A
VEZ DE AUGUSTO MATRAGA‖
Júnia Cleize Gomes Pereira
(Mestranda – UNIMONTES/CAPES)
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo estudar os pássaros como metáfora de
mudança no conto ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖, de João Guimarães Rosa e a
tradução intersemiótica de Roberto Santos, de 1965. Para isso, realizamos leituras
acerca de tal temática e análises das passagens em que fica visível a similaridade da
trajetória de Matraga com os pássaros, estes que estão em constante movimento
migratório, assim como o personagem principal. Guiados por este fio condutor, nos
deparamos com uma relação e interação do meio natural com o homem, o que é
retratado através de diferentes maneiras pelos sistemas em estudo – um pela letra, o
outro pela tela. Comprovamos que, assim como no conto, na tradução fílmica os
pássaros fazem parte da vida de Augusto Matraga, além de serem fundamentais na
decisão do mesmo ao sair pelo mundo em busca de sua hora e vez.
Palavras-chave: Pássaro. Mudança. Augusto Matraga.
ABSTRACT: This work aims to study the birds as a metaphor of changes in the tale "A
hora e a vez de Augusto Matraga" written by João Guimarães Rosa and intersemiotic
translation of Roberto Santos, 1965. For this, we did readings about this theme and
analysis of the passages in which is visible the similarity of Matraga trajectory with the
birds, those that are in constant migration, as well as the main character. Guided by this
thread, we came across a relation and interaction of the natural environment with the
human, which is portrayed through different ways by the systems under study - one by
the letter, the other around the screen. We proved that, as in the tale, the filmic
translation birds are part Augusto Matraga's life, as well as being essential in the decision
thereof to leave the world in search of his time and again.
Keywords: Bird. Change. Augusto Matraga.
Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
(Rosa, 2012, p. 358).
Publicada em 1946 na obra Sagarana, a novela28 ―A hora e a vez de
Augusto Matraga‖ de Guimarães Rosa traz uma saga pessoal acerca da
existência do homem e sua busca pela salvação divina. É considerada
pelo próprio autor, na carta a João Condé, como a ―história mais séria, de
certo modo síntese e chave de todas as outras‖ (ROSA, 2012, p. 27).
28
Neste estudo, utilizaremos os termos conto, novela e narrativa, uma vez que não há
uma distinção clara entre estes conceitos usados pelos estudiosos da obra de
Guimarães Rosa em seus textos e até mesmo pelo próprio autor.
169
Augusto Matraga nos é apresentado como um homem violento e
prepotente, que acaba sendo abandonado por seus capangas, por sua
mulher Dionóra e sua filha Mimita. Na busca por vingança, cai numa
emboscada sofrendo uma surra que o coloca à beira da morte. No
entanto, ao ser jogado numa ribanceira, é encontrado por um casal de
pretos que o acolhe e o reaproxima da religião católica.
Passado o tempo, já recuperado fisicamente e cheio de energia
espiritual, Matraga se muda com o casal de pretos para longe, queria ir
para um ―sitiozinho perdido no sertão mais longínquo‖ (ROSA, 2012, p.
341). Acabam chegando em Tombador, onde Matraga começa uma
verdadeira empreitada em busca de sua redenção. É também nesse lugar
que o personagem se encontra com o bando de jagunços de seu
Joãozinho Bem-Bem e os hospeda.
Esse encontro causa uma série de perturbações em Augusto
Matraga, desencadeadas pela vida livre da jagunçagem. Em seguida, ele
resolve partir, se lançar ao mundo. No lombo de um jumento, à deriva, é
levado aos caminhos do acaso. Mas o palco final de sua vida já estava
sendo armado, pois encontra-se novamente com o bando de seu
Joãozinho Bem-Bem e é travado entre eles os últimos momentos de suas
vidas.
Nessa trajetória de Matraga, é perceptível que a ―mudança‖ é um
dos principais fios condutores da narrativa. Há uma mudança do campo
pessoal/ espiritual, visto que o homem violento, prepotente e incrédulo se
transmuta em um homem pacífico, benigno e religioso após uma
marcante experiência que quase o matou. Sobre esse tipo de mudança,
Guimarães Rosa nos lembra mais tarde em Grande Sertão: veredas:
―O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo,
é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me
ensinou. Isso que me alegra montão.‖ (ROSA, 2001, p. 39).
170
Além dessa mudança pessoal/espiritual, há mudanças no campo
geográfico: do cenário inicial, o arraial da Virgem Nossa senhora das
Dores do Córrego do Murici, para o rancho do casal de pretos, deste para
Tombador e, por fim, para o mundo, em busca da sua hora e vez. Apesar
de haver essa alternância de cenários, a história se passa em um espaço
maior: no sertão.
Na obra rosiana, o sertão não é apenas um cenário natural em que
se desenrolam as ações, é também um personagem que faz com que as
ações aconteçam ou que com elas se (con)funde. Em seu livro Ser-tão
Natureza: a natureza em Guimarães Rosa, Mônica Meyer sustenta a ideia
de que a natureza rosiana não se confirma somente como um caminho ou
uma paisagem, mas como elemento que constitui o homem. Vejamos:
A presença marcante e constante da natureza e das viagens
na obra rosiana indica, intuitivamente, que tanto a natureza
como a viagem têm um significado que ultrapassa a dimensão
espacial de paisagem natural e de deslocamento geográfico. O
valor metafísico emerge através de situações em que há
entrelaçamento entre personagem e natureza. Nada é descrito
gratuitamente, como composição e enfeite. (MEYER, 2008, p.
203).
Essa harmonia entre personagem e natureza que cita Meyer é
retratada pela trajetória de Matraga. No início do conto, sendo um homem
perverso, pecador e indiferente em relação à esposa e à filha, não há uma
integração com a natureza. Somente depois da surra que quase acarretou
em sua morte que ele passa a apreciá-la. Mas, para isso, foi preciso que
Matraga renascesse, conforme discorre Tânia Macedo em Guimarães
Rosa:
Na verdade, é um renascer que se prepara entre gente humilde
– o casal de pretos – e numa cabana muito parecida com um
presépio. Ou, se quisermos pensar de outra maneira, a sua
nova vida começa a se realizar em um ―útero da natureza‖.
(MACEDO, 2008, p. 34).
Após essa gestação no ―útero da natureza‖, temos um personagem
sensível e que passa a ser um observador do meio natural. Depois das
171
mudanças ocorridas em sua vida, a natureza se faz constante e Matraga
a contempla:
Parou. Para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco;
para descansar um ananás selvagem, de ouro mouro, com
cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha
borá; para rezar perto de um pau-d‘arco florido e de um solene
pau-d‘óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais
da mão de Deus. E, uma vez, teve de escapar, depressa, para
a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo
como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil
cabeças, que rolava para Itacambira, com a vaqueirama
encourada – piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou
oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando
cantigas do alto sertão.
E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um
urubu reumático que chaudicava a estrada a fora, um pedaço,
antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das
frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem em tom
de abundância e abandono. Pela primeira vez na vida, se
extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros
subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo
alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam
fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda
mais vermelho – e o tié-piranga pousou num ramo do
barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão
todo se alegrava, porque agora tinha um ramo que era de
mulungu. (ROSA, 2012, p. 356-360 – grifos nossos).
Em tal passagem, Guimarães Rosa descreve poeticamente a
natureza, mostrando que com a mudança interior do personagem, este
passa a conhecer e apreciar o exterior, o cenário natural. O que é
decorrente em Rosa. Em Grande Sertão: veredas também temos uma
mudança de visão de mundo através de Diadorim, este que ensina a
Riobaldo a enxergar as ―quisquilhas‖ da natureza com outros olhos.
Dentre os diversos elementos naturais em ―A hora e a vez de
Augusto Matraga‖, os pássaros nos chamaram atenção pelo fato de
aparecerem frequentemente se relacionando a Matraga, desde a sua
estada na cabana dos pretos, uma vez que tal moradia é comparada a um
ninho de maranhão, que é uma espécie de ave: ―... era um cofo de barro
seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio
das árvores, como um ninho de maranhões‖ (ROSA, 2012, p. 337).
172
Seguindo essas marcações do texto, Tania Macedo afirma que Matraga
―é como uma pequena ave que ainda vai ter que aprender muito, até voar‖
(MACEDO, 1998, p. 34). E de fato voa, como veremos a seguir.
Numa manhã, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma
belíssima explosão de pássaros voando:
Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que
Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um
sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava
o céu acima, num azul de água sem praias, com a luz jogada
para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo – a
manhã mais bonita que ele já pudera ver.
Estava capinando, na beira do rego.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de
maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, tralejando de
rir. E outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas
verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as
vozes na disciplina de um coro. (ROSA, 2012, p. 357).
Ao observar a passarada, Matraga percebe que estes estão em
constante mudança: ―Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já
devem estar longe daqui... Longe, onde?‖ (ROSA, 2012, p. 358). Todo
esse vaguear e desfilar de liberdade perante Matraga, suscita o desejo de
mudança, pois, logo depois, anuncia sua partida. Segundo ele, para sua
hora e vez chegar, ele precisa de estar ―em outras partes‖ (ROSA, 2012,
p. 359), assim como os pássaros.
De acordo com o Dicionário de Símbolos29 o pássaro simboliza a
inteligência, a sabedoria, a leveza, o divino, a alma, a liberdade, a
amizade. Por possuírem asas e o poder de voar, em muitas culturas são
considerados mensageiros entre o céu e a terra. O pássaro, se opõe à
serpente, como o símbolo do mundo celeste ao mundo terrestre.
Partindo dessa simbologia dos pássaros, encontramos uma
explicação para a constante integração dos mesmos com Matraga, visto
que tal personagem, após sua transformação, é um homem religioso e
que tem o anseio de ir para o céu, ambiente representado pelos pássaros:
29
Disponível em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/passaros/. Acesso em
08/05/2015.
173
"- Eu vou pra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez
há de chegar... Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..." (ROSA,
2012, p. 344).
Além disso, os pássaros simbolizam o divino, a alma e o mundo
celeste. Matraga parece ter consciência de tal relação, pois o momento
em que ele pede a arma para Joãozinho Bem-Bem a fim de experimentar
sua pontaria é revelador. Joãozinho lhe entrega a arma, aponta para um
pássaro e sugere: ― — Pode gastar as oito. Experimenta naquele pássaro
ali, na pitangueira...‖. Porém, rapidamente ele diz: ―— Deixa de
criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não
reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...‖. (ROSA,
2012, p. 353-354).
Analisando tal passagem do conto, Tânia Macedo diz que ―Nhô
Augusto já aprendera a domar sua violência‖ (MACEDO, 1988, p. 38).
Ele, que teve a oportunidade de refazer sua vida, defendia os seres tendo
por objetivo a salvação divina. Ou seja, metaforicamente, o pássaro que
outrora estava no ninho, aprendendo as lições da vida, agora pode voar.
Da letra para a imagem: a migração dos pássaros
“A literatura significa, o cinema expressa”.
(METZ, 1972, p. 10).
Nesse enveredar do trabalho, tomaremos a obra cinematográfica ―A
hora e vez de Augusto Matraga‖ dirigida por Roberto Santos como uma
tradução da obra literária de Guimarães Rosa. Antes, vejamos como
Romam Jakobson define a tradução intersemiótica:
A tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de
signos não verbais. [...] transposição inter-semiótica – de um
sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para
a música, a dança, o cinema ou a pintura. (JAKOBSON.
Aspectos lingüísticos da tradução, p. 65, 72).
174
A obra de Guimarães Rosa sofreu várias traduções intersemióticas.
A primeira ocorreu em 1965, com o filme A hora e a vez de Augusto
Matraga, de Roberto Santos, nosso objeto de estudo. Realizado em preto
e branco, este filme contou, em seu elenco, com atores como Leonardo
Villar no papel de Augusto Matraga, Jofre Soares como Joãozinho BemBem, e Maria Ribeiro atuando como Dionorá. A música é de Luiz Roberto
Oliveira e Geraldo Vandré.
Assim como no conto rosiano, no filme um dos temas condutores da
narrativa é a questão da mudança de Augusto Matraga e, com base
nisso, podemos dividir sua história de em três partes: na primeira, as
características negativas da personagem são reveladas. A segunda parte
é o momento de transformação do personagem, na qual ele tenta se
redimir e, a terceira, marcada pela busca da redenção divina. Ou seja,
sua história divide-se em: perversão, penitência e redenção.
Na adaptação, a natureza também segue o percurso de Matraga.
Uma cena importante que nos mostra a interação do personagem com a
natureza é a que o mesmo tenta domar o burro, o ―bichinho valente‖,
como ele o chama. O animal é resistente, empaca e derruba Augusto
seguidas vezes. Mas em uma das vezes em que está em cima do burro,
Matraga abre os braços e o vento sopra forte, uma bela cena, em que
mostra uma harmonia entre o personagem e os elementos naturais.
Não há passagem semelhante na obra de Guimarães Rosa, porém,
há uma fala do padre para Augusto: ―Modere esse mau gênio: faça de
conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que
ele...‖ (ROSA, 2012, p. 340). O poldro, cavalo novo, foi substituído por um
burro na passagem fílmica, assim sendo, Roberto Santos traduziu essa
fala e criou a cena em questão, esta que através da imagem, nos
transmite a poesia da relação homem-mundo existente na letra rosiana.
Sobre o papel do tradutor Enio Luiz de Carvalho Biaggi em Cinema e
Vídeo na Obra de Guimarães Rosa corrobora que
175
Retomando o conceito de tradução, em termos gerais, esse é o
nome que se dá ao processo de leitura e reescrita de um
determinado texto pelo tradutor. O tradutor é aquele que lê,
interpreta e reescreve um determinado texto, dentro de um
mesmo sistema lingüístico (tradução intralingual), em línguas
diferentes (tradução interlingual) ou, até mesmo, em diferentes
sistemas de signos (tradução intersemiótica). (BIAGGI, 2007, p.
34).
Tendo em vista essa leitura, interpretação e reescrita do tradutor,
inferimos que Roberto Santos também fez uma leitura da presença
constante dos pássaros na novela rosiana. Ao invés da palavra, Santos
utilizou das imagens e dos sons, recursos cinematográficos, para mostrar
a relação entre o personagem e as aves.
Conforme foi dito anteriormente, a história de Matraga se divide em
três momentos: perversão, penitência e redenção e, para demarcá-las,
Roberto colocou cenas em que bando de pássaros aparecem a voar pelo
céu, num movimento migratório, metaforizando as mudanças do
personagem principal.
Segundo o Dicionário Online de Português30, a migração é a
movimentação constante de espécies que saem de uma região para
outra, normalmente ocasionada por uma alteração no clima ou no
ambiente. Ou seja, os pássaros são motivados a fazer uma mudança,
assim como Matraga também sofre mudanças e migrações, uma vez que
há transições de ambientes em sua trajetória.
A primeira cena em que mostra o revoar dos pássaros acontece
quando Augusto Matraga é jogado no abismo e é encontrado pelos
pretos, o que marca a mudança do estado de perversão para a
penitência; o segundo revoar acontece quando a mãe Quitéria chama o
Padre para Augusto se confessar, marcando a fase da penitência; e, por
fim, o terceiro revoar ocorre quando Augusto anuncia sua partida de
Tombador em busca de seu destino, assim como na novela rosiana,
marcando o abandono da fase de penitência em busca de sua redenção.
30
Disponível em: http://www.dicio.com.br/migracao/. Acesso em 10/05/15.
176
Durante essa metamorfose de Matraga, a música e os sons dos
chocalhos, do vento, do trovão, dos bichos etc. estão sempre presentes,
merecendo destaque, pois eles narram ao mesmo tempo em que as
cenas são dramatizadas. O cantar dos pássaros é um som constante nos
dias de Matraga, o que reforça a interação do mesmo com a natureza e o
vínculo que o personagem e tais aves têm por partilharem de ideais em
comum – alçar voos, em movimentos migratórios, em busca de objetivos.
Assim como no conto, averiguamos que na tradução fílmica os
pássaros fazem parte da vida de Augusto Matraga, principalmente na fase
de penitência, na qual o personagem passa a admirar e interagir com o
meio natural, além de serem fundamentais na decisão de Augusto ao sair
pelo mundo montado no jumento. Ademais, com sua morte, na qual é
assinalada o alcance de sua hora e vez, de sua redenção, segundo a
crença e o desejo de Matraga, há a possibilidade do mesmo de ir para o
céu, ambiente simbolicamente representado pelos pássaros.
REFERÊNCIAS
BIAGGI, Enio Luiz de Carvalho. Cinema e vídeo na obra de Guimarães
Rosa: uma análise intersemiótica de ―Cara-de-Bronze‖ e ―Famigerado‖.
Belo
Horizonte:
UFMG,
2007.
Disponível
em:
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP76SJ3P/disserta__o___enio_luiz_de_carvalho_biaggi.pdf?sequence=1.
Acesso em 09/05/2015.
Conceito de Migração. Disponível em: http://www.dicio.com.br/migracao/.
Acesso em 10/05/15.
JACKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In:
JACKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein;
José Paulo Paes. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 63-72.
MACEDO, Tânia. Guimarães Rosa. São Paulo: Editora Ática, 1988.
METZ, Christian. A significação no cinema. Trad. e posfácio de JeanClaude Bernardet. São Paulo: Perspectiva, 1972.
177
MEYER, Mônica. Ser-tão Natureza: a natureza em Guimarães Rosa. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012.
Simbologia dos pássaros. Dicionário de Símbolos: significado dos
símbolos
e
simbologias:
Disponível
em:
http://www.dicionariodesimbolos.com.br/passaros/.
Acesso
em
08/05/2015.
178
COMO ESCREVER PARA AS CRIANÇAS: A IDEIA DE ALEXINA DE
MAGALHÃES PINTO SOBRE O INFANTIL E A LITERATURA
Laura Emanuela Gonçalves Limai
Rita de Cássia Silva Dionísio Santosii
RESUMO: Alexina Magalhães Pinto foi uma escritora mineira, pioneira em obras
destinadas às crianças. A importância da autora – em especial no que diz respeito a sua
singular atuação na educação escolar de crianças no início do século XX – é evidente,
mas infelizmente, é pouco estudada e está caindo no esquecimento. Em suas obras, ela
procurou trazer à tona a cultura popular e o folclore para perto das crianças. O que
escrever para as crianças e por quê? Pensando sobre essa escrita, propõe-se investigar
sobre a ideia de Alexina de Magalhães nas suas tentativas de renovação da leitura
literária e sua relação com e o ensino infantil.
Palavras-chave: Literatura de Minas Gerais, Alexina de Magalhães Pinto, Literatura
infantil.
ABSTRACT: Alexina de Magalhães Pinto was a writer, from Minas Gerais, pioneering
works for children. The importance of the author – in special about her singular action on
children‘s education at the beginning of the XX century – it is clear, but unfortunately, it is
not so studied and it is falling by the wayside. In her works, she sought out to approach
popular culture and folklore culture close to the children. What should be written for the
children and why? Thinking about this writing, it is proposed to have an investigation
about the idea of Alexina de Magalhães in her attempts of renewing the literary reading
and her relation with the children‘s education.
Keywords: Literature of Minas Gerais, Alexina de Magalhães Pinto, children's literature.
Há ainda quem pense em literatura infantil como um gênero
inferior. Se pensarmos em toda a caminhada dessa literatura para a sua
consolidação, veremos que ela passou por várias problemáticas, inclusive
a chamada literatura ―pedagógica‖. É fato que a escrita para crianças
começou com esse intuito, de educá-las, já que em séculos passados, a
criança era tratada como um adulto, em que não se tinha tratamento
especial para elas. Frequentavam reuniões sociais junto aos adultos e o
que era lido para elas, eram as histórias criadas para os adultos. A partir
desse conjunto de questões, Leonardo Arroyo, em sua obra Literatura
infantil brasileira, na busca por um conceito de literatura infantil, nos traz
duas teses defendidas por pedagogos de grande destaque sobre essas
discussões:
179
(a) não deve haver literatura especialmente escrita para crianças,
mas a utilização, condensada ou adaptada, das obras-primas
da literatura universal;
(b) a diferença de mentalidade na criança implicaria na feitura de
obras especiais para elas.
(ARROYO, Leonardo, 1968, p. 27).
Essas duas teses são contestadas a partir de duas obras muito
famosas, Rubison Crusoe, de Daniel Defoe, escrita para adultos e
consagrada pelas crianças; e A ilha do tesouro de Robert Louis, que
destinada às crianças, atingiu a qualquer público.
O grande número de obras infantis publicadas, e o gosto infantil ser
algo permanente, nos traz a alusão de que escrever para crianças é algo
fácil. É interessante, então, pensar sobre o que escrever para elas. No
primeiro momento, supõe-se em escrever algo que chame a atenção das
mesmas, mas será que apenas chamar a atenção desse público, que é
questionador, faz com que a literatura infantil continue atraindo autores e
público para a sua solidificação?
A literatura infantil brasileira teve seu início no final do século XIX,
com o propósito de formação da elite burguesa. A escola participava do
processo de manipulação da criança, atendendo a vontade dessa classe
dominante, provocando nas crianças uma imagem de seres dependentes,
em que a alternativa delas era aceitar as normas impostas. No início do
século XX, portanto, percebe-se a necessidade de uma literatura
essencialmente brasileira.
Trazendo, assim, para a discussão, uma escritora mineira, com
especialidades estrangeiras, Alexina de Magalhães Pinto tem seu nome
citado
nas
origens
da
literatura
infantil
brasileira.
Suas
obras,
consideradas raras, totalmente destinadas ao público infantil, resultam de
temas que trazem a alma do povo, a cultura, o folclore. Por ter sido
professora, suas obras podem se confundir com o didatismo que outras
obras infantis do século XIX continham (dado que Alexina de Magalhães
sempre pensou na saúde física, moral e intelectual das crianças), mas a
180
sua ideia de inovação para dentro da sala de aula e nas suas obras
infantis, devem ganhar todo o reconhecimento.
Alexina de Magalhães, como professora e escritora, entra no
contexto de inovação quando traz o folclore para ser trabalhado nas
escolas, uma vez que, a cultura popular não fazia parte dos padrões
sociais vigentes da época. Ela trouxe a ―voz‖ que faltava para as crianças
desenvolverem seu imaginário. Desta forma, ―a escola e a literatura
podem provar sua utilidade quando se tornarem o espaço para a criança
refletir sobre sua condição pessoal‖ (ZILBERMAN, 1985, p. 21).
Segundo
Flávia
Carnevali,
―Alexina
costumava
rasgar
as
tradicionais cartilhas para não habituar seus alunos a lerem pelo
‗superado método de associação de palavras‘. Ela só admitia a
aprendizagem global‖ (CARNEVALI, 2009, p.17). Esse método se
caracteriza pela utilização de unidades completas de linguagem para
depois dividi-las em partes menores. Pode-se considerar que Alexina de
Magalhães acreditava no poder de percepção e de associação das
crianças, principiando a questão da interpretação e da autonomia para
criação, seja de histórias orais ou escritas.
A autora procura reconhecer os temas da formação cultural
brasileira
em
seus livros,
maravilhada
nas nossas tradições
e
reconhecendo o valor pedagógico do folclore, empenha-se em concretizar
algo que sirva de suporte para o desenvolvimento humano, que nesse
caso seria a literatura infantil:
Vislumbrando nas nossas tradições – práticas, ethicas e
estheticas, não escriptas, os esforços da raça para sua vida e
caracterização á parte; divizando no folk-lore brasileiro a
própria pedagogia nacional, empenhei-me, primeiro, em coligir
fiel e indistinctamente tudo o que encontrasse; depois na tarefa
de separar o que em livrinhos á infância pudesse continuar a
servir de arrimo aos esforços espontâneos da raça para o seu
iii
próprio desenvolvimento (PINTO, 1916, p. 193).
Diante do cenário de suas obras – que engloba jogos infantis,
cirandas, cantigas, parlendas, provérbios e histórias – é interessante
181
lembrar que muitos desses conteúdos foram passados de geração a
geração, chegando até nós, muitas vezes, deturpados. Logo, destacamos
o valor científico e o valor histórico das obras, já que, contém registros
que foram muito bem selecionados pela autora a partir de suas pesquisas
no meio social.
Leonardo Arroyo, em Literatura infantil brasileira, nos fala ainda
mais sobre a importância de Alexina de Magalhães Pinto no contexto
histórico da literatura infantil, ressaltando que ela foi a primeira autora a
indicar obras mínimas para as crianças lerem, além de ela ser significativa
na questão de ―reação à literatura escolar e aos velhos conceitos sobre a
infância‖ (ARROYO, 1968, p. 257).
A ideia de infância de Alexina de Magalhães torna-se parte
essencial para a compreensão dessa sua dedicação às crianças, nas
suas próprias palavras:
Para conhecer, para dirigir a creança é preciso ama-la,
judiciosamente observa-la; mais ainda apoia-la, guia-la nos
folguedos, comprehende-la nos inevitáveis desvarios, ajuda-la
nos trabalhos que espontaneamente empreenda (PINTO, 1916,
p. 191).
Seu trabalho de corrigir as histórias e cantigas contadas pelo povo
– emendando ou suprimindo, mantendo-se fiel aos seus contadores
anônimos e oferecendo um vocabulário necessário para a expressão do
sentir e do pensar de seus ―personagens‖ ou ―narradores‖ – confirma seu
papel de educadora ao sugerir suas obras como material de ensino e
também de lazer. Aconselha aos professores e aos pais, nos paratextos e
nas notas explicativas dos livros, a utilizarem as cantigas e as histórias
populares (que servirão para a construção da educação infantil: física,
intelectual e moral), e a maneira como deve ser feito:
Ler expressivamente e aprender bem cada poesia antes de
entoa-la. Preferir cantar sempre a meia voz. Após dez minutos
de canto, cinco, pelo menos, de repouso. Evitar ler ou falar em
voz alta após haver cantado. Resfriar-se ou resfriar a garganta
após exercicios vocaes, será expôr-se o cantor a perder a voz
(PINTO, 1916, p. 4).
