Cap IV - Silvio A Merhy
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Cap IV - Silvio A Merhy
CAPÍTULO IV O destaque social para o samba 1. A BOSSA NOVA E O PROGRESSO SOCIAL 1.1 A era juscelinista – JK e o zeitgeist O desenvolvimentismo – filosofia corrente e conceito historiogrático Considera-se a Bossa Nova como um dos produtos resultantes do “espírito desenvolvimentista” da Era Juscelinista. Esta afirmação sofreu um processo tão forte de naturalização que hoje tornou-se uma lógica do senso comum associar a Era Juscelinista a uma pretensa modernização do samba. O mesmo fenômeno que possibilitou o progresso social e político no Brasil propiciou a criação de um samba moderno. É uma possibilidade coerente. É como se um novo vento varresse o território brasileiro e inaugurasse um clima de reformas dentro de um círculo benéfico. A reforma estava no ar. E o espírito das reformas também – o espírito do tempo da reforma progressista. Esta evidência abstrata se torna bem menos clara quando se trata de corporificar o espírito do desenvolvimento. A arquitetura brasiliense, origem até hoje de muitas dúvidas, foi escolhida para simbolizar o novo espirito. As iniciativas do programa desenvolvimentista nem sempre foram espiritualizadas. A nascente indústria de automóveis com fortes laços internacionalistas, o avanço meio fantasmático em direção ao oeste do país não se deixaram marcar tão claramente por vestígios culturais de caráter nacional. Se ocorreram, a comprovação no mínimo não é tão óbvia. No entanto as políticas governamentais juscelinistas sofreram resistências fortemente permeadas de lastros culturais, que resultaram em movimentos de intensa produção artística, articulados principalmente pelas esquerdas. A música popular, o teatro, o cinema novo tiveram muito mais caráter de denúncia do que de ufanismo. 210 Há certamente alguns vestígios concretos da interrelação ou da conexão entre o entusiasmo desenvolvimentista e a produção musical. Menciona-se por exemplo a criação da Sinfonia Brasília escrita por Tom Jobim sob encomenda. A visita de Tom ao Planalto está documentada com fotos em que ele aparece reunido com o Presidente Juscelino Kubitscheck e Oscar Niemeyer.219 Teria ele se entusiasmado tanto com o que viu que tornou-se convicto do espírito do tempo e, a partir desta experiência no Planalto Central, resolveu iniciar uma nova etapa de criação na canção popular brasileira? Talvez. Nem sempre o entusiasmo com uma “nova era” dá conta de explicar procedimentos experimentados quotidianamente na prática artística. A ordem social nunca foi um traço importante nas criações de Tom. Pelo menos não tanto quanto o amor à natureza, ao verde e aos pássaros. Estes são os traços que o ligaram de fato à Terra brasilis, título de um dos seus mais importantes trabalhos fonográficos, gerado dentro de uma tendência que predominou a longo prazo. Todos os álbuns produzidos na década de 80 continham elementos da natureza nos títulos – Terra brasilis, Urubu, Passarim. Na verdade a relação mais visível entre o Presidente Juscelino Kubtischeck e a Bossa Nova nos foi trazida por uma canção satírica e humorística, que talvez até desmereça a força e o alcance da sua obra política. “Presidente bossa-nova“, composta por Juca Chaves,220 apenas concretiza em sátira a crítica carioca ao estilo político do presidente. “Bossa Nova mesmo é ser presidente do Brasil” tanto serve à sátira da instituição do Poder Executivo da República quanto à ironia da polêmica sobre a definição de Bossa Nova. De fato muitas iniciativas governamentais se projetaram para fora dos ventos da modernização e da mentalidade do Brasil moderno e se tornaram concretas. A indústria automobilística não foi o único setor beneficiado. Grandes hidroelétricas foram projetadas e construídas (Furnas, Paulo Afonso, Três Marias), iniciou-se o projeto nuclear (inclusive com a instalação de fábricas para produção de urânio), cresceram os recursos aplicados em educação, (no ensino superior criaram-se 14 institutos junto às Universidades para implementar o ensino técnico e científico e para flexibilizar os currículos). Estas foram algumas das metas cuidadosamente planejadas e executadas 219 CHEDIAK, Almir. Songbook Tom Jobim. v.1 p.28. 220 CHAVES, Juca. Os grandes sucessos de Juca Chaves. RGE PRLP-1017, 1967. 211 dentro de um plano de “paz política”, de “salvaguarda das instituições” democráticas, de consolidação da “segurança nas relações sociais” e de impulso “para o desenvolvimento nacional.” 221 O projeto juscelinista de modernização do país culminou com o anúncio em 1960 da transferência da sede do governo para Brasília. O espírito juscelinista se revela nos discursos de 1956 a 1960, analisados pela socióloga Miriam Limoeiro Cardoso.222 Uma das frases citadas na tese da Professora formula de maneira sintética a ideologia dos seus planos de governo: “A meu ver um quadro sucinto de realizações é muito menos importante que a criação do espírito do Desenvolvimento, da mentalidade de grande País”. Não só o desenvolvimento mas também a preocupação com a distribuição de renda era prioritária: “Preciso o auxílio de todos os brasileiros de boa vontade, para extirpar este cancro que é a miséria de diversas unidades da federação.”223 A meta social era colocada como fim último do seu projeto político: “a política de desenvolvimento, no Brasil, como em todas as nações subdesenvolvidas, não é um fim, mas um meio. Traça-se para atingir a meta real – que é a remoção das diferenças iníquas, a construção de uma sociedade mais justa, de uma convivência mais humana, onde o homem não seja o lobo do homem e onde a sede de inovações, estimulada pelo exemplo das nações mais poderosas, possa ser satisfeita, por uma distribuição equitativa de riquezas, produzidas em paz pelo trabalho coletivo.” 224 O desejo de mudança fica claro: “Nada pretendo, a nada aspiro, senão a que sopre um novo espírito e uma nova esperança por sobre a terra brasileira; a que uma nova alma, uma só vontade, um único empenho, o de desenvolver o Brasil e de lhe dar uma posição de relevo no mundo.” 225 A modernização, vista do seu ponto mais cândido, tentava suprimir o “lupus homini” através da consciência cívica. As lutas sociais evidentemente persistiram. O espírito da modernização atraiu recursos estrangeiros e resultou na instalação de indústrias financiadas em associação com outros países, como a que ocorreu com a 221 As referências encontram-se nas Mensagens ao Congresso Nacional, Rio, 1956, 1957, 1958 e 1960. 222 CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento. 2 .ed. Rio: Paz e Terra, 1978. 223 Idem, P. 238. 224 Idem. (Extraído de a marcha do amanhecer). 225 Idem, p. 240. 212 própria indústria automobilística, orgulho do florescimento de um novo espírito modernista. Os desejos de um Brasil grande talvez tenham se realizado em parte, mas não o de um Brasil totalmente emancipado. A entrada de capital estrangeiro foi aumentada para compensar as perdas nas contas exportação-importação,226 e produziu um fato político que recebeu por parte da sociedade críticas menos severas do que a construção de Brasília e a transferência da sede do Governo para o Brasil Central. Assim temos que a modernização foi, em parte, um esforço conjugado com a importação de recursos e de tecnologias, foi um processo de transformação das identidades nacionais já estabelecidas. Nos primeiros anos de 1960 intensos movimentos nacionalistas anti-imperialistas e anti-americanistas começaram a se disseminar por todo o país. As ideologias de esquerda ganharam força e prestígio e chegaram a articular nacionalmente a defesa dos movimentos operários e camponeses. A discussão sobre os direitos dos trabalhadores alcançou todos os grupos sociais. Transpor esta questão para o campo da produção cultural nos ajuda a compreender como foram sendo gerados os focos de oposição em certos setores da sociedade. A uma produção de canções populares mais modernas porém alinhadas com as canções estrangeiras de sucesso opôs-se o movimento por uma produção mais “pura” e mais “autêntica”. Nara Leão foi uma das porta-vozes deste movimento de resistência cultural. 1.2.A cantora Nara Leão é escolhida para personificar um conflito e aceita A tensão entre o desenvolvimentismo e a justiça social é um tema recorrente e muito conhecido de todos nós. A distribuição de riqueza e o desenvolvimento sustentado são temas que se eternizam na nossa sociedade e se situam como metas a logo prazo. Em contexto semelhante o espírito desenvolvimentista também era considerado pelo presidente Juscelino Kubitschek como uma mentalidade e uma atitude de esforço e sacrifício a serem compensados em gerações futuras. 226 Na Mensagem ao Congresso Nacional de 1960 o Presidente informa que foi de 510 milhões de dólares a entrada de capitais, e a saída de 360 milhões, com saldo positivo de 150 milhões. A aquisição de bens no exterior registrou um total de 1 bilhão e 228 milhões de dólares, em que a maior parte (800 milhões) se destinou a bens de capital e produtos intermediários . 