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POÉTICAS DO DESIGN CONTEMPORÂNEO: A REINVENÇÃO DO OBJETO1 Mônica Moura [email protected] UNESP | FAAC| Depto DESIGN Resumo O presente artigo visa discutir o design contemporâneo analisando as relações, aproximações e fusões existentes entre o design e a arte. Para isso, toma como referência os estudos a respeito do papel do objeto e as pesquisas desenvolvidas a respeito da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. Nessa investigação traz questões resultantes da observação e análise de uma seleção de objetos criados e produzidos perante o rompimento de fronteiras entre design e arte e que apresentam as características da contemporaneidade, revelando as reinvenções tanto dos objetos como as relações do homem em seus modos e estilos de vida. Palavras-chave: Design Contemporâneo; poética; objeto; reinvenção; transdisciplinaridade. Abstract This paper discusses contemporary design by analyzing the relationships, approaches and mergers between art and design. To do so, takes as reference the studies regarding the role of the object and the research about interdisciplinarity and transdisciplinarity. In this investigation raises issues arising from the observation and analysis of a selection of objects created and produced before the breaking of boundaries between art and design and the features of the contemporary world, revealing the reinvention of both objects as the relations of man in their moods and styles of life. Keywords: Contemporary Design; poetic; object; reinvention; transdisciplinarity. Introdução Vivemos em um momento repleto de mudanças que implicam diretamente nas manifestações de sentidos e de interpretações sendo estas influenciadas e geradas pelo desfacelamento de fronteiras entre áreas distintas, corporificadas e mediadas pela busca e pela atuação interdisciplinar perante as possibilidades transdisciplinares. Esses fatos implicam na mudança dos modos contemporâneos de pensar, produzir e de agir. Porém, ainda vivemos sob o jugo e a herança herdada do século XIX com relação a divisão existente entre as ciências, seus campos e suas áreas distintas. Atuamos em departamentos e áreas separadas nas ações profissionais e cotidianas, mesmo quando 1 Artigo publicado nos Anais do Seminário de Cultura Visual da Universidade Federal de Goiânia. Moura, Mônica. POÉTICAS DO DESIGN CONTEMPORÂNEO: A REINVENÇÃO DO OBJETO. III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, 2010, Goiânia. Anais do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual. Goiânia: Editora da UFG, 2010. admiramos e acreditamos no discurso transdisciplinar, seja ele denominado também como transversal, hibrido ou sincrético. Esses são alguns dos motivos que nos movem a colocar em discussão um tema delicado e controverso, tal qual é a aproximação e, porque não dizer, a fusão do design e da arte na contemporaneidade. Os discursos corporativistas insistem em manter essas áreas separadas, mesmo quando as produções atuais nos provam que a delimitação dessas áreas não mais existe, numa atuação e visão típica da contemporaneidade. O Design na Contemporaneidade Como sabemos, o design é um campo no qual sempre foram revelados os hábitos e estilos de vida do ser humano, bem como a produção estética em um processo entrecruzado com o tempo e que é proclamado por meio dos objetos, espaços, sistemas ou estratégias desenvolvidas e produzidas por essa área, mediante as diversas abordagens históricas. Refletir sobre o design implica especialmente no pensar sobre a contemporaneidade e nos reflexos e movimentos que ocorrem nos modos de criação, produção e na vida do homem que são explicitados no design contemporâneo. É importante ressaltar que a abordagem do design contemporâneo não é fechada e nem conclusiva, uma vez que viver ao mesmo tempo em que essas expressões e produções são construídas e reveladas, exige a incorporação da atitude da flexibilidade tanto no estudo e na pesquisa quanto na observação e análise. Essas devem ser sempre pautadas e abertas às novas dinâmicas e revelações. O momento no qual se insere o design contemporâneo