182
O porquê de Alexina de Magalhães ter decidido escrever para
crianças pode ser percebido a partir de uma carta direcionada a elas na
primeira página do livro, Cantigas das Crianças e do Povo e Danças
Popularesiv, em que ela convida as crianças a cantarem e a brincarem
com seus amigos, mas que elas sejam amáveis e generosas com todos,
para assim, se tornarem pessoas de bem. Pede que elas cantem com
entonação, as cantigas, para que as memórias desses momentos de
alegria fiquem marcados em suas vidas. Ela deseja que elas sejam
alegres, fortes e nobres pelo sentimento e pelo saber, como se pode ver
em uma nota no final de uma cantiga do livro:
Ser valentão, meus meninos, só no palco e por brincadeira. Em
sociedade, em famílias gabolices, as fanfarronadas são cousas
mais que ridículas, - condemnaveis e só proprias dos tolos. Si,
entretanto, gostaes de ser physicamente um valente, tendes as
corridas a pé, a gymanastica, a natação, a lucta romana para
vos exercitardes nellas á vontade (PINTO, 1916, p. 99).
No livro, A Literatura Infantil na Escola, de Regina Zilberman,
identificamos que a literatura infantil deve ser formadora, para que não se
confunda com a didática, conservando a inocência das crianças, mas ao
mesmo tempo, destruindo-a aos poucos, para que elas possam saber
lidar com os embates da vida.
Como escrever para crianças, portanto, é algo que vai depender
primeiramente da intenção do próprio autor, que geralmente ocorre devido
a vontade de que o adulto tem em relembrar ou regressar a uma infância
que foi muito boa, ou a uma infância perdida. Não se pode também deixar
de falar da inspiração, que é uma marca presente em qualquer escritor e
deve ser colocada no papel imediatamente.
Ressaltamos, inclusive, que nos dias atuais são muitos os estudos
sobre a escrita para as crianças: como lidar com a ficção, com o
fantástico, com a realidade, com assuntos transversais, qual a faixa etária
adequada, entre outras questões. Dessa forma, abre-se caminho para
183
refletir se realmente existem ou necessita-se de técnicas para escrever
livros infantis.
Em se tratando de Alexina de Magalhães Pinto e admitindo-se a
época em que suas obras foram publicadas, percebemos que, para
escrever para as crianças não precisa-se de muita coisa. A princípio, de
histórias que contem sobre o cotidiano, sobre algo que foi inventado do
―nada‖, sobre uma cultura espontânea, assim como são as crianças:
naturais, produtoras de cultura e de novos significados para a realidade
imaginativa delas.
No entanto, se pararmos para observar o trabalho de Alexina de
Magalhães para além da escrita, veremos que não foi pouca coisa:
analisando o trabalho da folclorista, percebemos como ela
estabelecia uma prática que pretendia construir uma memória
artística nacional através da preservação de um material que
fatalmente desaparecia, compilando e arquivando diversas
formas de registro sobre a música e outras manifestações
populares, em geral, de tradição oral (CARNEVALI, 2009, p.
4).
Todavia, para a nossa autora em estudo, escrever para as crianças
precisa-se, principalmente de amor e dedicação.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Leonardo.
Melhoramentos, 1968.
Literatura
infantil
brasileira.
São
Paulo:
CARNEVALI, Flávia Guia. “A mineira ruidosa” Cultura Popular e
Brasilidade na Obra de Alexina de Magalhães Pinto(1870-1921). São
Paulo, Universidade de São Paulo, 2009. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-08022010-123212/ptbr.php> Acesso em: 05 de outubro de 2015.
CARNEVALI, Flávia Guia. Música popular, Memória e História na
folclorista Alexina de Magalhães Pinto. São Paulo, Universidade de São
Paulo,
2009.
Disponível
em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/13207> Acesso em: 05 de
outubro de 2015.
184
PINTO, Alexina de Magalhães. Cantigas das Crianças e do Povo e
Danças Populares. Coleção Icks. Série A. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1916.
Zilberman, Regina. A literatura infantil na Escola. 4. ed. São Paulo: Ed.
Global, 1985.
185
VIRTUDES PARA DELEITE DOS BRASILEIROS: A PRESENÇA DE
TEXTOS DE LÍNGUA PORTUGUESA N'O LIVRO DAS VIRTUDES31
Leonardo Tadeu Nogueira Palhares
(Graduado em Letras/Português pela Universidade Estadual de Montes
Claros — UNIMONTES)
RESUMO: Lançado em 1995 no Brasil, O Livro das Virtudes é a versão em português de
The book of virtues, uma antologia organizada por William John Bennett e publicada dois
anos antes. Em maioria, consta-se a presença de diversos autores estrangeiros com
textos traduzidos para o português (como Homero, Aristóteles, Hans Christian Andersen,
Irmãos Grimm, Oscar Wilde, Tolstoi, dentre outros), os quais suas composições se
encaixam em uma das mais variadas "virtudes" categorizadas — como Disciplina,
Compaixão, etc. A versão brasileira, contudo, apresenta a singularidade de contar com a
presença de escritos de literatos de língua portuguesa, tais como Monteiro Lobato, Olavo
Bilac, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros. Uma reflexão sobre o que implica a
presença de tais escritores nesta obra é o que pretendemos nesta discussão.
Palavras-chave: Antologias. Escritores de Língua Portuguesa. O Livro das Virtudes.
William J. Bennett
ABSTRACT: Published in 1995 in Brazil, O Livro das Virtudes is the portuguese version
of The book of virtues, an anthology edited by William Joh Bennett and published two
years earlier. In the majority, stated the presence of several foreign authors with texts
translated into portuguese (as Homer, Aristotle, Hans Christian Andersen, the Brothers
Grimm, Oscar Wilde, Tolstoy, among others), which his compositions fit in one of the
most different "virtues" categorized - as discipline, compassion, etc. The Brazilian
version, however, presents the uniqueness of having the presence of writings of
portuguese-speaking writers such as Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Carlos Drummond de
Andrade, among others. A reflection on what implies the presence of such writers in this
book is what we want in this discussion.
Keywords: Anthologies. Writers Portuguese. The Book of Virtues. William Bennett
1 — Breves considerações sobre as antologias
Ao advertir o leitor de sua coleção de Contos Populares do Brasil,
Sílvio Romero realiza a seguinte ponderação:
Resolvemos não incluir aqui os contos tupis que não passaram
ás populações atuais do império. Consideramos o índio puro
31
Embora este título possa evocar alguma ambiguidade, a intenção é referenciar
propriamente os textos publicados originalmente em língua portuguesa que constam n'O
Livro das Virtudes, uma vez que falar dos textos de língua portuguesa na edição
brasileira soaria redundante.
186
como estranho à nossa vida presente. O mesmo pensamos a
respeito do negro da costa. O português, o emboaba, o reinol
está nas mesmíssimas condições. O brasileiro é o resultado da
à três almas que se reuniram, e por isso só colhemos os contos
que nas vilas e fazendas do interior correm de boca em boca.
32
(ROMERO, 1885, p. V-VI)
Este trecho pode evocar vários questionamentos. A autoria de
Romero pode-se reacender algumas discussões sobre esta personalidade
brasileira dos fins dos oitocentos33. Embora possamos entender que a
polêmica fazia parte de sua figura, em sua fala implica outra polêmica que
certamente não lhe seria exclusiva: a questão das coletâneas. Se se trata
de um apanhado de Contos Populares do Brasil, como atesta o título, até
que ponto seria aceitável (ou não) a presença de textos dos tupis, dos
negros ou dos portugueses em tal compêndio? Seria entender que
apenas da miscigenação cultural entre os três, realizadas em séculos de
história brasileira, é que se pode pensar que houve a produção de contos,
e com ainda dois elementos: que fossem populares e brasileiros?
Iniciamos com essa discussão para exemplificar algumas das
inquietações que proporemos em relação a'O livro das virtudes (1995). A
partir do subtítulo — "uma antologia de William J. Bennett" — pode-se
fazer algumas inferências similares as que pressupomos a partir da
advertência da coletânea realizada por Romero: qual é a forma de
selecionar um texto para integrar uma antologia? E o que diferencia uma
antologia de uma coletânea, de uma coleção (como Romero diz sobre seu
livro), de uma miscelânea?
A visar este estudo, encontramos poucas referências em relação ao
entendimento de obras que objetivam agrupar textos literários de qualquer
ordem. Tomamos, então, como ponto de partida as concepções de alguns
desses vocábulos sob a ótima de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira
32
Tomamos a liberdade de adaptar o português do texto original conforme as normas
ortográficas vigentes.
33
Sobre esta visão a respeito de Romero, nos foi intermediada a leitura do texto "Um
Crítico Para Inglês Ver: Sílvio Romero e seu estudo sobre Machado de Assis", de Fábio
Della Paschoa Rodrigues. Ainda sobre o lagartense, temos O Método Crítico de Sílvio
Romero, de Antonio Candido. Dessa forma, cf. RODRIGUES (2006) e CANDIDO (2006).
187
(2001). Para Hollanda, uma antologia é uma "[c]oleção de trechos
escolhidos em prosa e/ou em verso." (FERREIRA, 2001, p. 48). Já
"coletânea" é um "[c]onjunto de trechos de várias obras ou de um autor."
(FERREIRA, 2001, p. 163). "Miscelânea" é "[m]istura de variadas
compilações literárias." (FERREIRA, 2001, p. 465). Contudo, "Coleção" é
vista com um significado mais abrangedor, podendo ser conjunto de
"qualquer natureza" (cf. FERREIRA, 2001, p. 163).34.
Um estudo o qual percebe uma atenção para as antologias é o de
Elisa Helena Tonon em sua dissertação Configurações do presente:
crítica e mito nas antologias de poesia. A autora menciona Guillermo de
Torre, em ―El pleito de las antologías‖35 para afirmar que a antologia é "um
gênero insatisfatório por excelência, marcado por uma deficiência radical"
(TONON, 2009, p. 90). Na posição de alguém que organiza antologias, a
autora postula que
As antologias são, ainda, essa aposta - que nos exige
perguntas e reflexões, que deposita sobre nós uma
responsabilidade. Com os gestos da leitura e da escritura,
aceito a responsabilidade, ingresso no jogo do arquivo e me
torno, também, uma arquivista ao retomar procedimentos,
elencar textos [e] estabelecer recortes […]. (TONON, 2009, p.
90).
Ao assumir que a antologia é também "insuficiência, falta, brecha,
lapso ou corte" (cf. TONON, 2009, p. 91), poderia supor que tanto a
justificativa de Romero, e quanto a que virá em nossas percepções sobre
O livro das virtudes estariam esclarecidos. Se se pensarmos que uma
antologia implica em polêmicas de dois lados — tanto pelos os que estão
presentes, quanto os que não estão — há, no intermédio deste ditame da
ausência e não-ausência, questionamentos a serem feitos: o que motiva a
presença de um e não a do outro? Quais são as motivações deste
34
Ainda há outros termos referentes a mesma espécie: catalecto, crestomatia,
espicilégio, florilégio, seleta, dentre outros.
35
Em nossas pesquisas sobre antologias, encontramos diversas menções a este texto
de Torre. Contudo, não conseguimos acessar a versão na íntegra e até este momento
não há versão em português disponível.
188
posicionamento? Assim refletiremos sobre a antologia em questão.
2 — Introdução à moda americana
A versão brasileira d'O livro das virtudes possui 188 textos de
diversos gêneros, como poesia, contos, trechos de romances, passagens
bíblicas, lendas e mitos, fábulas, recortes de jornais, juramentos, dentre
outros — uma abrangência que supera a limitação de prosa e versos
conforme vimos da conceituação de Ferreira. Em maioria, consta-se a
presença de diversos autores estrangeiros com textos traduzidos para o
português (como Homero, Aristóteles, Hans Christian Andersen, Irmãos
Grimm, Oscar Wilde, Tolstoi, dentre outros), os quais suas composições
se encaixam em uma das mais variadas "virtudes" categorizadas:
Disciplina, Compaixão, Responsabilidade, Amizade, Trabalho, Coragem,
Perseverança, Honestidade, Lealdade e Fé.
Da parte de Bennett, diz apenas que selecionou os "melhores",
"antigos" e "comoventes" textos (cf. BENNETT, 1995, p. 9). Pode-se
supor uma menção à questão do cânone. Sandra Erickson, em sua leitura
de "O Cânone Ocidental", de Harold Bloom, traz uma percepção que
podemos aproximar os termos "cânone" e "antologia": de que o primeiro
"não é inclusivo, mas, ao contrário, exclusivo." (ERICKSON, 1999, p.
124). Dos conceitos postulados acima, é possível asseverar que o
conceito de cânone é justamente ressaltar os "melhores" e "antigos"
textos. Logo, a lógica da escolha da maioria dos textos que foi pertinente
à esta antologia pode ser entendida como uma seleção daqueles que
podem ser considerados canônicos sob alguma perspectiva e que tenham
o fator "comovente", ou seja, que comove o leitor a partir de uma das
virtudes a qual foi designado.
Para compreender melhor esta disposição, elencaremos algumas
acepções feitas pelo organizador, William John Bennett, político de linha
conservadora nascido nos anos 1940 que já foi secretário de Educação
189
dos Estados Unidos e diretor do Departamento Nacional de Controle de
Drogas36. A tradução do primeiro parágrafo da introdução afirma que
"[e]ste livro se destina a auxiliar na eterna tarefa da formação moral."
(BENNETT, 1995, p. 9). Pode ser possível realizar uma analogia à
formação conservadora do autor a uma pretensão de selecionar diversos
textos de diferentes épocas e elencá-los para ser lido sob a determinada
virtude a qual foi deslocada.
O organizador, em sua fala, exalta a literatura como fonte de
educação moral. Atesta que evitara temas como "guerra nuclear",
"aborto", "engenharia genética" ou "eutanásia", pois as "controvérsias
atuais" não seriam parte da tarefa de "formação do caráter" dos jovens
(cf. BENNETT, 1995, p. 9). Pode-se perceber, portanto, que o públicoalvo desta obra são os jovens e as crianças, conforme ressalta-se no
discurso de Bennett, embora ele, à principio, não faça restrições e até
declare pais e professores como integrantes do círculo de leitores desta
obra37. O pensar de uma antologia voltada à educação infantil visando à
moral é algo que os adultos — conforme as palavras de Maria José Palo
e Maria Rosa D. Oliveira — tomam, ante a "minoria", ou seja, a "classe
dominada" infantil (cf. PALO e OLIVEIRA, 2006, p. 5) uma atitude que
vise à educação das crianças na visão adaptada pelo organizador. A arte
e a criança, mesmo com desígnios e desejos diferentes (cf. PALO e
OLIVEIRA, 2006, p. 7), podem ser vistos aqui com a condição de serem
moldados e adaptados conforme a intenção do organizador, de maneira
que altere a percepção da primeira objetivando a compreensão através de
seu ponto de vista pelo segundo.
Outro ponto que podemos ressaltar desta introdução é esta
36
Atesta-se a linha conservadora de Bennett de acordo com a sua breve biografia
encontrada neste site, em inglês: http://www.notablebiographies.com/Ba-Be/BennettWilliam.html. "Bill" Bennett, como é mais conhecido, também possui seu site oficial,
também apenas em língua inglesa: http://www.billbennett.com/
37
Por outro lado, é natural pensar que, como a maioria dos textos presentes já datam de
dois séculos ou mais, alguns destes temas, pela própria questão do tempo, não seriam
abordados.
190
postulação de Bennett: "Embora intitulado O livro das virtudes — e os
capítulos estão organizados por virtudes — é também um livro dos vícios.
Muitas histórias ilustram o reverso de uma virtude." (BENNETT, 1995, p.
10). Pode-se ver que trata-se de um encaminhamento da leitura de
algumas histórias para torná-las, portanto, passíveis de terem alguma
moral delas extraída. É o que parece afirmar no parágrafo seguinte, sobre
o seu interesse mais na "lição moral" do que na "histórica": é mais frutífero
o aprendizado do que o contemplar do passado. O organizador é ciente
de realizar uma proposta a visar a abrangência cujo limite é o que se
destaca. Afirma que não é a antologia definitiva, e ainda sugere a leitura
não-linear da obra, a partir de qualquer texto ou capítulo.
Pode-se notar que, por ser uma tradução da introdução da edição
norte-americana38, não há, por parte do autor, nenhum acréscimo ou
referência a edição brasileira do livro — algo que só veremos na nota do
editor, que veremos a seguir. Dada a localização da obra para o Brasil, a
introdução norte-americana soa quase que como uma curiosidade, um
dado para entender o que motivou a versão original deste compêndio.
3 — Virtudes para deleite dos brasileiros
A "Nota do Editor", que introduz o livro, contém uma série de
justificativas que nos faria compreender a presença da introdução literal
da edição norte-americana e alguns outros aspectos do livro (como o
corte de alguns textos, as traduções dos textos, a questão da autoria, a
utilização de textos bíblicos, dentre outros). Para não divagarmos em
excesso e fugir da proposta, atemos a nossa proposta de verificar o
interesse da presença de textos publicados originalmente em língua
portuguesa que se encontram nesta antologia.
A respeito dos textos publicados originalmente em português, diz-se
38
Isto é dito conforme o título desta seção sugere, uma vez que não tivemos acesso à
edição norte-americana.
191
que
O organizador da antologia e sua agência literária permitiram e
incentivaram a inclusão de alguns textos de língua portuguesa
que ilustrassem as virtudes e que se adequassem ao espírito
do livro. Escolhemos algumas joias de nossa literatura — de
Camões a Cecília, de Eça a Lobato — para deleite dos leitores
brasileiros. (BENNETT, 1995, p. 7).
Dos 188 textos que compõem a versão em português de O livro das
virtudes, dezoito são descritos como de autoria de autores em língua
portuguesa: no capítulo da "Disciplina", constam "Soneto inglês nº 2", de
Manuel Bandeira e "A galinha dos ovos de ouro", de Monteiro Lobato; em
"Compaixão", "Velhas árvores", de Olavo Bilac, "O leão e o ratinho", de
Lobato
e
"A
bela
e
a
fera",
de
Figueiredo
Pimentel;
em
"Responsabilidade", "Os ombros suportam o mundo", de Carlos
Drummond de Andrade; em "Amizade", "Cantar de vero amor", de Cecília
Meireles; em "Trabalho", "Um apólogo", de Machado de Assis; em
"Coragem", "I-Juca Pirama", de Gonçalves Dias e "A assembleia dos
ratos", de Lobato; em "Perseverança", "Sonetos" de Luís de Camões; em
"Honestidade", "A cumbuca de ouro", de Lobato; em "Lealdade", "Soneto"
de Alphonsus de Guimaraens, "Fidelidade" de Henriqueta Lisboa e
"Soneto da Fidelidade" de Vinicius de Moraes; e em "Fé", "Deus", de
Casimiro de Abreu e "O suave milagre", de Eça de Queiroz.
Nossa pretensão aqui não é analisar cada texto em função da
virtude a qual lhe foi competida, uma vez também que o trabalho de tal
tarefa poderia comprometer este ensaio. A nossa atenção deve-se aqui,
por enquanto, à disposição dos mesmos dentro da antologia. Cada
capítulo representando uma virtude é iniciado com um texto de português
original, talvez como uma forma de familiarização do leitor com o
conteúdo
advindo
de
histórias
traduzidas
que
preenchem
majoritariamente cada seção.
A presença de tais textos de língua portuguesa podem ser
observados em alguns aspectos. O primeiro é a questão do domínio
192
público, como é o caso de Olavo Bilac, Machado de Assis, Gonçalves
Dias, Alphonsus de Guimaraens e Casimiro de Abreu. Luís de Camões e
Eça de Queiroz encontram-se no mesmo caso, porém destacam-se por
serem os dois únicos autores não brasileiros a participarem desta
organização.
Figueiredo Pimentel, embora também seja um autor brasileiro dos
oitocentos, apenas participa da coletânea por causa de sua versão de "A
bela e a fera". A presença de Monteiro Lobato possui a mesma
peculiaridade: "A galinha dos ovos de ouro", "A assembleia dos ratos" e
"A cumbuca de ouro" são adaptações de contos clássicos. "O leão e o
ratinho", embora igualmente oriundo de uma fábula, finaliza com um
enxerto apresentando os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo
refletindo sobre a narrativa. Lobato, junto com Drummond, Vinicius e
Cecília, foram os autores que tiveram de serem solicitados aos
pertencentes de seus direitos para que constassem na coletânea 39 (cf.
BENNETT, 1995, p. 4).
Pode-se deduzir em uma questão estratégica de inserção de
diversos autores de língua portuguesa — em suma maioria, brasileiros —
como uma das formas de apelo comercial do livro. Se se pensar que
foram necessários acordos pelos direitos autorais para a inclusão de
autores ainda recentes nesta antologia, em conseguinte temos que o
"pensamento moral", quando Bennett formulou essa organização e
seccionou os textos em diversas virtudes, o que acaba por deslocar a
leitura das composições conforme o condicionamento dos capítulos da
antologia. Um exemplo do quão isso soa confuso é que não há claro, nem
na introdução e nem na nota do editor, que uma mesma história foi
categorizada em uma determinada virtude, porém poderia ser associada a
outra, ou a várias.
Para termos um exemplo, Monteiro Lobato em O livro das virtudes é
39
Quanto a Manuel Bandeira, não encontramos uma justificativa que ponderasse a sua
presença n'O livro das virtudes sem atestar cessão por parte dos responsáveis pelos
seus direitos autorais.
193
a presença mais constante dos autores que tiveram como língua pátria o
português. Ele ainda é constado como o tradutor do capítulo de Pinóquio
presente no livro, embora o texto seja referenciado ao apontado como o
autor original, Carlo Collodi. No entanto, podemos pensar que, visando a
familiaridade que uma tradução assinada por um autor brasileiro de
renome, a inclusão das traduções de histórias com morais — e/ou
virtudes — realizadas por Lobato seriam um fator chamativo, já que
podemos ver que há certa atenção da crítica sobre a sua produção e
recriação das histórias infantis40.
4 — Considerações finais
No passo em que uma antologia sempre virá carregada de
pretensões em face de seu caráter excludente, várias suposições
poderiam ser feitas a respeito da inclusão de autores brasileiros n'O livro
das virtudes. Se o livro ainda contém presença massiva de autores
estrangeiros, parece certo que a intenção não foi perder a essência da
antologia publicada anteriormente para nos estadunidenses.
Se analisarmos por um lado que as antologias acabam por fazer
exclusões, pode-se ter também o pensamento de que elas incluem, mas
podem por acabar induzindo a nossa leitura dos "antologizados": estes
autores podem até não sofrerem consequências dessa participação, mas
são atingidos pelo risco de serem retirados de seu contexto e proposições
iniciais. Ainda se vê o quão pode soar engrandecedor ter seu texto
considerado como fonte de moral e virtudes — até mesmo na questão da
leitura como virtude, conforme o editor diz. Mas ser engrandecedor é ser
maior que algo, é incluir um e excluir outro. E, aparentemente, à isto
40
Um exemplo é o ensaio de Rosangela Marçolla, "Monteiro Lobato, contador e
recontador de histórias de tradição oral: um agente folkmidiático", o qual considera
Lobato como "o divisor de águas da literatura infantil brasileira", e destaca como o autor
"recorre às fontes originais das histórias e as insere em suas obras (cf. MARÇOLLA,
2009, p. 1).
194
coube o julgo dos organizadores e editores.
REFERÊNCIAS
BENNETT, William. O livro das virtudes. Selecionados e adaptados da ed.
Americana por Luiz Raul Machado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
CANDIDO, Antonio. O Método Crítico de Sílvio Romero. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2006.
ERICKSON, Sandra S. F.. "Resenha de O Cânone Ocidental, de Harold
Bloom". Disponível em: http://www.principios.cchla.ufrn.br/arquivos/07P121-131.pdf. Acesso: 22-09-2015 14h54min.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
MARÇOLLA, Rosangela. "Monteiro Lobato, contador e recontador de
histórias de tradição oral: um agente folkmidiático" Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/marcolla-rosangela-monteiro-lobato-contadorde-historias.pdf. Acesso: 21-09-2015 16h45mim.
PALO, Maria José. OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil: voz de
criança. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.
ROMERO, Sílvio (org.). Contos Populares do Brasil. Com um estudo
preliminar e notas comparativas por Theophilo Braga. Lisboa: Nova
Livraria Internacional, 1885.
RODRIGUES, Fábio Della Paschoa. "Um Crítico Para Inglês Ver: Sílvio
Romero e seu estudo sobre Machado de Assis". Disponível em:
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/c00013.htm.
Acesso: 17-09-2015 10h04min.
TONON, Elisa Helena. Configurações do presente: crítica e mito nas
antologias de poesia. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de
Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de PósGraduação em Literatura, Florianópolis, 2009
195
A AUTOFICÇÃO DE JEAN-LOUIS FOURNIER COMENTÁRIOS
ACERCA DA TRADUÇÃO DE OÙ ON VA, PAPA?
Luíz Horácio Pinto Rodrigues
RESUMO: O romance autobiográfico deve ser sincero? A tradução tem o dever de ser
ética? Como traduzir o gênero autoficção? A partir dessas três indagações surgiu a ideia
deste artigo, que trata da obra de Jean-Louis Fournier, Où on va, papa?, uma autoficção
onde o autor narra sua convivência com seus filhos deficientes. Na primeira parte faço
comentários acerca do gênero autoficção, a apropriação por determinados escritores,
nem sempre seguindo o preconizado por Serge Doubrovsky (1977), e, sobretudo, sua
disseminação na França, onde autores como Philippe Forest e Louis-Ferdinand Céline,
são exemplos desse tipo de escrita de si. Na segunda parte, apresento uma análise da
tradução para o português de Où on va, papa ( Aonde a gente vai, papai?), de Marcelo
Jacques de Moraes, publicada em 2009. A partir das concepções de Antoine Berman,
farei uma análise da referida tradução, com vistas a compreender as escolhas do
tradutor e a propor outras possibilidades de tradução. ―Se o destino de uma obra é ser
traduzida, o de sua tradução é ser suplantada por outra tradução.” Utilizo reflexões de
Antoine Berman como balizadoras da análise da tradução de Où on va, papa?,
sobretudo no que se refere a uma tradução ética. Vale destacar que para Berman o ato
de traduzir deve ter um objetivo triplo: poético (relacionado à forma), filosófico (em
relação à verdade) e ético (em relação à precisão e exatidão no que se refere ao
comportamento de homem frente si mesmo, ao outro, ao mundo, do ser no mundo e
suas manifestações). Este trabalho não tem por objetivo apontar erros na tradução em
análise e sim de apontar outras possibilidades de tradução.
Palavras-chave: Autoficção; tradução; dimensão ética; Berman.
