PESQUISA COM IMAGEM NA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA: alguns
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PESQUISA COM IMAGEM NA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA: alguns
PESQUISA COM IMAGEM NA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA: alguns apontamentos Cláudia Regina Flores Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC [email protected] RESUMO Insere-se no debate sobre as potencialidades das imagens com a história, destacando o trabalho de pesquisa com imagem na história da matemática e na história da educação matemática. De imagem como representação, que busca produzir significados, informar, descrever e interpretar a história, passa-se a considerar imagens como acontecimentos, em que o conhecimento histórico é engendrado em meio às memórias, às sensações, ao pensamento, à imaginação. Palavras-Chave: Representação; Visualidade; Cultura Visual; Educação Matemática 1. Imagens como fontes As imagens têm sido consideradas importantes para a elaboração da história, quando historiadores passaram a considerar novos objetos e problemas de pesquisa, sob um horizonte de ação e instrumentos ligados ao que se denominou de História Cultural. Knauss (2006) argumenta por uma revisão e revalorização das imagens como fontes na História. Para este autor, as imagens foram desprezadas na historiografia, de certo modo, principalmente por terem sido tomadas como provas, onde as fontes escritas eram insuficientes, como é o caso do estudo da Antiguidade. Contudo, na historiografia contemporânea as imagens assumem valor destacado por suscitar estudos da cultura visual, ou seja, “... da diversidade do mundo das imagens, das representações visuais, dos processos de visualização e de modelos de visualidade” (KNAUSS, 2006, p.106). Meneses (2003) considera as imagens como fontes visuais, e propõe como investigação: o visual, que inclui os sistemas de comunicação visual; o visível, que diz respeito à esfera do poder; e a visão, que inclui técnicas de observação e modelos de observador. Assim, desloca-se das fontes visuais, propriamente dita, para fixar-se na visualidade como objeto detentor de historicidade. Desta forma, considera História Visual para destacar aspectos que dizem respeito às relações do sujeito, suas experiências visuais, com as tecnologias do visual. Ainda, de acordo com Meneses (2003), as fontes são identificadas, analisadas, interpretadas e entendidas para o entendimento da sociedade e de suas transformações, e não para a identificação e/ou o entendimento delas mesmas. Há aí uma compreensão de que a História não significa retornar ao passado para buscar a origem de memórias e tradições, mas para entender os mecanismos pelos quais uma sociedade colocou seus problemas, elaborou sentidos e comportamentos, produziu conhecimentos em meio às relações de poder e regimes de verdade (Albuquerque Junior, 2007). Diante disto, pergunta-se sobre as potencialidades das imagens com a história, particularmente, com a história da matemática. É sobre esta questão que pretendo me deter, ainda que eu não seja possível esgotá-la definitivamente. 2. Imagem e representação Para um começo, observemos as definições dadas a palavra imagem no Dicionário Michaelis1: 1 Reflexo de um objeto na água, num espelho etc. 2Representação de uma pessoa ou coisa, obtida por meio de desenho, gravura ou escultura. 3 Estampa que representa assunto religioso. 4 Estampa ou escultura que representa personagem santificada para ser exposta à veneração dos fiéis. 5 Representação de um objeto por meio de certos fenômenos de óptica ou pela reunião dos raios luminosos emanados desse objeto depois de uma reflexão. 6Representação mental de qualquer forma. 7 Imitação de uma forma; semelhança. 8 Aquilo que imita ou representa pessoa ou coisa. 9 Impressão de um objeto no espírito. 10 Reprodução na memória. 11 Símbolo. 12 Reprodução, no espírito, de uma sensação, na ausência da causa que a produziu. 