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Narrativas cinemáticas em
fotolivros: Miguel Rio Branco
e Rosangela Rennó
The cinematic narratives of photobooks:
Miguel Rio Branco and Rosangela Rennó
DENISE TRINDADE1
RESUMO
Este artigo procura tecer relações entre a escritura, a imagem e o espaço fílmico presentes
em fotolivros de artistas visuais, considerando sua aproximação entre as artes plásticas e
o cinema. Se para W. Benjamin, a fotografia através de suas ampliações e enquadramentos torna visível o “inconsciente ótico”, evidenciando além dos aspectos fisionômicos,
os mundos imagéticos que se escondem nos pequenos detalhes, aproximando técnica e
magia, para Didi-HUBERMAN, através da montagem das imagens percebe-se as descontinuidades temporais. Os detalhes e as montagens presentes no fotolivro “Silent Book” do
artista Miguel Rio Branco constróem sequências narrativas das páginas organizadas em
duplas. Em “Apagamentos”, Rosangela Rennó realiza um fotolivro composto de fotografias policiais que registram cenários de crimes em investigação.
PALAVRAS-CHAVE: fotografia, narrativa, cinema, intervalos, temporalidade.
ABSTRACT
This article seeks to weave relations between the writing, the image and the filmic space
present in photobooks visual artists, considering their approach between the visual arts
and cinema. To W. Benjamin, photography by their extensions and frameworks makes
visible the “optical unconscious”, showing beyond the physiognomic aspects, the pictorial worlds that lurk in the small details, bringing technique and magic. To Didi-HUBERMAN by montage of images you can see the temporal discontinuities. The details and
assemblies present in the photobook “Silent Book”, artist Miguel Rio Branco build narrative sequences of pages arranged in pairs. In “Apagamentos”, Rosangela Rennó makes a
photobook made up of police photographs that record crimes scenes.
KEYWORDS: photography, narrative, cinema, intermission, temporality.
Trama: Indústria Criativa em Revista. Dossiê: A Cidade e as Questões do Urbano.
Ano 1, vol. 1, julho a novembro de 2015: 135-144. ISBN: 1519-9347
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INTRODUÇÃO
Entre a lógica das palavras e sensações das imagens encontramos diversas interpretações da história da arte, organizações sensíveis no campo da estética e inúmeras
propostas da teoria e da crítica de arte que tentam reunir e compreender sob diferentes
critérios, obras, artistas e produções. Ao mesmo tempo, tal fissura entre visível e dizível
é estimulante para a produção de conceitos que reinventam o ato de narrar. Neste artigo,
ao problematizar tais questões, propomos abordar fotolivros de artistas como um meio de
produção de “narrativas visuais”, nos quais percebe-se a presença de imagens temporais
aproximando artes plásticas e cinema.
Os fotolivros organizados como séries e ensaios adquirem aqui importância no que
suas narrativas produzem um “corpus poético”, evocando sensações através de intervalos entre as imagens. Verificamos que trata-se de um tipo de leitura que, por si própria,
desperta um uma atenção diferente ao escapar de um entendimento lógico assim como
de uma descrição. Diferentemente da contemplação tanto a disposição das fotos quanto o
conteúdo das imagens propõem outros tipos de associações através de seus movimentos.
Para Fernandès (2011), os fotolivros podem alterar o cânone da história da fotografia.
Segundo ele, é imprescindivel que sejam livros nos quais um autor tenha organizado um
conjunto de fotografias como uma continuidade de imagens, com o objetivo de produzir
um trabalho visualmente legível. Vemos que o próprio livro pode se tornar um dispositivo, como no caso do artista e fotógrafo Miguel Rio Branco. Em um vídeo apresentado em
uma exposição sobre Fotolivros Latino-Americanos no Instituto Moreira Salles, no Rio
de Janeiro, Rio Branco folheia as páginas de seu fotolivro “Nakta”, criando uma indeterminação entre livro e filme, aproximando imagem, pensamento e tempo. Já a narrativa
fílmica de Rosangela Rennó em “Apagamentos” tem como rítmica o intervalo entre as
imagens através do uso de bordas brancas, tornando as fotografias semelhantes aos fotogramas e enfatizando o corte e a edição entre elas.
