Antes tarde do que nunca
Transcrição
Antes tarde do que nunca
Antes tarde do que nunca Antes tarde do que nunca ã PEDRO ALEXANDRE SANCHES - FOLHA ILUSTRADA - Novos CDs de Tom Zé e Mestre Ambrósio chegam ao mercado após meses de atraso; ex-maldito, músico baiano sai consagrado do festival Abril pro Rock 99 Fabiano Accorsi/Folha Imagem Tom Zé em seu apartamento em São Paulo Sem querer, a edição 99 do festival recifense Abril pro Rock transformou-se, no final de semana passado, em palco para alguns ajustes de contas. O baiano Tom Zé, 62, participante do grupo tropicalista de 1968 e a partir de então eterno enjeitado do mercado musical brasileiro, recebeu a maior consagração entre um elenco de 24 bandas e/ou artistas.Foi aplaudido ininterruptamente, por mais de 15 minutos, por platéia de mais de 5.000 pessoas que recusava a entrada da banda seguinte e clamava por um bis. 1/6 Antes tarde do que nunca Não veio o bis -segundo a produção, porque seu equipamento já fora desplugado-, mas o artista voltou ao palco para agradecer ("Vocês salvaram minha vida") e tomar nova saraivada de palmas. Durante o próprio evento, fora lançado aqui seu disco mais recente, "Com Defeito de Fabricação" (98). Gravado e editado (há sete meses) nos EUA, pelo selo do também músico David Byrne, não chegara ao Brasil a despeito de uma coleção de reações hiperbólicas da crítica americana (leia abaixo). "Post-Modern Platos", CD de remixes de "Com Defeito de Fabricação" por artistas jovens como Amon Tobin, High Llamas, Tortoise e Sean Lennon, continua sem previsão de lançamento nacional. A esta altura, Tom Zé se prepara para embarcar ao país adotivo, em 10 de maio, para turnê por Nova York, Chicago, Los Angeles, San Francisco, Boston e Minneapolis. Lá, sua banda de apoio será formada por integrantes do Tortoise, grupo de orientação eletrônica, de vanguarda caracterizada como "pós-rock". "Não entendi, pensei que eu ia abrir para eles. Talvez queiram conviver comigo, conversar, sei lá", comenta Tom Zé. TOM ZÉ NOS EUA "O músico que mais explicitamente continuou a estética experimental do movimento tropicalista no Brasil desvenda um novo álbum brilhantemente brincalhão." "New York Times" "O último herói do pop underground é um artista de 62 anos, classicamente treinado, vindo do interior do Brasil." 2/6 Antes tarde do que nunca "Rolling Stone" "Harry Patch, Frank Zappa, Captain Beefheart, Van Dyke Parks -Zé pode não compartilhar uma linguagem, nem mesmo um hemisfério com esses homens, mas compartilha a capacidade perceptiva. Como eles, encontra beleza na contradição, emancipação na ironia, consolo na arte." "Raygun" "Um dos grandes cérebros musicais do "avant-pop"." "Entertainment Weekly" " "Fabrication Defect" contém um punhado de canções absolutamente perfeitas." "Village Voice" " "Fabrication Defect" é evidência de que a música popular foi finalmente capturada pela visão de Tom Zé." "Billboard" Situação similar à dele viveu no APR a banda Mestre Ambrósio. "Fuá na Casa de Cabral" (leia texto à direita) estava pronto desde julho de 1998, mas esperou até agora, segundo a gravadora Sony por dificuldades de mercado e "para aproveitar as festas juninas" -o forró é um dos motes do grupo. 3/6 Antes tarde do que nunca Shows para grandes públicos como o do APR, Tom Zé se lembra de ter feito poucos. "Faço em locais menos "populáveis". Fiz shows grandes no Central Park (Nova York) e em Portugal. No Brasil, fiz nos 30 anos da tropicália, no Rio. Aqui, acho que foi só esse." No discurso de agradecimento, ele emocionou o público ao dizer que foi "enterrado vivo" duas vezes, tinha medo de ser de novo e agora se sentia salvo. Ele explica: "Minha mãe, que devia ter ido para a universidade, casou com um homem simples que era meu pai, em Irará. Quando nós nascemos, nós éramos uma figura estranha naquele tipo de imigração no espaço social. A família de minha mãe não queria que eu existisse". O