1 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?palavra=imagem, consultado em 12/12/2014 2 Se não é prova, ao menos encontra-se evidência nas nomeações do dicionário de que imagem é representação. Ela é reflexo, imitação, cópia, reprodução. Do latim, etimologicamente, é simulacrun. O espectro, imagem incorpórea de alguém falecido, aparição ilusória. Imago, que carrega o sentido de representação de uma ideia, correlação entre um objeto e o seu significado. Figura, fantasma. Debray (1994) diz que a imagem surgiu dos funerais, do culto dos antepassados que mantinha sobrevivente o morto pela imagem. Somente os nobres tinham o direito de constituir um duplo. O molde em cera do rosto dos mortos que o magistrado transportava no funeral e colocava em casa nos nichos do átrio, a salvo, na prateleira. (...) A imagem é a sombra: ora, sombra é o nome comum do duplo. (...) A imago não é uma aparência enganadora, nem esses funerais uma ficção: o manequim do defunto é o cadáver. (DEBRAY, 1992, p. 23 e 25). As relações entre imagem e memória são muito antigas, defende Gagnebin (2012), e historiadores, tanto da imagem, quanto da memória, recorrem às lendas antigas registradas por Plínio o Velho (Séc. I d. C.), para falarem da relação entre imagem, memória e morte (ou desparecimento). Portanto, pelo menos desde Platão, imagem se dá na relação entre morte e pensamento, que é pensar a presença do passado no presente em termos de representação. O que significa lembrar, recordar, ativar lembranças na memória por meio de uma ordem, ou por meio de ação involuntária, pelos afetos. No paradigma da representação, o sujeito é consciente e soberano, a memória é obediente. Representar é estar no lugar de outra coisa que está ausente. Ver é um processo de observação e organização do mundo ao nosso redor. As imagens representam, produzem significados, informam, descrevem e interpretam o mundo. Nessa lógica, aprendemos as regras e convenções de representação dentro de uma dada cultura, e o pensamento fica conformado a elas. Segundo Rancière (2010), (...) fazem da imagem qualquer coisa diante da qual nos concentramos, passivos e já derrotados por sua astúcia: simulacro que tomamos por realidade; ídolo que tomamos pelo verdadeiro Deus; espetáculo onde nos alienamos; mercadoria para a qual vendemos a alma. (p.93) 3 Nesse modelo epistemológico, a imagem tem sido tomada como mero depositório especular de informação empírica, ou fica na dependência de uma análise e leitura de mensagens inerente a elas, utilizando-se metodologias cognitivas, tais como a Iconologia de Panofsky, a Semiologia ou a Semiótica. Logo, historiadores2 têm discutido esse uso da imagem na História, considerando que se faz muito pouco com elas quando são reduzidas à aparência, ou buscam nelas um real ou uma verdade. 3. Conhecimento por imagem Kern (2014) diz que o historiador da arte Georges Didi-Huberman, desde os anos de 1980, tem revolucionado “o uso que a história faz da imagem como testemunho do passado (...)” (p. 113). Didi-Huberman (2011), por sua vez, diz que “Diante de uma imagem, não se deve perguntar somente que história ela documenta e de que história ela é contemporânea, mas também: que memória ela (a imagem) sedimenta, de que recalque ela é o retorno.” 3 (tradução livre). Mas essa reinvindicação passa, no entanto, por uma crítica sobre a concepção tradicional da História, em que se procura estabelecer uma história universal, por meio de uma noção linear de tempo, pela certeza de que os fatos do passado estão à espera do pesquisador que, por sua vez, irá descobri-los com objetividade científica. A historiografia crítica de Benjamin busca uma nova apreensão conjunta do passado e do presente, uma intensificação do tempo que permite salvar do passado outra coisa que sua imagem habitual, aquela que a narração vigente da história – pessoal ou coletiva- sempre repete, aquilo que a memória domesticada sempre conta. Procura-se salvar do passado não uma imagem eterna, mas uma imagem mais verdadeira e frágil, uma imagem involuntária ou inconsciente, no sentido de um elemento soterrado sob o hábito, esquecido e negligenciado, ‘recalcado’ talvez, 2 Ver, por exemplo, as coletâneas: FLORES, M. B. R; PETERLE, P. (Orgs). História e Arte: imagem e memória, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012.KERN, M. L. B. Imagem, memória e tempo: o conhecimento em movimento. In FLORES, M. B. R; PETERLE, P. (Orgs). História e Arte: Herança, Memória, Patrimônio, São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. 