213 Uma das divisões políticas mais intensas daquele momento político foi produzida pela visão de que o desenvolvimentismo seria benéfico apenas para as classes que detinham as riquezas e não para todos. Esta ótica foi uma das que tornou possíveis as críticas mais contundentes contra o seu governo, originadas nas forças de esquerda. O subdesenvolvimento do país permaneceria como atributo das classes pobres – a modernidade não as alcançava. Grosso modo as críticas ao desenvolvimentismo só galvanizaram de fato a nossa sociedade quando se iniciou a campanha presidencial para a escolha do sucessor de Juscelino Kubitschek, o qual já percebia o surgimento de uma oposição articulada que o atacava cada vez mais. O candidato vitorioso na sucessão foi Jânio da Silva Quadros, cuja campanha foi representada por um objeto metafórico – a vassoura, destinada dentre outras coisas a “varrer” a corrupção governamental da gestão anterior. A acusação de corrupção e desvio de verbas públicas surgia constantemente na imprensa, assinada pelos seus opositores. Uma forte mobilização de toda a sociedade se fez então sentir no início dos anos de 1960, quando emergiram com mais nitidez conflitos e contradições antes apenas latentes. Quando os grandes temas sociais começaram a manifestar-se nas canções, alegouse que a Bossa Nova fraquejava. Por compensação ao arrefecimento da Bossa Nova crescia a produção de canções com letras engajadas que defendiam as classes supostamente excluídas dos benefícios do Desenvolvimento e da modernidade. Talvez os temas do “o amor, o sorriso e a flor”, que simbolizaram um estilo de vida para os bossanovistas, já dessem mesmo sinais de exaustão, ou talvez outros temas começassem a atrair mais fortemente a atenção de sambistas e compositores, e dos consumidores. Os temas políticos e “autenticamente” brasileiros passaram a empolgar alguns cancionistas. A “Marcha da quarta-feira de cinzas“, canção assinada por Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, apareceu em 1963 como um prenúncio para as “canções de protesto” que se seguiram. Carlos Lyra foi um dos mais empolgados enquanto outros não aderiram com tanta facilidade. As contradições e conflitos experimentados por toda a sociedade mostrava a sua face no mundo das artes. A sua letra faz proselitismo da suposta força popular: 214 “A tristeza que a gente tem qualquer dia vai se acabar todos vão sorrir, voltou a esperança é o povo que dança, contente da vida feliz a cantar. Mas no entanto é preciso cantar Mais que nunca é preciso cantar É preciso cantar e alegrar a cidade” A ebulição na UNE (União Nacional dos Estudantes), com repercussão nas faculdades (principalmente na Faculdade de Arquitetura no Rio), no teatro carioca e paulista, no movimento estudantil baiano, emitiu seus primeiros e vigorosos sinais nos primeiros anos da década.227 Todo o movimento que contagiou os homens de teatro dos grupos Oficina, Arena, Equipe, Universitário, etc., e por fim os CPC, resultou numa produção engajada notável. O espetáculo Opinião228 nasceu nestas circunstâncias. Considerado um show teatral, estreou em 1964 com grande sucesso e marcou um momento nacional memorável, para o mundo do teatro e das artes. Os autores deixaram prescrito na introdução “As intenções de Opinião”, que precede o texto da peça editada no ano seguinte ao da estréia em cena. Eles deixaram explícito o desejo de que a música tivesse uma função social e de que a canção fosse um instrumento de luta política e de conscientização: “A música popular é tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais.” 229 Nara Leão, a estrela da peça, confessa em cena que não acha que porque vivia em Copacabana só podia cantar determinado estilo de música. “Ando muito confusa sobre as coisas que devem ser feitas na música brasileira, mas vou fazendo.” 230 Mas percebe-se que a decisão de Nara de se tornar cantora profissional associouse à tarefa política. “Eu não gostava de cantar em público. Só resolvi mesmo ser cantora 227 Ver depoimentos publicados in BARCELLOS, Jalusa. CPC. Rio: Nova Fronteira, 1994. Especialmente os dados por Aldo Arantes, Capinam, Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri. 228 VIANNA F. Oduvaldo e outros. Opinião. Rio: Edições do Val. 1965. 229 VIANNA F. Oduvaldo e outros. Op.cit., p . 7. 230 Idem, p. 63. 215 depois de 64. Gostava só de cantar junto com a turma da bossa nova. Às vezes a gente ficava três dias virando sem parar, cantando com raiva do bolero.” 231 Aqui encontramos a marca da oposição explícita ao bolero (e implicitamente ao samba-canção, seu irmão autóctone), e que significava oposição a tudo que se relacionava ao gênero – estilo de vida, comportamento, gosto musical, etc. Quanto mais forte era a oposição ao bolero (e, acrescente-se, ao samba-canção) mais se fortalecia o samba tradicional, considerado como bem cultural de origem autenticamente popular. Quando os valores que conferem identidade à classe média se disseminam e se banalizam, ela entra em luta para conquistar novos padrões de comportamento e de gosto artístico. A rejeição ao samba-canção e ao bolero e a volta ao samba aparentava em princípio aceitação de um produto mais vulgar, porém na verdade significava um comportamento de distinção. A classe média letrada pode se distinguir pela sua boa disposição em valorizar as culturas populares, distanciando~se em relação à classe que lhe parece inferior, a qual quer se ver livre daquela cultura mais vulgar, para aos poucos conquistar os valores abandonados pela que lhe é superior e com isso obter a garantia de ascensão. O problema com o bolero não provinha da aversão à sua estética. Um pouco mais tarde viu-se que toda a classe média intelectual passou a lhe render cultos, de Tom Jobim a Chico Buarque. O que ocorria é que naqueles anos o gênero surgiu certamente associado a algum valor considerado como socialmente retrógrado, inaceitável para uma classe universitária que se destinava a assumir a liderança política e social. Livre das tristezas e do peso das responsabilidades de conscientização social o gênero do bolero de fato retornou mais tarde, revitalizado e muito apreciado por todos, sem obedecer a qualquer partilha prévia – musical, política ou social. Tom Jobim, João Donato, Elis Regina, Nana Caymmi, Caetano Veloso, Dori Caymmi, Chico Buarque de Hollanda, João Bosco cultivaram o bolero por muito tempo e criaram várias canções e interpretações que valorizaram e mantiveram o gênero sempre pronto para o consumo. Grandes questões, grandes conflitos. Todo este nacionalismo cultural tinha de enfrentar dilemas quotidianos na própria atividade criativa. A nossa canção de protesto nasceu derivada da protest song, inspirada na que foi cantada por Pete Seeger no 231 Idem. 216 Carnegie Hall em 5 de junho de 1963. O texto do Opinião descreve como aconteceu a “inspiração”. O próprio Zé Keti, o sambista carioca da peça e autor da maioria das canções, conta como se impressionou quando descobriu que “If I had a hammer“ era cantada para expressar uma posição política232 e para mobilizar passeatas contra a segregação racial nos Estados Unidos. Nós também tínhamos de fato muitos motivos para protestar e, se não era contra o racismo, era contra a distribuição injusta da terra. “Mas plantar pra dividir, não faço mais isso não.”233 Este verso se transformou em bandeira de luta pela reforma agrária, expressão recebida naquele tempo por algumas pessoas como um verdadeiro palavrão ofensivo, uma palavra de ordem da revolução comunista. Nara Lofego Leão nasceu em 1942 em Vitória, ES, não no Rio de Janeiro. Carioca a partir de um ano de idade, passou sua juventude entre músicos e jornalistas. Participou dos shows universitários da Bossa Nova, estreou como profissional protagonizando a peça Pobre menina rica de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes na boîte Au bon gourmet em Copacabana. Ela mostrou coerência quando confessou que sua participação musical nas reuniões da Bossa Nova, que aconteciam em muitas casas, não só na sua, não tinha intuito profissional. Foi nomeada “musa” da Bossa Nova, por certo eventualmente, em razão do timbre expressivo e suave da sua voz, aparentemente apenas uma musa doméstica. Quando foi o caso de gravar comercialmente, ela orientou a escolha do repertório de canções para uma outra direção e incluiu compositores que não participaram nem física nem espiritualmente das reuniões musicais na sua casa, como Zé Kéti, Cartola, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, etc. Eis o repertório de seu primeiro LP Nara:234 “Marcha da quarta-feira de cinzas“, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. “Diz que vou por aí“, de Zé Keti e H.Rocha “O morro (feio não é bonito) “, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri “Canção da terra“, de Edu Lobo e Ruy Guerra 232 Idem, p. 54. 233 Idem, p. 73. 217 “O sol nascerá“, de Cartola e Elton Medeiros “Luz negra“, de Nelson Cavaquinho e Hiraí de Barros “Berimbau“, de Baden Powell e Vinicius de Moraes “Vou por aí“ de Baden Powell e Aloysio de Oliveira “Maria Moita“, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes “Requiem para um amor“, de Edu Lobo e Ruy Guerra “Consolação“, de Baden Powell e Vinicius de Moraes “Nanã“, de Moacyr Santos e Vinicius de Moraes Tal repertório tem quase a força de um libelo político e parece projetar a linha de uma política de defesa da nossa cultura. A inclusão de compositores como Zé Keti, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e sobretudo Cartola mostram que o samba mostrava sua força no asfalto e se impunha como valor cultural no espaço que sempre cobiçou – entre a classe média universitária da Zona Sul do Rio. A Bossa Nova sempre procurou no samba tradicional o aliado, o seu verdadeiro parceiro. João Gilberto nos revelou esta intenção na sua maneira de cantar e na escolha de seu repertório, quando incluiu Geraldo Pereira, Dorival Caymmi e Ari Barroso. Nara Leão, também possuidora de uma voz suave e intimista, deixou explícito em palavras o ataque ostensivo ao bolero e a defesa do samba “de morro” – simbolizado no LP por Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti, seus representantes mais prestigiados e seus mais fortes criadores. A sua aproximação com a Bossa Nova não desapareceu. Ela perdurou, no citado LP, não através da ideologia do “amor, o sorriso e a flor”, mas pelo tom suave das interpretações e dos sofisticados arranjos de Gaya e de Moacyr Santos. Apenas por compensação Aloysio de Oliveira, o big boss da Elenco, conseguiu que se incluísse uma canção com letra sua em parceria com Baden Powell. Nada em comum com as raízes ou com as bandeiras políticas, mas com a política comercial da empresa. No LP seguinte, o célebre Opinião de Nara, 235 a Bossa Nova continuou presente apenas na suavidade da voz, pois o clima político e a experiência do show envolveu totalmente a escolha do repertório. A contracapa apresenta a receita, assinada por Nara, que orientou a produção: “Este disco nasceu de uma descoberta importante para mim: a 234 LEÃO, Nara. Nara. Elenco ME-10, 1964. 235 LEÃO, Nara. Opinião de Nara. Philips 632.732 L, 1964. 