é o presente, o momento atual no qual vivemos, mas onde também deve ser incluído o passado recente e as relações históricas e sociais, visando uma melhor abordagem de análise, comparação e interpretação. O design se faz por meio de expressões, projetos e produtos que compreendem uma dinâmica diferenciada e ampla, fato que comprova a cada vez mais a sua relação com outras ciências para a leitura mais precisa e completa desse campo que, devido a sua complexidade, exige o diálogo e a inter-relação com outros campos de conhecimento e com outras linguagens. Desse modo, as ciências humanas e sociais, em suas diversas áreas, tais como, a história, a sociologia, antropologia, a filosofia, a comunicação e a semiótica, entre outras, constituem a amplitude de caminhos para análise do design contemporâneo onde as questões transdisciplinares se constituem como fundamento para o entendimento dessa área. O design contemporâneo é marcado e constituído pelo rompimento de fronteiras e integração entre as diversas áreas dialógicas a esse campo, tais como, a arte, a arquitetura, a engenharia, a moda, a sustentabilidade, a ergonomia mais diretamente e, outras que parecem distantes, mas que também atuam em conjunto tais como, a medicina, a física e a biotecnologia. O modo de atuação se faz principalmente por meio da noção de coletivo. Ou seja, em duplas, trios ou grupos de criação. São novas formas de organização de grupos sem hierarquias que reafirmam o desfacelamento do conceito de autoria e confirmam a interdisciplinaridade presente na ação projetual e política. Também lida com as questões da diversidade, multiplicidade, confronto e visões de mundo diferenciadas, interação entre imaginários e culturas, novas construções materiais e simbólicas, multidimensionalidades, fragmentações, metamorfose e hibridismo são presentes como elementos característicos dos discursos desenvolvidos e construídos no cotidiano e esses dialogam com os olhares mais atentos. Além disso, ocorre a diluição dos segmentos da área do design no sentido de um pensar o design como um campo maior e como uma questão mais abrangente, incorporando atitudes e desafios políticos e sociais e deixando de lado a fragmentação das áreas e subáreas divisórias em busca de um pensamento projetual mais amplo e consistente. Na contemporaneidade o design tem configuração diversa, com inúmeras possibilidades de relações e associações. É uma grande rede, um tecido entrelaçado e articulado, repleto de signos, significações e semioses resultantes do entrelaçamento e articulação de signos que geram linguagens diferenciadas. Essa grande rede flexível atua na esfera da informação, comunicação e conhecimento, tendo como o foco central o homem, as dinâmicas e produções culturais que o envolvem. Um universo plural e aberto. Um campo amplo e fértil que retrata e impulsiona os hábitos, estilos de vida, o viver e estar no mundo, escrevendo a história do cotidiano. O Objeto como Signo Vivo do Design Para falar do design contemporâneo em sua relação de aproximação e fusão com a arte vamos enfocar nesse texto o objeto como o resultado da criação, expressão e produção, mas também como o elemento eleito para compor o conjunto simbólico do ser humano, que nessa relação pode ser também denominado de usuário. Elegemos o objeto como uma forma de considerar as relações expandidas e as produções realizadas de forma mais ampla do que a significação trazida pelas nomenclaturas: produtos, peças ou obras. Afinal, produtos carregam o estigma de que são feitos apenas para vender; peças são parte de uma linha ou coleção, geralmente destinadas ao mercado de modo a atender as variações de gostos e opções do público-alvo e obras carregam em si o significado do intocável, aquilo que à primeira vista não pode ser questionado, pois foi nomeado no universo dos distintos e eleitos. Por sua vez, os objetos são aquém e vão além disso tudo. Um objeto é uma coisa, é algo que é colocado diante de nós. É aquilo que existe fora de nós e que estabelece uma relação de mediação entre o homem e a sociedade. Um objeto constrói o ambiente carregando valores porque são portadores