segundo enterro ele data em 70, por "circunstâncias comerciais do tropicalismo". "O mundo às vezes faz armadilhas com as quais você tem que aprender a lidar. Foi como se eu nem existisse mais." "Falei com minha psiquiatra: "Doutora, é inacreditável como eu, depois de fazer esse show de muito sucesso, sinto uma alegria que não é do meu ego superando ninguém, mas de eu como parte da humanidade estar dando alegria a ela" ". Tom Zé fala sobre os colegas tropicalistas. Sobre Gilberto Gil, com quem disputava as expectativas de uma indicação para o prêmio musical americano Grammy deste ano (vencido, afinal, por Gil): "Hoje em dia não quero mais que ele seja desumano. Quero que seja humano e saiba que, mesmo eu sendo pequeno e ele grande, a gente concorre. Não quero mais dispensar ele de ser humano, esperar que seja um Deus. Não, ele é humano, concorre, disputa espaço". Alguma rivalidade aí? "Fica parecendo que estou com inveja -e eu tenho inveja mesmo, por isso não quero que pareça. Pode escrever isso. Mas é uma inveja saudável". 4/6 Antes tarde do que nunca A demora do novo CD em chegar ao Brasil passou por sua recusa em vê-lo lançado pela Natasha, de que Paula Lavigne, mulher do outro colega Caetano Veloso, é sócia. "Apesar de eles serem muito gentis comigo, eu achava que se fosse deixaria de explorar um dos capitais mais interessantes que tenho, que é ter ficado de fora a vida toda. Foi uma poupança que fiz, não interessa se fui obrigado. Fiz e não me queixei, aguentei -porque aguentar é fogo." Sobre a inversão de expectativas no APR -sua apresentação era esperada, antes de começar, como o "show cabeça" do festival-, ele comenta, citando a catarse de quando cantou "Taí": "De longe eu persigo isso, por toda minha carreira. Só queria fazer uma coisa popular, só sonhava com isso". Os olhos umedecem, ele vira o rosto. "Meus músicos sabem que quando uma canção por acaso provoca alegria na platéia a ponto de ela gritar acabamos imediatamente a música. Você não pode fazer mais nada que a alegria. Qualquer coisa que venha depois é anticlímax". De anticlímax também é sua relação com o microfone, outro sucesso no show de domingo -numa passagem, tirou o cinto da calça e se alternou entre fustigar a si e ao aparelho, como a metaforizar a relação de conflito com o sucesso. Encerrado o show, ele enfrentou minutos de pop star, com cerco fechado de fãs, autógrafos, imprensa, rádio, televisão, lágrimas. "Percebi a diferença pelos abraços. Há um tipo que chamo abraço Fafá de Belém. Ela abraça com os peitos, o osso ilíaco, os joelhos, as coxas. As outras pessoas botam o pescoço no seu ombro, empinam a bunda para trás, escondem o peito nos antebraços, se defendem." "Quando a pessoa está muito alegre, não tem esses resguardos, se encosta. As moças todas me abraçaram assim, mesmo as cuidadosas, de TV, que têm medo de parecer que estão 5/6 Antes tarde do que nunca paquerando artista. Estavam só alegres, como quem encontra um irmão que voltou da guerra. Eu voltei da guerra." Na ressaca, ele já fala de futuro: "Vou gravar uma porção de pequenos discos teoricamente independentes, com canções que por 20 anos fiz só em teatros, e que só podem ser feitas com violão e voz". Quem os lançaria? "Fui pego na rua, num sinal fechado, pelo Kid Vinil, para ir para a Trama. Embora não tenha contrato -o contrato deles é com Byrne-, nesse dia eu entrei numa gravadora, que eu não tinha havia 20 anos. Pode ser que a Trama se interesse, senão faço sozinho e vendo em show." Como concluindo, Tom Zé lança ainda um preceito seu: "É importante fazer um discurso não fechado. Muitas vezes as mensagens vêm fechadas e quase que ninguém pode intervir, furar a crosta de aço, a tartaruga em que artistas se protegem". É essa a voz de um velho perseguido pelo fracasso -e agora, quem diria?, pelo sucesso. Disco: Com Defeito de Fabricação Artista: Tom Zé Lançamento: Trama Quanto: R$ 18, em média 6/6