RÉSUMÉ: Le roman autobiographique doit être sincère? Traduction a le devoir d'être
éthique? Comment traduire l‘autofiction? A partir de ces trois questions est venue l'idée
de cet article, qui traite de l'œuvre de Jean-Louis Fournier, Où on va, papa?, Autofiction
où l'auteur raconte sa vie avec leurs enfants handicapés. Dans la première partie je
commente à propos de l'autofiction, l'appropriation par certains auteurs, pas toujours à la
suite des recommandations de Serge Doubrovsky (1977), et surtout sa propagation en
France, où des auteurs comme Philippe Forêt et Louis-Ferdinand Céline, sont des
exemples de ce type de écrire. Dans la deuxième partie, je présente une analyse de la
traduction en portugais de Où on va, papa? (Aonde a gente vai, papai ?),de Marcelo
Jacques de Moraes, publié en 2009. À partir des conceptions de Antoine Berman, fera
une analyse de la la traduction pour comprendre les choix du traducteur et de proposer
d'autres possibilités de traduction. "Si le destin d'une œuvre est sa traduction, celui d‘une
traduction est d‘être supplantée par une autre traduction." Je l'utilise réflexions d'Antoine
Berman pour guider la meilleure traduction de Où on va,papa?, en particulier en se
réfère à une traduction éthique. Notez que pour Berman l'acte de traduire doit avoir un
triple objectif: poétique (liée à la manière), philosophique (de la vérité) et éthique (par
rapport à la précision et l'exactitude en ce qui concerne le comportement de l'homme à
l'avant lui-même, l'autre, au monde, d'être dans le monde et de ses manifestations). Le
but de ce travail est de ne pas souligner les erreurs dans l'analyse de traduction, mais de
proposer d'autres possibil compris les textes). Ce travail ne vise pas à signaler les
erreurs dans la traduction en cours d'examen, mais plutôt de souligner d'autres
possibilités de traduction.
Mots-clés: l'autofiction; traduction; dimension éthique; Berman.
196
Philippe Lejeune, em Le pacte autobiographique (1975), lança a
questão: seria possível o herói de um romance ter o mesmo nome do
autor? Para responder a pergunta de Lejeune e preencher esse vazio,
Serge Doubrovsky escreve Fils.
Enquanto a autobiografia se define como um pacto entre leitor e
autor, onde autor/narrador/protagonista apresenta sua vida real, a
autoficção faz as vezes de elo entre autobiografia e romance. Doubrovsky
entende a autoficção como "uma ficção de acontecimentos e fatos
estritamente reais, onde descrevo o gosto íntimo de minha existência e
não sua impossível história" (DOUBROVSKY, 1988, p. 67)
Na obra Écrire, pourquoi?, a escritora e crítica de arte Véronique
Pittolo discorre sobre o que ela entende ser as duas formas de escrever:
―ou se escreve sobre si a partir de uma experiência pessoal,
autobiográfica, ou se escolhe um tema exterior para lhe fazer submeter
todas as espécies de mutações e de metamorfoses‖. (PITTOLO.
2005,p.135)41. À autoficção compete a primeira opção, ou seja,
romancear a experiência vivida.
A seguir alguns exemplos.
Em Viagem ao fim da noite, de Louis Ferdinand Céline, o leitor, que
sabe ter sido médico o autor, encontrará o protagonista Ferdinand
Bardamu, médico também, chamado Ferdinand; e em inúmeras
passagens fica explícito o pensamento, muitas vezes contraditório, de
Céline. Em L'enfant eternel, Philippe Forest narra a história de
Pauline,sua filha, menina de quatro anos atacada por um câncer. Desse
material é constituído L’enfant éternel. Diz o autor: Fiz de minha filha um
ser de papel
A seguir apresentarei uma breve reflexão acerca da ética da
tradução tendo como objeto a obra de Jean-Louis Fournier, Où on va,
papa? , e a tradução de Marcelo Jacques de Moraes, Aonde a gente vai,
41 - Ou par écrit à votre sujet de son expérience personnelle, autobiographique, ou à
l'étranger pour un thème que vous ne présenter toutes sortes de mutations et de
métamorphoses.(tradução minha)
197
papai?, a partir da concepção de Antoine Berman acerca da ética da
tradução. Em um seminário no ano de 1984 dentro do Colégio
Internacional de Filosofia e que se centrou na tradução literal, Antoine
Berman se permitiu a tarefa de
combater as teorias e práticas
dominantes da tradução, com foco na transferência de significado. As
teorias e práticas da tradução dominante no Ocidente seriam as que ele
define como "etnocêntrica" e "hipertextual", preocupadas com a
transferência do significado em detrimento da letra do texto de origem.
Entramos pois no terreno da ética.
A ética da tradução seria condicionada pelo reconhecimento da
estranheza do texto de origem no texto-alvo. Acolher o estranho na
cultura da língua de chegada, tal seria a energia fundamental da tradução,
sua ética essencial, de acordo com Antoine Berman.
Ao dizermos ética obrigatoriamente lançaremos um olhar crítico,
sobre original, no âmbito da autoficção e sua tradução.
Sempre que mencionamos a palavra crítica, despertamos a
impressão de um acento negativo. Não é diferente quando nos referimos
aos textos traduzidos. Exemplos que corroboram essa impressão ao
longo dos estudos da tradução são inúmeros.
Não seremos ingênuos ao ponto de acreditar que podemos excluir a
negatividade da função (ato) crítico.
Walter Benjamin chama de ―inevitável momento negativo do
conceito‖.
Mas se existe o momento negativo o oposto se faz evidente.
A crítica oportuniza a comunicação da obra com seu público. No
entanto não queremos dizer aqui que para compreender determinada
obra é condição sine quo non ter lido o que dela disseram determinados
teóricos, por exemplo: para compreender Proust não necessariamente se
faz obrigatório ter lido os estudos de Deleuze sobre a obra. Mas não
vamos negar que todos esses estudos modificam, renovam a obra.
198
A obra estimula, obriga, sua crítica e a consequente revelação de
uma infinidade de significados da obra. Significados que no mais das
vezes fogem ao controle do autor, mas que legitimam uma verdadeira
obra de arte, aquela que conduz à reflexão.
Mas quais parâmetros legitimariam a crítica das traduções?
Estaríamos presos, mesmo que haja discordância, às noções de
fidelidade, equivalência, interpretação, fluência, presença do estrangeiro,
levar o autor ao leitor ou este ao autor?
Dentre esses conceitos, existem outros, os mais citados e debatidos
são fidelidade e equivalência, no entanto fidelidade é bastante discutível.
O debate nesse sentido foi de há muito superado.
Quanto à equivalência:
Procurar equivalentes não é somente determinar um sentido
invariante, uma idealidade que se expressaria nos diferentes
provérbios de língua para língua. Significa recusar-se a
introduzir na língua para a qual traduz a estranheza do
provérbio original, (...) é recusar-se a fazer da língua para a
traduz o “auberge du lointain”, significa, para nós, afrancesar:
velha tradição. Para o tradutor formado nesta escola, a
tradução é uma transmissão de sentido que, ao mesmo tempo,
deve tornar este sentido mais claro, limpá-lo das obscuridades
inerentes à estranheza da língua estrangeira.(BERMAN. 1999,
p.14-15 tradução minha)
Ao realizarmos crítica das traduções estabeleceremos um juízo, mas
como afirmar que uma tradução é boa ou não? Baseado em quê?
Baseado
na
fidelidade,na
fluência,
na
literariedade?
Creio
que
aumentamos o leque de dúvidas sem chegar, mais uma vez, a um
consenso que nos sirva de parâmetro para avaliação de uma tradução.
Para Berman o tradutor que traduz para o público acaba traindo o
original. Preocupado com seu público acaba por também traí-lo pois
oferece uma obra ― arrumada.‖ ―Ao emendar as estranhezas de uma obra
para facilitar sua leitura o autor acaba por desfigurá-la,e, portanto enganar
o leitor a quem se pretende servir‖.(BERMAN, 2007.p.66)
199
Diante disso, restará ao tradutor a permanente tensão: ― servir à
obra, ao autor, à lingua estrangeira (primeiro senhor)
e de servir ao
público e à lingua própria ( segundo senhor)‖. ( BERMAN, 2002, p.15)
Por que não analisarmos a tradução pelo viés da ética, da ética da
tradução.
Tratemos, pois da ética da tradução, um aspecto que reputo de
extrema
importância
tanto
para
a
crítica
como
para
acentuar
determinadas características das traduções.
Sabemos que um mesmo texto pode ser traduzido de várias
maneiras, mas caso admitamos a existência de uma exclusiva ética do
traduzir, para um determinado texto será permitido apenas uma forma de
tradução. Desse modo, partiríamos de ume ética pré determinada. Por
outro lado, ao admitirmos uma relativização da ética permitiríamos que
uma série de fatores (sociais por ex.) interferissem na determinação
dessa ética. Diante do exposto restará ao tradutor a utilização de uma
ética possível.
Em Pour une critique des traductions: Johe Donne, Berman afirma
que a tradução se afasta da ética quando ocorre num ambiente de
inverdade.
O aspecto ético reside no respeito, ou melhor, num certo
respeito
ao
original.
[...]
Mas sabemos que, para o tradutor, tal respeito é a coisa mais
difícil.
[...]
Mas a eticidade de traduzir é ameaçada por um perigo inverso
e bastante comum: a não veracidade, a burla. Entretanto, não
há veracidade na medida em que essas manipulações são
apagadas, silenciadas.Não dizer o que faremos - por exemplo,
adaptar ao invés de traduzir - ou fazer outra coisa e não o que
foi dito, valeram a corporação o adágio italiano traduttore
traditore. (BERMAN.1995, 92/93.tradução minha)
Passemos a tradução de Où on va, papa ? publicado na França em
2008 por Jean-Louis Fournier, ganhou no mesmo ano o prêmio Femina.
No Brasil a tradução de Marcelo Jacques de Moraes, Aonde a gente vai,
papai? foi publicada pela editora Intrínseca em 2009.
200
Diante do exposto por Berman, concluímos que uma má tradução é
aquela que, ―geralmente sobre pretexto de transmissibilidade, opera uma
negação sistemática da estranheza da obra estrangeira.‖(BERMAN,
2002,p.18). Traduções com essa características foram denominadas
etnocêntricas, aquelas que tendem a destruir o sistema do original.
(BERMAN, 2002,p.20)
Sem nos atermos especificamente às questões de caracterizar ou
não etnocentrismos examinaremos alguns trechos da tradução de
Marcelo Jacques de Moraes.
Où on va, papa? é uma obra que traz em seu cerne, o protagonismo
de
crianças deficientes. O autor, pai, não se apresenta como um ser
magoado, revoltado, ao contrário busca superar a dor fazendo uso de um
humor bastante questionável, da ironia, da crueldade, e, digamos, um quê
de amor.
Autoficção? Como disse anteriormente, sim. Não sabemos até que ponto
suas reflexões, suas descrições correspondem à realidade, pouco
importa. O importante é que conduzam o leitor à reflexões, no caso sobre
vários aspectos; da função pai à morte, do humor à crueldade. Por que
tanta ironia com quem não entende ou é capaz de se defender? A
intenção/necessidade de retirar o peso da tragédia torna grotesco o
humor de mão única de Fournier. Suas personagens/vítimas jamais
oporão restrições.
Dito isso passemos à tradução, Aonde a gente vai, papai?
Nas páginas iniciais
Avec vous, il fallait une patience d’ange, et je ne suis pas un ange.
Com vocês, era preciso uma paciência de santo, e não sou um
santo.
Trata-se de uma escolha do tradutor, preferir santo ao invés de anjo.
Mas por que não traduzir ange por anjo. Simplesmente por não realizar
uma tradução especular?
Adiante ele faz escolha diversa.
201
Regardez, ma Mère, il nous sourit, on dirait un petit ange, un petit
Jésus...
Olhe, Madre, está sorrindo para nós, parece um anjinho, um
pequeno Jesus...
Aqui realiza uma tradução especular, ligada à matriz linguística do
original.
Uma possibilidade, de maior autonomia da língua portuguesa:
Repare, Madre, ele sorri para nós, me faz lembrar um anjinho, um
pequeno Jesus.
Um outro aspecto, e aqui podemos visualizá-lo através da lente da
ética da tradução.Diz respeito a um trecho de pura ironia:
Je ne m’ attendais pas à ça.
Où on va, papa?
On va prendre l’ autoroute, à contresens.
On va em Alaska.On va carecer les ours.On se fera dévorer.
On va aux champignons.On va cueillir des amanites phalloïdes et on
fera um bonne omelete.
Eu não esperava por isso.
Aonde a gente vai, papai?
Vamos pegar a estrada na contramão.
Vamos para o Alasca. Vamos acariciar os ursos. Vamos nos fazer
devorar.
Vamos pegar cogumelos. Vamos colher Amanita phalloides para
fazer uma boa omelete.
O tradutor esquece de informar que o referido cogumelo é altamente
tóxico e pode inclusive matar. Em Portugal é conhecido como chapéu da
morte. Ao omitir essa informação, a ironia nessa frase pelo menos, se
perde. E a ironia é o ponto forte da narrativa. Ignorá-la descaracteriza a
202
intenção do texto original. Uma nota ao pé de página seria bastante
esclarecedora.
O mesmo procedimento poderia ocorrer diante das expressões
mantidas no idioma original
Será que tenho physique du rôle?
Que seja mantido, é preciso dar acolher o estrangeiro, mas por que
não uma nota explicando a locução substantiva que significa ― ter
aparência adequada ao papel‖?
Ocorre o mesmo com savoir-vivre.
Saber viver, arte de viver bem.
Ainda referente a necessidade de notas.
Ce jour-là, j’aurais donné cher pour un cendrier biscornu comme un
topinambour, que Mathieu aurait fait avec de la pâte à modeler et sur
lequel il aurait grave “Papa”.
Nesse dia eu teria pagado qualquer quantia por um cinzeiro disforme
como um tupinambor, que Mathieu teria feito com massa de modelar e
sobre o qual gravaria ―Papai‖.
Por que não uma nota dando conta que tupinambor é uma planta
semelhante ao girassol?
Podemos citar também um caso de omissão.
Il y a des petites coquilles Saint-Jacques en relief sur le manche de
la cuiller et autour de l’ assiete.
Com conchinhas em relevo no cabo da colher e na borda.
O texto original se refere ao cabo da colher e a borda do prato.
A tarefa do tradutor é extremamente exigente, traduzido o texto este
deve ser lido em voz alta, de preferência a outra pessoa.
Il doit porter as croix, avec un masque de douleur.
Deve carregar sua cruz com ar de dor. Cacófato injustificável.
203
Defendemos a liberdade, admitimos a liberdade do tradutor, suas
escolhas, embora algumas nos pareçam bastante inusitadas e remetam à
burla. É o que se pode concluir ao analisarmos o que segue.
Je me souviens d’um coffret permettant de construire soi-même um
récepteur de radio, il y avait dedans um fer à souder et plein de fils
électriques.
Lembro-me de um jogo que permitia construir sozinho um rádio.
Havia na embalagem um ferro de soldar e uma porção de fios elétricos.
Lembro-me de um estojo que permitia construir sozinho um rádio.
Havia em seu interior um ferro de soldar e vários fios elétricos.
Discordamos da tradução de coffret por jogo e dizer que havia na
embalagem quando talvez fosse melhor dizer que havia no interior da
embalagem, da caixa.
Outra escolha de gosto duvidoso. O sentido inverso,
Ils ne lui ont jamais écrite une lettre pour lui demander quelque
chose.
Nunca escreveram para ele uma carta pedindo alguma coisa.
Nunca escreveram uma carta para lhe perguntar algo.
Há casos de supressão.
Exemplo:
Comment
vous
serez?
Comment
vous
serez
habillés?
O tradutor traduziu apenas Como vocês estarão vestidos?
Por que omitir a primeira frase na tradução? Nos parece uma
interferência no texto original.
O contrário se vê logo adiante, onde o tradutor insere uma
informação, deduz-se no sentido de esclarecer o leitor.
Il va nous emmener faire des virées das as traction, il va vous faire
boire, là-haut on doit boire de l’hydromel.
Ele vai nos levar para dar uma volta em seu velho Citroen Traction,
vai nos fazer beber, lá em cima deve-se beber hidromel.
204
Enfim, como realizar a crítica de uma tradução? Aqui limitada ao
âmbito da literatura.
Em que se baseia, qual a sua receptividade junto ao leitor de
traduções? Extrapolemos o ambiente acadêmico.
O leitor de traduções geralmente é o leitor que não tem acesso ao
texto original, logo que interesse despertará no mesmo a leitura de uma
crítica de tradução. Sejamos otimistas e acreditemos que ele chegue até
esse estágio. Ele não poderá avaliar a crítica, talvez no máximo lhe
estimule alguma reflexão sobre seu estado de leitor monolíngue.
No âmbito acadêmico, é de se esperar que a crítica ultrapasse os
limites da correspondência entre texto traduzido e texto original. Segundo
Berman
“...
une
traduction
devient
um
“nouvel
original”
(BERMAN.1995.p.42)
Um ponto merecedor de longa reflexão e aqui o tangenciamos tão
somente, diz respeito ao que deve ser traduzido e o que significa uma
tradução se integrar ao sistema literário para o qual foi traduzida.
Fiquemos com a obra aqui rapidamente analisada, a tradução de Où on
va, papa?, obra premiada na França, sucesso de vendas. No Brasil,
Aonde a gente vai, papai? edição esgotada, fora do mercado, e sem
perspectiva de uma segunda edição.Podemos afirmar sua integração ao
nosso sistema literário? É o mercado que legitima essa integração? Que
papel, para o bem e para o mal, representa a obra traduzida para o
sistema literário que a recebe?
Outro aspecto: como analisar a recepção da obra traduzida? Como,
se na maioria das vezes a obra traduzida não é tratada como tal?
Ao abordarmos a ética do tradutor, nos parece bastante apropriado
examinarmos também a ética de nossos editores.
205
REFERÊNCIAS
BERMAN, Antoine. L´Âge de la traduction.Paris:Presses Universitaires de
Vincennes.200______________. Pour une critique des traductions: John
Donne. Paris.Gallimard,1995
______________.
La
traduction
et
la
letrre
ou
l’auberge
du
lointain.Paris:Seuil,1999
CÉLINE, Louis-Ferdinand. Viagem ao fim da noite. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009
FOREST,Philippe. L’enfant éternel. Paris: Gallimard,1998.
FOURNIER, Jean-Louis. Où on va, papa?. Paris:Stock,2008
___________________. Aonde a gente vai, papai?. Rio de Janeiro:
Editora Intrínseca, 2008
GASPARINI,Philippe. Autofiction. Paris: Seuil, 2008
GODARD, Henri. Un autre Céline. Paris: Textuel, 2008.
LEJEUNE, Philippe.Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.
______.O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008.
PITTOLO, Véronique. Écrire, pourquoi? Paris: Argol Éditions, 2005.
206
CORPOS MARCADOS, MENTES ASSOMBRADAS: A
RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NAS ADAPTAÇÕES DE O QUE
É ISSO, COMPANHEIRO?, ALGUMA COISA URGENTEMENTE ,
BATISMO DE SANGUE E AS MENINAS
Marina Rodrigues de Oliveira
RESUMO: A ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) foi marcada pela tortura,
sequestro, prisão e ―desaparecimento‖ daqueles que eram seus opositores. Este
momento histórico, a partir do processo de reabertura política foi abordado em
inúmeras obras literárias, dentre as quais, O que é isso, companheiro (Fernando
Gabeira, 1979), Alguma coisa urgentemente (João Gilberto Noll, 1980), Batismo
de sangue (Frei Betto, 1982) e As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1985), bem
como, mais tarde, em suas respectivas adaptações para o cinema, a saber: O que
é isso, companheiro? (dirigido por Bruno Barreto, em 1997), Nunca fomos tão
felizes (dirigido por Murilo Salles, em 1984), Batismo de sangue (dirigido por
Helvécio Ratton, em 2006/2007) e As meninas (dirigido por Emiliano Ribeiro, em
1995). Este artigo tem por objetivo refletir acerca da representação da memória,
nas adaptações das obras literárias supracitadas, tendo, como referencial teórico,
dentre outros, estudos como os de Antonio Candido (1989), André Bazin (1991),
Jacques Le Goff (2003), Tânia Pellegrini (2003) e Beatriz Sarlo (2007).
Palavras-chave: ditadura militar; adaptação; memória.
The brazilian dictatorship (1964-1985) was marked by torture, kidnapping, prison
and ―disappearance‖ of people who opposed it. This historical moment, as from the
politic democracy reopening was broached in many literary opus, among it, O que
é isso, companheiro? (Fernando Gabeira, 1979), Alguma coisa urgentemente
(João Gilberto Noll, 1980), Batismo de sangue (Frei Betto, 1982) and As meninas
(Lygia Fagundes Telles, 1985), as well as, later, their respective adaptations to
cinema: O que é isso, companheiro? (directed by Bruno Barreto, in 1997), Nunca
fomos tão felizes (directed by Murilo Salles, in 1984), Batismo de sangue (directed
by Helvécio Ratton, in 2006/2007) and As meninas (directed by Emiliano Ribeiro,
in 1995). This article has as objective to reflect about the representation of
memory, in cinema adaptations of the another cited opus, has, as theoretician
referential, among others, the studies of Antonio Candido (1989), André Bazin
(1991), Jacques Le Goff (2003), Tânia Pellegrini (2003) and Beatriz Sarlo (2007).
Keywords: Brazilian dictatorship; adaptation; memory.
No final da década de 1970 e início da de 1980, a literatura
brasileira passou a abordar a ditadura civil-militar, período que, aos
poucos, entrava em declínio, iniciado com a promulgação da Lei da
Anistia:
(...) A lei de anistia aprovada pelo Congresso continha
entretanto restrições e fazia uma importante concessão à linhadura. Ao anistiar ‗crimes de qualquer natureza relacionados
com cries políticos ou praticados por motivação política‘, a lei
207
abrangia também os responsáveis pela prática da tortura. De
qualquer forma, possibilitou a volta dos exilados políticos e foi
um passo importante na ampliação das liberdades públicas.
(FAUSTO, 1999, p.504):
Nesse contexto, inserem-se as obras aqui em análise - O que é
isso, companheiro? (Fernando Gabeira, 1979), Alguma coisa
urgentemente (João Gilberto Noll, 1980), Batismo de sangue (Frei
Betto, 1982) e As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1985) –, que
fazem parte de um grupo maior, cujas principais características,
conforme destaca Silviano Santiago (2002, p. 13; 14), foram o foco,
cada vez maior, no processo de conscientização político-partidário
dos personagens das classes operárias – em substituição à temática
da exploração do homem pelo homem, predominante anteriormente
– e a forte crítica ao autoritarismo vigente com a deflagração do
golpe.
A segunda característica, em particular, é bastante presente
nas obras aqui em estudo, se configurando, tanto na fala das
personagens, quanto na narração de cenas de tortura, como
mostram os trechos abaixo:
(...) Não poderiam me pendurar no pau-de-arara sem risco de
morte, nem poderiam me fazer sentar na Cadeira do Dragão,
que era uma cadeira eletrificada. O que se fazia de tortura, se
fazia ali na cama ou não se fazia. (...) O básico dos
interrogatórios era vencer pelo cansaço. (GABEIRA, 1979, p.
155).
(...)
- Tire a roupa, seu filho da puta!
O religioso ficou de cueca, os acólitos da morte empurraram-no
ao chão, enfiaram uma trave de madeira sob seus joelhos,
curvaram-no, passaram suas mãos por baixo da trave,
amarram-nas com cordas à frente das pernas e, entre duas
mesas, dependuraram seu corpo como um frango no espeto
(...). (FREI BETTO, 2006, p. 240).
Podemos perceber, nos trechos acima, exemplos retirados de
duas obras que mantém, historicamente, relações entre si: no
primeiro exemplo, temos o relato da prisão de João, codinome de
208
Fernando Gabeira, membro de um grupo guerrilheiro, o MR-8; no
segundo, a tortura é dirigida a um membro da Igreja, frei Fernando,
religioso dominicano que ajudava a ALN (Aliança Libertadora
Nacional), aliada do MR-8 na ação de sequestro do embaixador
norte-americano Charles Elbrick.
Além desse elo, há outro que perpassa ambas as narrativas, e
que é destacado por Tânia Pellegrini (1987, p. 63-4), quando analisa
O que é isso, companheiro?: a tortura como uma batalha
extenuante, por parte do torturado, pela sobrevivência, lutando
contra a morte, se agarrando ao tempo que não consegue enxergar,
na tentativa de se salvar. Narrar o que foi sofrido, o que foi passado,
as dores e injustiças cometidas, é uma necessidade, por parte
daqueles que as sofreram e, em meio a isso, surge a memória como
um importante recurso:
A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma
presença real do sujeito na cena do passado. Não há
testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência
sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da
existência, redime-a de eu imediatismo ou de seu
esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no
comum. A narração inscreve a experiência numa
temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde
seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo
irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também
funda a temporalidade, que a cada repetição e a cada variante
torna a se atualizar. (SARLO, 2007, p. 24-5).
Não foram apenas as narrações baseadas em acontecimentos
reais que ocuparam a literatura brasileira dos anos 60 e 70: em As
meninas e Alguma coisa urgentemente, temos a representação de
diferentes segmentos da sociedade que combateram a ditadura: na
obra de Lygia Fagundes Telles, a personagem Lia/Rosa, simboliza a
classe estudantil que rumou para a guerrilha urbana armada; no
conto de João Gilberto Noll, o pai, sem nome, mantém sua vida
clandestina de combatente escondida do filho, também inominado.
Apesar de semelhantes, os destinos das duas personagens são
distintos: no caso de Lia /Rosa, o exílio para a Argélia; no do pai, a
209
morte; são diferentes, também, as abordagens da violência
imprimida pelo regime civil-militar: em As meninas, conforme
destaca Maria das Dores Pereira Santos (2006, p. 26-7), dá-se por
meio da incorporação de um texto-depoimento, lido por Lia/Rosa, à
madre Alix, no qual são relatas as torturas sofridas por um
prisioneiro político; em Alguma coisa urgentemente, através dos
meios de comunicação, a exemplo da televisão e do jornal,
mostrando, assim, o poder da mídia, à época.
Passado o período de abertura política, e já com a
redemocratização estabelecida, as obras literárias que abordam o
regime civil-militar ganham adaptações para o cinema, tanto em
meados dos anos 1980 /1990, quanto mais recentemente, nos anos
2000. A passagem do tempo, mais que uma mera mudança
cronológica, reflete, também, uma nova abordagem acerca da
ditadura:
Marcia Santos (2009) (...) sugere uma ‗evolução‘ cronológica
no tratamento do tema, considerando que nos filmes mais
recentes encontram-se não apenas personagens mais
matizados, mas também uma maior pluralidade de
perspectivas, que vão além do militante armado (...). (LEME,
2013, p.120).