218 de que a canção popular pode dar às pessoas algo mais que a distração e o deleite. A canção popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo onde vivem e a se identificarem num nível mais alto de compreensão.” Nos créditos a canção “Berimbau“ recebeu entre parênteses a qualificação de “ritmo de capoeira”, era a Bossa Nova se irmanando com a verdadeira “cultura de raiz africana”. A única canção de Tom e Vinicius incluída é “Derradeira primavera“. Esta canção lenta, semelhante a uma toada, é a terceira faixa do LP. Nela o sentido romântico e extremamente melancólico da letra é acentuado pela interpretação lenta e pelo arranjo sem marcação rítmica. Muitas faixas adotaram este clima melancólico, tornando o disco todo muito lento e sombrio. Produziu-se então um forte contraste justamente com o próprio samba, que, quase sempre alegre ou eufórico, se descobre no mínimo estranho neste tipo de ambiente sério e triste. Mas Nara Leão foi a guerreira principal na luta para que o samba, “arte popular”, transpusesse as barreiras que se constróem em torno das classes sociais. E encontrou para ele uma função histórica e social. Ela incorporou a missão de revelar certo “conteúdo político recôndito” nos sambas e determinar pela grau de importância social os valores e as categorias das canções que escolheu para interpretar, preterindo os sambas suaves e discretos, os sambas-canções e os boleros. A veia política da suave guerreira revelou-se em toda sua inteireza na entrevista publicada no nº 194 da revista Fatos & fotos. O impacto das declarações foi tal que determinou o futuro do grupo de pessoas identificadas com a Bossa Nova, com as quais ela convivia, e deixou agitado todo o ambiente musical. (ver transcrição completa da entrevista).236 236 Fatos & fotos ano IV 17 de outubro de 1964 nº 194 Cr$270,00 Brasília DF, Reportagem de duas páginas 12-13. Texto de Juvenal Portela Fotos de Nicolai Drei Nara de uma bossa só Legenda de foto: Nara Leão meditou longo tempo e concluiu que a Bossa Nova dá sono. Rompendo definitivamente com o movimento musical que a elegeu sua musa, ela sai em busca do samba autêntico. Legenda de foto: Seu ideal é poder comunicar-se através do samba puro. “Chega de bossa nova. Chega disso que não tem sentido. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para um grupinho. E essa história de dizer que a bossa nova nasceu na minha 219 O conteúdo da entrevista de Nara Leão contém um verdadeiro ataque, desferido contra as pessoas com quem ela convivia e contra a prática musical a que se dedicavam, de modo que causa uma forte impressão de ressentimento motivado. A análise das suas palavras devem no entanto manter o foco sobre aquele conjunto de pessoas e suas atividades. A reação psicológica, evidente em todas as frases, deve ter sido motivada, entre outras razões, por insubmissão ao rótulo de garota suave e apaziguada com que a caracterizavam. Deste modo a queixa contra o excessivo apaziguamento, contra a ausência de conflito e de disposição para luta social realmente parece procedente. Nara explicitou a sua rebelião contra o estigma que lhe impingiram de representante da burguesia apaziguada e anódina e contra a síndrome das classes sociais previamente partilhadas. “Eu não sou isso que querem parecer que sou: uma menininha rica, que mora na Av. Atlântica de frente para o mar”. O clima de “amor e paz” prevalecia e muitas das letras de canções apenas corroboravam a ideologia do “amor-flor-mar”, que ela própria citou. Talvez seja este o mais forte motivo do rebaixamento do valor artístico das canções: “Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento”. Cantar carecia de sentido, sentido social, porque a arte deveria ter uma finalidade social. As pessoas precisariam justificar socialmente a atividade artística. A população negra dos morros cariocas seria justiçada e ficaria reconhecida: é justo o casa é mentira. Se a turma se reunia aqui, fazia-o em mais de mil lugares. Eu não tenho nada, mas nada mesmo com um gênero musical que, sinto, não é o meu e nem é verdadeiro.” Nara Leão vive seu grande momento aos 22 anos de idade – o momento de romper definitivamente com a bossa nova, que, segundo muitos foi a responsável pelo seu aparecimento no meio musical. Oficialmente Nara dirá o que pensa da música popular no seu mais recente LP gravado em seis dias, e de nome Opinião de Nara. “Se estou agora me desligando da bossa nova? Há algum tempo fiz isso, mas ninguém quis acreditar. Espero que agora compreendam que nada mais tenho a ver com ela. Entenda quem ainda não pôde ou não quis fazê-lo: a bossa nova me dá sono, não me empolga. Pode ser que, no passado, eu tenha sido uma tôla, aceitando aquela coisa quadrada que ainda tentam me impingir. Tenho um convite para, através do Itamarati, fazer uma excursão nos Estados Unidos. Mas como posso aceitar? Vão me obrigar a cantar a Garôta de Ipanema e, pior, em inglês. Essa gente quer me forçar a fazer o que não quero. Não é isso. Bolas, porque cantar sempre essa mesma coisa?” Nara aponta alguns motivos que a levaram a deixar a companhia de Menescal, João Gilberto, Lucio Alves, Bôscoli, Miele e tôda a turma da bossa nova. “1. Bossa nova é o tipo de música de apartamento; 2. Na bossa nova o tema é sempre na mesma base: amor-flor-mar-amor-flor-mar, e assim se repete; 3. É tudo complicado. Precisa-se ouvir 60 vêzes o que se diz para se entender; 4. Não transmite nada.” E dá também algumas razões que a levaram ao samba puro: “1. Quero me comunicar com o povo: 2. Quero, através dos realmente bons compositores, dizer do nosso momento, das coisas do nosso país, do dia-a-dia de tudo; 3. Quero ser compreendida.” E o que Nara mais detesta é isto, que ela diz com alguma rancor: - Eu não sou isso que querem parecer que sou: uma menininha rica, que mora na Av. Atlântica de frente para o mar. Em janeiro, Paul Winter uma das maiores autoridades do jazz americano, virá buscar Nara para uma viagem e lhe dará liberdade de cantar o que quiser. 220 desejo de manter viva a origem da sofrida população africana, objeto no passado do tráfico de escravos; os seus traços culturais seriam os instrumentos de conservação e de memória destas raízes, das quais o samba é importante componente; quanto mais “puro” o samba mais próximo fica das suas origens. Esta é a lógica que fez com que Nara se declarasse em busca do samba autêntico: “Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para um grupinho”. Justificava-se a canção que era expressão de um povo, que se manifestava como sua própria “natureza”, em oposição a uma cultura “artificial”, inventada por um grupinho. A manifestação artística aparece aqui como produto da natureza e da necessidade humana de expressão e não como uma criação deliberada sem qualquer lastro social. Não só o samba foi defendido pela cantora, ela pensou em valores nacionais de identidade. “De Manaus a Porto Alegre, há um mundo de coisas lindas. Agora mesmo, vindo da Bahia, trouxe 60 músicas no meu gravador. Essa pesquisa no meu entender é muito mais importante que a sonolenta bossa nova.” O nacional aparece no show Opinião com a inclusão do personagem do retirante nordestino. João do Vale cumpriu a missão de representar no espetáculo a cultura nordestina. A motivação pela luta social e pela conservação da tradição popular é um mote muito antigo, defendido pela classe média intelectual. No texto da entrevista a tradição do povo é mostrada como globalizada. Mencionou-se um encontro da cantora com um jazzman “autêntico” – Paul Winter, “uma das maiores autoridades do jazz americano”. Significa que o próprio entrevistador, o jornalista Juvenal Portela, pensou na matéria como um reforço a este ponto de vista. Os leitores que concordassem com estas premissas teriam a oportunidade de comprar o disco e conferir o produto lançado no mercado. “Oficialmente Nara dirá o que pensa da música popular no seu mais recente LP gravado em seis dias, e de nome Opinião de Nara. “ A globalização também fazia parte das estratégias governamentais. Havia (sempre houve e ainda há) uma política cultural, traçada pelo Ministério das Relações Exteriores, “Isso sim que interessa. Não estarei prêsa a convenções. Organizarei um roteiro, no qual poderei mostrar coisas do Brasil. E quanta coisa podemos mostrar lá fora e aqui mesmo, pois poucos conhecem. De Manaus a Porto Alegre, há um mundo de coisas lindas. Agora mesmo, vindo da Bahia, trouxe 60 músicas no meu gravador. 221 que apoiava alguns artistas com pretensões ao mercado externo da cultura. A Bossa Nova foi objeto da atenção do Governo, que deu suporte para excursões de shows por alguns países. O Itamaraty apoiou tanto as viagens culturais de Nara ao exterior quanto a ida de todos os participantes do concerto de 1962 no Carnegie Hall em Nova York. A entrevista de Nara provocou nas pessoas envolvidas reações, que também foram publicadas no mesmo veículo, a revista Fatos & fotos, uma semana depois (ver transcrição completa).237 O tom das declarações foi variável, se estendendo de conselhos de colegas profissionais a críticas bem pouco artísticas. Roberto Menescal, usou a ironia para opinar sobre a fragilidade das filosofias estéticas quando se trata de produção cultural: “Quando Nara souber o que é música pura, e conseguir transmiti-la, todos seremos músicos puros e iremos juntos para o céu. Enquanto isto não acontecer, continuamos nos apartamentos, fazendo bossinhas novas para vender.” Essa pesquisa no meu entender é muito mais importante que a sonolenta bossa nova.” 237 Fatos & fotos ano IV 24 de outubro de 1964 nº 195 Brasília DF, Reportagem de duas páginas 22-23 Texto de André Kallás Fotos de Antonio Trindade Depois da bomba que ela jogou os colegas de ontem reagem com firmeza mas também com carinho. A bossa contra Nara Tudo começou quando Nara leão rompeu publicamente, através da F&F, com a que chamou “musiquinha de apartamento”. Considerada musa da bossa nova, seu “basta” e sua saída em busca do “samba puro” foram duas bombas nos arraiais de Ipanema e arredores. Para Silvinha Teles, Nara quer dar um pulo muito grande, quando ainda está na idade do amor-flor-mar. O que diz Silvinha: “Por mais que queira sonhar Nara é a autêntica bossa nova, que ainda é a fórmula mais prática para a gente dizer o que sente. Ela está subestimando o público, ao dizer que na BN é preciso repetir uma punhado de vêzes para se fazer entender. A BN é a música da época em que todo mundo mora em apartamento. Todos nós esperamos a volta de Nara ao redil.” O que diz Aluísio de Oliveira, da Elenco, que primeiro gravou Nara Leão. “Não sei qual o povo de Nara Leão. Garota de Ipanema é música para todos. Quer queira quer não, ela é uma típica cantora de apartamento