Fracasso escolar: a voz de quem sofre as suas
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Fracasso escolar: a voz de quem sofre as suas
Fracasso escolar: a voz de quem sofre as suas conseqüências Rio de Janeiro, 22 de agosto de 2008 Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ Programa de Pós-graduação em Educação PROPED Linha de Pesquisa- Educação Inclusiva e Processos Educacionais Grupo de Pesquisa - Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar Fracasso escolar: a voz de quem sofre as suas conseqüências Por Fernanda Carvalho Ramalho Raposo Dissertação apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação da Profa Dra Carmen Lúcia Guimarães de Mattos. Agosto/2008 ii Banca Examinadora _____________________________________ Carmen Lúcia Guimarães de Mattos - Orientadora Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ __________________________________ Helena Amaral da Fontoura Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Faculdade de Formação de Professores - FFP __________________________________ Iduina Mont'Alverne Chaves Universidade Federal Fluminense - UFF Luiz Antonio Gomes Senna - Suplente Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Ana Canen - Suplente Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ iii Dedicatória Aos que minimizaram o sofrimento e voltaram minha atenção ao que realmente importa, por tornarem possível este trabalho. iv “Porque dEle e por Ele, e para Ele são todas as coisas.” (Romanos 11.36a) v Índice Resumo ...............................................................................................................3 Abstract ...............................................................................................................4 Introdução ............................................................................................................5 Capítulo I – Referencial teórico-metodológico .....................................................8 1. Exclusão .........................................................................................................9 1.1. A exclusão e a instituição escolar ..............................................................11 2. Fracasso Escolar ...........................................................................................13 2.1. Conquistas e desafios da educação brasileira ...........................................13 2.2. O fracasso à luz da teoria ...........................................................................15 2.3. O fracasso escolar e as políticas educativas .............................................20 3. Violência ........................................................................................................24 3.1. As relações de poder e a violência intra-escolar ........................................25 3.2. Violência urbana: não nasce na escola, mas invade seus portões ............31 4. Considerações Metodológicas ......................................................................33 4.1. Locus de Estudo .........................................................................................33 4.2. Participantes da Pesquisa ..........................................................................36 4.3. Procedimentos Metodológicos ...................................................................36 4.3.1. A abordagem etnográfica ........................................................................36 4.3.2. Instrumentos de Coleta ...........................................................................39 4.3.3. Análise de dados .....................................................................................40 Capítulo II – Sobre a pesquisa ..........................................................................42 1. Objetivo da pesquisa .....................................................................................42 2. No campo de pesquisa ..................................................................................43 3. Analisando os dados .....................................................................................49 3.1. O que dizem os alunos? .............................................................................50 Conclusão ........................................................................................................124 Referências Bibliográficas ..............................................................................128 2 Resumo Essa pesquisa, que tem por objetivo identificar e analisar o que dizem os jovens alunos da Classe de Progressão acerca do fracasso escolar é uma parte da pesquisa ‘Imagens Etnográficas da Inclusão: o fracasso escolar na perspectiva do aluno’, realizada pelo Núcleo de Etnografia em Educação (NetEdu) no período entre agosto e dezembro de 2006. Os jovens participantes foram alunos e alunas de um CIEP localizado na zona sul do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados através de pesquisa qualitativa de abordagem etnográfica e os instrumentos utilizados foram a observação participante, a entrevista semi-estruturada e o vídeo. Na análise de dados, o conteúdo das falas dos participantes foi considerado principal fonte de significação de dados e apreensão do entendimento acerca do fracasso escolar. Categorias principais foram levantadas a partir da fala dos participantes, entre elas a repetência e a violência. Neste trabalho de dissertação, inicialmente, apresento considerações teóricas acerca da exclusão, do fracasso escolar e da violência, e considerações metodológicas. A seguir, relato o processo da pesquisa de campo, destacando e analisando as falas dos jovens. Concluo que o fracasso escolar é entendido por estes jovens como algo inerente a eles; que diante de um histórico familiar nem sempre favorável, alunos e alunas acreditam na escola como alternativa para superação das dificuldades; e a que violência, em suas múltiplas manifestações, reforça o fracasso, preocupando alunos e demais atores escolares. Creio que a contribuição deste estudo para a área da pesquisa em educação seja o enfoque no ponto de vista do aluno, tendo em vista que uma das melhores maneiras de pesquisar o fracasso escolar é dando voz a suas vitimas, aqueles que de fato o experimentam. Palavras-chave: Fracasso escolar – Etnografia – Violência 3 Abstract This research, which aims to identify and analyze what the young students attending the Progressão Class say about school failure, is part of another research called ‘Ethnographic Images of Inclusion: school failure in the student’s view’, carried out by the Ethnography in Education Group (NetEdu) between August and December, 2006. The young participants are male and female students from a public school located in the south zone of Rio de Janeiro. The data was gathered through a qualitative research with ethnographic approach and the instruments used were the participant observation, depth interviews and video recording. During the analyses process, the content of the participants’ speech was considered as the main source of demonstration of understanding of school failure. Main categories were taken from the students’ speech, such as class repetition and violence. In this dissertation, we firstly present theoretical considerations concerning exclusion, school failure and violence, and methodological considerations. Then, we describe the field research process, highlighting and analyzing the students’ speech. We conclude that these young pupils take school failure as something inherent to them; that facing a challenging family history, students in school as an alternative to overcome difficulties, and that violence, in its many expressions, reinforce failure, worrying the school community. We believe this study is useful to the area of educational research because it focus on the students’ point of view, as one of the best ways to research school failure is hearing its victims, the ones who actually live it. Key words: School failure – Ethnography – Violence 4 Introdução A realização do curso de Mestrado Acadêmico em Educação, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi significante para o progresso da minha vida profissional tendo em vista que deu continuidade aos estudos iniciados no curso de graduação em Pedagogia, nessa mesma universidade. Além disso, me permitiu retomar projetos e rever conceitos trabalhados durante o período de graduação, quando fazia parte da equipe de alunos bolsistas de iniciação científica da Profª Drª Carmen Lúcia Guimarães de Mattos, na pesquisa Metacognição em Sala de Aula – um estudo sobre os processos de construção do conhecimento. Em novo contexto, como aluna do Mestrado, pretendi aprofundar-me nas reflexões e questionamentos desta pesquisa1, trazendo contribuições para meu crescimento pessoal, para o Grupo de Pesquisa2 do qual fiz parte e para tantos outros profissionais que, como eu, virão a debruçar-se sobre este tema. 1 A pesquisa Fracasso escolar: a voz de quem sofre as suas conseqüências , relatada neste trabalho de dissertação, é parte da pesquisa Imagens etnográficas da inclusão: o fracasso escolar na perspectiva do aluno, realizada pelo Núcleo de Etnografia em Educação (NetEdu), sob a coordenação da Profª Drª Carmen Lúcia G. de Mattos. 2 Etnografia e Exclusão: aspectos psicossociais da inclusão escolar. 5 Desde seus primórdios, a abordagem etnográfica de pesquisa preocupa-se em dar voz aqueles que pouco ou nunca são ouvidos (MATTOS, 2001). Sendo o aluno, na instituição escolar, a voz silenciada e com menos freqüência ouvida, penso ser relevante destacar sua perspectiva. Com este pensamento, o presente estudo tem como objetivo identificar e analisar o que dizem alunos da Classe de Progressão sobre o fracasso escolar. Você conhece alguém que já repetiu de ano? Por que as pessoas repetem de ano? Como são as coisas lá na sua sala? De quê você mais gosta na escola? Entendo que ouvir estes jovens e crianças, personagens do contexto escolar, é fundamental para que se compreenda os elementos envolvidos na produção do fracasso e que, nisto, esta pesquisa se justifica. Narrando sua realidade escolar os alunos nos levam a refletir uma série de diferentes aspectos, entre eles: as políticas educacionais, a relação professoraluno, a relação família-aluno, o funcionamento da escola como instituição e o contexto social em que estão inseridos. Ademais, nos direcionam a conclusão de que o fracasso escolar é, de fato, produzido por fatores inúmeros e complexos. Esta dissertação se divide em três capítulos. No capítulo I apresento o referencial teórico-metodológico em que foi baseado o estudo. Inicialmente, analiso as questões teóricas a respeito da exclusão, do fracasso escolar e da violência, temas de interesse e relevância na análise da pesquisa. Em seguida, destaco as características principais da abordagem metodológica utilizada, justificando sua escolha. O capítulo II é dedicado ao relato da pesquisa em si. Neste texto 6 descrevo, em detalhes, o encaminhamento da pesquisa de campo e os motivos por trás das escolhas feitas. As falas dos alunos são, finalmente, trazidas e analisadas. Algumas destas falas são acrescidas de imagens que facilitam nosso entendimento da visão dos jovens aproximam o leitor da experiência da pesquisa. Por fim, no capítulo III, concluo este estudo apontando suas considerações finais e sua contribuição para a área de pesquisa em educação. 7 Capítulo I REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Na introdução desta dissertação, apresentei um breve relato da minha trajetória acadêmica e introduzi as questões centrais desta pesquisa. No presente capítulo, faço uma revisão do referencial teórico-metodológico da mesma, assim dividida: 1) a exclusão; 2) o fracasso escolar; 3) a violência; e 4) considerações metodológicas. Começarei analisando a questão da exclusão, a partir das contribuições de Peregrino (2006), Martins (1997 e 2002) e Castel (1997), e suas relações com a escola. Discutirei, então, o fracasso escolar partindo das conquistas e desafios da educação brasileira para analisar, posteriormente, as contribuições teóricas de Ireland (2007); Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004); e MacBeath, Gray, Cullen, Frost, Steward e Swaffield (2007) sobre o tema. Na seqüência, apresento o tema da violência e sua influência na educação, destacando os apontamentos de Sposito (1981), Zaluar (1999) e Arendt (1994). Finalmente, ressalto as questões metodológicas referentes ao locus de estudo, participantes da pesquisa, instrumentos de coleta e análise de dados. 8 1. Exclusão “Basicamente, exclusão é uma concepção que nega a História, que nega a práxis e que nega à vitima a possibilidade de construir historicamente seu próprio destino, a partir de sua própria vivência e não a partir da vivência privilegiada de outrem. (...) A idéia de exclusão pressupõe uma sociedade acabada, cujo acabamento não é por inteiro acessível a todos. Os que sofrem essa privação seriam os ‘excluídos’.” (MARTINS, 2002, p. 45 e 46) O cenário de discussões acerca da questão social no Brasil, em tempos de crise, tem sido marcado pela presença da problemática da exclusão, cujo termo se emprega aos mais diversos usos. Peregrino (2006) destaca que o termo é freqüentemente utilizado na descrição dos processos de degradação, tais como os de direitos sociais, de relações de trabalho, relações sociais, entre outros. A autora adverte que o mesmo conceito também se emprega na definição da insuficiência de oferta de serviços pelo Estado, seja nas áreas de educação, saúde, segurança, saneamento e etc. E ainda, ressalta que o termo se relaciona com a diminuição das ofertas de emprego, gerada pela “nova configuração da acumulação do capital” (PEREGRINO, 2006, p. 63). A amplitude do termo exclusão, entretanto, não se limita apenas ao processo em si, e atinge também os atores sociais do mesmo, neste caso, os excluídos. Peregrino (2006) igualmente nos auxilia na compreensão desta questão, destacando a abrangência do termo excluídos, e pontua que: 9 “’Excluídos’ são os que fracassam na escola, os que não são atendidos nos postos de saúde e hospitais, os analfabetos, os desempregados, os jovens que, ao saírem da escola não conseguem inserção no mercado de trabalho, os grupos socialmente discriminados (homossexuais, negros, mulheres, favelados...), assim como todos aqueles que vivem em situações limite: os sem-teto, os sem-terra, os flagelados da seca, os migrantes recém chegados às cidades...” (PEREGRINO, 2006, p. 64) Nos deparamos, portanto, com um termo empregado aos mais variados usos que a miúdo, por esta imprecisão, culmina em não definir coisa alguma (CASTEL, 1997). Segundo este mesmo autor, a ambigüidade na utilização deste conceito, simultaneamente, encobre e revela o estado atual da questão social, reduzindo a crise à aspectos pontuais, ao deter-se apenas aos efeitos mais aparentes e imediatos da mesma. Ele chama a atenção: “Falar em termos de exclusão é rotular com uma qualificação puramente negativa que designa a falta sem dizer no que ela consiste nem de onde provém.” (CASTEL, 1997, p. 19) O sociólogo José de Souza Martins (2002) propõe uma negação à existência da exclusão, afirmando existirem apenas vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes. Além disso, ele alega que ao discutir a exclusão “deixamos de discutir as formas pobres, insuficientes e, às vezes, até indecentes de inclusão” (MARTINS, 1997, p. 21). Para o autor, o binômio excluídos / incluídos não faz sentido, tendo em vista o fato de serem ambas as condições produzidas pelo mesmo processo econômico que ora gera riquezas, ora misérias. Nesta esteira de pensamento, Martins (1997) explica que a lógica do capitalismo é desenraizar e excluir para, 10 posteriormente, incluir segundo regras próprias. No movimento entre a exclusão e a re-inclusão, entretanto, o que se vê acontecer no Brasil é uma degradação e a criação de um contingente populacional sobrante, sem chances de re-ingressar aos padrões atuais de desenvolvimento, vivendo permanentemente uma situação que deveria ser temporária. Cria-se, segundo Martins (1997), uma sociedade paralela economicamente incluída mas social e moralmente marginalizada. Scalon (1999) aponta para outra faceta da exclusão, destacando a intergeracionalidade como fator determinante na transmissão da mesma ao concluir que quem nasce pobre tem maiores chances de permanecer assim até o fim da vida. A autora entende a posição social como uma herança passada através de gerações, o que nos faz refletir o papel da escola diante de uma sociedade excludente. 1.1. A exclusão e a instituição escolar Fica, por conseguinte, a questão: que espaço ocupa a escola numa estrutura social que promove processos de exclusão? Dubet (2003) esclarece que a escola atual é mobilizada a serviço do desenvolvimento econômico, ou seja, investir na escola e na formação do aluno é um investimento economicamente produtivo. Exatamente por se prestar a este serviço, a escola deixa sua neutralidade e, em sua natureza, reproduz as desigualdades sociais a partir da produção das desigualdades escolares. Segundo o autor, a exclusão escolar, sob a forma de fracasso, suscitaria uma relativa exclusão social tendo em vista que os menos qualificados academicamente teriam maior probabilidade de enfrentar 11 esta condição. Ele ainda destaca os percursos escolares de desempenho desigual como um mecanismo de diferenciação através do qual a escola incorpora e adiciona fatores de exclusão, tornando menos prestigiada a trajetória escolar de alunos com mais dificuldades. Em uma analogia entre a escola e uma prova esportiva, onde a expressão ‘que vença o melhor’ define a ética da responsabilidade dos desempenhos, Dubet (2003) afirma que a exclusão escolar perdeu muito de sua objetividade e tornou-se um processo extremamente subjetivo, no qual o aluno passa a ser responsável por seu sucesso. Desse modo, a experiência da exclusão ganha o peso de uma auto-destruição e os alunos que a vivem têm a sensação de anular-se a si próprios. O autor explica que, diante desta possibilidade, algumas estratégias de defesa podem ser acionadas e destaca duas delas: - Retraimento: frente ao insucesso, os alunos optam por desistir do percurso. Freqüentemente estes são aqueles estudantes que prosseguem com o ritualismo escolar e o respeito às regras, mas que abdicam de qualquer envolvimento genuíno com a aprendizagem. “Eles perderam a partida, mas a honra está salva uma vez que eles nada fizeram para ganhar, instruídos por uma longa história de fracassos.” (DUBET, 2003, p. 41 e 42) - Conflito: diante da responsabilidade por seu desempenho e incapazes de justificar seu fracasso em razões sociais, alguns alunos são levados a atribuir sua exclusão aos professores. “A violência contra a escola e os professores é ao mesmo tempo um 12 protesto não declarado e uma maneira de construir sua honra e sua dignidade contra a escola.” (DUBET, 2003, p. 42) A despeito das estratégias de defesa dos alunos, a escola prossegue no modelo do mercado, desenvolvendo a dicotomia integração/exclusão, ao afirmar a igualdade dos indivíduos e destacar a desigualdade de seus desempenhos. No âmago desta desigualdade reside o fracasso, tema da análise que segue. 