Reescrevendo - Beatriz Viégas

Transcrição

Reescrevendo - Beatriz Viégas
REESCREVENDO SHAKESPEARE
Os diferentes tipos de significado no texto dramatúrgico
e sua rearticulação em texto traduzido
Traduzir o teatro de Shakespeare em língua portuguesa e para os
nossos palcos deste início de século seria, a princípio e em teoria,
enfrentar o famigerado pentâmetro iâmbico – apertar um diálogo em
palavras brasileiras no espartilho da métrica estrangeira que o
poeta/dramaturgo usou com perícia na virada do século 16 para o 17.
Diferentemente do inglês, o português não conta com um número
extenso de vocábulos monossilábicos em seu léxico. Com isso quero dizer
que, quando Shakespeare escreve, em uma fala da personagem Hero:
But who dare tell her so? If I should speak,
She would mock me into air; O, she would laugh me
Out of myself, press me to death with wit!
(Much Ado About Nothing, III, 1: 74-76)
em português podemos ter, aproximadamente:
Mas quem se atreve a dizer isso a ela? Se eu falo, ela zomba de mim, me reduz a
pó, me ridiculariza até eu ficar fora de mim, prensando-me até a morte com
tanta esperteza!
(adaptado de Muito barulho por nada, publicação L&PM)
O tradutor certamente pode chegar a soluções lexicais e de sintaxe que
acompanhem mais de perto a composição em verso do texto-fonte. Um
exemplo: o verbo “dare” pode expressar-se como “ousa”, em vez de “se
atreve a”, o que diminuiria em 1 sílaba métrica o texto em língua
portuguesa.
Como tradutora de peças teatrais, minha preocupação é atualizar
Shakespeare em termos lingüísticos, até porque esta é uma prerrogativa
dos países que encenam Shakespeare em tradução: tê-lo sempre
atualizado no palco, poder atualizá-lo a cada geração de espectadores, de
modo que seja possível ao público chegar ao teatro e assistir a Romeu e
Julieta, por exemplo, sem a necessidade de haver estudado a peça com
antecedência para entender os diálogos. Já nas culturas de língua
inglesa que têm o estudo de Shakespeare como mandatório no Ensino
Médio, os públicos de teatro, cinema e televisão podem acompanhar a
encenação de suas peças conforme aqueles textos cristalizaram-se em
clássicos da dramaturgia de língua inglesa da época elisabetana.
Nas traduções que executo, evito ao máximo as restrições
conteudísticas de uma composição em verso, embora use nas falas que
vou vertendo em prosa recursos poéticos como a aliteração, assonância,
rima – além do que, o texto que se quer encenado, verbalizado para uma
platéia, constitui-se necessariamente de ritmo, cadências, harmonia.
Trabalho um texto que, na medida do possível e de minha capacidade,
traga para o português do Brasil o sentido total (significados semânticopragmáticos e significações discursivas) das peças shakespearianas em
sua íntegra. Deparo-me, além disso, com a tarefa de compor diálogos. O
texto dialogado é um texto escrito que flerta com a oralidade. É um texto
escrito para ser falado. É um texto escrito para ser encenado, isto é, ser
interpretado (em todos os sentidos) por um diretor, seu elenco e equipe
técnica (figurinista, cenógrafo, iluminador).
E cada peça de Shakespeare só vai fazer sentido em língua
portuguesa se buscarmos nela o sentido do texto em seu contexto sóciohistórico. Uma peça brasileira de um texto shakespeariano traz
incrustada em si traços culturais da Inglaterra à época da Rainha
Elizabeth I (isso acontece mesmo em peças como Júlio César ou Antônio e
Cleópatra). Algumas falas podem nos contar de um esporte público:
amarrar um urso acorrentado a um poste e soltar cachorros ferozes e
famintos contra ele (aos nossos olhos, uma prática cruel e politicamente
incorreta). A língua portuguesa não tem, como no inglês, um termo que
nomeie esse esporte (bear-baiting), e a tradução precisa lidar com isso.
É importante observar que a tradução teatral não pode contar com
o recurso paratextual das notas de rodapé ou de fim de texto, introdução
ou prefácio. Na passagem que vimos acima, de Muito barulho por nada,
existe um significado implícito de caráter cultural na expressão