que quer negar a existência do amor-flor-mar como motivo musical. Isso seria negar o que o mundo inteiro quer. Seria negar até Caimi. Ninguém deseja mudar Nara. Ela é que deseja passar pelo que não é.” O que diz Bôscoli, colocando uma vírgula no primeiro verso de uma das músicas que Nara canta: “Feio, não é bonito, o que ela está fazendo conosco. Nara é muito jovem para entender que ninguém pode negar o seu passado. Se ela renega a BN, renega a si própria e está sendo ingrata com quem tanto a promoveu. Para notar sua incoerência basta lembrar que ela viajou quatro continentes cantando Garota de Ipanema em inglês. Portanto , foi ela quem espalhou a “mentira” da BN pelo mundo. E ganhou bom dinheiro.” O que diz Tom Jobim, mesmo achando que música não deve ser motivo de polêmica, mas reagindo quando a musa da BN afirma não gostar da BN. “A música é muito grande. Clássica e popular. Só de samba existem mil espécies, como o de roda, o da Bahia ou o cosmopolita (Noel Rosa). Todas essas manifestações são válidas e, dentro de cada uma, há material de primeira ordem. Admito tudo, desde recolher folclore até fazer música eletrônica. Só não gosto quando qualquer forma de música é usada para agredir alguém. Autenticidade? Autênticos são o jequitibá e a avenca. Não é autêntico jequitibá querer ser avenca e vice-versa.” O que diz Roberto Menescal: “Quando Nara souber o que é música pura, e conseguir transmiti-la, todos seremos músicos puros e iremos juntos para o céu. Enquanto isto não acontecer, continuamos nos apartamentos, fazendo bossinhas novas para vender.” O que diz Luis Eça: “Não há jovem de valor que , em certo momento da sua vida, não se rebele contra tudo e todos. Para mim, Nara tem razão em algumas coisas, principalmente quando diz que, no estrangeiro, a BN feita por alguns músicos é um tanto feminina, e até chata, quando a música brasileira sempre foi masculina e o mais quente possível. Mas daí a passar aos extremos, à radicalização, vai grande diferença. Sinto que Nara está um pouco enganada, o que se deve a sua pouca idade. Não creio que esta briga de Nara com a BN seja muito importante. Importante seria a juventude preocupar-se com a verdadeira cultura musical. No Brasil, fala-se muito e produz-se pouco. Não digo isto apenas para Nara, mas para muita gente que anda por aí. Quanto a ela, môça que muito estimo, acho que ainda mudará muitas vezes de opinião.” 222 A fragilidade das próprias pessoas também ficou exposta. O pianista Luis Eça, por exemplo, deve ter deixado constrangida toda a corporação dos músicos com uma preleção de mau gosto sobre a masculinidade da música popular: “Para mim, Nara tem razão em algumas coisas, principalmente quando diz que, no estrangeiro, a BN feita por alguns músicos é um tanto feminina, e até chata, quando a música brasileira sempre foi masculina e o mais quente possível… Não creio que esta briga de Nara com a BN seja muito importante. Importante seria a juventude preocupar-se com a verdadeira cultura musical. No Brasil, fala-se muito e produz-se pouco. Não digo isto apenas para Nara, mas para muita gente que anda por aí.” Tom Jobim mostrou-se bem mais articulado, defendendo a qualidade artística, que ele definiu como “material de primeira ordem”. Invariavelmente o discurso dos que trabalham com a linguagem musical se resume à defesa da qualidade, do valor da arte medido pela qualidade, numa menção à qualidade musical das peças. Toda esta guerra de opiniões e esta celeuma pode ser sintetizada em um único ponto de vista: o das letras das canções. Elas são as condutoras do que Ruy Castro chamou de “racha na Bossa Nova.”238 Se por uma especulação suprimirmos as letras das canções e considerarmos apenas as peças musicais teríamos uma guerra de tal forma complicada que seria impossível distinguir os contendores. No exame dos dois primeiros LPs lançados por Nara o estilo musical é suave e não lembra em nada o ritmo dançante dos sambas tradicionais. Os arranjos estão muito distante dos limites dos regionais com base no cavaquinho e pandeiro. A consideração ao “samba puro” não levou em conta o ambiente musical dos conjuntos tradicionais, e a sua defesa não foi feita de forma alguma na perspectiva dos estudos antropológicos. Os temas sociais só podiam transparecer nas letras, sem articulação alguma com os timbres do que se chama de “samba autêntico”. O que Nara se negou a continuar foi a interpretação de letras com temas de “amor-flor-mar” como a de “Garota de Ipanema“ e outras. O LP Nara foi arranjado quase que inteiramente pelo Maestro Gaya, que equilibrou timbres e ritmos, e conduziu o disco para um clima quase camerístico. A canção “Vou por aí“, de Baden Powell e Aloysio de Oliveira transformou-se em canção 223 de câmera. A faixa “Berimbau“ é de tal forma cuidada que o instrumento rude perdeu seu ritmo peculiar e se tornou referência poética, cheio de acentos dramáticos do piano. “Diz que fui por aí“, de Zé Keti e H.Rocha desceu o morro e ganhou um belo acompanhamento de violão cheio de balanço e de dissonâncias típicos da Bossa Nova e do samba urbano mais sofisticado, com o toque de Geraldo Wesper (hoje Geraldo Vespar). “O morro“, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri foi interpretado por Nara com afinação impecável e comovente delicadeza. Ela provavelmente considerou que um assunto tão sério quanto este não deveria ter nenhuma intenção dançante, e suprimiu qualquer possibilidade de acentos rítmicos, os quais aparecem claramente no vocal feminino que canta a introdução. “Feio, não é bonito, o morro existe mas pede pra se acabar” resume o atual, polêmico e por demais conhecido problema de moradia popular, que se eterniza em certos bairros da cidade. É de fato assunto grave. A sua interpretação delicada sobressaiu-se em todas as faixas em contraste com os temas fortes e cheios de tensão. Falava-se inclusive na divisão social em classes de pobres e ricos: “o rico acorda tarde e já começa a resingar, o pobre acorda cedo e já começa a trabalhar”. A canção é “Maria Moita“, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (terceira faixa do lado B) e já impõe o estilo dos Centros Populares de Cultura, os CPCs. Nos ataques desfechados por Nara, na entrevista à Fatos & fotos, a Bossa Nova é a letra. 1.3.A Bossa Nova deixa Copacabana em busca da Garota de Ipanema. João de Barro lançou uma canção que tornou ele próprio e um bairro do Rio de Janeiro famosos. Chama-se “Copacabana“, e a sua gravação mais notável, lançada com enorme sucesso pela gravadora Continental em 1946, nos traz a voz de Dick Farney. Inspirador de um novo comportamento artístico e de uma nova maneira de cantar – ou não, a sua audição nos remete hoje menos às companhias de discos e aos estúdios de produção de música do que aos inferninhos, boîtes e night clubs. Dick Farney personificou um músico da noite num momento em que a Zona Sul do Rio era o centro de irradiação de padrões culturais. E não ficou só no desempenho deste papel, com ele 238 Op.cit., p . 348. 224 formou-se um grande grupo de artistas profissionais que dominou e domina os bares do Rio há décadas. Dolores Duran, Tito Madi, Johnny Alf, Moacyr Santos, Lúcio Alves, Ribamar, Djalma Ferreira, Luis Bonfá, Billy Blanco, Tom Jobim, todos construíram carreiras profissionais cujas apresentações à noite constituíram uma alternativa consistente de trabalho remunerado. Eles atraíam a atenção de outros mais novos como João Donato e Baden Powell por exemplo, que visitavam os bares para ouvi-los. A música ao vivo (como é chamada hoje) acontecia intensamente e era praticada não só em locais públicos, os encontros informais de instrumentistas e cantores em reuniões reservadas sempre foram relevantes no campo da música. Os encontros para tocar em conjunto não se restringiam a Copacabana e Ipanema (idéia construída mais tarde). Tudo podia acontecer também nos bairros da Tijuca, onde estava situada a sede do fã-clube Sinatra-Farney,239 ou Urca, onde Dick Farney morava e trabalhava no histórico Casino. A oferta de trabalho se concentrava no entanto nos clubes noturnos de Copacabana, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960: Plaza, Clube da Chave, Au Bon Gourmet, Texas Bar, Bottle´s Bar, Little Club, Baccarat, Black Horse, Vogue, Drink´s, Zum-zum, onde trabalharam Johnny Alf, Dolores Duran, Tom Jobim, Alayde Costa, Luis Carlos Vinhas, Sérgio Mendes, Sylvinha Telles, Luis Eça e muitos outros. Djalma Ferrreira na boîte Drink, Tenório Jr. e Sérgio Mendes no Bottle´s, Vinicius e Caymmi no Zum-zum, Baden Powell e Tom Jobim na Arpège, no Leme, que é também Copacabana, a peça Pobre menina rica no Au bon Gourmet. “Tudo em Copacabana” como diria mais tarde Caetano Veloso. A turma de rapazes da Bossa Nova não suava tanto a camisa nestes locais, tocava sobretudo nas reuniões sociais e nas Faculdades. Arte pela arte e desempenho de amadores são atividades muitas vezes equivalentes. Na turma não se incluíam Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto, que não freqüentavam com tanta intensidade as reuniões sociais, nem os shows amadores nas Universidades. Eles não se agremiavam tão constantemente com a turma bossanovista de Copacabana. Duas exceções, João Gilberto e Tom Jobim figuram na lista de artistas do programa A noite do amor, sorriso e a flor da Faculdade Nacional de Arquitetura.240 239 Idem, p. 32. 