de signos. Objetos despertam pensamentos, desejos, ações e também são reveladores do nosso modo de viver, dos nossos hábitos e de nossas atitudes. Objetos servem de mediadores entre situações, atos e pessoas. Podem assumir o papel de produtos ou obras, mas vão além disso, carregam uma dinâmica que transforma, que gera novos pensamentos e relações, suscitam perguntas, despertam e provocam novos e outros olhares, novas e outras relações do ser com a coisa em si. Na relação do objeto com o homem se constituem valores implícitos que levam a construir e organizar coleções pessoais e até institucionais devido à importância que o objeto exerce em nossa vida cotidiana. Mas, como podemos na contemporaneidade separar e distinguir os objetos de arte e os objetos de design? Figura 1: Objetos de Jacqueline Terpins; Timo Sparneva; Marcel Duchamp. Ao observarmos as imagens acima somos instigados a refletir sobre o que ou sobre quais as características que as separam esses objetos do universo da arte e do universo do design. Ou serão esses objetos exemplos típicos de uma fusão, da integração dos discursos e das práticas? Serão a revelação de um novo modo de olhar e de se relacionar com os objetos, com a cultura e com os campos de conhecimento? Serão esculturas ou vasos? Qual a função principal? Utilitária ou estética? Confundem-nos ou possibilitam que, ao observá-las, nos voltemos para nosso interior, ao sentir, ao fruir a sua beleza ou a sua estranheza? Um vaso teria o papel de propiciar prazer estético? Porque não associar a função à poética? Será que uma ampola não carrega questões prementes ao design, tal como a relação entre a forma e a função, o desenvolvimento industrial, as relações de precisão relacionadas a seu uso em laboratório? Um porta garrafas não seria outro exemplo de objeto direto do campo do design onde formato, material e finalidade devem estar inter-relacionadas para atender as necessidades do cotidiano do homem? Timo Sparneva projetou o vaso escultura (figura 1, item a.) questionando já nos anos de 1950 as aproximações do design e da arte. Esse vaso denominado Orkidea foi produzido industrialmente pela empresa Litalla, mas é conhecido como vaso escultura de Sparneva. Por sua vez, a designer Jacqueline Terpins declara a importância de ter desenvolvido seus estudos tanto no campo da arte quanto no do design e, além disso, a conviver e aprender com os vidreiros, artesãos do vidro. Essa associação de conhecimentos diversos a levaram a desenvolver projetos e objetos que carregam em si as questões transdisciplinares e também as da relação entre a arte e o design de forma implícita. Tal como o vaso que observamos acima, é uma escultura, mas também é um produto. É um objeto de fruição estética, mas também de finalidade prática-utilitária. Nessa fusão, esse objeto, essa criação carrega uma poética própria. A história nos comprova que Marcel Duchamp foi um mestre ao recontextualizar objetos do cotidiano, digam-se objetos de design para o campo da arte, ao colocá-los nos locais instaurados da arte, os museus. A ampola foi denominada por ele como Ar de Paris 50 cc. e assumiu o papel de ready-made em 1919. O objeto Ar de Paris e a ação de Duchamp influenciaram muitos outros designers, tal como Kenzo ao lançar seu perfume com o mesmo nome e inundar a sua Maison francesa com os odores de arroz japonês cozido. Pura associação de diferentes culturas e universos distintos integrados em uma ação não apenas de criação, mas também de marketing. Outro exemplo de Duchamp é o porta garrafas de 1964, outra recontextualização de objeto que dialoga e aproxima o design e a arte. “Arte, deve-se repetir a cantilena, não é uma questão de assunto, mas de tratamento formal de um determinado assunto. Ademais, desde que Marcel Duchamp realizou o primeiro ready-made, ficou patente que um dos aspectos basilares da produção artística era o questionamento de suas fronteiras. Vale dizer que muito do que hoje se faz em nome da arte é contra as compreensões correntes do que seja arte. Vai daí que discutir se design (gráfico) é arte ou não é perder-se em uma falsa questão. Discute-se a pertinência