THORAZINE #11 ABRIL/2016 [email protected] http://www

Transcrição

THORAZINE #11 ABRIL/2016 [email protected] http://www
TENHO O CORAÇÃO
DO TAMANHO DO
MUNDO
MAS TENHO O MUNDO
NA PALMA DA MÃO
THORAZINE #11
ABRIL/2016
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O ano é 2016, chegamos à 11ª edição com
muito ou quase nenhum esforço. Admito já
ter pensado em desistir desse fracasso
em forma de projeto editorial, mas pra ser
bem honesto, penso em desistir de muita
coisa com muita freqüência, e sempre
— ou quase sempre — retomo. Seja porque
alguém meteu uma pilha e mandou material,
me motivando a criar mais uma edição, ou
porque fiquei sem trabalho e com tempo livre
bem no meio de uma dessas crises de sobriedade que me levam a coisas horríveis como
querer ser produtivo.
De qualquer jeito, estou grato pela quase
meia dúzia de leitores, que incluem eu e
um colaborador ocasional, por me motivar
a fazer algo melhores de minhas manhãs do
que ficar vendo seriados que nem tenho muita
vontade de acompanhar.
Nessa edição, reuni alguns poemas e completei as lacunas com o que deu vontade na
hora, com o indesign aberto e uma caneca
de café à mão.
obstrução auricular
Punk rock, latidos, quinta de Beethoven e meio ouvido.
Corrida de cavalos, domingo, motor de carro e meio ouvido.
E ainda ouço o zumbido, um grito tinindo, uma voz se esvaindo.
O olho de Clockwork Orange te chama e permite que circules o
quadro até voltar a ele. Note que à distância, não verás linhas retas,
apenas uma série de curvas formando o desenho. Assim força-se o
olho (se o enquadramento for ignorado) a voltar ao ponto em um
campo vasto – o campo, no caso, é o meio do rosto de Alex. O
contraponto é o chapéu, preto, sobre o campo alaranjado do rosto
Estes dois misturam facilmente pelas curvas.
Enquanto o observo o olho (exclamação!), à minha esquerda e direita
dois quadros pedem atenção. O primeiro, cujo autor, modelo e nome
desconheço, mostra uma mulher sem o seu braço direito, que de fato
esconde-se às suas costas. O segundo mostra rostos e feridas aparentes
nos lábios e pálpebras da criatura humana fotografada. Em ambos o
contraste de claro e escuro é tão notório que deixo para depois (para
esquecimento, limbo ou aterro) estudos menores, embora ainda
válidos.
Espero que gostem
O mundo inteira riria se eu mencionasse a cabeça decepada e o
indicador em riste jogados à minha esquerda! O dedo em riste não
aponta para a mulher desbraçada, mas para o céu visível
à ignorância do concreto, e ela tem os olhos voltados para
baixo e em diagonal. Não está triste, apenas lê – ou espera
solenemente o corte do ceifador enquanto pensa na possibilidade
de interferência da essência dele no momento fatídico.
com amor, muito carinho
Mais vale um corte na carne do que X arranhões da alma,
Coiote Flores
Porto Alegre, 31 de março de 2016
eu diria em analogismo apressado, desses que se vende de graça pro
velho leiteiro (agora exu, mensageiro, publicitário batedor-de-pernas)
que passa de porta em porta a cumprimentar e puxar conversa.
nova petrópolis
gotas - outono de 2016
Quando pai disse
que não voltaria
acreditei:
Go
– te
– – jar
quando anunciou
le dernière rencontre
— aqui
senti:
marca um tempo
prenúncio
arauto gotejar
nunca mais esperar
reclamar saudade quieto
procrastinar a visita;
nem subescreveu entre
falas o apelo e a crítica
à nossa falta de ida.
—
e pra mim fica o mais óbvio
e já sabido dos recados:
é preciso ir a quem queremos ir
--(me prometo ver a família com
mais freqüência enquanto sei
que vai ficar pra depois
— não façam o mesmo)
como um balão
me prende a um fio
em tua mão.
A certa vez, um homem caminhava por um deserto.
Ele notou que haviam sempre duas pegadas na areia.
Ele perguntou a Deus:
“Por que há sempre duas pegadas de areia
Três a três
baquetadas
anunciam
quando Tu devias caminhar comigo o tempo todo?”
E eis que cai a chuva o vento a joga sobre a mesa
Inunda tua cerveja
e joga fora a caderneta onde anotava planos, fiscos, sumos
indiferente ao gotejo que
avisava:
porque do momento em que creste em Mim
logo tudo acaba
e tu te lavas.