2. Fracasso Escolar 2.1. Conquistas e desafios da educação brasileira Os dados afirmam e parecem não deixar dúvidas que entre os anos de 1996 e 2006, ano em que essa pesquisa foi realizada, o Brasil aprimorou significativamente seu sistema educativo, praticamente universalizando a oferta de educação a alunos de 7 a 14 anos de idade3. Segundo dados do Censo Escolar (INEP, 2006), no ano de 2006 havia 203.931 instituições escolares e 2.647.414 professores atendendo a 56 milhões de alunos em todo o pais, sendo 7 milhões atendidos na Educação Infantil, 39 milhões no Ensino Fundamental e 8,9 milhões no Ensino Médio. O acesso a educação apresentou avanço em todos os segmentos escolares. Abaixo, comparando os índices dos anos de 1996 e 2006, indicadores das pesquisas do IBGE (2007), identificamos o aumento das taxas de freqüência a estabelecimentos de ensino. Fica evidente, além disso, a elevada e expressiva 3 De acordo com dados obtidos no Censo Escolar (MEC/INEP, 2006) 13 taxa de freqüência a escola dos alunos de 7 a 14 anos. Tabelas 1 e 2. Taxa de freqüência bruta a estabelecimento de ensino, por grupos de idades, em todo Brasil. Fonte: IBGE, 2007. Grupos de Idade Ano 1996 0–6 7-14 15 – 17 18 – 24 25 ou mais Freqüência (%) 30,9 93,7 74,4 31,1 3,0 Grupos de Idade Ano 2006 0–6 7-14 15 – 17 18 – 24 25 ou mais Freqüência (%) 45,7 98,0 84,1 33,0 5,9 Entretanto, índices favoráveis e significativos acerca do aumento do acesso às salas de aula, nem sempre correspondem ao sucesso da escola. Sousa e Barreto (2004) chamam atenção para a existência de entraves no fluxo de alunos no Ensino Fundamental, incoerentemente, o segmento com maior taxa de freqüência. Estas mesmas autoras destacam os dados (MEC/Inep) relativos ao ano de 2004 para explicitar tais percalços, ora causados por retenções, ora por evasões. Tabela 3. Taxa de repetência e evasão por série no ensino fundamental regular – Brasil 14 2004. Fonte: MEC/Inep. Séries do Ensino Fundamental4 Ano 2004 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª Repetência (%) 30,5 21,2 15,8 15,6 25,4 20,7 17,8 18,3 Evasão (%) 1,0 3,6 4,4 7,4 8,6 9,8 10,0 14,4 O s números da tabela acima mostram que na 8ª série, por exemplo, 18,3% dos alunos repetiram o ano de 2004 e 14,4% abandonaram a escola nesta mesma ocasião. Na 1ª série, embora a taxa de evasão tenha sido pequena, apenas 1%, a porcentagem de repetência é de 30,5%. Assim, embora o país exalte as melhorias no acesso a educação, existem ainda questões sérias a serem confrontadas, como as elevadas taxas de evasão e repetência, o desafio da avaliação formadora e da construção da cidadania, a qualidade da educação oferecida, os índices nem sempre satisfatórios de conclusão, entre outras. Diante dessa realidade, urge a necessidade de estudar o fracasso escolar e este mesmo torna-se tema de freqüentes investigações no cenário da pesquisa em educação. Faço, aqui, uma sinopse das contribuições de alguns pesquisadores a respeito do tema, entre eles: Ireland (2007); Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004); e MacBeath, Gray, Cullen, Frost, Steward e Swaffield (2007). 2.2. O fracasso à luz da teoria 4 Segundo a nomenclatura do sistema seriado, em vigor no Ensino Fundamental no ano de 2004. 15 Tendo em vista que a aprendizagem é um ato de risco, a possibilidade de fracasso é inevitável em seu processo. Ela sempre existiu. No entanto, falar do fracasso escolar não é falar apenas de uma questão pedagógica e, sim, de um problema econômico e social. Segundo Ireland (2007), estas tantas facetas do fracasso são facilmente percebidas quando da análise de três momentos históricos distintos, que descrevo a seguir. Inicialmente, por volta do século XVIII, quando grande parte da população mundial não sabia ler ou escrever, não havendo completado a instrução primária, pensar o fracasso escolar não fazia sentido algum. Estar fora da escola era algo cotidiano e, ainda para os que estavam dentro dela, falhar não era ser diferente da maioria dos demais. O fracasso escolar não acarretava ao indivíduo ou à sociedade nenhum problema social; ao contrário, eram tidos como “ameaçadores” aqueles que, inesperadamente, adquiriam um saber incompatível com sua situação social. Neste contexto, até a primeira metade do século XX, aproximadamente, não se ponderava ainda a questão do fracasso escolar. A partir desta data, entretanto, e até por volta dos anos de 1970, a população na Europa passou a completar algo em torno de quatro a nove anos de escolaridade sem, porém, chegar necessariamente ao ensino médio ou a educação superior. Passa a existir aí uma questão complicada para aqueles que não chegam ao fim da escolaridade: eles agora não sabem o que todos sabem. Desta maneira o fracasso escolar ganha sentido, trazendo conseqüências reais, embora ainda não demasiadamente graves, para o futuro de suas vitimas. 16 O terceiro momento histórico, novamente segundo Ireland (2007), é aquele que se constitui um desafio educacional para o Brasil e que já é realidade nos Estados Unidos, Europa, Japão e alguns países do Sudeste Asiático. Neste contexto sócio-escolar, o padrão é que todos os jovens concluam o ensino médio geral, técnico ou profissionalizante. Aqueles que não o fazem são considerados em situação de fracasso escolar e herdam, por conseqüência, um fracasso sócioeconômico que incide sobre todos os aspectos da sua vida. Sim, porque na vida pós-moderna um alto nível de escolaridade não é primordial apenas para a atividade profissional. A vida cotidiana e seu mundo de auto-atendimentos, senhas, processos seqüenciais, bulas de remédios e tantas outras tecnologias, exigem dos indivíduos uma lógica seqüencial, inteligência das situações e, mais que isso, um sentido de responsabilidade. Assim, o sucesso ou fracasso na escola, sintomas da atualidade, passam a influenciar diretamente a vida dos alunos, definindo o papel social que ocuparão no futuro. Retorna-se, então, à escola. Embora tenha se tornado uma questão econômica e social, o fracasso escolar nunca deixou de ser uma questão pedagógica e, por suas bárbaras conseqüências, desde que surgiu sempre houve quem o tentasse explicar. Ao longo dos anos a literatura educacional distinguiu razões variadas pelas quais alunos e alunas fracassam, repetem o ano e abandonam a escola. Estudando o estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar, Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) apontam vertentes que compreendem o fracasso de maneiras distintas, a saber: do ponto de vista psíquico, técnico, institucional e político. Cada uma dessas concepções possui 17 uma explicação específica para o fracasso, culpabilizando, respectivamente, o aluno e sua família, os professores, a estrutura excludente da educação e a cultura escolar. A seguir, analiso a essência de cada um desses entendimentos com o objetivo de, clarificando as diferentes perspectivas, identificar os interesses por trás delas, tendo em vista que as mesmas definem o caráter das políticas educativas e das ações pedagógicas implementadas nas escolas. O fracasso escolar como dificuldade psíquica Em algumas pesquisas educacionais o fracasso escolar é apresentado como questão psíquica, como oriundo de dificuldades emocionais e, portanto, como proveniente de certa incapacidade intelectual do aluno. “Entende-se que a criança é portadora de uma organização psíquica imatura, que resulta em ansiedade, dificuldade de atenção, dependência, agressividade, etc., que causam, por sua vez, problemas psicomotores e inibição intelectual que prejudicam a aprendizagem escolar.” (ANGELUCCI, KALMUS, PAPARELLI e PATTO, 2004, p. 60) Dessa concepção, decorre a relação por vezes estabelecida entre saúde mental e desempenho escolar que fatalmente desconsidera a existência de outros fatores relevantes para a determinação do sucesso ou insucesso acadêmico. O fracasso escolar como dificuldade técnica Nessa outra vertente, o fracasso é analisado sob a ótica das carências técnicas do corpo docente, sendo compreendido como conseqüência da utilização de técnicas inadequadas de ensino ou da má utilização das técnicas 18 corretas. “Na verdade, continua-se a compreender o fracasso escolar como resultado de variáveis individuais, embora nessas teses a variável independente investigada seja a capacidade profissional do professor.” (ANGELUCCI, KALMUS, PAPARELLI e PATTO, 2004, p. 61) Na esteira desse pensamento, conclui-se que quando inserido em um ambiente escolar que faz uso correto das técnicas de ensino o aluno, qualquer que seja ele, terá as condições necessárias para desenvolver plenamente suas potencialidades. O fracasso escolar como problemática institucional Outras pesquisas educacionais entendem fracasso escolar como decorrente do fato de ser a escola uma instituição reprodutora e transformadora da estrutura social excludente. “O insucesso de reformas e projetos nesta direção encontra explicação no conservadorismo dos professores que, pela resistência à inovação, prejudicam a sua implementação.” (ANGELUCCI, KALMUS, PAPARELLI e PATTO, 2004, p. 62) A alternativa ao fracasso seria a implementação de reformas e projetos educacionais, sem esquecer o investimento maciço na formação docente de maneira a garantir que os professores conheçam as propostas governamentais e, assim, não danifiquem sua eficácia. O fracasso escolar como problemática política 19 Existe ainda quem pense o fracasso escolar sob a ótica da violência exercida pela escola ao estruturar-se em torno da cultura dominante, deixando de lado a cultura popular. “Fazem a crítica à tese de que as crianças das classes populares são carentes de cultura ou possuem deficiências cognitivas e emocionais; à relação pedagógica concebida como processo individual; às tentativas de superação do fracasso escolar por meio de medidas técnico-pedagógicas de inclusão nos sistemas escolar e social, todos eles centrados na idéia de escola como entidade abstrata.” (ANGELUCCI, KALMUS, PAPARELLI e PATTO, 2004, p. 63) Essa vertente, então, busca resgatar as experiências e percepções dos atores escolares, a partir da crítica às concepções tradicionais do fracasso. Entre os tantos entendimentos acerca do fracasso, resta continuamente a incerteza a respeito das melhores alternativas e soluções a ele, mas a confiança de que algo deve ser feito. Nesta certeza, entram em cena as políticas públicas de educação. 2.3. O fracasso escolar e as políticas educativas Diante da realidade do fracasso escolar no Brasil, constantes reformas têm sido implementadas: algumas reagrupam séries, outras modificam o currículo, ou ainda transformam o processo de ensino e aprendizagem. Um exemplo disto é o ensino em ciclos, cuja concepção no Brasil está intimamente vinculada ao entendimento do papel social da escola já que, em suas origens, as políticas de ciclo se relacionam com as inúmeras tentativas de reverter o quadro do fracasso escolar. Entretanto, embora bem intencionadas, nem sempre as 20 políticas educativas atingem seus objetivos. Em seu livro School on the edge: responding to challenging circumstances, MacBeath, Gray, Cullen, Frost, Steward e Swaffield (2007) narram a estória de oito escolas inglesas vivendo no limite entre o sucesso e o fracasso e de seus esforços para entender o que é educacionalmente importante e factível. Em 2004, a Inglaterra pôs em prática a política educativa Every Child Matters (todas as crianças importam). A existência desse programa expressa a preocupação com a discrepância entre os bem e os mau-sucedidos no sistema escolar. Infelizmente, segundo estes mesmos autores, políticos e criadores de políticas educativas tem endereçado às escolas a responsabilidade de diminuir esta discrepância, fato que com freqüência desmoraliza a figura do professor e da instituição escolar. MacBeath, Gray, Cullen, Frost, Steward e Swaffield (2007) destacam, então, nove lições para os criadores de políticas educativas, as quais descrevo a seguir. 1. A intervenção em escolas que vivem circunstâncias desafiadoras é uma proposição a longo prazo. A julgar por critérios convencionais, o investimento nestas escolas é arriscado e, historicamente, os casos de fracasso são numerosos – mais numerosos talvez do que os criadores de políticas educativas tenham conhecimento ou se importem em admitir. Além disso, os dividendos custam a surgir e quase todas as escolas nesta situação necessitam de um investimento considerável. 2. Existem razões sistêmicas pelas quais determinadas escolas 21 estão no limite. E estas razões não são facilmente identificadas por intervenções puramente educacionais. Elas exigem políticas sociais e econômicas associadas. 3. Quanto maior o tempo de dificuldades de uma escola, maior será o tempo gasto para que ela se re-estabeleça. De maneira geral, se o tempo de fracassos for em média de 10 anos, é provável que sejam necessários cinco anos para voltar aos trilhos e talvez sete anos para que se adquira confiança na possibilidade de sucessos futuros. Para políticos, cinco anos é tido como um horizonte de longo prazo; por outro lado, os alunos levam cinco anos para passar pelos estágios primários ou secundários da vida escolar. É fundamental, portanto, que se preocupe com o tempo de queda e re-estabelecimento. 4. Existem poucas generalizações fáceis a serem feitas sobre o contexto e os desafios das escolas no limite – cada escola parece enfrentar problemas diferentes e ocasionalmente únicos. Agrupá-los todos e prescrever a eles os mesmo remédios dificilmente ajudará. 5. A luta por um semblante de estabilidade deve ser aceita como uma batalha sem fim. A postura de muitos participantes das escolas em risco (sejam eles lideres, professores ou alunos) é a de “residentes temporários” – em determinado tempo eles sairão dali, talvez mais rápido do que se pensa. É necessário que se 22 planeje para isto. Além do mais, os recursos serão sempre mais exigentes e mais caros do que em escolas onde a estabilidade é garantida. 6. Poucas escolas são disponíveis e capazes para introduzir e gerenciar inovações com sucesso. E esta capacidade é massivamente subdesenvolvida em escolas no limite. Embora intragável, a principal lição para os criadores de políticas educativas é a de que a mudança leva tempo para ser planejada e implementada, e o estágio em que a maioria dos projetos acaba é precisamente no ponto em que a possibilidade de investimentos potencias começa a ser questionada. O maior legado da mentalidade “mostrar-resultados-rápidos-a-qualquercusto” para as escolas em risco tem sido uma série de investimentos falidos, cada um somando a visão de que “pode ser que funcione em outra escola, mas não aqui”. 7. Prescrever o “o que e como” do sucesso escolar para instituições distintas de diferentes contextos sociais pode ser contraproducente. Mudanças começam a se enraizar nas escolas quando os funcionários coletivamente se apropriam de uma “idéia poderosa”, que pode assumir formas variadas. Os criadores de políticas educativas precisam se tornar mais adeptos a oferecer um menu das idéias mais promissoras e permitir que as escolas escolham pelo sistema “à la carte”, 23 enquanto pedidos “off-menu” devem ser permitidos e examinados por seu méritos. 8. É essencial ter uma visão mais ampla de liderança. Um diretor carismático ou heróico pode ser importante, em algumas circunstâncias. Mas o risco é que o modelo de liderança seja traçado e definido de maneira muito limitada e estreita, o que a longo prazo pode ser contra-producente. Neste caso, é significante a construção de um grupo para o desenvolvimento da escola para que se distribua a liderança. Cria-se espaço, assim, para a liderança de professores e de equipes. 9. Grupos para o desenvolvimento da escola tem formas variadas mas tendem a ser compostos por professores interessados no desenvolvimento profissional continuado, e em questões de ensino e aprendizagem. Para que tenham um impacto maior, estes grupos devem incluir pessoas da comunidade. Independente de sua constituição, entretanto, o maior desafio é levar a sério a visão dos jovens o ensino, a aprendizagem e suas conexões com suas vidas, dentro e fora da escola. Embora não seja tarefa simples, a implementação de políticas educativas é necessária e requer tentativas e erros, anteriores a acertos. A despeito do caráter e teor da política educativa, qualquer ação e intervenção feita em nome da justiça social deveria ser encaminhada com sensatez, combinada com ma firme consciência das lições da história e do passado e, 24 principalmente, estando receptiva a pesquisa e a tendo como base. 3. Violência Embora atualmente mais jovens e crianças freqüentem as salas de aula que no passado, a massificação do acesso à escola em nada garante o verdadeiro aumento de sua qualidade e eficácia. Se despreparada, a escola tende a reforçar as desigualdades que acolhe e acaba por trilhar um caminho entremeado de taxas de repetência e abandono que, por fim, resulta em fracasso. Jovens que percorrem esse caminho, escasso em oportunidades culturais e de acesso ao mercado de trabalho, se tornam alvos potenciais da violência que acontece dentro e fora da escola. Pensar a violência, porém, é tarefa mais complexa do que possa parecer e poucos temas têm, ultimamente, recebido tanta atenção. O medo e a insegurança advindos dos variados tipos de violência são destacados como signos característicos da contemporaneidade (BOURDIEU, 1997). Fenômeno de destaque no mundo contemporâneo, a violência não se dá apenas em atos e práticas materiais e, sendo assim, para analisar o contexto em que se insere é primordial considerar suas ressignificações em tempos, espaços, relações, entendimentos e pontos de vista. Inicialmente deve-se considerar que a violência é um fenômeno de múltiplas dimensões. Pode-se pensar, por exemplo, na violência que envolve danos físicos de um indivíduo contra si próprio ou contra os outros. Outras 25 expressões são a violência simbólica, presente nas relações de poder que utilizam de restrições de direitos fundamentais, e ainda as chamadas microviolências, referentes às incivilidades. Em toda a sua complexidade, a violência que hoje atinge a sociedade repercute também, de inúmeras maneiras, no ambiente escolar. Segundo Sposito (1981), a violência é uma das questões que mais afeta os processos educativos e a escola na sociedade atual. A seguir, apresento algumas das diferentes formas de manifestação da violência na escola, tais como as relações de poder, a violência intra-escolar e a violência urbana que invade a escola. 