3 Devant d’ne image, il ne faut pas seulement se demander quelle histoire elle documente et de quelle histoire elle est contemporaine, mais aussi: que mémoire elle sédimente, de quel refoulé elle est le retour. 4 uma promessa que não foi cumprida, mas que o presente pode reconhecer e retornar. (GAGNEBIN, 2012, p. 30). De fato, Sobre o conceito de história, na Tese 14 de Walter Benjamin, lê-se que “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de ‘tempo de agora’” (2012, p. 249). A História, portanto, deve transformar a imagem do passado que ela mesma toma como objeto, rompendo com o idealismo, o historicismo, o positivismo e a noção de progresso linear, para tomá-la como acontecimento. Nesse caso, as Imagens que vêm do passado, algumas de um tempo longínquo, apresentam-se de novo e se instalam como novidade no mundo. Elas misturam passado e presente. Sobrevivem, perpassam sua época de produção, são reapropriadas, ditam crenças e práticas sociais e culturais. São acontecimentos, detentores de pensamento, de memória, de imaginação, sentimento e vida. (FLORES, 2010, p. 7) É assim que a imagem pode despertar novas possibilidades. Porque a imagem é outra coisa além de ausência representada, de estrutura inteligível, de recorte no mundo visível. Segundo Kern (2014) Didi-Huberman acredita que a grande potencialidade da imagem está no fato de ela ser ao mesmo tempo sintoma, como interrupção do saber, e conhecimento, como interrupção do caos. O sintoma é a presença da sobrevivência de outros tempos e a conjunção da diferença e da repetição. Pensar o tempo implica pensar a diferença e a repetição, o sintoma e o anacronismo. A imagem-sintoma interrompe o curso da representação visual e da história cronológica, devendo ser concebida sob o ângulo do inconsciente da representação e de memórias entrelaçadas. (p.122) Didi-Huberman (2007) coloca, assim, as questões: “que tipo de conhecimento pode dar lugar a imagem? Que tipo de contribuição ao conhecimento histórico é capaz de aportar este “conhecimento por imagem”?” Devemos, portanto, nos perguntar pelas condições de possibilidade que leva uma imagem estar onde ela está, o modo como ela surge, mas sobrevive. Seria então, de um lado, fazer uma arqueologia, no sentido como 5 emprega Foucault (2000), em que a análise arqueológica analisa a sedimentação dos discursos. Mas não só uma análise arqueológica se faz como método, já que ela pode colocar junto coisas, necessariamente, heterogêneas e anacrônicas. Seria preciso, também, proceder pela imaginação e montagem. Benjamin propôs a noção de montagem como método para construir o conhecimento histórico e analisar a imagem artística em suas distintas temporalidades e memórias. O método da montagem proposto era fundado na memória em movimento, que se imobiliza momentaneamente numa interrupção de ritmo de tempos heterogêneos, contra qualquer tentativa de síntese. (KERN, 2014, p. 126) Uma imagem está sempre em movimento, tensionada entre um passado e um futuro, entre àquele que a materializa e àquele que a olha. “(...) a imagem da arte, a imagem ativa não é a forma visível que reproduz um objeto. Ela está sempre entre duas formas. Ela é o trabalho que é criado em seu intervalo. ” (RANCIÈRE, 2010, p.102) 4. Exercícios de pensar com imagem ou sobre como produzir conhecimento histórico (matemático) por meio de imagens Para finalizar esses apontamentos, tratando da imagem como possibilidade na pesquisa em história da matemática, recorro agora a dois ensaios de pensar a imagem como meio para produzir conhecimento histórico da matemática. 4.1 Possibilidades de matematização do corpo humano em Piero della Francesca4 é um trabalho que parte da ideia da representação do corpo humano, instaurada no Renascimento italiano. Alicerçadas no argumento de que o corpo representado apresentava uma forma própria de conhecimento, as representações do corpo passam a se estabelecer como uma atividade mental que se situava como a mais elevada atividade do espírito, reivindicandoas como ciência. Desta forma, o corpo, tanto como objeto de estudo científico, é também cientificamente representado. Tomando-se as imagens do tratado De Prospectiva Pingendi 4 Comunicação apresentada no 7º Encontro Luso-Brasileiro de História da Matemática em Óbidos, Portugal, de 15 a 19 de Outubro de 2014. 