Diante
desse
panorama,
é
necessário
tecer
algumas
considerações sobre o que já foi estudado acerca das adaptações
das obras literárias aqui em estudo. Antes, porém, cabe destacar o
conceito aqui adotado de adaptação, aqui entendido, a partir das
contribuições teóricas de André Bazin (1991), Ismail Xavier (2003),
Thaïs Flores Nogueira Diniz (2005) e Valquíria Elias Ferreira
Rezende (2010), como um novo texto que se estabelece a partir de
outro, pré-existente, no qual a leitura do adaptador atenderá a seus
propósitos, que, não necessariamente, condizem com os do autor,
dada as diferenças entre a literatura e o cinema.
No que diz respeito à primeira adaptação fílmica aqui em
estudo,
Nunca
fomos
tão
felizes
210
(1984),
pode-se
afirmar,
fundamentando-se em João Manuel dos Santos Cunha (2009) e
Leme (2013), que é obra, sobretudo, centrada na fragmentação da
memória, constituída a partir dos espaços nos quais a história se
ambienta, particularmente no apartamento-―aparelho‖, onde o filho,
agora, nominado, Gabriel, passa grande parte de seus dias ―preso‖,
buscando saber, por meio de objetos (fotografias, jornais, caixa de
fósforo, pasta com documentos), quem é seu pai, desde que este o
tirou do colégio interno. Os lugares de memória – categoria já
presente em estudiosos como Joël Candau (2011, p. 157) e Paul
Ricœur (2000, p. 47) – passam a servir como possíveis índices sob
os quais a identidade do pai se forma e, simultaneamente,
fragmenta:
Nunca fomos tão felizes é um filme que se constrói sobre a
ausência. Ausência do pai. Ausência de palavras. Ausência de
explicações. Ausência de ação. O apartamento mais do que
um cenário é um signo da ausência: amplo e quase sem
móveis, prolonga-se na imensidão do mar azul, expressando o
sentimento de desamparo e solidão experimentado por Gabriel.
E a câmera, em movimentos de travelling e no uso da
profundidade de campo, explora esse vazio. (LEME, 2013, p.
238).
De forma irônica, Gabriel descobre a real identidade do pai
apenas no momento da morte deste, momento que o jovem decide
eternizar, através de sua polaroide, coincidindo com o encerramento
do filme com os dizeres ―Tão felizes, nunca fomos‖.
Em oposição a Nunca fomos tão felizes, que já conta com
alguns estudos – a exemplo dos acima mencionados –, a adaptação
homônima do romance As meninas, dirigida por Emiliano Ribeiro,
não possui uma fortuna crítica mais aprofundada, restringindo-se a
uma breve consideração presente em Leme (2013, p. 36), na qual a
pesquisadora constata, no filme em questão, a ausência de definição
acerca da posição ocupada pelos torturadores, dentro dos órgãos de
segurança.
211
O que é isso, companheiro?, por sua vez, gerou, quando do
lançamento de sua adaptação fílmica, dezenas de críticas,
relacionadas, principalmente, ao caráter maniqueísta presente na
oposição dos perfis do torturador Henrique e do guerrilheiro Jonas:
Por outro lado, se o filme apresenta o guerrilheiro Jonas como
um homem frio, disposto a matar qualquer companheiro que o
desobedecer, sem vacilação, confere ao torturador Henrique
(Marco Ricca) um tratamento bem diferente. Ele sofre
angústias, não consegue dormir direito, tem problemas com a
mulher quando ela descobre sua real atividade. É um carrasco
em conflito (mas nem por isso deixa de continuar torturando e
matando). Já Jonas, que luta contra a ditadura, que não tortura
ninguém e que, pelo contrário, acaba morrendo na tortura (ao
ser preso após o sequestro), é tratado como um facistoide. Nas
suas angústias, Henrique é certamente bem mais humano.
(SALEM, 1997, p. 49).
Outro aspecto controverso, na adaptação do romance de
Gabeira, relaciona-se ao caráter ―higiênico‖ na representação das
cenas de tortura, consideradas como relativamente leves, e,
proporcionando, inclusive, posteriormente, o estabelecimento de
uma relação amorosa entre torturador e torturada, conforme destaca
Leme (2013, p. 45).
Apesar dos aspectos acima serem, realmente, legítimos de
crítica, o que provoca controvérsia, na referida adaptação, é a
aparente oposição que se estabelece entre a memória transposta,
para o cinema, a partir do relato de Gabeira e a que se entende
como ―legítima‖, como ―coletiva‖, pertencente à História e aos outros
que nela, além do autor, estiveram envolvidos nos fatos narrados /
representados, aspecto elencado por, dentre outros, Paulo Moreira
Leite (2007, p. 54-5; 55), Santos (2009, p. 150) e Leme (2013, p.
122-3), e que merecerá maior atenção, também, no presente estudo.
A última das adaptações aqui em estudo, Batismo de sangue,
dirigida por Helvécio Ratton, distingue-se de O que é isso,
companheiro?, em um primeiro momento, pela maior ênfase dada às
cenas de violência, fato este que foi considerado, por alguns críticos,
212
segundo Leme (2013, p. 47), como um excesso de realismo. Tal
visão, entretanto, não é a predominante, uma vez que em estudos
como o de Maria Luiza Rodrigues Souza (2009), este aparente
excesso é considerado um dos maiores méritos da referida
produção, pois serve como um suplemento à memória política.
Ainda a respeito de Batismo de sangue, Leme (2013, p. 48)
enfatiza que o filme aborda duas questões delicadas: a suposta
delação dos frades Fernando e Ivo, que desencadeou a morte de
Carlos Marighella, e o suicídio de frei Tito, em decorrência de suas
memórias da tortura – representadas, no filme, por meio do recurso
de flash back –. Dessa forma, a memória, na adaptação realizada
por Ratton, é muito mais delicada, uma vez que está associada não
apenas à tortura, mas, também, a um tabu religioso, o suicídio.
É certo que existem outros aspectos a serem considerados,
quando estudamos a transposição da memória existente nas obras
citadas
para
suas
respectivas
adaptações
cinematográficas.
Entretanto, é impossível cobrir todos, sob a pena do esquecimento,
dos lapsos, categorias que também constituem a memória. O mais
importante é observamos, no presente artigo, é a necessidade de
enxergar as narrativas em questão – tanto literárias, quanto fílmicas
– como complementares, uma vez que retomam, ainda que em
diferentes momentos históricos e políticos, uma importante parte da
História do nosso país.
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214
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Letras, 2009.
215
O ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, FICÇÃO E FILOSOFIA
Mauricio Alves de Souza Pereira 42
RESUMO: A obra machadiana, como sabemos, é marcada por diversas reflexões acerca
da sociedade moderna, do homem e suas relações. Perpassando essas reflexões,
podemos verificar a presença constante, na ficção, de um outro campo da ciência
reiteradamente utilizado por Machado na construção de seus escritos, qual seja: a
Filosofia. No conto O espelho, publicado em 1892, podemos perceber a ascensão da
Filosofia no texto literário, discutindo e refletindo acerca do homem moderno. Nessa
perspectiva, este trabalho propõe-se a analisar e discutir a dialética contida no conto,
entre o diálogo ficcional e filosófico, buscando aliar os pensamentos contidos na
narrativa a reflexões filosóficas já existentes, mostrando como a literatura machadiana
passeia por outra área do conhecimento.
Palavras-chave: Literatura. Filosofia. Espelho. Machado de Assis.
ABSTRACT: The Machado's work, as we know, is marked by several reflections on
modern society, man and their relationships. Running along these reflections, we can see
the constant presence in the fiction, another field of science repeatedly used by Machado
in the construction of his writings, namely: philosophy. The mirror in the tale, published in
1892, we can see the rise of Philosophy in literary text, discussing and reflecting about
the modern man. From this perspective, this work proposes to analyze and discuss the
dialectic contained in the story between the fictional and philosophical dialogue, seeking
to combine the thoughts contained in the narrative to existing philosophical reflections,
showing how Machado literature strolling through another area of knowledge.
Keywords: Literature. Philosophy. Mirror. Machado de Assis.
INTRODUÇÃO
Ao ler a obra do escritor Machado de Assis, uma das muitas
conclusões a que podemos chegar é a de que as reflexões filosóficas
estão presentes em diversos momentos na escrita, junto às reflexões
sociais por que passava a sociedade de sua época e que, ainda hoje,
refletem na atualidade. Não é à toa que a crítica o considera um dos
maiores escritores de todos os tempos, ―a mais alta expressão do nosso
gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura‖ (VERÍSSIMO,
1981, p. 277). Nas palavras de Mário de Andrade:
Como um acadêmico, era um desprezador de assuntos. [...] Há
contos dele movidos com tão pouca substância, tão sem uma
base lírica de inspiração, que se tem a impressão de que
Machado de Assis sentava para escrever. Escrever o quê?
42
Acadêmico do 3° período do curso de Letras-Português da UNIMONTES e Filosofia da
UNIFRAN
216
Apenas escrever. Sentava para escrever um gênero chamado
conto, chamado romance, porém não tal romance ou tal conto.
E é porque tinha no mais alto grau uma técnica, e bem definida
a sua personalidade intelectual, que saiu este conto ou aquele
romance. (ANDRADE, 2002, p. 127).
Lendo e analisando o pensamento filosófico e reflexivo contido na
obra machadiana, um de seus contos chama atenção pela forma com a
qual é trabalhada a ficção e a teoria, qual seja, O espelho. Neste conto,
Machado trabalha duas esferas: a filosófica e a literária. Esta trabalha
com a narrativa da personagem Jacobina que, sentado à mesa com
alguns colegas, põe-se a discutir questões da vida a partir de suas
lembranças; aquela, por sua vez, trabalha com a faculdade da alma – ou
almas, melhor dizendo.
A partir dessas duas esferas trabalhadas nesse conto, este trabalho
se propõe a analisá-las e discuti-las, de modo a perceber como se dá o
passeio que o texto literário de Machado de Assis faz pelas teorias
filosóficas, de modo especial àquelas concernentes às faculdades da
alma.
O espelho: uma nova teoria da alma humana
O espelho: uma nova teoria da alma humana é um conto publicado,
primeiramente, na Gazeta de Notícias, em 1982, e agregado ao livro cujo
título Machado intitulou Papéis Avulsos, considerado por muitos uma de
suas principais obras, marcada pelo desenvolvimento e amadurecimento
de seus escritos.
No conto, Machado traz a figura da personagem Jacobina, homem
de idade ―entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista,
inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico‖
(ASSIS, 2006, p. 135) Jacobina desempenha papel principal e em torno
do qual gira a narrativa. Este, sentado à mesa com alguns conhecidos,
calado, a princípio, faz uso da palavra, e, a partir de então, começa a
217
refletir a respeito de algo que foge às discussões costumeiras: a alma.
Um dos homens desafia-o a arguir sobre o assunto, mas o ―casmurro‖43
prefere utilizar, como forma de argumentação, uma ocorrência de seu
passado. Neste momento, Jacobina começa a narração de uma de suas
vivências e, no conto, as demais personagens que com ele estavam
sentados se silenciam, dando ouvido somente à história – o que
caracteriza a primeira relação do exercício de poder descrito no conto. ―A
sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto;
todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto,
recolhendo as memórias‖ (ASSIS, 2006, p. 137). Podemos dizer, assim
como Alfredo Bosi (2014), em um ensaio direcionado aO espelho, que ―o
conto começa pelo fim‖. Jacobina narra aos seus ouvintes um momento
de sua vida em que foi nomeado alferes da Guarda Nacional, fato que foi
motivo de alegria para muitas pessoas: mães, primos, tios; e que causou,
ainda, conforme a escritura, ―choro e ranger de dentes‖44.
Uma de suas tias, Marcolina, ficou tão feliz com o título recebido
pelo sobrinho que pediu para que ele fosse visitá-la em seu sítio;
cumprido o pedido, Marcolina escreve à mãe de Jacobina dizendo-lhe que
este ficaria por lá, no sítio, por, no mínimo, um mês. A personagem da tia
desempenha um importante papel na narrativa, uma vez que é ela quem,
explicitamente, mais desperta em Jacobina o sentimento megalomaníaco,
que desencadeia as reflexões que permeiam o conto: ―E abraçava-me!
Chamava-se também o seu alferes. (...) chegou a confessar que tinha
inveja da moça que houvesse de ser minha mulher (...) alferes pra cá,
alferes pra lá, alferes a toda a hora‖ (ASSIS, 2006, p. 138). A alegria e
orgulho da tia foram tão grandes que mandou por no quarto do alferes
43
Forma com a qual Machado faz referência, no conto, à personagem Jacobina.
44
Alusão a uma passagem da Bíblia, no livro de Lucas, capítulo 13: ―Ali haverá choro e
ranger de dentes, quando virdes Abraão, e Isaque, e Jacó, e todos os profetas no Reino
de Deus, e vós lançados fora‖. Machado, através da menção, mostra o sentimento de
inveja causado pela personagem principal em algumas pessoas quando se torna alferes
da Guarda Nacional.
218
―um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da
casa, cuja mobília era modesta e simples‖ (ASSIS, 2006, p. 138). Fica
evidente o respeito dado ao alferes, que, com isso, deixou de ser o
Jacobina e passou a ser ―exclusivamente alferes‖. Com tanto zelo, há um
momento em que sua tia precisa deixar o sítio para atender a uma
emergência, a partir desse momento a narrativa começa a tomar outros
rumos, e toda uma carga teórico-filosófica trabalhada no início do conto
começa a ser refletida nas ações da personagem.
O discurso filosófico no corpus literário
Analisar os aspectos filosóficos contidos na obra de Machado de
Assis, conforme acentua Miguel Reale, é pensar: ―Filosofia de Machado
de Assis, ou na obra de Machado de Assis?‖ (REALE, 1982, p. 3). Dessa
forma, é possível perceber que as reflexões machadianas, embora muito
parecidas, de fato, com algumas teorias filosóficas de autores por ele lido,
tomam um viés de certa forma autônomo, uma vez que, aliando seus
pensamentos a reflexões já existentes, aprimora-as e acrescenta-lhes
novas ponderações bem mais características do homem e da sociedade
de seu tempo.
Para se utilizar o discurso filosófico, Machado utiliza, como vimos, a
personagem Jacobina, que reflete também as características do homem
moderno. Conforme afirma Afrânio Coutinho
Machado descobriu enfim a sua vocação verdadeira: contar a
essência do homem, em sua precariedade existencial. As suas
personagens não apresentam mais uma estrutura moral
unificada e típica. São antes seres divididos consigo mesmos,
embora sem lutas violentas, já naquele estado em que a cisão
interna entra no declive dos compromissos e da instabilidade
de caráter. O homem não é mais aquele ser responsável dos
romances anteriores; é um joguete de forças desconhecidas.
(COUTINHO, 2004, p. 159).
219
No conto em questão, a filosofia está presente desde o início da
obra. Voltemos, portanto, ao início, para percebermos alguns pontos
importantes e que devem ser levados em consideração.
Retomemos ao início do conto, que sinaliza o assunto debatido
pelos cinco cavalheiros na mesa: questões de alta transcendência. A
personagem Jacobina é quem começa as reflexões, principalmente no
que concerne às faculdades da alma; a primeira proposição feita pela
personagem é acerca da dualidade da alma, tema com o qual ele discorre
o seu texto e suas reflexões: ―Cada criatura humana traz duas almas
consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro...‖ (ASSIS, 2006, p. 136). A duplicidade da alma explicitada pela
personagem Jacobina sinaliza as inconstâncias da alma e do ser humano:
a alma interna, marcando as características subjetivas do ser humano; a
externa, as relações do indivíduo e da sociedade em que vive. Machado
trabalha, na obra, a vida do homem de seu tempo, ou seja, o homem
moderno. Nesse trabalho, ele mostra a dualidade dessa alma moderna. A
alma exterior, conforme percebemos no conto, caracteriza sua existência
pela existência dos outros, ou seja, sobrevive das relações humanas em
sociedade, tema bastante discutido em toda a obra realista machadiana.
A alma interior, por sua vez, é instável e inconstante. Essa teorização
dada por Jacobina parte do princípio de sua própria vivência, narrada no
conto. Retomando, mais uma vez, à história do conto, quando a tia de
Jacobina sai do sítio, este passa a viver só, ou melhor, consigo e suas
duas almas. Neste momento, as reflexões machadianas aproximam-se
das filosóficas; reflexões de alguns filósofos podem ser encontradas,
Arthur Schopenhauer é um deles. Nas palavras de Reale (1982):
Nada de extraordinário, por conseguinte, que a visão
pessimista de Machado de Assis tenha encontrado abrigo e
consolo na doutrina de Schopenhauer, também um de seus
autores prediletos. São vários os motivos schopenhaurianos
que podemos identificar na obra machadiana, motivos que
valem a confirmação de crenças obscuramente brotadas de
sua própria experiência. (REALE, 1982, p. 12).
220
Friedrich Nietzsche também pode ser encontrado nesse pensamento
de multiplicidade da alma, em sua obra Para além do bem e do mal,
quando diz: ―nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas‖
(NIETZSCHE, 1993, p. 25). Aqui, ater-nos-emos apenas a um desses
filósofos.
Machado traz um símbolo que dá um sentido especial ao texto: o
relógio. O relógio (e ainda a figura da pêndula) configura um símbolo de
intensificação do sentimento da personagem. Quando Jacobina encontrase sozinho, vivencia sentimentos negativos, tais como o desespero, a
ânsia, a angústia e o tédio; é trazida por Machado a figura do relógio para
mostrar o aprofundamento da negatividade vivenciada pelo indivíduo e
sua alma: ―as horas batiam de século a século no velho relógio da sala,
cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um pirapote
contínuo da eternidade‖ (ASSIS, 2006, p. 140).
Mais à frente, Machado começa a descrever algumas atividades
corporais exercidas pela personagem Jacobina: ―(...) às vezes, fazia
ginástica; outras dava beliscão nas pernas; mas o efeito era só uma
sensação de dor ou de cansaço, e mais nada‖. A realização das
atividades
parecia
não
fazer
sentido,
como
se
não
houvesse
proeminência alguma para o futuro, gerando, pois, o tédio. O tédio extrai o
sentido dos fazeres humanos, tornando a vida insignificante. É neste
momento
que
o
pensamento
machadiano
se
aproxima
do
schopenhauriano. Para Schopenhauer, a existência é permeada por um
círculo vicioso, no qual se apresenta o desejo, a satisfação, o tédio e
retoma ao desejo. O que sempre retorna à vida, portanto, é o nada. No
conto, a personagem Jacobina perde sua humanidade a passar por esse
círculo, nem mesmo sua alma interior tinha sentido de existência.
Jacobina, ao tornar-se alferes, conforme nos mostra o conto, sentese seduzido pelo poder. A partir de agora, não é mais o velho Jacobina, é
o alferes, sem compaixão pelos outros. Machado sinaliza na personagem
221
Jacobina duas naturezas: ―– O alferes eliminou o homem. Durante alguns
dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva
cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.‖ Ao tornarse esse ‗outro‘, Jacobina entra cada vez mais no jogo de poder,
querendo-o cada vez mais para si. A sedução por sua imagem, refletida
pelo espelho de sua própria alma, torna-se cada vez mais forte, até o
momento em que ele cai em si mesmo e, como já dissemos, no tédio. A
falha cometida pela personagem advém de sua própria vaidade e
sedução exasperada pelo poder. É trágica, pois o próprio autor da
vaidade é o receptor das consequências advindas dela. A queda se dá
quando
Jacobina
cai
em
si
mesmo
e
entra
no
círculo
desejo/satisfação/tédio/desejo. O desejo pelo poder, a satisfação após se
tornar alferes, o tédio da alma interior vazia e a insignificância de sua vida
e, mais uma vez, o desejo, agora, de voltar a ser quem era.
A saída encontrada para ausentar o tédio por Jacobina é através do
espelho, mais uma vez, aí, podemos perceber a aproximação do
pensamento de Schopenhauer em relação à visão do mundo como mera
representação. Para Schopenhauer, o mundo é uma representação
individual: ―O mundo é minha representação. Esta é uma verdade que
vale em relação a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem
possa trazê-la à consciência refletida e abstrata‖ (SCHOPENHAUER,
2005, p. 43).
O espelho figura como ‗autoadoração‘ da própria personagem, a
duplicidade do ser é assinalada mais uma vez. Nas palavras de Gilson
Motta
(...) é simbolizada pelo reflexo especular, pelo desdobramento
de si que a imagem refletida no espelho provoca. Assim, o
objeto espelho tem o poder de realizar uma operação
metafísica: ele mostra o homem para si e em si mesmo como
alteridade. Trata-se aqui do ato de pensar a si mesmo a partir
do seu reflexo: pensar a si como um outro. Este conflito – ser
um e ser outro – é parte mesmo do homem. Mais
precisamente, este conflito é o próprio homem. (MOTTA,
2007).
222
Considerações finais
O conto O espelho, como percebemos, é um exemplo das obras
que aliam a ficção literária às teorias filosóficas. Na narrativa em questão,
fica evidente o passeio que o texto literário faz a outro campo do
conhecimento, feito de maneira ímpar por Machado de Assis. Além das
considerações feitas neste trabalho acerca da narrativa e de algumas
ideias filosóficas, podemos perceber que o autor vai além, trazendo, no
conto, críticas sobre o homem moderno, de modo especial, o capitalista.
Quando Machado cria a personagem Jacobina e este torna-se alferes,
sua natureza é mudada completamente, mostrando como o poder
transforma a vida do ser humano. Ao obter esse poder, o autor mostra
como o ser humano entra ainda mais nesse jogo, buscando ainda mais
domínio de si e dos outros. Ao obter esse poder, exemplificado, no conto,
através da farda, a personagem perde o controle, passando por cima de
tudo e de todos. Podemos perceber isso, em geral, no histórico da obra
machadiana. Ao mostrar o homem burguês, capitalista, na busca
constante pela posse aquisitiva, Machado traz o jogo de poder que
envolve o ser humano e que, quando o consegue, deixa que sua alma
exterior, marcada pelas relações exteriores e com a sociedade,
sobressaia-se, olhando apenas para si mesmo e não se importando com
seus atos para com o próximo. Esta reflexão, que marca o homem
moderno e se estende ao homem atual, mostra-nos como, muitas vezes,
agimos também em busca do poder e de nós mesmos. Além do mais, a
leitura e a reflexão do conto levam-nos a refletir, também, a nossa própria
existência, colocando-nos, do mesmo modo, no círculo schopenhauriano;
o fato de, muitas vezes, nossa imagem nos seduzir e levar-nos à vaidade,
querendo cada vez mais o crescimento e, consequentemente, a nossa
própria desumanização. Ante o desejo realizado, a satisfação completa, o
próximo passo é o tédio, assim que descobrimos o sentido, ou melhor, a
ausência de sentido da vida. O desejo, mais uma vez, aparece no círculo,
223
quando queremos sair da imagem que é refletida, mesmo que de poder, e
voltar ao momento em que a vida era dotada de sentido e relações com
os outros. A dialética entre a filosofia e a ficção trazida no conto deixanos, ainda, uma reflexão que permeia toda a existência e a busca de
sentido pela vida humana: quem eu sou?
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 6. ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2002.
ASSIS, Machado de. O espelho: uma nova teoria da alma humana. In:
Papéis Avulsos (p. 135-143). São Paulo. Martin Claret, 2007.
BIBLIA SAGRADA. A. T. Lucas. Cap. 13, 28. Disponível em:
<https://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/13> Acesso em: 24 de agosto de
2015.
BOSI, Alfredo. O duplo espelho em um conto de Machado de Assis.
Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142014000100020>
Acesso em: 12 de agosto de 2015.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
MOTTA, Gilson. Uma abordagem do trágico no conto “O espelho”, de
Machado de Assis. Palimpsesto - Revista do Programa de PósGraduação em Letras da UERJ, Volume 6 ano 6 - ISSN 1809-3507. Rio
de Janeiro, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. São Paulo: Cia. das
Letras, 1993.
REALE, Miguel. A Filosofia na obra de Machado de Assis e Antologia
filosófica de Machado de Assis. São: Paulo Pioneira, 1982.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São
Paulo: Editora UNESP, 2005.
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. 4º ed. Universidade de
Brasília. Brasília, 1981.
224
RECEPÇÃO CRÍTICA EM O FILHO DO PESCADOR: DIVERGÊNCIA
OU CONVERGÊNCIA DE INTERESSES?
Noêmia Coutinho Pereira Lopes¹
RESUMO: O presente resumo objetiva discutir acerca da recepção crítica sobre o livro O
filho do pescador, de Teixeira e Sousa, publicado em 1843. Tecemos considerações
sobre o referido objeto de estudo e levantamos hipóteses sobre o porquê de o autor ser
mencionado pelos críticos de maneira tão diversa. Embora tenha alcançado sucesso
junto ao público com a veiculação de seus textos nos folhetins, Teixeira e Sousa chega a
ser rejeitado pelos manuais de Literatura, tachado de ―autor menor‖. Assim,
perguntamos: E por que não também Teixeira e Sousa? Estaria ele necessitando de
uma nova classificação junto aos manuais de literatura, agora não como aquele que
disputa com Joaquim Manuel de Macedo o título de precursor do Romantismo no Brasil
e sim como um folhetinista de sucesso? É um caso a se pensar.
Palavras-chave: O filho do pescador; romance-folhetim; crítica; Teixeira e Sousa.
ABSTRACT: The purpose of this summary discuss about the critical reception of the
book The son of the fisherman, Teixeira e Sousa , published in 1843. We weave
considerations on the study object and raise hypotheses about why the author be
mentioned by critics so as diverse. Although it has achieved success with the public with
the airing of his texts in serials, Teixeira e Sousa gets to be rejected by Literature
manuals, branded a "minor author." So we ask: Why not also Teixeira e Sousa ? Was he
in need of a new classification with the literature manuals, now not as one who disputed
with Joaquim Manuel de Macedo the title of Romanticism precursor in Brazil but as a
serial writer of success? It is a case to think about.
Keywords: The son of the fisherman; serial novel; critical; Teixeira e Sousa.
Publicado nos rodapés do Jornal O Brasil em 1843, O filho do
pescador narra uma história de paixões, crimes, reviravoltas e redenção.