Percebe-se que em ambos o ato de ver coloca em questão o ato de narrar, seja através
dos critérios de organização das imagens em seus conteúdos diversos, seja pelo atravessamento da linguagem cinematográfica. A partir destas questões e também dos estudos
atuais sobre as imagens, principalmente aqueles realizados por Didi- Huberman e Philippe Alain Michaud em relação ao projeto Mnemosyne de Aby Warburg, propomos uma
abordagem dos fotolivros “Silent Book” de Miguel Rio Branco e “Apagamentos de Rosangela Rennó, considerando suas narrativas cinemáticas.
IMAGENS MOVENTES
Ao problematizar o ato de ver as imagens da história da arte, G. Didi-HUBERMAN
(1990) nos coloca diante de uma escolha – ver sem saber, ou saber sem ver. O autor constata que em ambas escolhas há uma perda. Por um lado, se compreendemos o ver como
um ato cultural, ganhamos a síntese e a evidência da razão deixando de lado o real do objeto. A opção de ver sem saber nos faz perder a unidade do mundo fechado para se encontrar na abertura inconfortável de um universo flutuante, entregue aos ventos do sentido.
O sujeito do saber sofre um deslocamento e a razão aparece como uma ruptura, um rasgo.
O autor aborda a imagem como uma fenda no campo do saber, onde as noções de aparência, reprodução e iconografia não seriam suficientes para classificá-las ou entendê-las. Huberman (1990) nos propõe um afastamento das palavras mágicas da história da
arte, das leituras formalistas e questiona os postulados de Panofsky, para quem a cultura
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simbólica faz-se determinante para o reconhecimento dos significados artísticos. O ato
de ver também lhe parece distante da unidade sintética e do esquematismo tradicional
herdados de Kant, onde a lógica é determinante no conhecimento oferecendo a história
da arte sob uma angulação na qual ela aparece acordada na razão simples.
Assim, a questão de como “tornar visível” aparece como um problema para o autor. Ele
nos convida a uma aproximação atenta em relação ao valor virtual das imagens que el nomeia como “visual”, tendo como referência, primeiramente, a formulação de Merlau-Ponty,
para quem a imagem possui uma visibilidade imanente que funda o imaginário. Por isso,
um pensamento por imagens reivindicaria a abertura de uma lógica. Diante da imagem é
necessário pensar a força do negativo que existe nela, como uma matéria informe que aflora
da forma, como a opacidade que aflora da transparência, como o visual que aflora do visível
(HUBERMAN, 1990, p.174). Porém, ressalta ele, o conceito de visual vai além do negativo.
Para se diferenciar do invisível, que em Ponty seria o negativo do visível, as imagens impõem um olhar sobre o paradoxo, o qual vê com a “sabedoria da ignorância” e, através de
sua abertura efetiva um tipo de entendimento capaz de incluir o não saber.
As imagens oníricas, por exemplo, aparecem como uma manifestação dessa “lógica”.
Os sonhos, ao romperem com o sentido de representação, provocam desordens nos discursos que se esperam ler. Eles existem em sua poética, apresentando o tempo e seu reverso, através de fissuras da razão. A memória adquire também grande importância nesta
busca de entendimento do ato de tornar visível, no que ela atravessa o tempo.
WARBURG E MNEMOSYNE
As imagens da História da Arte vistas por Warburg, principalmente em seu projeto de
montagem Mnemosyne (2013) aparecem em uma disposição fotográfica que forma quadros com fotografias no sentido combinatório. O autor colocaria assim em questão a idéia
de uma memória viva, ultrapassando os códigos da história e da iconografia e mesmo da
“lógica dos sonhos” ao criar um conjunto de imagens relacionando-as entre si.
Warburg torna presente fendas temporais entre as imagens na disposição das
fotos e em suas relações diversas. Como constelações, elas adquirem caráter permutáveis em um incessante deslocamento combinatório, questionando um tipo de
narrativa única, construindo um pensamento movente, irredutível à ordem discurso.
Em seus tempos diversos, elas possuem relações com as imagens cinematográficas
através do movimento e da lógica temporal, descortinando diferentes frequências,
ritmos, derivas e colisões ao se defrontarem com a imagem em movimento como quer
Philip Alain Michaud (2013,156).
Feita de lembranças desconexas e atravessada pelo fundo negro do pensamento, a
memória incerta atravessa os “buracos” do tempo. Seus espaços vazios provocam organizações de imagens heterogêneas e anacrônicas adquirindo em Mnemosyne força semelhante ao que Nietzsche atribuiu a ordem do intempestivo.