de um rótulo e, em contrapartida, perde-se de vista a densidade da dimensão estética de um determinado produto, uma dimensão que jamais poderá ser reduzida às demandas funcionais, sob pena de perder seu interesse no âmbito da cultura” (Farias: 1999, 29). Instalação do quê? Instalações são manifestações presentes na arte desde os anos de 1960 e muito exploradas na arte contemporânea. Segundo Junqueira (1996) abrangem um sem número de experiências diversas na arte onde o espaço é associado a outros elementos visando catalizar várias qualidades e condições ali manifestadas e integram a experiência do sensível, completando-se com a presença e fruição do observador. Figura 2: Instalações de Arte ou de Design? Se observarmos os três exemplos de instalações acima, provavelmente, só poderemos indicar se elas pertencem ao campo do design ou ao campo da arte se soubermos em qual exposição ou espaço ocorreram. Porém, é importante lembrar que locais instaurados para a arte, tais como museus, galerias e espaços culturais, na contemporaneidade também abrigam exposições de design e de outras manifestações pulsantes do nosso tempo, como a moda. E há inúmeros museus especializados em design distribuídos pelo mundo. Então, até os locais de arte tornaram-se híbridos e não nos servem como referência única para distinguir design e arte, ao contrário, aproximam e fundem esses dois campos. O primeiro exemplo de que vamos tratar e descrever é um espaço coberto por uma parede e um piso de tecido que pode ser explorado. Essas paredes de tecido contem diversas divisões dispostos como bolsos onde se encontram objetos, tais como cartas, fotos, mechas de cabelos, papéis com anotações e colagens e documentos. Ao observarmos mais detalhadamente esse espaço de tecido percebemos que ele é dobrável e transforma-se em uma sacola, possível de ser carregada, transportada. O titulo da instalação é In Situ (no lugar) e deriva das experiências mediante catástrofes e situações de risco quando devemos abandonar rapidamente nossas casas. Especialistas indicam que em situações dessa natureza o mais importante é levar consigo as lembranças, recordações e documentos fundamentais, pois são essas três questões que nos ajudam a reconstruir a vida, tanto emocionalmente quanto nas questões práticas. Fotos, lembranças e outros pertences desse gênero nos dão força psicológica e emocional para retomar a vida e seguir em frente. Outra situação ocorre quando adentramos um espaço escuro com sons e ruídos da natureza e no meio do ambiente vemos uma seqüência de imagens que nos envolvem, a partir de abstrações e figurações somadas aos sons e ruídos, numa relação de conexão com o ambiente e a força da natureza: água, folhas, lama, pássaros, peixes. O último exemplo se dá quando entramos em um estreito túnel escuro, todo pintado em preto e só ouvimos sons de água jorrando. Andamos mais um pouco nesse ambiente e vemos uma seqüência de jatos de água e os nossos sentidos são estimulados tanto pela questão cinestésica quanto sonora e visual. O primeiro exemplo, In Situ é uma proposta desenvolvida pelas designers uruguaias Irene Maldini e Fabiana Aragão para a Mostra Internacional de Design que teve a curadoria da italiana Paola Antonelli e foco temático denominado ‘O Ninho Seguro’ que propunha a discussão sobre a segurança e a violência nas cidades como metáforas dominantes deste século e também a respeito do papel do design na busca pela segurança e proteção a partir de olhares diferenciados e diversas culturasr. Foi realizada nas unidades do SESC Pinheiros e Santo André, em São Paulo, no ano de 2006. O segundo exemplo é uma vídeo-instalação das artistas e fotógrafas Gabriela Ferrite e Andréa Pesek a partir de uma vivência no Pantanal e foi exposta no Museu Histórico do Pantanal, no ano de 2007. Cabe ressaltar que no terceiro exemplo ao chegar ao final do túnel via-se a real intenção: o lançamento de uma nova linha de duchas. O local era a Zona Tortona, bairro de Milão onde ocorrem diversos lançamentos de produtos na semana da feira do móvel de Milão. Vale lembrar que a feira de Milão é considerada atualmente como a Meca