240 Op.cit. p. 265. (Ilustração) 225 Se a Bossa Nova foi inventada em algum apartamento em Copacabana tudo foi feito então sem o conhecimento de Tom Jobim, de João Gilberto e de Vinicius de Moraes, seus principais protagonistas. Os jovens músicos, que provinham dos Colégios da Zona Sul e das Universidade, circulavam nas ruas de Copacabana. Carlos Lyra e Roberto Menescal não se conformaram em tocar apenas em reuniões sociais e abriram uma escola onde podiam consolidar um pouco mais suas finanças. A “sede” da escola se localizava também em Copacabana, próximo à casa de Nara Leão, que morava de frente para o mar da Av.Atlântica. A Bossa Nova era vivida em outras paragens com a mesma intensidade que em Copacabana. Roberto Menescal contou em entrevista a Armando Nogueira na SportTV em 30 de setembro de 1997 que a idéia da canção “O barquinho“, surgiu em Cabo Frio, litoral norte do Estado do Rio de Janeiro, testemunhada por Nara Leão e Ronaldo Bôscoli, ambos companheiros de pescaria de Menescal nos mares da região. Ela foi concluída em outro local mais conhecido da historiografia, o apartamento de Nara na Av. Atlântica. É uma passagem que pode contribuir para o “folclore” em torno destas personagens. Mas a Bossa Nova foi levada para outro bairro, pelas mãos da Garota de Ipanema. O bairro de Ipanema também tinha vida boêmia consistente. Ele abriga até hoje o célebre bar Veloso, parada obrigatória de todos os que retornam de um dia de praia e desejam se refrescar com um chopp. Não tem música ao vivo, mas é um bar que mantém a sua função original, mesmo depois de ter sido reformado e de ter trocado de nome (atualmente bar Garota de Ipanema). A escolha de um bairro tão agradável como Ipanema para marcar a situação geográfica da Bossa Nova (como pode ser visto no recente filme homônimo de Bruno Barreto) reforça o seu status de música destinada à classe média. Não se associa a Bossa Nova a Copacabana, apesar de ter sido completamente inventada lá. Possivelmente a escolha deste bairro não teria agradado a ninguém, por ter se transformado em região de alta densidade populacional e por ter sua qualidade de vida degradada já a partir dos anos de 1960. Além das suas precárias condições materiais, o epíteto “A princesinha do mar” não soaria adequado ao universo 226 simbólico que se constituiu depois. Menos adequado ainda seria uma Bossa Nova da Tijuca, bairro em que nasceu Tom Jobim e o Sinatra-Farney fã clube. Canções como “Balanço zona sul“, de Tito Madi, “Domingo azul“, de Billy Blanco, “Rio“, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, “Samba de Orly“, de Toquinho, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, “Samba do avião“, de Tom Jobim, “Sinfonia do Rio de Janeiro“, de Billy Blanco e Tom Jobim e “Valsa de uma cidade“, de Ismael Netto e Antônio Maria utilizaram a natureza do Rio de Janeiro como personagem ativa das canções, mas na Bossa Nova o interesse pela natureza concentrou-se em certos lugares que tinham Ipanema como referência e que passaram a ser exaltados explicitamente. O morro do Corcovado visto de Ipanema marcou o novo ponto (a canção “Corcovado“ tem letra do próprio Tom Jobim), o sol de Ipanema, que dourou a famosa garota não pode ser tão diferente no Leblon (que é continuação de Ipanema) e é habitado pela “Tereza da praia“, de Tom Jobim e Billy Blanco. Em “Ligia“, o chopp gelado é em Copacabana mas se anda na praia “até o Leblon”. E, argumento cabal, o samba suave “Carta ao Tom 74“, de Toquinho e Vinicius de Moraes informa com “saudade” que o compositor e pianista morava na rua “Nascimento e Silva, 107” onde ensinou “pra Elizeth as canções do Canção do amor demais” (refere-se ao LP). Ficou registrado em samba que “Ipanema era só felicidade” e que havia um “Rio de amor que se perdeu”. Este o universo simbólico da Bossa Nova: uma bela paisagem do Rio, vista de uma janela em Ipanema, emoldurando uma história de amor, leve, romântica e sem “dor de cotovelo”. 2. O MUNDO LETRADO E A SEDUÇÃO DO SAMBA Hermano Vianna conta na sua história do samba241 um episódio de caráter relevante. Depois de longa experiência de estudo pelo mundo o pesquisador pernambucano Gilberto Freyre teria viajado ao Rio de Janeiro em 1926 especialmente para conhecer a música popular carioca. Seus amigos e anfitriões Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto levaram-no para assistir um espetáculo teatral 241 VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio: Jorge Zahar, 1995. 227 protagonizado exclusivamente por negros.242 Prudente de Moraes conseguiu ir além e organizou na mesma temporada um encontro entre o intelectual pernambucano e os componentes dos Oito Batutas, incluindo-se Pixinguinha e Donga. Tudo aconteceu num café na rua do Catete, perto da Faculdade de Direito. Boemia, intelectuais e música popular sintetizam os ingredientes de uma mistura das mais tradicionais e consagradas na sociedade do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda era na época o editor da revista Estética onde tencionava publicar um artigo sobre o escritor irlandês James Joyce. As relações de amizade entre Sérgio e Gilberto teriam sido estimuladas pela discussão crítica sobre Joyce, mas na continuidade dos debates a ênfase se deslocou para o samba. Dois dos nossos mais célebres e prestigiados intelectuais se encontraram no Rio de Janeiro e manifestaram sua sedução pelo gênero. Não se tornaram sambistas, como aconteceu mais tarde com o escritor e diplomata de carreira Vinicius de Moraes; mantiveram em relação ao samba uma distância em que se reconhecem os estudiosos e eruditos, uma suave relação de alteridade. Hermano Viana diz que o “mistério do samba” reside em que não parece haver um corte ou salto brusco na transformação do samba de expressão marginal reprimida a expressão musical nacional.243 Ele mostra no estudo a impossibilidade de se mapear com exatidão o modo como o samba ganhou circulação entre diferentes grupos sociais, saindo da expressão marginal para o deleite da classe média. O historiador inglês Peter Burke defende a tese da cultura popular revelada pelos intelectuais. No seu livro Cultura Popular na Idade Moderna244 ele afirma que “ironicamente foram os intelectuais que formaram a nação”, porque a cultura popular tem uma origem regional e o povo desconhecia o nacional. A busca da cultura popular e do folclore iniciados no final do século XVIII aconteceram na periferia do grande núcleo europeu formado pela Itália, França e Inglaterra. Estes países já tinham avançado no construção do nacional, principalmente através do estabelecimento de idiomas nacionais e de uma maior concentração de poder com o governo centralizado. 242 Pelo que conta Vianna tratava-se de um espetáculo de variedades. Tudo preto foi montado pela Companhia Negra de Revistas no ano de 1926. 243 Op.cit., p . 29. 244 BURKE, Paul. Cultura Popular na Idade Moderna. 2. ed . S.Paulo: Companhia das Letras, 1995. 228 Talvez seja esta a lógica adequada também para se pensar a nossa sociedade e a nossa música popular. Minimizemos porém a premência da explicação. O que se evidencia com freqüência em relação aos intelectuais é que invariavelmente atribuem uma função social para a cultura popular. No Brasil assistiram-se regularmente episódios que colocaram a canção popular no papel de instrumento político. A “canção de protesto”, inspirada nos shows do cantor americano Pete Seegers,245 ficou bem delimitada historiograficamente, porém toda a produção tem sido usada com maior ou menor intensidade como meio de manifestação política e até como recurso de luta no próprio campo da política. Atribui-se à canção popular uma força de comunicação, que ela de fato talvez possua. Acredita-se que ela tem a capacidade de mobilizar forças sociais, que ela de fato talvez tenha. Estamos falando de uma determinada forma de canção, composta com poucas estrofes, em linguagem musical simples, para a qual estabeleceu-se o padrão de duração média de 3 minutos. Ela pode ter força de mobilização política mas dispensa qualquer articulação concreta com palavras de ordem de resultado político efetivo, pois correria o risco de perder o seu lugar como expressão artística desinteressada. A canção popular se introduz no lugar do discurso sociológico ou histórico sem corresponder às necessidades de aprofundamento de um debate social conseqüente e da tomada de posição do indivíduo no campo político. O abandono da canção artística pela canção popular pode representar também lucros financeiros. Não se questiona a forte inserção desta produção no mercado cultural. Embora seja reconhecida como produto comercial, tornou-se evidência tão naturalizada que a sua condição mercantil tem sido desconsiderada quando se trata de luta política. Ela se desprende de sua finalidade mercadológica e se torna instrumento político puro. Assim como em outras circunstâncias se desprendeu de sua finalidade artística e se tornou produto cultural com valor de mercado. 2.1.Papo-cabeça, mulher e samba A dinâmica dos círculos intelectuais se reproduzem de uma forma bastante regular. A prática das reuniões em cafés e bares, sedes habituais de debates filosóficos, 245 Ver referência nos comentários sobre o show Opinião. 229 literários, políticos e sociais, já fez no Rio de Janeiro mais de cem anos. Nada é deliberado em volta das mesas, pois a manifestação é livre e a bebida também, e as conclusões dos debates se misturam às anedotas e aos faits divers. Vinicius de Moraes manteve o hábito de se reunir nos cafés do Catete, bairro onde estudou Direito na década de 30,246 e nos bares da Lapa, onde nos debates podiam se perder não só as linhas de delimitação das categorias intelectuais mas as dos comportamentos e as das classes sociais. Nestas circunstâncias são produzidas situações em que é difícil até mesmo divisar se o que ocorre é mistura ou promiscuidade, se a circularidade de bens culturais acontece por gosto ou complacência. A circulação dos intelectuais e jornalistas por ambientes de forte contrate social constitui uma longa tradição entre nós. O perfil típico modelar é o colunista João do Rio, que foi aos poucos deixando de lado a identidade de Paulo Barreto para assumir inteiramente a de repórter das ruas. Ele passava, segundo se conta, das altas rodas ao bas fond sem dificuldade alguma. Intelectuais, jornalistas e escritores atraídos pelo samba compõem hoje uma lista interminável, sendo que alguns dos mais notáveis e prestigiados podem encabeçar este rol e certificar o assunto. João do Rio, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freire iniciaram o que Vinicius de Moraes continuaria. O poeta percorreu todos estes caminhos e foi um dos personagens que mais fortemente determinou como o samba seria consumido pela classe média letrada. Ele desarmou a alteridade dos intelectuais tornando-se sambista. Ele próprio sambista, não o outro. O sambista-diplomata produziu uma das mais contumazes misturas sociais, que começou com a sua formação no Colégio Santo Inácio e se estendeu ao convívio, na extinta Faculdade de Direito do Catete, com outros intelectuais como Gilson Amado, San Tiago Dantas, Octavio de Faria e Vicente Chermont. Participou ativamente do debate político-filosófico na Faculdade, que, além do dilema direita-esquerda, incluía ainda a Estética e a Poesia. Todos se mostravam atualizados com os últimos lançamentos editoriais, com as leituras filosóficas dos clássicos gregos a Nietsche, passando pela ficção européia e brasileira. Forma e Exegese foi um dos livros que Vinicius, jovem 246 CASTELLO, José. O poeta da paixão. 