Mnemosyne é um objeto intempestivo por se atrever, na era do Positivismo e da
história triunfal, a funcionar como um quebra- cabeça ou um jogo de cartas de
tarô desproporcionais (configuração sem limites, número infinitamente variável
de cartas por jogar). Nele, as diferenças nunca são reabsorvidas numa entidade
superior: como no mundo fluido da “participação”, elas são animadas por suas
ligações, descobertas- através de uma experimentação sempre renovada- pelo
cartomante desse jogo com o tempo. (G. DIDI-HUBERMAN, 2013, p.406).
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Anacrônico, imemorial, o tempo ressurge com força desencadeando através do movimento, outros olhares sobre as imagens da História da Arte. Em seu estudo sobre “A
primavera” de Botticelli, Warburg destacou a presença das Três Graças no quadro àa procura de compreender o movimento da “graça” nas telas do artista. Seja nas interpretações
de Sêneca onde as irmãs aparecem de mãos dadas afirmando o gênero de favores; uma
presta um benefício, outra o recebe e a terceira o retribui e seus pés tocam a terra ora com
um pé ora com outro, seja nas vestes das personagens que traduzem além do movimento
dos corpos, a presença do vento (WARBURG:49), a tela pintada é uma imagem fixa, que
adquire movimento e tempo. As imagens desconexas entre si, remontadas sobre um fundo negro, ganham novas significações em suas relações.
Aby M. Warburg, «Mnemosyne-Atlas», 1924 – 1929
Mnemosyne-Atlas, Boards of the Rembrandt-Exhibition, 1926
Didi-Huberman (2013) destaca este fundo negro de tecido presente nas pranchas,
como suporte ou base das montagens no que este remete por si próprio ao “lugar nenhum
das imagens” em seu caráter material, apontando para um “mundo ambiental” de imagens montadas nas telas do atlas “como um oceano em que destroços vindos de tempos
múltiplos se juntassem no fundo das águas tenebrosas”. (HUBERMAN, 2013, p.416).
Os destroços em Warburg aparecem para Huberman como “detalhes”, elementos da
montagem que se constituem de pequenas coisas não percebidas, como em um claro-escuro de um afresco, versos de uma medalha, base de estátuas, etc. Vistos por seu caráter
de sintoma, esses elementos se apresentam como lacunas temporais, brechas que aparecem por vezes como singularidades históricas que devem ser vistas em seu processo, na
própria fabricação da imagem. Huberman, tendo como referência Freud, verifica que os
sintomas se caracterizam como falhas, o que seria um detalhe por deslocamento, não por
ampliação, provocando incerteza e desorientação (HUBERMAN, 2013,p. 413).
Em uma leitura feita por ALLAIN-MICHAUD (2013, p.296), a montagem da prancha 2
de Mnemosyne cria relações entre representações da esfera celeste com um globo sustentado pelo Atlas Farnese enquadrado em um close. Assim como em um plano de conjunto
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do Atlas Farnese e em um close muito próximo se vê um episódio da lenda de Perseu.
Percebe-se a presença da linguagem cinematográfica na leitura de Michaud para compreender o movimento entre as imagens.
Vistos simultaneamente , os dois desenhos da abóbada celeste representam a
totalidade do céu; o close do globo, à direita, materializa essa dupla gravura
planimétrica de tal sorte que passamos imperceptivelmente, graças a uma
panorâmica direita-esquerda, de um desenho do céu para sua projeção em três
dimensões, de uma imagem a traço para uma fotografia. Em seguida, passamos do
plano close para o plano de conjunto, e do plano de conjunto para uma série de
planos muito aproximados, cada um dos quais isola um episódio das aventuras de
Perseu, de acordo com uma sintaxe especificamente cinematográfica, para voltar,
por uma inflexão circular, ao Ceu de Ptolomeu, de modo que a sequência de imagens
deixa de simplesmente mostrar a esfera celeste em movimento para reproduzi-la
numa construção em circuito. (ALLAIN-MICHAUD, 2013, p.298).
Prancha 2.Warburg. (Mnemosyne/1926).