do design. Todos os exemplos carregam características típicas de instalações de arte e poderiam integrar as principais bienais de arte contemporâneas. Porém, duas delas estão no âmbito do design, seja o design contemporâneo de uma linha mais conceitual, como é o caso do objeto para catástrofes, seja o design destinado apenas ao cunho comercial e utilitário, como é o caso da ducha. Os elementos, as situações, os espaços, o estímulo das sensações, as propostas de interação com o observador são comuns tanto nas instalações de design quanto na instalação de arte. Portanto, os universos arte e design não apenas dialogam, mas se integram na contemporaneidade a ponto de não conseguirmos distinguir claramente seus limites e suas fronteiras. Então, instalações apresentam reflexos e reflexões sobre o sensível, do ser humano para o ser humano, dos objetos e espaços para o ser humano acionando sua sensibilidade e interiorização no pensar sobre o mundo e sobre si mesmo. Poéticas do Cotidiano No design contemporâneo os objetos são carregados das questões de interrelação entre arte e design. Desde o envolvimento e a interação das pessoas no universo da experenciação e do sensível até no lidar com a construção de discursos, provocar questionamentos, despertar para vivências e interpretações pessoais e subjetivas, estimulando a experiência do sensível e da fruição estética, constituindo novas poéticas. Figura 3: Criações de Matthias Megyeri, Alemanha e Simone Mattar, Brasil. Objetos de design se aproximam da arte ao trazerem discussões contemporâneas sobre questões sociais, políticas e ao refletir e questionar a vida do homem nesse momento e nessa sociedade. Matthias Megyeri, designer alemão, discute a insegurança e a crueldade atribuindo novo conceito ao que é considerado normal na nossa sociedade: as grades de segurança e os recursos utilizados para a proteção. Dessa forma, explora sensações e percepções humanas relacionando o que é aparentemente ingênuo, como inocentes figuras de bichinhos (coelhos, pingüins), seqüências de pequenas borboletas que lembram flores e o perfil de imagens de cidade que lembram o clima natalino: pinheiros, casas com chaminé, igrejas, fábrica, e um pássaro que parece ter pousado em um muro para observar o silêncio e a singela paisagem. Discute a nossa fragilidade e ao mesmo tempo a nossa crueldade com o outro, na busca por nossa proteção e segurança. Megyeri diz que “(...) designers devem oferecer soluções para as necessidades e problemas reais contemporâneos (...) uso os produtos como veículo para explorar questões sociais relevantes com abordagens críticas.” (Megyeri: 2006, p. 6) Por outro lado, Simone Mattar brinca e explora o efêmero, as sensações, o despertar dos sentidos conectando pessoas e objetos. Faz isso criando uma luminária de gelatina, denominada Gelúmina. Esse objeto é para ser visto, sentido e tocado, degustado, experimentado. Essa designer diz que os objetos que cria são “formas de pensamento que podem ser interpretados” (Mattar: 2006, p.6). Podemos inferir que tanto a arte quanto o design surgem da interferência e do conhecimento humano sobre a matéria que, somada ao universo do sensível e da estética, dá forma ao objeto. Na contemporaneidade os objetos não atendem mais apenas as questões da função e da utilidade e sim levam a fruição, a vivências, o experenciar e experimentar outras questões e relações que vão além do objeto em si mesmo. Figura 4: Objetos de Manus e dos Irmãos Campana, Brasil. Vejamos esses objetos: uma xícara alada, um ovo alado e uma série de piaçavas sobre uma base acrílica. O ovo sempre foi símbolo do design, pois evoca a perfeita relação entre forma e função, embalagem e conteúdo. E a maioria das xícaras contem asas, local onde as seguramos, podemos pegar mais facilmente. Então, a dupla Manus confere releituras a esses objetos e as destacam com o acabamento dourado. São asas que propiciam e falam da liberdade de criação e expressão, asas que possibilitam dar liberdade ao pensamento. Uma xícara que não é apenas para tomar um café e sim navega entre o lúdico e o irreverente destacadas pelo teor do dourado que