3.1. As relações de poder e a violência intra-escolar As relações estabelecidas entre indivíduos se dão numa perspectiva de interação social, onde a situação face a face caracteriza-se como experiência fundamental. “Meu ‘aqui e agora’ e o dele colidem continuamente um com o outro enquanto dura a situação face a face. Como resultado, há um intercâmbio contínuo entre a minha expressividade e a dele”. (BERGER E LUCKMANN, 2003, p. 47) Neste sentido, entre tantas formas de relação, é através da interação face a face que os sujeitos criam um espaço de troca de subjetividades. E é este o espaço predominante quando pensamos as relações entre os atores escolares. De maneira geral, estas interações são marcadamente flexíveis, sem padrões rígidos. No entanto, quando falamos das instituições de ensino e, mais precisamente, das relações de poder aí existentes não nos parece tarefa tão difícil 26 identificar certos padrões. Segundo WEBER define-se poder: “(...) a possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens, realize sua vontade própria numa ação comunitária, até mesmo contra a resistência de outros que participam da ação”. (WEBER, 1982, p. 211) É importante ressaltar que existem circunstâncias diversas que conferem a uma pessoa a posição de impor sua vontade. Além disso, conforme nos lembra Arendt (1994), embora distintos, o poder e a violência apresentamse, freqüentemente, juntos, sendo aquele o fator fundamental e predominante. A violência só predomina, então, nas situações onde o poder se mostra enfraquecido e vulnerável. Bourdieu (2000) reflete sobre o poder dentro do que conceituou como campo. O campo de poder é um campo de forças, onde detentores de poderes distintos travam lutas para conservar ou modificar as relações de forças que mantém entre si. Segundo ele, o poder exercido no espaço escolar é o poder simbólico: “(...) poder invisível que só pode se exercer com a cumplicidade daqueles que não querem saber que a ele se submetem ou mesmo que o exercem”. (BOURDIEU, 2000, p. 31) Na escola, o poder simbólico permite que, através da mobilização, sejam atingidos os mesmos resultados que seriam obtidos através da violência. Entretanto, embora este poder esteja já instituído, a violência mostra-se, rotineiramente, capaz de ultrapassar os limites da mobilização. O exercício 27 contínuo da mobilização se dá nas relações de poder entre professor5 e aluno. Dando prosseguimento aos estudos de Bourdieu, chego ao conceito de violência simbólica, criado para explicar o processo através do qual uma determinada classe impõe sua cultura a outra de dominados: “Violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrêla”. (BOURDIEU, 1997, p. 22) A manutenção do sistema simbólico de uma cultura, ambos arbitrários e não baseados numa realidade natural, é indispensável à perpetuação de uma sociedade, e realiza-se pela interiorização dessa cultura por seus membros. Nesta perspectiva, a violência simbólica consiste na imposição "legítima" da cultura dominante, no caso, a cultura escolar baseada na disciplina dos corpos. É inegável que a violência simbólica deixa marcas nos dominados. Estando atrelada ao poder do dominador, esta violência pode deixar marcas “positivas”6 quando o dominado de fato se adequa à cultura imposta e é, conseqüentemente, envolvido por ela em todos os seus aspectos. Por outro lado, deixa marcas “negativas” quando o dominado resiste ao enquadramento. Nas situações escolares, havendo resistência a esta dominação, estes indivíduos são excluídos, expulsos do sistema. E esses movimentos marcam, por vezes, o percurso futuro desses sujeitos. Paulo Freire (1996) nos chama a atenção ao 5 Ao falar do profissional ‘professor’, por vezes, refiro-me também aos outros tantos agentes empregados na instituição de ensino (diretores, coordenadores, merendeiras...). 6 O caráter “positivo” das marcas de dominação é assim julgado pelo próprio sistema, pela cultura dominante. Não se entende aí que seja, de fato, positivo para os sujeitos dominados. 28 papel do professor na consolidação dessas marcas: “O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum deles passa pelos alunos sem deixar sua marca". (FREIRE, 1996, p. 73) Na interação entre os atores escolares, marcas de violência simbólica trazem repercussões ao próprio sujeito, que dificilmente conseguirá se desvincular delas. Entretanto, estas repercussões afetam também o sistema em si, na medida em que a produção dessas marcas cria mecanismos de seleção entre aqueles que devem e não devem permanecer neste espaço. Embora o professor seja frequentemente entendido como figura dominante, entendo que a mesma violência que atua sobre o aluno, atua sobre o professor. Pensando a hierarquia escolar, o professor é, sim, imediatamente dominante em relação a seus alunos. Mas, na verdade, ampliando o espectro de visão, fica claro que ele é apenas uma das instâncias dessa dominação. Acima de si, o professor tem todo um sistema que corrobora com a reprodução das forças de dominação; sistema este que tem no professor um instrumento de realização desta dominação. Para além do sistema, a expectativa de que o professor invoque sua autoridade é também manifestada pela sociedade, produtora do sistema escolar. O professor é, assim, impelido a castigar, a agir coercitivamente, por isso, pune e exclui os que não se enquadram. Tais punições acarretam efeitos que podem gerar no aluno, entre tantos sintomas, medo, ansiedade, raiva e reações violentas. Segundo Zaluar (1999), a 29 violência pode ser entendida como: “... ultrapassagem de um limite que perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É portanto, a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento, percepção esta, que varia cultural e historicamente.” (ZALUAR, 1999, p. 8) Somada às reações violentas, surge também o cumprimento de uma predição de comportamento; ou seja, a predição de um indivíduo sobre o comportamento do outro acaba, de alguma maneira, se concretizando, influenciando e direcionando este comportamento (ROSENTHAL & JACOBSON apud RIBEIRO & BREGUNCI, 1986, p. 62). Assim sendo, as atitudes violentas dos alunos podem ser tanto sintomas reativos ao sistema de punição, quanto uma concretização das expectativas dos outros em relação a eles. "A expectativa, como representação social re-elaborada pelo professor, gera distorções que sustentam expectativas de fracasso e atribuem a responsabilidade destes aos alunos" (RIBEIRO & BREGUNCI, 1986, p. 70). Nas complexidades da relação de poder, percebe-se que os sujeitos dominados manifestam, de igual maneira, expectativas a respeito do comportamento de seus dominadores. No caso particular da escola, o caráter assistencialista da mesma leva o aluno a esperar que sua professora assuma o papel de quem educa e pune numa perspectiva de cuidado, comportando-se de maneira ‘amistosa’ e como um membro da família, a quem ele atribui, inclusive, o valor cultural de “tia”. 30 A expectativa dos alunos não se restringe aos professores, constituindose também no âmbito da escola como instituição provedora de algo que não lhe é dado fora dela. Por vezes, a distância entre o que os alunos esperam da escola e o que lhes é de fato oferecido por ela, é tão grande que se torna difícil reconhecê-la como real. O modelo de escola que eles vivenciam parece ser tão inadequado que se distancia do idealizado (‘vendido’ por outras instâncias de dominação) a ponto de deixar de ser real. Vivenciando um modelo distante do idealizado não há contra o que lutar. Internaliza-se, aí, a posição de dominado, consolidando-se o poder do outro. Segundo Arendt (1994): “O poder e a violência se opõe: onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder esteja em perigo...” (ARENDT, 1994, p. 35). Assim, numa relação onde o poder domina soberanamente, a violência está ausente. Para que isso seja possível é necessário que, como afirmam Bourdieu e Passeron (1982), o sujeito em situação de subordinação ao dominador não se oponha a ele, considerando sua situação inevitável, sem se perceber vítima deste processo de opressão. Assim, mesmo quando discordam da ação de seus dominadores, esses sujeitos não se permitem sair da posição que ocupam e legitimam, em seus discursos, o caráter natural de sua subordinação. Não caracterizada como primeira instância de dominação, a escola é socialmente influenciada pelas demais instâncias das quais participam seus 31 atores. Ao mesmo tempo, ela se fortalece na medida em que as relações de poder dela derivadas ultrapassam seus portões e atingem essas outras instâncias. 3.2 - Violência urbana: não nasce na escola, mas invade seus portões Em seus estudos, Sposito (1981) afirma que diversas investigações brasileiras tentam construir um quadro de relação entre as condições históricas e socias de determinados grupos e o surgimento de condutas violentas na escola. Como conclusão destas investigações é recorrente a identificação do binômio pobreza e violência que afirma ser a violência social uma conseqüência direta das situações de miséria. A autora critica esta correlação, chamando atenção para o fato de que muitas escolas da periferia, totalmente inseridas em contextos de pobreza, não apresentam as mesmas questões de violência de escolas que atendem setores da classe média urbana. E, mais que isso, destaca a afirmação de alguns estudiosos de que a violência não se concentra nas regiões mais miseráveis mas, ao contrário, se desenvolve nos locais onde a desigualdade social e a distribuição desigual de renda são exacerbadas. Assim, a convivência entre mundos distintos de extrema abundância e miséria propiciaria o surgimento de relações de violência. Evidentemente, escolas instaladas em zonas de narcotráfico são de alguma maneira influenciadas pelo mesmo. Ainda segundo Sposito (1981), diante da ausência do Estados nas políticas sociais, alguns moradores do morro passam a desconfiar dos aparelhos públicos de segurança e, consequentemente, a identificar-se com a presença ativa do narcotráfico. Este sentimento é ainda 32 mais forte nas crianças que, sem necessariamente manter relações com os traficantes, se afirmam parte de determinados grupos. Arendt (1972) afirma que, embora a criança seja introduzida ao mundo através da escola, esta não é o mundo e nem deve fingir sê-lo. Ao contrario, segundo a autora, constituindo-se instituição de interposição entre o lar e o mundo, a escola deve ter por objetivo tornar possível esta transição: do domínio privado da família para o mundo. Ora, sendo o mundo destas crianças permeado por experiências reais de violência, ficam as questões propostas por Sposito(1981): “Deveria a escola reconhecer essa exposição à violência, como um elemento a ser considerado em seus projetos educativos? Seria possível conceber uma proposta de educação para a democracia que não procurasse reconhecer a existência desse universo a imprimir marcas nos processos de socialização dos alunos?” (SPOSITO, 1981, p.8) 4. Considerações Metodológicas 4.1. Locus de Estudo Esta pesquisa foi desenvolvida em uma escola municipal do Rio de Janeiro, o CIEP C7 (Centro Integrado de Ensino Público), mais especificamente 7 Manteremos o nome da escola pesquisada em sigilo e adotaremos um nome fictício para proteger a identidade dos participantes. 33 em suas duas Classes de Progressão. O CIEP C localizava-se num bairro privilegiado da zona sul do Rio de Janeiro, dispondo de boas condições de acesso, e atendia alunos residentes de favelas próximas que utilizavam o transporte público coletivo como principal meio de traslado residência-escola. Em tempo integral, de segunda-feira a sexta-feira durante o período das sete da manhã às quatro e meia da tarde, o CIEP C atendia alunos das classes de Educação Infantil à quarta série do Ensino Fundamental. Havia funcionamento também no turno da noite, quando eram atendidos alunos do PEJA (Educação de Jovens e Adultos) nas séries dos ensinos fundamental e médio. Ambos os períodos eram coordenados pela mesma diretoria, da qual faziam parte uma diretora geral, uma vice-diretora e uma diretora adjunta. Ao todo, eram atendidos cerca de 1000 alunos. O corpo docente do CIEP C contava com cerca de 40 professores, entre estes aqueles com dupla matrícula na própria escola e aqueles que lá trabalhavam por apenas meio período. De maneira geral, a formação acadêmica dos professores consistia em nível superior normal ou licenciatura. Havia alguns com especializações latu-sensu completas e outros que vislumbravam a continuidade de seus estudos. No ano em que a pesquisa foi realizada, 2006, o CIEP C utilizou simultaneamente o sistema de ciclos e o sistema seriado. O 1º ciclo englobava as antigas classes de alfabetização, 1ª e 2ª séries e, a partir daí, era retomado o sistema seriado com as duas séries finais, 3ª e 4ª. O objetivo, na época, era que os alunos entrassem no primeiro ciclo aos seis anos e saíssem dele aos oito. No 34 entanto, como muitos chegavam ao final do ciclo sem dominarem a leitura e a escrita, conteúdos mínimos previstos para este período, eram encaminhados às classes de progressão e lá permaneciam até dominarem tais conteúdos e estarem aptos para cursar a 3ª série. Esta foi a prática vigente no CIEP C em 2006, mas sabemos que, ao final deste mesmo ano, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro determinou que todos os alunos das classes de progressão fossem aprovados para a 3ª série, independente de seus resultados em relação a leitura e a escrita. Nas classes de Progressão do CIEP C, a rotina de atividades diurnas seguia um padrão: os alunos chegavam à escola às 7:30, quando se dirigiam ao refeitório para tomar café da manhã, e eram encaminhados para suas salas às 8:00. Até o horário de almoço, segundo as professoras entrevistadas, aos alunos da Progressão eram dirigidas atividades de cunho acadêmico. Ao meio-dia, os alunos almoçavam e permaneciam em recreio até às 13:30. Neste horário, retornavam às suas salas, escovavam os dentes e faziam atividades extra-classes (artesanato, educação física e vídeo, por exemplo). Por fim, às 15:30, os alunos lanchavam e tinham seu último recreio até as 16:30, quando eram dispensados. O espaço físico da escola era bastante amplo e criava oportunidades de atividades pedagógicas dentro e fora da sala de aula. Entretanto, a má conservação do ambiente físico criava empecilhos para a realização de tais atividades, além de expor alunos e professoras a perigos e constrangimentos diários, principalmente no que tangia à utilização de sanitários. Seguindo o padrão arquitetônico dos prédios educacionais construídos 35 por Oscar Niemayer, o CIEP C consistia, em sua estrutura, em um prédio principal, uma quadra polivalente e uma biblioteca. O prédio principal se dividia em três pavimentos (térreo e dois andares acima) interligados por meio de rampas internas gradeadas e fechadas por um portão de ferro. No térreo estavam o refeitório, a cozinha, um pátio coberto e um centro médico (na época, fora de funcionamento). Os outros dois andares comportavam as salas de aula, as salas de administração e o auditório. Também no térreo estavam localizadas a biblioteca e a quadra polivalente. A biblioteca encontrava-se inativa e o acesso a ela havia sido, por este motivo, bloqueado aos alunos. Já a quadra polivalente encontrava-se em funcionamento e dispunha de vestiários e arquibancada. Havia ainda um parquinho externo com alguns brinquedos para os alunos da Educação Infantil. Ao pensar o locus de estudo, parece-nos necessário lembrar que como pesquisadores não estamos imunes à influência das regras que regem o campo e definem seu funcionamento. Recebem destaque, aqui, duas regras vitais para o bom desenvolvimento do trabalho no locus de pesquisa: - Confidencialidade: é a principal regra da ética do pesquisador em campo. É responsável pelo resguardo das informações, transmitidas pessoalmente em confiança, e pela proteção contra a sua exposição não autorizada. Respeitando esta regra, tomamos o cuidado de não expor os participantes desta pesquisa e, por isso, utilizamos aqui nomes fictícios e resguardamos suas imagens. 36 - Privacidade: garante a liberdade que o participante tem de não ser observado sem autorização. Seu não cumprimento pode culminar no rompimento de relações com o campo. Antes de entrarmos no campo, nos reunimos com a direção do CIEP C e conversamos a respeito de que momentos poderiam ser observados e filmados. Houve também um acordo acerca da utilização dessas imagens que, distorcidas na edição, não revelariam a identidade dos participantes. 4.2. Participantes da Pesquisa Participaram da pesquisa as duas professoras e os sessenta e um alunos das Classes de Progressão, além da diretora e da vice-diretora do CIEP C, no ano de 2006. Destes sessenta e um alunos, quinze foram entrevistados individualmente, de maneira que se produzissem registros em áudio e vídeo de seus depoimentos. No capítulo II desta dissertação, que narra a pesquisa em mais detalhes, apresento cada um desses participantes. 4.3. Procedimentos Metodológicos 4.3.1. A abordagem etnográfica Esta pesquisa consiste num estudo de cunho etnográfico em educação e, por isso, analisaremos aqui algumas características da abordagem etnográfica de pesquisa. Fazendo uma breve retrospectiva, vemos que a abordagem qualitativa de pesquisa teve início no final do século XIX quando, a partir do entendimento de que os fenômenos humanos não poderiam ser analisados da mesma maneira 37 que as ciências físicas, busca-se uma nova forma de investigação para as ciências sociais. A estas, por serem mais complexas e dinâmicas, não se podiam aplicar leis gerais. Em oposição à abordagem quantitativa, na qualitativa não mais se divide a realidade em partes a serem mensuradas, mas se busca uma visão geral, holística dos fenômenos. Há interesse em entender o significado que os sujeitos atribuem às suas ações, sem perder de vista o contexto em que estão inseridos. Neste movimento, surge o interacionismo simbólico que tem como objeto de estudo a interpretação que os sujeitos fazem da realidade. Tal interpretação é entendida como mediadora da experiência humana e é construída na interação social com outros sujeitos. De acordo com Spradley (1979), a etnografia surge com a principal preocupação de entender o significado das ações e dos eventos para as pessoas e grupos estudados. Ele afirma que as pessoas criam e utilizam sistemas complexos de significados para entender a si próprias e aos outros e para dar sentido ao mundo em que vivem, além de organizar seus comportamentos nele. Spradley afirma ser cultura esses sistemas de significado. A etnografia seria, então, a tentativa da descrição da cultura de um determinado grupo. A etimologia da palavra etnografia (descrição cultural) faz referência a duas de suas características: as técnicas usadas na coleta de dados sobre valores, práticas e comportamentos de um grupo social e o relato escrito resultante da utilização destas técnicas. Isto nos remete ao conceito de descrição densa 38 (GEERTZ, 1989), onde a cultura seria um contexto dentro do qual os significados poderiam ser densamente descritos. Diante de diversas formas de compreensão do senso comum, de diferentes significados atribuídos pelos participantes as suas experiências, o etnógrafo teria a tarefa de mostrá-los por descrições ao leitor. A descrição densa, portanto, destaca-se como preocupação maior da etnografia. É necessário descrever, da maneira mais completa possível, as ações de um grupo particular e os significados que os integrantes deste grupo atribuem a essas ações. Assim, a etnografia toma por objeto o conjunto de significantes segundo os quais se produzem, percebem e interpretam eventos, fatos, fazeres e contextos. Em comparação com outras pesquisas qualitativas, podemos afirmar que a pesquisa etnográfica se diferencia em não buscar a natureza causal do fenômeno. Em educação, entretanto, se fazem estudos de tipo etnográfico já que o interesse primordial da educação não é a descrição social, mas o processo educativo. Dentro de sala de aula ou nas interações inter-pessoais do ambiente escolar, conseqüentemente, esta abordagem procura desvelar a caixa preta que envolve a cultura escolar como um todo. 4.3.2. Instrumentos de Coleta8 A etnografia tem interesse maior na proposta de pesquisa do que no procedimento de coleta de dados e que, por isso, dá maior ênfase aos problemas 8 São expostos, a partir desse sub-item, os instrumentos de coleta de dados e algumas questões referentes a análise de dados, mas não há uma descrição detalhada dos processos de coleta e análise de dados, tendo em vista que esses serão apresentados no capítulo seguinte, dedicado à descrição da pesquisa. 39 de conteúdo e ao tema pesquisado que aos procedimentos para isso utilizados. Entretanto, parece-me fundamental investir algum tempo na reflexão acerca dos instrumentos de coleta de dados utilizados, já que estes são marcos característicos da abordagem etnográfica de pesquisa. Entre os instrumentos de coleta de dados empregados no campo, destacam-se: a observação participante, a entrevista não-estruturada, a análise de arquivos e o registro em videoteipe. O objetivo central da observação participante é evidenciar a dialética entre os participantes de pesquisa, o contexto e os questionamentos da mesma. Os horários de observação no campo devem ser previamente acordados entre o pesquisador e os participantes da pesquisa. Já as entrevistas não-estruturadas auxiliaram no entendimento da visão dos alunos acerca do fracasso escolar. Além disso, analisei arquivos do CIEP C com o intuito de obter dados oficiais acerca do rendimento dos alunos participantes da pesquisa. O registro interativo em áudio e vídeo foi utilizado na busca por maneiras de captar as imagens, narrativas e percepções que, mais tarde, compuseram um banco de imagens recorrentes de dados. Ademais, foram coletados dados de referências que compuseram o corpo teórico dessa dissertação. Para tanto, tive acesso à bibliotecas universitárias, ao acervo disponível da Internet e à arquivos pessoais. 