Ambientado no Rio de Janeiro, tendo várias cenas passadas no bairro de
Copacabana – na época, um bairro praticamente despovoado –
acompanhamos a trajetória dos personagens às voltas com uma
sequência de relacionamentos cheios de interesse, principalmente no
campo afetivo.
Tendo Teixeira e Sousa apresentado esse romance-folhetim em
1843 e sendo essa uma época ainda conturbada no tocante à história do
país, propomo-nos voltar nosso olhar para a recepção crítica do autor no
século XIX. Lembrando que Teixeira e Sousa iniciou sua incursão ao
mundo das letras publicando poemas e algumas peças de teatro, obteve,
já no princípio de sua carreira, reconhecimento do público e dos críticos
que, ora favoráveis, ora não, apresentavam nos periódicos da época suas
225
impressões sobre as publicações do referido autor. A respeito dessas
impressões, Hebe Cristina da Silva nos aclara:
Os textos poéticos e dramáticos que Teixeira e Sousa publicou
na imprensa e na forma de livros foram apreciados em estudos
críticos divulgados ao longo do século XIX, confirmando a
importância dessas produções para a obtenção do
reconhecimento de seus contemporâneos (SILVA, 2012, p. 61).
Silva, ao longo de sua tese de doutorado e demais pesquisas sobre
Teixeira e Sousa, elenca várias notas em periódicos nos quais foram
publicados comentários sobre as produções do autor, fazendo menção a
vários gêneros literários. No gênero poesia, chegou a ser considerado um
―discípulo de Gonçalves de Magalhães‖ por Fernandes Pinheiro. Teve
inclusive, o poema Três dias de um noivado traduzido por Luís Vicente de
Simoni, médico italiano. No romance,
a partir da década de 1860, Teixeira e Sousa passou a ser
lembrado predominantemente em função do papel que
desempenhara na formação do romance brasileiro, o que se
justifica se considerarmos que ele dedicou especial atenção às
narrativas ficcionais (SILVA, 2012, p. 65).
Observamos um autor cujos textos circularam entre leigos e críticos
literários. Não menos interesse despertou O filho do pescador. Mesmo
após a publicação em folhetim, a narrativa veio a público em reedições.
Se levarmos em consideração o preço dos livros na época, uma reedição
não pode passar despercebida. Em 1859, A Marmota publicou uma nota,
informando aos leitores que O filho do pescador seria reeditado nos
rodapés. Obviamente, levamos em consideração que poderia se tratar
apenas de uma propaganda com o intuito de impulsionar a venda do
produto jornal. No entanto, ―[n]ão podemos desconsiderar as informações
fornecidas pelo mesmo acerca da boa aceitação e da constante procura
pelo romance, cuja primeira edição estava esgotada (SILVA, 2012, p. 67).
Teria a crítica do século XIX observado o fazer literário de Teixeira
e Sousa e o grande público que o consagrava, ou apenas levado em
consideração se o referido autor se enquadrava nos padrões cultuados
226
como o certo, o modelar de então? Sobre isso, Silva nos informa que
―[l]ogo após o término dos folhetins, o romance foi publicado em volume
pela Tipografia de Paula Brito, atestando o êxito que obteve junto aos
leitores‖ (SILVA, 2012, p. 66).
Sob o olhar da crítica, temos a impressão de Santiago Nunes Ribeiro
que, em 1844, publicou uma nota em tom elogioso, servindo para nos
reafirmar que também a crítica foi favorável à narrativa O filho do
pescador. Consideramos relevante transcrever a nota.
Nesta obra quis o Sr. Teixeira e Sousa mostrar que a novela
pode ser um gênero muito moral e que, por conseguinte, da
leitura dos livros desta ordem, compostos segundo iguais
princípios, não pode resultar o mal que vem desses mil
romances imorais e corruptores que pululam na América e na
Europa (RIBEIRO² apud SILVA, 2012, p. 66).
Ressaltamos que em fevereiro de 1847, tendo já Teixeira e Sousa
lançado seu segundo romance, As fatalidades de dois jovens, Paula Brito
publicou no Jornal do Comércio, uma nota sobre Tardes de um pintor, ou
intrigas de um jesuíta – terceiro romance – em que diz que
o acolhimento favorável com que o público recebeu O filho do
pescador e As fatalidades de dois jovens, do mesmo autor, nos
fez lançar mão deste romance, que em maior escala é muito
superior aos dois[...]3 (BRITO apud SILVA, 2012, p. 68).
Observamos que houve aceitação dO filho do pescador assim que a
narrativa veio a público. Ou, nas palavras de Paula Brito (1847),
―acolhimento favorável‖. Assim como a produção literária de Teixeira e
Sousa não se findou com seu terceiro romance, as notas nos periódicos
continuavam em tom elogioso sempre que se anunciava nova publicação
ou reedição. Expressões como ―o bem conhecido talento do autor‖,
―produções estimadas‖, ―satisfazer os desejos de todos os que se
interessem por esta linda composição‖ são usadas nos periódicos para se
referirem a Teixeira e Sousa. Claro que levamos em consideração que
também se tratavam de propagandas para as publicações e, se estas
227
eram nos jornais, temos então uma estratégia para aumentar a
vendagem.
Entretanto,
o
que
ressaltamos
aqui
não
é
o
teor
propagandístico dessas publicações elogiosas e sim a recorrência dessas
mesmas publicações nos periódicos do séc. XIX. Esse ponto novamente
nos remete a um autor conhecido, lido e discutido em seu contexto de
produção.
Nosso objetivo é trazer à discussão que Teixeira e Sousa foi um
autor conhecido em sua época, embora não seja nosso objetivo
aprofundar na modalidade da crítica feita então. Também Teixeira e
Sousa não teve formação em Letras, mas foi conquistado por elas e
seguiu seu coração. Sabemos que não havia uniformidade na opinião
literária. Grande parte dos escritores da época desenvolviam atividades
paralelas à escrita.
Claro que, mesmo ainda em meados do século XIX, já se reconhecia
o papel social do escritor. No entanto, como ressaltou Candido, não havia
dedicação exclusiva por parte do escritor, não sendo possível lapidar com
esmero suas criações. Tal situação, na qual também se encontra Teixeira
e Sousa, trouxe como consequência uma espécie de literatura amadora,
ou, nas palavras de Candido, ―artesanal‖.
Nessa dialética de construção de sociedade da primeira metade do
século XIX, buscamos primeiramente imitar a literatura europeia, negando
o nosso fazer literário para enfim nos encontrarmos no que somos e
produzimos. Acreditamos que buscar alcançar um objetivo maior, refletir
sobre a escolha de um tema em detrimento de outro já seja um exercício
de crítica, uma espécie de ―amoldamento‖ do barro para se transformar
em um objeto de arte ao gosto do freguês.
Ainda a respeito desse momento, Candido diz que
[d]esta verdadeira proclamação de independência literária (...)
decorrem, do ponto de vista crítico, certos temas que serão os
condutores no Romantismo: estabelecimento de uma
genealogia literária, análise da capacidade criadora das raças
228
autóctones, aspectos locais como estímulos da inspiração
(CANDIDO, 2012, p. 639).
.
Conforme citado, havia já na primeira metade do século XIX um
constante questionar-se diante do fazer literário. Tornar-se um escritor
reconhecido era o objetivo de quem escrevia; os jornais com seus
folhetins conquistavam um público cada vez maior, o que alavancava as
vendas e, de olho nesse mercado, os escritores considerados talentosos
se viam disputados pelo mecenato, dentre eles, Teixeira e Sousa.
Segundo José Ramos Tinhorão,
[e]ssa popularidade dos folhetins de jornal, em um país e uma
época em que a publicação de obras de ficção em livro –
principalmente no caso de estreantes – constituía dificuldade
bastante para desencorajar muitas vocações, constituiu por
certo fator de estímulo ao aparecimento de toda uma nova
geração de escritores (TINHORÃO, 1994, p. 39).
De acordo com Afrânio Coutinho,
[o] progresso geral do país durante a fase de permanência da
Corte portuguesa (1808-1821), imediatamente seguida pela
Independência (1822), teve indisputável expressão cultural e
literária. O Rio de Janeiro tornou-se, além da sede do governo,
a capital literária, e, com a liberdade de prelos, desencadeouse intenso movimento de imprensa por todo o país, em que se
misturavam a literatura e a política numa feição bem típica da
época (COUTINHO, 2004, p. 17).
E se literatura é produção, o que foi produzido no Brasil nesse
contexto teve não só reconhecimento do público a que se destinava,
como também o direcionamento da crítica, mesmo sendo essa um esboço
do que viria a ser. Examinando a ideia, não podemos deixar de mencionar
os postulados de Antoine Compagnon. Para ele,
[p]or crítica literária compreendo um discurso sobre as obras
literárias que acentua a experiência da leitura, que descreve,
interpreta, avalia o sentido e o efeito que as obras exercem
sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não
necessariamente cultos nem profissionais. A crítica aprecia,
229
julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou
projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma
metamorfose, não a universidade; sua primeira forma de
conversação (COMPAGNON, 2010, p. 21).
Se a crítica literária pressupõe o texto, acreditamos então que um e
outro caminhem juntos, alimentam-se dos mesmos nutrientes do terreno.
O texto sendo o primeiro broto, amolda-se pela crítica, sendo esse outro
broto um pouco mais novo, entretanto, ambos fazem parte de mudas com
diferença mínima de idade, mas tão próximas uma da outra que chegam
mesmo a se confundir como sendo partes de um mesmo galho. É de
acordo com a recepção que o texto tem quando mais uma folha é lançada
à luz do público que há de se comportar o andar da nova interpretação.
Dessa forma, propomos como exercício esse pensar as coisas no
seu tempo, analisar as relações e então apresentar um novo olhar sobre o
pensado. Seria Teixeira e Sousa realmente um autor ―menor‖?
De acordo com Veríssimo, Teixeira e Sousa
[f]ora carpinteiro, tipógrafo, caixeiro, revisor de provas, guarda
da alfândega, editor, mestre-escola e por fim escrivão no foro.
Mas sobretudo foi, com mal empregada e malograda vocação,
homem de letras. E não as tinha de todo más, pois compunha
versos latinos e era lido nas literaturas modernas (VERÍSSIMO,
1981, p. 161).
Percebemos em Teixeira e Sousa um autor que viveu em seu
contexto, ligando-se aos literatos, trabalhando com palavras e dando vida
a seus personagens. Crescendo também enquanto pessoa, amoldandose à sociedade, como um ramo que toma forma entre as brechas da
corpulenta ramagem. Ainda segundo Veríssimo, Teixeira e Sousa ―[e]ra
porém, uma real vocação literária, desajudada embora de gênio e de
cultura‖ (VERÍSSIMO, 1981, p. 161). Sendo a crítica nessa época ainda
embrionária, no entanto real, Teixeira e Sousa também teve seu nome
citado. Assim, pensamos que o fato de não ter passado despercebido –
230
apresentando falhas em sua escrita ou não – já faz com que nosso olhar
para com esse autor não deva ser tão superficial assim.
Ressaltamos que não foi nosso objetivo discordar da importância
dos anos de 1870 no que diz respeito à crítica literária no Brasil, muito
menos desconsiderar a grande contribuição a nós deixada por Silvio
Romero, José Veríssimo, Araripe Júnior ou o próprio Antonio Candido.
E é, justamente, por estas razões que O filho do pescador merece
ser estudado, como um signo não transformado, mas que se está
transformando um pensamento do século XIX. Afinal, a leitura pode abrir
a mente para novos olhares e questionamentos. Então, qual a missão do
escritor nos anos 1840? Como pensar Teixeira e Sousa nesse contexto
se nos propusermos a refletir sobre a crítica tecida a respeito dele?
De acordo com Coutinho,
[u]m traço peculiar da concepção do homem de letras devida
ao movimento romântico, e que logrou aceitação no Brasil, foi o
da missão civilizadora do escritor, que, mago e profeta, estaria
destinado a influir na marcha dos acontecimentos, graças à
inspiração
ou
iluminação
suprema.
Cabia-lhe
uma
responsabilidade, uma vocação particular, um papel de reforma
social e política, na condução da vida da comunidade, uma
função educadora, moralizante, progressiva, a exercer junto
aos contemporâneos (COUTINHO, 2004, p. 29).
Interessante considerar que esse era também um fator de estímulo
àqueles que queriam enveredar pelas letras. Alguns escritores ainda no
início de carreira vislumbraram nessa oportunidade também uma
ascensão social, ou, nas palavras de Tinhorão,
[a]o lado desse fator de estímulo à popularização da literatura
de ficção – e consequentemente de sua democratização,
através do alargamento da área dos leitores para faixas mais
amplas da população, em um tempo em que o interesse por
literatura era quase privilégio de minorias – a cronologia do
aparecimento de novelas e romances em capítulos de
imprensa serve para comprovar um fato inesperado: o folhetim
jamais deixou de ser cultivado desde seu aparecimento na
década de 1830 no Brasil, chegando até à atualidade sem
231
interrupção em sua trajetória
(TINHORÃO, 1994, p. 40).
de
mais
de
150
anos
Os textos eram escritos para um público definido, veiculados em
folhetins, a grande sensação da época, de grande repercussão nacional.
Fazer parte da lista dos mais lidos era o objetivo da maioria dos escritores
que pretendiam fazer carreira nesse cenário e se viam disputados pelo
mecenato. Assim, diante desse contexto de produção, talvez alguns
autores não tenham recebido dos críticos a devida atenção e
consideramos Teixeira e Sousa, tomando como ponto de partida seu livro
O filho do pescador, um desses. Não se trata de classificá-lo como o
precursor do Romantismo no Brasil e sim propor um outro olhar para o
referido autor: agora como um folhetinista de sucesso.
Há uma dicotomia entre algumas informações, principalmente sobre
o autor ter obtido reconhecimento ou não. É possível que ele não tenha
chegado
ao
patamar
que
desejou,
no
entanto,
não
podemos
desconsiderar as publicações – propagandísticas ou não – nas quais o
nome de Teixeira e Sousa figurou no século XIX e ainda hoje, século XXI.
Retomando a discussão, Alfredo Bosi (1987) não situa Teixeira e
Sousa no mesmo plano de Macedo, Alencar, Manuel Antônio de Almeida,
Bernardo Guimarães e Taunay. Considera que o modelo de Teixeira e
Sousa é a subliteratura francesa. Silvio Romero (1953), em seus estudos
acerca de Teixeira e Sousa, também critica os romances do autor,
classificando-os como um ―gênero pavoroso‖.
Já Candido (2012) considera Teixeira e Sousa como ―gente
honrada‖, colocando-o ao lado de Magalhães, Norberto, Macedo e outros.
Aclara que foi um grupo respeitável que conduziu o Romantismo para o
conformismo, o decoro, a aceitação pública. Ainda segundo Candido, a
qualidade literária da obra de Teixeira e Sousa é questionável, porém o
considera como um autor de grande relevância histórica e um
representante do folhetinesco do Romantismo, uma vez que, com efeito,
232
ele o representa ―em todos os traços de forma e conteúdo, em todos os
processos e convicções, ridículos, virtudes‖.
Na construção de seu texto, Teixeira e Sousa visou um público
jovem, de homens e mulheres, trabalhadores e semi-letrados, que viam
no folhetim uma fonte de entretenimento. Aqui está a razão de seu estilo
de escrita. Como ele mesmo inicia sua narrativa, ―Que tarefa!‖ (TEIXEIRA
E SOUSA, 1997, p. 01), entendemos que o autor estava ciente de que
teria um desafio pela frente e para o qual se entregaria a fim de alcançar
reconhecimento. Tal estratégia do autor faz com que percebamos que
escrevia para um público determinado, daí o estilo de escrita escolhido
ser o romance-folhetim. Idas e vindas, reviravoltas na história, novas
paixões. O folhetim fez sua parte e, apropriando-se do contexto histórico,
trouxe à tona a liberdade de criação e do fazer literário com função
comercial, tornando o autor alguém muito conhecido pela massa da
época, tendo O filho do pescador chegado à quarta edição, logo após o
término de sua publicação em folhetim.
Teixeira e Sousa, ciente de seu contexto de produção, contribuiu
para a formação de um início de cultura literária no país. Assim, merece
que sua obra seja revisitada com mais atenção.
NOTAS
1 Mestre em Literatura Brasileira (Unimontes/2015) – [email protected]
2 RIBEIRO, Santiago Nunes. ―Um fragmento do poema romântico Três dias de um
noivado, por A. G. Teixeira e Sousa‖ In: Minerva Brasiliense, Rio de Janeiro, 01/01/1844.
3 Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 19/02/1847.
REFERÊNCIAS
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São Paulo, Cultrix, 1987.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos
decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012.
233
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum.
Trad. De Cleonice Paes Barreto Mourão & Consuelo Fortes Santiago. 2.
Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. 1. 7ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Global, 2004.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. 3. 7ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Global, 2004.
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Terceiro –
Transição e Romantismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, pp. 910 a
915. (1ª Ed. 1888).
SILVA, Hebe Cristina da. Teixeira e Sousa entre seus contemporâneos –
vida, obra, recepção e textos selecionados. Cabo Frio, RJ: Secretaria de
Cultura de Cabo Frio, Prefeitura Municipal de Cabo Frio, 2012
SOUSA, Antônio Gonçalves Teixeira. O filho do pescador. Rio de Janeiro:
Artium, 1997.
TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil: 1830 à
atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira,
1601 a Machado de Assis, 1908. Intr. De Heron de Alencar. 4ª Ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.
234
AS MULHERES DE TIJUCOPAPO: O ORGANISMO TRÁGICO E O
DISCURSO DA MEMÓRIA-TRAUMA DE RÍSIA
Rafael da Silva Mendes
RESUMO: No romance As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, a protagonista
Rísia sai em jornada buscando a terra natal de sua mãe, Tijucopapo, enquanto
rememora fatos, traumas e personagens do seu passado. No presente trabalho,
defendemos a tese de que são incômodos físicos e enjoos que provocam a lembrança
de sensações traumáticas e momentos trágicos em sua vida, especialmente
relacionados às suas relações com sua mãe e com os homens. Ao mesmo tempo, se
desenrola em Tijucopapo o princípio de uma revolução, deflagrada por um grupo de
mulheres, que terá grande importância na verdadeira viagem narrada no romance: a
jornada de Rísia para dentro (e para trás) de si mesma.
Palavras-chave: Marilene Felinto; revolução feminina; introspecção; narrativas de
viagem.
ABSTRACT: In the novel Women of Tijucopapo, by Marilene Felinto, the protagonist
Risia sets out on journey seeking the homeland of her mother, Tijucopapo, while recalls
events, traumas and characters from her past. In this paper, we defend the thesis that the
memory of traumatic feelings and tragic moments in her life, especially related to their
relationship with their mother and with men, are brought by physical discomfort and
sickness. At the same time, a revolution begins in Tijucopapo, triggered by a group of
women who will have great importance in the real journey narrated in the novel: the
journey of Risia inside herself.
Keywords: Marilene Felinto; feminine revolution; introspection; travel narratives.
1. O fio do enredo desfiado
As mulheres de Tijucopapo se anuncia como um romance de
viagem, diário da busca da protagonista Rísia pela terra-natal de sua
mãe. Ao menos é o que o leitor espera ao ler a breve sinopse comercial
disponibilizada pela editora e divulgada nos sites das livrarias. O que o
leitor encontra efetivamente é uma viagem, sim; uma busca, também; mas
uma viagem da protagonista para dentro e para trás de si mesma; uma
busca de autoconhecimento através de reflexões acerca de seus próprios
sentimentos, atos e passado.
235
Rísia sai de São Paulo para conhecer Tijucopapo, Pernambuco,
onde teria nascido sua mãe, numa viagem que leva nove meses, mas o
que há de relato de acontecimento nesta obra é mínimo; este é um livro
de reflexões, e não de ações.
Após vinte e oito capítulos de fluxo de pensamento e rememoração de
eventos passados, somente no vigésimo nono Rísia narra algo que se
refere à viagem presente: o encontro com um guerrilheiro chamado
Lampião – e então descobre que havia uma revolução iniciada em
Tijucopapo que desceria para São Paulo pela estrada.
Como que para explicar por que há tão pouco acontecimento
efetivo na obra, a protagonista revela, quase ao fim da narrativa: ―De tanta
impaciência de que um fato só pudesse ocorrer depois do outro, de tanto
cansaço dessa espera, eu não mais me importava com que os fatos
acontecessem ou não.‖ (FELINTO, 1982, p. 128). Esta atitude de Rísia
enquanto personagem reflete e justifica suas opções enquanto narradora.
2. Organização estrutural da obra
O
romance
em
questão
é
uma
obra
fundamentalmente
transgressora, e em diversos sentidos, começando pela traição do gênero
―diário de viagem‖, como salientamos. O próprio título já se apresenta
como possível chave de leitura para a dimensão simbólica da obra.
Apesar do discurso todo composto em primeira pessoa e de revelações
muito íntimas da protagonista, a expressão ―as mulheres de Tijucopapo‖
sugere
uma
perspectiva
de
afastamento
de
uma
subjetividade
singularizada, enfocando a terceira pessoa e num aspecto coletivo.
Assim, o título confere enorme relevância a um grupo de mulheres que
representa um ideal de força e resistência que Rísia almeja para sua
própria existência.
Corroborando esta ideia, há as evidências historiográficas de que
tais mulheres existiram de fato. Marilene Felinto recupera um episódio
histórico, ocorrido em um pequeno vilarejo em Pernambuco, no século
236
XVII, em que as mulheres se organizaram e lutaram sozinhas contra os
invasores holandeses e os expulsaram. Conta o escritor pernambucano
Lula Falcão:
A luta foi desigual. Cerca de 600 holandeses e brasileiros
aliados, fortemente armados, saíram da ilha de Itamaracá, em
Pernambuco, para saquear a pequena aldeia de São Lourenço
do Tejucopapo, hoje distrito de Goiana, a 63 km do Recife. No
local, quase não havia homens para resistir ao ataque. Restava
basicamente uma tropa maltrapilha de mulheres – a maioria
agricultoras de origem indígena. Mesmo assim, naquele 24 de
abril de 1646, travou-se ali uma batalha épica, de fortes contra
fracos, que ganhou contornos de mito ao consagrar a vitória do
improvisado exército feminino e a expulsão dos invasores.
Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina
estavam à frente desse combate. Elas e as companheiras
recorreram às poucas armas que havia e a objetos rústicos,
como estrovengas (roçadeiras), paus e chuços, uma espécie
de lança para catar crustáceos. Tachos com água fervente e
pimenta-malagueta esmagada em pilões foram especialmente
preparados para a peleja. O alvo eram os olhos do inimigo.
Desnorteados pela ardência da mistura e a dor das
queimaduras, os soldados caíam estrebuchando nas roças ou
na única rua do povoado de 500 habitantes (FALCÃO, 2012).
A despeito de certas divergências historiográficas quanto à
quantidade de invasores, estas mulheres se alçaram a um estatuto mítico,
de forma que até hoje se comemora e se encena, em Goiana, a famosa
batalha. Esta dimensão mítica se desdobra numa vasta dimensão
simbólica e representativa. Falcão já explicita, em seu texto, as oposições
―fracos x fortes‖, ―poucos x muitos‖; registros históricos revelam que as
próprias guerreiras de Tijucopapo se reconheciam na oposição ―católicos
x protestantes‖, além de ―invadidos x invasores‖.
Marilene Felinto, ao batizar as líderes revolucionárias de seu livro
como ―mulheres de Tijucopapo‖, realiza a referência histórica, mas
evidenciando as oposições ―pobres x ricos‖, ―nordeste x sudeste‖, ―povo
oprimido x autoridade opressora‖ e, principalmente: ―mulheres x homens‖.
Diferente do episódio histórico, as mulheres no romance não se revoltam
sozinhas contra homens, mas iniciam uma revolução e a lideram,
arregimentando homens sob seu comando, para lutarem contra outros
237
homens – um modo de oposição mais consistente que o simples embate
frontal. Ao fim da narrativa, reencontrando o amor em Lampião – que é
referência direta à figura do cangaceiro símbolo da virilidade e da
coragem masculinas no sertão – e inspirada pelo vigor das Mulheres de
Tijucopapo, descobre: ―Vim fazer a revolução que derrube [...] os
culpados por todo o desamor que eu sofri e por toda a pobreza em que
vivi.‖ (FELINTO, 1982, p. 133).
O romance divide-se em trinta e três capítulos curtos, em que se
expõem as reflexões da protagonista, baseadas em lembranças de sua
vida particular, ativadas por emoções ou sensações muito íntimas, e
expostas e reiteradas obsessivamente pelas repetições no discurso.
Considerando o caminho de São Paulo a Tijucopapo, que Rísia trilha
quase todo a pé, sozinha e silente, como quem paga promessa, enquanto
ainda ardem as feridas de uma desilusão amorosa, pode-se dizer que
esta é sua Via Crucis, alusão que confere relevância ao número de
capítulos do livro. Da mesma forma, esta sua estrada fúnebre é também
uma vereda de renovação; é um renascimento, levando-se em conta que
dura nove meses.
Apesar da justificativa da própria Rísia para a
aparentemente
desconexa
de
seu
discurso,
que
estrutura
apresentamos
anteriormente, há estudiosos que ainda hoje insistem em criticar a
transgressão da narratividade tradicional e linear realizada por Marilene
Felinto como se isto fosse um defeito da autora. Um deles faz a seguinte
consideração: ―Romance? As mulheres de Tijucopapo compõe-se de
muitos ingredientes que poderiam ter dado um romance, mas ficam
espalhados de modo pouco orgânico ao longo do discurso de Rísia. O
desfecho, principalmente, evidencia a falta de rumo do projeto narrativo‖
(PAULO, 2015).
O que há, na verdade, é um projeto narrativo de rumo alternativo. A
título de exemplificação, temos que, em certo momento do romance, a
personagem sofre um ataque, cai de sua montaria e desmaia. Isto suscita
238
na narradora reflexões sobre a simbologia da queda e uma lembrança
pontual de sua infância. Depois, revela: ―Quando eu acordei eu já estava
em Tijucopapo.‖ (FELINTO, 1982, p. 127). A ação relevante, portanto, já
havia ocorrido, porém foi deliberadamente omitida: enquanta Rísia estava
inconsciente, o grupo de Lampião lutou contra ―os macacos‖ (as
autoridades policiais) e a moça foi resgatada.
Não se pode sequer argumentar que ela não narra esses eventos
por estar desacordada, pois a Rísia narradora se destaca da Rísia
personagem ao não interromper o discurso mesmo durante o desmaio –
apenas optando por tecer reflexões e expor lembranças em vez de narrar.