2.ed. Rio: Companhia das Letras, 1999. p. 59. 230 erudito, pode publicar no início de sua carreira literária e que recebeu o Prêmio Felipe de Oliveira. Mais tarde, no samba, ao mesmo tempo em que disciplinava o gosto de Tom Jobim com comentários restritivos ao seu estilo de composição musical,247 se lançava num convívio de intensa atividade produtiva com Baden Powell, distanciado da estética bossanovista e ingressando no universo do “sambão”. Foi deste convívio que nasceram os afro-sambas. “Berimbau“, um dos mais famosos, foi sucesso em 1964. O samba, já comentado em capítulo anterior e que tornou famoso o tosco instrumento de corda, marcou no estilo de Vinicius uma proximidade peculiar com as “fontes populares”. Abandonou aos poucos a preocupação com a “universalidade” dos sentimentos do povo brasileiro e se lançou na criação de letras descomprometidas com qualquer preocupação social ou científica. Aí ele rompeu de fato com a erudição, que ainda mantinha em momentos anteriores, como o da concepção da peça Orfeu da Conceição. A opção de Vinicius pelo samba mais convencional, a partir dos seus produtivos encontros com Baden Powell, coincide seguramente com o afastamento da estética suave do “amor, o sorriso e a flor”, que abandonou completamente, e com a consagração de uma linguagem de aceitação mais ampla. Em 1965 outra afirmação do “artista popular” Vinicius de Moraes celebrou-se no LP De Vinicius e Baden,248 inteiramente dedicado ao cantor de sambas Ciro Monteiro, que não mantinha qualquer ligação com a turma da Bossa Nova e fez parte inclusive do elenco da célebre montagem de Orfeu da Conceição no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que estreou em 25 de setembro de 1956. Ciro Monteiro teve o apogeu da sua carreira nos anos de 1940. Em 1943 ficou em evidência como grande sambista com o sucesso de “Beija-me“, de Roberto Martins e Mário Rossi. O seu prestígio se prolongou até os anos 60 com o auxílio de Vinicius de Moraes, que reconheceu a sua importância como intérprete do samba e apresentou-o à classe média. Elis Regina recebeu-o calorosamente e cantou com ele o samba “Formosa“, de Baden e Vinicius no seu programa O fino da bossa em 19 de julho de 1967.249 Vinicius de Moraes circulou entre o 247 Vinicius qualificou a sonoridade da música de Tom Jobim de “mórbida”. O comentário está na contracapa do LP Canção do amor demais, citado em capítulo anterior. 248 MONTEIRO, Ciro. De Vinicius e Baden especiialmente para Ciro Monteiro. Polygram 5587 957-2, 1998. (redistribuição do LP da Elenco de 1965). 249 Registrado na gravação no vol. I in REGINA, Elis. No fino da bossa. 3 v . Velas 30301, 30302, 30303, 1965/66/67. 231 distinto e o vulgar com facilidade. Desprezou as tensões e oposições estabelecidas para estas categorias pela sociedade, apoiado nas suas experiências pessoais e existenciais. A Bossa Nova levou o samba para o ambiente distinto inclusive pelas mãos dos parceiros Tom e Vinicius. O poeta cultivava então o samba suave e discreto e as suas criações no final dos anos 50 e início dos 60 podem comprová-lo tanto pela linguagem musical quanto pelos versos das letras. O próprio samba suave se propunha distinto, sofisticado. Abandonando a distinção definitivamente, Vinicius retornou ao sambão com Baden e mostrou que os limites entre o distinto e o vulgar são bem mais tênues do que aparentam. Ele é a figura que melhor expressa esta convivência. O intelectual, cheio de erudição, conseguiu enfim aderir ao samba como se fosse próprio, abandonando definitivamente a personagem do pesquisador ou do antropólogo. Quando o homem de letras adere ao samba a definição dos padrões estéticos do “bom gosto” ou “mau gosto” entram em colapso. Ele realizou o momento inverso ao que prendeu o compositor Guerra Peixe no mundo exclusivo da música de concerto. No seu curriculum vitae de 1970 o músico petropolitano expurgou de seu catálogo de obras as “composições de caráter popularesco – sambas, marchas, choros, etc.”, num episódio contado por Elizabeth Travassos em Modernismo e música brasileira.250 No mundo da estética a consagração de valores é sempre temporária. Elementos e padrões excluídos numa época voltam a ser incluídos no período seguinte. As exclusões são sempre contundentes, as consagrações subsistem com força, mas o seu ímpeto é temporário. A tentativa mais conhecida de se eliminar o processo de exclusão das práticas culturais e transformar qualquer estética em inclusiva é o kitsch, que aceita todos os elementos sem hierarquias de valor – para finalidades estéticas valem todos os materiais, até o pior. A banalização, a vulgarização e a democratização do gosto artístico colocaram o “gosto exclusivo” em questão. Com a distribuição democrática da produção cultural o gosto exclusivo pode ser visto como “mau gosto”, o distinto foi banido, para ser de novo incluído pelos ventos pós-modernos, convivendo com seu oposto – o vulgar. O distinto 232 não pode mais ser considerado um valor absolto com precedência sobre o vulgar. E viceversa. Todos os gostos, tanto o gosto exclusivo quanto o mau gosto, tanto o distinto quanto o kitsch, não passam de construções. 2.2.Os protagonistas da Bossa Nova em compasso de grande concerto. Fala-se que o jazz “influenciou” a Bossa Nova mas não se diz o mesmo em relação à música escrita de concerto. De modo semelhante detecta-se uma interlocução dos compositores populares com aquela música, mas em dimensões muito mais modestas do que a amplamente debatida com relação às canções norte-americanas. Encontram-se os vestígios deste intercâmbio em peças e canções de Tom Jobim e de Baden Powell. A tendência, que se verifica sobretudo no terreno do material exclusivamente musical, está bem representada em “Samba em prelúdio“, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Durante o período em que trabalharam juntos, Vinicius ouvia intensamente a música de Bach (Johann Sebastian Bach), compositor preferido do poeta segundo seu biógrafo José Castelo.251 Além de Chopin e Villa-Lobos, suas outras preferências. Percebe-se na primeira frase musical uma grande semelhança com o Prelúdio das Bachianas Brasileiras nº 4 para piano de Heitor Villa-Lobos. É praticamente uma cópia do tema principal da peça, em ambas desenvolvido de maneira motívica.252 Um segundo tema, mais típico do samba convencional, aparece para criar um contracanto com o tema principal. O primeiro sustenta a letra “Eu sem você, não tenho porque”, etc., e o segundo faz contracanto com “Ah! Que saudade, que vontade de ver renascer nossas vidas”, etc. Em muitas faixas instrumentais de LPs de Tom Jobim e Baden Powell encontramse elementos de música puramente instrumental, como a que se identifica por música de concerto. Em muitas gravações podem ser reconhecidos desde vestígios do barroco alemão bachiano (sobretudo nas de Baden) até trechos com cores mais familiares da 250 Op.cit.p.11. 251 CASTELLO, José. Op.cit. p. 230. 252 O mesmo conceito foi empregado para tratar os temas dos sambas bossanovistas. O desenvolvimento motívico é um dos recursos mais característicos das melodias criadas para estes sambas . 233 música francesa e da brasilidade villalobiana (mais freqüentes nas composições de Tom Jobim e dos arranjadores contratados para seus discos). O mundo musical de Baden Powell é o título do 1º LP gravado pelo violonista na Europa em 1963, mais precisamente em Paris. Exclusivamente instrumental, inclui até mesmo o Adagio de Albinoni, um soi-disant “clássico popular”, e um Prelúdio de Bach para cravo (extraído do álbum de Prelúdios e fuguetas), sobre o qual inseriu um solo vocalizado que possivelmente desagradará tanto aos puristas quanto aos bons compositores. Aparece ainda uma Bachiana, homenagem a Johann Sebastian Bach, inspirada no que o senso comum julga que é o barroco bachiano. O objetivo do disco é expor as qualidades violonísticas de Baden na execução de peças instrumentais e demonstrar assim a sua capacidade virtuosística. O seu virtuosismo entretanto está mais presente em “Garota de Ipanema“, sua última faixa, do que nos clássicos de Albinoni e Bach. Tom Jobim preferiu as grandes orquestrações às demonstrações de habilidade instrumental e contratou Eumir Deodato (Stone flower) e Claus Ogerman (Urubu e outros) para grandes arranjos. Do álbum Wave de 1967 até Passarim de 1987, passando por Urubu, O tempo e o vento e Terra Brasilis estão registradas faixas de até 8 minutos de música instrumental. A 1ª faixa de Urubu, Saudades do Brasil pretende ser um painel sinfônico emocionante da música brasileira, com frases cheias de lirismo executadas pelo naipe de cordas. Parece menos música típica do que música híbrida. Ouve-se até um trecho de uma peça para piano de Mendelssohn (Rondó caprichoso),253 muito mais próxima das aulas de piano clássico para os jovens em formação do que do espírito generoso e amplo do povo brasileiro. Um dos mais famosos produtos da simpatia pelos clássicos é a peça Orfeu da Conceição, que protagonizou um episódio considerável na biografia de Vinicius. Além de uma carreira teatral de sucesso, tornou-se argumento da produção cinematográfica francesa L´Orfée nègre, premiadíssimo filme lançado no Brasil com o título de Orfeu do Carnaval. O próprio Vinicius descreve como nasceu a idéia da peça, na explicação publicada sob o título Orfeu da Conceição impressa no programa composto para a 234 montagem teatral de estréia.254 Ele ciceroneava em 1942 o escritor americano Waldo Frank em visita às favelas (incluindo-se certamente a hoje extinta favela da Catacumba), para apreciar macumbas e outras festas, quando se sentiu “particularmente impregnado pelo espírito da raça”. Ele diz que os ritos assistidos por eles “tinham alguma coisa a ver com a Grécia” (com a Grécia clássica, evidentemente). Sua intenção foi então prestar uma “homenagem ao negro brasileiro”. O texto foi entendido por muitos como uma elevação dos dramas da população negra do Rio de Janeiro à condição de universalidade. A importância destes dramas parecia mesmo