4.3.3. Análise de dados 40 De maneira geral, compreende-se que a análise de dados coletados deve constituir-se em procedimentos e métodos, neste caso definidos pelos instrumentos etnográficos em questão, que se voltem a descrever, comparar, analisar e interpretar os eventos, sem perder de vista as percepções dos próprios participantes. Neste sentido, destaco o eixo de análise bottom-up (MATTOS, 2001), cuja principal característica é a prática dialética de conversação, através do qual o pesquisador se torna mediador das questões propostas. Jovens (alunos e alunas vítimas do fracasso escolar) Percepções populares (da sociedade e de alunos) acerca do fracasso Professores, família, comunidade escolar e sociedade Realidade educacional Predição e confirmação de preconceitos Administradores escolares, direção, professores, governantes, teóricos e políticos A escolha por este eixo de análise se deve ao reconhecimento do fato de a abordagem etnográfica de pesquisa preocupar-se, desde seus primórdios, em dar voz aqueles que pouco ou nunca são ouvidos (MATTOS, 2001). O eixo bottom-up possibilita o diálogo entre as instâncias, os atores da pesquisa, permitindo e facilitando o entendimento das interações entre eles. A micro-análise etnográfica também foi utilizada diante da necessidade de um detalhamento mais minucioso na descrição de uma cena ou ação em 41 particular. Constituem-se objetos da micro-análise: olhares, pausas, tom de voz, detalhes da interação revestidos de significados (MATTOS, 2002). No capítulo a seguir, apresento em maiores detalhes a pesquisa realizada, destacando a maneira como foi encaminhada e analisando os resultados obtidos. Capítulo II SOBRE A PESQUISA 42 O presente capítulo tem como objetivo descrever a pesquisa desenvolvida, apresentando e analisando o processo da coleta de dados no campo e a posterior análise desses dados. Também nesse capítulo serão evidenciadas as falas dos alunos, sendo destacadas as relações entre elas. 1. Objetivo da pesquisa Antes de iniciar as considerações acerca do processo da pesquisa, lembro que, conforme apontado na introdução, o objetivo da mesma foi identificar e analisar o que dizem alunos da Classe de Progressão sobre o fracasso escolar. Com este objetivo em mente, estive no campo colhendo os dados e os analisei, posteriormente. Entendo que este objetivo é relevante para a área da pesquisa em educação e se justifica na medida que, ouvindo o que os alunos têm a dizer sobre o fracasso escolar, nos aproximamos da compreensão dos fatores que o produzem e chegamos, portanto, mais perto de encontrar vias alternativas e soluções para o mesmo. 2. No campo de pesquisa No período de agosto a dezembro de 2006, estive presente no CIEP C coletando dados para a pesquisa aqui apresentada. Semanalmente, visitei as 43 duas classes de progressão dessa escola e, acompanhada de outra alunapesquisadora, realizei as filmagens, anotações e observações de campo. Além das situações de sala de aula, observei também dois conselhos de classe, sendo apenas o primeiro autorizado à filmagem. Esses dados, colhidos nas observações de sala e dos conselhos, foram registrados em cadernos de campo e videoteipe. Assim, no tangente à instrumentalização material, foram utilizados: material para registro escrito das observações (cadernos, blocos e canetas), gravadores digitais para registro de áudio, câmeras, fitas e mini-cds para registro em videoteipe. Todas as observações e entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para análise. Quando da observação de sala de aula, por vezes foram utilizadas duas ou apenas uma câmera. No caso da utilização de uma câmera, esta era posicionada de forma a filmar a maior parte do ambiente. Regularmente, a câmera era reposicionada para captar outras informações ou para focalizar algum microevento considerado relevante para a desvelação de aspectos relativos à interação entre professora, alunos e tarefa. Quando da utilização de duas câmeras, uma era fixa de maneira a filmar a maior parte da sala e, a outra era móvel e utilizada por um pesquisador apenas para captação de microeventos. Ao todo, foram produzidas aproximadamente 70 horas de filmagem de sala de aula e entrevistas, mais tarde analisadas e editadas em filmes menores. No mês de novembro, já familiarizada com a rotina das classes de progressão do CIEP C, iniciei o trabalho de entrevistas com os alunos. Optei por 44 entrevistar alunos de uma mesma classe, a da Professora Maria, tendo em vista que o tempo era um fator limitador e que, desta forma, obteria um panorama de opiniões de alunos expostos ao mesmo contexto de aula. As entrevistas foram realizadas em uma sala vazia, ao lado da classe de progressão da Professora Maria. Devido à estrutura física do CIEP C, com paredes que não chegam até o teto, por muitas vezes a entrevista foi interrompida pelos ruídos provenientes da sala ao lado. Nestas ocasiões contei, novamente, com o auxílio de outra aluna-pesquisadora que se encarregou, durante as entrevistas, do manuseio da câmera. Apenas uma câmera foi utilizada e esta captava imagens do aluno entrevistado, somente. Ao todo, foram filmadas entre 8 e 9 horas de entrevistas, cada uma com duração aproximada de 30 a 40 minutos. Ao final de cada entrevistei, solicitei que os alunos fizessem dois desenhos, um de uma pessoa aprendendo e outro de sua turma na escola. A intenção desse pedido foi de identificar a visão dos alunos sobre o processo de aprendizagem, e o que é relevante no mesmo, e a imagem que têm do ambiente escolar em que estão inseridos. Os alunos entrevistados foram escolhidos segundo sugestões da Professora Maria, sendo 11 meninos e 4 meninas, num total de 15 alunos. No quadro a seguir, apresento esses alunos, destacando dados referentes ao histórico e rendimento escolar de cada um. Tabela 4. Perfil dos alunos entrevistados. Fonte: Dados coletados nos arquivos e documentos do CIEP C, 2006. 45 Nome9 Idade Histórico Conceito ao final de 200610 12 anos Não repetente Insuficiente 12 anos Repetente Insuficiente 9 anos Não repetente Insuficiente 17 anos Repetente (cursando a progressão pela quarta vez) Regular 10 anos Repetente Regular Hugo Michele Karina Janaína Guilherme 9 Lembro que para a preservação da identidade dos participantes, foram adotados nomes fictícios e, nas imagens, o rosto dos jovens foram alterados. 10 Ao final de 2006, independente dos conceitos obtidos e dos resultados em relação a leitura e escrita, por determinação da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro todos os alunos da Classe de Progressão foram aprovados. 46 Nome9 Idade Histórico Conceito ao final de 200610 10 anos Repetente Regular 10 anos Repetente Regular 9 anos Repetente Regular 13 anos Repetente Bom 12 anos Repetente Bom Gustavo Rodrigo Jaime Timóteo Plínio 47 Nome9 Idade Histórico Conceito ao final de 200610 10 anos Repetente Bom 10 anos Repetente Bom 9 anos Não repetente Muito bom 9 anos Repetente Muito bom 10 anos Não repetente Ótimo (irmão de Renata*) Edson Renata* Luís Fabiano Carlos 48 Nome9 Idade Histórico Conceito ao final de 200610 Analisando o quadro acima, conclui-se que, repetentes ou não, a maioria dos alunos da classe de progressão está em situação de defasagem escolar. Apontada por especialistas como um dos principais problemas do sistema de ensino brasileiro (IBGE, 2007), a defasagem escolar indica a correspondência entre a idade do aluno e a série cursada. De acordo com a adequação série-idade recomendada pelo MEC para o ensino fundamental, considerou-se defasada a criança com 9 anos ou mais de idade ainda freqüentando a 1ª série; com 10 anos ou mais freqüentando a 2ª série; com 11 anos ou mais na 3ª série; com 12 anos ou mais na 4ª série; com 13 anos ou mais na 5ª série; com 14 anos ou mais freqüentando a 6ª série; com 15 anos ou mais freqüentando a 7ª série; e com 16 anos ou mais na 8ª série (IBGE, 2007 p. 42). Tendo em vista esses parâmetros e levando em conta que a Classe de Progressão equivaleria a 2ª série, dos 15 alunos entrevistados apenas 5 não estão em defasagem idade-série, a saber: Karina, Jaime, Luís e Fabiano, todos com 9 anos de idade. As entrevistas foram conduzidas de forma informal, sem perguntas previamente planejadas, de maneira a permitir que os alunos falassem daquilo 49 que consideravam relevante. Iniciei cada entrevista perguntando a série em que os alunos estavam e, partindo desse questionamento, conversamos acerca dos variados assuntos que iam surgindo: progressão, repetência, dinâmica de sala de aula, brigas, comportamento individual, cotidiano fora da escola e violência. A relevância de tais temas se comprova no fato de muitos deles terem sido trazidos por vários alunos. A seguir, apresento o conteúdo da fala desses alunos a respeito de alguns desses temas. 3. Analisando os dados Conforme já explicitado no capítulo anterior, essa pesquisa utilizou o eixo de análise bottom-up para tratar os dados colhidos. Assim, as questões da pesquisa foram trazidas pelo participantes hierarquicamente inferiores, a saber: alunos para professores, professores para direção, etc. Neste movimento, descaracterizou-se a ordem usualmente adotada em pesquisas (top-down), e criou-se a oportunidade de uma comunicação dialógica entre os dados produzidos pelos participantes. Além disso, utilizei as falas dos alunos sobre si mesmos, sobre os outros, as imagens capturadas do videoteipe e, eventualmente11, as falas das professoras para triangular os dados e confirmar, desta forma, sua compreensão. 11 Digo eventualmente porque as professoras não são, nesta pesquisa, as participantes principais. 50 3.1. O que dizem os alunos? Durante as entrevistas com os 15 alunos da classe de progressão do CIEP C muitos foram os assuntos tratados. Entre eles, destaco os de maior freqüência: repetência, progressão, o dia-a-dia na sala e na escola, bagunça, brigas, comportamento, violência externa, sentido social da escola, cotidiano fora da escola e aprendizagem12. Faço, a seguir, um relato alguns dos temas acima mencionados, destacando o entendimento de cada aluno a respeito dos mesmos e as possíveis aproximações e afastamentos das compreensões de cada um. Conversando sobre repetência Um assunto dos mais discutidos, senão o mais discutido, durante as entrevistas foi a repetência. Assim que eu iniciava a conversa perguntando a série do aluno, este frequentemente dava sua resposta atrelada à questão do repetir o ano. Parece simples entender essa conexão tendo em vista que os jovens entrevistados estavam na classe de progressão, destino dos alunos que ao final do ciclo de alfabetização não atingissem os objetivos propostos. 12 O Anexo 1 traz as falas dos entrevistados a respeito de cada um desses assuntos. 51 A grande preocupação dos alunos, ao falar em repetência, parecia ser justificá-la, encontrar-lhe um bode expiatório. Nesta tentativa, destaco três tendências principais, ilustradas no gráfico abaixo. Gráfico 1. Explicações para a repetência 13% 13% Responsabilidade do Aluno Freqüência Responsabilidade da Professora 74% Conforme mostra o gráfico, 74% dos entrevistados responsabilizam o próprio aluno pela retenção na série de estudo, 13% depositam a responsabilidade na professora e outros 13% destacam o absenteísmo como determinante da repetência. Existem, entretanto, variações nas opiniões daqueles que responsabilizam o próprio aluno. Luís destaca a falta de dedicação ao estudo: “Pouco estudo. Ele falou que não conseguiu passar direito porque ele tava fazendo muito pouco dever. E só.” (Luís) Edson e Gustavo explicam o que é preciso fazer para passar de ano, reforçando a visão de Luís: 52 “... tem que saber tudo. Um monte de coisa.” (Edson) “... ser inteligente, saber ler e estudar.” (Gustavo) Na mesma linha de raciocínio, Jaime conta o que fez no passado que o levou a repetir: “Eu não estudava na 2ª, aí eu repeti.” (Jaime) Há, porém, quem deposite no aluno o encargo de passar de ano sob pontos de vista diferentes. Guilherme, por exemplo, destaca o comportamento do aluno como fator de influência no resultado escolar: “Porque faz bagunça na sala, essas coisas, aí não dá, repete.” (Guilherme) Plínio apresenta o mesmo argumento utilizando o comportamento, inclusive, como estratégia para aprovação: “Eu já parei de bagunçar no final do ano... porque senão não passa.” (Plínio) Por fim, existem os alunos que atribuem a culpabilidade da repetência a si próprios por uma série de fatores combinados, entre eles a falta de dedicação, de comprometimento, de comportamento adequado, de estudo, etc. Fabiano é adepto desta visão e afirma: “Repetir de ano é assim: se você não fez o dever, só faz bagunça, só vem pra escola brincar e dormir...” (Fabiano) Renata e Rodrigo completam este pensamento, explicando: “Porque se você não sabe ler, você repete de ano. Se o comportamento não 53 tiver bom. Tem que ficar comportado, a tia falou.” (Renata) “Fazer bastante dever, respeitar a tia pra poder passar de ano.” (Rodrigo) Entre os 13% dos entrevistados que identificaram a freqüência às aulas como fator determinante da repetência, está Karina. Ela destaca a falta, mas a combina com outras atitudes: “... não fez a matéria, faltou aula, ficou na escola de besteira, implicando com o outro...” (Karina) Considero importante, nesta área, destacar a fala de Carlos: “... porque minha mãe me tirava da escola. Eu ia passar, aí minha mãe me tirou.” (Carlos) Na realidade, Carlos não parece tratar, especificamente, da freqüência e da evasão. Embora os use como argumento, em suas palavras ele responsabiliza a mãe pelo fracasso, ou melhor, retira de si a culpa pelo mesmo. Esta intenção, de expiar de si a culpa, também se deixa transparecer no discurso daqueles que apontam para a professora quando da explicação para a repetência. Timóteo deixa claro: “Pra passar tem que fazer tudo que a professora mandar... A gente não faz tudo direito. A gente faz pela metade... porque ela passa muito dever, aí ela vai e apaga rapidinho do dever.” (Timóteo) Mesmo quando tende a afirmar que os alunos são responsáveis pelo cumprimento das tarefas, Timóteo busca nas atitudes da professora um motivo para o fracasso. O mesmo faz Janaína, que vai ainda mais longe nas acusações à 54 professora: “Ela faltava aula. Aí por isso que eu repeti o ano... Eu tava precisando tanto dela, aí ela pegou e me repetiu... Eu fiquei traumatizada. É que eu repeti de ano, ela era muito má. E Deus me livre! E se a gente não conseguia fazer um negócio, mandava a gente fazer tudo de novo. Ir na escola toda marchando. Eu fiquei traumatizada com ela, fiquei com medo dela, fiquei com terror dela.” (Janaína) De uma maneira geral, durante o decorrer da conversa, os entrevistados demonstraram entender os diversos fatores que acarretam uma reprovação. Para alguns deles foi difícil falar da própria experiência, então iniciamos o assunto falando sobre a repetência dos amigos. Assim, eles foram ficando mais à vontade para falar de si e do que sentiram ao serem reprovados. Vejamos o que eles falam a esse respeito: “... foi muito triste porque é muito chato repetir. É muito chato fazer tudo de novo, do que eu já fiz.” (Carlos) “Ficam tristes, algumas não ligam nada, algumas ficam tristes de depois choram. Alguns a mãe bate porque repete de ano. Eu não apanhei, só fiquei de castigo. Nas férias eu fiquei de castigo duas semanas, só. Depois eu comecei a brincar.” (Fabiano) “Foi muito ruim porque eu pensei que eu ia para a terceira, aí eu repeti. Fiquei triste.” (Edson) “Foi muito triste, eu chorei muito. Porque eu não gosto de repetir, é muito chato. Ficar na mesma sala, com os mesmos amigos.” (Guilherme) “Enjoa, né, de ficar na mesma série, com as mesmas pessoas?” (Plínio) “A professora falou que eles choram quando fala que vai repetir de ano. 55 Eles choram. Porque eles que vêem os amigos deles de novo e ficam chorando. Tentando passar de ano pra mãe dar presente no Natal, dia das crianças, aí se não passa, não ganha presente.” (Renata) “É muito ruim porque ao invés de passar, tem gente que é menor que eu e já tá na terceira e eu tô passando maior vergonha na progressão.” (Rodrigo) “... fica atrasado. É muito ruim... ficar com as mesma professora, no mesmo lugar.” (Timóteo) Fica evidente que estes jovens apontam a reprovação como algo desagradável, com conseqüências ruins e que não desejam para o futuro. Conversando sobre a progressão Entender o que os alunos pensam a respeito da classe de progressão nunca foi o objeto desta pesquisa. Entretanto, tal tema não pode ser ignorado diante da confusão que encontrei ao entrevistar os jovens do CIEP C. O primeiro aluno que entrevistei foi o Hugo e iniciei a conversa perguntando seu nome, idade e série. Fiquei de alguma forma surpresa ao me deparar com um aluno que não sabia dizer em que série estava. A pergunta foi exatamente essa ‘Hugo, qual a sua série?’. E como resposta, Hugo me disse o nome de sua professora: “Maria... O nome da série eu não sei, não. Eu sempre esqueço, às vezes.” (Hugo) A partir desta constatação, perguntei a todos os outros entrevistados a série em que estavam e o gráfico abaixo ilustra o caráter das respostas. 56 Gráfico 2. Entendimento sobre a classe de progressão 23% 15% Sabem sua série e a entendem Sabem sua série, mas não a entendem Não sabem sua série 62% Apenas 15% dos jovens souberam me disser que estavam na progressão e explicar no que consistia esta série. Considerei como explicações corretas aquelas que identificavam as séries anteriores e posteriores à progressão, respectivamente, as antigas13 2ª e 3ª séries, ou aquelas que reconheciam que os alunos que, até a antiga 2ª série, não atingissem os objetivos seriam encaminhados à progressão. Entre estes 15% está Renata, que explica: “Tô na progressão.. Vem a 1ª, aí vem a 2ª, 3ª e 4ª. A progressão fica na 2ª. Não, assim, se você não passar de ano, aí vai e vai pra progressão.” (Renata) A maioria dos entrevistados, num total de 62%, sabiam estar na classe de progressão mas apresentavam pouca, ou nenhuma clareza acerca das características dessa classe. Entre eles está Rodrigo: “Antes da progressão eu tava no jardim, aí eu sabia ler muito. Eu passei pra progressão porque eu era o mais sabido da turma. Passei porque sabia mais.” (Rodrigo) 13 Escrevo ‘antigas’ pois os entrevistados se referiam às séries segundo a nomenclatura anterior ao sistema de ciclos. 