Esta espécie de literatura, mais preocupada com os dramas
internos que com as tramas externas, não foi inventada por Felinto, é uma
forma de expressão experimental já típica da modernidade e que há muito
apresenta nomes de grande relevo, como James Joyce, Clarice Lispector
e embrionariamente no Brasil, o próprio Machado de Assis. É já uma
vertente própria, uma nova tradição estabelecida.
Entretanto, como todo bom autor, Marilene Felinto imprime
personalidade em sua obra – e particularidades em cada obra. Em As
mulheres de Tijucopapo, se a progressão do texto não se dá pela
continuidade de acontecimentos, encadeados pela lógica da causalidade,
ela se dá pelo encadeamento de sensações e sentimentos de Rísia, que
vêm à tona pela memória – o que chamaremos de ―discurso da memóriatrauma‖, suscitado pelo seu ―organismo trágico‖, que reage fisicamente às
memórias traumáticas.
3. Rísia: corpo e discurso
A organização do discurso de Rísia diz tanto sobre ela quanto seu
próprio conteúdo. Da mesma forma, suas ações e reações físicas e
orgânicas se relacionam intimamente às suas reflexões e de maneira
indissociável. Os
atos e
pensamentos obsessivos de
Rísia
se
fundamentam em situações traumáticas da infância e se perpetuam na
239
vida através do discurso, da repetição, e todos são expostos e justificados
em flashbacks, que dominam a narrativa junto com as reflexões acerca
dos acontecimentos e dos personagens do passado.
3.1. O organismo trágico
Afirma o psicólogo José Henrique Volpi, a partir dos trabalhos de
Wilhelm Reich:
Descartes, no século XVIII, dizia que as funções mentais eram
separadas do corpo, [...] Hoje não é novidade alguma que os
estados psíquicos como estresse, depressão, ansiedade,
medo, raiva, etc, favorecem o desenvolvimento e/ou a
manifestação de doenças orgânicas como úlceras, colites,
problemas cardíacos, alergias, doenças da pele e até mesmo o
câncer (VOLPI, 2005, p. 1).
Esta interferência mútua entre corpo e mente configura o conceito
reichiano de ―somatização‖, e pauta toda a trajetória de Rísia, radicalizada
em dimensões verdadeiramente trágicas. Tanto pelos acontecimento em
si quanto pelas reações muito e sempre passionais da personagem, além
das reações incômodas e incontroláveis de seu corpo; dentro e fora, Rísia
é explosiva.
As situações trágicas e traumáticas por que passa Rísia não raro a
levam a um estado de mal estar físico, chegando ao extremo da ânsia de
vômito ou ao próprio vômito. Seu nome já constitui uma ironia trágica – e
ligada a um aspecto físico do corpo humano – pela semelhança com o
vocábulo ―riso‖, relação insinuada a certa altura da narrativa: ―Quando
você morreu eu vou buscar, em todas as fotos de antes, os meus
sorrisos. Não terei mais risos?‖ (FELINTO, 1982, p. 61).
Os elementos trágicos, às vezes, são dados banais, que se
transmutam em experiência traumática devido à força com que a distância
temporal da felicidade golpeia a protagonista: ―Sempre tia trazia um doce,
um salgado, dos lanches do avião. Dos lanches do avião... Pois uma vez,
eu jantava no avião indo em viagem para Recife e me lembrei assim de
240
tia e de eu menina e as lágrimas caíram em bagas e ensoparam os
pãezinhos do meu jantar e eu solucei tanto que quase vomitei.‖
(FELINTO, 1982, p. 34).
Em outras ocasiões, uma questão moral traz a lembrança de
outras, tão ou mais graves e profundas, em geral ligadas à sua família –
que é também, de certo modo, um organismo, por seus laços
indesatáveis e pela inevitável influência da vida de um membro sobre a de
outro. Assim ocorre quando Rísia escuta de uma mulher que a tem por
confidente sobre seu caso com um homem casado:
Eu me agachara a pegar algo no chão quando ela entra e
passa por mim: - ‗Ontem dormi com ele‘, num sussurro. Eu
levantei devagar o meu rosto para o rosto dela era um rosto em
culpa e em cheiro de porra. Eu disse cheiro de porra e mistura
do mênstruo marrom que devia ser o daquela mulher. Eu disse
um cheiro imundo. Eu disse: as mulheres de meu pai! As
mulheres de meu pai! E saí em disparada para o banheiro e
vomitei quase até as tripas. Deve haver algo de ultra sensível
no meu estômago. Pois não pude olhar mais na cara daquela
mulher durante dias (FELINTO, 1982, p. 16-7).
Todo seu sofrimento lhe dói com tanta força que se reflete em
sofrimento físico, martírio; Paixão. Como já indicamos, sua Via Crucis
transcorre justamente por trinta e três capítulos, e ―este é um livro bíblico
porque interroga a origem da culpa‖ (CHAUÍ, 1982, p. 10), para Marilena
Chauí, mas Rísia busca a remissão de si mesma, apenas. Se Cristo se
sacrifica em prol da salvação do povo, Rísia encontra no povo, nas
mulheres de Tijucopapo, a força para sua própria redenção.
3.2. A memória-trauma
Rísia revela, no decorrer da narrativa, uma série de eventos
traumáticos de sua infância, que retornam incessantemente em outras
ocasiões de sua vida, como comer um lanche de avião a faz lembrar da
tia e a entristece. Este é um exemplo do quão recorrente é a
rememoração destes eventos a partir de uma sensação ou sentimento, e
de como isso devasta internamente a protagonista.
241
Volpi classifica a memória em dois tipos: ―a memória intelectual,
localizada na mente; a memória sensorial, localizada no corpo‖ (VOLPI,
2004, p. 1). Neste estudo, estamos nos baseando na noção da memória
sensorial, mas reelaboramos o conceito, cunhando ―memória-trauma‖, na
intenção de transpor o conhecimento da Psicologia para um contexto
literário específico, não subsidiário de outros saberes científicos, que lhe
são apenas acessórios, de modo a não realizar uma leitura senão literária
do texto.
A ―memória-trauma‖ é, neste sentido, a forma específica de a
personagem Rísia se relacionar traumaticamente com o mundo que a
circunda. Esta reação se intimiza com a ideia reichiana de que ―o conflito
psíquico possui um equivalente somático, uma couraça muscular. O
homem é afetado por seu corpo, mesmo quando os problemas pertencem
à esfera do psíquico‖ (VOLPI, 2004, p. 6). O que espanta em Rísia é o
caráter imediato e recorrente de tal processo, o que se evidencia através
dos muitos episódios descritos no romance Dentre estes, há o trauma do
natal. A narradora relata:
Estou indo de volta para Tijucopapo, vou passar por onde eu
estava em 1964.
Eu chorei como nunca em 1964, Natal.
Nossa árvore de natal era o esforço de mamãe para nos dar
um Natal. Já que papai tinha outras mulheres e não se
interessava por nós. Papai tinha outras mulheres. Papai não se
interessava por nós (FELINTO, 1982, p. 20).
Enquanto a passagem por um determinado local causa um
incômodo que remete ao natal de 1964, transportando a narrativa
automática e imediatamente ao flashback, a repetição do discurso reitera
o caráter traumático daquela ocasião e aprofunda sua dimensão trágica,
engrandecendo o efeito das traições do pai na menina Rísia. ―Sei que sou
uma pessoa atacada por lembranças atormentadoras‖, (FELINTO, 1982,
p. 37), ela reconhece, a certa altura.
242
Em outro momento, no flashback referente ao natal de 1964, Rísia narra o
ocorrido e explica esse trauma:
Às dez horas eu me pus em pensamentos de mamãe em
perigo. E se desse meia-noite e mamãe não tivesse vindo? [...]
Eu chorei como nunca. Eu berrei em soluços. Eu chorei como o
quê. [...] Mamãe desceu do ônibus eram dez e meia. [...] Ela
vinha calma e vagarosa. Eu sequei as lágrimas envergonhada.
Pois eu sabia, mamãe me olharia como não me olhou, me
abraçaria como não me abraçou. [...] Mamãe nunca me
abraçava (FELINTO, 1982, p. 24-5).
Através desta explicação, Rísia chega ao seu trauma fundamental:
os não-abraços; o desamor. A razão de Rísia ser infeliz e de ter sido má
com uma colega de escola, Luciana, que apenas desejava sua amizade.
A Rísia narradora reconhece as falhas da Rísia narrada e confessa: ―Eu
queria era descontar em Luciana o que tinham me feito em não me
abraçar, mamãe, papai, Lita‖ (FELINTO, 1982, p. 29). Dessa forma,
corrobora a influência de todos os membros que participam de sua
existência (familiar/social ou orgânica/biológica) para suas tragédias
íntimas.
4. Considerações finais
Segundo os estudos de Volpi, ―não existe uma área específica do
cérebro ou do corpo em que a memória fica armazenada. Ela é um
fenômeno celular, biológico e psicológico que envolve vários sistemas
neuropsicofisiológicos que funcionam em conjunto.‖ (VOLPI, 2004, p. 1).
Dessa forma, se justificam a integração entre o corpo e a mente de Rísia
– que se concretiza no discurso literário.
Devido mesmo à sua função de narradora, que a distância da
condição de narratária e de todas as sensações imediatas que a elas se
relacionam, Rísia demonstra excelente memória intelectual, sendo capaz
de recuperar diversos episódios de sua infância em detalhes. Mesmo que
sua memória intelectual bloqueasse essas lembranças, devido ao seu
243
caráter traumático (que parece, na verdade, ativar esta memória), sua
memória sensorial lembraria. Ainda de acordo com Volpi, ―o corpo não
esquece. Tudo o que foi vivido durante a infância, através de sensações,
permanece registrado. A somatização é uma forma de comunicação
desses registros ancorados no corpo‖ (VOLPI, 2004, p. 8).
REFERÊNCIAS
CHAUÍ, Marilena. ―Prefácio‖. In: FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982.
FALCÃO, Lula. ―As mulheres que defenderam Pernambuco dos holandeses‖. In:
Guia
do
Estudante,
2012.
Disponível
em:
<http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/mulheresdefenderam-pernambuco-holandeses-678267.shtml>. Acesso em: 01 out.
2015.
PAULO, Eloésio. ―As mulheres de Tijucopapo‖. In: Revista Pessoa, 2015.
Disponível em: <http://www.revistapessoa.com/2015/03/as-mulheres-detijucopapo/>. Acesso em: 01 out. 2015.
VOLPI, José Henrique. Somatização: a memória emocional ancorada no corpo.
Curitiba:
Centro
Reichiano,
2004.
Disponível
em:
<www.centroreichiano.com.br/artigos>. Acesso em: 01 out. 2015.
VOLPI, José Henrique. Quando o corpo somatiza os conflitos da mente. Curitiba:
Centro
Reichiano,
2005.
Disponível
em:
<www.centroreichiano.com.br/artigos>. Acesso em: 01 out. 2015.
244
AS FACETAS EM BÁRBARA DE MURILO RUBIÃO
Priscilla Neves
RESUMO: O objetivo deste artigo é fazer um comentário do conto ―Bárbara‖, de Murilo
Rubião. Pretende-se mostrar como o fantástico aparece no conto e a falta de hesitação
dos personagens diante dessas situações, bem como os aspectos, que tornam Barbara
retrato de uma sociedade individual e consumista.
Palavras-chave: Murilo Rubião. Bárbara. Literatura Fantástica.
ABSTRACT: The purpose of this article is to make a review of the story "Bárbara", Murilo
Rubião. It is intended to show how the fantastic appears in the short story and lack of
hesitation of the characters in such situations, as well as aspects that make Barbara
portrait of an individual and consumerist society.
Keywords: Murilo Rubião. Bárbara. Fantastic Literature.
INTRODUÇÃO
Murilo Rubião, nascido em Carmo de Minas começou sua
produção literária muito jovem. Embora tenha cursado direito e iniciado
carreira em jornalismo, seu verdadeiro envolvimento foi com a literatura,
fato que começou desde cedo, uma vez que seu pai e avô também eram
escritores, o que possibilitou contato com clássicos da literatura mundial e
a Bíblia na biblioteca de seu pai. Sua vida profissional ultrapassa o
jornalismo e literatura, pois também foi funcionário público. Assim dos
seus trabalhos, alguns mais burocráticos que os outros, podemos
destacar como relevante o de chefe de gabinete de Juscelino
Kubistschek.
Pautado em uma linguagem repleta de fantástico, seus contos
podem causar estranheza, uma vez que a realidade e a fantasia
caminham juntas, ato que nem sempre ocorre na literatura no Brasil.
Murilo Rubião escreveu aproximadamente cinquenta e três contos, e trinta
e três deles foram escolhidos para seus livros. Nesse elenco, temos
―Bárbara‖, que foi publicado no Rio de Janeiro em 1965. Um conto que se
inicia com a epígrafe bíblica: ―O homem que se extraviar do caminho da
doutrina terá por morada a assembleia dos gigantes.‖ (Provérbios, XXI,
245
16). Embora o trecho apontado, seja retirado da bíblia, não tem como
provar se há ligação cristã, mas talvez uma forma simbólica de mostrar o
tema a ser abordado no conto. Porém, se o leitor não for atento, essa
ligação pode não ser percebida. Rubião mostra que a criação literária
também se faz a partir de diálogos com diferentes textos.
Nesse contexto, os contos de Murilo Rubião apresentam
temáticas interessantes e que ajudam refletir assuntos de interesse social,
ao mesmo tempo em que nos transporta para a fantasia.
DESENVOLVIMENTO
1. ―Bárbara‖
O conto ―Bárbara‖ pode ser visto como uma metáfora repleta
de significações para as questões humanas. O fantástico é representado
por personagens incomuns que exemplificam e ajudam na abordagem da
temática de consumismo, como afirmação do ser humano. Para Tzevetan
Todorov, o sentido real da fantasia, está na falta de explicação racional.
Assim, o fato do conto transparecer emoção, mesmo com algo que seja
impossível de vermos, pode ser uma oportunidade de conhecermos o
fantástico. ―A fé absoluta, com a incredibilidade total, nos levam para fora
do fantástico, é a hesitação que lhe dá vida‖ (TODOROV, 2004, p.36). Ou
seja, o leitor hesita com o personagem uma situação inexistente ao
mundo real.
Os
contos
de
Murilo
Rubião
destacam-se
por
seus
personagens ímpares, criados intencionalmente, tal característica faz de
seus leitores, os próprios personagens. Em Bárbara, a narrativa passa em
1° pessoa, e imediatamente, somos despertados aos sentimentos do
personagem,
ora
defendendo-o,
ora
contradizendo-o.
Somos
o
personagem-narrador, que mesmo insatisfeito de sua situação de mero
companheiro não cansa de satisfazer os desejos da amada. É o próprio
absurdo, citado pelo personagem, que caracteriza o fantástico em
246
Bárbara. Acredita-se ser intencional a colocação da personagem, pois é o
leitor que se inquieta e espera que ao final, Barbara se satisfaça
inteiramente ou que seus desejos diminuam de complexidade. Barbara é
o retrato de uma sociedade consumista, mais capitalista e menos
solidária; já seu marido, é a imagem do sujeito conformista, aquele que se
cala para não sofrer as consequências das atitudes de Barbara e também
de si mesmo. Uma história de uma mulher movida a pedidos, os quais
eram satisfeitos por seu marido, como se nota no fragmento a seguir:
Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava.
Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto
a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante
dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se
renovavam continuamente. Não os retive todos na memória,
preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se
avolumando à medida que ampliava sua ambição. Se ao
menos ela desviasse para mim parte do carinho dispensado às
coisas que eu lhe dava, ou não engordasse tanto, pouco me
teriam importado os sacrifícios que fiz para lhe contentar a
mórbida mania. (RUBIÃO, 2010, p.27).
A partir desse trecho, podemos perceber como Bárbara é
individualista, uma vez que suas vontades, embora sem utilidades, era a
única coisa que a interessava. Evidente ainda, a forma como seu marido
se sentia preso às vontades da esposa, uma situação de causa e efeito:
Pedir e engordar. Se seus desejos eram realizados ela engorda, se isso
não ocorresse, ela definhava. Percebe-se uma grande desarmonia entre o
casal, uma vez que há grandes diferenças de sentimentos dele em
relação aos dela. Ela dificilmente demonstra algum tipo de ternura por ele.
Contudo, essa estranha relação não sofreu mudanças desde quando
eram namorados, pois ele sempre tentava atender aos pedidos de
Bárbara, mesmo se essa situação causasse sofrimento a ele, e satisfação
somente a ela;
247
Bárbara era menina franzina e não fazia mal que adquirisse
formas mais amplas. Assim pensando, muito tombo levei
subindo em árvores, onde os olhos ávidos da minha
companheira descobriam frutas sem sabor ou ninhos de
passarinhos. Apanhei também algumas surras de meninos aos
quais era obrigado a agredir unicamente para realizar um
desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto ferido, maior se
lhe tornava o contentamento. Segurava-me a cabeça entre as
mãos e sentia se feliz em acariciar-me a face intumescida,
como se as equimoses fossem um presente que eu lhe tivesse
dado. (RUBIÃO, 2010, p.27).
Uma relação marcada pelo prazer em ver o outro sofrer, já que
ela não importa em vê-lo se desdobrar para realizar suas vontades, ao
passo que ele, mesmo se prejudicando atende aos seus anseios. Com o
passar do tempo, os pedidos de Bárbara vão ficando cada vez mais caros
e difíceis de serem realizados. O seu tamanho e peso também aumenta.
Ela não se relaciona com o mundo que a cerca, não tem contato algum
com sua família, pois sua atenção é destinada a um novo pedido e
esquece-se das pessoas e de qualquer outra coisa. Uma vez, seu marido
pensou em não realizar mais seus pedidos, ameaçou separar, mas ela
logo ficou triste e angustiada. Ao descobrir que ela estava grávida, ficou
preocupado e implorou que ela pedisse algo;
Ingênuas esperanças fizeram –me acreditar que o nascimento
da criança eliminasse de vez as estranhas manias de Bárbara.
E suspeitando que a sua magreza e palidez fossem prenúncio
de grave moléstia, tive medo de que, adoecendo, lhe morresse
o filho no ventre. Antes que tal acontecesse, lhe implorei que
pedisse algo. (RUBIÃO, 2010, p.28)
Nem a maternidade faz com que Bárbara
demonstre
sentimentos; como se o fato de ser mãe não alterasse nada em sua vida.
O bebê nasce raquítico e ela se recusa a alimentá-lo. ―Enquanto ele
chorava por alimento, ela se negava entregar-lhe os seios volumosos e
cheios de leite.‖ (RUBIÃO, 2010, p. 29).
A narrativa segue com Bárbara sempre pedindo algo e o
marido se esforçando para realizar as suas vontades, que cada vez se
248
tornam mais difíceis. Um dia pediu o oceano, depois um baobá. Esse
pedido a deixou muito feliz. Fato que permitiu transparecer por parte dela
uma pequena amostra de carinho ao esposo;
Feliz e saltitante lembrando uma colegial, Bárbara passava as
horas passeando sobre o grosso tronco. Nele também
desenhava figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu debaixo
de um coração, o que muito me comoveu. Esse foi, no entanto,
o único gesto de carinho que dela recebi. (RUBIÃO, 2010,
p.30)
Porém, o baobá murchou e as folhas e ficaram secas. Logo se
desinteressou pela árvore. Como estava muito gorda, houve uma
tentativa de levá-la ao cinema, a campos de futebol a fim de desviar sua
atenção, mas nada adiantava. Ela estava terrivelmente gorda e como
sempre alheia ao marido e ao filho. Assim, Bárbara representa o
consumismo exacerbado que a desumaniza. Esse fato fica evidente a
prática de Murilo Rubião de usar o irreal para criticar o sentido vazio da
vida, a vaidade e o consumismo desenfreado. Embora esse recurso não
cause estranheza para os personagens, geralmente para os leitores é
motivo de espanto. Conforme Hermenegildo Bastos, no artigo Do insólito
ao espectral em ―Ofélia, meu cachimbo e o mar‖;
O fantástico é o gênero mais limitado por normas, mais do que
o realismo no sentido restrito de estilo de época. Os traços que
o caracterizam são obrigatórios, não podendo, pois, faltar.
Entre esses traços, aquele que Todorov chamou de hesitação
(1970, p. 175): o leitor e, às vezes os personagens não sabem
se os acontecimentos são reais ou não. O fantástico deve,
portanto, diferenciar-se do realismo. A diferenciação não se
consegue sem um rigoroso conjunto de normas. (BASTOS,
2001, p. 98).
Nem a diversidade de desejos realizados seria suficiente para
deixar Bárbara feliz.
Pelo contrário, servem apenas para engordar e
almejar mais e mais pedidos. Percebemos assim, o insólito no físico e no
psicológico de Bárbara, ela não demonstra vontade de ser uma pessoa
normal, pois mesmo tendo consciência que seu corpo aumentava com
249
cada pedido, ela não controlava seus anseios. Esse fato causa espanto
nos leitores, pois a metamorfose vivenciada pela personagem, não
coincide com nenhuma realidade humana. Qualquer pessoa obesa e que
gosta de viver normalmente, naturalmente tenha vontade de si cuidar, até
mesmo por problemas de saúde.
Apesar de seus anseios serem parecidos como ferramentas
para fuga em busca de felicidade momentânea, uma vez que seus
desejos geralmente são inúteis. O último pedido, porém foi diferente:
―Mas, a cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porem
uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la‖ (Rubião,
2010, p. 32). A atitude dela em pedir uma estrela e ele ir buscar (ação
absurdo), mostra como o fantástico pode ser simbólico, uma vez que
desejar uma estrela pode ser visto como algo sublime, além do real, mas
de grande significado. O fato de Bárbara querer ter uma estrela, algo
humanamente impossível de se conseguir, pode revelar uma busca por
uma felicidade impossível de se alcançar. Um gesto de desespero, pois
como ela já havia pedido coisas difíceis, porém mais alcançáveis,
demonstra que a procura da felicidade para ela está ligada ao possuir,
quando ela consegue, ela perde o interesse porque ela não descobre
essa alegria sonhada. O fato de uma pessoa ter tudo o que almeja, não
significa felicidade. Sentimento, que pode estar além de se possuir tudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desse breve estudo, foi possível perceber que o
fantástico no conto Bárbara, de Murilo Rubião, aproxima o leitor da obra,
pois a falta de estranheza dos personagens seduz e intriga o mesmo, já
que o conto aborda situações humanamente impossíveis. O fantástico
propagado no conto, além de causar espanto, serve de reflexão e nos
permite contato com o lúdico, mas sem nos tirar a capacidade de refletir
temas importantes como: consumismo, valores familiares e o amor.
250
REFERÊNCIAS
BASTOS, Hermenegildo José. Literatura e Colonialismo: Rotas de
navegação e comércio no fantástico de Murilo Rubião. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: Plano Editora: Oficina Editorial do Instituto de
Letras-UnB, 2001.
RUBIÃO, Murilo. Obra Completa. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. 3 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
251
SAINDO DO ESPAÇO DA REPRESENTAÇÃO:
A CRISE CONTEMPORÂNEA NA LITERATURA DE SÉRGIO
SANT’ANNA
Sarita Erthal45
RESUMO: Este artigo pretende abordar a escrita de Sérgio Sant‘anna a partir do conflito
entre a modernidade e da crise da representação. ―Saindo do espaço do conto‖,
integrante da coletânea O voo da madrugada, estará no centro deste debate. Em uma
escrita que extrapola os padrões tradicionais do conto, o autor anuncia que o espaço
literário/imaginário a ser desenvolvido é outro: o da dramaturgia. Esse texto traz em seu
cerne um jogo textual cujo pano de fundo se volta para uma das grandes preocupações
da humanidade: a vida após a morte. A literatura contemporânea, em sua nova vertente
do realismo, tende a mostrar em vez de relatar. Nesse sentido, o estudo em questão
objetiva analisar o modo com que Sérgio Sant‘anna concentra, em suas narrativas, junto
com o humor, com a ironia e com o finíssimo pastiche, a discussão sobre a
representação.
Palavras-chave: Sérgio Sant‘anna; pós-modernidade; representação
ABSTRACT: This article is a study of the conflict between modernity and the crisis of
representation at Sergio Sant'anna‘s writing. "Saindo do espaço do conto", part of the
collection O voo da madrugada, will be at the center of this debate. In a writing that goes
beyond the traditional standards of the short story, the author announces that the literary
space / imaginary being developed is another: the drama. Contemporary literature in its
new strand of realism, tends to show rather than tell. In this sense, the study in question
aims to analyze the way in which Sergio Sant'anna focuses on their narratives, along with
the humor, the irony and the fine pastiche, the discussion of the representation.
Key-words: Sérgio Sant‘anna; post-modernity; representation
Sérgio Sant‘anna concentra em suas narrativas, junto com o humor,
com a ironia e com o finíssimo pastiche, a discussão sobre a
representação. A realidade contemporânea é, então, pano de fundo para
a tentativa de o autor dominá-la por meio da linguagem, fato que justifica
o valor da literatura frente à filosofia, conforme os princípios de Rorty (in
LOBO, 2001). Não há, com isso, como deixar de estabelecer uma relação
entre a modernidade e a crise da representação:
(...) o autor do texto moderno é aquele que, independente de
uma camisa de força cronológica, leva para o princípio de
composição, e não apenas de expressão, um descompasso
entre a realidade e sua representação, exigindo, assim,
reformulação e rupturas dos modelos ―realistas‖. Neste sentido,
45
Professora de literatura e produção textual em Campos dos Goytacazes – RJ.
Mestra em Cognição e Linguagem pela UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro
E-mail: [email protected]
252
o que se põe em xeque é não a realidade como matéria da
literatura mas a maneira de articulá-las no espaço da
linguagem que é o espaço/tempo do texto. (BARBOSA, 1990,
p. 120).
A saturação de informações, típica do mundo pós-moderno, não é
mote para Sérgio Sant‘anna. Superficialmente, o autor trata de temas
cotidianos, no entanto, em profundidade, há outro nível de elaboração. A
violência, a ruptura de raízes, a alienação, a impessoalidade, o
empobrecimento da experiência e dos vínculos culturais afetivos, tais
quais nos apresenta Eagleton (1998), dissolvem-se em uma linguagem
pautada na imaginação. É perceptível a crise da narrabilidade da
experiência, conforme os preceitos de Walter Benjamin (1994), em um
contexto cultural no qual narrar experiências torna-se impossível. É,
portanto, por meio da imaginação que Sant‘anna consegue fugir dos
clichês pós-modernos sem deixar de lado o compromisso com a arte
literária.