muito relevante, pois o diplomata conseguiu reservar para o espetáculo a nossa casa mais importante, o Teatro Municipal. Na capa do luxuoso programa a ficha técnica inclui o nome de Oscar Niemeyer para a cenografia e o de Tom Jobim para a música. Assinala também que o próprio programa foi “planificado e composto por Carlos Scliar”, que funcionou como “consultor plástico da produção” e assinou também vários desenhos e cartazes. Citam-se ainda os nomes de Djanira, Raimundo Nogueira e Luiz Ventura como criadores de cartazes de divulgação. Ficha técnica no mínimo invulgar. Tudo acentua o tom grandioso do espetáculo e retira dele qualquer nuance de pesquisa de folclore afro-brasileiro. A universalidade do drama foi enfatizada em um texto de Guilherme Figueiredo, impresso no programa sob o título de Opiniões sobre Orfeu da Conceição. “Pelo amor de Deus e de Júpiter não vejam e ouçam esta peça como folclore puro e simples – mas como uma transfiguração da alma popular no alto e ambicioso plano de um Mozart, de um Wagner, de um Prokofief”. Mozart, Wagner e Prokofief também são mencionados como artistas que valorizaram e “elevaram” o folclore de seus países ao plano sinfônico. A música de Tom Jobim foi criada com o mesmo propósito, tendo à sua disposição uma orquestra sinfônica sob a regência do eficiente maestro Léo Peracchi. A Tom Jobim e a todos os outros que trabalharam no espetáculo foi pedido que escrevessem um texto para o programa. O tom de universalidade aparece de novo e é bem explícito, apesar da relutância do compositor que declarou que “não pretendemos uma 253 Trata-se do Rondo caprichoso op.14 de Félix Mendelssohn-Bartholdy. 254 O programa está disponível para cópias no acervo do Serviço de documentação MEC DAC SNT. 235 explicação ou justificativa para a música, pois achamos que música não pode ser explicada por palavras”. Mais adiante se lê que “procuramos ser fiéis à idéia que gerou a própria peça e que está toda contida no seu título Orfeu – o músico grego; da Conceição – o músico carioca do morro”. A seguir mostra que a escolha dos recursos musicais foi feita “sem quaisquer pretensões de pureza”. Parece no entanto que a idéia de universalidade não prevaleceu na estratégia da transformação da peça em roteiro cinematográfico. O título L´Orfée Nègre traz de fato a marca da alteridade, o que se confirmou em certos relatos. Vinicius de Moraes teria comentado, depois da exibição do filme, que os franceses acentuaram o exotismo do tema, o que o desagradou muito.255 Tom Jobim, contratado para escrever as canções, abandonou insatisfeito a tarefa, completada por Luis Bonfá e Antonio Maria (“Samba de Orfeu“ e “Manhã de Carnaval“). Luis Bonfá tinha guardadas peças musicais às quais Antonio Maria adaptou letras. Deu certo, porque “Manhã de Carnaval“ tornou-se um tremendo sucesso na voz de Agostinho dos Santos no ano de 1959. Ele foi até chamado para dublar, nas canções, a voz do ator amador Breno Mello, que personificou Orfeu no filme. A co-produção franco-italiana-brasileira (Dispat-Films Paris, Gemma Films Roma e Tupan Films S.Paulo) foi inteiramente rodada no Brasil. O diretor Marcel Camus escolheu os atores e figurantes um a um nas próprias comunidades do Rio. Na publicação Unifrance film information,256 distribuída pela Maison de France no Rio, descreve-se como foram gastos milhares de metros de celulóide nos três dias de carnaval de 1958 (18, 19 e 20 de fevereiro). O periódico francês Radio-cinéma, conta o panfleto, entrevistou Marcel Camus sobre as condições em que o filme foi realizado. O diretor confirmou que não incluiu no cast um só ator profissional. Para o papel-título encontrou por acaso um centro-avante de futebol que possuía o physique du rôle. Breno Mello foi o Orfeu negro escolhido na própria cidade do Rio de Janeiro (não se sabe se habitava alguma favela). Os figurantes que aparecem no filme foram recrutados nas ruas durante as filmagens, e, segundo a própria publicação, “Camus se beneficiou com uma figuração benévola de mais de quatro 255 CASTELLO, João. Op.cit., p. 195. 256 Les nouveaux films français in Unifrance film information. Folheto publicado pela Maison de France, Rio (sem número, sem data) 236 mil pessoas”, também reunidas por casualidade. Este relato serve na verdade como certificado de autenticidade para o filme. O anseio por autenticidade se justifica na perspectiva antropológica e não na artística. É procedente a crítica de Vinicius de Moraes, o autor do “enredo” (assim está indicado no release). L´Orfée Nègre tratou do tema das favelas cariocas com a ótica da alteridade e do exotismo. Pode-se perguntar se tal componente pesou na decisão da premiação. O filme conseguiu em 1959 uma premiação completa – a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro (certamente representando a França). 2.3.O samba, de novo, internacional O samba tem tido uma divulgação permanente em várias latitudes como sendo uma festa com música que se caracteriza pela presença de um ritmo bastante vivo e dançante. Esta manifestação está associada ao carnaval e aos sambas-enredo. Os ritmos brasileiros vivos, alegres e dançantes, como se manifestam por exemplo nas escolas de samba, são mais apreciados pelos estrangeiros na medida da sua alteridade, marca sob a qual foram difundidos pelo mundo nos anos 40, principalmente pela presença de Carmen Mirada nos EEUU. A sedução da sensualidade tropical se deixou reconhecer como cultura típica dos trópicos, com muitas bananas, outras frutas e balangandãs. Foi neste contexto que se criaram personagens esfuziantes, engraçadas e bem-humoradas como o Zé Carioca, com traços culturais fáceis de serem assimilados pela sociedade norte-americana, sempre identificada com o comportamento descontraído. Na França a alteridade tem uma outra qualidade mais dramática e mais terceiromundista. Não basta a euforia da dança, é preciso marcar também a sua origem social. Orfeu da Conceição transpôs para L'Orphé Nègre esta carga. O primeiro sucesso internacional dos parceiros Tom e Vinicius e o primeiro reconhecimento internacional da qualidade musical das canções brasileiras modernas aconteceu sob esta égide. Realidade exótica ou condições sociais o fato é que desde Carmen Miranda a cultura nacional não tinha tão forte divulgação no estrangeiro, e, motivo de festa, justamente no Hemisfério Norte culto e letrado. A Pequena Notável encontrou na estratégia do cinema um dos mais 237 potentes esquemas de divulgação internacional. A dupla premiação do L´Orfeu nègre com a Palma de Ouro e o Oscar foi um meio de divulgação ainda mais efetivo. Quando a Bossa Nova se lançou no Carnegie Hall as canções do filme já eram conhecidas do público e consumidas como Bossa Nova. “Manhã de carnaval“, de Luis Bonfá e Antonio Maria, na voz de Agostinho dos Santos, era a mais popular. Ao contrário do samba de carnaval, o samba bossa-nova, suave e discreto, tem sido, pela sua qualidade de música instrumental, divulgado e consumido também em outros países, mesmo onde não se compreende a letra cantada em português. A Bossa Nova tem alcançado atualmente no Japão o mesmo prestígio que o choro em outras décadas. Ela nasceu pronta a deixar para trás a marca de uma música da alteridade, e logo se tornaria um produto internacional sem o rótulo do exotismo tropical. Notou-se isto no concerto do Carnegie Hall, no dia 21 de novembro de 1962. Este momento marcou o início de um intercâmbio entre práticas musicais semelhantes, a norte-americana e a brasileira. Os músicos brasileiros tem se fixado nos EEUU em grande número e desde então os norte-americanos tem procurado estabelecer contato com a música produzida aqui. Podemos dizer que a área de interlocução entre a música popular brasileira e a norte-americana se estende por sobre uma quantidade bem maior de elementos intercambiáveis do que a que se poderia encontrar apenas nas canções da Bossa Nova ou nas de caráter mais típico, como as que Carmen Miranda divulgou. A reivindicação que se ouve, às vezes, da invenção da Bossa Nova pelos americanos é menos motivada pela tendência inescrupulosa de roubar patentes do que pela dificuldade de se distinguir a sua "identidade brasileira". Os ritmos sincopados do samba suave (neste caso soft mesmo) podem ter semelhança com os encontrados em canções de compositores americanos, entre os quais pode ser mencionado Burt Bacharach.257 Os arranjos para as gravações das canções de Bacharach ajudam a mostrar a Bossa Nova como cultura musical americana. A faixa “The look of love“, do LP Greatest Hits evidencia a presença de uma base rítmica executada ao violão, típica do samba suave, do samba bossa-nova. Muitas outras evidências, que apresentam o ritmo do samba internacionalizado, poderiam ser citadas. Este processo tem sido coroado pela vitória de artistas brasileiros premiados com o troféu 238 Grammy na categoria world music. Caetano Veloso e Milton Nascimento já foram contemplados, e em 2001 foi a vez de João Gilberto com o seu João Voz e Violão, “pura” bossa-nova produzida por Caetano Veloso, hoje um expoente da categoria. Para os americanos a Bossa Nova pode ser percebida também como um jazz estilizado, forma em que foi introduzida no concerto do Carnegie Hall.258 Há indicações de que o show de 21 de novembro de 1962 foi um longo e desastroso espetáculo com a apresentação de mais de 20 músicos brasileiros e outros tantos norte-americanos: Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lyra, Luis Bonfá, Chico Feitosa, Roberto Menescal, Milton Banana, o sexteto de Sérgio Mendes, Oscar Castro Neves e quarteto (Iko e Mário entre eles). Carmen Costa e o violonista Bola Sete eram os brasileiros presentes que já viviam em Nova York, os demais se deslocaram do Brasil com a ajuda do Itamaraty. Os artista brasileiros foram auxiliados no palco por colegas norte-americanos que tornaram a noite ainda mais longa. Foram contratados Lalo Schifrin com trio e Stan Getz com uma orquestra de 16 músicos. Pela repercussão negativa do show tudo faz crer que não houve uma produção organizada e os músicos tocaram como estavam habituados a fazer em casa. Mesmo tendo a crítica reagido de forma tão negativa, nada nos assegura que os resultados do show foram tão inócuos. Um mau empreendimento não é suficiente para sepultar toda uma prática e um estilo de tocar e cantar, que provou ser capaz de, mais tarde, encontrar um público americano bastante fiel, do qual fazem parte muitos músicos de prestígio. Talvez para os americanos o estilo de cantar de João Gilberto e Carlos Lyra fosse excessivamente intimista ou não correspondessem às expectativas da voz de Agostinho dos Santos, por exemplo. Cantando tão timidamente e em português não se podia esperar nenhuma resposta calorosa. O termômetro para a iniciativa do show foi o fato de que algumas orquestras americanas já tinham gravado canções brasileiras com bastante sucesso, inclusive as canções de Orfeu do carnaval. João Gilberto havia sido cogitado para dublar, nas canções, a voz do protagonista do filme. Segundo relato de Ruy Castro sua voz teria sido 257 BACHARACH, Burt. Burt Bacharach's Greatest Hits. AM Records 170011 258 SUEIRO, Orlando. Bossa nova desafinou no EUA. O cruzeiro . Rio 8 dez. 1962. 