Ressaltamos como as montagens de Warburg, desorientadoras e incertas, utilizam o fotográfico em sua potência de produzir narrativas, deslocando as certezas
da história das imagens e produzindo fabulações. O projeto Mnemosyne ao expor a
própria produção das pranchas como focos de luz de refletores cinematográficos, sob
um tecido negro, torna visível as diversas interpretações presentes nas imagens, afirmando seu caráter de montagem: uma interpretação que não procura reduzir a com-
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plexidade, mas mostrá-la, expô-la, desdobrá-la de acordo com uma complexidade em
outro nível de interpretação (HUBERMAN, 2013, 415). O autor verifica aproximações
destas pranchas com teorias da montagem propostas por cineastas como Eisenstein e
Vertov, e ressalta a importância do tecido negro ao fundo das montagens, no que este
permite presentificar as variações cromáticas das imagens assim como os intervalos,
evidenciando como a passagem entre elas constitui uma iconologia dos intervalos.
Diferentemente da iconologia de Panofsky que se fundamenta nos aspectos culturais
e simbólicos das imagens, Warburg através de Mnemosyne expõe as fronteiras e a
clandestinagem que existem em suas disposições.
As fronteiras, como sabemos, amiúde são separações arbitrárias no ritmo geológico
de uma mesma região. Que faz o clandestino quando quer cruzar uma fronteira?
Usa um intervalo já existente - uma linha de fratura, uma fenda, um corredor de
erosão - e que, se Possível, passe despercebido aos guardas como um “detalhe”.
Assim funciona a “iconologia do intervalo”, seguindo os ritmos geológicos da
cultura para transgredir os limites artificialmente instituídos entre disciplinas.
(HUBERMAN:2013:416).
Seja o inconsciente, a memória ou o pensamento, verifica-se uma busca da natureza
da imagem no fundo negro das montagens de Mnemosyne. Em suas fendas ou detalhes,
os intervalos e sua poética estabelecem continuidades onde fabulam-se narrativas visuais diversas, nas quais as imagens, através dos movimentos e das tensões adquirem vida
através de suas passagens.
TEMPORALIDADE E CLANDESTINAGEM NOS FOTOLIVROS
Tais pressupostos permitem que abordemos as narrativas visuais presentes em alguns
fotolivros de artistas na contemporaneidade. Em recente exposição, no Instituto Moreira
Salles no Rio de Janeiro, sobre “Fotolivros latino –americanos”, os livros de fotografias
ali dispostos de modo diverso, apresentaram diferentes propostas de leituras para o espectador tendo como referência o “corpus” inventado de August Sander, o qual realizou
um catálogo da sociedade contemporânea alemã através de uma série de retratos em seu
primeiro livro “Face of our Time”, o qual foi publicado em 1929 contendo uma seleção de
60 retratos da série Retratos do século XX.
Walter Benjamin havia verificado neste trabalho um aspecto importante da migração
das imagens como a passagem de estados existenciais para a placa fotográfica, onde o
rosto humano aparece diante das câmeras atribuido de significados diversos de um “portrait”. Nas fotografias de August Sander, as pessoas fotografadas aparecem distanciadas
de suas identidades, expressando em suas poses e vestes o século XX. O autor verifica que
estas fotos constituem um “corpus” teórico por seu caráter poético e quase científico de
organização, afirmando o caráter conceitual e artístico das imagens. Enfatizamos como
ponto de partida esse “corpus poético” para nossa abordagem. Em primeiro lugar verificamos que se trata de uma leitura que desperta um tipo de atenção diferente da contemplação, seja pela disposição das fotos quanto pelo conteúdo das imagens que sugerem
narrativas ou ensaios.
Nesta mesma exposição havia um vídeo no qual o artista e fotógrafo brasileiro Miguel
Rio Branco folheia as páginas de livros de fotos, em que se percebe uma indeterminação
entre livro e filme. No vídeo, através das imagens do livro Nakta (Noite), de 1996, o artista
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narra por meio de fotos de animais sem dono e perdidos ou pessoas com deformações nos
corpos e na pele, os sintomas do abandono e da identidade fraturada da América Latina.
Também, ao comentar sobre “Silent Book” (1997), um dos mais importantes fotolivros do
século XX, ele afirma que torna visível em imagens nossa dor silenciosa e brutal através
de personagens limítofres, a margem da sociedade como prostitutas, boxeadores, animais, doentes, em sua solidão e angústia.