6 e as pinturas de Piero della Francesca, acerca do corpo humano, propôs-se um feixe de questionamentos, considerando não só quem é, e o que fez este artista, mas sobretudo quais enunciados são colocados em prática e são gerados por ele, quais relações entre seu pensamento e o de outros que são contemporâneos a ele. Isso significa analisar o campo de saber em que o artista está inserido, investigando as condições de possibilidade que fazem surgir uma representação realista do corpo humano e que é submetida aos cálculos matemáticos. Além disso, a representação do corpo humano mantém uma lógica racional, matemática, que sobrevive tanto em representações artísticas, como na memória atual daquele que olha para imagens do corpo humano. 4.2 Fotografias: o visível e o invisível de uma história do ensino da matemática5 é uma proposta de trabalho que elaborou conhecimento histórico acerca do ensino de matemática nos grupos escolares de Santa Catarina, tomando fotografias como lugar de análise. Partiuse do princípio de que as fotografias não mostram uma informação, ou que são mero registro de momento, mas como potência para pensar sobre o que fizeram, falaram, tornaram verdade sobre um ensino de matemática. A fotografia, como um dispositivo que torna visível as condições de sua enunciação, provoca o pensamento, permite análises, comentários, discussões. Quais forças foram necessárias para gerar práticas de ensinar e aprender matemática no grupo escolar? As maneiras de se comportar, vestir, fazer rituais comemorativos, ou ainda, determinada disposição espacial dos corredores da escola, permitindo uma vigilância constante dos corpos, são pontos que emergem e se conectam com as práticas de ensino, em que regras e hábitos se tornavam verdades, servindo como modelos colocados aos professores nas aulas de matemática, desde os primeiros anos de escolaridade nos grupos escolares catarinenses. Não é à toa que muitas fotografias, no presente, pulsam na memória do passado por um ensino de matemática em que práticas educativas são tomadas como modelos de ensino. Por fim, há muito para se fazer com imagens na pesquisa em história da matemática. A questão é, como diz Knauss, “(...) definir o olhar como pensameno e fazer dele matéria do conhecimento histórico. (2006, p. 115) 5 Artigo Publicado: Santos, P. S. dos; Flores, C. R.; Arruda, J. P. de. Fotografias: o visível e o invisível de uma história do ensino da matemática. In REMATEC, ano 8, n.13, 2013, p. 7- 22. 7 Referências bibliográficas ALBUQUERQUE JÚNIOR. D. M. de. História: A arte de inventar o passado. Bauru, SP : Edusc, 2007. BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política : Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas I. 8a ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo : Brailiense, 2012. DIDI-HUBERMAN, G. Quand las imágenes tocan lo real. Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona (MACBA), 2007 _____________. La condition des images. Entretian avec Frédéric Lambert et François, Niney,2011, http://documents.irevues.inist.fr/bitstream/handle/2042/28239/2007_19_06.pdf?sequence=1 Acesso: 21/11/14, p.12. DEBRAY, R. Vida e Morte da Imagem : Uma história do olhar no ocidente.Tradução de Guilherme Teixeira. Petrópolis, RJ : Vozes, 1994. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. - 8. Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. GAGNEBIN. J. M. O que é a imagem dialética? In FLORES, M. B. R; PETERLE, P. (Orgs). História e Arte: imagem e memória, p. 21-34. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012. FLORES, M. B. R. A imagem como acontecimento. Ou pensando por imagens. ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 21, p. 7-8, jul.-dez. 2010 KERN, M. L. B. Imagem, memória e tempo: o conhecimento em movimento. In FLORES, M. B. R; PETERLE, P. (Orgs). História e Arte: Herança, Memória, Patrimônio, p.111-129. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. KNAUSS, P. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan.-jun. 2006. MENESES, U. T. B. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, 2003. RANCIÈRE, J. Trabalho sobre a Imagem. Tradução de Cláudia Muller Sachs. Urdimento – Revista de Pós-Graduação em Teatro- UDESC, p.91-105, 2010. SANTOS, P. S. DOS; FLORES, C. R.; ARRUDA, J. P. de. Fotografias: o visível e o invisível de uma história do ensino da matemática. In REMATEC, ano 8, n.13, 2013, p. 7- 22. 8