239 recusada por não ter “um toque dos mais negros.” 259 A opção pela voz de Agostinho dos Santos, um negro, acabou prevalecendo. De fato a naturalidade de João Gilberto exclui qualquer dramaticidade e seria mais adequada aos film noir, como os que foram produzidos na década de 1950.260 Podese dizer que a oposição entre os film noir de 50 e os musicais de Hollywood tem uma correspondência direta com a oposição entre o naturalismo de João Gilberto ao cantar os sambas intimistas criados por Tom e Vinicius como “Corcovado“, e a grande voz de Agostinho dos Santos, que interpretava um repertório de grandes sambas como a “Felicidade“ dos mesmos autores. Aos franceses talvez as grandes vozes não incomodem tanto quanto incomodaram aos brasileiros de uma certa época e de uma certa classe. Na França cantores com preparação técnica não são excluídos apenas por terem a voz impostada. A edição da revista Veja de 19 de janeiro de 2000 publicou uma crítica ao “novo disco de João Gilberto: voz e violão para dar algum sentido à imitação” escrita pelo historiador de música popular José Ramos Tinhorão (a designação profissional está indicado no final da matéria). José Ramos Tinhorão escreveu a crítica ao lançamento de João Voz e Violão, onde defende o sambista João Gilberto e ataca a americanização da Bossa Nova, como sempre faz. O processo de americanização no Brasil dos anos 50 é descrito pelo jornalista como uma “macaqueação risível” e “a bossa nova nada mais representa do que uma montagem, no país, de uma versão “nacional” da música popular americana”. A crítica conclui definindo historicamente que “a partir de então a bossa nova continuou a ser música americana, e João Gilberto continuou a ser o que sempre foi: João Voz e Violão”. Não há uma Bossa Nova constituidora de um campo de conhecimento artístico. A Bossa Nova não constituiu nada porque ela própria foi constituída. Não há uma Bossa Nova com vida própria fora do repertório de canções. Na verdade o que aquela afirmação quer dizer é que as canções que se conhecem sob o rótulo da Bossa Nova são de má qualidade não porque são americanas mas porque são falsificações, não são canções de 259 CASTRO, Ruy. Op.cit., p. 220. 260 Uma vasta cinematografia pode ser classificada como film noir, produzida na maior parte na década de 1950. A naturalidade dos atores é uma de suas características. O que se identifica como elemento contrastante com o estilo hollywoodiano de atuação tem sido localizado geograficamente, opondo-se a ele o estilo novaiorquino. 240 origem autenticamente brasileira. É uma consideração de ordem estética e “racial”, não só patriótica, pois o jazz também é atacado sob a acusação de que começava a “distanciar-se de suas fontes negras através da tendência bop, que antecipava as delicadezas do cool”. Na visão de Tinhorão o samba da Bossa Nova é condenável porque estaria então se afastando de suas fontes negras. Ele mede o valor artístico pela aproximação ou pelo afastamento destas fontes, numa ordenação do repertório de canções segundo suas origens, o que é exequível mas excludente. A hipótese do samba afinado com as suas fontes negras fomenta uma cadeia interminável de interrogações, com resposta quase sempre negativa. Que condições levam uma canção a ser considerada uma imitação estrangeira? Seria o estilo da letra (em português)? Seria o tipo de melodia ou de harmonia? Seria a rítmica? Se fosse possível caracterizar uma canção como uma falsificação de um produto estrangeiro, essa caracterização diria respeito apenas à “obra”, à canção “original” ou a gravação? e a performance seria também levada em conta? Mesmo considerada “pura” poderia a canção conter traços contraditórios, momentos em que os elementos “autênticos” estivessem combinados com as imitações falsificadoras? A história dos nossos gêneros musicais, tanto na música escrita quanto na música de tradição mais auditiva, sempre os situa numa trajetória de miscegenação com gêneros de extração estrangeira. A busca das suas origens sempre os encontra mesclados. A polca se mistura com o choro e o maxixe, a valsa vienense com a valsa brasileira e a seresta, etc. Esta parece ser a perspectiva ou o melhor ponto de partida para se obterem respostas mais convincentes. As aproximações entre músicos brasileiros e americanos tem uma história longa e rica. O baixista americano Ron Carter declarou no programa O Gordo de 4/4/2000261 que o seu contato com os músicos no Brasil é muito agradável. Na sua visão o que se dá é um intercâmbio de habilidades, os americanos podem contribuir muito com a sua experiência no campo da harmonia e os brasileiros no campo do ritmo. Na verdade parece que o amadurecimento da música popular americana não se localiza apenas no desenvolvimento da qualidade de harmonização do jazz, que estaria 241 segundo Ron Carter mais avançada que a música brasileira (ele provavelmente se refere a uma tipo de produção, a das canções com harmonias e melodias mais elaboradas). Temos vários indícios de que a qualidade da nossa harmonização também está muito desenvolvida, o que a coloca em competição com a música americana. A habilidade harmônica dos músicos no Brasil vai talvez numa direção diferente daquela que se pratica nos Estados Unidos. As harmonizações das canções populares brasileiras e da música não escrita em geral podem ser muito elaboradas e sofisticadas. Encontramos situações harmônicas surpreendentes nas canções dos mineiros Milton Nascimento e Toninho Horta que despertam a atenção e o interesse dos músicos americanos. Por outro lado temos muito que aprender com o grooving e com a riqueza rítmica verificada nas gravações americanas. Talvez o maior aprendizado para nós com a experiência estrangeira seja no plano da gravação e da performance, que abrangem a execução, a instrumentação e o equilíbrio sonoro. Parece que as nossas carências estão muito mais neste campo do que em qualquer outro. É valiosa a experiência dos americanos não só na escolha dos instrumentos mas na execução dos arranjos em que os diferentes timbres transparecem em todos os planos sonoros, auxiliados por uma verdadeira noção de conjunto e de preciso equilíbrio entre os volumes dos graves e agudos. Nós nos ressentimos muitas vezes de uma maneira rude de se tocar em conjunto, que põe em risco a qualidade musical e torna precários o entendimento e o entrosamento entre os diversos instrumentos e seus planos sonoros. O público certamente percebe estas condições e toma decisões de consumo refletidas por elas. No entanto o processo de americanização vai além da qualidade da produção cultural. Se de fato existir um processo de americanização dos comportamentos ele não será, hoje, exclusivamente brasileiro, mas planetário. O sotaque da canção popular se reproduz com mais sucesso em inglês, e se a língua inglesa substituiu a francesa na comunicação planetária não aconteceu num processo de anglicização mas de americanização. A língua inglesa domina atualmente o mercado mundial de música popular. Isto quer significar que as canções em inglês detêm, no momento, os lugares de destaque em 261 Programa diário de entrevistas veiculado pela Rede Globo de Televisão em horário noturno. 242 vendas, em todos os mercados de discos. A “macaqueação”, mencionada por Tinhorão, não deveria ser considerada exclusiva dos anos 50, ela seria uma tendência crescente não só brasileira mas planetária. João Voz e Violão levou o troféu de world music em 2001. É relevante notar que se abrem espaços para produções que não são cantadas em inglês e nem detém os melhores números de vendas. O que não significa absolutamente a consagração mundial das identidades regionais, nem do nacional elevado à condição de valor universal. World music é uma qualificação que subentende que não se trata de música étnica. João Gilberto pode ter sido premiado por cantar samba suave ou soft, ter balanço ou swing, cantar bossa-nova americana ou brasileira. Não importa a categoria. O que a world music revela é muito mais a fragilidade das identidades regionais ou nacionais constituídas diante de movimentos sociais de grande alcance histórico e geográfico, aos quais não resistem e diante dos quais não conseguem se manter “imaculadas”. A hipótese da cópia pura e simples de comportamentos e de produção artística é válida. Assim como também é válida a hipótese de imposição de políticas de dominação neocolonialistas habilmente planejadas por sólidos governos do Hemisfério Norte. A imposição estratégica entretanto não é a única via através da qual a cultura circula e se faz absorver. Pode-se pensar em “adoção de padrões vigentes nos países desenvolvidos”, mas é difícil crer que exista uma correspondência exata entre o que se percebe no senso comum e os movimentos sociais. Tinhorão afirma que “o som moderno que mais se identificava com os jovens americanos de nível universitário era o jazz” e “que foi esse tipo de música que a juventude carioca Zona Sul unanimemente adotou”. É de duvidar que “a juventude carioca Zona Sul” ouvisse gravações de jazz, que é música instrumental de circulação muito restrita, mesmo nas lojas e nas rádios. Os músicos brasileiros certamente ouviram e ouvem muitos músicos americanos. Marcar como estas linguagens são reutilizadas nas performances musicais é que é um problema que ainda ultrapassa as atuais possibilidades de pesquisa. 243
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