contrasta com a porcelana branca. O objeto de acrílico é na verdade uma fruteira, mas não uma fruteira qualquer, não armazena apenas frutas e sim questiona pela estranheza do objeto, pela relação tátil do liso e do áspero. Por nos lembrar as buchas de limpeza pesada que são feitas para esfregar e contrapõe a transparência e certa leveza do acrílico que aparece aí remetendo ao cristal. Aquele cristal das fruteiras clássicas. Mas, os seus criadores também a remetem para o universo cultural ao denominá-la de Xingú lembrando os cocares e as diademas utilizadas por essa tribo, povo da floresta. Os Campana, entre outros designers brasileiros, foram eleitos nesse universo da arte e do design. Eles dizem que subvertem a utilidade dos materiais e a função dos objetos abrindo destinos novos para eles. Dessa forma criam objetos de experimentação em um mundo inundado pelo discurso da criatividade e inovação. Foram os primeiros designers brasileiros a terem peças e coleções expostas em museus internacionais e nacionais. Nesse aspecto tanto o professor, crítico e curador Agnaldo Farias quanto o designer e coordenador do Sistema Nacional de Cultura do MinC, João Roberto Peixe apontam e discutem muito bem essa relação sobre o design no museu, como podemos ver a seguir. “(...) passados aproximadamente 50 anos em que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi o embrião da ESDI, decidiu-se retomar a apresentação regular de exposições de arquitetura e design (...). Enxergou-se o museu não como um templo, que com sua iluminação sóbria e temperatura controlada possui a atmosfera propícia para a adoração dos ídolos, mas como um fórum de debates, vivo, e, sobretudo, aberto a todos os interessados no avanço da produção cultural. Atenção! A chave aqui é o avanço da produção cultural. Retomam-se exposições de design (gráfico) porque é anacrônico prosseguir mantendo a oposição entre arte e design. Um produto visual despojado como um logotipo, pode ser dotado da mesma força de um haikai.(...) Supor que ele tenha importância menor pelo fato, de por exemplo, representar uma empresa é um raciocínio tão absconso quanto supor que a Sistina não deveria ter a importância que tem por haver sido encomendada pela Igreja.” (Farias: 1999, 29). “Se as portas dos mais importantes museus do mundo, especialmente aqueles voltados para a arte moderna, são abertas ao público para exposições de design, se incorporam em seus acervos objetos, produtos e peças gráficas criadas pelos designers, significa que o reconhecimento do design como uma das expressões artísticas deste século deverá ocupar um espaço maior no século XXI.” (Peixe, 2000, p. 37) Figura 5: Objetos de Piero Gatti, Cesare Paolini e Franco Teodoro, Itália; Irmãos Campana, Brasil; Gerson de Oliveira e Luciana Martins, Brasil. Na figura acima podemos ver três tipos de cadeira que, apesar da utilidade latente, do desenvolvimento projetual e da produção industrial questionam valores de concepção, de uso, de relação com o usuário, provocando o inusitado e o sensível. Ora pela visualidade onde subvertem e colocam em questionamento a forma, a textura, o material, as relações táteis e também as relações espaciais. A primeira figura da imagem acima é a poltrona Sacco. Criada pelo trio Piero Gatti, Cesare Paolini e Franco Teodoro em 1968 e produzida pela Zanotta, na Itália. Essa poltrona não aponta só o despojamento, pois se adapta e se integra ao corpo humano, confortando-o em um variado número de posições, mas exige do usuário uma tomada de decisão, tanto na maneira e forma como quer se sentar quanto no formato que dar a esse objeto adaptável, sentando-se ou não. E, perante a possibilidade de dar a forma, percebemos como esse objeto dialoga com o universo escultórico. Aliás, essa poltrona escultura pode ser utilizada apenas para ver, apreciar a forma, sua presença no espaço e sua textura. A cadeira Corallo dos Irmãos Campana, de 2008, produzida pela empresa italiana Edra questiona o observador-usuário no primeiro contato. Fica-se em duvida se é um objeto para sentar ou apenas para apreciar, pois a solução formal coloca em dúvida sua resistência, transita