O mimetismo, como procedimento do romancista, é derivado da
curiosidade (BENJAMIN, 1994, p. 43). Cabe, à observação meticulosa, o
modo com o qual os pormenores e as intimidades do mundo a ser
narrado serão transfigurados para o texto. Para que haja uma correlação
entre as semelhanças é preciso que exista entre elas uma conformidade
para, então, elucidar no receptor alguma correspondência. No entanto,
conforme Benjamin (1994, p. 109):
Nem as forças miméticas nem as coisas miméticas, seu objeto,
permaneceram as mesmas no curso do tempo; que com a
passagem dos séculos a energia mimética, e com ela o dom da
apreensão mimética, abandonou certos espaços, talvez
ocupando outros. Talvez não seja temerário supor que exista
uma direção essencialmente unitária no desenvolvimento
histórico dessa faculdade mimética.
O processo mimético – filogenético – ao qual se refere Benjamin
(1994) inunda o texto fictício com semelhanças de cenas do dia a dia num
caráter subjetivo entre texto e autor. Se, para Bakhtin (1997, p. 41), a
palavra está em todo ato ideológico, mesmo que os signos não sejam
253
expressos ou constituídos por elas – como em uma música, uma pintura
ou um gesto – elas os apoiam e os acompanham; pela interação social e
pelo diálogo, a palavra se precisa e se modifica.
Linda Hutcheon (2000) retoma Wittgenstein para dizer que ―as
palavras expandem seus significados ao longo de extensos períodos de
uso em contextos diferentes e específicos‖. Com isso, Hutcheon acredita
que é necessário levar em consideração o efeito cognitivo quando o
objetivo é analisar a ironia. O conceito de ironia é aberto à multiplicidade:
por se estruturar em relação a uma diferença, falta um referente, mesmo
que semelhante para que o número de significantes seja restrito.
Com relação à escrita de Sérgio Sant‘anna, a ironia é uma atitude
intelectual na qual ―o ironista fica sempre no topo, e o interpretador que
compreende (atribui) não fica muito abaixo, quer na ironia retórica, quer
na romântica‖ (HUTCHEON, 2000, p. 886). É como se ―grupos fechados‖
fossem criados em prol de uma linguagem enigmática sobre a qual só
teriam acesso a seu significado aqueles que tivessem a chave.
Ainda se, de acordo com Wittgenstein, um conceito só pode ser
desenvolvido quando somos inseridos em uma linguagem que o designe,
instaura-se, então, a crise do sujeito em consequência da própria crise da
representação. A representação, usualmente atribuída ao uso das
perspectivas que se relacionam ou interagem mutuamente, demanda
presunção por parte do emissor e receptor. Acaba por ser, então,
carregada de um cinismo comedido pelo próprio desgaste das imagens
existentes no mundo.
―Saindo do espaço do conto‖, texto integrante da coletânea O voo
da madrugada, de Sérgio Sant‘anna (2007, p. 557), traz em seu cerne um
jogo textual cujo pano de fundo se volta para uma das grandes
preocupações da humanidade: a vida após a morte. Em uma escrita que
extrapola os padrões tradicionais do conto, Sant‘anna anuncia que o
espaço literário/imaginário a ser desenvolvido é outro: o da dramaturgia.
Dramaturgia, porém, com as fronteiras entre o real e o fictício diluídas por
254
fazer emergir não só a linguagem representada pela palavra, mas o
próprio ―corpo-pergaminho‖, como se o enredo a ser dissertado se
presentificasse inteiro na verdadeira existência humana.
O que Sant‘anna ―tira‖ do espaço do conto, materializa-se no
imaginário do leitor como uma cena em construção. Em apenas três
parágrafos, diversas imagens são sugeridas em torno de um ―jovem
dramaturgo arruinado pela peste hodierna‖. A partir do título, Sant‘anna
supõe estar saindo do território ficcional, ―do espaço do conto‖, para se
voltar para os dramas subjetivos desse jovem. A forma nominal do verbo
sair, no gerúndio, indica que tal saída não se concretizara, e que está,
ainda, no decorrer de sua performance: a simulação se transformando em
simulacro.
Simulando a saída do espaço do conto, entra-se no gênero
dramático, cujo enredo é vivido pela personagem protagonista. O drama,
enquanto gênero e enquanto modo de vida, figura não no palco teatral,
mas no próprio teatro da vida: a escrita está ―encravada no corpopergaminho‖ (SANT‘ANNA, 2007, p. 557). Ainda assim, ficcionalizar não é
mais possível, quer dizer, não é apenas o real que é ficcionalizado, mas a
própria ficção. A simulação da ação ocorre a todo momento: ―[...]
acostumado a ver a vida como se ela se passasse num palco, mesmo a
sua tragédia pessoal, o jovem hospitalizado instala um outro jovem, que o
representa, no balcão daquele bar, e que pergunta ao barman [...] se ele
acredita em Deus‖ (SANT‘ANNA, 2007, p. 557-558).
O jovem é um sujeito cindido, de identidade fragmentada,
―compelido a sacrificar sua verdade e identidade em nome da pluralidade,
a que passam a chamar ilusoriamente de liberdade‖ (EAGLETON, 1998,
p. 49). Para Eagleton, esse fato é consequência da falta de alicerces no
mundo, o que o torna ―arbitrário, contingente e aleatório‖. O sujeito é
fundamentado pela própria falta de fundamento: sua liberdade não
decorre de sua indeterminação, mas precisamente porque ele se define
por um processo de indeterminação (EAGLETON, 1998, p. 49).
255
Com a crise da representação, o sujeito cindido é impossibilitado de
historiografar. Sua identidade é aberta, contraditória, inacabada e
fragmentada. Esse homem é levado pelas contingências. Não existe
aquele que busca a verdade e a transcendência. Não há motivos para
transcender. Há apenas a possibilidade de encerrar o vagar daquele
corpo-pergaminho pela vida e tentar descobrir se ela realmente existe
após a morte.
O narrador de ―Saindo do espaço do conto‖ é onisciente, crítico e
descrente neste mundo corrompido. Põe em pauta um homem com as
características esquizofrênicas inerentes à contemporaneidade, aliadas
às alucinações e aos delírios causados pela morfina. É nítida a sensação
de decadência da personagem, acostumada a ver a vida ilusoriamente,
―como se ela se passasse num palco‖. Seu estado de perecimento
percorre toda a narrativa, desde os aspectos físico e emocional do jovem
até os elementos melancólicos que configuram o espaço narrativo:
[...] mente, em devaneios de morfina, antevê germes saídos
desse corpo metamorfoseados numa orquídea sobrevoada por
uma borboleta; antevê, ainda, sua carne e espírito exumados
em fogos fátuos que são como os neons da noite, formando
afrescos angelicalmente sensuais, e o letreiro verde e vermelho
de um bar chamado A Mariposa, com a figura azul e amarela
do inseto batendo em movimentos tripartidos as suas asas e, lá
dentro, um homem com um bandoneon que toca um tango
lento dançado por dois casais na pista, [...] uma moça sentada
à mesa do computador [...] envia um poema para alguém em
outro canto do mundo; [...] fregueses no balcão pensam ou
trocam impressões sobre suas experiências pessoais, amores,
solidão, a doce melancolia daquele tango e Deus.
(SANT‘ANNA, 2007, p. 557)
A escrita pós-moderna de Sérgio Sant‘anna é evidenciada em
―Saindo do espaço do conto‖ justamente por não haver, nesse texto, a
narração tradicional de um conto. O primeiro parágrafo localiza o leitor
como se ele estivesse lendo um roteiro ou as indicações de uma cena em
construção. No segundo, continuando com as sugestões de algo
inacabado, o narrador atribui à personagem a possibilidade de interpretar
uma outra: ―o jovem hospitalizado instala um outro jovem, que o
256
representa, no balcão daquele bar‖. As personas se fundem, e o jovem do
balcão – o representado pelo imaginário do hospitalizado – passa a
figurar como o protagonista da cena. É ele quem observa a mistura dos
coquetéis do barman enquanto questiona-o sobre a existência de Deus.
No terceiro e último parágrafo do conto, o jovem é localizado,
novamente, no hospital. Pensa em seu gato morto há dois anos, o qual
figuraria na peça que ele escreveria caso houvesse tempo. Ao
protagonista da peça, seriam emprestadas as características do
dramaturgo hospitalizado: suas inquietações, seus sentimentos e suas
angústias sobre o vírus e a morte. O objetivo do rapaz é transmitir ao
público seu drama real, por meio de estímulos concretos: ―O público seria
posto em sintonia com esses estímulos concretos, que adquiririam um
peso maior por se saber que o personagem trafegava na rota da morte‖.
O gato, já habituado ao cenário, agiria naturalmente em cena,
contribuindo para o alcance da veracidade almejada.
O conto é dessacralizado. Se, inicialmente, tem-se a impressão de
que algo será narrado sobre um jovem hospitalizado, com o decorrer do
texto, a escrita se desterritorializa, torna-se simulacro em função da crise
da representação e do sujeito. A solidão e o niilismo se fazem presentes
em uma trama desvinculada de origens espaciais e temporais.
A desorganização temporal é entendida por Fredric Jameson
(2007) sob a luz da exposição lacaniana acerca da esquizofrenia. Ele
ressalta, porém, que o termo não deve ser tomado pela concepção
clínica, mas pela ruptura da cadeia de significação:
O que geralmente chamamos de significado – o sentido ou o
conteúdo conceitual de uma enunciação – é agora visto como
um efeito-de-significado, como a miragem objetiva da
significação gerada e projetada pela relação interna dos
significantes. Quando essa relação se rompe, quando se
quebram as cadeias da significação, então temos a
esquizofrenia sob forma de um amontoado de significantes
distintos e não relacionados. (Jameson, 2007, p. 53).
257
A conclusão de Jameson (2007, p. 53) é que, pela nossa
incapacidade de unificar passado, presente e futuro da sentença, somos,
de igual modo, ―incapazes de unificar o passado, o presente e o futuro de
nossa própria experiência biográfica, ou de nossa vida psíquica‖. Assim, o
presente é o instante perpétuo na pós-modernidade. Pela ruptura da
cadeia de significação, a experiência do esquizofrênico se desvincula da
temporalidade, e uma nova maneira de percepção é capaz de emergir
entre diferentes relações, ―algo que a palavra collage é uma designação
ainda muito fraca‖ (Jameson, 2007, p. 57).
Com base neste pensamento, David Harvey (2007, p. 58) afirma
que ―rejeitando a ideia de progresso, o pós-modernismo abandona todo
sentido de continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma
incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo o que nela
classifica como aspecto do presente‖. Já Philadelpho Menezes (1994, p.
180) vê a perda do sentido de história como uma ―perda do eixo da
contiguidade que afetaria a linguagem e a mentalidade atuais‖; e
continua:
Na incapacidade ou na rejeição de juntar sequencialmente os
eventos da história aparece a pós-história – assim como na
afasia do eixo da contiguidade o doente está impossibilitado de
justapor seguidamente as partes do discurso. A indisposição,
voluntária ou involuntária, de organizar sequencialmente o
discurso da história é a indisposição, então, de se proceder a
qualquer formulação discursiva (Menezes, 1994, p. 180).
Para Menezes (1994, p. 182), ―a perda da temporalidade na
linguagem (que se reflete na perda da temporalidade na experiência
vivida) reflete a cisão interna da linguagem e desta com a realidade‖. E
conclui que ―é pela cisão com a realidade da qual nasce que a linguagem
pós-moderna se marca, como se a própria realidade agora se separasse
de seus elementos constituintes‖ (Menezes, 1994, p. 183). Em ―Saindo do
espaço do conto‖, a linguagem constrói o imaginário esquizofrênico do
jovem, um sujeito de identidade cindida e incapaz de constituí-la a partir
258
do outro. Em sua angústia existencial, quer saber sobre uma questão
inerente ao ser humano: a existência de Deus.
A busca pela sua origem, cujo conhecimento é elemento
constituinte da identidade e subjetividade, vai além do contexto social
(relativo à origem familiar) ou territorial (relativo à pertença em alguma
localidade – cidade ou nação). Sua incerteza é a base de um dos maiores
mistérios da humanidade: de onde viemos e para onde vamos. Contudo,
é irônico pensar que tal dúvida é ressaltada pelo fato de o jovem estar à
beira da morte. Seria por este motivo que o rapaz quer saber da
existência de Deus? Se existe outra vida após a morte, seu único conforto
é reencontrar seu gato.
Sérgio Sant‘anna torna irônico o fato de (sobre)viver, a ponto de
fazer com que o jovem pense que só encontrará a felicidade após a
morte, quando se encontrar com seu bichano, ―morto há dois anos‖. A
personagem reluta em meio à crise da representação e simula, ainda, a
ideia de um palco e de uma peça na qual figuraria um felino de verdade:
―A peça deveria consistir num monólogo, mas o protagonista, a quem o
jovem emprestaria inquietações ou sentimentos seus, como que
conversaria com o gato‖. Do palco, a plateia ouviria relatos concretos,
―que adquiririam um peso maior por se saber que o personagem trafegava
na rota da morte‖ (SANT‘ANNA, 2007, p. 558). Diluído pelos simulacros
da pós-modernidade, o sujeito fictício ficcionaliza a própria vida,
transformando-a em palco. Torna-se, também, multifacetado pela
mutação ocorrida na sua psique. Existe, por parte desse jovem, a
necessidade de se desterritorializar para tentar buscar, na morte, a
territorialização. É irônico pensar sob esse aspecto, pois a transcendência
como uma das características da arte, é transmitida a um ser irracional, o
gato: ―um gato vive ainda quando nos ausentamos, ainda quando
morremos‖ (SANT‘ANNA, 2007, p. 558).
―Saindo do espaço do conto‖ narra a performance dos conflitos do
sujeito: o corpo-pergaminho é um sujeito linguístico tremendamente
259
exposto à violência, à deriva de sua própria carência e solidão. Resta, a
ele, a diluição nesse mundo desencantado e perverso.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud
e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo: ensaios de crítica. São
Paulo: Iluminuras, 1990.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad. Elizabeth
Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens
da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves.
16 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo
tardio. 2. ed. São Paulo: Ática, 2007.
LOBO, Luiza. Richard Rorty e a importância do pós-moderno no contexto
cultural
brasileiro.
2001.
Disponível
em:
<http://www.brazil.ox.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0016/9412/lobo21.pdf>.
Acesso em: 29 set 2010.
MENEZES, Philadelpho. A crise do passado: modernidade, vanguarda,
metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994.
SANT‘ANNA, Sérgio. 50 contos e 3 novelas. São Paulo: Companhia das
letras, 2007.
260
DE SUBSERVIENTE A INSUBMISSA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
EM A DANÇA DOS CABELOS
Shantynett Souza Ferreira Magalhães Alves46
RESUMO: Proponho refletir sobre as representações sociais que retratam e refratam as
histórias que partem da sujeição das personagens femininas, cujas vozes norteiam a
narrativa em A dança dos cabelos, do escritor mineiro Carlos Herculano Lopes. Três
gerações de Isauras assumem alinhavar os fragmentos da genealogia de mulheres de
uma mesma família resgatando uma história de submissão da mulher pelo patriarcado e
suas tentativas de rompimento com essa estrutura opressora. O feminino ressoa nesse
espaço de experimentação da escritura, dando voz ao texto a partir das representações
que nos cercam. O recorte que aqui se faz, é parte de um dos capítulos da dissertação
de mestrado em desenvolvimento acerca do romance supracitado.
Palavras-chave: Literatura de Minas; representações sociais; A dança dos cabelos.
ABSTRACT: propose to reflect on the social representations that depict and refract that
begin on the subjection of the female characters whose voices guide the narrative in A
dança dos cabelos from the writer Carlos Herculano Lopes. Three generations of
―Isauras‖ take baste the fragments of the genealogy of women from the same family
rescuing a history of women submission by patriarchy and its attempts to break this
oppressive structure. The female resonates within that scripture trial, giving voice to text
from the representations that surround us. The cut that is made here is part of one of the
chapters of the dissertation in development on the aforementioned novel.
Key-words: Minas literature; social representation; A dança dos cabelos.
As representações das mulheres são numerosas e milenares,
modulam a aula inaugural do Gênesis com a sedutora Eva, percorrendo a
tradição literária universal com a prodigiosa Penélope, na literatura
brasileira, com a dissimulada Capitu, ou adentrando a historiografia do
sertão nortemineiro com a guerrilheira sertaneja Dona Tiburtina. Mulheres
cujo silêncio era o comum. ―No início era o Verbo, mas o Verbo era Deus,
e Homem. [...] Aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e calar-se‖
(PERROT, 2005, p.9 e10), silêncio imposto pela ordem simbólica que não
se restringia somente a fala, mas também a expressão, gestual ou
escriturária, infringia
a mulher o processo de naturalização da
subserviência. Segundo Michelle Perrot,
O silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos
pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de
comportamento. Silêncio das mulheres na igreja ou no templo;
46
Mestranda em Letras/Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros –
UNIMONTES.
261
maior ainda na sinagoga ou na mesquita, onde elas não podem
nem mesmo penetrar na hora das orações. Silêncio nas
assembléias políticas povoadas de homens que as tomam de
assalto com sua eloquência masculina. Silêncio no espaço
público onde sua intervenção coletiva é assimilada à histeria do
grito e a uma atitude barulhenta demais como a da ―vida fácil‖.
Silêncio, até mesmo na vida privada, quer se trate do salão do
século 19 onde calou-se a conversação mais igualitária da
elite da Luzes, afastada pelas obrigações mundanas que
ordenam que as mulheres evitem os assuntos mais quentes —
a política em primeiro lugar —suscetíveis de perturbar a
convivialidade, e que se limitem às conveniências da polidez.
―Seja bela e cale a boca‖, aconselha-se às moças casadoiras,
para que evitem dizer bobagens ou cometer indiscrições.
(PERROT, 2005, p.9-10).
Assim, o conceito de gênero viabiliza uma discussão importante para
a compreensão da mulher, pois legitima e constrói as relações sociais. A
historiadora norte-americana Joan Scott em seu artigo ―Gênero: uma
categoria útil de análise histórica‖ define o gênero como ―um elemento
constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre
os sexos‖ e, como ―uma forma primeira de significar as relações de poder‖
(SCOTT, 1995, p.86). Em sua proposição teórica, a pesquisadora toma de
empréstimo alguns conceitos pós-estruturalistas elaborados por Jacques
Derrida e Michel Foucault, dentre os quais é relevante para esta pesquisa
o desconstrutivismo derridiano. Para Scott, é necessário desconstruir a
oposição binária masculino-feminino, o pensamento dicotômico e
polarizado sobre os gêneros que reflete sobre a lógica dominaçãosubmissão. Segundo Louro, ―ao aceitarmos que a construção de gênero é
histórica e se faz incessantemente, estamos entendendo que as relações
entre homens e mulheres, os discursos e as representações dessas
relações estão em constante mudança‖ (LOURO, 2003, p.35).
Teorias surgem atreladas as realidades concretas, desse modo as
representações sociais se apresentam como uma forma de se pensar e
interpretar a realidade cotidiana. Denise Jodelet, em seu capítulo
―Representações sociais: um domínio em expansão‖, pontua ser a
representação
social
―uma
forma
de
conhecimento,
socialmente
elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a
262
construção de uma realidade comum a um conjunto social‖ (JODELET,
2001, p.22).
Tânia Navarro Swain, em ―A invenção do corpo feminino ou ‗a hora e
a vez‘ do nomadismo identitário‖(2015), propõe analisar a representação
social das mulheres centrada sobre a maternidade, que institui uma
imagem da verdadeira mulher e cria um corpo sexuado, o corpo feminino.
Ainda que a pílula anticoncepcional fizesse com que as mulheres se
reapropriassem de seus corpos, para a historiadora, o Estado, a medicina
e a religião continuam a lutar por suas prerrogativas masculinas de decidir
sobre os corpos das mulheres. A sociedade cobra das mulheres a
reprodução e muitas delas sentem-se inferiorizadas, excluídas. Segundo
Swain é preciso refletir sobre a questão: ―Que corpo é este que me impõe
uma identidade, um lugar no mundo, que me conduz no labirinto das
normas e valores sociais/morais?‖
Na linhagem das vozes narradoras de A dança dos cabelos, a
iniciadora do clã assume a condição de ―boa esposa chocadeira e
criadeira‖. Uma história marcada pelo derramamento de sangue, que
revela, segundo Brun, ―o arcaísmo e a rudeza arquetípicos do
patriarcalismo rural agônico que, em algumas regiões do Brasil, ainda no
século XIX, apresentava-se na sua forma primária‖ (BRUN, 2008, p.23). O
espaço doméstico era o definidor da feminilidade, ser mulher seria
constituir-se e ser parte constitutiva desse espaço onde as mulheres
foram
submetidas
a
inúmeras
limitações
e
preconceitos,
sexo
domesticado, cuja maternidade era seu destino. Antônio se apropriou de
Isaura subtraindo-lhe o papel de sujeito e privando-a do controle sobre
seu próprio corpo. Nessa perspectiva a Isaura-avó representa crenças,
valores e atitudes do modelo de ―verdadeira mulher‖ do modo de vida
burguês, aquela que cumpre seu destino social e biológico.
Isaura é capturada pelos jagunços de Antônio que ao receber a
recusa de negociação das terras do pai de Isaura manda assassinar de
forma brutal a família da moça, e após o trágico acontecimento, ordena a
263
seus homens que capturem a adolescente. Ouçamos as palavras da
própria Isaura:
Mas à minha frente com aqueles dentes de ouro, o homem,
com as mãos estendidas e um chicote em volta do pescoço,
esperava que eu as beijasse. Enquanto os seus capangas, ao
redor, olhavam para mim, que de cabeça baixa, me recusava a
acreditar em tudo aquilo que só se converteria em realidade,
para meu desespero, quando um sujeito que mancava de uma
perna e tempos depois soube que se chamava Jó, e em
Paulistas havia matado um padre, chegou onde estávamos. E
após tirar o chapéu, pedir licença e gaguejar um pouco, disse,
repetindo três vezes a mesma frase: tudo pronto patrão
(LOPES, 2001, p.43)
Em Vigiar e punir, Michel Foucault delineia ―dois tipos de poder: o
que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a
própria lei‖ (FOUCAULT, 2010, p.76), Antônio legitima o segundo tipo ao
manter Isaura enclausurada dentro de um quarto, vigiada por seus
homens, onde a comida lhe era entregue por um buraco. As
necessidades, ela as fazia em um urinol que era recolhido diariamente
junto com as peneiras que ela tinha a obrigação de trançar. Uma negra
levava-lhe o banho, aos sábados, encarregada também de levar de vez
em quando algumas ervas cheirosas, e que aos poucos foi se afeiçoando
a Isaura revelando-lhe notícias de algum parente ou amigo, mas também
sobre as intenções de Antônio. Antônio, que na vigilância contínua
exercida sobre o corpo de Isaura deixaria em seu ventre de menina o
primeiro dos quatorze filhos.
É pertinente observar que, para Swain (2015), a ‗necessidade‘ da
maternidade, o ‗instinto materno‘ são criações sociais. Mary Del Priore,
em ―Magia e medicina na colônia: o corpo feminino‖ (2013), reforça a
construção social do corpo materno, ―a fêmea não devia ser mais do que
terra fértil a ser fecundada pelo macho‖, reproduzindo o discurso médico
do período colonial ― a mulher não passava de um mecanismo criado por
Deus exclusivamente para servir à reprodução‖(DEL PRIORE, 2013, p.8283). As representações sociais encontram fundamento na realidade
produzida e vivenciada pela sociedade, e de acordo com Jodelet, ―elas
264
circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em
mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em
organizações materiais e espaciais‖ (JODELET, 2001, p.17-18), e não se
pode deixar de observar que ―enquanto produtos sociais, têm sempre que
ser remetidas às condições que as engendra, ou seja, ao contexto de
produção‖(SPINK, 2000, p.121) .
Na linhagem das vozes narradoras, Isaura-mãe mostra-se mais
resistente à submissão com relação à Isaura-avó, mas não escapa as
matrizes identitárias do feminino. Sob a ditadura do silêncio, a segunda
Isaura presencia a traição conjugal do marido, além de ser rejeitada por
Antônio:
Porque você, até de deixar de me procurar, fantasiando
encontros meus com outros homens que nunca existiram, e se
ligar a outras mulheres, que forma tantas, sempre zombou dos
meus peitos caídos ou da gordura que aos poucos, sem que eu
tivesse controle, foi tomando conta de mim. Enquanto você,
com algumas rameiras, até aqui dentro de casa se encontrava,
e eu fingia não perceber (LOPES, 2001, p.20-21)
A
sexualidade
está
associada
ao
prazer
do
homem,
e
principalmente, a possibilidade masculina de buscar prazeres fora do
relacionamento conjugal. Diante da política familiar mineira que faz
apologia ao casamento e a sua indissolubilidade, Isaura fingia não ver,
entretanto, sabia o que esperava o marido quando ele depois de dar uma
desculpa qualquer a deixava entre os lençóis frios para ir se deitar com a
amante que talvez lhe fizesse as mesmas coisas de que Isaura gostava,
mas que nem sempre lhe foram permitidas. Antônio é capaz de deixar
múltiplas cicatrizes em Isaura ao se apropriar da violência denominada
por Bourdieu de ―simbólica‖, a violência insensível que humilha, ofende,
desvaloriza. Antônio anuncia a realização de um antigo e sempre adiado
sonho de sair conhecendo o mundo, Isaura é repelida aos empurrões ao
tentar convencê-lo em levá-la junto com a filha. A agressão física ou
psicológica se desdobra na narrativa onde é possível fazer releituras das
diferentes modalidades de violência, a violência conjugal, a violência
doméstica, a violência sexual, a violência psicológica. Cito:
265
Mas fui obrigada a me calar pela violência de seus gritos
seguidos da aridez de suas frases enquanto ele dizia: eu
cansei, Isaura, eu me cansei desta merda toda. [...] E tem mais,
eu não quero você, te rejeito como desprezei meu diploma e os
louvores e as medalhas de melhor aluno. Eu não gosto, nunca
gostei de você, que jamais me completou como homem e que
simplesmente — e isto não basta — rezou e abriu as pernas
(LOPES, 2001, p.28-29).