Não por acaso, Silent Book torna-se fundamental nesta pesquisa para nos aproximarmos do “lugar nenhum das imagens” que as pranchas de Warburg nos remetem. O formato do livro é quadrado feito de fotografias, sem textos. A contra capa e a primeira página
são negras, como o princípio da caixa preta da fotografia, também presente no fundo
negro presente das montagens de Mnemosyne. Em letras brancas no centro da página a
seguir o nome do livro “Silent Book”. Na página seguinte, o nome do artista “Miguel Rio
Branco”. Em sequência, páginas duplas: a página esquerda vai aos poucos tornando-se
azulada adquirindo uma textura de parede rugosa que é complementada pela página direita, onde vemos uma porta em um negro também azulado sobre uma parede azul, grossa, rachada pelo tempo. Através desta “rachadura” aceitamos o convite para entrarmos
no universo silencioso das páginas a seguir.
Percebemos que elas organizam-se em duplas. Uma casa simples, feita de tábuas aparece na página a esquerda, na qual se vê em primeiro plano lençóis e fronhas estendidos
sobre um varal. Os tecidos possuem manchas vermelhas. Na página à direita, em um
plano inclinado, quase um plongée, a rugosidade do solo salta a nossos olhos, em que
sobressai uma faca. Em volta desta, a presença de uma mancha de sangue. Qual a relação entre estas imagens? Como em uma montagem “eisenstaniana”, o sentido aparece
na imagem mental que construímos através das fotografias que evidenciam sintomas. A
ponta da faca é do mesmo azul da parede da imagem da página anterior. Do vermelho ao
azul, das manchas à faca, perguntamos se seria próprio das imagens “rasgarem” o olhar?
Para além das imagens fotografadas, os intervalos em suas diversas disposições formam
constelações, intrigando a própria idéia de narrativa.
A página seguinte em negro à esquerda realiza um corte abrupto, evocando o nada
ou o silêncio, acentuando o caráter trágico do próprio pensamento. Já na página que se
segue à direita, em um plongée, um chapéu cobre a cabeça de um homem sentado sobre
a ponta de uma pedra parte esverdeada, parte encarnada, sobre um solo. Não vemos seu
rosto, que se encontra apoiado sob os braços. A camisa social em um tom avermelhado
mistura-se ao fundo da imagem de mesmo tom. Ao virar a página, vemos planos inclinados em superexposição. Boxeadores exercitam-se em uma sala, da qual vemos um canto,
em que um homem em movimento de short vermelho aparece diante de espelhos. Nos
espelhos, as imagens refletidas não são dele, mas marcas de um outro corpo, que apoiado
na parede ao lado da sala revela através do movimento a passagem do tempo. O ponto
vermelho de seu short é rebatido nas luvas também visto em movimento de um outro
boxeador. A desorientação da leitura se apresenta nos movimentos e na passagem do
tempo, criando vínculos através da intensidade do vermelho.
Em outras duas páginas, também de fundo encarnado, a foto de uma reprodução
de parte de uma pintura mostra corpos contorcidos de pessoas e sátiros, como em uma
“visão do inferno”. Alguns seres estão nus, enquanto sobre outros, pedaços de tecidos
envolvem partes dos corpos. Na página seguinte, sobre uma imagem de trama de fios vemos sobrepostos alguns panos torcidos. Eles estão gastos e desfiados e se assemelham a
“gaze”, utilizada no processo de cura de feridas. Dispostos em um movimento semelhante ao da imagem anterior, eles parecem indicar através de suas tramas, a luta sangrenta
dos corpos que por ali passaram.
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Silent Book- Miguel Rio Branco- 1997
Como nas montagens de Warburg, os detalhes presentes nas imagens de Rio Branco
evidenciam destroços e desastres em seus intervalos. Seios nus, mãos e pernas, garrafas
vazias, mármore e carne, teclado de piano, touros, além de outros fragmentos compõem
sintaxes anacrônicas. Corpos esfacelados, violência e vazio se misturam em lugares e
temporalidades. Os espaços entre as imagens evocam a memória. Ritmos e pausas tornam-se desafio ao pensamento que as “editam”. Em “Silent Book” lemos as sensações de
um tempo que manifesta através dos intervalos seu silêncio encarnado, evidenciando a
clandestinagem cinemática das imagens.