do leve ao frágil, da transparência a insegurança. Porém é produzida em aço inox, portanto resistente. A maneira como os fios de aço são trançados permite a segurança e o conforto necessário a sua função principal. Mas as relações despertadas são as mais diversas, como a referencia de criação dos designers, gaiolas de passarinhos que são abertas pelas grades para possibilitar a liberdade, assim como a liberdade é questionada no observador e usuário desse objeto. A poltrona Cadê de Gerson de Oliveira e Luciana Martins, produzida pela ,OVO nos questiona diretamente pois coloca em duvida a própria função, será mesmo um objeto de sentar, nos perguntamos ao observála. Ilude com relação ao que é, pois ora parece uma mesa de apoio e ora um módulo para canto de parede. Dúvida e insegurança são questões presentes diante desse objeto caso não esteja sendo utilizado para sua função principal. O tecido flexível e a estrutura interna somada aos pontos de apoio no ato de sentar derrubam a insegurança, remetem ao lúdico, redimensionando o objeto, reinventando o cotidiano e as relações do homem com os objetos, dessa maneira reinventando o próprio homem, tanto no seu papel de ser criativo quanto no seu papel de usuário. “Os melhores objetos contemporâneos são aqueles que expressam a história e a contemporaneidade; esbanjam o humor da cultura material, a linguagem global e carregam a memória do passado e a inteligência do futuro; aqueles que, como os grandes filmes, nos levam a lugares onde nunca fomos. E, claro, aqueles que nos dizem por que estão sendo feitos e revelam os processos com os quais foram feitos, nesses tempos de tantas possibilidades tecnológicas e culturais.” (Antonelli: 1999, p. 34) Portanto, objetos contemporâneos retratam e revelam ambientes, modos e estilos de vida e são expressões do criar, fazer e produzir. Ajudam a interpretar o homem, o tempo e a cultura. Remetem ao universo de valorização e conferem outra esfera, outro lugar e outro valor aos objetos de design e aos campos de conhecimento e de produção tanto do design quanto da arte. Outros discursos estéticos são construídos e incorporados no cotidiano, não apenas no âmbito material, mas também no âmbito dos sentidos. Objetos contemporâneos podem também ser lidos como poesias e constroem ricas poéticas no cotidiano e do cotidiano. Considerações Finais O design contemporâneo estabelece a aproximação e a fusão entre arte e design ao romper com limites e fronteiras, ao atuar com fusões e a partir da somatória advinda de diferentes áreas, propondo novas visões, comportamentos e aguçando outros saberes. É plural, atua no âmbito da transformação, conceituação, reflexão, criação e produção. Como dizia Flüsser (1999) o design apresenta a reunião de ótimas idéias resultantes do cruzamento fertilizado e da complementação dos pensamentos da arte e da ciência. Também Munari (1993) há muito tempo já nos alertava que um objeto projetado por um designer carrega em si a presença de um artista que favorece a transformação da habitual relação com o mundo da estética. Cabe a nós, observar e olhar atentamente para essas manifestações de sentidos, interpretando a reinvenção desses objetos e, desprovidos de preconceitos e conscientes da ação transdisciplinar perceber as aproximações, os diálogos e as fusões do design e da arte a partir das construções das poéticas como reflexos dinâmicos da contemporaneidade. _____________________ BIBLIOGRAFIA ANTONELLI, Paola. Modernidade Tropical In: ARC Design, n.8, SP, Quadrifoglio Editora, 1999, pp.30-35. BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1968. BORGES, Adélia. Design Brasileiro Hoje: Fronteiras. São Paulo: MAM-SP, 2009. BRUSATIN, Manlio. Arte come design. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2007. COELHO, Luiz Antonio. Objeto com Afeto In: LIMA, Guilherme da Cunha (org). 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Atualmente, desenvolve estudos e pesquisa de Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Design da PUC-Rio discutindo a temática relacionada a transdisciplinaridade e aos coletivos de design na cidade de São Paulo.