Dentre as diversas agressões sofridas, a violência emocional está
sempre presente. Isaura experimentara a angústia de dividir sua casa
com Penha, uma cigana pela qual Antônio se envolvera quando ela
chegou com seu bando em Santa Marta. Isaura ratifica sua insígnia
identificatória de dor e sofrimento quando o marido inicia uma longa
viagem que duraria anos, apenas retornado quando todo seu dinheiro já
havia acabado.
Embora pareça ser dotada de coloração submissa, Isaura-mãe
apresenta aspirações sexuais e afetivas excessivas para seu tempo. O
modelo passivo, subserviente e maternal cede espaço à força subversiva
capaz de inverter as perspectivas tradicionais. Isaura torna-se duplamente
transgressora, mantém um caso extraconjugal ao experimentar uma
relação homoerótica, o ―abominável pecado nefando‖. Em decorrência
das relações assimétricas, a infidelidade feminina não constitui objeto de
tolerância como a masculina, já que as mulheres não dispunham de seus
corpos e tampouco de sua sexualidade.
Em A dança dos cabelos, Isaura rompe com o padrão legitimado
pela visão judaico-cristã:
Passei minha infância e cresci como outras meninas, vendo
tantas coisas acontecerem. E algumas delas, quando já estava
casada, inesquecíveis: como a descoberta, aqui perto de mim,
daquela pessoa tão terna e do sol de agosto secando os
nossos corpos — enquanto as suas tranças cobriam os meus
seios, as suas pernas encontravam-se com as minhas — e aos
meus ouvidos você falava, eu te quero, e outros mimos ainda
hoje guardados a sete chaves (LOPES, 2001, p.19)
Os desejos de Isaura extrapolam os papéis tradicionais femininos,
visto que, de forma ambígua, ela se mostra resignada aceitando que o
266
companheiro mantenha aventuras amorosas fora do casamento, em
contrapartida, a personagem não se mantém fiel ao marido, mas revida já
que desde a resolução em se casar com Antônio, ela pressentia que
dificilmente alcançaria com Antônio o que ansiosamente esteve a procurar
nas horas seguintes àqueles sonhos:
Quando, sem sobre eles exercer qualquer controle, as minhas
mãos desciam pelo meu corpo molhado, que só viria a sentir
mais intensamente o prazer, em um final de primavera e
começo das chuvas quando descobri que, bem perto de mim,
existia uma pessoa muito bonita, com a qual — e esta foi a
minha maior aventura, e este o meu mais forte segredo — me
encontrei inicialmente nos porões, entre ratos que
denunciavam nossa presença, passando daí e livrando-nos
deles e do cheiro de mofo, para lugares menos sombrios nos
quintais, debaixo de umas árvores, onde ouvíamos as suaves
melodias de uma caixinha de música e sentíamos em nossos
corpos o vento frio da cachoeira, em cujas águas o sol dourou
ainda mais as nossas peles, deixando mais negras as suas
tranças e carnudos os seus lábios que sedentos buscaram os
meus e umedeceram minhas pernas nas horas em que, entre
gemidos e abraços, eu descobri aqueles que seriam os meus
breves momentos de amor, cujas lembranças, Marcela, são
talvez o único acalanto em noites como esta (LOPES, 2001,
p.72-73).
Percebe-se aqui um corte necessário entre a representação social
da mulher que encontra no casamento sua identidade em consonância
com as leis sociais e aquela que busca novos modelos de identificação
enfrentando os dogmas tradicionalistas que persistem em ―calar‖ as vozes
das minorias. Segundo Jodelet,
Geralmente, reconhece-se que as representações sociais —
enquanto sistemas de interpretação que regem nossa relação
com o mundo e com os outros — orientam e organizam as
condutas e as comunicações sociais. Da mesma forma, elas
intervêm em processos variados, tais como a difusão e a
assimilação dos conhecimentos, o desenvolvimento individual e
coletivo, a definição das identidades pessoais e sociais, a
expressão dos grupos e as transformações sociais (JODELET,
2001, p.22).
As representações sociais se constroem na realidade produzida e
vivenciada pelas sociedades ―com as interiorizações de experiências,
práticas, modelos de condutas e pensamento, socialmente inculcados ou
267
transmitidos pela comunicação social, que a ela estão ligadas‖
(JODELET, 2001, p.22). Essas representações variam de acordo com o
contexto em cada época, possibilitando conversões de experiências que
conduzem a novas visões devido às dimensões históricas, sociais e
culturais.
No intenso labirinto das histórias intercaladas das três mulheres, a
Isaura-neta, agente da escrita, se transforma em repositório da memória
familiar, procura romper com os diversos silêncios. Isaura-neta afirma não
querer ser herdeira das mesmas cicatrizes das gerações de mulheres de
sua família. Diferente das gerações passadas, herdeiras de um destino
cuja sina era a subserviência, destino de mulheres confinadas ao mutismo
e ao espaço doméstico, Isaura-neta tem aspirações que extrapolam esses
arquétipos. Isaura viaja para outros países, convive com diferentes
pessoas e emoções validando a assertiva de Simone de Beauvoir de que
―a mulher encerrada no lar não pode fundar ela sua própria existência;
não tem meios de se afirmar em sua singularidade e esta, por
conseguinte, não lhe é reconhecida‖ (BEAUVOIR, 1967, p.294). Sua força
subversiva a faz escolher diferentes parceiros sexuais, trabalha sem
escolher serviço tendo em vista superar o estado de dependência que
cerceava as mulheres ao controle masculino.
Diante do exposto, Carlos Herculano Lopes nos permite vislumbrar
―versões da realidade encarnadas por imagens ou condensadas por
palavras‖ (JODELET, 2001, p.21) por meio das três Isauras, três vozes
labirínticas, três isotopias, três significações o feminino ressoa nesse
espaço de experimentação da escritura a partir das representações que
carregam as marcas sociais, uma tradução, uma versão da realidade
vivenciada
pelas
mulheres
operando
uma
transformação
das
representações estereotipadas de mulher subserviente contrapondo a
mulher que renega sua condição passiva, e que pelo viés da transgressão
procura romper com o silêncio.
268
REFERÊNCIAS
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do Livro, 1967.
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cabelos. 2008. 215 p. Dissertação (Mestrado em Letras) — Programa de
Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná —
UNIOESTE, Cascavel, 2008.
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DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São
Paulo: Contexto, 2013, p.78-114.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 38. ed.
Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis,RJ :Vozes, 2010.
JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão.
In: JODELET, Denise (Org.). As representações sociais. Tradução Lilian
Ulup. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p.17-43.
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1995,
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Disponível
269
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www.direito.caop.mp.pr.gov.br/arquivos/File/SCOTTJoanGenero.pdf.
Acesso em: 05 de dezembro de 2013.
SPINK, Mary Jane. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia
de análise das representações sociais. In: GUARESCHI, Pedrinho A;
JOVCHELOVITCH, Sandra (Orgs.). Textos em representações sociais. 6.
ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p.117-148.
SWAIN, Tania Navarro (Org.). A invenção do corpo feminino ou ―a hora e
a vez‖ do nomadismo identitário.Textos de História. Brasília, v.8. n. 1-2,
2000.
Disponível
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em: 21 de maio de 2015.
270
em:
Acesso
INEXPLORADOS CAMINHOS POÉTICOS DE EMÍLIO MOURA
Viviana Pereira Silva
RESUMO: Emílio Guimarães Moura nasceu em Dores do Indaiá, Minas Gerais, em 1902
e integrou o importante movimento literário que se formou em Belo Horizonte na década
de 20. Seus versos singelos e abstratos soavam como uma música serena em meio à
agitação do mundo moderno; aparentemente desinteressado pela realidade objetiva, ele
construiu um mundo onírico e idealizado. Suas reflexões sobre o tempo, a vida e a
morte levam o leitor a repensar a condição humana e o papel da poesia no mundo
moderno. Críticos e poetas de sua época renderam-lhe muitos elogios e homenagens,
contudo, alguns fatores contribuíram para que Moura se mantivesse longe dos holofotes
da mídia e da crítica literária hegemônica. Apesar da reconhecida importância desse
poeta, sua obra ainda não foi devidamente apreciada, por isso este trabalho tem por
objetivo apontar algumas possibilidades para se trilhar o ainda desconhecido ―Itinerário
poético‖ de Emílio Moura.
Palavras-chave: Emílio Moura- Poesia - Modernismo- Minas Gerais.
ABSTRACT: Emilio Guimaraes Moura was born in Dores do Indaiá, Minas Gerais, in
1902 and joined the important literary movement that was formed in Belo Horizonte in
20's decade. His abstract verses sounds like serene music amid the bustle of the modern
world; apparently uninterested in objective reality, he built a idealized world. His
reflections about the time, life and death lead the reader to rethink the human condition
and the role of poetry in the modern world. Critics and poets of his time earneds him
many accolades and honors, however, some factors contributed to Moura had was kept
away from the media spotlight and the hegemonic literary criticism. Despite the
recognized importance of this poet, his work has not yet been fully appreciated, so this
study aims to point out some possibilities to tread the still unknown "poetic itinerary" of
Emilio Moura.
Keywords: Emilio Moura- Poetry - Modernismo- Minas Gerais.
Quem é Emílio Moura? Eis a pergunta que muitas pessoas, inclusive
nos meios acadêmicos, fazem ao ouvir o nome desse poeta, que é um
dos grandes representantes da lírica brasileira do século XX. A resposta a
tal questionamento, muitas vezes, resume-se em dizer que ele nasceu e
viveu em Minas Gerais, foi amigo de Carlos Drummond de Andrade e
integrou um grupo de intelectuais que se formou em Belo Horizonte na
década de vinte. Essas características, entretanto, não definem a
biografia, tampouco a poética de Emílio Moura, que, segundo Otto Maria
Carpeaux, é um poeta ―ainda não bastante admirado‖. (CARPEAUX, 1966,
p. 5)
Na verdade, muitas resenhas e ensaios foram feitos sobre a poesia
de Emílio Moura. Seus contemporâneos, ao examinarem sua obra, não
271
pouparam elogios, todavia, após sua morte, tornou-se esquecido pelos
leitores e pela crítica.
Laís Corrêa de Araújo salienta que a lírica desse poeta exige duas
leituras: uma ―encantatória‖, por conta da ―linguagem fluente, do
funcionamento de um ritmo leve e funcionalmente respiratório, da
imagética pura e despojada‖; e outra ―exigente, dolorosa e ontológica‖,
pois seus versos são perquirições profundas do pensamento e do
sentimento humano. (ARAÚJO, 1969, p.8) De fato, a leitura da poesia de
Emílio Moura exige tempo e persistência; o grau de abstração e
complexidade de suas ideias não combinam com a agilidade e o
automatismo do mundo moderno, e esse elemento, certamente, contribuiu
para que sua poesia não fosse devidamente apreciada.
Anelito de Oliveira ressalta que o poeta foi injustiçado pela crítica
devido à sua autonomia poética, pois não se filiou a nenhuma escola
literária e ―diante de autores como esses, a crítica tende realmente a se
ver ‗falida‘, sem metodologia eficaz a aplicar‖. (OLIVEIRA, 2002, p. 22)
De fato, a autonomia é uma marca na obra de Emílio Moura; ele não se
rendeu aos modismos do poema-piada, aos excessos na forma ou na
linguagem, nem declarou guerra à sintaxe, aderiu aos versos livres,
discretos
e
melancólicos,
elementos
comuns
em
outros
poetas
modernistas.
Temístocles Linhares abordou a dificuldade de enquadrá-lo em uma
escola literária e considera que o poeta é um caso à parte, que consolidou
sua obra, independente de qualquer influência ou modismo, e salienta
que esses casos isolados contribuem, significativamente, com a literatura:
―Talvez sejam eles os maiores rebelados, pois marcham sozinhos, à
margem de qualquer dirigismo‖. (LINHARES, 1969, p. 12)
Emílio Moura publicou vários livros, o primeiro deles, Ingenuidade,
em 1931. Em 1969 selecionou e organizou sua obra poética no livro
Itinerário Poético.
Sua poesia foi especialmente influenciada pela
tradição. O cunho universal de sua poética, a evocação à musa e o
272
acentuado lirismo de seus versos são heranças árcades; assim como os
conflitos, indagações e gosto pelas sombras, pela noite e pela neblina
reportam-nos ao barroco e à paisagem histórica de Minas Gerais.
Contudo, ele não se furtou às tendências renovadoras, pois, em sua
poesia, percebemos, também, fortes traços do Simbolismo, como o uso
de imagens e sons que criam um mundo ideal em contraposição ao
mundo material. Para conseguir esse efeito brumoso e abstrato, o poeta
também manteve a riqueza e a musicalidade da linguagem que
caracterizam os versos simbolistas.
Em sua poética, Moura abordou temas ligados à condição humana,
como o amor, a solidão e o medo da morte. Seus versos, em geral, são
vagos, abstratos; a marca mais forte de sua escrita são as interrogações,
que demonstram um sujeito lírico inquieto, desajustado com o mundo
moderno. Para visualizarmos esses elementos, tomemos como exemplo o
poema ―Pastor de Nuvens‖, de Habitante da tarde:
Navegaste em palavras e não viste
teu dia abrir-se em flor, a flor em fruto.
Diante do mar apenas procuravas
um marulho de concha a teus ouvidos.
Que estradas mais abstratas. Que cenários
de papel inventastes! Nunca viste
que outras paisagens, vivas, te sorriam.
Só de esquivas imagens te cercavas.
Navegaste em palavras. Vivas? Mortas?
Belas, apenas? Dóceis, tinham asas,
E era tudo uma vaga arquitetura:
tua amada, teu mundo, teu caminho,
teu rebanho de nuvens, tantas nuvens,
tua face no espelho, o próprio espelho.
(MOURA, 2002, p. 234)
Esses versos foram dedicados a Cyro dos Anjos, entretanto,
esboçam a sua própria poesia, pois apresentam elementos estéticos
presentes em toda sua poética. Os versos ―Navegaste em palavras.
Vivas?
Mortas?/Belas,
apenas?‖
273
exemplificam
os
inúmeros
questionamentos existentes em sua obra. O poeta das indagações
acreditava que seus questionamentos criavam no leitor um ―estado de
poesia‖ e de perplexidade diante do mundo. Em uma das raras
entrevistas que concedeu, ele declarou: ―minha poesia não afirma.
Afirmando, resolveria a priori tudo para o leitor. Interrogando eu ponho o
mundo diante do leitor‖. ( MOURA, 1969, p. 4).
Nesse sentido, o poeta
não estabelece verdades prontas, nunca há respostas para suas
perguntas; suas especulações instigam o leitor a fazer suas próprias
reflexões acerca do medo, da solidão, da vida e da morte.
Nos versos ―E era tudo uma vaga arquitetura: / tua amada, teu
mundo, teu caminho, /teu rebanho de nuvens, tantas nuvens‖, o poeta
parece descrever sua própria obra poética, marcada pela fluidez e
abstração. Suas palavras brumosas não apreendem o mundo real, antes,
criam um espaço onírico em que a vida, a amada e o próprio mundo são
idealizados. O título do poema, ―Pastor de nuvens‖, remete-nos à tradição
literária brasileira, uma vez que recupera a figura do pastor, presente na
literatura árcade, da qual Emílio Moura herda alguns elementos, como as
altas doses de lirismo e a presença inspiradora da Musa. Esse texto
também estabelece um diálogo com a poesia modernista de Portugal,
haja vista que Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, era um
―guardador de rebanhos‖.
A expressão ―pastor de nuvens‖ reporta-nos ainda a Drummond, que
se declarava o ―fazendeiro do ar‖. Ilca Vieira de Oliveira afirma que ―o
poeta das interrogações se identifica com o gauchismo do amigo, pois se
sente um ser torto e que também não encontra lugar no mundo‖.
(OLIVEIRA, 2014). Assim, em desajuste com o mundo moderno, o poeta
torna-se um pastor de nuvens, percorre as ―estradas mais abstratas‖,
cerca-se de ―esquivas imagens‖ e recorre ao sonho e ao mito por meio da
palavra poética, como forma de manter-se vivo em um mundo de
desamor, de guerras e de bomba atômica.
274
A palavra ―mito‖ é recorrente na poesia de Emílio Moura, e,
frequentemente, está relacionada à Musa, entidade mitológica que,
segundo Lílian Cristiane Moreira, é ―referência constante entre aqueles
que consideram a inspiração divina como a responsável pelo trabalho dos
poetas‖. (MOREIRA, 2011, p. 24). Por isso, em seus versos, o mito e a
musa podem ser associados à ideia de inspiração, eternidade e
transcendência.
Affonso Ávila afirma que ―a incidência mítica é de fácil constatação
na poesia de Emílio Moura, porquanto o próprio poeta, seguidas vezes,
nomeia nessa categoria simbólica os objetos articuladores de seu
universo mítico‖. Contudo, esse processo mitificador não se verifica
apenas na recorrência da palavra ―mito‖ e seus derivados, ele também se
manifesta quando o poeta transpõe os dados concretos, reais, para o
plano da vivência ideal. (ÁVILA, 1972, p. 63). Os elementos míticos da
poesia de Moura, portanto, manifesta-se em sua capacidade de traduzir
em poesia e idealizações suas experiências reais.
O verso final ―tua face no espelho, o próprio espelho‖ parece ratificar
a ideia de que o poeta está falando de si, uma vez que a imagem do
espelho é bem recorrente em sua obra. O espelho, na poética de Emílio
Moura, não é apenas um objeto capaz de duplicar ou, simplesmente,
refletir a realidade, é antes um instrumento que projeta outro espaço, em
que o eu é um outro (muitas vezes fragmentado); espaço ―entre o real e a
fábula‖, lugar em que se misturam o sonho e a fantasia, em que se pode
dar asas à imaginação. Talvez o espelho possa ser visto como uma
metáfora da própria poesia, já que, para Moura, ambos representam um
espaço de infinitas possibilidades.
Conforme mencionamos, o mistério e as frustrações da vida, o medo
da morte, a amada ausente, o mito e a poesia são os principais objetos de
sua poética. Tomemos como exemplo o poema a seguir, por meio do qual
o poeta faz algumas reflexões sobre o mundo, o homem e a própria
poesia.
275
Gênese
Há sempre uma hora,
uma hora densa,
uma hora inesperada,
em que a paisagem mais inocente
tem o fulgor de um fiat.
O tempo sonha que é espaço,
o espaço sonha que é tempo,
a realidade se compenetra de sua irrealidade.
O homem repensa o mundo.
O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus.
(MOURA, 2002, p. 268)
O título do texto, bem como as palavras “fiat” e ―Deus‖ revelam uma
intertextualidade com o livro do Gênesis, texto bíblico que narra a criação
do mundo segundo a tradição religiosa judaico-cristã.
Conforme essa
versão, a terra era vazia, disforme e coberta pelas trevas até que Deus,
cujo espírito pairava sobre as águas, deu vida e forma a todas as coisas.
Em seis dias, usando apenas o poder da palavra, Ele criou o dia, a
noite, o céu, a terra, os astros, as plantas e os animais. E, vendo que tudo
estava perfeito e harmônico, decidiu criar o homem à sua imagem e
semelhança para usufruir desse lugar paradisíaco.
No poema ―Gênese‖, entretanto, não percebemos a satisfação e o
otimismo sugeridos pelo texto bíblico, ao contrário, temos um tom
melancólico, em que o eu lírico nos reporta a um mundo que precisa ser
repensado pelo homem, que sente nostalgia de Deus e precisa se
refazer.
Em sua acepção mais simples, o termo ―nostalgia‖ quer dizer
―saudade‖; no senso comum, esta pode ser entendida como uma
profunda tristeza causada pela sensação de não podermos reviver algum
acontecimento agradável que marcou o nosso passado. Nesse poema, a
―nostalgia de Deus‖ não deve ser concebida como uma visão religiosa do
eu poético, uma vez que a poesia de Moura é conduzida pelo laicato, mas
como uma metáfora criada pelo poeta para problematizar a situação em
276
que se encontrava a humanidade. O eu lírico recupera a imagem do
mundo idealizado por Deus para manifestar a saudade que sente da
beleza, da harmonia e da paz que outrora reinavam no planeta. No
mundo moderno, o canto dos pássaros deu lugar ao barulho das fábricas;
o progresso devorou os rios, as matas e ar puro; perdeu-se a paz e o
equilíbrio. Tomado por bombas e guerras, o mundo retornou ao caos.
Nesse poema, o termo ―Gênese‖ pode ganhar, ainda, um sentido
mais amplo e associar-se à própria criação do texto poético. Destacamos
que o sujeito lírico enuncia uma ―hora inesperada‖, em que a paisagem
mais inocente ―tem o fulgor de um fiat‖. A expressão ―inesperada‖ e outras
de aproximado valor semântico aparecem com frequência nos poemas
metalinguísticos de Emílio Moura. Sempre que o poeta aborda seu fazer
literário, refere-se a uma força que o invade ―de repente‖, sem que a
esperasse, como nestes versos: ―Às vezes, subitamente, a poesia te
visita./Pura/ Infinitamente pura‖.
Essa força estranha e pura, que o invade subitamente e possui a
potência criadora de um deus, é a poesia. A palavra poética, na
concepção de Moura, tem o poder de criar mundos, de misturar tempo e
espaço, confundir realidade e irrealidade e, principalmente, tem a
capacidade de restituir ao homem a paz, a harmonia, os mitos e os
sonhos há muito esquecidos. Ela constitui, portanto, um meio de recriar o
paraíso perdido – ainda que no plano das ideias –, reinventar um novo
mundo, fazer nascer uma ―aurora de redenção‖.
Os versos de Moura não descrevem, nem representam a impactante
condição do mundo, no entanto, não ignoram as consequências que as
transformações políticas, sociais e culturais provocaram na humanidade.
No texto ―Emílio Moura - Palma severa‖, que serve de abertura para
o livro Itinerário Poético, Drummond assegura que o autor de Habitante da
tarde atingiu a razão última e secreta da criação artística, que é
―satisfazer à necessidade de muitos, cuidando encher apenas uma
carência pessoal‖. Isso nos leva a entender que a introspecção, a
277
melancolia e o desejo de viver em um mundo melhor não são elementos
exclusivos dos seus poemas, por isso o eu poético declara: ―Meu coração
se multiplica:/ agora é apenas meu coração que está palpitando no
mundo‖,47 portanto, o eu lírico toma para si as dores humanas; e não
obstante o caráter subjetivo de seus versos, o poeta expressa um anseio
da coletividade.
Em sua obra, Emílio Moura abordou temas clássicos, que nunca
saem de moda, cantou a vida, a infância e a história do nosso país,
transformou a realidade e as lembranças em palavra poética por acreditar
que ela perdure apesar de tudo, que ela resista ao tempo e à
modernidade.
Moura não cantou a superficialidade do mundo, cantou a
complexidade do homem; ao abordar os dramas, amores, medos e dores
que fazem parte da vida de todo ser humano, sua poesia deixa de ser
provinciana para se tornar um canto universal. Não é preciso, portanto,
encaixá-lo em nenhuma escola literária, como tentaram alguns críticos de
sua época.
O estudo da poesia de Emílio Moura ajudou-nos a compreender que
a relevância de sua obra consiste em ocupar um ―não-lugar‖ no mundo e
nas escolas literárias.
Sua obra dispensa classificações, ela carece
apenas de novos leitores que por ela se interessem, que fechem os
ouvidos à agitação do mundo e dediquem-se à sincera escuta dessa
serena música. Sua obra não precisa ser ―escolarizada‖, mas precisa ser
cuidadosamente investigada, pois ainda há muitos espaços inexplorados.
Ainda há que se compreender os mistérios que unem o sujeito lírico
à musa; investigar os fragmentos de vida que se refletem no espelho,
estudar a recorrência do platonismo, as imagens da infância, as relações
estabelecidas com a casa, com o pai; o diálogo com os clássicos. Enfim,
esses são apenas alguns exemplos de um rico universo que ainda não foi
47
Poema “Meu coração”, do livro Canto da Hora Amarga. In: MOURA, 2002, p. 62,
278
devidamente explorado e espera por leitores que queiram se enveredar
por esse itinerário poético.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Emílio Moura e seu Itinerário Poético.
Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 4, n. 137, p. 8,
abril, 1969.
ÁVILA, Affonso. As singularidades de um processo lírico. In: ÁVILA,
Affonso. O poeta e a consciência crítica. São Paulo: Summus, 1978. p.
63.
CARPEAUX. Otto Maria. Algumas opiniões da crítica sobre a poesia de
Emílio Moura. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.4,
p. 5, abril, 1966.
HOLANDA, Aurélio Buarque Ferreira de. Minidicionário da língua
portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 488.
LINHARES, Temístocles. Posição de Emílio Moura. Suplemento Literário
de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 4, n. 138, p. 12, abril, 1969.
MOREIRA, Lílian Cristiane. Nos encalços de Emílio Moura: encruzilhadas
de um Itinerário Poético. 2011. 228f. Tese (Doutorado em Literatura e
Crítica Literária) Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade
Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 18 de abril de 2011. p. 24.
MOURA, Emílio Guimarães. Itinerário poético: poemas reunidos. 2. ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 234.
MOURA, Emílio. Emílio Moura, um poeta perplexo. Suplemento Literário
de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 4, n. 137, p. 4-5, abril de 1969.
Entrevista concedida a Frederico Morais.
OLIVEIRA, Anelito de. Mundo de dentro. Suplemento Literário de Minas
Gerais, Belo Horizonte, v. 37, n. 1260, p. 22-23, mar. 2003.
OLIVEIRA, Ilca Vieira de. Ouro Preto e a meditação dos poetas Carlos
Drummond de Andrade e Emílio Moura. Disponível em:
http://www.textopoetico.org/index.php?option=com_content&view=article&
id=21&Itemid=14.
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i
Graduanda em Letras da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES;
participa da Iniciação Científica, como bolsista da FAPEMIG, do projeto ―Infância em
diálogos: a literatura infantil brasileira pelas letras de escritoras mineiras‖, sob orientação
da professora Dra. Rita de Cássia Silva Dionísio Santos.
ii
Doutora em Literatura, Professora da Graduação em Letras e dos Programas de Pósgraduação em Letras: Estudos Literários e Mestrado Profissional em Letras –
PROFLETRAS da Universidade Estadual de Montes Claros.
iii
Neste trabalho, decidimos manter a grafia da língua portuguesa da forma como se
encontra no livro, publicado no ano de 1916.
iv
Título original: Cantigas das Creanças e do Povo e Dansas Populares. PINTO, 1916.
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