Silent Book- Miguel Rio Branco- 1997
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INTERMITÊNCIA DAS IMAGENS
A artista brasileira Rosangela Rennó realizou em 2003 um fotolivro chamado “Apagamentos” composto de fotografias policiais que registram cenários de crimes em investigação. Ela as enumera em séries - 1, 2, 3, 4 - evocando uma suposta organização, porém,
na verdade, as imagens se misturam em diferentes combinações, permitindo várias associações. Suas leituras são sempre interrompidas por espaços em branco. Ao folhearmos
as páginas que se desdobram, verificamos que, como planos cinematográficos, as fotos
são dispostas sob múltiplos enquadramentos, em closes, nas diagonais, ou mesmo, como
planos detalhe, evidenciando a fragmentação de objetos. Algumas sequencias são editadas de maneira que tenhamos uma visão um pouco mais completa dos objetos, como por
exemplo nos diversos ângulos de uma cama em um aposento. Em todas as séries percebemos a presença de um mistério instigando a imaginação do observador.
Em Apagamento 1, portas, janelas, escadas, bombas de água são elementos visuais que
o olhar percorre para construir uma narrativa. Além da fragmentação dos elementos, a artista
insere filtros que acentuam a opacidade das imagens, tornando-as ainda mais apagadas, dificultando a “leitura”. Atrás de cercas, vê-se o corpo de um homem deitado. Chegamos ao fim do
mistério? Talvez o do esquecimento, no qual as imagens evidenciam a presença da ausência.
Ao olhar, finalmente, o apagamento a olho nu, o que perguntamos não é como
aconteceu, mas como será agora sem as pessoas desses mundos. Não há respostas: nem
a cena- do- crime, nem as-cenas-do-cenário-do-crime podem ser reconstituídas porque
naquele exato momento, que no entanto não se pode precisar, a história acabou. O que
reaparece: as casas sem seus donos, os mundos sem suas pessoas- o apagamento- não;
e , de novo, dolorosamente, nós o provamos. (PENNA, Alícia Duarte, 2005).
Rosangela Rennó. Apagamentos.2005.
Para KARL ERIK (2013), tais imagens consistem em um ‘documento da amnésia’, já que
por pouco não foram realmente apagadas. Realizadas por fotógrafos para montagem do
processo de acusação, ficam restritas ao uso legal nas persecuções públicas. Findo o processo jurídico, elas não servem para mais nada e são destinadas ao esquecimento. Através
da arte, essas imagens produzem outras experiências. Ao relacionar arte e crime KARL ERIK
(2013), cita como referência George Bataille no que este aponta afinidades entre os dois por
ultrapassarem os limites do conhecimento humano, encontrando-se no apagamento.
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Lá onde o criminoso tenta apagar seus vestígios, o técnico forense coloca-os em
evidência reconstruindo sua relação intrínseca. Rosangela Rennó se coloca, de certo
modo no lugar do legista. Ao incorporar a narratividade da reconstituição forense, a
artista expõe o arquivo fotográfico pela lógica da investigação interativa que se depara
com as marcas da violência presentes nos seus vestígios visuais (KARL ERICK,2013,24).
Verifica-se que nos fotolivros aqui apresentados, como no projeto Mnemosyne de
Warburg, a importância do fotográfico está em sua potência das imagens serem ampliadas e remontadas, sugerindo através dos intervalos narrativas cinemáticas. Os intervalos presentes entre as imagens nos fotolivros de artistas tornam visíveis o tempo através
de suas brechas, inventando um lugar poético na contemporaneidade ao encarnarem a
suspensão da vida das imagens e construindo sequencias aleatórias que evidenciam sua
complexidade assim como seu possível apagamento.
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RENNÓ, Rosangela. Apagamentos. Circuito Atelier. BH. 2003.
RIO BRANCO, Miguel. Silent Book. SP. Cosac Naif. 2013.
SITES CONSULTADOS:
http://www.medienkunstnetz.de/works/mnemosyne/
http://www.engramma.it/eOS2/atlante/index.php?id_tavola=1002
NOTAS
1. Dra em Comunicação e Cultura. ECO/UFRJ. Pesquisadora em Poéticas Visuais (Faperj). Organizadora do
livro “Imaginários de Cinema” (Faperj). Professora de Teoria da Imagem (UNESA).