“prensando-me até a morte”: esse era um método de tortura para
arrancar confissões de criminosos. O sujeito deitava-se de costas, e pesos
(em geral, lajes de pedra) eram paulatinamente empilhados sobre o seu
tórax, até que a pessoa confessasse seus supostos crimes ou morresse
por achatamento.
O segundo tipo de significado implícito com que o tradutor deve
lidar em sua prática de retextualização aparece sob a forma de citações
ou referências a outros textos. Os chamados intertextos podem estar em
Shakespeare, por exemplo, quando alguma personagem cita personagens
da mitologia grega, invoca o deus Júpiter, refere-se a alguma passagem
da Bíblia, etc. Um estudo das citações, referências e alusões a provérbios
(alguns dos quais nem circulam mais em língua inglesa) traz o seguinte
exemplo em uma fala de Brútus:
hath given me some worthy cause to wish things done undone
(Julius Caesar, IV, 2: 9)
O provérbio no caso é “What is done cannot be undone” (O que está feito
está feito), que aparece modificado no texto shakespeariano. A tradução
publicada em 2003 é a seguinte:
deu-me razões para querer desfeitas coisas feitas
(Júlio César, publicação L&PM)
A alusão à expressão proverbial do português poderia ter sido mantida,
caso eu tivesse optado pela construção “querer desfeito o que está feito”.
O trabalho tradutório é um processo que implica em escolhas e tomada
de decisões a cada passagem do texto-fonte. E estas são as
microdecisões, pois as macrodecisões envolvem coisas como traduzir em
prosa ou em verso, com ou sem notas de rodapé, já mencionadas.
Entretanto, acredito que nada é mais difícil em tradução que a
manutenção do humor. É um tipo de significado implícito inferencial.
Shakespeare é cheio de trocadilhos, por exemplo. E estes exigem a risada
da platéia. Veja-se a seguinte passagem:
ARMADO –
The armipotent Mars, of lances the almighty,
Gave Hector a gift…
DUMAINE – A gilt nutmeg.
BEROWNE – A lemon.
LONGAVILLE – Stuck with cloves.
DUMAINE – No, cloven.
ARMADO – Peace!
The armipotent Mars, of lances the almighty,
Gave Hector a gift, the heir of Ilion,
A man so breathed, that certain he would fight, yea,
From morn till night, out of his pavillion.
(Love’s Labour’s Lost, V, 2: 716-726)
Na tradução:
ARMADO –
Marte, armipotente, fantástico lanceiro,
Presenteou Heitor com…
DUMAINE – Gengibre caramelado com gema de ovo.
BEROWNE – Uma gemada!
LONGAVILLE – Uma enfiada de ovos ou uma enfiada de cravos.
DUMAINE – Não, uma enfiada na rachadinha.
ARMADO – Silêncio!
Marte, armipotente, fantástico lanceiro,
Presenteou Heitor com um tremendo herdeiro,
Um homem que luta por Tróia noite e dia,
De extraordinário fôlego e ousadia.
(Trabalhos de amor perdidos, publicação L&PM, no prelo)
Noz-moscada (nutmeg) e limão (lemon) viram gengibre e gemada, mas o
que importa, mais que o sentido dito literal do léxico no texto-fonte, é o
encadeamento discursivo, a orientação argumentativa do texto, é
construir igualmente em português uma tessitura (textualidade) na
superfície do texto que, por meio de recursos coesivos diversos, garanta a
coerência textual de uma piada que se vai desenvolvendo por associação
de idéias. O deboche e o obsceno muitas vezes são marcas das
personagens cômicas de Shakespeare, assim como os chamados erros
gramaticais que compõem a variante não-culta da fala são marcas de
suas personagens iletradas, e assim por diante. A tradução teatral
carrega também esta responsabilidade, a de garantir que cada
personagem tenha sua individualidade lingüística (seu idioleto).
Enfim, “de extraordinário fôlego e ousadia” são as empreitadas em
tradução teatral – sempre de alto risco perante os leitores atentos e a
crítica especializada, pois incontáveis são as opções da reescrita.
Traduzir assim ou traduzir assado, eis a questão.
Porto Alegre, inverno de 2005
Beatriz Viégas-Faria
Tradutora com Doutorado em Letras (PUCRS, 2004)
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos do Brasil

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