Cessa a chuva
cantam aves
porque todo mundo cansa um dia e tu promete à luz do sol
cansa até de quem nos espera
mas nunca nos busca.
pegadas na areia
ME SOLTA
nunca mais não ouvir
o que as gotas sussurram pra ti.
e Deus disse:
eu comecei a te açoitar e tu
ninguém ama o poeta
(sem título)
ninguém ama poetas
ninguém jamais amou um poeta
vocês amam a pessoa,
talvez, ou sua poesia
pessoas
pra sempre substitutas
de outras
pessoas
mas o poeta ninguém ama
o poeta ninguém ama
o poeta ninguém quer amar.
amores
sempre temporários
nas vagas
de vagos
amores
mas tudo bem
porque poeta não chora.
só serve pra sentir
escrever
remington
Ao som do piano de Rachmaninoff ele atira o computador contra a
parede; cai no chão, a lataria apenas amassada. Junta e atira outra e mais
uma vez; nesta terceira, ele cai livre da capa metálica que o protege e
algumas peças se espalham no chão, presas umas às outras por fios entrelaçados. Chuta o amontoado de lixo eletrônico; uma placa se separa
dos fios e voa contra a parede. Ele ri trincando os dentes, o corpo todo se
mexendo, olhando para todos os restos espalhados pelo quarto. Coloca
as mãos sobre a cabeça, que verte para cima, e grita, urra, tão gutural
quanto satisfeito. Acende um cigarro e se senta à máquinta de escrever.
Encontrara a Remington na casa de um amigo; este viajara e deixara o lugar
a seus cuidados. Não se importou: tomou a máquina, esvaziou a geladeira
de cerveja e deixou a casa do amigo, destrancada. Agora, em seu próprio
apartamento no centro da cidade, fitava a máquina, um pouco enraivecido ainda, mas calmo o suficiente para se concentrar, ou assim pensava.
Começou pelo conto inacabado, para o qual teve a idéia depois de
sonhos perturbadores duas noites antes, e percebeu que teria de recomeçar tudo. Tudo na máquina, desde o primeiro parágrafo, a primeira frase (que ainda lembrava com exatidão). Pôs-se a partir daí a escrever. Não lembrava exatamente como estruturara cada frase, mas
não se importava; ia relembrando o desenrolar da história à medida
em que batia, ora furiosamente, ora com calma, à antiga mas ainda eficiente máquina. O amigo era um jornalista, indigno dela. O texto voltava a ele como só pode surgir na mente e nas mãos de um escritor.
Logo já passara do parágrafo em que interrompera a história; seguida,
seguia sua protagonista por eventos que nem podia imaginar virem, e
lá estavam. Logo ela já se desencontrara totalmente, enquanto ele se
encontrava como nunca antes. Estava vivo dentro daquele conto, estava extasiado em sua hipergrafia e no desenrolar ininterrupto de idéias.
Esse poder todo o fascinava, ao mesmo tempo que se deliciava com a
impotência diante dos fatos que eram descritos por ele mesmo apenas
instantes antes de voarem aos dedos, às teclas e dessas, pelo , ao papel.
Em menos de cinco minutos, o conto estava terminado. Ofegava
como ofegara no processo que o levou àquela máquina, àquela cadeira, àquela mesa; não gritou, mas sorriu, desta vez um sorriso aberto, de satisfação plena. Como se acabasse de gozar, como se tivesse
expelido tudo que nele crescera ao longo de anos – ao longo de
séculos vezes dezenas que formaram a sociedade que o formara.
Lá estava ela, sua protagonista, atirada no chão, no meio de uma rua,
aos poucos cercadas de observadores surpresos, nem tão assustados; seu
sangue jorrando pela rua e eles fazendo nada senão olhar, tecer comentários sussurrados, especular sobre o acontecido, culpá-la, por fim, pelo
fim que tivera; não é sem motivo que alguém é surrada desta forma. O
rosto desfigurado, ossos amassados sob a pele, juntas partidas, marcas
por toda a parte visível, que era quase todo o corpo, tão pouco sobrara
do vestido rasgado. E ele estava satisfeito, matara sua sede, matara sua
personagem, destruira a ânsia por escrever que parecia querer destruí-lo.
Ainda fumaria um cigarro antes de se preocupar com a volta do amigo, com
a possibilidade de ter que devolver a máquina – mataria-o antes; fumaria um
cigarro e esperaria horas até que o torpor literário abandonasse seu corpo.
A VIDA EM ANEXO
21 contos em 96 páginas em papel
pólen, escrito, revisado, editado, diagramado e publicado por mim. R$25.
via depósito/transferência (o livro vai
por correios, por minha conta).
contato:
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facebook.com/coioteflores