57 Embora demonstre não compreender o que é a progressão, mais a frente Rodrigo deixa claro em seu discurso que esta série não é desejada pelos alunos: “... eu tô passando maior vergonha na progressão... porque é uma série que ninguém gosta. Porque tem gente menor que tá na 4ª, na 3ª, tem gente do meu tamanho que tá na 5ª. E eu ainda tô na progressão com dez anos na cara, mas também entrei atrasado quando era pequeno.” (Rodrigo) E os 23% restantes sequer souberam dizer em que série estavam. Perguntei a Michele em que série ela estava e ela ficou em silêncio. Perguntei se ela lembrava sua série e ela balançou a cabeça negativamente. Tentei saber, então, se ela lembrava a série em que estava no ano anterior e, novamente, a menina balançou a cabeça em sinal negativo. Ainda questionei sobre o futuro, tentando saber para que série ela iria no ano seguinte e não houve resposta. Finalmente perguntei ‘Para qual série você quer ir?’ e Michele respondeu: “Qualquer uma!” (Michele) Provavelmente, para os alunos, as aulas da classe de progressão refletiam essa confusão: alguns diziam que estudavam a matéria da 2ª série, outros da 3ª, ou ainda das duas juntas. Vejamos o que disse Renata: “Tô na progressão. A gente faz dever da 2ª, não, a gente faz dever da 2ª e da 3ª. Tem vezes que a gente faz até da 4ª!” (Renata) Criada para receber os alunos que, ao final do ciclo de alfabetização, não houvessem alcançado ainda os objetivos propostos e para trabalhar nesses 58 objetivos no sentido de reinseri-los o quanto antes na série seguinte, a classe de progressão demonstrou-se falha e, possivelmente, daí decorre tamanha confusão. Encontramos no CIEP C, por exemplo, alunos que faziam a progressão pela 2ª, 3ª ou até 4ª vez, como era o caso de Janaína. Fica claramente difícil compreender o sentido da progressão tendo em vista que ele foi invertido e, para estes alunos, não funciona mais como via de promoção acadêmica. Conversando sobre o dia-a-dia na sala e na escola Durante as entrevistas, os alunos me contaram suas impressões sobre a rotina na sala de aula e na escola, destacando os acontecimentos mais freqüentes nesses dois lugares. O gráfico abaixo mostra o número de alunos que mencionou cada uma das situações descritas no eixo horizontal ao falar sobre sua turma e escola. O eixo horizontal do gráfico aponta 12 como número limite pois foi essa a quantidade de alunos que tratou, com relevância, do tema dia-adia na sala e na escola. Gráfico 3. Sobre o dia-a-dia na sala e na escola (assuntos separados pela quantidade de alunos que o abordaram) Dos 12 jovens, 5 mencionaram a bagunça como algo recorrente em sala; 59 7 destacaram o dever e a tarefa; 5 falaram acerca das brincadeiras; 4 apontaram para a ocorrência de brigas entre alunos; 4 trouxeram à tona a questão do horário de almoço da professora; 3 citaram a exibição de filmes em aula; 5 fizeram referência às broncas da professora; e 2 mencionaram outras questões como a merenda e a aula de artes. A bagunça e a briga foram temas em que me aprofundei mais nas entrevistas e, mais a frente, tratarei deles em separado. Entretanto, quando questionados a respeito do que acontecia dentro de sala, de como era a turma, os entrevistados mencionaram as brigas e a bagunça, relacionando-as com freqüência às reações da professora. Rodrigo, Guilherme e Hugo afirmam: “Um fica fazendo bagunça e bota a culpa nos outros, aí a tia vai lá e fica estressada.” (Rodrigo) “Lá todo mundo faz bagunça, eu também. Lá a professora fala ‘Não vai pro recreio!’ Aí acaba deixando...” (Guilherme) “A tia Maria é boazinha, mas tem algumas crianças que implicam comigo, aí eu saio de perto. Tem algumas crianças, que nem o Luís, que ficam me perturbando... eu e a Karina. Aí eu fico batendo nele, aí eu falo pra tia Maria. A tia Maria separa.” (Hugo) O horário de almoço da professora foi citado como agravante ao problema das brigas e da bagunça. Segundo explicação dos alunos e conforme observado no período em que estive no campo, a professora não almoçava no mesmo horário que os jovens. Após almoço e recreio, os alunos retornavam à sala e aí, sim, a professora descia para almoçar, deixando-os sozinhos por algum tempo. Vejamos o que eles disseram sobre isso: 60 “Quando a professora vai almoçar... fica todo mundo lá fora. Aí a professora pensa que todo mundo da sala tá lá fora.” (Renata) “A tia sai para jantar, almoçar, essas coisas, tomar café, ou então ir no banheiro. Aí todo mundo faz bagunça e a tia não sabe quem foi.” (Rodrigo) “Na minha sala tem gente que briga, tem gente que fica fazendo bagunça quando a professora vai almoçar, não respeita ela.” (Janaína) “... gostam de bater quando a professora sai... Ela sai porque ela tem que comer, na hora do almoço dela. Aí quando ela vai resolver um problema, aí eles começam a fazer bagunça.” (Jaime) Ao desenhar uma pessoa aprendendo, Luís também traz à tona a questão do almoço da professora. Imagem 1. Uma pessoa aprendendo (Luís) Fabiano copiando as contas do quadro Luís Professora almoçando “Então o que ele está fazendo?” (Fernanda) “Copiando a continha no quadro.” (Luís) 61 “E quem deixou as continhas?” (Fernanda) “A professora.” (Luís) “E agora, onde ela está?” (Fernanda) “Ela tá almoçando... Posso fazer ela almoçando?” (Luís, sorrindo) Sete alunos fizeram alusão ao dever quando indagados a respeito do cotidiano em sala, entretanto, o fizeram sob pontos de vista diferentes. Houve quem destacasse a tarefa como algo rotineiro, que todos realizam sem problemas. “A tia passa matéria nova, aí a gente fica lendo e fica escrevendo o que a tia passa no quadro.” (Karina) Outros, a apontaram como instrumento de controle da professora, uma punição para o mau comportamento. “A gente faz dever quando a tia sai. Ela sai e se fizer bagunça tem que fazer mais dever.” (Gustavo) Plínio reclamou da dificuldade da tarefa, relacionando-a a função da professora. “A gente pede pra tia passar mais forte o dever, pra botar mais difícil, mas ela não passa. Porque a obrigação dela é fazer dever fácil pros alunos... Um pouquinho mais difícil seria bom.” (Plínio) Por outro lado, Janaína relatou que os colegas não fazem o dever como deveriam. “E sabe que tem trabalho no quadro, e tem que fazer o trabalho no quadro, 62 aí vai levantar, brincar, vai conversar, bater papo, mas não faz o trabalho, não tem jeito.” (Janaína) Como destacado por Janaína, a brincadeira parece ser uma das alternativas preferidas à tarefa e cinco alunos falaram dela ao contarem sobre sua turma. “A minha turma é legal, engraçada. Porque de vez em quando eles fazem brincadeira, aí a gente ri, ri muito.” (Plínio) “É bom porque tem coisa para a gente brincar. Às vezes a gente brinca de sinuca, dominó, pega-vareta, essas coisas todas de brinquedo... jogo de botão.” (Luís) Além das brincadeiras, os alunos demonstraram interesse também nas aulas de vídeo e de artes, destacando-as como um diferencial entre este ano letivo e o anterior. “... a gente vê vídeo, tem aula de artes, isso nenhuma outra professora passou pra gente.” (Janaína) Finalmente, os entrevistados mencionaram as broncas da professora como algo recorrente em sala. As opiniões a respeito da bronca, entretanto, se mostram variadas. “Quando a professora dá um grito é bom... É bom porque ela tá explicando, ela dá um grito e a gente presta atenção nela. Ela mandar sentar, tem que obedecer, manda a gente sentar, parar e ficar quieto.” (Janaína) “Outro dia a minha amiga bateu a porta , a porta quebrou. Aí tomou um esporro e até agora, hoje, ela não veio.” (Edson) 63 Edson identifica o esporro como fator de afastamento dos alunos. Ao contrário, Janaína aprova as broncas da professora e as entende como forma de controle eficaz capaz de beneficiar a aprendizagem dos mesmos. Como relatado, diversos foram os temas apontados na conversa sobre a sala de aula e o que acontece durante o dia letivo. A seguir, enfatizo as questões da bagunça e das brigas que, ao meu ver, merecem destaque. Conversando sobre bagunça Em todas as entrevistas falou-se muito sobre a bagunça e seus diversos aspectos. Percebendo o fato, perguntei aos jovens o que, na opinião deles, era considerado bagunça. Eis algumas das respostas que obtive: “Bagunça é quando a gente não faz o dever e fica bagunçando na sala.” (Luís) “... ficar batendo na mesa, brigando, saindo de sala. Porque a professora fala para a gente não sair e eles saem.” (Carlos) “Ficar batendo com a cadeira, correndo na sala, fazendo ‘cosca’.” (Rodrigo) “Tipo, a cadeira está arrumada, aí começa a ficar jogando as coisas... Aí é bagunça.” (Jaime) Em geral, as definições dadas para a bagunça revelam que ela consistem em atividades paralelas aquela proposta pela professora, normalmente envolvendo movimento e agitação pela sala. Abaixo, destaco quatro imagens capturadas do videoteipe que retratam um momento de bagunça durante a aula. 64 Imagem 2. Aluna canta e dança 1 2 3 4 As imagens acima foram filmadas durante a aula na sala da Professora Maria, no CIEP C. No exato momento desta captura, a professora estava perto de sua mesa, à porta, tentando dar instruções aos alunos que, por sua vez, conversavam. Na cena 1 vemos a aluna apontada pela seta levantar de sua mesa e pegar uma garrafa a qual utiliza como microfone para cantar para os amigos. Nas cenas 2 e 3 esta mesma aluna começa a dançar, girando em volta do próprio corpo com a garrafa na mão. Finalmente, na cena 4 a aluna recoloca a garrafa na mesa e sorri para os 65 amigos que retribuem o sorriso. Ela volta para seu lugar sem, em momento algum, ser repreendida. Tendo explicado o significado da bagunça, os entrevistados relataram também suas reações à mesma. “Porque quando eu tô quieto, todo mundo me perturba para fazer bagunça.” (Rodrigo) “Tem vezes que eu bagunço...” (Timóteo) “Lá na minha sala é muita bagunça, bagunça pra caraca. Aí começam a jogar as coisas... Vum, vum... E eu vou só abaixando assim, oh!” (Fabiano) Fabiano afirma se abaixar para escapar dos objetos lançados na sala, mas vemos nas filmagens que além de tentar se esquivar, ele se envolve e participa ativamente dos lançamentos. Imagem 3. Fabiano e Hugo fazem guerra de bolinha 1 2 3 4 5 6 66 As cenas acima foram filmadas durante uma aula de artes, na sala da Professora Maria. Na cena 1 vemos a professora de artes, mas na seqüência ela sai do alcance da câmera porque vai para o canto esquerdo da sala conversar com dois alunos. Enquanto isso acontece, Fabiano (indicado pela seta vermelha) e Hugo (indicado pela seta amarela) travam uma guerra de bolinha de papel. Na primeira imagem, Fabiano se protege do lançamento de Hugo, exatamente como afirmou fazer durante a entrevista. Após ser atingido, Fabiano se prepara para arremessar a bolinha em Hugo (cenas 2, 3 e 4) enquanto o colega foge, correndo envolta da mesa. Na cena 5, Fabiano olha para trás e confere que a professora não os observa. Finalmente, na cena 6, ele atinge Hugo com a bolinha. Os dois voltam para seus lugares, discutindo. O lançamento de objetos pelo ar não é atividade realizada somente por Fabiano e Hugo. Em outras ocasiões, presenciamos o arremesso de lápis, canetas, livros e até tesouras pela sala. A seguir, destaco cenas do arremesso de um livro ocorrido também durante uma aula de artes. Imagem 4. Alunos arremessam livro 2 1 3 4 5 67 As cenas acima, filmadas durante a aula de artes, mostram um aluno (seta vermelha) arremessando um livro (seta azul) na tentativa de atingir uma colega (seta amarela). As primeiras duas imagens mostram o trajeto do livro até que na cena 3 a menina seja atingida. A aluna pega o livro lançado e demonstra, corporalmente, que não pretende devolvê-lo, o que faz o aluno se levantar de seu lugar (cena 4), ir até ela e tomar o livro à força (cena 5). Os jovens contaram também as conseqüências que trazem as situações de bagunça. “Tem várias coisas, acontece acidente. Neguinho pega um carrinho e taca na janela e quebra. Aquela lá tá quebrada...” (Fabiano) “Ela (a professora) coloca em outra sala. Em pé, de castigo. Na 3ª série ou, então, na 4ª. Já fui, foi muito ruim, eu fiquei cansado.” (Carlos) Ao contrário de Carlos, Guilherme não identifica uma punição eficaz da professora contra a bagunça dos alunos. Ele afirma que ela ameaça punir, mas acaba cedendo. “Aí começa a bagunça. A professora chega: ‘Pára! Todo mundo tá sem recreio!’ Aí depois: ‘Vai pro recreio todo mundo!’” (Guilherme) É Guilherme, também, que traz o histórico familiar para explicar as conseqüências da bagunça. “Meu pai também, ele sabia fazer bagunça na sala, não sabe ler, não. Nem meu pai, nem minha avó.” (Guilherme) 68 Associando a bagunça com o fracasso na aprendizagem, o jovem se identifica com o passado de familiares, como se estivesse contingenciado a essa realidade. Conversando sobre brigas Durante as quinze entrevistas que realizei, diversos foram os casos de briga entre alunos que me foram contados. Alguns pareciam me relatar as brigas como se fizessem queixa a um adulto, na esperança de que algo pudesse ser modificado. Outros, porém, simplesmente falavam sobre o que estão acostumados a ver, sem demonstrar envolvimento ou preocupação com aquilo. “Uns meninos fazem muita bagunça e ficam pro lado de fora, batem nas meninas. Batem nas meninas, chutam.” (Renata) “É um grupo, eles brigam assim de porrada, pegam o outro na gravata. O Márcio pegou o Edson na gravata e quase matou ele. Ele ficou roxo. Ele tava brigando, o Márcio não queria devolver a bola do Edson.” (Gustavo) Como evidente na explicação de Gustavo, uma das tendências dos jovens, ao relatar as brigas que acontecem na escola, é encontrar justificativas e explicações para elas. “Porque toda aula é briga, briga, briga. Toda aula. Porque eles ficam brigando... porque eles ficam brigando pensando que é algum adversário, achando que bate em todo mundo do colégio. Tem algumas pessoas que ficam achando que bate em todo mundo. Que quer brigar demais.” (Renata) “Só brigo quando alguém implica comigo.” (Carlos) 69 A implicância entre colegas é notória dentro de sala. Eles provocam uns aos outros para mostrar autoridade, se afirmar, iniciar uma briga ou, unicamente, para se divertir. Na seqüência de imagens abaixo, vemos uma aluna usar a provocação para começar uma briga. Imagem 5. Briga entre duas alunas 70 1 2 3 4 5 6 7 8 As oito cenas acima foram capturadas do videoteipe de uma aula de artes. Na primeira imagem vemos a aluna A, identificada pela seta vermelha, se 71 dirigir a sua colega, aluna B apontada pela seta amarela, e provocá-la, passando a mão no seu rosto. A aluna B se levante e reage à implicância, indo até sua colega para tirar satisfações (imagem 2). As alunas começam a brigar mas não conseguimos vê-las por algum tempo (figura 3) tendo em vista que outra briga se posiciona na frente da câmera. As imagens 4, 5 e 6 mostram a batalha entre as duas que envolve tapas e puxões de cabelo. A aluna A abandona a luta e vai se sentar, porém sua adversária inicia agora uma nova disputa com a colega sentada à mesa (figura 7). Finalmente, na última cena, a aluna B se vira e retoma a briga inicial. Em algumas dessas imagens vemos a professora de artes, indicada pela seta azul no canto esquerdo da sala, que ocupada com outros jovens em sua mesa, não interfere na situação. Plínio justifica suas brigas relacionando-as até com as ações da professora em relação a ele. “Minha tia de vez em quando ela tá alegre, de vez em quando ela não tá. Tá de mau humor. Aí ela briga, né? Ela me bota pra fora de sala, aí eu fico com raiva. Ontem aconteceu. Tinha um menino do meu lado, aí eu falei. Aí o menino me deu um pouco de guaraná pra ele, aí ele bebeu, aí eu fiz assim, aí ele bebeu, derramou e foi falar com a tia. Aí a tia me botou pra fora de sala. Aí ela falou que só podia entrar com a minha mãe. Aí ontem eu vim pra escola, ela falou que não podia. Aí na hora do recreio eu fui pra trás do menino, aí eu fiquei com raiva e desci lá embaixo e meti a porrada nele. Bati nele. Aí um colega dele veio me bater, aí ele desceu. Aí de tarde a tia falou que só podia entrar com a minha mãe.” (Plínio) Esse mesmo acontecimento é relatado por Renata, irmã de Plínio, que também explica os mecanismos de punição da professora quando da ocorrência de brigas. “Ele é muito chato, ele bate em todo mundo. Aí a professora chamou até a 72 minha mãe aqui. Porque ele brigou, a professora pegou e botou ele de castigo. O outro ela não botou, aí ele foi e bateu no outro. Aí a tia botou ele de castigo. Mas a minha mãe não veio, não. Aí a diretora mandou minha mãe assinar o nome dela, falar que ela já sabe. Porque ela trabalha muito.” (Renata) “A professora chega e leva pra secretaria. A professora só falou assim ‘Se brigarem na sala, vão pra secretaria’. (Renata) As relações de amizade e pertencimento entre os jovens são, também, estabelecidas sob a influência da dinâmica das brigas, como afirma Guilherme. “Eu fico com o Grego que me defende de todo mundo, que ele é o mais... que ele quebra o Capitão, o Leandro, ele me defende do Leandro. Tem três garotos querendo me pegar, ele já falou que não vai deixar. Eles querem pegar meu dinheiro, aí eu não deixava, é o Plínio e o Jefferson. Aí eu não deixei.” (Guilherme) Nesse trecho, Guilherme afirma ser aliado à Grego para se defender de Leandro. Este aluno, já com 17 anos, é conhecido na sala como Capitão e este apelido parece revelar o fato de o mesmo ser temido por muitos de sua sala. “... o Leandro é o maior mané. Ele só sabe ficar batendo nos outros e eu não gosto disso.” (Janaína) As imagens destacadas a seguir mostram uma briga entre Fabiano e Leandro, deixando evidente a autoridade do capitão que, mesmo quando contestada, prevalece. 73 Imagem 6. Fabiano x Capitão 1 2 3 4 5 6 Esta seqüência de eventos foi separada em dois grupos de imagens. As seis cenas acima mostram uma briga entre Fabiano (seta vermelha) e Leandro, o Capitão (seta amarela). Nas imagens 1, 2 e 3, vemos Leandro se dirigir à mesa de Fabiano que se levanta, inicia uma briga e corre atrás do colega. Fabiano alcança o Capitão e o acerta com um chute (figura 4). Vendo que sua camisa foi suja pelo chute de Fabiano, Leandro vai atrás do aluno exigindo providências enquanto este, por sua vez, tenta fugir. Outras seis cenas, destacadas abaixo, mostram o desfecho da briga entre Leandro e Fabiano. Descontente por estar com a camisa suja, Leandro faz queixas à professora (figura 7) e isto leva Fabiano a se defender, acusando Capitão de ter começado a briga (figura 8). Na imagem 9, Leandro vai até Fabiano e exige que ele limpe a camisa que sujou. Fabiano não hesita e prontamente tenta limpar o uniforme do colega. Enquanto ele limpa, a 74 Professora Maria se aproxima (seta azul, figura 10), separa os dois meninos (11) e leva Capitão até o seu lugar (12). Ao retornar, ela se vira para Fabiano, já sentado, e o chama de abusado. 7 8 9 10 11 12 As brigas iniciadas por motivos variados se mostraram, portanto, recorrentes na fala dos alunos e nas imagens filmadas. Elas se caracterizavam como violência intra-escolar mas deixavam a sensação de que tinha sua origem fora daquele ambiente. Os relatos sobre a violência externa, descritos a seguir, trouxeram uma pista dessa origem. Conversando sobre a violência externa Entendo que a violência urbana não nasce ou se origina na escola, mas não posso negar que dentro dessa instituição se vê inúmeros reflexões dela. 75 Falando sobre bagunça, Fabiano foi o primeiro a inserir o assunto da violência externa nas entrevistas. Ele contou sobre um menino do Vidigal que fazia muita bagunça e disse que sua mãe havia chamado o Conselho Tutelar para levar o tal menino. Curiosa a respeito do entendimento do aluno sobre a função do Conselho Tutelar, perguntei se ele já tinha visto algum membro do mesmo e ele me respondeu que não. Indaguei, então, se ele sabia que pessoas eram ‘levadas’ (expressão usada pelo aluno) pelo Conselho Tutelar. “Ninguém já foi. Lá é uma cadeia assim de criança, assim que apronta, bate na mãe, responde a mãe, quebra tudo dentro de casa, faz várias coisas, bagunça, bate no pai, bate na mãe… Vão para o Conselho Tutelar. A mãe liga pro Conselho Tutelar, o Conselho Tutelar vai em casa, vai buscar o menino, dá paulada, o menino entra e vai pro Conselho Tutelar. Eu fiquei sabendo. Eu já vi aqui, também, um garoto já tomou muita paulada aqui… Do Conselho Tutelar. Aí o guarda falou ‘Tu é maluco de subir aí na escola?’ Aí o guarda começou a dar paulada nele… Não, já tava dormindo lá em cima. O garoto falou para a diretora ‘Olha lá dois mendigos dormindo’. Aí chamaram o Conselho Tutelar e falaram ‘Desce, desce’. Aí começaram a bater, levaram pro Conselho Tutelar. Quem vai para o Conselho Tutelar nunca mais volta. Os mendigos ficam, tem uns que sai.” (Fabiano) O relato de Fabiano parece indicar que o Conselho Tutelar é usado pelas famílias como ameaça de punição aos jovens que não se comportam de maneira desejada. Guilherme confirma essa compreensão: “Eu fugia... aí ela (mãe) me levou de lá, aí eu quase fui pro Conselho Tutelar, eu e minha irmã porque minha irmã respondia minha mãe... Com o tio lá da Prefeitura, que lá na Prefeitura tem um tio mauzão. Eu fui lá, aí um negão grandão lá falou ‘Bora!’ Aí eu ‘Não, não, não!’ Chorei 76 muito, aí ele falou ‘Não, não, não vai não’.” (Guilherme) O Conselho Tutelar, portanto, passa a ser instância de violência externa temida pelos jovens ameaçados em casa e na escola. Entretanto, ele não é de maneira alguma o único contato desses alunos com a violência. Como tantos outros no Rio de Janeiro e no Brasil, os meninos e meninas do CIEP C experimentam de perto, em seu cotidiano, uma violência que não impõem limite para os atos de destruição do outro. A exposição diária a esta realidade culmina em banalizá-la. “Meu pai liga pra mim, ele vem aqui, me leva pra comprar roupa. Eu fico lá na casa dele. Lá é melhor que a Rocinha. Lá eu ando de cavalo, essas coisas. Na Rocinha, não, só tem tiro, as pessoas morrendo. Meu tio era bandido e saiu da boca. Se ele morresse minha avó ia chorar, todo mundo ia chorar.” (Rodrigo) “Aqui é muito violento. Eu vejo muita gente morrendo, na Rocinha... Moro com a minha mãe e com os meus irmãos... Um trabalha, o outro tá com a minha avó, e o outro tá dodói, tá no médico. Veio todo mundo pra cima dele, armaram pra ele... Aí na cadeia chamaram ele pra roubar. Aí ele tomou três tiros. Acho que na Kombi. Aí levaram ele e falaram que ele tava quase morrendo. Aí falaram que foi Deus que salvou ele, que ele tava quase morrendo. Eu não acreditei, não, tia, professora. Eu não acreditei, não. Porque ele era meu melhor irmão. Pra mim não era meu irmão, era outra pessoa que tava morrendo. Depois que eu fui saber que era meu irmão. E depois, de manhã cedo, lá para as sete e meia, foi o exame dele lá no hospital. Mas tenho fé em Deus que ele vai sair livre, aí depois vem o julgamento. Ele vai para o julgamento com o juiz. Ele era um bom trabalhador... Ele carregava o material, levava cerveja para os outros. Ele entrou na boca pra seguir o exemplo do meu outro irmão.” (Janaína) 77 “É, tá pichada. Isso daqui foi meu amigo. A.D.A. É aquilo que é de bandido. É dos caras lá que são A.D.A. É da bandidagem. Eles fazem tiroteio, às vezes eles matam os próprios bandidos deles. Isso aqui vai virar pano de chão.” (Carlos) Carlos fala sobre a A.D.A, sigla escrita em sua camisa do uniforme, que significa ‘Amigo dos amigos’ e é uma das três facções criminosas que dominam os pontos de venda de drogas no Estado do Rio de Janeiro. Desde 2004 esta facção lidera o tráfico na favela da Rocinha onde residem Carlos, Janaína, Rodrigo e muitos outros jovens do CIEP C. O aluno evidencia reconhecer o caráter prejudicial da identificação com uma facção criminosa, ao afirmar que sua camisa vai virar pano de chão. Mas, apesar disso, não deixa de ser influenciado pelo contexto em que está inserido, demonstrando certo entusiasmo nesta identificação. A influência do contexto externo de violência invade a escola e, segundo os próprios alunos, influencia a aprendizagem. Guilherme explica os motivos de sua repetência e fugas: “Eu repeti de ano, eu fugia. Meu pai foi preso. Ele foi roubar outro cara.” (Guilherme) E Jaime justifica seu desejo de sair do CIEP C, afirmando que no ano seguinte estará em outra escola. Pergunto o motivo e ele diz que o CIEP C é muito chato, tem muitas brigas, lá foi atingido por um lápis jogado por outro aluno. Questiono se essas situações não vão se repetir em outras escolas e ele responde: 78 “Eu acho que acontece, mas na escola que eu estudava, não. É porque aqui tem vários filhos de bandido, tem muito filho de bandido. Tem alguns pais que vem com arma na cintura... Quando a professora vai fazer uma reclamação, aí ele quer pegar a professora ou o filho dele. Teve uma mãe que queria bater na minha professora porque a filha dela fazia muita bagunça.. Aí juntou com as outras mães e quase deu porrada.” (Jaime) A explicação de Jaime não deixa dúvidas da relação entre a violência fora da escola e aquela interna à instituição. À fala dele, adicionam-se tantas outras, que destaco a seguir. Recortes das entrevistas Conforme apresentado acima, as falas dos entrevistados foram categorizadas de acordo com temas específicos considerados relevantes para a pesquisa. Neste subitem apresento um recorte dessas entrevistas, destacando as falas principais de cada aluno por categoria. REPETÊNCIA Aliada ao abandono e à evasão, a repetência soma aos problemas crônicos da educação escolar brasileira. As inúmeras pesquisas educacionais que se voltam ao tema parecem chegar com freqüência as mesmas conclusões: um ensino de pouca qualidade, agravado por questões político-sociais, culmina em elevadas taxas de contínuas repetências que, por sua vez, geram abandono e evasão. “Mesmo correndo o risco de ser simplista e reducionista, achamos que a prática da repetência está na própria origem da escola brasileira (...) Parece que a prática da repetência está contida na pedagogia do sistema 79 como um todo(...) como se fizesse parte integral da pedagogia, aceita por todos os agentes do processo de forma natural. (RIBEIRO, 1991, p. 83) A ameaça da repetência, portanto, é facilmente percebida no cotidiano escolar. Assim sendo, foi tema recorrente das entrevistas realizadas. Eis o que os alunos disseram sobre ela. Conheço um amigo meu da escola que disse que repetiu de ano duas vezes. Ele falou que repetiu de Luís ano umas duas vezes. (Repetir de ano)... É passar... Faz de conta vai passar de uma série aí ele não consegue passar, aí volta para a mesma série que ta. Ele pensa que vai passar mais não passa. As pessoas repetem por... Pouco estudo. Ele falou que não conseguiu passar direito, porque ele tava fazendo muito pouco dever. E só. Eu repeti de ano... porque minha mãe me tirava da escola, Eu ia passar, aí minha mãe me tirou. Carlos Quando eu repeti de ano... foi muito triste porque é muito chato repetir. É muito chato fazer tudo de novo, do que eu já fiz. Tem aqueles que não sabem ler, não sabem escrever, eles repetem, não ficam de férias. Eles estudam, estudam... 80 Repetir de ano é assim: se você não fez o dever, só faz bagunça, só vem pra escola brincar e dormir. Aí é Fabiano por isso que a criança não sabe ler e escrever, e não vai ser nada na vida. Ficar bagunçando, brincando de pique-pega, ficar batendo na mesa, várias coisas. Às vezes a gente cresce e a criança repete de ano. As crianças vão... eu moro numa casa também, aí as crianças vão e repetem de ano. Na minha casa tem um monte de criança que só faz bagunça. Aí tem gente que faz bagunça, que faz tudo. Tem um garoto que mora perto da minha casa que diz que a escola é uma nojeira, e não aprende nada. Ele é mendigo, ele repetiu. Repetiu, saiu da escola, bagunçando. As crianças, quando repetem, umas ficam tristes. Outras falam assim, oh: ‘Sai daí, ô, você não tem jeito de passar de ano. Tá bom, não tô nem aí, ô’. Ficam tristes, algumas não ligam nada, algumas ficam tristes e depois choram. Alguns a mãe bate porque repete de ano. Eu não apanhei, só fiquei de castigo. Nas férias eu fiquei de castigo duas semanas, só. Depois eu comecei a brincar. 81 (Repetir de ano é)... continuar, se não passar você vai... fica na mesma série ou então já vai para outra Edson sala e fica na progressão. Foi muito ruim porque eu pensei que eu ia para a terceira, aí eu repeti. Fiquei triste. (Para passar de ano)... tem que saber tudo. Um monte de coisa. Porque faz bagunça na sala, essas coisas, aí não dá, repete. Guilherme Foi muito triste, eu chorei muito. Porque eu não gosto de repetir, é muito chato. Ficar na mesma sala com os mesmo amigos. Fazer mais amigos diferentes... Gustavo Karina (Para passar de ano precisa)... ser inteligente, saber ler e estudar. E se eu não tirar uma nota boa? Aí você não vai passar. Vai ficar meio burra, vai ficar aqui mesmo. Aí você vai fazer de novo. 82 (Repete de ano quem)... não fez a matéria, faltou aula, ficou na escola de besteira, implicando com o outro, batendo, ficando no portão esperando ver os professores sair. Eu já parei de bagunçar no final do ano... porque senão não passa. Ou desce mais uma série ou fica na Plínio progressão. Tem um menino lá na minha sala, o Leandro, ele é grandão, tem 14 anos. Acho que ele é muito burro. Ele repetiu muitas vezes. (Quando a pessoa repete)... fica chata, né? Enjoa, né, de ficar na mesma série com as mesmas pessoas. Porque se você não sabe ler, você repete de ano. Se o comportamento não tiver bom. Tem que ficar Renata comportado, a tia falou. Não pode fazer barulho, sair pra fora, tem que fazer todo o dever do quadro, tem que ficar quieto quando a professora vai almoçar. A professora falou que eles choram quando fala que vai repetir de ano. Eles choram. Porque eles que vêem os amigos deles de novo e ficam chorando. Tentando passar de ano pra mãe dar presente no Natal, dia das crianças, aí se não passa, não ganha presente. 83 A tia falou ‘Não adianta chorar porque se não tiver quieto, não vai passar de ano’. Eu não passei, eu repeti. Tipo assim, eu tava na aula um tempão aí eu ia passar, e não passa aí vai pra Rodrigo progressão. É muito ruim porque ao invés de passar, tem gente que é menor que eu e já tá na terceira e eu tô passando maior vergonha na progressão. A minha idéia é que se eu ficar aqui e a tia falou que se eu fizer muito dever bem mesmo, ela falou que não quer me ver na progressão, quer me ver na terceira. Eu quero ir pra terceira. Fazer bastante dever, respeitar a tia, pra poder passar de ano. É porque a minha mãe me colocou pra fazer tudo de novo... Pra eu aprender tudo o que eu não aprendi. Timóteo Eu faltava muito. Pra brincar. (Quem repete de ano...) fica atrasado. É muito ruim... ficar com a mesma professora, no mesmo lugar. Pra passar tem que fazer tudo que a professora 84 mandar. A gente não faz tudo direito. A gente faz pela metade. Porque ela passa muito dever, aí ela vai, ela apaga rapidinho o dever. 85 Ela faltava a aula. (falando da professora anterior) Aí por isso que eu repeti o ano. Janaína Ela (a professora) fala que tem alguns que tem dificuldade, e ela pega e repete de ano. Dificuldade de ler... Aí ela foi e repetiu. Eu tava precisando tanto dela, aí ela pegou e me repetiu. Precisando pra me ajudar, mas eu tenho fé que nesse daqui eu passo. Esse ano eu passo porque eu tenho que sair daqui. Desde pequenininha eu tô aqui e a minha mãe falou que eu tenho que sair. Eu fiquei traumatizada. É que eu repeti de ano, ela era muito má (a professora). E Deus me livre! E se a gente não conseguia fazer um negócio, mandava a gente fazer tudo de novo. Ir na escola toda marchando. Eu fiquei traumatizada com ela, fiquei com medo dela, fiquei com terror dela. Toda vez que eu chegava em casa, eu falava pra minha mãe assim, no começo do ano, que ia parar de estudar. ‘Me tira da escola, me tira da escola’. Aí foi por isso que eu parei de estudar. Aí depois eu pensei melhor e falei ‘Não quero estudar mais, não’. Porque eu fiquei assustada, fiquei muito assustada com esse colégio. Ele é da época do cemitério. É porque na época eu não prestava atenção na aula, agora sim. Eu quero passar desse ano aqui e quando eu passar, vou para um outro colégio. E quando acabar o outro colégio, vou embora daqui. 86 Tia, eu me esforço pra passar de ano. Aí eu me Hugo esforço pra passar de ano. Eu aprendo as coisas com a minha mãe. Aí eu faço as coisas... Mas eu vou me esforçar, vou me esforçar muito. Porque tem alguns alunos que não querem fazer nada, e na minha turma tem alguns alunos que faltam. Tô na progressão. Eu repeti de ano... (Ano passado eu estava na)... segunda. Eu não estudava na segunda, aí eu repeti. Jaime O que você achou de repetir de ano? Nada... Acho que não foi bom. Foi ruim porque eu não ganhei as coisas que a minha mãe ia me dar no Natal. Esse ano eu vou passar. De uma maneira geral, com poucas exceções, a repetência é analisada pelos alunos como decorrência do mau aproveitamento dos mesmos durante o ano letivo. PROGRESSÃO 87 Durante o ano de realização desta pesquisa, os alunos ingressantes no primeiro segmento do Ensino Fundamental eram encaminhados para o primeiro ciclo de formação (antigos CA, 1ª e 2ª séries), também conhecido como ciclo de alfabetização. A Classe de Progressão era destinada, neste mesmo período, aos alunos que no decorrer dos três anos do ciclo não alcançassem os objetivos propostos. A intenção da Progressão era trabalhar intensivamente com esses alunos no sentido de suprir quaisquer defasagens de maneira a reinserir os alunos em sua turma de origem. No entanto, a finalidade da Classe de Progressão mostrou-se obscura no discurso de seus alunos que, de maneira geral, não pareciam compreendê-la. Vejamos o que disseram. Luís Em que série você está? Primeira. E ano passado? Primeira, também. Em que série você estava na outra escola? Carlos Progressão. E agora? Progressão. A gente repete e fica na progressão de novo. Eu ia passar para a 3ª série, mas aí minha mãe me tirou da escola toda hora e aí eu não passei. Na progressão a gente aprende... continhas e... como é que se fala? Ah, separar as sílabas. 88 Em que série você está? Progressão. É a segunda. Chama progressão, aí os alunos das outras séries que Fabiano repetem, que não sabiam ler, não sabiam escrever... Eu não sei porque se chama progressão, não. A diretora é que fala que é para deixar na progressão. Por isso se chama progressão. Aí quem repetir, a criança, aí se chama progressão, e a segunda se chama segunda. Gustavo Progressão é gente que não sabe ler. Na outra escola eu não sabia ler, a tia não passava dever, só desenhava. Na outra progressão a gente não fazia dever, só pintava, não era igual a tia daqui. A tia não passava dever. Quando eu saí de lá, fiquei um mês em casa e não sabia ler. Aí minha mãe me trouxe pra cá. Karina Qual a sua série? Progressão. E em qual série você estava antes? Na primeira. E ano que vem você vai pra qual série? Segunda. 89 Prestar mais atenção no quadro, tudo que a tia falar você tem que olhar, isso faz parte da progressão. A matéria, o dever, os livros que a tia passa. Tem que se comportar bem. Em que série você está? (Michele pensa)... Você lembra? Michele (Michele movimenta a cabeça dizendo que não) E no ano passado, você estava em que série? (Michele não responde) E ano que vem, você sabe para que série você vai? (Michele movimenta a cabeça dizendo que não) Para qual série você quer ir? Qualquer uma! Plínio Tô na segunda série. Ano passado eu não estudei. Eu fiquei dois anos sem estudar, aí quando eu fui estudar a minha irmã entrou na progressão. Eu tava na terceira. Mas porque você ficou dois anos sem estudar? Eu tava viajando. Em Minas, com o meu pai. Lá eu não estudava por que não tinha declaração... escolar, aquele papel pra gente ir pra escola... Fiquei brincando. Agora tem que estudar ora recuperar os anos perdidos. Fico ruim porque eu vim parar na progressão. Ué, você me disse que tá na segunda. Segunda ou progressão? As duas coisas. Qual a diferença? 90 Aí eu também não sei! Chama progressão, mas é a mesma coisa. É chato porque a tia passa muito dever fácil. Porque é progressão. Aqui tem a progressão fraca e a progressão forte. Tô na forte. Renata Tô na progressão. A gente faz dever da segunda, não, a gente faz dever da segunda e da terceira. Tem vezes que a gente faz até da quarta. 91 Tem a progressão dois, que é a nossa, e tem a progressão um. Na nossa passa o dever mais difícil. Vem a primeira, aí vem a segunda, terceira e quarta. A progressão fica na segunda. Não, assim, se você não passar de ano, aí vai e vai pra progressão. Assim, se eu não passar da primeira, aí eu não sei ler, aí eu passo pra progressão. Se eu não passar pra terceira, não sei ler, passa pra progressão. Quem não sabe ler. Eu falei ‘É melhor ficar na progressão pra aprender tudo de novo’. Aí eu vou saber melhor. Eu tô na progressão 2 e a minha turma é 9502. É a Rodrigo progressão de uma forma. É que tem a um e tem a dois. A segunda é forte e passa pra terceira forte. Antes da progressão eu tava no jardim, aí eu sabia ler muito. Eu passei pra progressão, porque eu era o mais sabido da turma. Passei porque sabia mais. E porque você fez a progressão no ano passado e fez esse ano de novo? Porque eu quis. Se eu não quiser fazer nenhum dever, eu vou pra progressão. Você falou que quem ia pra progressão era o 92 Rodrigo (cont.) mais sabido. Agora falou que fica na progressão quem não quer fazer o dever... Não, quem fica na progressão é o mais sabido, que veio do jardim direto. Quando eu era pequeno, eu lia muito. Agora eu me esqueci muitas coisas. ... eu tô passando maior vergonha na progressão... porque é uma série que ninguém gosta. Porque tem gente menor que tá na quarta, na terceira, tem gente do meu tamanho que tá na quinta. E eu ainda tô na progressão com dez anos na cara, mas também entrei atrasado quando era pequeno. Timóteo Eu tô na progressão. É a primeira série. Ano passado eu tava na segunda. Eu faço duas séries, eu faço essa e a segunda. Eu faço duas. Janaína Tô na progressão. Não sei o que é de cabeça, não. Qual série vem depois da progressão? Ih, ih, ih. Aí ficou difícil. Acho que é a terceira. 93 Em que série você está? Maria. O nome da série eu não sei, não. Eu sempre Hugo esqueço, às vezes. Esqueço. E no ano passado, você lembra em qual série você estava? Só mais ou menos. Bom a professora da outra série era boazinha comigo, e a da tarde era boazinha comigo. É que eu esqueço, às vezes. E ano que vem, você vai pra que série? Terceira! Ainda tô na primeira, mas eu vou me esforçar. Quem não faz nada, fica na progressão toda a vida. O que é progressão? Bom, a progressão, acho que são várias turmas porque antes eu era da Katy e era da progressão, aí depois eu passei de ano. Aí chegou uma professora nova, aí eu fiquei naquela sala. E agora, você tá na progressão? Não, mas eu acho que eu não era mais da progressão, quando o meu pai me levou pra sala da Maria, ele falou que ela era boazinha. Jaime A progressão é estudar na segunda série com a terceira. A falta de entendimento dos jovens acerca das características da série em que estão inseridos apontava a urgência em pensar a utilidade da mesma. 94 Ao final da pesquisa, com a criação do segundo ciclo, a Classe de Progressão foi extinta e os alunos, aprovados ou não, encaminhados para a série seguinte. DINÂMICA NA SALA E NA ESCOLA Esta categoria surgiu da freqüência com que alunos contavam sobre os eventos que ocorriam na sala e na escola durante as aulas. Grande parte das falas, neste sentido, envolve as questões da brincadeira, da atividade, do relacionamento entre colegas e professores e da opinião particular de cada jovem a respeito da vida escolar. Na minha sala... não é tão ruim, mas é bom. É bom porque tem coisa para a gente brincar. Às vezes a Luís gente brinca de sinuca, dominó, pega-vareta. Essas coisas todas de brinquedo. Jogo de botão. Só esses que eu já joguei. Durante o dia a gente faz... dever! E de vez em quando, quando a tia vai corrigir o dever, a gente fica brincando. Edson (A minha sala é)... boa. A tia dá, às vezes, ontem a gente viu um filme. Ficamos felizes, um pouco alegre quando tem filme. Ficamos bem. Tem brinquedo pra gente brinca. O que vocês fazem o dia todo na sala? Maioria dever. Um pouco. São fáceis ou difíceis? Médio. 95 Edson (cont.) Outro dia a minha amiga bateu a porta, a porta quebrou. Aí tomou um esporro e até agora, hoje, ela não veio. Lá todo mundo faz bagunça, eu também. Lá a Guilherme professora fala ‘Não vai pro recreio!’ Aí acaba deixando. Primeiro a gente chega, faz o cabeçalho. Depois a tia faz continha, depois acaba, aí esqueci. Acho que depois é o recreio, aí depois é a comida que é o melhor. A comida é o melhor, duas vezes até chegar e tomar café em casa. Ainda brinca duas vezes. Gustavo A gente faz dever quando a tia sai. Ela sai e se fizer bagunça tem que fazer mais dever. Karina Quando a tia tá aqui, ninguém batia. Na minha outra escola era bom, ninguém batia, chegava limpo, tinha um bocado de coisas lá no banheiro das meninas, água, sabão, sabonete e toalha. Aqui não tem porque eles roubam. Isso só traz infelicidade pros outros, eles não querem ser limpos. Eles ficam na nossa sala e eu falo que não, eles tão destruindo a pessoa que quer aprender. Um bocado de meninos da quarta série e da primeira série. A tia briga. Quando a tia briga, a tia bota lá na diretora pra ficar em pé junto com a tia. 96 Karina (cont.) Lá na minha sala é tudo ótimo. Só que às vezes tem uma menina que implica comigo. Eu falo pra minha mãe e minha mãe fala que vai vir aqui quando acabar as festas pra falar com a tia. Aí as meninas começam a implicar, aí eu fico quieta. A tia passa matéria nova, aí a gente fica lendo e fica escrevendo o que a tia passa no quadro. A gente pede pra tia passar mais forte o dever, pra Plínio botar mais difícil, mas ela não passa. Porque a obrigação dela é fazer dever fácil pros alunos. É fazer dever e ensinar a gente a aprender a ler, né, escrever... Um pouquinho mais difícil também seria bom. A minha turma é legal, engraçada. Porque de vez em quando que eles fazem brincadeira, aí a gente ri, ri muito. Tem dever. Não muito de vez em quando, a tia dá uma parada igual a essa. Desenho. De vez em quando tem aula de artes. Hoje tem aula de artes. Na semana passada o professor contou uma estória de terror. Muito legal. Renata Quando a professora vai almoçar... fica todo mundo lá fora. Aí a professora pensa que todo mundo da sala tá lá fora. 97 Rodrigo Um fica fazendo bagunça e bota a culpa nos outros, aí a tia vai lá e fica estressada. Ela vai e diz ‘Vai todo mundo trabalhar, agora!’, olha lá. Tem briga, a tia tá gritando lá. A tia fala altão. Porque fica todo mundo fazendo bagunça e ninguém ouve a tia. A tia sai para jantar, almoçar, essas coisas, tomar café, ou então ir no banheiro. Aí todo mundo faz bagunça e a tia não sabe quem foi. A gente só almoça sozinho. A tia só leva a gente e sobe. Quando ela almoça a gente fica fazendo dever até a tia voltar. Aí tem dia que ela passa filme. Timóteo A turma lá é boa. Mas também tem vário meninos que implicam com os outros lá. Que bagunça, a tia reclama com ele, ele não tá nem aí pra ela. Fica xingando a mãe do outro. Ai a tia fala com ele, ele não obedece. Ele fala ‘Ah, não tô nem aí’. A tia bota ele de castigo. Eu tenho uma professora boa, tenho uma professora Janaína que gosta de mim, que dá atenção pra gente ler e escrever. ...eu tenho intimidade com ela, a gente vê vídeo, tem aula de artes, isso nenhuma outra professora passou pra gente. E antes disso a gente não tinha nada, ficava na sala, da sala a gente ia pro recreio e depois ficava um olhando pra cara do outro. A gente fazia trabalho, dever... Agora a gente pode conversar, pode brincar. 98 Na minha sala tem gente que briga, tem gente que Janaína fica fazendo bagunça quando a professora vai (cont.) almoçar, não respeita ela. E sabe que tem trabalho no quadro, e tem que fazer o trabalho no quadro, aí vai levantar, brincar, vai conversar, bater papo, mas não faz o trabalho, não tem jeito. Quando a professora sai, a gente fica aqui na sala sozinhos. Não pode comer bala, não pode comer doce, não pode jogar nada no chão. Tem sempre que manter a sala limpa, tem que respeitar a professora, tem que ficar quieto, e quando a professora tá falando, tem que prestar atenção. Quando a professora dá um grito é bom... É bom porque ela tá explicando, ela dá um grito e a gente presta atenção nela. Ela manda sentar, tem que obedecer, manda a gente sentar, parar e ficar quieto. A gente fica fazendo dever, aí vai para o recreio. Depois do recreio a gente vai pro almoço. Ela passa o abecedário, a gente sobe e escova os dentes, aí depois a gente faz conta, aí acaba a conta. Aí ela dá um vídeo. aí acaba o vídeo e a gente fica na sala de aula até dar a hora do recreio. Aí acaba o recreio, e depois pro almoço, jantar, depois até a hora de ir embora. 99 A tia Maria é boazinha, mas tem algumas crianças Hugo que implicam comigo, aí eu saio de perto. Tem algumas crianças, que nem o Luís, que ficam me perturbando... eu e a Karina. Aí eu fico batendo nele, aí eu falo pra tia Maria. A tia Maria separa. ...Eu chego lá, ajudo ela, carrego as coisas dela e coloco em cima da mesa dela. Aí ela fica boazinha comigo. (falando da professora). Jaime A tia Maria é boa. A gente faz um monte de dever. ... gostam de bater, quando a professora sai. E quando ela está na sala? Ficam quietos. Ela sai porque ela tem que comer, na hora do almoço dela. Aí quando ela vai resolver um problema, aí eles começam a fazer bagunça. As meninas também, todo mundo. Muita bagunça quando a professora vai embora. Aí ela vem de surpresa e começa a ver quem tá na bagunça. Ninguém tem amigo lá, não, tia. Um fica implicando com o outro. Só tem amigo quando traz biscoito, essas coisas. Aí ficam falando ‘Qual é, Jaime, tu é me amigo!’ Começam a falar isso. Aí quando não tem, os outros começam a bater em você. Com algumas exceções, embora façam queixas de determinadas situações, os alunos da Classe de Progressão do CIEP C demonstram-se 100 satisfeitos e habituados com a rotina em sala de aula. BAGUNÇA A bagunça poderia ser tratada no item acima, referente à dinâmica em sala de aula. Devido a sua considerável ocorrência na fala dos alunos, porém, entendo ser relevante destacá-la. Garcia afirma que: “Entre as incivilidades cotidianas na escola destacam-se, por exemplo, as grosserias, as desordens, as ofensas verbais, e o que se denomina sem muita precisão conceitual de ‘falta de respeito’. Sob essa concepção, algumas formas de ‘bagunça’, devido a sua pouca gravidade e previsibilidade, seriam incivilidades, e nem tanto indisciplina, no sentido de romper com regras de algum contrato pedagógico, ou mesmo em relação a alguma expectativa expressa no regime escolar.” (GARCIA, 2006, p. 125) Eventos de bagunça e desordem, que minam as expectativas do bom comportamento, foram narrados pelos jovens do CIEP C. Sou bagunceiro. Luís Bagunça é quando a gente não faz o dever e fica bagunçando na sala. 101 Lá quando a professora sai para almoçar vira uma bagunça. A gente almoça e vai para a sala, aí depois Carlos ela almoça. E vocês ficam com quem enquanto ela almoça? Sozinhos. A gente faz bagunça, aí tem professor que vem lá e briga com a gente. Bagunça é... ficar batendo na mesa, brigando, saindo de sala. Porque a professora fala para a gente não sair e eles saem. Quando a professora sai, eles fazem bagunça. Quando ela volta, eles ficam quietinhos. Eles ficam vendo pela porta. Aí eles falam ‘Bora, bora que a professora chegou, a professora chegou’. Aí eles ficam quietinhos. Aí quando ela vem tá tudo quieto. A gente fica quietinho senão ela fica brigando. E quando a professora vê você fazendo bagunça? Ela coloca em outra sala. Em pé, de castigo. Na 3ª série, ou então na 4ª. Já fui, foi muito ruim, eu fiquei cansado. 102 A minha mãe tem até pena desses mendigos aí. Tem garoto que faz bagunça na escola e a mãe... Tem Fabiano garoto que faz bagunça, eu falo ‘Pára, Luís, pára. Hoje é teu dia, ih!’ Faz bagunça. Em casa tem vídeo, eu vejo a hora que eu quiser. Aí a tia tira os garotos e coloca de castigo na sala ou na direção. Lá na minha sala é muita bagunça, bagunça pra caraca. Aí começam a jogar as coisas... Vum, vum, e eu vou só abaixando assim, oh. (Fabiano apóia os braços na mesa e abaixa a cabeça) Se pega em mim, vou logo na tia e falo ‘acertaram um lápis em mim’, aí a tia bota pra fora de sala e deixa a gente sem recreio. Tem várias coisas, acontece acidente. Neguinho pega um carrinho e taca na janela e quebra. Aquela lá tá quebrada... E faz várias coisas. Quando a tia chega eles ficam quietinhos. Um de cada vez. Aí o outro foi falar que a tia tá vindo, Plínio, fingindo, Plínio, Luís, tudo vem para a direção. Aí fica de castigo, só na hora do recreio que sai. 103 Bagunça é não fazer o dever. Meu pai também, ele sabia fazer bagunça na sala, não sabe ler, não. Nem Guilherme meu pai, nem minha avó. Às vezes a gente faz muita bagunça aí quando a professora sai a gente começa a fazer a bagunça. Aí quando ela entra tem sempre alguém vigiando na porta. (Na outra escola), a gente não deixava gente vigiando a porta. Aqui a gente deixa, quando a professora chega, ela chega de fininho às vezes e vê a gente fazendo. Assim, tem todo mundo quieto. Aí quando o Plínio começa a bagunça, todo mundo começa a bagunçar jogando bolinha no outro, jogando bolinha no outro. Eu não. Aí começa a bagunça. A professora chega: ‘Pára! Todo mundo tá sem recreio’. Aí depois: ‘Vai pro recreio todo mundo!’. Plínio Rodrigo De vez em quando, faço muita bagunça. É implicar com os amigos. Deixar a professora com raiva. Ficar batendo com a cadeira, correndo na sala, fazendo ‘cosca’. Aí a tia fala assim ‘Faz o dever agora, todo mundo!’, aí passa um texto. 104 Rodrigo (cont.) Timóteo Porque quando eu tô quieto, todo mundo me perturba pra fazer bagunça. Tem vezes que eu bagunço... porque a tia não tá lá na sala. Ela sai pra almoçar. Ela passa conta pra gente, a gente faz e fica brincando lá na sala. (Fazer bagunça...) é divertido. Jaime É porque na 2ª série a professora não fazia nada, só ficava deitada e dormindo. Aí a gente fazia bagunça... Ele ficava reclamando, mas era ela que tinha culpa. Ela faltava muito, ela dormia, não fazia nenhum dever. Ela faltava muito. Tipo, a cadeira está arrumada, aí começa a ficar jogando as coisas... Aí é bagunça. O relato dos alunos acerca da bagunça nos traz o entendimento da mesma como forma de contestação da ordem escolar e de questionamento da autoridade. Sua existência delineia um cenário desafiador para os educadores 105 inseridos nesta instituição de ensino. BRIGAS Pensar as manifestações de violência dentro da escola parece-nos muito complexo tendo em vista as inúmeras definições e entendimentos acerca da violência. Sposito (1998) a define: “...violência é todo ato que implica a ruptura de um nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a possibilidade da relação social que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo conflito.” (SPOSITO, 1998, p. 60) Durante as entrevistas, os alunos da Classe de Progressão narraram eventos de brigas entre colegas onde o uso da força prevalecia em relação ao diálogo. Só brigo quando alguém implica comigo. Tem um menino que fica batendo na gente toda hora. Carlos É o Plínio. Ele é o mais chato que tem na sala. É o mais levado que tem na sala. Eles chegaram e começaram a bagunça. Gustavo, Plínio e a irmã dele, Renata. O que eles te diziam? Xingamentos, aquelas coisas. E aí se a gente xingar, aí ele já bate na gente, ele bate na gente. Plínio, Marcos, Rodrigo, aquele que saiu daqui agora. Guilherme Tem gente que bate na gente. O Leandro, porque a gente brinca com ele, taca as coisas na cabeça dele. É brincadeira. 106 Eu fico com o Grego que me defende de todo mundo, que ele é o mais... que ele quebra o capitão, o Leandro, ele me defende do Leandro. Tem três garotos querendo me pegar, ele já falou que não vai deixar. Eles querem pegar meu dinheiro, aí eu não deixava, é o Plínio e o Jefferson. Aí eu não deixei. Quando um começa a implicar, o outro vai e bate, e o outro sai lá pra fora, vai beber água e vai lá na tia Gustavo pra falar que tem sempre um que agride. E a gente fica até quatro e meia... Ou ficamos sem recreio, sem almoçar. É um grupo, eles brigam assim de porrada, pegam o outro na gravata. O Márcio pegou o Edson na gravata e quase matou ele. Ele ficou roxo. Ele tava brigando, o Márcio não queria devolver a bola do Edson. Plínio Minha tia de vez em quando ela tá alegre, de vez em quando ela não tá. Tá de mau humor. Aí ela briga, né? Ela me bota pra fora de sala, aí eu fico com raiva. Ontem aconteceu. Tinha um menino do meu lado, aí eu falei. Aí o menino me deu um pouco de guaraná pra ele, aí ele bebeu, aí eu fiz assim, aí ele bebeu, derramou e foi falar com a tia. Aí a tia me botou pra fora de sala. Aí ela falou que só podia entrar com a minha mãe. Aí ontem eu vim pra escola, ela falou que não podia. Aí na hora do recreio eu fui pra trás do menino, aí eu fiquei com raiva e desci lá embaixo 107 e meti a porrada nele. Bati nele. Aí um colega dele veio me bater, aí ele desceu. Aí de tarde a tia falou que só podia entrar com a minha mãe. Renata Uns meninos fazem muita bagunça e ficam pro lado de fora, batem nas meninas. Batem nas meninas, chutam. Tem um garoto que até já xingou a professora, garota também, fica aqui pro lado de fora. O garoto já xingou a professora. Falou assim... Um garoto gordo, acho que ele nem estuda mais aqui, mas ele mandou a professora ir tomar naquele lugar, e a professora foi e falou pra diretora, e ficou de castigo. Mas já não sei se ele tá estudando aqui por que ele xingou a professora. A professora chega e leva pra secretaria. A professora só falou assim ‘Se brigarem na sala, vão pra secretaria’. Porque toda aula é briga, briga, briga, briga. Toda aula. Porque eles ficam brigando porque eles ficam brigando pensando que é algum adversário, achando que bate em todo mundo do colégio. Tem algumas pessoas que ficam achando que bate em todo mundo. Que quer brigar de mais. Que implica com os outros. (Falando sobre o irmão, Plínio) Ele é muito chato, ele bate em todo mundo. Aí a professora chamou até 108 a minha mãe aqui. Porque ele brigou, a professora pegou e botou ele de castigo. O outro ela não botou, aí ele foi e bateu no outro. Aí a tia botou ele de castigo. Mas a minha mãe não veio, não. Aí a diretora mandou minha mãe assinar o nome dela, falar que ela já sabe. Porque ela trabalha muito. Tem uns jogos lá que a professora Maria deu, e um jogo de sinuca que tem os tacos, só que quebraram... Janaína Agora, ele quebrou sem querer. Agora, lá na minha sala tem um garoto gordão que a gente chama ele de Faustão. Aí ele pegou e foi bater nos meninos, ficou fazendo bagunça na frente da professora, e eu tava lá, tranqüilona na minha, que eu tava doente. Aí eu acabei e levei o meu caderno lá na professora. Aí ele foi e me chamou de gorda, filha da ..., de tudo que é nome. Aí eu peguei e falei ‘Professora, eu vou dar um soco nele’, aí ela falou ‘Não dá, não’. Aí eu peguei e fiquei quieta na minha. Aí eu peguei e falei assim ‘Ele vai ficar me xingando tudo isso e eu não vou fazer nada’. Ele tacou a cadeira no garoto, se não fosse a professora pra tirar, ele ia machucar o garoto. Os garotos são muito brigões. Os garotos quase não fazem nada, aí eles começam a implicar, dá raiva, Jaime começam a bater um no outro. Os garotos ficam implicando com todo mundo, os maiores: o Plínio, o Marcos e o Fabiano, também, gostam de bater. 109 “As brigas são consideradas acontecimentos corriqueiros, sugerindo a banalização da violência e sua legitimação como mecanismo de resolução de conflitos. Muitas vezes, as brigas ocorrem como continuidade de brincadeiras entre alunos, podendo ter ou não conseqüências mais graves. Entretanto, verifica-se que há brincadeiras cuja própria natureza envolve a violência que começam na brincadeira e acabam na pancadaria.” (ABRAMOVAY, 2002, p. 51) As brigas no CIEP C, portanto, parecem fazer parte do cotidiano dos alunos. São, para alguns, motivo de queixas e reclamações, e para outros decorrência natural da convivência entre colegas, pretexto inclusive para a diversão. COMPORTAMENTO Destaco, abaixo, as falas mais relevantes acerca do comportamento dos alunos. Estes falaram sobre seu próprio comportamento em sala e avaliaram o desempenho dos demais colegas, deixando clara sua visão sobre a personalidade de cada um dentro da escola. Carlos Eu era bem quietinho. Ah, ficaram mexendo comigo lá na sala, aí eu fiquei quase levado. É que é mais ou menos levado. Fabiano Na segunda eu bagunçava, eu não ficava quieto, não fazia nada. Só bagunçava. A minha vida melhorou um pouco. Às vezes eu me comporto, às vezes eu faço uma bagunça, às vezes. Às vezes eu fico com dor de cabeça, não durmo. Às 110 vezes eu fico com dor de cabeça e fico querendo ir ao banheiro. Às vezes eu faço bagunça, às vezes eu me comporto, aí eu fico de castigo, aí eu não faço o dever, faço várias coisas. Pra fazer uma prova de teste eu faço. Fabiano (cont.) Se comportar, às vezes eu tento quando a tia faz barulho. Eu não sou de briga, eu era de briga, agora não sou mais. Os garotos fazem a maior bagunça, aí eu fico assim, oh... (coloca as mãos no rosto), e minha cabeça fica doendo. Tem várias coisas lá que me bagunça, aí eu fico assim, aí eu abaixo a cabeça pra dormir, aí geral fica assim ‘Oh, vou falar com a professora, então’, ‘Vai, pode chamar a professora, pode até chamar o Papa. Guilherme Eu fugia lá, aí eu faltava muito. Aí eu repeti duas vezes. Mas por que você fugia? Não sei bem, os meninos me chamavam para ir para a rua. Pra brincar. É porque todo dia a minha mãe me botava lá, aí eu pulava o muro e ia fugir. Aí a diretora ligava para minha mãe: ‘Seu filho fugiu’. Aí ela ia lá me procurar. E te achava? 111 (Guilherme balança a cabeça afirmativamente) Ela me batia. Sou bagunceiro, mais ou menos. Faço muito dever. Mas eu já vi que a tia te separa de todo mundo do grupo, por quê? Ah, eles implicam comigo, aí eu também implico com eles. 112 Eu gosto dos meus amigos, gosto de brincar, fazer dever, de brincar de pique-pega, de pique-ajuda, Gustavo subir nas árvores e a gente jogar bola. E o que você mais gosta de fazer aqui? Aprender a ler. Eu gosto de estudar. Quando fico nervoso, aí como muito, aí bate a minha cabeça, já bateu minha cabeça cinco vezes. Eu como, aí eu tropeço e caio... Quando eu quero brincar de pique-pega, aí eu como muito, eu fico nervoso, aí eu bato com a cabeça. Quando eu como muito, minha mãe fala que não é para eu correr. Plínio Eu sou o que bota apelido em todo mundo. Eu gosto de ficar botando apelido. Sou forte. Tenho medo da minha mãe, só. Quando ela tá com raiva de mim, aí eu tenho medo. Ela me bate. Renata Eu sou, acho que sou chata. Como é ser chata? É assim: ‘Me empresta o dever, me empresta uma coisa’, aí eu falo assim ‘Não quero emprestar, não, tu tem’, aí eu falo ‘Não quero emprestar, não’. 113 Renata (cont.) Você não gosta de emprestar seu dever? Não por que algumas pessoas querem copiar, aí eu falo ‘Não copia”. Eu não deixo. Porque é feio copiar, aí a tia vai brigar comigo e com a outra pessoa. Porque se você tá assim ‘Ah, deixa eu copiar esse dever’, aí senta aqui do meu lado e fica copiando. Eu falo ‘Não, não vai copiar, não’, e boto embaixo da mesa. ‘Aí, tu é muito chata!’ Falam que sou chata. Rodrigo (Falando da Janaína) Ela é doente. Ela tem catorze, entrou atrasada na creche e foi pra progressão. Quando ela tava com treze anos, ela tava no jardim ou então na segunda. Aí depois passou pra progressão. Não escreve bem. Ela tem um jeito de andar, e ela é a mais esquisita de todas. É a Janaína. Timóteo (Falando do Plínio) Ele é bom só que tem vezes que ele bagunça. Ele é o mais implicante de lá da sala. A gente fala com a tia aí ele ‘Sai daí, seu otário!’ Ele fica xingando a gente. A tia vai e manda a mãe dele vir aqui. 114 Janaína A única pessoa que respeita a professora sou eu. É, porque eu sou a representante da sala, e tem que botar moral na sala... Sou eu e o Leandro, mas o Leandro é o maior mané. Ele só sabe ficar batendo nos outros e eu não gosto disso. Eu já chego conversando e falo assim ‘Tem que respeitar a professora, vamos lá, dá queixa só quando ela tiver na sala, não tem que ir na diretora, tem que resolver com a professora, a diretora não tem nada a ver com o nosso assunto, é a professora Maria quando ela tá na sala que tem que resolver com a gente’. A professora que me escolheu (representante), porque era a Tamares, só que como ela faltava, aí a professora me escolheu. E eu tenho mais cabeça que todo mundo da sala. Como é ter mais cabeça que todo mundo? É prestar mais atenção em todo mundo. É porque eu não brigo, tinha uma época que eu era brigona, que metia a porrada em todo mundo, batia nos meus irmão, metia a porrada em todo mundo, saia pra brigar. Agora, não. Eles são diferentes... porque eu sou gente, né? Sou mais gente. Porque eu paro e penso nos outros, porque eu não saio brigando no tapa com outra turma, não. São os bichos da turma. 115 Jaime Eu faço bagunça, um pouco. É interessante notar que, de uma maneira geral, a visão que os alunos tem sobre seu comportamento em sala é equivalente a de seus colegas, o que demonstra um bom entendimento acerca do papel social que desenvolvem na escola. VIOLÊNCIA EXTERNA Os entornos da escola e da residência dos alunos se constituem local de existência da violência a qual rotineiramente são expostos e, através da qual, influenciados os estudantes. “A violência na escola pode ser associada a três dimensões (...) ao contexto, ou seja, uma violência que se origina de fora para dentro das escolas, que as torna sitiadas e que se manifesta por meio da penetração das gangues, do tráfico de drogas e da visibilidade crescente da exclusão social na comunidade escolar.” (ABRAMOVAY, 2002, p.49) 116 (falando sobre a blusa)... É, tá pichada. Isso daqui foi meu amigo. A.D.A. É aquilo que é de bandido. É Carlos dos caras lá que são A.D.A. É da bandidagem. Eles fazem tiroteio, às vezes eles matam os próprios bandidos deles. Isso aqui vai virar pano de chão. Tem gente que faz bagunça. Mas não é esse Luís não, é um outro lá do Vidigal. A minha mãe ajuda Fabiano ele e ele empurra a minha mãe. A minha mãe chamou o cara do Conselho Tutelar. Você já viu alguém do Conselho Tutelar? Nunca vi. Quem vai para o Conselho Tutelar? Como funciona? Ninguém já foi. Lá é uma cadeia assim de criança, assim que apronta, bate na mãe, responde a mãe, quebra tudo dentro de casa, faz várias coisas, bagunça, bate no pai, bate na mãe. Mas eu não bato na minha mãe, não. Eu nunca apanhei da minha mãe, não. Antes, quando eu era menorzinnho, eu apanhava. Agora não, eu faço tudo para ela. E as crianças que batem na mãe... Vão para o Conselho Tutelar. A mãe liga pro 117 Conselho Tutelar, o Conselho Tutelar vai em casa, vai buscar o menino, dá paulada, o menino entra e vai pro Conselho Tutelar. Eu fiquei sabendo. Eu já vi aqui, também, um garoto já tomou muita paulada aqui, tinha dois mendigos aqui. Tomou paulada de quem? Do Conselho Tutelar. Aí o guarda falou ‘Tu é Fabiano (cont.) maluco de subir aí na escola?’ Aí o guarda começou a dar paulada nele. O mendigo estava subindo na escola? Não, já tava dormindo lá em cima. O garoto falou para a diretora ‘Olha lá dois mendigos dormindo’. Aí chamaram o Conselho Tutelar e falaram ‘Desce, desce’. Aí começaram a bater, levaram pro Conselho Tutelar. Quem vai para o Conselho Tutelar nunca mais volta. Os mendigos ficam, tem uns que sai. Minha mãe tem até pena dos filhos dos mendigos, minha mãe dá maior medo, minha mãe dá dez reais para ele. Aí minha mãe vai jogar fora a comida boazinha, aí eu falo, ela fala, eu falo ‘Joga fora, não, mãe, dá pro mendigo ali. Aí minha mãe dá. Guilherme Eu repeti dois anos, eu fugia. Meu pai foi preso. Ele 118 foi roubar outro cara. ... Vai pegar três anos. Já fui lá três vezes, minha irmã foi também só uma vez, e meus outros irmãos pequenos só vão ver o meu pai quando ele sair. Guilherme (cont.) Eu fugia... Aí ela (mãe) me levou de lá, aí eu quase fui pro Conselho Tutelar, eu e minha irmã porque minha irmã respondia minha mãe... Com o tio lá da prefeitura, que lá na prefeitura tem um tio mauzão. Eu fui lá, aí um negão grandão lá falou ‘Bora!’ Aí eu ‘Não, não, não!’ Chorei muito, aí ele falou ‘Não, não, não vai não’. Tem um monte de negócio lá, tem um monte de garoto de rua, lá, eles tão fugindo ainda. Eles tão fugindo, aí eles vão pro Conselho Tutelar se continuar. Rodrigo Meu pai liga pra mim, ele vem aqui, me leva pra comprar roupa. Eu fico lá na casa dele. Lá é melhor que a Rocinha. Lá eu ando de cavalo, essas coisas. Na Rocinha, não, só tem tiro, as pessoas morrendo. Meu tio era bandido e saiu da boca. Se ele morresse minha avó ia chorar, todo mundo ia chorar. 119 Janaína Eu não queria ficar aqui, não, tenho uma tia que mora em São Paulo. Aqui é muito violento. Eu vejo muita gente morrendo, na Rocinha. 120 Janaína (cont.) Moro com a minha mãe e com os meus irmãos... Um trabalha, o outro tá com a minha avó, e o outro tá dodói, tá no médico. Veio todo mundo pra cima dele, armaram pra ele... Aí na cadeia chamaram ele pra roubar. Aí ele tomou três tiros. Acho que na Kombi. Aí levaram ele e falaram que ele tava quase morrendo. Aí falaram que foi Deus que salvou ele, que ele tava quase morrendo. Eu não acreditei, não, tia, professora. Eu não acreditei, não. Porque ele era meu melhor irmão. Pra mim não era meu irmão, era outra pessoa que tava morrendo. Depois que eu fui saber que era meu irmão. E depois, de manhã cedo, lá para as sete e meia, foi o exame dele lá no hospital. Mas tenho fé em Deus que ele vai sair livre, aí depois vem o julgamento. Ele vai para o julgamento com o juiz. Ele era um bom trabalhador... Ele carregava o material, levava cerveja para os outros. Ele entrou na boca pra seguir o exemplo do meu outro irmão. Eu não quero mais viver aqui, eu não quero seguir o exemplo da família. O sonho da minha mãe é ver todo mundo casado. Aí eu tenho que seguir o exemplo dela, tenho fé em Deus que meu filho vai ser jogador de futebol. 121 No ano que vem, eu não vou estar aqui. Vou estudar em outro colégio, aqui é muito chato. Brigam muito, Jaime minha mãe vai me tirar daqui, pedi desde o começo do ano porque aqui é muito chato... O garoto tacou o lápis na minha cabeça. E nas outras escolas isso não acontece? Eu acho que acontece, mas na escola que eu estudava, não. É porque aqui tem vários filhos de bandido, tem muito filho de bandido. Tem alguns pais que vem com arma na cintura... Quando a professora vai fazer uma reclamação, aí ele quer pegar a professora ou o filho dele. Teve uma mãe que queria bater na minha professora porque a filha dela fazia muita bagunça.. Aí juntou com as outras mães e quase deu porrada. Conforme afirmado nas entrevistas, a insegurança, as gangues, o tráfico, o consumo de entorpecentes, entre outros fatores, expõem os alunos do CIEP C e de tantas escolas a situações de violência extrema que invadem o cotidiano escolar. SENTIDO SOCIAL DA ESCOLA Senna (2004) afirma que: “O sentido social da escola – tal como o concebemos ainda hoje – está fortemente associado, tanto ao dogma da Razão, quanto ao princípio do banimento, ambos solidariamente agregados como ícones de uma cultura que não tolera as diferenças e se sente ameaçada por elas. Ainda 122 é muito forte em nosso imaginário o princípio sintetizado no dito popular em que se declara ser preciso ir à escola para ser gente na vida, aludindo-se, assim, aos não escolarizados como não-gentes, como sujeitos desprovidos de Razão, como os outros. (SENNA, 2004, p.54). Vejamos o que os alunos do CIEP C falam acerca do sentido social da escola. Vai ser mendigo quem não estuda, não sabe ler, não sabe escrever. Não sabe o que é um mais um, não Fabiano sabe fazer continha. Quando o professor vira e fala: ‘Lê o que está escrito ali para mim’, não sabe ler. Agora tu vai lá, quando crescer não tem casa para morar. Vira mendigo, não vai ter casa para morar. Eu estudo para ser trabalhador quando crescer, sustentar minha casa, minha família. A tia às vezes enche o quadro de dever, a gente gosta de estudar. Têm alguns que não estão nem aí: ‘Tô nem aí, quando eu crescer vou ter a minha casa.’ Aí eu falei ‘Tu vai ter que ter várias coisas, carteira assinada, CPF, documento de nasci... nascimento, sei lá, cartão de vacina’. Eu falei ‘Duvido que eu não vou ter minha casa’, ‘Vou desmontar e quebrar a tua casa todinha’. É mesmo, não tô nem aí se tu for mendigo, vai ser melhor ainda pra mim’. 123 Gustavo Timóteo Eu gosto de estudar... pra poder trabalhar, pra poder fazer as contas. (Tem que aprender...) porque algum dia quando a gente, pra não passar vergonha. Um dia a tia passou um negócio pra eu ler que eu não consegui ler. Contrariando as expectativas, os jovens parecem ignorar a relação entre o desempenho escolar e o pertencimento a determinada classe social, e insistem em reconhecer a escola como agente transformador capaz de garantir um futuro de sucesso. COTIDIANO FORA DA ESCOLA O dia-a-dia dos alunos da Classe de Progressão do CIEP C é permeado por outras atividades. Embora eles passem a maior parte do dia na escola, muitos ainda carregam a responsabilidade de trabalhar e ajudar em casa. Fabiano Minha mãe trabalha com esse negócio de Tribunal de Justiça... Ela ajuda as senhoras que querem se aposentar e ela ganha uma grana. Às vezes eu vou e trabalho com ela. Às vezes eu trabalho também sábado e domingo, entregando coxinha e ganho trinta. Trinta de uma moça, trinta da outra, e cinco de outra. Vai ficar trinta e cinco. 124 Fabiano (cont.) Trinta de uma mulher que eu levo coxinha, aí tem outra que mora embaixo, aí tem a outra que mora em cima. Aí tem um garoto que eu busco de manhãzinha para a escola. Minha mãe leva, aí recebe. Trinta e cinco... trinta e cinco, não, setenta e cinco. Porque às vezes eu faço esses trabalho para a minha mãe, não gosto de ficar com muito dinheiro na mão, não. Eu vou jogar dinheiro fora, aí eu dou para minha mãe. Não gosto de dinheiro, não. Ficar gastando assim... Aí vão ficar tomando da nossa mão. Aí não gosto de ficar com dinheiro na mão. Aí me dá vontade de jogar fora, mas eu guardo e dou para minha mãe. Depois quando eu acordo, quatro horas da manhã, me arrumo. A minha mãe acorda às três horas. Às quatro minha mãe me acorda. Aí quatro e meia, não, quatro e vinte eu vou buscar o garoto. Depois vou na casa da mulher pegar as coxinhas e descer lá embaixo para entregar. Aí depois ela me manda o dinheiro do... que eu peguei da coxinha e aí eu pego e levo e dou o dinheiro para a mulher. Depois a gente se fala do dinheiro. Depois a gente conversa do dinheiro, quanto vai dar das coxinhas para pagar. 125 Fabiano (cont.) É rapidinho. É lá no Vidigal, é só descer. Lá tem várias coisas, é só descer, eu desço. Entrego a coxinha, guardo o dinheiro. Depois eu subo de moto rapidinho, entrego o dinheiro para a mulher, depois a gente acerta para pagar as coisas. Subo de moto, o motoqueiro tá assim... faço sinal, subo em cima dele e dou dois reais. Aí desço e vou entregar o dinheiro e aí vou para a escola. Aí eu ajudo a minha mãe a limpar a casa, ajudo a minha mãe em várias coisas. Ajudo a minha mãe a lavar a cozinha, ajudo a minha mãe a arrumar o quarto, lavar o banheiro. Guilherme Eu ensino a minha avó, eu ensino. Ensino a escrever. Ainda tem a minha prima, ela tá grávida de uma garotinha e o pai da garota, que é minha prima, morreu. O pai da garota morreu. E tem outro cara que tá com o neném que é o... o homem na barriga não sabia e fugiu. Ela tem um casal agora. Tem outra prima que ela teve filho, era homem, é Cauã, aí ela queimava ele com gimba de cigarro. Aí minha avó foi lá na justiça e tirou o filho dela. É porque a minha prima, ela começa a xingar a minha avó. 126 Gustavo Você quer trabalhar com o que quando crescer? Ambulância. Aí se alguém tiver ferido, a gente vai medicar e levar pro hospital. Vou ser a pessoa que dirige. Você conhece alguém que dirige ambulância? Conheço, meu padrasto... Ele disse que vai me levar para passear. Quando eu cortei a cabeça, ele me levou pro hospital. Eu caí de cima da laje, num buraco que tem lá, aí quebrou aqui. Eu fui pegar a chave, aí tava chovendo, a escada é de madeira e eu escorreguei e caí. A chave tava na minha irmã, ela mora embaixo da minha casa, aí quando eu fui pegar a chave eu caí e o ferro passou na minha cabeça. Minha mãe trabalha em casa de família. Ela faz comida, limpa a casa, às vezes a patroa dela me dá dinheiro. O patrão um dia me deu sete e cinqüenta. Eu compro roupa para mim e para minha sobrinha. Plínio (Se eu repetisse de ano)... ficaria triste, minha mãe também. Porque ela depende de mim. Minha mãe não sabe ler, nem escrever... Eu tento ajudar ela. Ajudar em casa, ela falou que é para eu aprender para ensinar a ela. Sem dúvida, o cotidiano dos alunos fora da escola os influencia dentro 127 dela, na medida em que agrega valor à aprendizagem e sua utilidade no futuro. APRENDIZAGEM De maneira geral, os alunos de CIEP C parecem relacionar o sucesso na aprendizagem à realização de tarefas, ao exercício da mesma. Vejamos o que dizem acerca do tema. Ano passado você repetiu. E esse ano, o que você fez diferente para passar? Guilherme Eu não sabia nem fazer nada, aí depois eu comecei a fazer as coisas. Eu nem sabia direito a ler, agora eu tô começando a escrever. Eu pegava um livro e ficava em casa. Aí eu comecei a estudar, aí eu comecei a ler. Quando meu pai tava aí, ele mandava eu escrever meu nome umas vinte vezes. Antes eu tirava nota boa, agora não tô tirando mais por que a minha mãe me tirou do colégio, eu tava Karina aprendendo a ler, fazer continha, tudo isso. Aí depois me tirou, aí eu comecei a ficar, aí eu entrei aqui. Timóteo Janaína Com o dever a gente aprende mais do que a bagunça. Minha mãe falou que errou porque eu tô aqui desde criança. Porque aqui não era um colégio bom. Porque ela disse que aqui eu não ia aprender nada e agora eu tô aprendendo um monte de coisa aqui. Mudou porque agora eu tenho uma professora boa, tenho uma professora que gosta de mim, que dá atenção pra gente ler e escrever. 128 Hugo Mas só que eu não sei ler, não. Algumas coisas eu sei, ainda ler eu não sei, não. Por isso que eu presto atenção. Bom, escrever e estudar eu sei fazer, mas ler eu só sei mais ou menos. Jaime No outro ano eu não fazia nada, nenhum dever. Aí esse ano, minha mãe me botou no reforço. Aí eu comecei a aprender as coisas. Comecei a fazer o dever, a aprender a ler. No reforço lá na Rocinha... 11 horas da manhã, nas férias. Essas e outras tantas falas dos alunos levam a reflexão acerca da produção do fracasso escolar, das alternativas ao mesmo e da atuação dos pesquisadores da área de educação em torno do tema. A seguir, concluo este estudo apresentando algumas destas reflexões. 129 Conclusão Este estudo de dissertação estruturou-se da seguinte maneira: 1) uma introdução contendo considerações iniciais acerca do tema da pesquisa; 2) um capítulo dedicado ao referencial teórico-metodológico, que analisou a produção teórica acerca da exclusão, do fracasso escolar e da violência, e considerações referentes à abordagem metodológica de pesquisa utilizada; 3) um capítulo descritivo sobre a pesquisa de campo realizada, onde destacou-se novamente o objetivo da mesma, seus processos de coleta e análise de dados, e as falas mais relevantes de seus participantes. Faz-se necessário agora, entretanto, concluir este estudo de maneira a refletir seus desdobramentos e analisar suas contribuições. O objetivo do desenvolvimento desta pesquisa não foi esgotar o tema do fracasso escolar. Sei, inclusive, que isto não seria possível nos estreitos limites deste trabalho, principalmente por tratar-se de questão tão complexa. Mesmo o passar do tempo e as inúmeras políticas educacionais implementadas não 130 foram, ainda, suficientes para solucioná-lo. Ao contrário, minha meta foi refletir o fracasso sob os olhares dos alunos que o experimentam, no caso desta pesquisa, os alunos da Classe de Progressão do CIEP C. Neste sentido, a primeira constatação que me chama atenção e que vale ser analisada é a maneira como estes jovens falavam do fracasso. Muitas vezes sem compreender a proposta da Progressão, sem saber a série em que estavam, preocupados em narrar os casos de brigas e bagunças, em falar sobre o comportamento dos outros colegas, enfim, em todas essas e em muitas outras situações eles falavam do fracasso com a mesma atitude: como algo inerente, certo, contingente a eles, transmitido por gerações. Sabemos que em países como o Brasil, também em termos de educação, a determinação e a contingência são obstáculos difíceis de serem superados. As exclusões social e educacional parecem serem deixadas como herança entre gerações (SCALON, 1999). Apesar deste fato, contrariando todas as expectativas, as famílias menos favorecidas parecem ignorar a relação ente o desempenho escolar e o pertencimento a tal classe social. Concluo, pelo que ouvi dos alunos entrevistados, que suas famílias insistem em reconhecer a escola como agente transformador, mantendo seus filhos nela e demonstrando a eles o valor que atribuem a mesma. Os alunos, consequentemente, passam a confiar nesse valor. Fabiano confirma minha interpretação ao afirmar: “Vai ser mendigo quem não estuda, não sabe ler, não sabe escrever. Não sabe o que é um mais um, não sabe fazer continha. Quando o professor vira e fala: ‘Lê o que está escrito ali para mim’, não sabe ler. Agora tu vai 131 lá, quando crescer não tem casa para morar. Vira mendigo, não vai ter casa para morar... Eu estudo para ser trabalhador quando crescer, sustentar minha casa, minha família.” (Fabiano) Entendo que a compreensão do sentido social que os alunos e as famílias tem da escola pode auxiliar na superação do fracasso na medida em que os pesquisadores e profissionais da área se mobilizem para minimizar a visão piegas e esvaziada de conteúdo do ir à escola para ser alguém na vida. Ao contrário, o movimento deve ser de canalização dos esforços no desenvolvimento do interesse genuíno dos estudantes pela aprendizagem, na valorização real da educação e na promoção da confiança dos alunos em suas próprias habilidades e capacidades. A partir daí, será possível construir um ambiente escolar motivador, atento às necessidades sócio-emocionais de seus estudantes. Outra contribuição deste estudo é a reflexão acerca da violência a que estão, frequentemente, expostos os alunos do CIEP C e de tantas outras instituições escolares espalhadas pelo país. Fora da escola, estes indivíduos convivem com situações de violência que lhe foram impostas, possibilidades as quais lhes foram dadas, sem que as escolhessem. Esta violência se reproduz na casa, rua, bairro e comunidade em que vivem e invade os portões da escola através de ações violentas internalizadas por alunos e professores. Lutar contra o fracasso escolar implica lutar, também, contra a violência que castiga dia após dia o ambiente educacional e suas tentativas de ensino e aprendizagem. As falas dos jovens expostas nesse estudo podem guiar pesquisas futuras que objetivem auxiliar a escola no processo de reconhecimento da exposição à violência e 132 inserção da mesma em seus projetos educativos (SPOSITO, 1981). Entendo que muito já se tenha sido produzido acerca do fracasso escolar e que este já tenha sido, de diversas maneiras, justificado (PATTO, 1996). Penso, entretanto, que urge nos dias de hoje a necessidade de sobrepujá-lo e que as pesquisas da área da educação devem se debruçar sobre ele com novos olhares. Propus neste estudo o olhar daquele que o vivencia e creio ter contribuído, assim, para o movimento de sua superação. 133 Referências Bibliográficas ARENDT, H. A crise na educação: entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. _________. Sobre a violência. 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